era uma vez dois sertões: a representação do sertão nordestino

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Era uma vez dois sertões: A representação do Sertão nordestino nos filmes Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, e Baile Perfumado, de Paulo Caldas e Lírio Ferreira 20/02/2008 Matheus Andrade* INTRODUÇÃO No decorrer dos acontecimentos históricos de nosso país, o Sertão brasileiro transformou-se em sinônimo indissociável de seca, devido à condição climática natural da região, que afeta seu solo e, consequentemente, a vida de milhares de pessoas que vivem nessas terras. A ausência da água, causada pela estiagem, atinge as terras do Sertão deixando- as em grave estado de improdutividade, assim, os camponeses ficam impossibilitados de exercer suas principais atividades econômicas: agricultura e pecuária. Nesse período, a vegetação sobrevivente limita-se a plantas adequadas à alta temperatura, à aridez do solo e sol ardente. Nessas condições, o povo sertanejo é levado a abandonar a sua região em busca de outros campos que dêem condição de sobrevivência. O espaço assolado pela seca, considerado nos discursos políticos como principal causador da miséria dos habitantes das terras do Nordeste, mais precisamente do Sertão nordestino, tornou-se o grande dramalhão representativo da história da região. Entre os diversos meios de expressão artística que utilizam esse discurso da seca como tema, o cinema nacional fez de tal problema um enredo recorrente, sem desperdício de sentimentalismo, os diretores escreveram roteiros de filmes que representam o Nordeste brasileiro a partir dessa imagem cristalizada de região predominantemente árida e pobre. Contudo, a seca não é um fenômeno constante na região, o Sertão brasileiro não é predominantemente árido, não atravessa eternamente essa condição climática desprovida de água, não é definitivamente desértico e a estiagem ocorrida nas terras da região Nordeste é periódica, embora freqüente. Com a chegada da chuva, a região muda visualmente. As terras ficam aptas para a prática agrícola, banhadas pela água em abundância armazenada nos açudes e rios que servem às plantações e animais. A paisagem luminosa reflete o verde da vegetação que transforma o ambiente. O povo sertanejo cultiva seus roçados e alimenta suas criações com as condições disponibilizadas pela natureza do lugar. O índice de imigração e mortalidade dos nordestinos diminui graças às novas condições do solo do Sertão. Entretanto, a fertilidade das terras sertanejas, derivada da presença de água na região, e a alegria dos homens que nelas sobrevivem também se transformam em referência para os cineastas que utilizam a temática nordestina como narrativa de seus filmes, o cenário elaborado sobre um Sertão sem seca parece possuir tanta carga dramática para o cinema quanto a abordagem da miséria. Embora haja uma predominância de filmes nacionais que abordam o Sertão e o Nordeste brasileiro sob a perspectiva da seca, pode-se identificar, também, filmes que mudam essa perspectiva em suas histórias, que diferem desse olhar sobre a problemática rural, passando a representar o Sertão nordestino, em seus períodos de fertilidade. O presente trabalho, intitulado de Era Uma Vez Dois Sertões, apresenta as distintas formas pelas quais o Sertão nordestino é representado nos filmes Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, e Baile Perfumado, de Paulo Caldas e Lírio Ferreira. O Sertão mostrado em Vidas Secas é uma região arcaica e miserável, impossibilitada de se enquadrar ao sistema econômico urbano e a cultura perde todo o seu valor; lugar onde não há esperança de um futuro para o povo. Enquanto em Baile Perfumado o Sertão é apresentado como uma região rica em tradições e costumes, que

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Era uma vez dois sertões: A representação do Sertão nordestino nos filmes Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, e Baile Perfumado, de Paulo Caldas e Lírio Ferreira 20/02/2008 Matheus Andrade*

INTRODUÇÃO

No decorrer dos acontecimentos históricos de nosso país, o Sertão brasileiro transformou-se em sinônimo indissociável de seca, devido à condição climática natural da região, que afeta seu solo e, consequentemente, a vida de milhares de pessoas que vivem nessas terras.

A ausência da água, causada pela estiagem, atinge as terras do Sertão deixando-as em grave estado de improdutividade, assim, os camponeses ficam impossibilitados de exercer suas principais atividades econômicas: agricultura e pecuária. Nesse período, a vegetação sobrevivente limita-se a plantas adequadas à alta temperatura, à aridez do solo e sol ardente. Nessas condições, o povo sertanejo é levado a abandonar a sua região em busca de outros campos que dêem condição de sobrevivência.

O espaço assolado pela seca, considerado nos discursos políticos como principal causador da miséria dos habitantes das terras do Nordeste, mais precisamente do Sertão nordestino, tornou-se o grande dramalhão representativo da história da região. Entre os diversos meios de expressão artística que utilizam esse discurso da seca como tema, o cinema nacional fez de tal problema um enredo recorrente, sem desperdício de sentimentalismo, os diretores escreveram roteiros de filmes que representam o Nordeste brasileiro a partir dessa imagem cristalizada de região predominantemente árida e pobre.

Contudo, a seca não é um fenômeno constante na região, o Sertão brasileiro não é predominantemente árido, não atravessa eternamente essa condição climática desprovida de água, não é definitivamente desértico e a estiagem ocorrida nas terras da região Nordeste é periódica, embora freqüente.

Com a chegada da chuva, a região muda visualmente. As terras ficam aptas para a prática agrícola, banhadas pela água em abundância armazenada nos açudes e rios que servem às plantações e animais. A paisagem luminosa reflete o verde da vegetação que transforma o ambiente. O povo sertanejo cultiva seus roçados e alimenta suas criações com as condições disponibilizadas pela natureza do lugar. O índice de imigração e mortalidade dos nordestinos diminui graças às novas condições do solo do Sertão.

Entretanto, a fertilidade das terras sertanejas, derivada da presença de água na região, e a alegria dos homens que nelas sobrevivem também se transformam em referência para os cineastas que utilizam a temática nordestina como narrativa de seus filmes, o cenário elaborado sobre um Sertão sem seca parece possuir tanta carga dramática para o cinema quanto a abordagem da miséria.

Embora haja uma predominância de filmes nacionais que abordam o Sertão e o Nordeste brasileiro sob a perspectiva da seca, pode-se identificar, também, filmes que mudam essa perspectiva em suas histórias, que diferem desse olhar sobre a problemática rural, passando a representar o Sertão nordestino, em seus períodos de fertilidade.

O presente trabalho, intitulado de Era Uma Vez Dois Sertões, apresenta as distintas formas pelas quais o Sertão nordestino é representado nos filmes Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, e Baile Perfumado, de Paulo Caldas e Lírio Ferreira.

O Sertão mostrado em Vidas Secas é uma região arcaica e miserável, impossibilitada de se enquadrar ao sistema econômico urbano e a cultura perde todo o seu valor; lugar onde não há esperança de um futuro para o povo. Enquanto em Baile Perfumado o Sertão é apresentado como uma região rica em tradições e costumes, que

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sofre a influência do processo de modernização dos centros urbanos, mutável e contraditória.

A análise realizada sobre os filmes Vidas Secas e Baile Perfumado no presente trabalho, parte dos pressupostos de que “a arte do cinema é a arte de uma atitude, o estilo de um gesto. Não é tanto o quê mas o como” (BERNARDET, 1994. p.58), e que “um filme é um produto cultural inscrito em um determinado contexto sócio-histórico” (VANOYE & GOLIOT-LÉTÉ, 1994. p.26). Desse modo, buscamos compreender como se dá a representação do Sertão brasileiro a partir da forma pela qual a temática é abordada nos referidos filmes, valendo-nos de uma análise sobre os elementos estéticos e buscando situar os contextos históricos das obras.

Para a explanação do conteúdo apresentado no presente trabalho, dividimos o texto entre três capítulos e conclusões a fim de obter organização plena durante as atividades de pesquisa e a produção textual, e fornecer para o leitor maior clareza do conteúdo tratado.

No Capítulo 1 discutimos o cinema como forma de representação e suas características como forma narrativa ficcional e documental. E, também, apresenta-se o percurso histórico do conceito de Nordeste e Sertão brasileiro, bem como a sua representação e absorção na cinematografia nacional.

Nos Capítulos 2 e 3 apresentamos a análise dos filmes escolhidos para o trabalho. No Capítulo 2 discute-se a representação do Sertão e do Nordeste brasileiro em Vidas Secas, centrado na abordagem predominante sobre a região: a seca e seus problemas; no Capítulo 3 analisa-se a representação do Sertão e do Nordeste em Baile Perfumado, como um olhar inovador em relação à forma predominante de abordagem cinematográfica sobre a região: o Sertão verde dos homens fortes, que incorporam a modernidade e não representam sua negação. A estrutura dos Capítulos 2 e 3 organiza-se na forma de tópicos, seguindo o esquema: o período histórico de produção do filme, o roteiro e a história narrada, a estética do filme, a representação das terras e do homem do Sertão no filme e a interpretação de algumas cenas que contribuem para a análise feita a propósito da representação proposta por cada filme.

Por fim, nas Conclusões apontamos os paralelos encontrados entre os filmes, esclarecidos nos capítulos anteriores, buscando as diferenças e as repetições e permanências em suas abordagens sobre a temática, apresentadas nas distintas representações do Sertão e do Nordeste brasileiro.

Era Uma Vez Dois Sertões é o resultado da disciplina Projeto Experimental do curso de Comunicação Social, habilitação em Radialismo, da Universidade Federal da Paraíba, Campus I, realizado no período letivo de 2003.2, atividade obrigatória para conclusão de curso. CINEMA E REPRESENTAÇÃO 1.1 Imagem Fotográfica: entre o Real e a Ilusão

Para dar início à reflexão sobre representação cinematográfica, inicialmente utilizaremos a imagem fotográfica. Não dissociando-a do cinema, e sim pensando nela como embrião da sétima arte. A partir da foto, buscaremos compreender o processo de representação através da imagem em movimento.

Ao longo dos anos de nossas vidas nos lembramos, com maior precisão, dos momentos mais significativos que vivemos, das situações mais importantes e mais marcantes pelas quais passamos. Mas, provavelmente, algum dia presenciamos uma situação, um tanto comum, como a narrada a seguir: certa ocasião, nas últimas férias de verão, um conhecido fez uma viagem ao Rio de Janeiro, a “cidade maravilhosa”. É cabível lembrar que a máquina fotográfica é um acessório típico do turista em todo o mundo. Então, ao retornar de sua viagem, ele trouxe várias fotos para mostrar os lugares onde esteve.

Numa noite qualquer, resolvi visitá-lo para saber como foi seu passeio turístico. E ele, imediatamente, trouxe seus álbuns de fotografia da viagem, repletos de imagens,

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para me mostrar. Em meio a tantas fotos, de repente, chega aquela clássica em que o sujeito está em frente à estátua do Cristo Redentor.

Por mais que possamos ironizar o registro fotográfico dos turistas, até mesmo a clássica foto, essas imagens nos dizem implicitamente: “Estive lá. Olhe aqui!”.

Outra experiência marcante que me vem à memória, quando falo sobre fotografia: há alguns anos, um amigo estava de férias e resolveu ir passear em Maracaípe, Pernambuco, uma bela praia, onde, devido à natureza do ambiente, a prática do surfe é intensa, local que comportou diversos campeonatos brasileiros desse esporte radical.

Ao retornar, dias depois, fui visitá-lo. Logicamente, ele me trouxe as fotos da viagem e eu comecei a observá-las tranqüilamente. De repente, a surpresa: três fotografias me impressionaram. Na seqüência estava a foto de um surfista em atividade, executando uma manobra; na segunda fotografia uma outra manobra que parecia dificílima, diferente da primeira. O detalhe é que nessas duas fotos não era possível reconhecer o personagem, em virtude da distância em que foram tiradas. Então, a terceira foto era a conclusão da seqüência. A imagem era a do meu amigo saindo da praia de sunga de banho, com os cabelos molhados, carregando uma prancha. Não pude me conter. Por conhecê-lo, eu sabia que aquilo era mentira, mas as fotos arrumadas nessa seqüência, conduziam a uma outra narrativa, que contrariava a realidade: ele nunca praticou surfe em toda sua vida dele. E, por fim, ele perguntou se eu havia gostado de sua seqüência. Resultado: gostei.

Diante dos exemplos citados anteriormente, percebemos que as fotos aparecem na mesma situação (tratamos de dois turistas), porém com cargas semânticas diferenciadas; uma revela imagem em que eu acredito: a presença do turista em frente à estátua do Cristo, mas na outra imagem, aquela do amigo surfando, eu não pude crer, mas apenas por conhecê-lo bem.

A imagem fotográfica possui duas características inatas e que se fazem importante para a discussão propostas adiante. Utilizando os exemplos já citados, na primeira história o turista registra uma dada realidade e nos traz a prova de que o fato aconteceu de verdade, ele realmente esteve em tal lugar. Numa situação como essa, nossa reação é de concordar com a imagem fotográfica apresentada. De fato, a outra história também está sujeita à mesma reação. Imagine se eu não o conhecesse? Eu jamais discordaria de que ele pegava ondas, e ele poderia jamais contar a verdade.

Independente da situação, supomos que tudo que um dia foi registrado por uma câmera fotográfica deve haver existido em determinado tempo e espaço. Uma fotografia, por mais simples, mal tratada, preto e branco ou amadora que seja, da estátua do Cristo Redentor, por exemplo, pressupõe que ela existe. Segundo Paulo Roberto Arruda de Menezes (1996, p.83-84), esse pressuposto contido na imagem fotográfica é responsável por toda verossimilhança do processo. Ele diz: “É evidente que esse pressuposto não leva em conta o fato de que as imagens, como qualquer outra linguagem, são passíveis de serem adulteradas ou montadas, podendo, portanto, enganar ou mentir.”. Em relação à clássica fotografia do turista em frente à estátua do Cristo Redentor, nós nem se quer pensamos em observá-la melhor para saber se foi realmente verdade, ou seja, se ele estava realmente no Rio de Janeiro.

Ainda segundo Arruda de Menezes, “por mais que possamos ter em conta essa perspectiva de simulação e engano, sempre temos a tendência quase natural de acreditar nas imagens que contemplamos antes que algo nos induza a desconfiar de sua veracidade” (p.84). Na fotografia do meu amigo “sufista” eu pude pressupor, por conhecê-lo, que não foi ele quem fez aquelas manobras no mar. Desvendei a montagem. Mas, para uma outra pessoa, aquela informação poderia ser absorvida sem levantar dúvidas.

Por suas possibilidades, a imagem fotográfica tem a capacidade de nos causar uma impressão de realidade através do registro qualquer de objetos e pessoas, mesmo quando sofreu efeitos de montagem ou manipulação.

A imagem cinematográfica proporciona efeito equivalente, de forma até mais poderosa, pois a película cinematográfica além de registrar 24 exposições fotográficas por segundo, rodando-as sucessivamente quando exibidas, dá a impressão do movimento humano assim como nós o percebemos. Para Jean-Claude Bernardet (1980,

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p.12) diante de suas características, o cinema simula a realidade, ele nos dá a “impressão de que é a própria vida que vemos na tela, brigas verdadeira, amores verdadeiros”. Por esse motivo, em conversas informais sobre filmes entre diversos níveis de espectadores, nós podemos, com freqüência, ouvir frases como: “Aquele filme é pura realidade!” ou, quando o filme infringe o que para nós é verdadeiro, “Aquele filme é muito fantasioso!”. Opiniões essas, resultado do modo pelo qual o cinema conta suas histórias.

A arte cinematográfica, assim como a literatura, narra histórias. Antonio Costa (1989, p.23), em seu livro Compreender o Cinema, afirma que “o cinema é, simultaneamente, narração e representação”. Só que, enquanto a literatura narra através de palavras, dando-nos uma história a ser imaginada, o cinema narra com imagens nos mostrando a história imaginada por um cineasta. E, tal característica, ao contrário da literatura, faz do cinema uma máquina de invenção da realidade. Costa diz que, além de narração, “o cinema pode ser visto como um dispositivo de representação, com seus mecanismos e sua organização dos espaços e dos papéis” (p.26). As histórias contadas nas narrativas cinematográficas clássicas são bastante parecidas com a realidade. Não apenas pela imagem em movimento, como também através da adequação de seus cenários, figurinos, atuação, som, etc., o cinema consegue construir ambientes semelhantes ao que costumamos presenciar em nossas vidas, ou evocam sociedades do passado, tornando o filme um crédulo instrumento de representação, simulador da realidade social, presente ou passada.

Para buscarmos um melhor entendimento sobre cinema e representação, faremos referência aos primeiros registros cinematográficos, considerando alguns momentos de sua história e reflexões a propósito do desenvolvimento do filme, visto como ferramenta da intenção de representar a realidade, baseada na verossimilhança, no imaginário social ou, ainda, no desejo humano de ultrapassar limites, como é o caso da ficção científica. 1.2 Imagem Cinematográfica: primeiras Representações

Neste texto, iremos nos ater à descoberta da arte cinematográfica e às primeiras experiências do olhar humano sobre o cinema, a fim de percebê-lo como ferramenta de representação e seu potencial narrativo.

No início, os inventores do cinema não tinham idéia do futuro da nova invenção, tanto que as primeiras palavras diante da nova máquina foram, segundo Bernardet (p.11), que esse aparelho “não tinha o menor futuro como espetáculo, era um instrumento científico para reproduzir o movimento e só poderia servir para pesquisas”. Essa postura vai se revelar como um grande equívoco. O cinema, com passar do tempo, se transformou numa das maiores ferramentas narrativas da história da humanidade.

Mesmo considerando-o como mais uma entre suas invenções “banais”, os irmãos Auguste e Louis Lumière, ao executarem as primeiras experiências com o cinematógrapho, entre elas filmar a chegada de uma locomotiva na estação e exibir no dia 28 de Dezembro de 1895, no Grand Café em Paris, nunca imaginariam até onde chegaria a arte cinematográfica, se é que se pensaria que aquela “geringonça” teria função na produção artística.

A reação dos primeiros espectadores foi totalmente inesperada. Diante de um registro mal acabado do trem, um filme em preto e branco e sem som, ninguém pensaria que aquelas imagens influíssem diretamente no comportamento das pessoas que assistiam ao filme dos Lumière. Pois a reação do público diante da tela foi de puro medo e insegurança devido à aproximação daquela locomotiva que, por alguns instantes, parecia totalmente desgovernada, e, como observa Merten (1995, p.17): “Hoje parece mentira, mas há 100 anos houve gente que quis se atirar debaixo da cadeira, escondendo-se para fugir do trem que parecia vir na direção deles”.

Os filmes dos irmãos Lumière foram realizados como registros experimentais de

situações alheias. Em La Sortie des Usines (A saída das Fábricas), eles puseram a

câmera em frente à fábrica e gravaram, em película única, a saída dos operários ao final

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do expediente de trabalho. Antonio Costa fala que, embora pareçam insignificantes esses

registros primários, eles exprimem a tendência natural do cinema, por sua vez derivada

da fotografia instantânea, ou seja, a representação de uma realidade pressuposta.

Não muito distante, em 1902, o cinematográpho inicia uma nova fase em sua existência. O mágico Georges Méliès adquire um aparelho de filmagem e descobre, por acaso, a magia que se encontrava por trás das grandes telas. Méliès estava filmando um ônibus em Paris quando, de repente, a câmera enguiçou. Nesse instante, o ônibus saiu e um carro funerário parou no mesmo lugar. A câmera voltou a funcionar e quando o trabalho foi concluído, ele percebeu que o filme ficou com a ilusão da mágica na troca dos veículos. Por esse fato, o mágico logo descobre que no cinema o fantástico, construído pela possibilidade da montagem que, assim descoberta, induziria tanta credibilidade quanto a realidade capturada diretamente pela câmera, sem intervenção alguma. Segundo Costa (p.49),

o cinema dos primeiros anos debateu-se entre a consciência do caráter de autencidade de reprodução do real que o novo meio assegurava e a extraordinária facilidade com que se podiam produzir simulações perfeitamente aceitáveis, sobretudo por parte do público ingênua e crédulo que enchia as primeira salas de cinema. Entre os pioneiros da nova arte houve logo quem considerasse justo defender seu caráter de autenticidade contra qualquer tentativa de contrafação.

Abordando os primeiros momentos de existência do cinema, Luiz Carlos Merten

(p.18) diz que “a glória dos irmãos Lumière está na paternidade do invento do cinematógrafo, e não do cinema como linguagem”. Mesmo assim, com seus primeiros experimentos de registro cinematográfico, os pais do cinema iniciaram uma linguagem de filme documental. O filme La Sortie des Usines é a reprodução, em imagens, da ação dos operários ao término de seu expediente de trabalho. Eles gravaram em película cenas do meio em que eles viveram naquele período, tudo isso dotado de valores referentes àquela sociedade. Porém, com sua repentina experiência, Meliès iniciou o que, após alguns anos, se convencionou chamar de montagem cinematográfica, o que seria a colagem dos planos de cena para obter-se a história narrada como se deseja, subvertendo o tempo real.

Em referência ao realismo dos irmãos Lumière e à fantasia de Meliès, o crítico cinematográfico João Batista de Brito (1995, p.210) afirma que esses aspectos marcaram a arte do cinema. Segundo ele, a trajetória de desenvolvimento do cinema “confirma que, o tempo todo, essa dicotomia entre a cópia mimética do real e a criação gratuita esteve no cerne de sua natureza”.

Ainda em referência aos filmes de curta duração da primeira década do cinema, Costa (p.53) diz que “(...) não é possível separar nitidamente no cinema dos primeiros anos uma tendência ‘realista’, objetiva e uma ‘irreal’, ‘fantástica’(...)”, ao ato de assistirmos àquelas imagens. Nos primórdios da imagem em movimento, os irmãos Lumière e o mágico Meliès conseguiram reproduzir imagens parecidas com as da vida real (mesmo usando formas diferenciadas), imagens que puseram em questão o que se via no cinema: real ou irreal. 1.3 Construção e Ilusão da Realidade

“A vida não é como você viu no cinema. A vida é mais difícil”. Essas são as palavras usadas pelo projecionista Alfredo no filme italiano Cinema Paradiso (Giuseppe

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Tornatore, 1989). Sempre preocupado com o futuro de Totó, um menino fascinado pela magia do cinema, ele o aconselha com essa frase, explicando o que foram todas aquelas “imagens amadas” durante sua vida, esclarecendo, assim, que elas eram parecidas com a vida, mas que, no fundo, a vida não é realmente aquela ficção vivida por vários personagens na tela do cinema, nem mocinho, nem bandido, donzelas ou beijos censurados, ela é verdadeiramente muito mais difícil.

Segundo Bernardet (p.13), uma das principais características do cinema é a ilusão, o fato de trazer à tona uma realidade semelhante àquela que você conhece, provocando afinidade pelo que lhe foi apresentado no filme, seja o real ou o sonho humano, isso causa, imediatamente, a impressão da realidade, pois “no cinema, fantasia ou não, a realidade se impõe com toda a força”.

Jacques Aumont (1995) explica que a ilusão construída pelo cinema é derivada das técnicas de profundidade: a profundidade de campo e a perspectiva. Técnicas utilizadas na composição das imagens para simular uma visão tridimensional. É a partir desses elementos que o cinema consegue mostrar espaços semelhantes ao real; ainda segundo Aumont, outro elemento fundamental para a ilusão cinematográfica é o som. Montado juntamente com as imagens, o som torna a narrativa cinematográfica mais verossímil: “o som se tornou um elemento insubstituível da representação fílmica” (p.45). Esses elementos fazem com que, antes de percebermos os aspectos irreais do filme, a história pareça ser realidade. Para ele, como qualquer meio de expressão artística, o cinema possui suas limitações (recorte espacial, ausência de terceira dimensão, caráter artificial ou ausência de cor, etc.), mesmo assim, no momento em que nós assistimos ao filme

(...) reagimos diante dessa imagem plana como se

víssemos de fato uma porção de espaço de três

dimensões análogo ao espaço real no qual vivemos.

Apesar de suas limitações essa analogia é

vivenciada com muita força e provoca uma

‘impressão de realidade’ específica do cinema, que

se manifesta principalmente na ilusão de movimento

e na ilusão de profundidade (p.20-21).

A elaboração de um filme, desde o roteiro, depende de uma série de elementos que podem modificar a história a ser narrada, direta ou indiretamente. De fato, devido às características estéticas do cinema, às influências políticas, culturais e sociais do diretor, o investimento econômico do produtor e, até mesmo, alguns imprevistos a que estão sujeitos na hora da gravação, a história a ser narrada pelo cinema, por mais que pareça realidade é sempre uma representação dos fatos, daquilo que o diretor quer nos mostrar:

O filme não pode simplesmente contentar-se em apresentar, em mostrar os acontecimentos, ele é também uma seleção tendenciosa desses acontecimentos, a sua confrontação, libertos de tarefas estreitamente ligadas ao tema, realizando, em conformidade com o objetivo ideológico do conjunto, um trabalho adequado no público (LEITÃO, 1981. p.19).

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O cineasta soviético Sergei Eisenstein, um dos primeiros estudiosos a refletir sobre

a arte cinematográfica, em seus conceitos sobre cinema diz que a montagem significa tudo para um filme. Segundo ele, duas determinadas imagens montadas em colisão têm o poder de fabricar uma terceira imagem situada na mente do espectador, ou seja, lança-se um propósito metafórico que se encontra além dos elementos explícitos no filme.

Em suas reflexões, Eisenstein (1990a) afirma que a câmera de cinema fixa, em película, eventos reais e elementos da nossa realidade, tendo em vista que a técnica fotográfica favorece uma imagem com alto índice de verossimilhança daquilo que se quer representar. Após a captura das imagens, o filme, agora, submete-se ao que convencionou chamar de montagem. Para ele, a montagem é o que determina como a história do filme será narrada, ou seja, “a ordem final é inevitavelmente determinada, consciente ou inconscientemente, pelas premissas sociais do realizador da composição cinematográfica” (p.15).

Ainda na perspectiva do cineasta soviético, “a necessidade legítima de combinar esse fragmentos da realidade se transformou em concepção de montagem que pretendiam suplantar todos os outros elementos de expressão do cinema” (p.17). A manipulação das imagens, vistas no conceito de montagem, implica diretamente na realidade mostrada no cinema. Ainda para Eisenstein, a capacidade do cineasta de conectar os fragmentos dessa realidade, exposta nos registros da película cinematográfica possibilita ao diretor fabricar um novo sentido ou elaborar uma outra interpretação ao real.

A forte analogia entre a imagem fílmica e o mundo material fazem da sétima arte um instrumento de força e credibilidade quase que inabalável enquanto construtor de realidades.

É possível dizer que a função do cinema é a representação, independente do conteúdo exposto no filme. O cinema tem a capacidade de recortar o tempo e o espaço de uma determinada situação, juntar as imagens captadas passando, assim, por todo um processo de produção para representar o conteúdo proposto em forma de narrativa. Mesmo assim, abordando posteriormente alguns conceitos sobre a imagem cinematográfica e a realidade, é importante afirmar que o cinema pode ser visto, também, como uma realidade.

A representação do real, inata da arte cinematográfica, impulsionou movimentos cinematográficos em alguns países, dando forma à ideologia de algumas vanguardas do cinema mundial. Na Alemanha, por exemplo, o movimento expressionista (1907/1926) se opôs ao realismo explícito, pois tinha a intenção de mostrar, através dos filmes, a realidade interior da vida. Para isso, os cineastas utilizavam elementos deformados em suas imagens, exacerbavam as formas para criar os universos, usavam sombras e silhuetas nas composição das cenas, era um cinema de “visões” e “alucinações” (VANOYE & GOLIOT-LÉTÉ, 1994. p. 33).

Por sua vez, o período mais influenciado pelo filme como representação do real, ocorre a partir da década de 50. Surgem escolas cinematográficas que buscam, como principal propósito, colocar nas telas a realidade de suas nações – Neo-realismo italiano, Cinema Novo brasileiro. No Brasil, Glauber Rocha (1981, p.30), falando sobre o Cinema Novo, diz que a importância e repercussão mundial do movimento deve-se ao “seu alto nível de compromisso com a verdade”. Segundo Ismail Xavier (2001. p.13), o cinema dos anos 60, período das produções cinemanovistas, se impôs “como uma espécie de vitrine de exacerbação dos sintomas mais drásticos da vida cultural(...)”. O ideal era registrar as situações e os conflitos sociais e políticos, ainda que fosse com uma câmera na mão e, utilizando o cinema como instrumento de denúncia, buscando influir na transformação política e econômica a partir da exposição da realidade através dos filmes, pois, mostrando nas telas a problemática social enfrentada diariamente pelo povo brasileiro, colocariam uma idéia na cabeça da população a fim de conscientizá-la para construir um mundo melhor.

Segundo o historiador francês Marc Ferro (1992), que percebe o filme como uma fonte de pesquisa legítima para o estudo da história, as imagens cinematográficas

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parecem terrivelmente verdadeiras. Ferro mostra-se atento ao cinema, ciente de suas características de representação, afirmando que “(...) todo mundo sabe que essas imagens, essa pseudo-representação da realidade, são escolhidas, transformáveis, já que são reunidas por uma montagem não controlável, por um truque, uma trucagem” (p.83). Porém, acima de tudo, para ele um filme é uma testemunha de algo; “(...) imagem ou não da realidade, documento ou ficção, intriga autêntica ou pura invenção, é história” (p.86).

Para a atividade de análise histórica sobre o cinema, segundo o método proposto por Ferro, é necessário pesquisar não somente o filme, enquanto objeto de análise, mas também todo o universo que o rodeia, referindo-se assim a todos os componentes contidos ou não no filme. O pesquisador deve

analisar no filme tanto a narrativa quando o cenário, a escritura, as relações do filme com aquilo que não é filme: o autor, a produção, o público, a crítica, o regime político. Só assim se pode chegar à compreensão não apenas da obra, mas também da realidade que ela representa (p.87).

Frente aos conceitos de representação imagética, o cinema funciona basicamente

como um espelho, onde os fatos simulados por ele parecem reflexos perfeitos do conteúdo material existente na vida real. Com isso, o mundo das narrações fílmicas consegue fundir-se facilmente com o real na imaginação humana e o espectador, por sua vez, cria uma leve tendência a confundir os universos distintos – realidade e ficção.

Em A Rosa Púrpura do Cairo (Woody Allen, 1985), a história narrada pelo filme é um grande exemplo. Para fugir dos problemas que enfrenta no dia-a-dia, Cecília vai ao cinema e assiste a filmes. Nesse momento, ela assiste ao filme A Rosa Púrpura do Cairo diversas vezes, todas a contemplar o personagem romântico Tom Barxter. De repente, em uma das sessões, Tom simplesmente sai da tela do cinema e vai ao seu encontro, afirmando estar perdidamente apaixonado por ela. Imerso na outra realidade (a realidade fílmica), Tom não entende como tudo é tão diferente no mundo de Cecília, como as situações correntes naquele mundo são tão estranhas em comparação às vividas por ele no filme. Em seguida, Tom leva Cecília para dentro da grande tela, ela experimenta o tão sonhado mundo do cinema percebendo, nitidamente, as diferenças daquele universo em relação ao ambiente em que ela vive. Cecília, então, ficou bastante confusa com tudo aquilo que conhecera, a mistura e a confusão entre o sonho e a realidade, entre o mundo real e a realidade cinematográfica ficcional.

O roteiro de Allen desvenda o abismo entre os dois universos ao ponto de Cecília e Tom Barxter perceberem que não poderiam viver felizes para sempre – como são as histórias do cinema. Em consolo à despedida de Tom Barxter, após compreender melhor toda aquela situação, Cecília diz: “No seu mundo tudo acaba dando certo. Sou um ser humano. Tenho que escolher o mundo real, apesar da tentação”.

Assim, o cinema tem a capacidade de (re)construir histórias convincentes em sua estrutura narrativa. A partir de suas características de representação, sua forma de narrar histórias incorpora marca autoral e bastante veracidade pela semelhança criada entre o espaço fílmico e o real, podendo-se considerar um instrumento narrativo de grande poder persuasivo. Por essa razão, as imagens cinematográficas infiltram-se na consciência do espectador sem maiores entraves, transportando-o para outros universos, levando-o a viagens imaginárias ilimitadas, por vezes a galáxias distintas, por vezes a paisagens inóspitas como aquelas que retratam o Nordeste de um país possível chamado Brasil. 1.4 O Nordeste Brasileiro Representado

Para iniciar a discussão sobre a forma pela qual o Nordeste e o Sertão brasileiro

são representados pela arte cinematográfica no Brasil, a princípio se faz necessário

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entender como essa região se tornou sinônimo de um lugar distante de toda e qualquer

civilização, antônimo de toda modernidade associada ao Sul do país, tal como ela é vista

e entendida por grande parte da sociedade brasileira. Para tanto, citaremos duas

abordagens distintas sobre como se deu a construção desse espaço. A partir do enfoque

dado, veremos como esse espaço regional aparece narrado na cinematografia brasileira.

Até meados do século XIX, o Brasil se dividia entre o “Norte” e o “Sul” do país. O

Nordeste ainda não era região reconhecida, sua denominação se dava como províncias

ou estados do Norte. Nesse período, acentuou-se o desenvolvimento social e econômico

na região Sul, que adotava modelos estrangeiros de civilização, privilegiando a

urbanidade ao final do século XIX. A região Norte transformou-se em pólo menos

evoluído do país. Enquanto o Sul surge como o espaço da indústria e do progresso

nacional, o Norte nasce destinado a ser seu avesso, a partir do final do século XIX.

Situação que se consolidaria ao longo da primeira metade do século XX.

Em 1877, um acontecimento notável, climático, contribui para fixar a imagem de

pobreza e subdesenvolvimento associados ao Nordeste brasileiro. A região enfrentou três

anos marcantes de seca, até 1879, período esse conhecido como “grande seca”, e

milhares de pessoas morreram de fome. O fenômeno fez com que a população sertaneja

emigrasse, na esperança de sobreviver em outros lugares, condenando, definitivamente,

a região pela sua natureza climática. A seca foi um fato determinante em relação ao

Nordeste e seu reconhecimento nacional, fixando-o, definitivamente, como região árida e

improdutiva do país. A seca de 1877 fixou no imaginário nacional o lugar do Nordeste.

Por outro lado, diante da decadência das atividades econômicas das províncias do Norte

– a produção de algodão e açúcar –, a “grande seca” tornou-se o maior instrumento

político utilizado para a arrecadação de fundos públicos para o Nordeste. Toda a

problemática da região passou a ser atribuída à seca. As elites regionais, dessa forma,

contribuíram para reafirmar uma característica para o espaço nordestino: decadente,

atrasado, necessitado de ajuda.

Segundo a historiadora Rosa Maria Godoy Silveira (1984), o Nordeste brasileiro é

fruto da forma como a atividade política e econômica regional se desenvolveu após a

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“grande seca”, realizada frente à regionalização desencadeada pelo Estado Nacional. O

Nordeste, como elo mais fraco do processo produtivo sob o capitalismo tardio da nação,

foi engendrado pela necessidade desse modo de produção de gerar a desigualdade,

numa combinação perversa de desenvolvimento e escassez, riqueza e pobreza sob

mesma teia capitalista. A ela interessou analisar esse processo a partir do discurso dos

representantes políticos e dos proprietários de terra ante o período de crise, verificando,

também, a documentação produzida na Paraíba e em Pernambuco, estados

emblemáticos da representação do espaço regional na época. Para ela, o desequilíbrio

regional vivido após a desvalorização geográfica e social dos estados do Norte vincula o

Nordeste, diretamente, à “caracterização da identidade regional em estado de crise e sua

oposição a uma outra identidade espacial, o Sul do país” (p.16).

Ainda segundo Silveira, devido à conjuntura econômica no Brasil, a região

Nordeste ficou marcada como espaço geográfico em estado de crise e

subdesenvolvimento. O investimento e a entrada do capital europeu no Brasil causou

mudanças na área de comércio. Com isso, enquanto a região Sul estabelece uma alta

circulação monetária e um grande desenvolvimento comercial, o Nordeste perde

movimento de capital sofre uma desvalorização de seus produtos no mercado,

especialmente, no caso da economia nordestina, do açúcar. Sendo assim, no final do

século XIX o discurso regionalista começa a ficar cristalizado, estabelecendo, do ponto de

vista ideológico, o discurso das elites dirigentes, que, na impossibilidade de outra

inserção, buscam, na representação da crise, na presença constante da escassez, na

imagem tórrida da terra, manter meios de recursos públicos que, em última instância,

são por elas apropriados. Para ela, “a ideologia regionalista, tal como surge é, portanto,

a representação da crise na organização do espaço do grupo que a elabora” (p.17).

Não há nenhuma outra região brasileira sobre a qual se tenha escrito mais do que

o Nordeste. Diante da grande produção acadêmica, Silveira observa essa historiografia

do espaço nordestino da seguinte forma:

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Constituem a produção, nesse termos, as histórias

provinciais e estaduais (...). O espaço é pouco

visualizado em suas relações externas, por vezes

referenciado apenas a um espaço contíguo (ex.:

província ou estado vizinho); e, internamente, é

caracterizado como unívoco, pasteurizadas as

diferenciações e contradições. Outras vezes, o

espaço é visualizado passivamente em relação ao

espaço nacional (...) (p.21).

Diante dessa construção do espaço regional, o Nordeste é freqüentemente

associado no imaginário popular a um espaço arcaico e subdesenvolvido, distante de

toda e qualquer civilização, visão diferente daquela atribuída ao Sudeste que, por sua

vez, identifica-se como espaço moderno, progressista, propulsor do desenvolvimento do

país. Desta forma, imagina-se o nosso país como uma espécie de “dois Brasis” (p.29).

Uma outra abordagem sobre a construção do conceito de Nordeste é do historiador

Durval Muniz de Albuquerque Jr., autor do livro A Invenção do Nordeste - e Outras Artes

(1999). Para ele o Nordeste brasileiro é uma invenção cultural; foi um espaço construído

a partir dos discursos de várias ordens produzidos no Brasil durante o século XX sobre a

região: “o Nordeste é uma produção imagético-discursiva formada a partir de uma

sensibilidade cada vez mais específica, gestada historicamente, em relação a uma dada

área do país” (p.49).

Para Albuquerque Jr., durante o processo de desenvolvimento do Brasil, o

Nordeste foi identificado através dos seus problemas, em especial a seca e, em segundo

plano, o cangaço e o messianismo. Esse ponto de vista tornou-se predominante no

discurso nacional. Assim, o Nordeste brasileiro foi construído como uma região submissa

a partir da forma pela qual foi representado nos diversos discursos, entre eles o discurso

artístico. Para ele,

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As obras de arte têm ressonância em todo o social. Elas são máquinas de produção de sentido e de significados. Elas funcionam proliferando o real, ultrapassando sua naturalização. São produtoras de uma dada sensibilidade e instauradoras de uma dada forma de ver e dizer a realidade. São máquinas históricas do saber (p.30).

Ainda para Albuquerque Jr. (p.59), a partir desse discurso sobre o Nordeste e o

Sertão brasileiro, centrado na miséria e no sofrimento, criou-se uma imagem cristalizada sobre o espaço nordestino. As obras de arte contribuem intensamente nessa divisão hierárquica entre as regiões brasileiras. Esse discurso sobre as condições climática do espaço nordestino “vai ser um dos responsáveis pela progressiva unificação dos interesses regionais e um detonador de práticas políticas e econômicas (...)” dos espaços áridos. Essa “descrição” do Nordeste “tenta compor a imagem de uma região abandonada, marginalizada pelos poderes públicos”.

Segundo Albuquerque Jr., o discurso produzido pelas obras de artes brasileiras, entre elas o cinema, contribuiu para a divisão regional nacional estabelecendo uma hegemonia do Sul do país, a partir dos interesses da burguesia paulista que tinha como finalidade tornar-se o centro da identidade nacional.

Frente ao exposto, essas distintas abordagens relacionadas à forma como o espaço nordestino foi construído nacionalmente, resultam numa forma singular de observar a região, pois discursiva ou historicamente o Nordeste brasileiro é facilmente associado à pobreza e à miséria, marcado desse modo por uma imagem parcial e definida na consciência de grande parte do povo brasileiro. 1.5 A Região em Cena

Entre as várias companhias cinematográfica brasileiras responsáveis pela produção nacional existiram duas de fundamental importância para a história do cinema no Brasil: a Atlântida e a Vera Cruz. Ambas tiveram a preocupação de tentar fazer do cinema nacional uma indústria comercial, no entanto, não alcançaram muito sucesso nesse objetivo. Os filmes produzidos por essas companhias sofreram grande influência estrangeira, principalmente da cinematografia norte-americana, que dominava o mercado de filmes em diversos países do mundo.

A Atlântida foi fundada no ano de 1941, no Rio de Janeiro e sua produção é essencialmente constituídas dos filmes musicais denominados de “chanchadas”, os famosos musicais carnavalescos, uma espécie de paródia do cinema americano, pois Hollywood foi uma das maiores referências da época para os produtores brasileiros. Segundo Antonio Moreno (1994, p.99), “a Atlântida foi a maior responsável pela produção de filmes brasileiros” durante a década de 40. Além disso, ainda segundo Moreno (p.100), “os filmes da Atlântida e as chanchadas de outras companhias obtiveram enorme sucesso de bilheteria” tornando Oscarito e Grande Otelo verdadeiros astros de cinema.

Enquanto a companhia Vera Cruz, criada em 1949 pela burguesia paulista, no momento insatisfeita com o modelo de filme considerado inferior, esteticamente pobre, produzido pelos cariocas, estabelece como objetivo o modelo estrangeiro de produção cinematográfica, a fim de realizar filmes com um padrão de qualidade de nível internacional. Para tanto, a Vera Cruz importou equipamentos e profissionais da Europa, entre eles: diretores, produtores, editores, técnicos de som, para compor o quadro de funcionários da empresa. Entretanto, seus filmes não tiveram tanto sucesso de bilheteria quanto as “chanchadas”. Os investidores da companhia não obtiveram retorno financeiro imediato, consequentemente, a empresa não pôde se manter por muito tempo e, em 1953, a companhia cinematográfica Vera Cruz fechou suas portas.

Os filmes da Atlântida apresentavam, em seus enredos e personagens, traços de nacionalidade. Albuquerque Jr. diz que nos anos 40, baseado nos programas de humor do rádio, as “chanchadas” já produziam um estereótipo do homem nordestino nas telas

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de cinema. “O nordestino se aproxima muito da imagem do matuto ou do caipira. Ele é sempre mostrado como a inversão da figura (...) do civilizado, do polido” (p.266). Em suas primeiras imagens, o homem do campo foi representado como paradoxo do cidadão urbano, fidalgo e educado, colocando-o à margem dos valores sociais das cidades.

A Vera Cruz, até então, estava sempre preocupada em produzir filmes com uma estética internacional. Em parâmetros gerais, suas produções possuem um perfil estrangeiro de representação, isentos de qualquer característica nacional, seus filmes reproduzem uma imagem cinematográfica importada. Mas, não muito distante, o cinema nacional começa a se auto-referenciar e logo a temática nordestina invade a grande tela. A indústria paulista lança, nos anos 50, dois filmes sobre o Nordeste brasileiro: O Cangaceiro, de Lima Barreto, 1953, realizado pela Vera Cruz e O Canto do Mar, de Alberto Cavalcanti, 1954, realizado pela Kino Filmes.

O filme de Cavalcanti narra o drama dos sertanejos que abandonam suas terras secas à procura de um lugar melhor para viver. Inicialmente, mostra imagens de enxada, caveira de boi, terra rachada e, em seguida, um mapa que, de forma didática, aponta para o espectador que aquilo se passa no Nordeste brasileiro. Durante os primeiros momentos do filme, uma voz em off afirma, redundantemente, que naquela região não chove. Essas primeiras cenas do cinema nacional do período sobre o Nordeste reafirmam elementos do discurso da seca já existente. O Canto do Mar não obteve grande sucesso de público, mas enriqueceu a nossa filmografia.

Já o filme de Barreto teve êxito, sua repercussão transformou-o num grande sucesso mundial, sendo, assim, um dos filmes brasileiros mais conhecidos. Foi o primeiro sucesso internacional da cinematografia brasileira, projetando uma imagem nacional no exterior, traduzindo em imagens os valores culturais e sociais do próprio país, dando início à consolidação da imagem do Nordeste no cinema brasileiro. Para Paulo Emílio Sales Gomes (1996, p.77), com O Cangaceiro, em meios àqueles diretores quase todos estrangeiros, Lima Barreto “inaugurou um gênero que permanece ainda vivo e fecundo”, tendo, assim, deixado marcas duradouras para a cinematografia nacional. Wills Leal afirma que o filme O Cangaceiro iniciou o ciclo de produção de “filme-de-cangaço”. Na busca de realizar um filme com temática nacional, Lima Barreto criara o protótipo para os diversos filmes do gênero, produzidos posteriormente. Porém, para Leal (p.97), o filme de Barreto “foi também o primeiro que negou, mentiu e disfarçou (...) o homem e a cultura do Nordeste. Baseado na história do cangaceiro Lampião e seu bando, O Cangaceiro foi filmado no interior do Estado de São Paulo, produzido e realizado por uma equipe de cinema do Sul do país, fazendo com que, em muitos momentos, a narração distancie-se dos valores sociais, culturais do povo nordestino e dos espaços do Sertão brasileiro.

A estética de O Cangaceiro está bastante relacionada ao modelo de filme conhecido como Western americano, nos quais os enredos do gênero mostram o distanciamento entre os pólos sociais, dividindo a sociedade entre o progresso e o regresso, a ordem e a desordem. Em O Cangaceiro podemos encontrar esse discurso explícito na cena do filme em que a professora Olívia, ao ser tirada do bando pelo cangaceiro Teodoro, lhe diz: “você é um fora da lei em quem não se pode confiar!”. Percebe-se, também, na contribuição com esse tipo de discurso, a identidade e os sentidos sociais determinados a cada personagem da cena – professora e cangaceiro; um socialmente educado, o outro, selvagem, fora dos padrões educacionais e civilizados, contribuindo dessa forma para a elaboração do mito do nordestino primitivo.

Segundo Jean-Claude Bernardet (1978, p.45), discorrendo sobre o filme de Lima Barreto e a imagem do cangaceiro presente no cinema nacional, “a personagem não é recente no cinema brasileiro; já aparece em filmes pernambucanos de 1925/27 (Filho sem Mãe e Sangue de Irmão), num momento em que cangaceiro ainda não era fenômeno do passado”. Para ele (p.46), o cangaceiro cinematográfico está desvinculado do seu significado social (violento), o personagem transforma-se em um “bandido de honra”, importando apenas que “ele não se fixe, não tenha pouso certo e sua vida seja uma andança; ele vai de aventura em aventura” nas trilhas dos seus solos encandecidos e castigados pelo sol avermelhado.

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Após a bem-sucedida série de filmes-de-cangaceiro, dotada de personagens primitivos e violentos, os mitos regionais nordestinos, inclusos no seu cenário natural, serão incorporados a uma série de filmes onde seus problemas sociais e econômicos são a grande atração das telas. A partir do sucesso de O Cangaceiro, de Lima Barreto, os cineastas brasileiros são seduzidos pelo espaço arcaico e marginal do país, movidos pela vontade de expressar o que parece exótico para os espectadores. 1.6 Nordeste Novo Brasileiro

Na década de 60, o Nordeste e o Sertão brasileiros recebem um novo tratamento cinematográfico, um novo olhar é lançado sobre a região árida. Os cinemanovistas filmam o espaço nordestino com realismo, inovando também a forma de se fazer cinema no Brasil, contrariados pelo fracasso industrial passado. O movimento conhecido como Cinema Novo busca expressar a problemática social do país através de seus filmes. Um país em estado subdesenvolvido deve realizar filmes temática e esteticamente subdesenvolvidos. Para Ismail Xavier (p.28), os filmes produzidos pelo grupo cinemanovista “promoveram uma verdadeira ‘descoberta do Brasil’, expressão que não é um exagero se lembrada a escassez de imagens de certas regiões do país na época”. Segundo um dos principais integrantes do movimento, Glauber Rocha (p.31), seria por intermedio desses filmes “feios e tristes, (...) gritados e desesperados onde nem sempre a razão falou mais alto”, que o povo brasileiro entenderia sua condição perante o sistema capitalista.

Neste momento, o Nordeste e o Sertão brasileiro entram em evidência, com novo enfoque, nas produções cinematográficas. Nos filmes produzidos nesse período, o Sertão, juntamente com seus problemas é, simultaneamente, cenário e personagem de suas histórias.

Ainda segundo Rocha, nos filmes que representam o Sertão brasileiro, “o Cinema Novo narrou, descreveu, poetizou, discursou, analisou, excitou os temas da fome” exibindo personagens marginalizados em cenários problemáticos, “(...) foi essa galeria de famintos que identificou o Cinema Novo com o miserabilismo (...)” (p.30). Assim, ainda segundo Xavier, “em sua feição original, anterior ao golpe militar de 64,” o movimento “tem seu momento pleno em 1963/64, com a realização da trilogia do sertão do nordeste: Vidas Secas, Deus e o Diabo na Terra do Sol e Os Fuzis” (p.28). Em seqüência, os filmes foram dirigidos por Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha e Ruy Guerra. Suas histórias colocam em ascensão os temas da seca, do cangaço e do messianismo, representando-os como freqüentes problemas sociais do país.

Segundo Albuquerque Jr. (p.277), o Cinema Novo capturou “(...) no Nordeste, as imagens de um país de rosto roto e esmolambado. Um rosto cruel e violento em oposição ao rosto polido e civilizado da estética hollywoodiana da Vera Cruz e a mascarada carnavalesca das chanchadas cariocas”.

Essa geração de filmes subdesenvolvidos foi influenciada por um documentário curta-metragem produzido e realizado no estado da Paraíba no fim da década de 50. Pode-se afirmar que tudo começou nos anos cinqüenta, quando Linduarte Noronha decidiu filmar a história da população negra de Serra do Talhado, em pleno Sertão paraibano, resultando no seu clássico Aruanda, lançado em 1959. O filme, produzido em condições precárias, mostra a forma sofrida com que esse povo desenvolve sua economia com a finalidade da sobrevivência.

As imagens da miséria ascendem nas obras cinemanovistas. O Nordeste brasileiro é reduzido, imageticamente, ao espaço árido. Os filmes de ficção recebiam um tratamento estético de alto teor realístico, de forma que seguisse o propósito do movimento. Em artigo publicado sobre a primeira exibição de Deus e o Diabo na Terra do Sol, Arnaldo Jabor (1995, p.69) descreve detalhadamente sobre o que havia visto naquela sessão:

E aí o filme começou. Um plano aéreo do sertão de Cocorobó. Corte súbito para o olho morto de um boi roído de sol. Villa Lobos na trilha. E caiu um silêncio

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sideral na sala. Todos os olhos estavam sendo feridos por imagens absolutamente novas. Como explicar isso? Não era apenas um bom filme que víamos. Nada. Era um país que nascia à nossa frente. Não um país que reconhecíamos como sendo, digamos, de Graciliano. Não. Era uma realidade desconhecida que começávamos a compreender. Ela esteve esbolçada na literatura, em Os Sertões, em Rosa. Mas, ‘no olho’, era a primeira vez. Ela nos via. Ela nos incluía.

No decorrer dessa época, diversas vezes o Sertão brasileiro encontra-se como

tema representado na grande tela, como lugar e espaço digno de aparecer num filme, como assunto interessante para ser roteirizado e, posteriormente, virar “coisa de cinema”, como afirmam as pessoas quando vêem algo grandioso. Porém, dificilmente a grandiosidade que é atribuída aos cenários Hollywoodianos é também atribuída à região árida do Nordeste.

Segundo Ivana Bentes (2001), em artigo publicado no Jornal do Brasil, no cinema dos anos 60, o Nordeste e o Sertão foram representados como uma região em crise, primitiva, onde o sertanejo parte em busca de conquistar o espaço urbano e, por fim, transforma-se em favelado e suburbano. Contudo, “o cinema brasileiro dos anos 90 vai mudar radicalmente de discurso diante desses territórios da pobreza (...) com filmes que transformam o sertão ou a favela em ‘jardins exóticos’”. Os filmes que apresentam este outro olhar sobre o espaço nordestino estão em pequena quantidade em relação ao discurso presente nas demais produções cinematográficas sobre o Nordeste, em sua maioria realizadas na região Sul do país. Nesse sentido, Ivana Bentes propõe a tese da Cosmética da Fome.

O discurso transformador do Sertão cinematográfico aparece junto com a inovação tecnológica no cinema brasileiro. A partir de meados dos anos 80, o cinema nacional incorpora novas formas de produção, munido de novas técnicas, direcionado a uma nova estética assumida como um compromisso profissional com o público. Nessa década o Brasil “afirmou a técnica e a ‘mentalidade profissional’” (XAVIER, p.40).

Após a década de 90, com o desenvolvimento da arte cinematográfica no Brasil, em filmes com histórias que se passam no sofrido Sertão brasileiro, como Eu, Tu, Eles (Andrucha Waddington, 2000) e Abril Despedaçado (Walter Salles, 2001), os cineastas flexibilizam o discurso cinemanovista. A belíssima fotografia realizada nesses filmes, utilizando a excessiva luminosidade da região para compor o cenário, possibilita ao espectador observar o Sertão não mais como um lugar feio e triste, visão tão marcada nos filmes já produzidos sobre o tema.

Segundo Leal (p.15), entre as décadas de 50 e 60 havia um cinema de temática nordestina, e não um cinema nordestino. A produção de filmes no Nordeste era minoritária em relação ao resto do país. Apenas a partir das décadas posteriores, “a inteligência cinematográfica nordestina se voltou para concretizar um cinema nordestino”, produzindo filmes que exibem para o país as diversas possibilidades de uma região.

Atualmente, algumas produções nacionais realizadas no Nordeste e por cineastas da região, escolhem os espaços urbanos para a realização de seus filmes. O documentário O Rap do Pequeno Príncipe Contra as Almas Sebosas (Paulo Caldas e Marcelo Luna, 2000) e o longa-metragem ficção Amarelo Manga (Cláudio Assis, 2003), produzidos em Pernambuco por cineastas nordestinos, em suas imagens, mostram um espaço poucas vezes explorados na história da nossa cinematografia, o urbano, no caso, a cidade do Recife.

No Brasil, ao longo da história de sua produção cinematográfica, muitos filmes foram baseados em fatos reais, mesmo sabendo-se que a proposta não era apresentar o registro de tal realidade, e sim fazer filme de ficção. Contudo, a forma excessiva pela qual o Nordeste e o Sertão brasileiro são representados nas grandes telas de cinema é

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responsável pela visão unilateral sobre a região. Na maioria dos filmes nacionais, segundo Iza L. Mendes Regis (2003, p.116), o espaço nordestino representado

é o mais claro protótipo imaginado por nós: seco, com uma vegetação sem folha à espera de chuva, distantes de povoamento onde as casas não se avistam e onde o sol impiedoso esfria as esperanças, pois ao contrário das miragens provocadas pelo sol nos desertos orientais e africanos, o sol dos sertões nordestinos destrói as ilusões dos sertanejos.

Assim, em alguns filmes, talvez na grande maioria dos filmes produzidos sobre o

Sertão brasileiro, é possível que, ao término da sessão, o espectador saia da sala de cinema ofuscado com a imagem de uma região miserável, subdesenvolvida, arcaica, de cores opacas e avermelhadas; uma região totalmente vencida pela natureza de sua vegetação seca, pela escassez da água gerando a improdutividade nas áreas do campo. Essa é a versão predominante e recorrente na cinematografia sobre o Nordeste. A REPRESENTAÇÃO DO SERTÃO NO FILME VIDAS SECAS 2.1 A História do Filme

Nos anos 50, o povo brasileiro alimentava a esperança de um país melhor. Na conjuntura do pós-guerra, o parque industrial nacional, prejudicado pelo longo período do esforço de guerra, necessitava se reerguer. Essa situação levou à implantação de novos planos governamentais, em especial a meta de industrialização traçada pelo ex-presidente Juscelino Kubitschek em 1955 – “Cinqüenta anos em cinco”. Contudo, os projetos progressistas implantados por JK, não foram tão eficientes para assegurar o desenvolvimento pretendido pois as bases de sua implantação tornaram o país mais suscetível às oscilações da economia mundial. No Brasil começou a despertar uma grave inquietação política e social, decorrente da crise econômica em curso nos anos 60.

O plano de desenvolvimento centrava-se no Sul do país, não havia investimento direto para solucionar os problemas agrários do Nordeste o que acentuava, ainda mais, as disparidades regionais. Neste contexto, em 1958, surgiram as Ligas Camponesas nordestinas protestando pela reforma agrária. Preocupado com o problema, JK criou a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), em 1959. O Órgão seria responsável pelo desenvolvimento industrial no Nordeste, porém a atuação da SUDENE revelou-se insuficiente para debelar as disparidades regionais e o problema da reforma agrária continuava sem solução.

A geração de artistas que viveu esse período político do país produziu intensamente, no final da década de 50, uma série de obras de arte engajadas a representar o povo brasileiro, buscando mais uma vez impulsos de mudança.

Segundo Marcelo Ridenti (2000), as lutas políticas e culturais vividas nos anos 60 e princípio dos anos 70 no Brasil são relevantes para compreender a história do país. Nessa fase, a esquerda apresentava suas posições, também, através das diversas produções artísticas, como a música popular, o cinema, o teatro, as artes plásticas e a literatura. Sendo assim, Ridenti convencionou chamar o processo social e as concepções artístico-estéticas engajadas dos artistas desse período de “Romantismo Revolucionário”, expressão cujo conteúdo para Ridenti consiste na busca de reconstruir uma identidade nacional através do ideal revolucionário de transformação social, frente ao modelo capitalista. Para ele, “a utopia revolucionária romântica do período valorizava acima de tudo a vontade de transformação, a ação dos seres humanos para mudar a História, no processo de construção do homem novo (...)” (p.24).

A construção de um homem novo, segundo o conceito de Ridenti, está centrada no resgate das tradições ou raízes da cultura nacional para revigorar valores não mais existentes no homem contemporâneo, porém sem o passadismo característico de uma

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posição regressiva: “a volta ao passado, contudo, seria a inspiração para construir o homem novo” (p.25).

Ainda segundo Ridenti, os grupos de artistas e intelectuais revolucionários andavam fascinados pelas idéias de povo, libertação e identidade nacional, influenciados pelas mudanças políticas dos anos 50. Um dos fatos que mais favoreceram a emergência desse romantismo revolucionário foi a morte do ex-presidente, Getúlio Vargas, em 1954. Com isso, enquanto a direita tomava uma atitude de recuo, a esquerda, fortalecida pelo socialismo que contagiava o mundo das transformações políticas, avançava no cenário nacional. Isso se somava à vontade que os intelectuais e artistas tinham de despertar o povo brasileiro para maiores reflexões sobre a realidade de seu país.

Nesse momento, entram em cena os CPCs, especialmente o CPC da UNE (Centros Populares de Cultura), entidades com independência política, cuja proposição era a superação, através da arte, do estado de alienação política instaurada na consciência popular. Em sua produção artística, inclusive no cinema (Cinco Vezes Favela, 1962), temáticas com teor revolucionário eram trabalhadas com freqüência. Foi nesse contexto que surgiu o Cinema Novo.

O movimento surgiu no início dos anos 60, formado por cineastas ligados ao CPC. Concentrado no estado do Rio de Janeiro, segundo Ridenti, o Cinema Novo era “composto basicamente por cariocas, baianos e cineastas de outros estados radicados no Rio, cuja influência espraiou-se Brasil afora” (p.99). Os integrantes desse grupo possuíam vínculos fortes com o pensamento da esquerda e ideais revolucionários.

Para Ridenti, o Cinema Novo enquadrava-se com precisão no conceito de romantismo revolucionário, sua militância, via imagens, tinha grande importância para as batalhas políticas e culturais daquele período: “o cinema estava na linha de frente na reflexão sobre a realidade brasileira, na busca de uma realidade nacional autêntica do cinema e do homem brasileiro, à procura da revolução” (p.89). Segundo Glauber Rocha (1981), os filmes realizado pelo integrantes do movimento são novos porque o Brasil, ali representado, também era novo para os espectadores. Ele diz: “nossa originalidade é nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome, sendo sentida, não é compreendida” pelo povo brasileiro. (p.30). Ainda segundo Rocha, o objetivo do Cinema Novo era de produzir “um conjunto de filmes em evolução que dará, por fim, ao público, a consciência de sua própria existência” (p.33).

A produção cinematográfica da década de 60 alcançou um considerado número de trabalhos, porém, esses filmes não obtiveram sucesso de bilheteria, pois dificilmente caiam no agrado do grande público. Segundo Ismail Xavier, “o Cinema Novo, em particular, problematizou a sua inserção na esfera da cultura de massas, apresentando-se no mercado mas procurando ser a sua negação (...)” (2001, p.24). A safra de filmes dos cinemanovistas foi, também, uma resposta às metas de desenvolvimento fracassadas na década anterior. Mesmo assim, o movimento comporta alguns dos filmes mais importantes da história do cinema brasileiro.

O filme Vidas Secas, do cinemanovista Nelson Pereira dos Santos, foi produzido em 1963 e lançado em 64, às vésperas do Golpe Militar. Certamente, isso não foi uma missão fácil, pois, após o golpe, o cinema passou a ser alvo de críticas, perseguido por uma censura institucionalizada que castrava a liberdade de expressão da maioria dos cineastas. Em entrevista concedida a Maria do Rosário Caetano, publicada em Revista de Cinema, Nº 19, Nelson Pereira dos Santos explica: “em 64, quando lancei ‘Vidas Secas’, o tema era subversivo. As autoridades diziam que nós, cineastas, queríamos denegrir a imagem do país no exterior” (2001, p.20).

Baseado na obra literária homônima do escritor Graciliano Ramos, o filme representa o Sertão da década de 40 com seus problemas sociais, marcado pela opressão do latifúndio sobre a população camponesa. Uma região predominantemente hostil pela recorrência da seca e migrações; representado sob a exacerbada luz do sol, onde os homens se tornam duros como a terra seca. Para Albuquerque Jr. (1999), “transpor Vidas Secas para a tela visou contribuir com o debate da problemática da reforma agrária no Nordeste, que estava na ordem do dia” (p.273).

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Na abertura do filme, antes de qualquer imagem, Nelson Pereira expõe um texto que mostra-nos, de certa forma, as idéias revolucionárias traçada pelo grupo de cineastas integrantes do Cinema Novo:

Este filme não é apenas a transposição fiel, para o

cinema, de uma obra imortal da literatura brasileira.

É, antes de tudo, um depoimento sobre uma dramática realidade social de nossos dias e extrema miséria que escraviza 27 milhões de nordestino e que nenhum brasileiro digno pode ignorar.

Através deste tipo de discurso, presente nesse e nos demais trabalhos dos

cineastas do movimento, os cinemanovistas acreditavam que dariam uma contribuição para a transformação política e social do país. Nessa perspectiva, segundo Ismail Xavier (2000, p.51), “é o Nordeste dos polígonos das secas o espaço simbólico que permite discutir a realidade social do país”, e que participa da luta política e ideológica em curso na sociedade. Mas, após o Golpe de 64 e, definitivamente após o AI-5, em 1968, todas essas pessoas foram impedidas de expressar suas idéias e sonhos. Artistas e intelectuais foram cada vez mais pressionados a abandonar suas atividades artísticas e intelectuais críticas da realidade social. A produção cultural, mesmo alguns dentro dos padrões de legalidade, declinou, e os CPCs foram fechados em 1964.

O Cinema Novo deparou-se com problemas de ordem política e econômica, enfrentou a carência tecnológica e aceitou a ausência de espectadores em suas sessões. Ainda com todos esses entraves, o movimento perdurou por uma década e obteve reconhecimento mundial. 2.2 Autoria, Direção e Adaptação

A literatura sempre foi uma grande fonte de histórias para o cinema. Durante anos, diversos filmes foram produzidos baseados em contos ou romances, algumas vezes tentando narrar, a seu modo, com fidelidade à obra, outras apenas tomando-a como referência. Contudo, não é uma tarefa simples adaptar um bom livro para o cinema e fazer um bom filme. De fato, diversos leitores/espectadores, na maioria das vezes, dão preferência ao tratamento dado a uma das duas ferramentas narrativas, quando comparadas, geralmente, apontando a insuficiência das versões cinematográficas. Apenas exceções transformam um clássico da literatura em um clássico do cinema. Nesse caso, quando nos referimos a dois ícones da produção cultural brasileira, Graciliano Ramos e Nelson Pereira dos Santos, podemos encontrar essa raridade. Vidas Secas é uma dessas exceções.

O escritor nordestino Graciliano Ramos, nascido no estado de Alagoas em 1892, é reconhecido pela expressividade contida em toda a sua obra literária, um romancista da realidade de seu tempo, dotado de rara habilidade para a produção textual, conciso, econômico, com um estilo único em nossa literatura, um verdadeiro conhecedor da arte de escrever.

Militante do Partido Comunista na década de trinta, seus romances foram influenciados pela sua opção política, visto que a literatura de trinta tentou contribuir para o conhecimento da realidade nordestina. Influenciado, também, pelo movimento regionalista, desenvolveu a temática nordestina, colocando em foco o espaço sofrido do Sertão, conforme aquela imagem discutida no item anterior. Nesse período, o romance nordestino narrava um Brasil que estava ficando para trás. Segundo o professor de literatura Lourival Holanda (2003, p.14), “sua literatura desenha o duro desejo de dizer a crueza do mundo”. Ainda segundo Holanda, nas formas aparentes de destruição vista nos livros de Ramos, encontra-se o desejo de uma possível reconstrução.

O Nordeste inscrito nos livros de Graciliano Ramos projetava o ápice do estado de subdesenvolvimento do país com seu povo em alto nível de alienação. Para Albuquerque

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Jr. (1999, p.229), “o camponês nordestino é visto por Graciliano como um ser silenciado, quase apenas grunhindo como animal”. Elaborando, assim, um homem impossibilitado de reagir decisivamente diante dos problemas políticos, sociais e naturais de seu universo.

Autor de quatorze livros, uma de suas obras mais significativas, com um duro caráter representativo do espaço nordestino, foi Vidas Secas, publicado em 1938. O livro retrata a realidade dos nordestinos diante a problemática da seca, lutando incansavelmente pela sobrevivência. Os personagens de Graciliano Ramos estão sujeitos a enfrentar o fenômeno climático de sua região, mantendo-se em busca de novas terras a fim de realizar sua cotidiana sobrevivência. Para o crítico Álvaro Lins (1999, p.136), Ramos consegue transformar “este mundo árido e sombrio numa verdadeira categoria de arte”.

Vidas Secas narra a história de uma família de emigrantes nordestinos em busca de melhores condições de vida, movidos pela esperança de sobreviver no Sertão. Para tanto, alojam-se como empregados de uma fazenda. Fabiano, o pai vaqueiro, trabalhador, sofre para manter sua família, e submete-se à exploração do fazendeiro. Devido à sua ingenuidade, ele é humilhado constantemente em diversas situações, pelo patrão e pelas autoridades representativas das instituições sociais. Sinhá Vitória, sua mulher, a mãe, é responsável pelo trabalho doméstico e controle da casa. Ela carrega consigo o sonho de “uma cama de couro” que simboliza a sua esperança na mudança de vida. Os dois meninos, filhos do casal, meninos sem nome, vivem curiosos a tudo que se passa, e a cadela, Baleia, aparece como integrante da família sertaneja. Fabiano e sua família labutam na tentativa de conseguirem condições de vida mais favoráveis, livre da expropriação dos latifundiários e da seca que agrava suas condições de submissão diante os donos de propriedades da região.

Para Lins, através desta obra, Graciliano Ramos consegue revelar algumas de suas melhores qualidades como escritor. Um livro escrito com maturidade, apresentando a problemática do Sertão nordestino e de seus habitantes através da concisão de suas frases e precisão de sua forma narrativa. Uma referência importante da literatura brasileira.

O cineasta Nelson Pereira dos Santos, por sua vez, nasceu em São Paulo no ano de 1928 e radicou-se no Rio de Janeiro nos anos 50. Ainda estudante, partilhava do pensamento esquerdista de sua geração. Considerado um dos mais importantes diretores do Brasil, Nelson Pereira é conhecido pela ousadia e expressividade de sua obras cinematográficas. Filmou e mostrou os fenômenos sociais do seu país com características realistas, influenciado pelo neo-realismo italiano, realizou filmes imortais para a cinematografia brasileira, um mestre na arte cinematográfica.

Integrante do movimento do Cinema Novo brasileiro, algumas de suas obras possuem forte tendência ao pensamento da esquerda revolucionária dos anos 60. Durante sua carreira, produziu filmes que trazem temáticas suburbanas, acontecimentos sociais e culturais do país, registrou em imagens a história do povo brasileiro, na maioria das vezes. Segundo Ridenti (2000, p.103),

estão na filmografia de Nelson Pereira: a introdução

nas telas da vida do homem simples do povo

favelado (...); a presença do povo camponês

migrante do Nordeste (...); a busca histórica do

indígena, das origens brasileiras (...); as raízes

negras da sabedoria popular, num projeto de

descolonização cultural (...); a cultura de artistas

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populares (...); a resistência popular à ditadura do

Estado Novo (...).

Até o ano 2000, sua filmografia havia atingido 18 obras, permanecendo com

projetos a serem rodados. Por coincidência, um dos filmes mais importantes da carreira

de Nelson Pereira dos Santos é Vidas Secas, uma adaptação do romance de Graciliano

Ramos. O filme, assim como o livro, representam com vigor uma vertente da produção

cultural brasileira.

Adaptar a literatura de 30 foi um grande passo para o cinema nacional. Segundo

Augusto Guilherme (2000), no artigo Quando o Cinema Brasileiro Encontra a Literatura

Nacional, a literatura dos anos 30 e 40 influenciou a produção cinematográfica nacional

dos anos 60 em conteúdo e forma narrativa, tendo importantes obras transpostas para

as telas. “Este perfil da literatura moderna dos anos 30 e 40 faz-se necessário para

compreender o movimento estético cinematográfico que nasceu com o cinema novo”.

Glauber Rocha (1981, p.30) explica que, a pobreza e miséria narrada pela literatura de

30, posteriormente foi mostrada nas telas do cinema dos anos 60: “se antes era escrito

como denúncia social”, no Cinema Novo “passou a ser discutido como problema político”.

As afinidades temáticas contida no livro Vidas Secas com a problemática vivida no Brasil

dos anos 60, levou Nelson Pereira dos Santos a filmar a história escrita décadas antes. A

seguir, ele explica como surgiu a idéia de fazer o filme Vidas Secas:

Nos anos 50 eu trabalhava para Isaac Rosemberg,

produtor de cinejornais e documentários. Certa vez,

realizando documentário sobre o Rio São Francisco,

nos deparamos, em Juazeiro, com levas de

flagelados, crianças esquálidas, que vinham com a

família, em busca de condições melhores de vida.

Sem saída, eles invadiam prédios públicos e

mercados. Se falava muito em reforma agrária, mas

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pouco de prático era feito. Fiquei de tal forma

impressionado com aquela realidade, que escrevi

dois ou três argumentos sobre o tema. Mas eram

todos muito ruins, muito superficiais. Neles havia

apenas o olho do repórter, um olho fora de foco. Ao

ler ‘Vidas Secas’, percebi que tinha um roteiro

perfeito na mão, feito por quem conhecia a

realidade ali registrada. E tudo era narrado com

secura, com rara economia de recursos” (2001,

p.15).

A transposição do romance de Graciliano Ramos para o cinema resultou num

belíssimo filme. Em 1964, recebeu o prêmio de Melhor Filme para a Juventude, no

Festival Internacional de Cannes, na França, sendo o responsável pelo reconhecimento

do cinema brasileiro, naquele ano, em âmbito internacional. Para Wills Leal (1982, p.18),

o diretor conseguiu realizar “um filme à luz do documento, da situação, flagrando os

momentos excepcionais criados pelo escritor alagoano”. Para tanto, Nelson Pereira dos

Santos adequou o conteúdo narrado com precisão para os elementos cinematográficos,

prezando, principalmente, pelo sentido poético do livro. Leal (p.18) explica que

logo em seus primeiros instantes, Vidas Secas se

manifesta coerente com a densidade global do

romance: negação ao requinte, ao afresco, ao

barroco. As imagens são diretas, objetivas e os

planos são longos, demorados.

Para melhor compreensão deste processo de transferência da literatura para uma

outra linguagem, apontaremos algumas adequações necessárias, pensadas e aplicadas por Nelson Pereira dos Santos para a realização do filme.

Primeiramente, Leal atenta para um apontamento curioso. Ele explica que na primeira cena do filme, o diretor procurou situar o espectador em tempo e espaço narrados. Nos créditos iniciais, sob o primeiro plano, aparece escrito: “Agradecimentos:

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Governo do Estado de Alagoas, autoridades e população de Palmeira dos Índios”, e logo depois, “1940”. Essa atitude foi indispensável “para não trair o espírito do livro de Graciliano Ramos, pois, embora o escritor não faça referência a locais ou data, eles reportam naturalmente, em especial quando se tem notícia de sua vida, de sua posição frente à realidade nordestina, brasileira” (p.17).

No livro, vale ressaltar que o foco narrativo não está centrado unicamente em um só dos personagens, Ramos o escreveu como narrador observador, contando sua história apontando para os personagens em terceira pessoa. Isso contribui para conferir mais secura ao texto. Já o filme é narrado a partir dos próprios personagens. O foco varia entre eles de acordo com o desenrolar da história. A estrutura narrativa é articulada a partir do ponto de vista da família, com a câmera pondo o espectador como um coadjuvante da situação. Por exemplo, em algumas cenas a cachorra, Baleia, guia a família, fazendo com que a história gire em torno dela. Ciente de que a maioria das vezes Fabiano (Átila Iório) é o agente principal da narrativa do filme.

Graciliano Ramos dedicou um capítulo a cada um dos personagens, distinguindo os universos paralelos, causando uma condição, diria, paradoxal: uma família unida que vive distanciada. Segundo Lins (p.152), sobre o romance de Ramos, “(...) os capítulos, assim independentes, não se articulam formalmente, com bastante firmeza e segurança. Cada um deles é uma peça autônoma”, o que fornece um grande valor literário para o romance. No filme, os personagens são articulados de outra forma, Nelson Pereira dos Santos os põe em diálogo, porém expressam a perspectiva da ausência de diálogo, de escassez de palavras, da secura das relações familiares naquele espaço árido que contamina a afetividade. Pereira dos Santos dedicou algumas cenas para descrever o universo particular de cada um dos personagem, Fabiano falando carinhosamente com o gado, Sinhá Vitória (Maria Ribeiro) sonhando com “uma cama de couro”, os meninos (Gilvan e Genivaldo Lima) hesitando sobre as coisas, tudo isso concretizando o distanciamento proposto pelo livro.

Contamos, também, com dois momentos exclusivos do filme, não existentes no romance, para uma leitura imagética mais eficaz. O primeiro é o “diálogo” de Fabiano com Sinhá Vitória. O marido fala uma coisa, a esposa outra, uma explosão de palavras sem coerência discursiva, incompreensível tanto para eles como para o espectador. Os assuntos se fundem num diálogo desconexo. No cinema, os elementos estéticos enfatizam a inexistência de diálogo comum entre eles, o que no livro está marcado pela ausência da troca de palavras. O outro momento é a aparição dos cangaceiros, um tipo de poder paralelo no Sertão. Após sair da cadeia, a mando dos cangaceiros, Fabiano depara-se com uma possibilidade de vingança contra aqueles que o oprimem, assim como grande parte das pessoas que se tornaram cangaceiros. Segundo Leal (p.24), a inserção dos cangaceiros pelo diretor foi inteligível, além da relação com o tempo e o espaço retratado. “Pela primeira vez, só porque se encontra numa situação nova, (...) em que são os cangaceiros que ditam a Lei, (...) Fabiano é contemplado”. Na cena, o cangaceiro que estava na cadeia com ele pergunta: “Capitão paga bem. Quer ir mais nós?”. Mas Fabiano, olhando ora para os cangaceiros, ora para sua família, decide continuar em sua saga de vaqueiro oprimido.

Nas duas obras aparecem um momento convergente. No livro, o drama do primeiro capítulo se repete no último. Graciliano Ramos descreveu os capítulos denominados de “Mudança” e “Fuga”, para marcar o romance com a idéia de migração constante, natural dos nordestinos que sofrem pela seca e sonham com outras terras. No filme, Nelson Pereira dos Santos descreveu com dois planos gerais, o de abertura e o de encerramento, cronologicamente longos, no qual ele mostra as condições precárias da terra e das pessoas que nela sobrevivem, em estado de intermináveis andanças. No fim, ele exibe, sob a imagem de encerramento, a seguinte frase, quase a mesma frase do final do livro: “E o sertão continuaria a mandar para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, Sinhá Vitória e os dois meninos”.

O filme Vidas Secas é o resultado de um trabalho audacioso, no qual o cineasta adaptou uma grandiosa obra da literatura brasileira e conseguiu realizar um fabuloso filme para a cinematografia brasileira. Para o crítico Paulo Emílio Sales Gomes (1996, p.80), o filme de Nelson Pereira dos Santos “coloca-se pela sua universalidade entre os

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melhores já realizados no Brasil”. Essas palavras de Gomes foram escritas em 1973, após dez anos da realização do filme. Ainda hoje, podemos afirmar que Vidas Secas é uma referência para a cinematografia nacional.

2.3 Estética Cinemanovista: Luz, Som e Montagem

Insatisfeitos com a produção cinematográfica brasileira dos anos 50, em especial a

tentativa da Vera Cruz de estabelecer um cinema industrial no Brasil e sua proposta de

fazer filmes nos moldes do cinema estrangeiro, os cinemanovistas assumiram a condição

de subdesenvolvimento do país para a realização de seus filmes, trabalhando sem

grandes recursos financeiros para seus projetos. Produziram com o suporte técnico

mínimo, desprovidos de estúdios, cenários artificiais e equipamentos sofisticados,

expressando assim, não apenas em conteúdo, como através da forma de seus filmes, o

perfil da pobreza e miséria do Brasil.

A técnica narrativa aplicada pelo grupo de cineastas integrantes do Cinema Novo

sofreu influência, também, das vanguardas européias do neo-realismo italiano e da

nouvelle vague francesa. O neo-realismo foi criado no final da década de 40, na Itália do

pós-guerra, recém libertada do regime facista. Diante as circunstâncias, os cineastas

italianos, com o intuito de reerguer o cinema comercial, desenvolveram o estilo, que

também se contrapõe ao modelo hollywoodiano.

O movimento projetou a imagem da sociedade italiana contemporânea, em sua

condição pós-guerra, mostrando, sobretudo, a verdadeira situação social da população

pobre. Assim, as câmeras abandonaram os estúdios e cenários artificiais e direcionaram

suas lentes para as ruas, para o dia-a-dia do povo italiano, desta forma, simplificando a

linguagem fílmica e baixando o custo das produções. Segundo Antonio Costa (1989,

p.104), “o cinema rodado pelas ruas, os atores apanhados na rua, a realidade fixada

sem manipulações e sem preconceitos”, são algumas fórmulas da estética do neo-

realismo. Ainda segundo Costa, em quase todos os filmes do movimento é possível

encontrar esses aspectos realistas.

Page 24: Era uma vez dois sertões: A representação do Sertão nordestino

Essa forma de realizar filmes obteve grande importância para o cinema mundial,

Costa diz que o neo-realismo italiano “tornou-se um ponto de referência obrigatório para

definir os novos rumos da estética do filme”, assim como aconteceu com o cinema

soviético da década de 20 ou o expressionismo alemão (p.105).

O fenômeno cinematográfico nascido na Itália pôde ser observado em outros

países, entre eles o Brasil, com sua devida importância. Segundo Costa, nos filmes do

Cinema Novo Brasileiro, “a adoção de modelos expressivos da vanguarda internacional

convive com um grande compromisso de conhecimento e interpretação das

características originais e das contradições da situação política e cultural do Brasil”. A

estética dos filmes italianos da década de 40 enquadrou-se aos ideais de mudança social

dos cinemanovistas, especialmente os de Nelson Pereira dos Santos (p.129).

O filme Vidas Secas, em sua forma, trabalha com as possibilidades de produção

herdadas do Neo-realismo italiano. Mesmo sendo uma história de ficção, sua estética o

transforma em uma série de imagens que mais parece realidade. Segundo Bernardet

(1978, p.72), após a aparição de outros filmes de temática nordestina, o filme de Nelson

Pereira do Santos passou a ser observado como “quase um documentário” sobre os

problemas do povo brasileiro, visto que é ficção.

Sob direção de Luís Carlos Barreto e José Rosas, a fotografia de Vidas Secas é um

dos pontos altos de sua estética. A câmera é manuseada com freqüência de duas

maneiras: ora fixa num pedestal, ora na mão, impondo, assim, uma linguagem que

possibilita maior verossimilhança à história narrada. Dá a impressão que, ali parada, a

câmera “se fixou num lugar e captou o que estava em sua frente” (LEAL, p.18). Quando

afixada e filmando planos mais abertos, a imagem expressa menor teor de manipulação,

mostrando sem interrupções aquilo que se passava. Na mão, criando algumas vezes

planos subjetivos ou caminhando ao lado dos personagens, a câmera coloca o

espectador junto às situações do filme, envolve o olhar de fora da tela com o olhar por

dentro, traz o público para o espaço diegético.

As imagens em preto e branco retratam, pela ausência de cor, a pobreza da vida

dos sertanejos que, a cada cena, parece estar se tornando cada vez mais miserável. A

Page 25: Era uma vez dois sertões: A representação do Sertão nordestino

fotografia em preto e branco fornece substância ao rústico cenário do filme,

representado pela região árida do Nordeste brasileiro.

A fotografia de Vidas Secas é marcada pelo “estouro” de luz em suas imagens,

visto numa perspectiva positiva, utilizado pelo diretor como artifício narrativo de grande

carga significativa para a representação do Sertão no filme pois, em outros casos, o

“estouro” de luz pode ser assemelhado a erro fotográfico. Dessa forma, o excesso de

luminosidade natural da região está registrado na película cinematográfica, o que faz

com que as imagens presentes no filme terminem transportando para a tela o sol

causticante e o clima quente do Sertão, sob o qual os emigrantes nordestinos estão

condenados a tentar sobreviver.

Referir-se ao som de um ambiente cinematográfico em que o papagaio “nem sabia

falar”, segundo as poucas palavras de Sinhá Vitória, é fundamental. A sonoplastia do

filme foi feita com base nos ruídos naturais da região, resultando num filme

praticamente sem música. Para Leal (p.19), “do ponto de vista sonoro, Vidas Secas é

renovador, altamente expressivo. A utilização de pouca sonoridade no filme enriqueceu a

obra em relação à verossimilhança da história representada. Ainda segundo Leal (p.19),

“é nessa ausência de musicalidade, nesse apego ao pálido, que se cria um clima de

verdade” no filme de Nelson Pereira dos Santos.

Logo no começo do filme surge, gradativamente com os personagens, um som,

inicialmente, muito estranho. Com o decorrer da história o espectador percebe que

aquilo é o ruído do roçar das rodas de madeira com o eixo do carro-de-boi. O som

estridente reproduzido no filme, assemelha-se ao sofrimento de Fabiano e sua família,

reforçando o sentido da dor de viver num ambiente em que não incorpora algum tipo de

música alegre, animadora, motivadora. O som do carro-de-boi repete-se,

heterodiegeticamente, nos momentos de sofrimento ao longo da narrativa.

A escassez de diálogo entre os personagens no filme denota, também, a secura

sonora da narrativa. Em destaque, podemos ouvir algumas vezes o latido de Baleia,

poucos diálogos, momentos em que Fabiano fala com os bichos, Sinhá Vitória dando

explicações sobre as coisas para seu filho em poucas palavras.

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Pode-se ouvir, durante o filme, a presença de uma série de ruídos, típicos da

natureza representada, como: o som da sandália a cada passo nas caminhadas, o

chocalho preso ao pescoço do gado, o sino da igreja convocando as pessoas para a

missa, a chegada da chuva.

Contudo, ainda há momentos de musicalidade em Vidas Secas, uma sonoridade

que acompanha o fruir estético dos sons desconhecidos num caso e o sofrimento de

Fabiano em outro momento. Ao ir à sede da fazenda receber dinheiro na casa do patrão,

Fabiano depara-se com um som novo para seus ouvidos, o violino tocado pelo professor

da filha do patrão. A música desperta a curiosidade de quem jamais ouvira tal melodia.

Fabiano encosta-se próximo à porta do cômodo onde a moça estuda música e

permanece admirado com o que escuta dali, sabendo que só num tempo roubado,

escondido, pode ouvir o tipo de som que permeio o universo sonoro do patrão.

A caminho da cidade, quando Fabiano e sua família dirigem-se a uma festa

religiosa, o filme mostra uma banda de pífano nordestina, formada por homens simples e

instrumentos regionais, que caminha pelas ruas do vilarejo, transmitindo os costumes e

a musicalidade daquela região pobre.

Ao ser preso pelo “soldado amarelo” e após ter levado uma surra da Polícia,

Fabiano permanece deitado, se contorcendo e gemendo, enquanto na rua, onde há uma

festa folclórica, toca-se música do Bumba-Meu-Boi, animando todo o povo da cidade.

Para Leal (p.20), “o Bumba-Meu-Boi liga as duas ações: a do presídio (...) e o riso dos

patrões, dos homens louvados pelo canto (...) de outros seres simples”. Nessa cena, o

sofrimento de Fabiano é acentuado pelo contraste com a alegria das pessoas que

participam da festa na rua, enquanto ele permanece se contorcendo de dor na cadeia.

A montagem cinematográfica constrói o ritmo lento, seco e escasso da narrativa de

Vidas Secas, transcrevendo a monotonia do ambiente para a diegese. O filme exibe em

cenas cansativas, do ponto de vista do espectador, o universo seco que castiga os

personagens.

Algumas cenas prezam pelo drama de viver naquele espaço desértico a partir da

composição entre as imagens que representam o olhar dos personagens. Na cena final,

Page 27: Era uma vez dois sertões: A representação do Sertão nordestino

ao clamarem por um lugar melhor, Fabiano e Sinhá Vitória olham para trás, a câmera

nos mostra, em plano geral, uma grande paisagem seca, e, pouco adiante, quando eles

param para prosseguir em sua caminhada, o último plano geral nos mostra outra grande

paisagem seca, por onde a família, ao som do carro-de-boi, anda até o desaparecer da

imagem.

Outras cenas, além do espaço seco, apontam para a realidade interior dos

personagens. Na cena em que a família contempla o imenso sol do Sertão nascendo por

trás das montanhas, por exemplo. Primeiramente, a câmera mostra o sol com “estouro”

de luz, acentuando sua força dramática. Em plano conjunto, podemos observar a família

em frente à casa: Fabiano em pé, com uma espingarda; Sinhá Vitória debruçada na

janela, com um pano na cabeça e um terço na mão; ao seu lado, o menino mais novo; e

o menino mais velho por trás da meia porta da frente da casa. Em primeiro plano, Baleia

deitada no chão quente, relaxada. Em seguida, a seqüência mostra cada um dos

personagens em planos mais fechados. Quando volta para Fabiano, ele fica de cócoras,

dá um trago no cigarro de palha e, assim que a câmera aponta para o sol novamente,

ele afirma convicto: “Vai pegar fogo!”. A seqüência, montada desta forma, ao estilo

construtivista soviético, possibilita ao espectador uma leitura sobre a consciência de cada

um dos personagens do filme diante aquela situação.

A morte de Baleia é um dos pontos altos da montagem do filme. A cachorra é

mostrada com a câmera no nível do personagem, conduzindo o espectador à sua

perspectiva, num plano conjunto. Baleia, após levar o tiro de Fabiano, caminha

mancando e grunhindo para baixo do carro-de-boi. Deitada, ela vê a casa se

distanciando, efeito causado pelo uso de uma lente zoom, e permanece olhando os preás

correndo sem poder caçá-los. Nesse momento, a montagem fortifica o sofrimento da

cachorra mostrando Baleia sob o eixo e a roda do carro-de-boi cujo som de atrito

estridente acompanha a agonia e morte da cadela.

Certamente, com as condições técnicas e propostas ideológicas de se fazer cinema

nos anos 60, o filme Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, expressa boa

performance em sua estética, usufruindo de uma linguagem coerente e harmoniosa,

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fornecendo ao significado do conteúdo narrado maior verossimilhança sobre a

precariedade do espaço e do homem nordestino nele representado.

2.4 A Terra

O espaço geográfico representado em Vidas Secas constitui-se no Sertão

nordestino em seu aspecto mais negativo, miserável, proveniente da problemática

causada pela seca. Árvores desfolhadas, grandes rochedos, vários quilômetros de solo

varrido, gravetos prontos para o fogo, casa abandonada, caveira de boi morto, água suja

para consumo, terra rachada, palma utilizada como alimento, fogo a lenha, sol

inclemente, calor, aridez. Todas essas características compõem as imagens da paisagem

dramática do filme.

Sendo assim, Nelson Pereira dos Santos construiu uma seqüência em que faz uma

analogia para auxiliar a descrição da terra mostrada pelas imagens. Após o plano em que

Fabiano acabara de ser benzido, sob o olhar curioso do menino mais velho, ao ouvir a

palavra “inferno”, com muita insistência o garoto pergunta e permanece pedindo

explicação a Sinhá Vitória sobre “o que é o inferno”. A mãe responde, impaciente, que o

inferno “é um lugar para onde vão os condenados, cheio de fogueira, tempo quente...”. o

menino pergunta se ela já havia ido lá. Ela fica irritada, xinga-o e bate com a mão na

cabeça dele. O menino sai de casa chorando em direção a uma árvore seca próxima da

casa. Ele chama Baleia, coloca-a em seus braços, de onde fica observando a paisagem

em torno dele e falando: “inferno, lugar ruim!”. Ele olha para todas as direções e, a cada

espiada, repete a palavra “inferno”, como se estivesse comparando o lugar em que vive

à explicação rápida dada pela mãe. Assim, Pereira dos Santos utiliza a fala do

personagem (o menino) e as imagens desse Sertão para fazer uma analogia entre o

conceito de inferno, dado por Sinhá Vitória, e a terra onde eles vivem.

A terra pobre de Vidas Secas tem grande importância para o enredo e para o

desenvolvimento da narrativa fílmica. Segundo Bernardet (p.68), “a estrutura do filme

não é condicionada pela ação das personagens, mas sim pela natureza: é a seca e a

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chuva que vão decidir do início, do meio e do fim do filme”, ou seja, os personagens é

quem são condicionados pela condição climática e geográfica.

A família de Fabiano é movida a partir dos fenômenos climáticos naturais da região

Nordeste, de modo que a história se desenvolve no intermédio de dois períodos de seca.

No início, eles aparecem escapando da primeira seca, caminhando à procura de um lugar

onde possam encontrar meios de subsistência. Ao acomodarem-se na fazenda, chega a

estação chuvosa possibilitando o desenvolvimento de atividades agropecuárias. Nesse

momento, o proprietário da terra explora a força de trabalho de Fabiano, mas a família,

necessitada, decide ficar por uma temporada nessas condições apesar da exploração,

que fica evidenciada no momento do pagamento do vaqueiro. Com o passar do tempo,

chega a nova seca. A produção começa a decair, a atividade econômica torna-se inviável

e a família, mais uma vez, segue caminhando em busca de outras terras para

sobreviver.

Segundo Leal (p.25), em Vidas Secas, o que determina a precariedade dos

sertanejos “não é a terra, é a ausência dela a causa da miséria”. Sem propriedade, sem

terra para produzir, “o vaqueiro fica sempre na dependência do patrão, do seu dinheiro,

com juros altos, e seus dias estão contados”. Um problema que persiste mesmo para os

grandes latifundiários do Sertão nordestino, cuja produção agropecuária está sujeita a

ser arruinada pela intempérie da região.

O cenário é montado a partir da problemática climática enfrentada pelo povo

sertanejo do Nordeste, no caso: campos devastados, falta de alimentos, propriedade

improdutivas, sem água e sem perspectiva de tê-la, com as condições de vida miserável,

uma representação derivada de uma realidade recorrente na região. A terra, na qual o

homem do campo cultiva seus meios de subsistência, enfrenta um processo natural de

aridez que inviabiliza a produção, gerando, como conseqüência, a ação desesperada dos

homens pela necessidade de sobreviver.

A representação imagética das terras do Sertão brasileiro em estado deplorável no

filme Vidas Secas partiu da necessidade de construir, com veracidade, a história dos

sertanejos que enfrentam a problemática da seca em suas terras. Contudo, as imagens

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do território nordestino em crise, exibido no filme de Nelson Pereira dos Santos,

transformou-se no cenário predileto para os cineastas brasileiros contarem suas histórias

sobre o povo nordestino.

2.5 O Homem

A representação do homem em Vidas Secas é o mais fino retrato do nordestino

que sofre pelas condições improdutivas de sua terra ou pela expropriação e vive

migrando à procura de outras regiões, em geral para os grande centros urbanos, na

esperança de ter uma vida melhor. Para Bernardet (p.67), o filme traz uma performance

eficaz da imagem do povo brasileiro, um “verdadeiro tratado sobre a situação social e

moral do homem no Brasil”.

A família sertaneja se esforça para resistir, em sua precária existência, frente aos

vários problemas que enfrentam, retratados no filme, fazendo com que eles não se

sintam como cidadãos dignos. Fabiano assume os trabalhos externos, Sinhá Vitória fica

com as atividades domésticas e toma conta dos meninos. Ainda para Bernardet (p.68),

“essa família não se caracteriza como tipicamente sertaneja”, pelo tipo dos atores, a

estrutura física e organizacional familiar, ela “pode ser tanto sertaneja como da classe

média de qualquer centro urbano”. Ela representa as classes menos favorecidas do povo

brasileiro, muitas vezes saída dos campos para expandir o número de favelas nas

grandes metrópoles, sujeitos que deparam-se com os mais variados entraves sociais.

A situação da família perante o descaso de viver no Sertão leva-os a uma condição

animalesca, suas ações são ditadas pela necessidade de sobreviver; a escassez da fala

produz um processo de comunicação em gestos entre os personagens, suas condições de

vida comparam-se, em dado momento, à de animais, conforme revela o discurso de

Sinhá Vitória na cena final do filme. Segundo Bernardet (p.68), “embora não tenham

condições de ser gente, sabem que não são gente e aspiram a sê-lo”.

Fabiano não possui instrução suficiente para ser considerado cidadão. Disposto a

fazer qualquer coisa para sobreviver, consegue um emprego naquilo que é sua profissão,

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trabalha como vaqueiro de um fazendeiro explorador. Ele tenta discutir o valor de seu

salário, quando patrão lhe rouba; na cidade, não consegue vender sua carne de porco,

pois não pagou os impostos; vai à igreja mas não permanece por muito tempo, e tenta

se integrar às pessoas da cidade na festa, mas é humilhado pelo soldado amarelo e vai

para a cadeia. Para Bernardet (p.80), “Fabiano é utilizado por esse governo como

símbolo do homem fabricado pelo Nordeste”. A história mantém uma certa distância

entre Fabiano e as instituições sociais. Um homem impedido, pelas leis e condutas

sociais, de viver como gostaria, de se tornar cidadão, permanecendo na condição

mostrada pelo filme, como ser insignificante. Segundo Leal (p.21), o personagem “é de

uma submissão total. É submisso em tudo e por tudo.(...) Sem recursos mentais

maiores, brutalizou-se no contato com o meio”.

Sinhá Vitória representa a esperança do homem do campo, sonhando

intensamente com uma “cama de couro igualzinha à de seu Tomás da Bolandeira”,

“homem de leitura”. Ela é a mais instruída dos personagens, com sua capacidade de

realizar cálculos e atitudes chegam a causar admiração ao marido. Segundo Glauber

Rocha (p.32), os filmes produzidos pelo Cinema Novo não eram como os melodramas do

cinema clássico americano que inspirou outros focos de produção no mundo, pois “as

mulheres do Cinema Novo sempre foram seres em busca de uma saída possível para o

amor, dada a impossibilidade de amar com fome”, como, por exemplo, Sinhá Vitória que

“sonha com novos tempos para os filhos”. É ela quem mais aspira a vontade de ser

gente através de seus sonhos, querendo deixar de dormir como bicho ou decidindo partir

à procura de um local que possibilite a realização de seus sonhos, fazendo com que ela

deseje outra vida para ela e os meninos.

Os meninos sem nome, o que explicita o lugar da criança no duro universo das

relações no campo nordestino, estão à mercê do destino da família; não compreendem

quase nada do que vêem, e por vezes, questionam o sentido das coisas. Eles expressam

enorme admiração pela valentia de seu pai. Para Leal (p.24), “os dois meninos, na visão

dialética da obra, representam o novo homem, o homem de amanhã, a força que está

prestes a brotar”. Eles são a extensão da esperança dos personagens adultos, vistos

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como incapazes de concretizar seus ideais naquelas condições, ao mesmo tempo,

representam a continuidade de uma situação vista como possibilidade de mudança.

Baleia consegue se opor ao perfil dos demais personagens da história. Em Vidas

Secas ela é quem mais parece ser gente. A cachorra tem nome, é parte constitutiva da

família, tem fluxo de consciência e suas ações são coerentes. O apego da família pela

cadela encontra-se expresso em algumas cenas do filme. Por exemplo, enquanto Fabiano

estava preso, os meninos, sentados com Sinhá Vitória na calçada em frente à igreja,

perguntam por Baleia e não pelo pai. Baleia é objeto do afeto possível e, também,

agente desse afeto em relação às crianças, naquele mundo condicionado pela aridez do

solo e da vida.

A idéia de animalização da família de Fabiano, construída pelo filme, encontra-se

na consciência dos próprios personagens de Vidas Secas. Tanto que, na caminhada final,

num dos únicos diálogos coerentes entre Fabiano e Sinhá Vitória, ela diz para o marido:

“Podemos continuar vivendo que nem bicho, escondido no mato? Podemos?”. E ele,

reflexivo, responde: “Não podemos, não!”. E continuam prosseguindo com a esperança

de mudar essa triste condição de vida.

A representação do homem nordestino em Vidas Secas corresponde ao grande

número de sertanejos prejudicados pela condição problemática do acesso à propriedade,

da improdutividade e do atraso. O homem do campo surge como a contradição do

cidadão socialmente reconhecido, suas características são derivadas do arcaísmo contido

em seu espaço, resultando no homem desatualizado, distante de toda e qualquer idéia

de modernidade, associada aos centros urbanos.

2.6 Cenas das Vidas ainda Secas

A miséria do homem sertanejo e das terras do Nordeste podem ser encontradas,

de forma explícita, nas imagens de Vidas Secas. A história narrada pelo filme tem um

alto nível de afinidade com uma realidade desse povo nas condições impostas pelo

latifúndio e pela estiagem proveniente das condições climáticas.

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Em Vidas Secas, o homem do campo transita no universo fílmico em busca de

melhores condições de vida, entretanto, depara-se com vários obstáculos que

impossibilitam essa mudança. Ao mesmo tempo que procura, ele não encontra saídas

para deixar a vida que já leva e permanece em suas condições precárias. Na narrativa

existe, em algumas cenas, a expressão da força de atrito que impede essas mudanças. A

seguir, discorreremos sobre duas cenas do filme onde podemos observar essas

situações.

No dia da festa na cidade, Fabiano e Sinhá Vitória saem arrumados pela porta da

frente da casa. A família toda veste novos trajes para ir à festa. Sinhá Vitória veste um

lindo vestido florido, sapato de salto alto, carregando uma sombrinha. Fabiano está de

terno listrado, chapéu fino, calçando sapatos elegantes. Minutos depois, estão

caminhando descalços. Após andar alguns quilômetros, eles encontram-se sentados à

beira de um açude lavando seus pés, que parecem machucados. Próximos à cidade,

novamente eles calçam seus sapatos grã-finos. Sinhá Vitória tenta colocar o sapato do

pé direito no pé esquerdo, mas logo pega o outro sapato e calça corretamente. Fabiano é

quem tem mais problemas pois, ele quase não consegue calçar mais seus sapatos,

prosseguindo sua caminhada meio manco. Momentos depois, já na cidade, após sair da

igreja, Fabiano, muito incomodado com os sapatos, tira-os permanecendo descalço pelo

resto do dia diegético.

A atitude dos personagens mostra que, pela sua precária condição de vida, o

sertanejo possui uma grande dificuldade de se adequar ao perfil social urbano, negando

o uso dos sapatos, o que simboliza, de certa forma, uma mudança de vida. Em Vidas

Secas, o vaqueiro usa o seu novo par de sapatos social, mas, simplesmente, não gosta.

Na cena, movido pela vontade de Sinhá Vitória, Fabiano tenta, porém nem os sapatos se

encaixam nos seus pés com conforto e nem ele vê sentido em calçar aqueles sapatos.

Para Bernardet (p.71), pela “confrontação da personagem com o leque dos principais

poderes da sociedade”, o filme põe seus personagens perdidos entre essas

personalidades. Fabiano é sempre esmagado pelo valor institucionalizado da sociedade

citadina, mantendo-o num determinado afastamento dessas novas condições de vida.

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Cenas depois, em diálogo com Sinhá Vitória, o vaqueiro diz para sua esposa: “Sapato

caro, pra quê? Para andar que nem papagaio”. Desta forma, o filme concretiza a

perplexidade do personagem pois, Fabiano não encontra sentido em viver aos moldes

urbanos, parece se conformar com a vida no campo. Contudo, pode-se dizer que ele

também anseia por melhores condições de vida.

A outra cena é a seguinte: Fabiano sai da casa à procura de um bezerro perdido,

de repente, ele encontra o “soldado amarelo”, perdido em meio à vegetação seca. No

primeiro instante, o vaqueiro ergue o facão com a mão esquerda e anda em direção ao

soldado, que fica amedrontado. Então, Fabiano ameaça o golpe. Parece ser a vingança

da surra que, sem razão, levou na cidade. O soldado recua assustado até bater com as

costas numa árvore seca. Eles continuam firmes na troca de olhar. Fabiano, ameaçador,

o “soldado amarelo”, amedrontado. Num momento reflexivo, contudo, o vaqueiro abaixa

o facão vagarosamente. O soldado passa para trás da árvore seca, mas Fabiano continua

a acompanhá-lo. Parados frente à frente, os dois homens olham em direção ao sol como

se ele fosse a única testemunha do que ocorre ali. Saem andando, o “soldado amarelo”,

meio cismado, não vira as costas para Fabiano, que ainda permanece com o facão na

mão. E mais uma vez eles se encaram. Naquele momento, o som do mugido do bezerro

perdido quebra a fisionomia ameaçadora de Fabiano que, logo em seguida, guarda seu

facão na bainha presa à cintura. Novamente o som do mugido e o vaqueiro vira o rosto à

procura do animal. Então, o “soldado amarelo” assume o papel de ameaçador e se

aproxima de Fabiano, perguntando com arrogância: “Qual é o caminho da estrada,

Paisano?”. O vaqueiro tira seu chapéu e menciona para si mesmo: “Governo é

Governo!”. O soldado, sentindo-se por cima da situação, pergunta: “Por onde?”. Fabiano

caminha para perto do “soldado amarelo”, baixa a cabeça e aponta com o braço

esquerdo, dizendo: “No fim da vereda, à direita”. O soldado segue o caminho, às vezes

virando a cabeça para trás, observando Fabiano de forma agressiva.

Nesse momento, o “soldado amarelo” significa algo maior, algo que se sobrepõe

aos direitos de Fabiano que, por várias vezes, sofre pressão do Governo e, com sua

ignorância, não compreende nada. Parecia um momento de vingança, mas o vaqueiro se

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sente impossibilitado de praticar tal ação, sendo sujeito a permanecer na sua condição.

Nessa cena, o poder mais uma vez castra Fabiano de seus atos, afixando-o à sua posição

social. O bravo vaqueiro não se vê no direito de lutar contra essa força maior que o

impede de crescer, o que mantém o distanciamento entre o homem arcaico do campo e

o perfil moderno associado ao homem urbano.

Assim, a abordagem de Vidas Secas sobre o Sertão e o Nordeste brasileiro fixa-se

na aridez e na miséria do espaço geográfico nordestino, prejudicado pela seca, e na

exploração dos latifundiários sobre os homens do campo. O filme representa, através da

problemática rural e do povo sertanejo que luta por melhores condições de vida, uma

realidade vigente na região Nordeste. Uma história que reitera o destino de famílias

como a de Fabiano e seu cotidiano, cujo retrato assemelha-se, na narrativa

cinematográfica de Nelson Pereira dos Santos, assim como na literatura de Graciliano

Ramos, à secura do clima e da vegetação do Sertão nos tempos de estiagem.

BAILE PERFUMADO E OUTRA REPRESENTAÇÃO DO SERTÃO NORDESTINO 3.1 Contexto Histórico

Em meados dos anos 80, o Brasil renovava a esperança de mudanças, sonhando com um país melhor, após ter atravessado a experiência do assolador regime militar. Em 1983, o país estava em crise econômica e social, marcado pelo descontrole inflacionário, o alto índice de desemprego e a violência no campo, onde líderes rurais morriam sempre a mando dos grupos de fazendeiros. Nessa conturbada situação, milhares de brasileiros ganharam as ruas reivindicando eleições diretas para presidente da República, surgindo, assim, o movimento nacional denominado de “Diretas-Já”.

Com a vitória de Tancredo Neves, eleito por um colégio eleitoral, sem voto direto, em 1985, o regime militar deixou os palcos após 21 anos de ditadura. Mas, momentos antes de sua posse, Neves foi hospitalizado e dias depois faleceu, passando o mandato para José Sarney.

O período instaurado a partir do governo Sarney transformou-se em marco político do processo de redemocratização e passou a ser conhecido como “Nova República”. Implantou-se o voto direto e a liberdade de criação de partidos políticos, abrindo discussões sobre os direitos sociais nos diversos níveis. Em 86, o governo aplicou o Plano Cruzado, fazendo a substituição da moeda para melhor controle da economia. Os preços foram congelados, caiu a inflação e aumentou a produção. Mas logo, em 87, a inflação tornou a subir e a turbulência econômica do país prosseguiu até o fim de seu mandato, havendo ainda outras tentativas de estabilização.

Com o Brasil praticamente desgovernado, necessitando sérias mudanças políticas, em novembro de 1989 houve a primeira eleição presidencial desde 1960, na qual milhões de brasileiros puderam exercer o direito de voto.

Nos anos 80, o cinema nacional enfrentava graves problemas de ordem econômica que fizeram desabar a produção de filmes de longa-metragem. No início dos anos 80, os cineastas assumiram uma nova consciência cinematográfica, abandonado modelos e

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estilos passados de produção, moldando-se com dificuldade ao aparato técnico moderno para a realização de seus filmes. Contudo, em virtude dos problemas econômicos, os cineastas não tinham apoio financeiro para realizar seus filmes. Apenas diretores veteranos deram continuidade ao processo evolutivo do cinema, realizando trabalhos consagrados para nossa filmografia, como: Cabra marcado para morrer (Eduardo Coutinho, 1984), financiado pela Embrafilme. Na segunda metade da década, com a Nova República, a produção do cinema nacional reduziu-se ainda mais. A política do ex-presidente José Sarney, junto com a problemática econômica, dificultava o processo de modernização do país, o que causou uma frustração aos novos realizadores e a qualquer impulso produtivo do cinema brasileiro.

Segundo Ismail Xavier (2001, p.52), em referência aos acontecimentos políticos das décadas de 70 e 80 e seu efeito sobre o cinema,

a abertura política e a articulação de um governo civil, a luta pelas diretas e o clima de transição vivido pela sociedade encontram um cinema em crise de produção, num quadro em que se fala da morte do cinema e da necessária reformulação da Embrafilme.

A Embrafilme (Empresa Brasileira de Filmes) foi criada em 1969 com o propósito

de financiar, co-produzir e distribuir os filmes brasileiros. A empresa, abstraindo o fato de ter sido criada e mantida com objetivos de controle político sobre a produção nacional, desempenhou um importante papel na produção do cinema brasileiro nos anos 70 e começo dos anos 80, possibilitando a realização de uma significativa quantidade de filmes por ano. Além de outras verbas públicas, a manutenção financeira da Embrafilme se dava a partir da comercialização dos próprios filmes por ela realizados, arrecadando percentuais em bilheterias, imposto de renda das distribuidoras estrangeiras, vendas ao mercado externo, sendo posteriormente aplicado em projetos previamente submetidos ao Conselho da empresa. Assim, a Embrafilme apoiou cineastas da época, contribuindo na diversificada produção até meados dos anos 80, quando começa declinar.

Em 1990, o ex-presidente da República, Fernando Collor de Melo, eleito pelo voto popular no ano anterior, traçou novos planos para o Brasil, determinando novos rumos para a cultura nacional. José Sarney, ao fim de seu mandato, entregou o país economicamente quebrado, com a inflação em estado acelerado de ascensão.

Nos primeiros meses de mandato, Collor de Melo anunciou seu plano econômico, traçando novas diretrizes com medidas como: a implantação de uma nova moeda (Cruzeiro Novo), o confisco monetário e a privatização de empresas estatais. Tais medidas resultaram na diminuição das atividades econômica e industrial, na desvalorização salarial, no alto índice de desemprego, agravando ainda mais o problema da inflação.

Dois anos depois, surgiram graves denúncias de corrupção que envolvia importantes funcionários de seu governo. Paulo César Farias, o principal responsável pelo esquema de corrupção, atuava sob conhecimento do presidente. Desse modo, uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), por iniciativa da câmara dos deputados e seu trabalho, acaba resultando no pedido de Impeachment do Presidente, aprovado pelo Congresso Nacional. Então, o vice-presidente, Itamar Franco, assumiu a presidência da república.

A política de contenção do Plano Collor, aplicada no primeiro ano de mandato, marcou definitivamente a vida de vários cineastas brasileiros, quando substituiu o Ministério da Cultura por uma secretaria ligada diretamente à presidência e extinguiu a Embrafilme. Essa atitude fez com que despencasse a produção artística no país, principalmente a cinematográfica.

O período entre 1990 e 1993 pode ser considerado uma fase de colapso da cinematografia brasileira. A crise fez a produção cair quase a zero, causando quase uma paralisação no cinema nacional. Em 1992, por exemplo, o 25º Festival de Brasília, um dos mais significativos do país, foi adiado pela falta de filmes concorrentes. Nesse

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mesmo ano, Walter Salles buscou, como saída para essa problemática de produção, o apoio de capital estrangeiro para realizar o filme A Grande Arte, co-produzido com uma empresa norte-americana.

No governo do ex-presidente Itamar Franco, a partir do final de 1992, o Ministério da Cultura foi reinstalado fazendo com que, em 1993, o cinema nacional retomasse sua produção. Nesse ano as portas se abriam com o “Programa Banespa de Incentivo à Indústria Cinematográfica” e o “Prêmio Resgate Cinema Brasileiro”, incentivos gerados pelo Ministério da Cultura para a realização de filmes no país. Outra forma de apoio foi a criação da “Lei do Audiovisual”, a qual propunha o apoio das empresas privadas em troca da isenção fiscal. Os programas financiavam produção, finalização e comercialização dos filmes. Com isso, aos poucos foram aparecendo novos trabalhos cinematográficos no Brasil.

Em 1995, Walter Salles e Daniela Thomas realizaram um filme representativo do estado de crise recém vivido no Brasil. Terra Estrangeira expressa a angústia dos brasileiros decepcionados com a política de 1990, um país sem esperança ou perspectivas progressistas, um povo sem identidade, sem rumo. Segundo Arthur Prado Neto e Katharine Almeida (1996, p.241), o filme “utilizou do Plano Collor como pano de fundo para sua ficção empregando, inclusive, imagens reais do anúncio do confisco”. Às dificuldades de produção apresentadas pelo filme e o seu enredo somam-se ao valor histórico adquirido por Terra Estrangeira.

No Nordeste brasileiro, com sua a minoritária produção cinematográfica, marcada pela realização de curtas, realizou-se o longa metragem Baile Perfumado, dirigido por Paulo Caldas e Lírio Ferreira, em 1996, no estado de Pernambuco. A dificuldade de realização era imensa, o processo de produção de Baile Perfumado começou em 1994 quando, com o apoio do MinC, os diretores fizeram as primeiras imagens. Para a continuação do trabalho, eles arrecadaram dinheiro através de festas, campanhas publicitárias em outdoors e outros meios. Muitas pessoas ligadas ao cinema pernambucano se envolveram na realização do filme. Segundo Alexandre Figueirôa (2000, p.110), “o roteiro foi pensado para adequar a produção às condições locais”. A equipe teve que contar com soluções criativas e práticas para a diminuição dos custos. Contudo, o filme tem um significado especial para a produção regional, além de ser um exemplo das possibilidades de produção na periferia, no estigmatizado Nordeste.

Em seu enredo, o filme aborda o Sertão dos anos 30 em sua grandiosidade e força. O Sertão de Baile Perfumado é um Sertão ligado por laços estreitos à modernidade (com cinema, fotografia, rádio, eletricidade, de vegetação verde, com água em abundância, rico em tradições. Baile Perfumado narra o encontro do cinegrafista libanês, Bejamin Abrahão (Duda Mamberti), com Lampião (Luiz Carlos Vasconcelos) e seu bando. Na tentativa de realizar um filme sobre a vida do cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva, o libanês busca diversos meios para ter acesso aos cangaceiros. Nessa abordagem, coerente com as convenções do gênero, Lampião é mostrado sob uma visão emblemática, o mitológico “Governador do Sertão”. A narrativa, baseada em fatos reais, é construída a partir de personagens e acontecimentos históricos.

Depois de uma longa e dura temporada de incredibilidade do cinema nacional por parte dos espectadores brasileiros, em 1999, o filme Central do Brasil (Walter Salles, 1998), reedita o reconhecimento da cinematografia nacional no estrangeiro e no próprio país, pela indicação ao Oscar de Melhor Atriz a Fernanda Montenegro, por sua atuação no papel de Dora. 3.2 – Inquietude, Direção e Autoria

Na última cena de Baile Perfumado, narrada em flashback, Benjamim Abrahão acabara de chegar a Recife de navio. Ele está dialogando com seu conterrâneo, Jamil, sobre suas intenções na nova terra. A câmera faz um movimento em grua quando fecha em Abrahão que afirma convicto: “Os inquietos vão mudar o mundo”. A imagem congela e encerra o filme.

A frase mencionada pelo libanês na cena final reflete imediatamente a postura dos ousados cineastas, Paulo Caldas e Lírio Ferreira, movidos pela inquietude de realizar um

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longa metragem em Pernambuco num período em que o cinema no Brasil estava, novamente, em fase de lento crescimento. No Nordeste, onde a produção nunca foi constante, a situação parecia ainda mais difícil. Conseguir financiamento para realizar um filme de cangaceiro realmente não seria tão simples. Em 1996, o primeiro longa dos diretores e o único realizado em Recife nesse ano foi às telas de cinema do país, exibindo para o público imagens da vida de um Lampião moderno e arrojado e um Sertão onde a ênfase não é o problema rural da seca no Nordeste. Diante das circunstâncias, pode-se afirmar que o filme de Caldas e Ferreira foi um produto singular, em todos os sentidos, da cinematografia brasileira.

Paulo Maurício Caldas nasceu na cidade de João Pessoa, capital paraibana, mudando-se para a cidade do Recife, Pernambuco, desde muito cedo. Iniciou sua carreira no audiovisual quando realizou trabalhos em bitola super 8. Nos anos 80, já apostando na carreira de cineasta, conseguiu aprovar alguns projetos pela Embrafilme e realizou alguns trabalhos em 16 e 35 mm, entre eles, O bandido da sétima luz (1986), uma homenagem ao cineasta pernambucano Fernando Spencer. Seus filmes têm como característica histórias ambientadas em área urbana. Trabalhou, também, como roteirista e produtor em vários filmes de curta e média metragens. Como diretor, Paulo Caldas teve uma breve passagem pela televisão. Realizou cinco filmes em vídeo, entre eles "Ópera Cólera", que obteve o prêmio máximo na “XIX Jornada Internacional de Cinema e Vídeo da Bahia”, em 1992.

Lírio Ferreira, que já havia trabalhado como assistente de Paulo Caldas, nos anos 80 integrou um grupo de novos cineastas chamado Van-retrô, um grupo organizado com a finalidade de conseguir viabilizar projetos para a realização de curtas em Pernambuco. O grupo logo se desfez, mas alguns cineastas deram continuidade a seus trabalhos. Ferreira foi diretor, roteirista e produtor de curtas e médias, entre eles: O crime da imagem (1988/92) e o festejado That’s a Lero-Lero (1995), um curta que narra uma farra noturna de Orson Welles no Recife, em 1942. O filme foi premiado em Gramado e Brasília. Em vídeo, realizou clip e filmes experimentais. Dirigiu, também, alguns programas de televisão e campanhas publicitárias/políticas em Pernambuco.

Juntos, Paulo Caldas e Lírio Ferreira, já haviam realizado alguns trabalhos em audiovisual, o que provavelmente contribuiu para o melhor desempenho em Baile Perfumado, do qual eles assinam roteiro e a direção. O filme foi exibido em quase todo o Brasil. Segundo Figueirôa (p.107), “depois do Ciclo do Recife, foi a primeira produção local a ganhar projeção nacional”, e logo obteve o reconhecimento da crítica e do grande público. No “29º Festival do Cinema Brasileiro de Brasília”, em 1996, Baile Perfumado ganhou o prêmio de Melhor Filme. Em seguida, no “Prêmio Cine Sesc”, foi considerado como Melhor Filme Brasileiro. Segundo o crítico João Batista de Brito, no artigo ‘O baile perfumado’ para o bem do cinema nacional, publicado no jornal O Norte (1997, p.06), “se todos os filmes nacionais que nos chegassem tivessem seu nível, suponho que começaríamos a acreditar num cinema brasileiro do terceiro milênio”.

Baile Perfumado conta, de maneira irreverente, a história de um fotógrafo e cinegrafista estrangeiro, o libanês Benjamim Abrahão que, nos anos 30, aventura-se a filmar a vida de Lampião e seu bando e realizar um filme para fazer sucesso internacional. Homem de confiança do padre Cícero Romão Batista (Jofre Soares, padrinho dos cangaceiros, Abrahão utiliza sua habilidade de estabelecer contatos para conseguir financiamento e encontrar caminhos legais para realizar seu filme. Em sua saga, ele se depara com diversas autoridades da região, como o maior inimigo do cangaceiro Lampião, o Tenente Lindalvo Rosa (Aramis Trindade). Logo Abrahão se agrega ao bando de Lampião e registra, com uma câmera de cinema, o cotidiano dos cangaceiros. A notícia é publicada no Diário de Pernambuco, jornal de grande relevância no estado, e a fotografia de Lampião aparece estampada. O governo Vargas resolve reforçar a ofensiva contra o cangaço e fortifica suas estratégia de caça aos cangaceiros a fim de acabar, definitivamente, com os bandos.

A narrativa de Baile Perfumado foi construída a partir de acontecimentos reais do movimento social do cangaço, envolvendo o bando de Lampião em sua passagem pelo estado de Pernambuco, ocorridos na década de 30. O fenômeno surgiu no sertão nordestino em meados do século XIX, gerado pela desigualdade e miséria da região,

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onde latifundiários exploravam a mão-de-obra camponesa. Os camponeses contestavam a pobreza por via dos movimentos populares, entre eles o messianismo e o cangaço. Segundo Vera Ferreira e Antonio Amaury (1997, p.11), “um bando de cangaceiros era um agrupamento de homens armados que faziam do roubo, da vingança, da extorsão e de outros delitos, seu meio de vida”. Lampião, conhecido como o “Rei do Cangaço”, foi o mais famoso entre os cangaceiros. Virgulino Ferreira da Silva liderou, durante muito tempo, um dos maiores bandos de cangaceiros do Nordeste, ficando consagrado pela sua coragem e bravura entre tantos atos destemidos. Em 1938, na fazenda conhecida como Angico, em Sergipe, Lampião, Maria Bonita e outros cangaceiros do seu bando morreram atacados pela volante comandada pelo Tenente João Bezerra da Silva. “Com a morte de Lampião morria também o cangaço” (FERREIRA & AMAURY, p.189). O movimento durou até os anos 40 sendo, até os dias de hoje, um tema abordado em livros, músicas, filmes, artesanato, transformando-se em uma espécie de símbolo cultural e Lampião em herói nordestino.

O movimento foi ferozmente combatido pelo Estado Novo, com Getúlio Vargas,

tendo em vista que a repercussão nos jornais e a astúcia dos cangaceiros nas cidades do

interior do Nordeste começariam a prejudicar a imagem de ordem do seu governo. Em

1937, as películas filmadas pelo mascate libanês, Benjamim Abrahão, foram apreendidas

pela ditadura do Estado Novo, o cinegrafista terminou sendo assassinado e o combate

aos cangaceiros prosseguiu até a extinção do movimento. As imagens de Lampião e seu

bando foram recuperadas nos anos 60 pelo cineasta Paulo Gil Soares e seu produtor,

Thomas Farkas.

A pesquisa executada para a realização de Baile Perfumado trouxe às telas referências históricas de acontecimentos reais, como a morte do padre Cícero Romão Batista, a passagem de Benjamim Abrahão pelo Recife e sua coleta de imagens de Virgulino Ferreira da Silva e seu bando, a pressão do governo para acabar com os cangaceiros e a morte de Lampião e do libanês. Os fatos reconstruídos no filme ainda contam com o auxílio de um elemento crucial da história da região Nordeste: as imagens reais de Lampião e seu bando, feitas por Benjamim Abrahão na década de 30, em Pernambuco.

A história do cinegrafista libanês que filmou o cotidiano do “Rei do Cangaço” nos anos 30, transformou-se no roteiro de Baile Perfumado, uma saga contada em ficção sobre a vontade e as condições de fazer cinema no Nordeste no começo do século XX. No Brasil, o modo de produção, realização e comercialização de um filme nos anos 90 remete para a experiência vivida por Benjamim Abrahão, narrada no filme de Caldas e Ferreira. Segundo Sarah Yakhni (2000), em O Baile Perfumado - subversões no cangaço, Abrahão representa, diegeticamente, o alterego dos diretores. “Através de sua voz, os cineastas se fazem ouvir, através de suas imagens os cineastas reinventam uma experiência. O filme de Abrahão legitima o filme dos diretores”. Sendo possível, ainda, associar a história diegética de Benjamim Abrahão à história vivida pelos realizadores e sua trajetória para fazer o filme. Segundo João Batista de Brito (p.06), “é como se, apesar de estrangeiro, o libanês que quer filmar Lampião fosse o alterego dos diretores do filme, e por extensão, o de todo cineasta brasileiro”. Nesses termos, além de um filme de cangaço, Baile Perfumado é, antes de tudo, um filme sobre cinema.

A narrativa do filme é movida intensamente pela força da imagem fotográfica. Num dos primeiros diálogos do filme, Ademar Albuquerque diz para Abrahão, após uma conversa sobre o equipamento: “Eu fico espantado como essa gente gosta de retrato!”. Abrahão utiliza a imagem (fotográfica e em movimento) se valendo do seu poder de manipulação e sedução para chegar até os cangaceiros, que também ficam encantados

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pelas imagens. Através de fotografias e filmagens, o mascate agrada a muitos e encontra caminhos para realizar seu filme. Com as películas da fazenda e do gado de um poderoso fazendeiro da região, ele consegue financiamento para seu trabalho. As imagens de Lampião e seu bando seduzem os jornalistas, mas não as autoridades, acabando com sonho de Benjamim Abrahão. A força das imagens do cinegrafista determinaram o fim, contribuindo tanto para a extinção do cangaço quanto para sua própria morte.

O roteiro elaborado pelos diretores e Hilton Lacerda, fundamentado em fatos reais, mistura tradição e modernidade. É um filme com caráter autoral preciso, afim às temáticas do cangaço e do messianismo, tão utilizadas no país para representar a região Nordeste, porém inverso à abordagem prevalecente nos filmes de cangaceiro realizados até então. Baile Perfumado foge dos enredos centrados na luta entre os bandos e os “macacos” da polícia ou da alienação religiosa do povo do Sertão nordestino. Esses fatos encontram-se presente no filme, todavia, não como centro da narrativa, e sim como fatos pertinentes à época. O objetivo maior da narrativa não é o cangaço em si, mas sim o percurso do mascate libanês em busca de capturar imagens de Lampião e seu bando, gerando uma nova versão a propósito do cangaceiro e seu bando.

O foco narrativo de Baile Perfumado está centrado no ponto de vista do estrangeiro, o protagonista Benjamim Abrahão, que vê no cangaço uma excelente história para o cinema. No filme, Virgulino Ferreira da Silva ganha um tratamento autêntico e unívoco no gênero cinematográfico, condizente com a vida urbana, oposto ao mito nordestino de “bandido-herói” do espaço rural. Em meio a seus conflitos, Lampião vai ao cinema, ouve música, usa perfume francês, bebe whisky escocês, um cidadão urbano moderno.

A fusão entre fatos reais e ficção, a exposição dos acontecimentos verdadeiros re-elaborados em forma de drama e a aproximação estabelecida entre tradição e modernidade, incorporando o tradicional a uma linguagem contemporânea, presente na narrativa de Baile Perfumado, faz do filme uma obra com um estilo autêntico, estabelecendo uma parceria da ficção com o documental, revigorando as tradições regionais, questionando o estado de desenvolvimento do cinema no país. Baile Perfumado mostra o Sertão e o Nordeste brasileiro sem os problemas causados pela seca. É em meio ao Sertão verde e à exuberância da natureza nordestina que os inquietos como Abrahão e o cangaceiro Lampião buscam mudar o mundo, e cineastas como Paulo Caldas e Lírio Ferreira fazem uma nova interpretação sobre a natureza arcaica da região. 3.3 Estética da Retomada: Luz, Som e Montagem

No começo dos anos 90, o cinema brasileiro, até pouco tempo praticamente estagnado, inicia uma nova fase, após acordar de um sono que parecia profundo e de uma baixa nas produções cinematográficas, superando lentamente as dificuldades de realizar filmes no país. Aos poucos, os filmes brasileiros ressurgiam no cenário nacional; surge uma safra de novos diretores e profissionais mais experientes, trabalhos bem sucedidos, com reconhecimento geral. À tal fase da cinematografia nacional, iniciada a partir de 1993, convencionou-se chamar de renascimento ou retomada do cinema brasileiro.

Nesse período, a qualidade do cinema produzido no Brasil teve um avanço considerável, firmando trabalhos com nível técnico mais alto do que os de décadas passadas. Os filmes produzidos na década de 90 demonstram a evolutiva determinação dos profissionais da área, refletido no domínio tecnológico apresentado nos filmes, mais precisamente em relação a som e imagem, e na forma pelas quais as temática nacionais são abordadas. Na retomada do cinema brasileiro, a produção conta com uma vasta diversificação de estilos, livre de determinados ideais políticos que intervinham nos enredos, possibilitando aos cineastas mais liberdade de expressão em suas obras para contar histórias retratadas com a presença de diversas influências das vanguardas cinematográficas na estética dos filmes. Nesse momento, o cinema nacional começou a

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projetar uma nova imagem, mostrando-se maduro, reconquistando o público brasileiro com sua competência. Surge uma série de filmes que projetam o cinema brasileiro, não apenas no próprio país, como também no mundo.

Segundo Xavier (p.44), a partir 1993, a nova safra de filmes se tornou mais apresentável ao grande público e, em 1995, o cinema adquiriu mais densidade, uma produção com personalidade indefinida, marcada pela grande variedade de estilos. “O dado típico da década de 1990 foi a diversidade, não apenas tomada como fato, mas também como valor”. Uma fase do cinema nacional sortida de filmes dos mais diferentes gêneros, prevalecendo temáticas variadas e formas criativas aplicadas a partir das condições de produção, com livre arbítrio dos cineastas.

Para algumas fontes, Alma Corsária (Carlos Reichenbach, 1994) é o filme que abre as portas da retomada do cinema brasileiro. Ele retrata a busca ao sentido da vida, tratando de forma peculiar e real o tema da periferia. Para Cristiane Nova (1996), o filme O Qu4trilho (Fábio Barreto, 1995) é o ponto referencial do renascimento cinematográfico dos anos 90. Depois de anos, o filme levou o cinema brasileiro ao exterior tendo indicação para o Oscar, num contexto que auxilia a produção nacional a se reerguer. O roteiro aborda a relação de dois casais de imigrantes italianos determinados a crescerem social e economicamente no Brasil. A história apresenta adultério entre os casais. Para Nova (p.164), O Qu4trilho deve ser observado “não apenas como um bom momento do cinema brasileiro, mas ainda como um documento do ‘renascimento’ da cinematografia brasileira”. Ainda no início da década de 90, a distribuição do cinema nacional na salas comerciais e nas emissoras de tevê era um grande problema para nossa produção. A viabilização e a repercussão dos trabalhos dos cineastas encontrava barreiras, pois o mercado nacional estava dominado pela assídua produção do cinema estrangeiro.

O filme Baile Perfumado foi produzido com liberdade, apostando nas possibilidades estéticas, característica da retomada do cinema brasileiro, trabalhando com o referencial histórico em seu enredo e uma linguagem contemporânea em suas imagens. Segundo Xavier, no cinema brasileiro dos anos 70 e 80, os cineastas começaram a focalizar o passado do povo para auxiliar na construção de roteiros e na discussão da problemática política do presente. Para ele (p.97),

esse diálogo com a história se desdobra também no levar à tela material de arquivo, peças de museu, monumentos, num impulso traduzido no aluvião de documentos convencionais ou nos poucos trabalhos experimentais que discutiram a questão de como representar a história, como estabelecer recortes na experiência visual e sonora de modo a despertar a reflexão.

Nessa perspectiva, Baile Perfumado insere-se no contexto de filmes históricos

citado por Ismail Xavier, contando com a presença de elementos concretos da história da região caracterizando a encenação de fatos reais. Na época, o filme de Caldas e Ferreira não foi o único a enquadrar-se nesse estilo, podemos encontrar, ainda, alguns filmes de ficção produzidos nos anos 90 que deram ênfase aos acontecimentos históricos do país.

Nesse mesmo período, surgiu, na cidade do Recife, o movimento musical denominado de manguebit, liderado pelo músico Chico Science e o grupo Nação Zumbi, Fred O4 e Mundo Livre. O ideal estabelecido pelo movimento era de elaborar um tratamento contemporâneo para as manifestações culturais pernambucanas, unindo a arte popular tradicional à estética artística moderna. O manguebit, com sua música irreverente, contagiou o grande público e a produção artística local. Segundo Figueirôa (p.105), com a nova forma de expressão, “os cineastas também lançaram sua marca de fantasia, intitulando a produção pernambucana de árido movie, uma brincadeira, mas uma tentativa de identificar e unir essa produção em torno de ideais compartilhados”. Ainda segundo Figueirôa, os filmes do árido movie recebiam um tratamento cuidadoso em sua forma, diferenciando-se da produção local.

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Baile Perfumado não foi o primeiro trabalho desse movimento pernambucano mas, pela sua repercussão e reconhecimento, sem dúvida, é o filme mais significativo do árido movie. Uma estética formulada a partir de elementos tecnologicamente modernos, distribuídos entre a fotografia, a sonoridade e a montagem do filme, aspectos que fazem com que sua linguagem se torne contemporânea, dando vida nova às tradições nele representadas.

A fotografia de Baile Perfumado, dirigida por Paulo Jacinto dos Reis, confere grandiosidade à narrativa a partir dos movimentos de câmera e enquadramentos aplicados no filme. Planos aéreos, travellings, panorâmicas, planos seqüência, câmera na mão, uma linguagem que glorifica a história representada. Em alguns planos, a fotografia segue uma linha baseada no expressionismo alemão, na qual observa-se a predominância das sombras dos personagens bem definidas pela luz, imagens com proporções distorcidas pela utilização de lente grande angular e cenas compostas com espelho e reflexo.

O filme explora com abundância a cor verde nas cenas externas referentes ao cotidiano dos cangaceiros no Sertão, a cor azul nas imagens flashback de Benjamim Abrahão e a luz artificial amarela nas cenas internas. A coloração aplicada no filme valoriza o espaço em representação, subsidiando o fortalecimento das tradições sertanejas. Em Baile Perfumado, a luz amarelada, montada artificialmente nas locações interiores, ironiza a exacerbação da luz amarelada natural dos espaços áridos, explorada com freqüência por vários filme que abordam a temática do Sertão. Contudo, a artificialidade da iluminação de algumas cenas transparece claramente.

A câmera comandada por Jacinto Reis, conduzida a partir do ponto de vista de Benjamim Abrahão, a quem se dá o foco narrativo do filme, confere centralidade à trajetória do libanês em busca das imagens de Lampião e seu bando de cangaceiros. Às vezes, os diretores chegam a colocar o espectador na subjetividade das câmeras do libanês, como nas cenas em que Abrahão está fotografando uma família e a imagem aparece ao contrário, como também nas filmagens do bando.

A sonoridade de Baile Perfumado está totalmente agregada à musicalidade do movimento manguebit. Com direção musical de Paulo Rafael, as músicas utilizadas como trilha sonora do filme foram compostas por Chico Science, Lúcio Maia, Siba e Fred O4, contando, ainda, com a participação outros músicos pernambucanos, como Mestre Ambrósio, Lenine, Alceu Valença, Stella Campos, Luis e Manuel Paixão, Márcio Miranda e Ortinho Coelho.

A música do Baile Perfumado assume um papel de relevância no enredo do filme, as letras e a sonoridade participam da trama e da estética proposta com grande afinidade. Segundo Brito (p.06), a música do manguebit usada como trilha sonora do filme “não tem nada do Olê mulher rendeira da tradição”, utilizada com freqüência nos demais filmes de cangaceiro. A trilha sonora contribui com a idéia de fundir tradição e modernidade traçada desde o roteiro.

No filme, o Capitão Virgulino Ferreira da Silva, no barco com o bando e outros tripulantes, pede para alguém tocar uma música. Após insistir, um músico se oferece para tocar para os cangaceiros. O músico do barco diz para Lampião: “Capitão, tem um tal de um Baile Perfumado que eu não sei tocar direito, não, mas vou fazer uma meia sola aqui para vê se é do seu agrado”. Então ele pega a rabeca, confere a afinação e toca a música para o bando. A sonoridade natural da rabeca, logo se funde com uma trilha sonora no estilo manguebit, transformando a situação sonora do filme para o espectador, ou seja, a música se torna heterodiegética. A música Baile Perfumado, versão rabeca, é a canção executada no barco, que se ouve em cenas posteriores em outros arranjos.

No bando, a mando de Lampião, inicia-se um baile com direito a bebida e música ao vivo. A festa dos cangaceiros é animada pelo grupo pernambucano Mestre Ambrósio, numa estrutura de sonoridade tradicional da região, tocando, mais uma vez, a música Baile Perfumado, em versão sanfona. Enquanto isso, o libanês registra, com sua câmera de filmar, os cangaceiros dançando alegremente e embriagando-se. Pouco depois, Abrahão se junta à festividade do bando. A música faz parte do espaço diegético do filme enquadrando-se, também, às pretensões inovadoras dos diretores.

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A sonoridade do filme também é exposta através de equipamentos modernos, referentes à época, como na cena em que Benjamim Abrahão está na casa de Zé de Zito, após tomarem aperitivo, conversando com a mulher do dono da casa, ao som da música tocada no gramaphone; ou ao término do baile dos cangaceiros, quando Lampião narra uma de suas histórias ao som de um vinil tocado no gramphone e, ainda, as notícias radiofônicas sobre as imagens de Abrahão.

As últimas imagens do Capitão Virgulino Ferreira apresentadas no filme estão postas em forma de clip ao som da música Sangue de Bairro, de Chico Science. Os diretores misturam imagens aéreas do Raso da Catarina, onde os cangaceiros, por vezes, se abrigavam, aos registros originais de Lampião feitos por Abrahão nos anos trinta e aos monumentais planos do “Governador do Sertão” sobre os rochedos de sua localidade. Nesse instante, a letra de Science favorece a mitificação do cangaceiro proposta pela cena. Ao som da guitarra distorcida, a música cita o nome dos integrantes do bando de Lampião e faz questionamento sobre vida e morte, característica marcante do cotidiano dos cangaceiros.

Na montagem, Baile Perfumado se constitui uma narrativa com estrutura não-linear, em que se dissolve a idéia de cronologia da história. Para Brito (p.06), a montagem do filme “desmonta a convenção fazendo a estória se fechar, não no final, mas no começo, ‘vinte e cinco anos atrás’”.

A não-linearidade da montagem de Baile Perfumado reduz a carga de importância do desfecho tradicional das histórias de Lampião, centradas na morte do cangaceiro. A cena em que os diretores tratam da morte dele, quando um soldado depõe sobre a morte dos onze cangaceiros pegos numa emboscada na cidade, encontra-se dispersa pela localidade empregada no filme, posta bem antes do encerramento. A cena final de Lampião no filme mostra o Capitão Virgulino Ferreira pairando sobre a paisagem do Sertão nordestino, estratificado sobre os rochedos como uma espécie de mito regional. Essa seqüência indica o fim do cangaceiro e cristaliza a imagem do mitológico “Governador do Sertão”.

A junção dos elementos sonoros com os imagéticos estabelecem um ritmo ágil e dinâmico, composto por cenas rápidas, derivadas do vídeo clip. Uma performance que transforma o arcaísmo do Sertão nordestino em cultura contemporânea, fortificando um outro discurso sobre a região Nordeste, não mais o da problemática causada pela seca.

O ponto crucial da montagem de Baile Perfumado está no uso das imagens reais de Lampião, feitas por Benjamim Abrahão na década de trinta, dentro da ficção que narra o percurso percorrido para a captura das mesmas. O emprego de tais imagens na montagem contribui claramente para o teor de credibilidade histórica do filme, ajudando a legitimar a história narrada como registro do fato em si, ciente de que essas são as únicas imagens de Lampião existentes até os dias de hoje. Segundo Brito (p.06), um grande momento do filme “está na utilização dos documentários da época, e na criação de falsos documentários, todos misturados e confundidos com a mise-en-scène de modo a instantaneamente não permitir distinção”. Numa análise posterior sobre a narrativa, as imagens reais de Lampião e seu bando desvendam o realismo exposto pela ficção, o caráter de versão cinematográfica de ficção é contrastada com o documentário no momento em que elas aparecem. O que até então parecia verdadeiro transfere-se para o plano de representação fictícia da história do mascate libanês que filmou o Capitão Virgulino Ferreira da Silva e seu bando.

Outro ponto importante sobre a utilização de imagens históricas do cinema pernambucano, na montagem de Baile Perfumado, está na presença de trechos de A Filha do Advogado (Jota Soares, 1927). O filme representa a obra mais importante do Ciclo do Recife. Segundo Figueirôa (p.18), o filme de Soares “marcou o apogeu do prestígio da produção pernambucana, tendo sido exibido comercialmente no Rio de Janeiro em 31 cinemas”. A exibição do filme de Soares na cidade do Recife não se deu na década de 30, a colocação dessas imagens em Baile Perfumado são uma menção à produção local, uma homenagem de Paulo Caldas e Lírio Ferreira ao cinema dos pioneiros da década de 20, cuja produção é considerada marco inaugural do cinema pernambucano, conhecido nacionalmente como o “Ciclo do Recife”.

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A organização da conexão entre as cenas de Baile Perfumado cria um aspecto de unidade espacial aproximando o espaço rural ao urbano do Nordeste. A montagem diminui a distância ideológica e geográfica entre a zona urbana e a rural no filme, diminuindo assim a dicotomia social entre matuto e citadino.

Diante de suas condições de produção, o filme de Caldas e Ferreira possui uma resolução estética madura, com a utilização de movimentos de câmera, trilha sonora e seqüência de cenas que tornam a narrativa de Baile Perfumado, por vezes, um pouco hermética para espectadores medianos. O filme expõe o potencial criativo dos cineastas que trabalharam com poucos recursos financeiros. 3.4 A Terra Fértil

A representação do Sertão nordestino em Baile Perfumado centra-se num momento de produtividade da região, repleto de água e terras verdes. A cena de apresentação do ambiente em que a história se passa, constitui um plano aéreo em que a câmera sobrevoa um rio com grande quantidade de água e falésias, mostrando a vegetação verdosa das terras da caatinga, ao som do estilo musical manguebit. O plano exibe as terras do Sertão brasileiro com grandiosidade e excelência.

O filme trás com freqüência, durante a narrativa, imagens do verde da vegetação da caatinga e de águas correndo nos rios e armazenadas em açudes. O cenário de Baile Perfumado difere dos demais cenários utilizados nos filmes que abordam o Sertão, realizados anteriormente, onde a aridez e o clima tórrido de suas terras eram elementos primordiais de tais narrativas.

No Diário de Pernambuco, o cinegrafista Benjamim Abrahão fala com orgulho das imagens, por ele capturadas, aos jornalistas. Na entrevista, um jornalista pergunta sobre a caatinga para o libanês que descreve a região da seguinte forma: “Olha, o caatinga é um coisa muito séria. Desanima! A gente vê pra todo lado espinho de mandacaru, facheiro, urtiga e macambira. Ser um excelente inferno!”. Paradoxalmente, Abrahão revela em seu discurso a variedade de plantas existente na região, diferenciada da vegetação sertaneja apresentada em outros discursos, dos galhos secos e da terra rachada, mesmo afirmando que a caatinga ainda é um “inferno”.

A proximidade entre a zona rural e a zona urbana, projetada no filme, expressa o fortalecimento da região Nordeste como um todo, constituindo um Sertão sem aspectos de miséria ou escassez, com recursos e equipamentos modernos, que se agregam à sociedade do campo.

O espaço urbano nordestino da época, representado em Baile Perfumado, apresenta um estado de desenvolvimento citadino atualizado, marcado pela utilização cotidiana de diversos equipamentos novos, constituintes de uma sociedade moderna. No filme, há algumas cenas que expressam o desenvolvimento do Nordeste na década de 30. Benjamim Abrahão está sentado à mesa de jantar com algumas pessoas, lendo, com orgulho, a matéria publicada com o depoimento de Lampião sobre suas filmagens quando, de repente, falta energia. O libanês acende um palito de fósforo e diz com ironia: “Você esqueceu de pagar a tarifa da eletricidade!”.

Ainda nos primeiros contatos para realizar suas filmagens, Benjamim Abrahão encontra-se com Zé de Zito na estação ferroviária. Para tratar de negócios, Zé de Zito leva o libanês, de automóvel, para sua casa. No caminho, Zé de Zito pergunta a Abrahão se poderia andar mais rápido no carro, em seguida acelerando o automóvel e afirmando: “velocidade! Isso é bom feito a peste!”. A frase se torna cômica quando ele afirma que já chegou a quase 60 Km, dirigindo nas ruas do Recife. O automóvel, nessa e em outras cenas, é um elemento que afirma o desenvolvimento regional, e a velocidade remete ao ritmo do processo de modernização.

Quando o libanês chega com a idéia de fazer cinema em Pernambuco, isso já não era mais novidade. Em Baile Perfumado, a cena de apresentação de Lampião e Maria Bonita se passa no cinema, vendo A Filha do Advogado. O filme de Soares foi produzido em Recife e apresenta imagens do centro da cidade na década de 20, com automóveis e pessoas transitando pelas ruas.

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O filme de Caldas e Ferreira ainda exibe alguns outros elementos que simbolizam os traços de uma sociedade urbana moderna, como rádio, garrafa de whisky, perfume francês, gramaphone, câmera fotográfica, entre outros.

A representação das terras do Nordeste e do Sertão brasileiro em Baile Perfumado centra-se numa realidade pouco explorada sobre a região, retratada num período não afetado pelo fenômeno climático da seca, provocador do subdesenvolvimento regional. A narrativa é apresentada sob um cenário sertanejo não muito comum, filmado entre folhas verdes e águas cristalinas, entre automóveis, máquina fotográfica e filmadoras, representa uma região não mais representada a partir da problemática do atraso e da miséria nordestina, e sim enfatizando a fartura e o progresso de suas terras férteis, um Sertão não mais ultrapassado pela modernidade, e sim unido naturalmente ao progresso urbano. 3.5 O Homem Valente

A representação do homem nordestino em Baile Perfumado diverge do esteriótipo do sertanejo, construído a partir da figura do matuto sofredor, preso à crueza de sua terra improdutiva, sujeito a permanecer fixado às suas tradições e condições precárias, desprovido de qualquer educação social e conhecimentos atuais dos centros urbanos, uma espécie de “selvagem inocente”.

No filme de Caldas e Ferreira, a imagem do homem do Sertão e do Nordeste brasileiro centra-se na valentia dos principais personagens da narrativa, diante da perseverança do libanês de realizar um filme sobre o homem mais perigoso da região, da coragem do cangaceiro Lampião de enfrentar as forças volantes do Estado, e das práticas violentas do Tenente Rosa sobre os homens oprimidos da região no seu objetivo de deter os cangaceiros. A valentia do homem nordestino é valoriza tanto pela decisão e atitude de Benjamim Abrahão de filmar o cotidiano de Lampião e seu bando, quanto na personalidade do próprio Virgulino Ferreira da Silva e do Tenente Lindalvo Rosa.

O mascate libanês, Benjamim Abrahão, é um cidadão estrangeiro que veio a Pernambuco com o propósito de filmar o cotidiano dos cangaceiros e de “mudar o mundo” com sua inquietude. Em Recife, para adquirir recursos financeiros e encontrar meios para filmar Lampião e seu bando, o cinegrafista, homem de muita conversa, utiliza seu poder de persuasão, enquanto busca apoio de algumas figuras importantes da região para alcançar seu objetivo.

Depois de tantas conversas com pessoas influentes, Abrahão consegue infiltrar-se no bando de Lampião e convencer o cangaceiro a se deixar filmar pela sua câmera cinematográfica. Dialogando sobre a proposta e mostrando fotografias ao Capitão, após o pedido de explicação sobre as filmagens e as vantagens disso tudo, o libanês diz a Lampião que aquilo renderá muito dinheiro para eles e, “além disso, Capitão vai ficar mais popular ainda, todo mundo vai ficar sabendo até onde vai poder da ‘Governador do Sertão’”. Ainda desconfiado, Lampião afirma que “Seu Abrahão” é um homem de muitas palavras, mas concede ao libanês o direito de filmagem.

Com o trabalho quase terminado, o mascate libanês recorre à imprensa para anunciar a audácia de sua atividade. Mas a repercussão da fita acaba por prejudicar o sonho e a vida de Abrahão, pois as imagens de Lampião e seu bando seriam vistas como uma afronta aos créditos da nacionalidade. Logo a fita foi apreendida e o cinegrafista libanês foi assassinado no Nordeste brasileiro.

O interesse do libanês em filmar Lampião e seu bando termina por valorizar o movimento do cangaço, visto como símbolo da tradição regional e elemento representativo da cultura nordestina.

O Capitão Virgulino Ferreira da Silva, vulgo Lampião, é o líder do bando de cangaceiros, grupo formado por camponeses pobres e oprimidos, que juram vingança pela humilhação sofrida, pelo abuso de poder dos coronéis e latifundiários da região. No filme, Lampião é um homem rude, porém sofisticado, freqüentador e apreciador das atividade sociais da cidade do Recife, conhecedor da região e decidido na liderança de seus homens.

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Em Baile Perfumado, o Capitão Virgulino Ferreira recebe o libanês em seu grupo e concede o direito de filmagem, porém sempre desconfiado das atitudes de Benjamim Abrahão, atento a qualquer movimento em falso. Dá confiança ao cinegrafista, mas chega a ameaçá-lo por desconfiança, até bani-lo do grupo quando precisa partir em retirada.

Frente à câmera de Abrahão, mostrando intimidade com o equipamento, Lampião depõe com naturalidade: “Os Senhores está vendo aqui o verdadeiro ‘Governador do Sertão’, a quem vocês deviam obedecer e a respeitar, mas, como não querem, a culpa não é minha de ter de esgoelar vocês”, e prossegue seu depoimento com o punhal na mão direita em posição de ataque.

O Lampião apresentado na narrativa do filme desfruta das mais variadas habilidades típicas do cidadão urbano: ir ao cinema, passear de barco à vela, ouvir música. Segundo Brito, o Lampião de Baile Perfumado foge das representações formuladas pelo gênero em outros filme. No cotidiano do bando temos um sofisticado cangaceiro que, “entre uma facada e outra, curtia whisky escocês e entre um tiro de bacamarte e outro, se banhava de perfume francês” (BRITO, p.06). O Lampião proposto pelo filme representa o homem do Sertão, predominantemente rural, incorporado ao perfil do cidadão urbano, desfrutando dos privilégios de aparatos modernos somando-os às suas tradições.

O Tenente Lindalvo Rosa é uma autoridade da região, personagem baseado no típico soldado nordestino da época que abusa de sua patente e poder para se sobressair no seu meio social; sua postura autoritária e violenta se expressa pela grosseria dele com os soldados sob seu comando e com outras pessoas. No filme, Rosa vive determinado a liquidar Lampião e seu bando. Quando se refere a Lampião, como demonstra em seu diálogo com Abrahão, é da seguinte forma: o libanês fala que conheceu Capitão Virgulino Ferreira da Silva em Juazeiro do Norte com padre Cícero. Então, Rosa diz com ironia: “O senhor deve tá enganado, porque bandido não pode ser Capitão e padre não deve ser coiteiro!”.

Pelo fato de não conseguir capturar Lampião, o Tenente Lindalvo Rosa agride os moradores que acredita terem conhecimento do paradeiro dos odiados cangaceiros. No filme, em outro diálogo com o libanês, Rosa convida Abrahão por um instante para ver algo, e então, um soldado ergue nas mãos a cabeça de um cangaceiro. O libanês passa mal quando vê aquilo, e, então, o Tenente brinca com ele: “Oxente, homem! Tá se afrouxando, seu Benjamim? Apois me diga se isso aí não é a imagem mais justa do mundo?”.

Lindalvo Rosa representa o perfil autoritário também representado pelos coronéis e latifundiários da região Nordeste, que sustentam uma personalidade bruta, ignorante, diante o povo da região em que atua. Porém, em sua jornada, Rosa termina sem conseguir prender o Capitão Virgulino Ferreira da Silva e muito menos impor sua autoridade sobre Lampião.

Um outro personagem posto no enredo tem grande importância na representação do messianismo praticado no Sertão brasileiro: o padre Cícero Romão Batista. No filme, ele aparece na primeira cena agonizando, prestes a morrer. Na narrativa, Abrahão usa diversas vezes seu nome para alcançar seu objetivo, prevalecendo-se da credibilidade do padre na região para abrir seus caminhos. O padre Cícero, até os dias de hoje, é um mito messiânico de grande importância para a cidade de Juazeiro do Norte e para a região Nordeste.

O homem nordestino, personificado em Lampião, representado em Baile Perfumado, assume um perfil híbrido entre o urbano e o rural, sendo, ao mesmo tempo, praticante de suas tradições camponesas e, também, dos novos costumes citadinos. O homem nordestino em Baile Perfumado é construído através do valor de suas tradições e do seu modo de vida, livre da repressão de autoridades regionais ou exploradores emigrantes, marcado pela força de sua atitude e pela independência de sua maneira de ser. Essa versão o mostra diferenciado dos demais modelos estabelecidos em outras representações, pois incorpora os elementos de modernidade no seu cotidiano rural. 3.6 Cenas Perfumadas

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O fortalecimento de uma região marcada pelo discurso do subdesenvolvimento

pode ser observado no enredo de Baile Perfumado através de diversos aspectos. Uma história que retrata uma realidade poucas vezes vista sobre o Sertão e o Nordeste brasileiro.

Em Baile Perfumado, as terras do Sertão são representadas em boas condições de produtividade, verdes e úmidas, acessíveis a outros pólos, onde o homem do campo não enfrenta os problemas de aridez e falta de acesso a determinados benefícios do processo de modernização. A história narrada no filme transcorre sob uma abordagem nova do Sertão nordestino, unindo cultura regional tradicional e contemporânea, o arcaico mistura-se ao moderno. Na narrativa podemos encontrar, em algumas cenas, esse tratamento do Sertão brasileiro potencializado. A seguir, discorreremos sobre duas cenas do filme.

Segunda cena do filme, apresenta a querela entre os cangaceiros e os “macacos” da polícia. Ao som de tiroteio, Lampião aparece, em plano fechado, correndo entre folhas verdes, na luta contra os soldados da volante. Ele vira-se e atira em direção ao inimigo. Os cangaceiros estão correndo. Um soldado parado atrás de uma árvore, dá um tiro de espingarda, vira para os companheiros e grita: “Avança, peste!”. Fazendo gesto com a mão para avançarem, os soldados prosseguem perseguindo os cangaceiros. A correria, a troca de balas e os insultos orais continuam sem cessar. Um cangaceiro aponta a arma para o inimigo gritando: “Macaco da peste! Toma essa, filho do cão!”, e atira nos soldados. Os “macacos” continuam atacando. Um cangaceiro acerta um soldado, mas a luta continua. Em plano fechado, Lampião mira com seu revolver e atira nos “macacos”. Um cangaceiro grita para recuar quando o Tenente Lindalvo Rosa aparece com uma metralhadora atirando contra o bando. Um cangaceiro, recém atingido na perna, está sendo ajudado, por outro do bando, a fugir. Um “macaco” atira e grita furioso: “Lampião, filho de uma égua, tu vai morrer, condenado!”. A essa altura, o Capitão Virgulino Ferreira da Silva está protegido numa trincheira por trás de algumas árvores. Rosa encontra o soldado atingido, abaixa-se para conferir o estado do soldado e percebe que ele está morto. Então ele pega a espingarda, levanta-se e grita revoltado com a situação: “Seus bandidos de merda! Apois eu vou é matar vocês tudinho. E promessa de um Rosa é dívida de cemitério. Lampião, cão de uma figa, tu vai ver só como eu vou acabar com a tua raça até o fim do mundo, boba serena! Tu vai ver só o que é que acontece, molesta!”. Distante, Lampião está atento à luta, quando percebe que a troca de tiros acabou. No silêncio da mata, com um ar risonho, ele ergue o revolver e atira para cima, o que confirma o fim da querela.

Pode-se perceber que a cena da batalha entre os cangaceiros e os “macacos” da polícia torna-se uma luta onde ambas as forças se mostram disponíveis a combater seu inimigo, expressa na valentia de Lampião e na obrigação de ofício de Lindalvo Rosa. O poder paralelo dos cangaceiros é então caracterizado como luta contra o poder institucional do Estado. O bando de Lampião enfrenta as forças armadas do Governo, troca tiros e insultos verbais, mata um soldado e continua nas terras do Sertão nordestino. Os “macacos” tentam impedir o bando de cangaceiros, mas não conseguem dominar o comando do Capitão Virgulino Ferreira da Silva. Nessa cena, o homem nordestino não recua diante das ameaças das forças urbanas, ele combate e se mostra capaz de suportar as agressões da polícia do Estado e responder à altura, com o mesmo nível de violência.

Em outra cena, Maria Bonita está penteando, com afeto, os cabelos de Lampião. O cangaceiro permanece de cabeça baixa, um tanto dengoso. Então ela olha para a câmera de Benjamim e fala para o libanês: “Tá vendo como o bicho é manhoso, seu Abrahão? Isso gosta que só desses carinhos!”. Em seguida, ela direciona o olhar para Lampião e diz: “Não é, Virgulino?”. Lampião, um pouco acanhado com a situação, ergue a cabeça e fala para Maria Bonita: “Minha filha, seu Abrahão não tá muito interessado nessas coisas, não”. O libanês afasta olho que estava por trás da câmera de filmar e responde: “Pois nós tá sim, Capitão. Nós tá muito interessado em tudo que fala de você”. Sendo assim, Lampião começa a banhar, à vontade, Maria Bonita e ele mesmo de perfume

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francês e, em seguida, vira-se para a câmera de Abrahão e joga perfume em direção a ela, também.

O afeto trocado pelo casal de cangaceiros, expresso na cena descrita, expõe o lado sentimental do destemido Lampião. Nessa cena, o rude Virgulino Ferreira se transforma numa homem emotivo, manhoso, “derrotado” facilmente pela carícia de sua mulher, uma imagem que acende as fraquezas do “Rei do Cangaço”. Outro aspecto encontrado nessa cena é a vaidade do cangaceiro em se arrumar, pentear os cabelos e se banhar de perfume, associando Lampião ao perfil citadino, marcado pela prática de costumes do homem urbano que se veste bem para se adequar ao meio social e seus padrões de vida. O sertanejo não é mais um homem bruto e selvagem, mas sim um homem incluso ao perfil universal de cidadão.

Em parâmetros gerais, a abordagem de Baile Perfumado sobre o Sertão e o Nordeste brasileiro, não mais centrada na secura das terras áridas da região e na expropriação rural, e sim na cultura e na tradição de seu povo, retratando, também, o desenvolvimento regional nordestino e o valor de seus atos; ele centra suas lentes noutro aspecto do Sertão nordestino, que remete ao seu lado urbano, desenvolvido e moderno. O filme sugere algo novo em relação ao tratamento temático prevalecente na cinematografia brasileira, uma forma rara de representação cinematográfica da região.

CONCLUSÕES

O cinema é um meio de expressão artística no qual o diretor utiliza imagens em movimento e som para contar histórias através das quais expõe suas idéias. Primeiramente, na escolha do tema, depois, do ponto de vista narrativo que autoriza uma certa abordagem lançada sobre o assunto e, finalmente, nas escolhas técnicas que faz para compor a narrativa. O filme é, pois, uma obra com marca autoral. Através dele, revela-se posições políticas, ideológicas, preconceitos, visão de mundo, etc., suscetíveis de análise através da abordagem que o diretor/autor respalda.

Como ferramenta narrativa, o filme oferece uma ampla possibilidade de expressão ao diretor, válido entre os elementos comunicativos possíveis, constituídos em imagem e som, e as inúmeras condições de organização plástica desses elementos. Nessas circunstâncias, o aspecto determinante do cinema é a forma pela qual as histórias são contadas.

A contextualização histórica de um filme também é uma medida necessária para a melhor compreensão sobre o modo pelo qual o diretor narrou sua história. Através do referencial histórico do período de produção do filme, o conhecimento sobre as tendências ideológicas da época e a estrutura estética da obra, tornam-se mais esclarecedores em relação ao produto final. Com isso, pode-se observar os ideais de produção da narrativa, a influência de modelos ou ideais de vanguardas cinematográficas utilizados no filme, os aspectos sócio-culturais em representação, a militância empregada na obra pelos seus realizadores, entre outros.

O estudo estético e histórico de uma obra cinematográfica são caminhos imprescindíveis para o entendimento da forma narrativa de um filme; proporciona, em si, a transparência da abordagem utilizada sobre uma determinada temática e demonstra o quanto a história representada é verossímil.

Na história do cinema nacional, o Sertão e o Nordeste brasileiro foram tematizados em roteiros cinematográficos por diversas vezes. Na maioria dos filmes, a abordagem sobre a região utiliza a recorrência da seca, fenômeno climático que causa sérios problemas para o Nordeste. O tema se tornou corrente em todo o Brasil a partir do século XIX, desde a “grande seca” de 1877, transformado-se em discurso de conteúdo social de várias ordens, inicialmente utilizado pelas elites dirigentes regionais para satisfazer seus interesses e manter o fluxo de recursos públicos para a região, apropriando-se de boa parte deles. Posteriormente, integrou os diferentes discursos a propósito da região, o histórico, o sociológico, o artístico, entre outros.

Observamos que, numa minoritária produção cinematográfica, a temática do Sertão e do Nordeste brasileiro é trabalhada numa perspectiva diferente, centrada na

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fartura das terras, na riqueza cultural dos homens, na tradição regional, tendo ainda histórias filmadas nos centros urbanos, em cenários citadinos, mostrando o desenvolvimento regional e os efeitos causados pelo modernismo no Nordeste.

Decorrente da análise realizada no presente trabalho sobre os filmes Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, e Baile Perfumado, de Paulo Caldas e Lírio Ferreira constatamos que eles apresentam afinidades e diferenças fundamentais, constituídas nas abordagens que autorizam sobre o Sertão e o Nordeste brasileiro. O estudo histórico e estético sobre os dois filmes aponta para a distinção entre as abordagens.

O contexto histórico é um dos elementos que, em nossa avaliação, conduz os ideais de representação de cada um dos filme, levados por caminhos diferenciados, não apenas sócio-político, verificados em cada um dos períodos, como também pelas expectativas em relação à arte cinematográfica e as conquistas técnicas e estéticas de cada época.

Vidas Secas foi produzido nos anos 60, no Sul do país, sob uma efervescente conjuntura política na qual os artistas viviam o clima de ideais revolucionários. Os artistas da época levavam o pensamento de esquerda para o âmbito de suas obras, influenciadas, assim, pelo ideal de mudança, na esperança de construir um país melhor. O ideal que conduzia os cineastas integrantes do Cinema Novo para a realização de seus filmes confirmava-se na seguinte frase: “uma idéia na cabeça e uma câmera na mão”. A frase, atribuída ao modo de produção, descreve a perspectiva dos cinemanovistas daquilo que consideravam necessário para realizar filmes em meio à conjuntura política do período. A intenção era fazer cinema subdesenvolvido para tirar o país do subdesenvolvimento. As questões sociais são as principais temáticas, e o Brasil dos deserdados invade, desse modo, as telas nacionais.

Nelson Pereira do Santos escreveu seu roteiro com base no romance do escritor nordestino Graciliano Ramos. O livro integra a produção literária regional da década de 30, período em que as obras buscavam mostrar a realidade social. O filme é uma adaptação do livro, que retrata com vigor um problema climático com repercussões sociais existente no Nordeste brasileiro. Além da seca, o filme apresenta a condição de pobreza dos camponeses e trabalhadores do meio rural e social do Sertão que são explorados pelo latifúndio da região. Latifúndio esse que, tanto quanto a seca, oprime o homem trabalhador no meio rural. Dessa forma, Vidas Secas constrói um discurso cinematográfico sobre o Sertão e o Nordeste brasileiro a partir dos ideais revolucionários de esquerda do Cinema Novo.

Já Baile Perfumado foi produzido nos anos 90, no Nordeste brasileiro, após a política de contenção que quase extinguiu a produção artística do país. O filme surge num período em que os ideais revolucionários de esquerda não estão mais na ordem do dia. Os cineastas apontam para temáticas mais amplas. A diversidade é a marca da nova produção cinematográfica nacional. Não há, nessa conjuntura, espaço para motes do gênero Cinema Novo, pois tornou-se impossível fazer cinema com “uma idéia na cabeça e uma câmera na mão”; também não é mais possível ignorar o mercado e suas exigências estéticas e temáticas. O objetivo de produção dos diretores desta nova geração é de prezar pela qualidade técnica dos filmes realizados no Brasil, resultando num cinema que tem reerguido a produção nacional, recém saída de uma crise.

Paulo Caldas e Lírio Ferreira escreveram o roteiro de Baile Perfumado a partir de fatos verídicos da história de Pernambuco. A história do filme é baseada em acontecimentos ocorridos na década de 30. A narrativa engloba personagens e situações reais da história da região, utilizando, também, elementos fílmicos condizentes à época representada, além de mostrar a região sob uma outra realidade: a fartura. Uma representação do Sertão nordestino construída a partir das condição climática natural do inverno da região, centrado em tradições e cultura, influenciado pela modernidade e desenvolvimento.

O discurso cinematográfico de Caldas e Ferreira se apresenta como voz opositora do discurso predominante sobre o Sertão e o Nordeste brasileiro. Baile Perfumado se mostra antagônico no sentido de construir um contra-discurso frente às abordagens que contribuem para a formação de uma imagem cristalizada do Nordeste: o rural é arcaico, o Sertão é miséria, e nordestino é ignorante.

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Os diretores se contrapõem a este “discurso da seca” a partir da utilização das mesmas temáticas abordadas nos demais filmes sobre a região: a do cangaço e a do messianismo. O filme de Paulo Caldas e Lírio Ferreira mostra os referidos temas sob um novo olhar mitológico. Expressos nos personagens de Lampião e Padre Cícero, Baile Perfumado reafirma o papel histórico do cangaço e do messianismo para o povo sertanejo e a importância desses, como parte da cultura popular nordestina. O cangaceiro é o assunto do maior interesse para ser filmado pelo estrangeiro (o libanês Benjamim Abrahão) e o padre é ícone da fé do Nordeste, um referencial da crença religiosa do povo nordestino e uma personalidade que ajuda o libanês a conseguir realizar as filmagens de Lampião e seu bando. Isto quer dizer que o cangaceiro não é mais o selvagem e o messianismo não é puro e simplesmente produto de alienação.

As tradições do povo do Sertão nordestino são representadas em cada uma das abordagens sobre a região nas proporções devidas. Enquanto Vidas Secas apresenta as tradições nordestinas em sua forma mais arcaica, pela forma que representa o Sertão nordestino, o Baile Perfumado transforma o que parece antiquado em cultura popular, unindo as tradições a elementos modernos, criando uma metamorfose que revitaliza os costumes do Sertão em sua representação.

Este contra-discurso dos diretores pernambucanos apresenta um espaço rural que se moderniza pela proximidade estabelecida com aquilo que faz o cotidiano dos centros urbanos, onde os moradores do interior da região tinham acesso a alguns equipamentos do modernismo citadino, um Sertão verde e rico em tradições e um nordestino valente e astuto, capaz de superar as condições adversas.

O filme não explora a recorrente cena da chacina do grupo de cangaceiros, suas últimas imagens de cangaço concentram-se no Lampião vitorioso reinando sobre o Sertão usando apenas como referência à morte a música de Chico Science. As últimas imagens do filme, no flashback que mostra a chegada de Benjamim Abrahão em Pernambuco, remetem à necessidade de “inquietude” para “mudar” o mundo. Nesse caso, podemos apontar a necessidade de construir um discurso que “mude” a visão fixada sobre a região, produto da inquietude dos cineastas.

O roteiro de Baile Perfumado moderniza a região representada entre o urbano e rural, homens do campo e da cidade. Os diretores parecem mais preocupados em discutir a importância da imagem, da novidade fotográfica que encanta, simultaneamente, o rico fazendeiro e o famoso bandido do Sertão, do que os problemas econômicos e sociais da região. A questão da imagem, presente na trama da história narrada, apresenta-se, também, no plano diegético da obra, explícito na organização plástica do filme, responsável pela projeção do contra-discurso dos diretores.

Enfim, Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, e Baile Perfumado, de Paulo Caldas e Lírio Ferreira, representam duas versões matizadas sobre a mesma temática. Nesse sentido, os filmes reafirmam o ponto crucial das abordagens sobre a região: o Nordeste é o Sertão. Contudo, o cinema da retomada, apesar de seu esforço por realizar um contra-discurso afirmativo da região, recorre aos mesmos termos da equação. Baile Perfumado mostra que talvez seja necessário utilizar outros espaços que não o da tradição para realmente dizer algo cinematograficamente novo em relação ao Nordeste, ainda que reconhecemos algo novo no olhar dos novos cineastas nordestinos. REFERÊNCIAS ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. A Invenção do Nordeste e Outras Artes. São Paulo: Cortez, 1999. BENTES, Ivana. Cosmética da fome. In: Jornal do Brasil, 08 de jul. 2001. Disponível em: <jbonline.terra.com.br/destaques/glauber/glaub_arquivo4.html> Acesso em: 28 jan. 2003. BERNARDET, Jean-Claude. O que é cinema? São Paulo: Brasiliense, 1980. . O autor no cinema: a política de autor. São Paulo: Brasiliense, 1994.

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