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Divisão de Ensino de Química da Sociedade Brasileira de Química (ED/SBQ) Dpto de Química da Universidade Federal de Santa Catarina (QMC/UFSC) XVIII Encontro Nacional de Ensino de Química (XVIII ENEQ) Florianópolis, SC, Brasil 25 a 28 de julho de 2016. Ensino e Aprendizagem (EAP) Equilíbrio Químico Molecular: Uma Análise da Transposição Didática. Priscila do Nascimento Silva (IC) *1 , Larissa Oliveira de Souza (IC) 1 , Flávia Cristiane Vieira da Silva (PQ) 2,3 , José Euzébio Simões Neto (PQ) 1,2 . [email protected]. 1 Departamento de Química UFRPE Recife, PE. 2 Programa de Pós-Graduação em Ensino das Ciências UFRPE Recife, PE. 3- Unidade Acadêmica de Serra Talhada UFRPE Serra Talhada, PE Palavras-Chave: Fenômenos Didáticos, Transposição Didática, Equilíbrio Químico. RESUMO: O processo de transposição didática pode ser entendido como o conjunto de modificações as quais o saber é submetido, da esfera acadêmica (quando saber científico) para o âmbito escolar, e ocorre em duas etapas: externa (que produz o saber a ser ensinado) e interna (que produz o saber ensinado). Neste trabalho, analisamos incialmente a etapa externa da transposição, observando modificações que buscam didatizar o saber, para o conteúdo equilíbrio químico molecular. Em seguida, procuramos identificar a relação de dois professores do Ensino Médio com este conteúdo através de entrevistas, em busca de evidências do trabalho intramuros da sala de aula, na etapa interna da transposição. A análise da transposição didática externa identificou várias supressões, contudo, também observamos acréscimos, deformações e algumas criações didáticas. Nas entrevistas, observamos a influência da relação do professor ao saber na elaboração do novo texto do saber, que reverbera na gestão do tempo. INTRODUÇÃO Diante de tantas modificações ocorridas na sociedade, muitas discussões são levantadas acerca de quais saberes devem fazer parte dos currículos das disciplinas científicas, nos diversos níveis de ensino. Parece necessário uma reflexão sobre a formação dos estudantes, no modo como se apropriam dos conceitos científicos, bem como o papel da escola e dos professores nesse processo. A necessidade de investigar como os saberes produzidos nas diversas áreas da ciência no curso da história são modificados, para que se tornem ensináveis, e como os questionamentos relativos à quais serão legitimados como objetos de ensino, nos direciona a refletir sobre a didatização dos saberes científicos. Os Fenômenos Didáticos se instituem numa sala de aula, local que a tríade professor-aluno-saber se relaciona, em um meio específico, ou millieu (ALMOULOUD, 2011), e constitui o que Brousseau (1986) definiu como situação didática, que pode ser expressa no triângulo das situações didáticas, ilustrada na figura 01. Figura 01: Triângulo das Situações Didáticas.

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Page 1: Equilíbrio Químico Molecular: Uma Análise da Transposição ... · mais antigo, publicado em 1990, visando gerar a possibilidade de uma análise suplementar pontual do processo

Divisão de Ensino de Química da Sociedade Brasileira de Química (ED/SBQ) Dpto de Química da Universidade Federal de Santa Catarina (QMC/UFSC)

XVIII Encontro Nacional de Ensino de Química (XVIII ENEQ) Florianópolis, SC, Brasil – 25 a 28 de julho de 2016.

Ensino e Aprendizagem (EAP)

Equilíbrio Químico Molecular: Uma Análise da Transposição Didática.

Priscila do Nascimento Silva (IC)*1, Larissa Oliveira de Souza (IC)1, Flávia Cristiane Vieira da Silva (PQ)2,3, José Euzébio Simões Neto (PQ)1,2. [email protected].

1Departamento de Química – UFRPE – Recife, PE. 2Programa de Pós-Graduação em Ensino das Ciências – UFRPE – Recife, PE. 3- Unidade Acadêmica de Serra Talhada – UFRPE – Serra Talhada, PE

Palavras-Chave: Fenômenos Didáticos, Transposição Didática, Equilíbrio Químico.

RESUMO: O processo de transposição didática pode ser entendido como o conjunto de modificações as quais o saber é submetido, da esfera acadêmica (quando saber científico) para o âmbito escolar, e ocorre em duas etapas: externa (que produz o saber a ser ensinado) e interna (que produz o saber ensinado). Neste trabalho, analisamos incialmente a etapa externa da transposição, observando modificações que buscam didatizar o saber, para o conteúdo equilíbrio químico molecular. Em seguida, procuramos identificar a relação de dois professores do Ensino Médio com este conteúdo através de entrevistas, em busca de evidências do trabalho intramuros da sala de aula, na etapa interna da transposição. A análise da transposição didática externa identificou várias supressões, contudo, também observamos acréscimos, deformações e algumas criações didáticas. Nas entrevistas, observamos a influência da relação do professor ao saber na elaboração do novo texto do saber, que reverbera na gestão do tempo.

INTRODUÇÃO

Diante de tantas modificações ocorridas na sociedade, muitas discussões são levantadas acerca de quais saberes devem fazer parte dos currículos das disciplinas científicas, nos diversos níveis de ensino. Parece necessário uma reflexão sobre a formação dos estudantes, no modo como se apropriam dos conceitos científicos, bem como o papel da escola e dos professores nesse processo. A necessidade de investigar como os saberes produzidos nas diversas áreas da ciência no curso da história são modificados, para que se tornem ensináveis, e como os questionamentos relativos à quais serão legitimados como objetos de ensino, nos direciona a refletir sobre a didatização dos saberes científicos.

Os Fenômenos Didáticos se instituem numa sala de aula, local que a tríade professor-aluno-saber se relaciona, em um meio específico, ou millieu (ALMOULOUD, 2011), e constitui o que Brousseau (1986) definiu como situação didática, que pode ser expressa no triângulo das situações didáticas, ilustrada na figura 01.

Figura 01: Triângulo das Situações Didáticas.

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Divisão de Ensino de Química da Sociedade Brasileira de Química (ED/SBQ) Dpto de Química da Universidade Federal de Santa Catarina (QMC/UFSC)

XVIII Encontro Nacional de Ensino de Química (XVIII ENEQ) Florianópolis, SC, Brasil – 25 a 28 de julho de 2016.

Ensino e Aprendizagem (EAP)

Pensar sobre essa relação ternária implica em colocar em cena uma série de conceitos articulados de forma complexa, para que seja possível compreender a maneira dinâmica e encadeada como tais relações se instituem (BRITO MENEZES, 2006). No entanto, este saber, que é constituinte da situação didática, não é o mesmo que é construído nas academias e centros de pesquisa. Até chegar a escola, o saber científico deve passar por uma série de modificações, que envolvem sistematização e didatização. Chevallard (1991) denomina esse processo de Transposição Didática (BRITO MENEZES, 2006; SILVA, SILVA E SIMÕES NETO, 2015a).

Neste trabalho, buscamos responder a seguinte pergunta de pesquisa: como ocorre o processo de transposição didática para o conteúdo equilíbrio químico molecular, desde a sua origem como saber científico até sua abordagem em sala de aula?

Escolhemos o conteúdo Equilíbrio Químico Molecular pois é um dos componentes dos currículos de Química que oferece maior dificuldade para o ensino e a aprendizagem (MASKILL e CACHAPUZ, 1989; BERGQUIST e HEIKKINEM, 1990; MENDONÇA, JUSTI e FERREIRA, 2005; MOURA JR. ET. AL, 2008). As razões são pertinentes, dado que o estudo do tema requer o domínio prévio de conceitos como ligações e reações químicas, estequiometria, formação de soluções, noções de cinética e termoquímica, entre outros igualmente importantes.

Quílez Pardo e colaboradores (1993) atribuem as dificuldades no aprendizado e na resolução de problemas que envolvam o conceito de Equilíbrio Químico à falta de reflexão qualitativa prévia. Ainda, o entendimento desse conceito exige a mobilização de conhecimentos com graus elevados de abstração, sendo importante refletir que aquilo que conhecemos de um modelo mental é o modelo expresso (GILBERT e BOULTER, 1995) quimicamente, matematicamente, uma vez que sempre envolve formas específicas de linguagem e de representação simbólica.

Dessa forma, nosso objetivo foi analisar a transposição didática do conteúdo de equilíbrio químico molecular e como essas transformações ocorrem intramuros da sala de aula a partir do trabalho do professor.

TRANSPOSIÇÃO DIDÁTICA

O trabalho que faz a passagem de um objeto de saber a ensinar e por fim um objeto de ensino é conhecido como transposição didática (CHEVALLARD, 1991, p. 39). Historicamente, o termo transposição didática surgiu em 1975, na França, em trabalhos do sociólogo Michel Verret, mas tal noção foi aprofundada e ampliada por Yves Chevallard, no âmbito da didática da matemática na década de 1980 (SILVA, SILVA e SIMÕES NETO, 2015a), mas que pode ser aplicável ao ensino de ciências naturais, como a Química. Essa possibilidade foi levantada pelo próprio Chevallard (NEVES e BARROS, 2011).

De acordo com Chevallard (1991) a transposição didática permite uma compreensão didática e epistemológica do percurso de formação dos saberes em três esferas distintas: saber sábio (saber científico), saber a ensinar (saber a ser ensinado) e saber ensinado, objetivando a compreensão de como um saber é transformado para atender a certas demandas sociais. Para Brousseau (1986), na produção do saber científico o pesquisador despersonaliza, descontextualiza e destemporiza seus resultados. Observamos uma omissão de todo o contexto no qual o cientista esteve imerso, sendo a comunicação dos resultados limpa, depurada e impessoal, numa direção que Chassot (1993) entende como assepsia da ciência.

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O saber a ser ensinado, é diferente do saber científico não só em formato e conteúdo, mas no objetivo de sua existência e finalidade. De acordo com Pinho Alves (2000), o saber a ser ensinado, diferente do saber científico, segue uma sequência de complexidade e dificuldade crescentes, organizada de maneira linear e cumulativa e é voltada para a compreensão do aluno inserido no jogo didático. O caráter atemporal se manifesta de certa forma nesta linearidade, podendo encobrir muitas vezes o real tempo e as idas e vindas, como os conflitos e embates, no desenvolvimento de uma explicação científica. (MELZER; SILVA; SIMÕES NETO, 2014).

Essa manifestação do saber é apresentada no texto do saber, que pode ser os manuais de ensino, programas e, no caso do Brasil, principalmente livros didáticos. O texto do saber é um meio de orientar o que deve efetivamente entrar em cena no jogo didático, apresentando aspectos pouco relacionados ao saber científico, como o fechamento das ideias, caráter absoluto e pouco mutável dos conceitos científicos.

A terceira manifestação é denominada saber ensinado, e se apresenta intramuros da sala de aula (BRITO MENEZES, 2006). É o saber comunicado dentro do sistema didático, em que o professor prepara suas aulas para seus alunos, interpretando o texto do saber e criando um novo texto do saber, no qual seleciona, modifica e reorganiza os saberes diante dos seus anseios, necessidades, possibilidades e direções políticas e ideológicas dentro do contexto em que se insere.

Chevallard (1991) assume que o processo de transposição ocorre em duas etapas: a primeira strictu sensu, que ocorre fora da escola, por isso chamada de transposição didática externa (TDE) e transforma o saber científico em saber a ser ensinado; e a segunda, lato sensu, que transforma o saber a ser ensinado em saber ensinado e ocorre intramuros da sala de aula, por isso chamada de transposição didática interna (TDI). O processo na íntegra é apresentado na figura 02.

Figura 02: O processo de Transposição Didática segundo Chevallard.

A Transposição Didática Externa é realizada por uma instituição invisível, denominada por Chevallard (1991) como noosfera, termo que se origina na antropologia e representa a esfera relacionada ao conhecimento. Tal instituição é composta por didatas, professores, pedagogos, técnicos educacionais e membros do governo, que gerenciam o ensino (BRITO MENEZES, 2006). Nesse processo, é fundamental o papel da vigilância epistemológica, que, segundo Chevallard (1991), surge quando professores e/ou pesquisadores questionam o saber a ser ensinado em sua natureza. Tal instituição tenta impedir a criação de dogmas, o engessamento do conhecimento, as deformações e criações didáticas de efeitos indesejáveis, garantindo uma qualidade na preservação do conceito relacionado ao saber durante o processo.

Já na Transposição Didática Interna, o professor assume um papel central, pois o saber que entra em cena no jogo didático se manifesta pelo novo texto do saber, que é impregnado pela relação do professor ao saber (CÂMARA DOS SANTOS, 1997).

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METODOLOGIA

Nossa pesquisa foi dividida em duas etapas, cada uma relacionada com um movimento de transposição didática (externa e interna). Na primeira etapa, selecionamos cinco livros do Ensino Médio, entre os quais quatro são obras que foram aprovadas pelo Plano Nacional do Livro Didático (PNLD) de 2015, e um com um perfil mais antigo, publicado em 1990, visando gerar a possibilidade de uma análise suplementar pontual do processo de transposição didática, em diferentes contextos de época.

O foco na abordagem da transposição didática externa foi a análise comparativa com os textos do saber selecionados para a pesquisa, selecionamos um livro didático de utilização no Ensino Superior, que chamaremos de Livro de Referência (LR) utilizado como referência e manifestação do Saber Científico. Esta opção se sustenta a partir de uma aproximação válida: entendemos que os livros didáticos do Ensino Superior são produtos de Transposição Didática, pois o saber se encontra didatizado. No entanto, como é menos modificado em relação ao livro do Ensino Médio, é tomado como manifestação do Saber Científico. (SILVA, SILVA e SIMÕES NETO, 2014; SILVA, SILVA e SIMÕES NETO, 2015a). Os livros selecionados são apresentados no Quadro 1:

Quadro 1: Livros Didáticos Analisados

Livro Didático Representação Ano Definição da proposta

1 LD1 1990 Tradicional

(Anterior ao NOVO ENEM)

2 LD2 2015

Contextualizado e Problematizado (Posterior ao NOVO ENEM)

3 LD3 2015

4 LD4 2015

5 LD5 2015

Na análise dos dados, buscamos identificar modificações as quais o saber em

cena, equilíbrio químico é submetido. Os critérios de análise foram definidos a partir da discussão teórica acerca da noção de transposição didática (CHEVALLARD, 1991) e estão apresentados abaixo, a saber: Acréscimos: Informações adicionais incluídas no texto do saber e que não estão presentes na abordagem do saber científico no livro de referência, adicionados pela noosfera no processo de transposição didática; Supressões: Informações, ideias ou relações que são removidos pela noosfera durante a transposição didática; Deformações: Ocorrem quando o saber científico é modificado, se distanciando do significado científico, compartilhado pela comunidade científica; Criações didáticas: Estratégias e metodologias para abordagem de maneira diferenciada do saber científico, idealizadas para o contexto escolar durante a transposição didática. Elencamos a priori alguns tópicos, discriminados no quadro 2:

Quadro 2: Critérios de análise a priori para a transposição didática externa

Tópicos do conteúdo Equilíbrio Químico

Critérios para observações

Conceito de equilíbrio Equilíbrio dinâmico, reversibilidade das reações e abordagem da lei da ação das massas.

A Constante de equilíbrio Constante de equilíbrio em termos de concentração e pressão parcial (Kc e Kp), cálculos das constantes, relação entre as constantes Kc e Kp, conceito de

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Atividades e origem Termodinâmica da Constante de Equilíbrio e cálculos envolvendo a constante de equilíbrio.

Deslocamento de equilíbrio Princípio de Le Chatelier.

Para esta segunda etapa, buscamos analisar primeiras impressões sobre a transposição didática interna a partir de entrevista semiestruturada com dois professores de química que atuam no Ensino Médio. O primeiro licenciado em química e mestre em química dos produtos naturais, com 26 anos de experiência docente (P1) e o segundo licenciando em química, com quatro anos de experiência docente (P2).

O roteiro da entrevista é baseado em cinco questões relacionadas a gestão do conteúdo equilíbrio químico, para identificar indícios do trabalho do professor intramuros da sala de aula. O quadro 3 apresenta as perguntas e seus objetivos:

Quadro 4: Perguntas da entrevista e seus objetivos

Perguntas Objetivo

Quanto tempo, ou quantas aulas você dispõe para abordagem do conteúdo de Equilíbrio Químico?

Levantar informações acerca do tempo em que o saber fica em cena no jogo didático, baseado na dimensão temporal do trabalho docente em sala de aula.

Como você organiza a sequência de aulas sobre Equilíbrio Químico?

Observar a escolha e sistematização do conteúdo pelo professor.

Quais mudanças você pode citar entre o conhecimento científico e o conhecimento escolar no conteúdo de Equilíbrio Químico?

Identificar quais das modificações são reconhecidas e consideradas pelo professor em sua prática docente.

O que você considera mais importante no conteúdo equilíbrio químico, especificamente a abordagem do equilíbrio químico molecular?

Relacionar a dimensão temporal com a escolha dos conteúdos, na transposição didática interna.

Como você encara os processos de recontextualização e repersonalização dos saberes no conteúdo de Equilíbrio Químico?

Identificar as opções e ações dos professores quanto aos processos de recontextualização e repersonalização do saber intramuros da sala de aula.

As entrevistas foram realizadas em momentos distintos e gravadas em áudio. A partir das respostas, elencamos elementos que dão indícios da forma em que o saber em questão é gerido intramuros da sala de aula, o que fornece direcionamentos sobre o trabalho de transposição didática interna realizada pelo professor.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Apresentaremos os resultados divididos em duas partes, a saber: Análise da Transposição Didática Externa e Entrevista Semiestruturada com Professores de Química.

Análise da transposição didática externa do conteúdo de equilíbrio químico

A análise comparativa dos livros de Ensino Médio com o Livro de Referência aponta algumas modificações, elencadas e discutidos a seguir:

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Conceito de equilíbrio químico

A) O LR relaciona a natureza dinâmica do equilíbrio às velocidades da reação direta e inversa serem iguais. Apenas LD3 e LD4 mostram explicitamente a diferença entre equilíbrio dinâmico e equilíbrio estático. LD2 não declara explicitamente, mas relata que “...esse é um estado de constante compensação em dois sentidos, nos quais as taxas de transformações dos reagentes e produtos se igualam”. Nas demais obras a natureza dinâmica é explicada como o próprio equilíbrio químico, o que pode fazer com que o aluno entenda que qualquer reação química termine ao atingir o equilíbrio. Neste caso, consideramos uma supressão prejudicial.

B) Consideramos um acréscimo realizado por LD2 em relação ao LR ao mostrar que, assim como as reações químicas reversíveis, outros processos físicos também constituem equilíbrios dinâmicos, a saber: equilíbrio líquido/vapor em sistema fechado, dissolução de gases em líquidos e dissolução e cristalização de sólidos em fase líquida.

C) O LR relaciona o equilíbrio dinâmico à reversibilidade das reações, mostrando que as reações direta e inversa ocorrem com a mesma velocidade e explica a mudança da seta na equação química pelas setas duplas (chamadas na obra de “arpões”), que indicam o estado de equilíbrio. Todas as obras, com exceção de LD4 justificam o uso da seta dupla, indicando o estado de equilíbrio e mostrando que se trata de uma reação reversível. Mas, ainda em LD4, identificamos uma supressão prejudicial, pois a seta dupla aparece para demonstrar a equação de uma reação em equilíbrio, no entanto, não ocorre discussão sobre as reações diretas e inversas, nem sobre o que significa a dupla seta.

D) O LR relaciona a lei da ação das massas à uma expressão matemática que resume a composição de uma mistura de reação em equilíbrio. Além disso, relata como Cato Guldberg e Peter Waage obtiveram o mesmo valor de K, que ficou conhecida como constante de equilíbrio, mostrando que a lei de ação das massas resume esse resultado. Tais informações são suprimidas em todas as obras analisadas, o que nos faz considerar uma supressão de contexto histórico. Consideramos tal supressão prejudicial, pois traz o conceito sem seus precedentes históricos.

A constante de equilíbrio químico

A) LD1 só aborda a constante de equilíbrio em relação as concentrações em mol por litro, ou seja, caracterizando uma supressão prejudicial em relação a constante de equilíbrio em função das pressões parciais.

B) Embora apresente o fato de que líquidos puros e sólidos não são considerados para o cálculo da constante de equilíbrio, LD4 não apresenta uma explicação sobre o fato, apenas menciona dados termodinâmicos empíricos.

C) Observamos uma divergência na nomenclatura da constante de equilíbrio em relação às pressões parciais. O LR aborda apenas como K, e nas obras do ensino médio ela vem como Kp. Entendemos tal distinção como uma criação didática, que busca facilitar a percepção do estudante sobre a grandeza utilizada na constante, pois o Kp irá ajudar a lembrá-lo das pressões parciais.

D) Apenas o LR apresenta utilizações das constantes de equilíbrio na química, sendo considerada a ausência desta uma supressão em todas as obras do nível médio.

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E) Em quase todas as obras, exceto em LD1 e LD4, podemos ver a relação de Kc com Kp tomando por base a equação de estado dos gases ideias para originar uma única equação, o que caracteriza supressão nos demais livros.

F) Em LD3 é possível ver uma abordagem bem próxima do LR ao introduzir um tópico sobre o conceito de atividade, no qual se justifica a origem da constante de equilíbrio na termodinâmica, mas também ao mesmo tempo ela justifica que opta por fazer as deduções a partir da igualdade entre as taxas de desenvolvimento das reações direta e inversa. Aqui é possível notar uma criação didática. Ainda, destacamos que o uso das atividades não é regular nas obras do Ensino Médio, o que destaca um trabalho de transposição didática exclusivo do autor de LD3.

G) Apenas o LR explica a constante de equilíbrio como tendo sua origem na termodinâmica, o que nos fez considerar uma supressão positiva nas demais obras do Ensino Médio, pois trata-se de uma abordagem que exige pressupostos teóricos e matemáticos de maior complexidade, como os cálculos diferenciais e uma abordagem termodinâmica mais aprofundada. No entanto, consideramos a opção apresentada por LD3 interessante: abordar a origem termodinâmica da constante de equilíbrio, e não a cinética, mesmo que com deformações e supressões parciais.

H) Dentre os livros analisados, LD5 se assemelha ao livro de referência, fazendo distinção entre quociente reacional e a constante de equilíbrio, o que caracteriza supressão nas demais obras. LD5 denomina o quociente reacional como quociente de equilíbrio, mas com o mesmo significado utilizado no livro de referência: é um estágio no qual não se tem o equilíbrio ainda, ou seja, a reação caminha para o equilíbrio.

I) A utilização de uma tabela de dados para cada espécie envolvida no equilíbrio químico, sugerida no livro de referência, apenas é encontrada, com acréscimos, no LD3. Consideramos um movimento de supressão, que aponta uma convergência nos livros didáticos investigados para uma menor atenção a questões nas quais a concentração das espécies é conhecida fora da situação geral de equilíbrio, o que consideramos pouco interessante.

Deslocamento de Equilíbrio – Princípio de Le Chatelier

A) Em todas as obras analisadas foi possível perceber convergência com relação a definição do Princípio de Le Chatelier, como: “quando uma perturbação exterior é aplicada a um sistema em equilíbrio dinâmico, ela tende a se ajustar para reduzir ao mínimo o efeito da perturbação. ” Apenas LD1 explica que essa definição corresponde a uma extensão com referência aos equilíbrios, do princípio da ação e reação, no qual a alteração de um dos fatores (concentração, temperatura, pressão) representa uma “ação” sobre o sistema e o deslocamento representa uma “reação” do sistema. Consideramos aqui um movimento de acréscimo em relação ao LR.

B) As obras LD2, LD3, LD4 e LD5 trouxeram exemplos do cotidiano com relação ao princípio de Le Chatelier, o que consideramos um acréscimo, relacionado as características do novo Ensino Médio, que tem exigido cada vez mais essa relação dos conceitos científicos com o mundo material dos alunos. Podemos citar exemplos em LD3 (“A indústria química utiliza o conhecimento desse fenômeno para aprimorar a obtenção de diversos produtos de grande interesse como amônia, ácido nítrico, ácido sulfúrico, minimizando as perdas de reagentes e maximizando os lucros”) e LD5 (“Ao adicionar comprimido antiácido efervescente em água,

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forma-se depois de determinado tempo, um sistema em equilíbrio...quando se adiciona a esse sistema um ácido, observa-se a produção de mais bolhas de gás... isso quer dizer que o equilíbrio formado após a dissolução do comprimido foi perturbado”).

C) Em LD1 e LD3 identificamos uma criação didática, utilizada a fim de dar ênfase ao sentido do deslocamento, na qual podemos observar uma das setas duplas maior que a outra. Tal mecanismo entendemos como uma criação para facilitar a compreensão quanto ao sentido do deslocamento do equilíbrio pela adição ou remoção de reagente e produto sob diferentes situações.

D) O LR explica o efeito da concentração sobre o equilíbrio com base na termodinâmica, examinando os valores de Q e K. O LR aponta que “quando a composição de equilíbrio é perturbada pela adição ou remoção de um reagente ou produto, a reação tende a ocorrer na direção que faz com que o valor de Q torne-se novamente igual a K.” Tal abordagem se distancia bastante as obras do nível médio.

E) Com relação aos efeitos da pressão, em todas as obras analisadas foi possível observar uma abordagem bem semelhante ao LR. Existe uma única informação apenas tratada pelo LR, sendo assim considerada supressão nas obras do ensino médio: “a introdução de um gás inerte não afeta a composição em equilíbrio”. Essa declaração é de fato importante, pois para a maioria dos estudantes a adição de qualquer gás implica em deslocamento de equilíbrio, salvo as condições gerais, por exemplo, de mesmo volume gasoso.

F) Em LD3 e LD5 é explicado o fato apenas do catalisador acelerar a reação, e, por isso não desloca o equilíbrio. No entanto, o LR coloca uma justificativa para isso ocorrer, justificativa esta que não aparece nas demais obras, como: “Um catalisador aumenta a velocidade igualmente em ambos os sentidos da reação. Portanto, o equilíbrio dinâmico não é afetado. ” Essa justificativa esclarece o motivo pelo qual o catalisador não desloca o equilíbrio, sendo considerada uma supressão em todas as obras do Ensino Médio.

Análise da Transposição Didática Interna: Entrevista com os Professores

Apresentaremos os resultados acerca da entrevista semiestruturada, que possibilitou observar indícios do processo de transposição didática interna.

Q1. Quanto tempo, ou quantas aulas você dispõe para abordagem do conteúdo de Equilíbrio Químico?

“Umas 6 aulas para equilíbrio molecular, já que as aulas são geminadas é suficiente. ” (P1) “Na aula de equilíbrio químico... eu iniciei agora, são duas aulas geminadas, eu acredito que de três a quatro encontros que totalizam seis aulas ou 8 aulas são suficientes para tudo da parte de equilíbrio, da parte de... é.... tanto da parte das constantes, quanto da parte de deslocamento, né?! (...) (P2)

O tempo destinado ao conteúdo Equilíbrio Químico Molecular, foi bem próximo

para os dois professores entrevistados, em torno de 6 aulas. P2 revela que talvez precise de mais aulas, decorrentes do uso da apostila e excessivo foco na resolução de questões para o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Notamos que as escolhas em relação ao tempo de P2 estão fortemente influenciadas pelas diretivas da escola, com foco nos exames de seleção para o Ensino Superior (ENEM e vestibulares).

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Ensino e Aprendizagem (EAP)

Atentamos também para o tempo de aprendizagem dos alunos (CHEVALLARD, 1991). Alguns professores priorizam o tempo do aluno e caminham conforme o nível da turma, já outros seguem à risca o cronograma, mas não levam em consideração o que de fato o estudante consegue aprender. Pela fala de P2 é possível notar que ele tem essa preocupação, quando diz que está retomando com alguns assuntos para poder iniciar a abordagem do Equilíbrio Químico. Aqui observamos que o trabalho de P2 é influenciado pela percepção do tempo de aprendizagem dos estudantes, e não só pelo tempo de ensino e pelo tempo do professor (CÂMARA DOS SANTOS, 1997).

Q2. Como você organiza a sequência de aulas sobre Equilíbrio Químico?

“Eu vou com um conteúdo crescente, eu começo explicando a definição do que é equilíbrio químico, no caso, depois eu mostro a importância de se estudar equilíbrio químico, porque que eu devo estudar equilíbrio químico, daí... eu vou aumentando o grau de dificuldade, até chegar nas questões, ou nos conteúdos mais difíceis...” (P1) “Eu tenho o plano, né? (...) aí, vamos supor assim, nessa primeira aula eu dei a parte de equilíbrio, mostrei gráficos para eles de quando a reação tá no equilíbrio ou não, é. iniciei Kc, mas aí na próxima aula eu vou continuar com Kp, fazer exercícios, porque tem que fazer exercícios, né?! Aí na outra aula (...) eu falaria sobre deslocamento de equilíbrio. Aí eu iria com deslocamento de equilíbrio, e na quarta aula faria um experimento de deslocamento de equilíbrio.... Pronto, aí nessa quarta aula o experimento, a reflexão sobre o experimento... naquela abordagem que a gente sempre faz, e no caso, como eu já trabalho com essa parte no PIBID, quando eu levo algum experimento para lá, eu acabo fazendo a mesma coisa (....), é até uma forma de focar no ENEM, porque o ENEM quer isso, né?! (P2)

Observando a resposta de P1, não é fácil identificar a organização da sequência

de aulas, mas aparentemente ele busca trabalhar de forma contextualizada, seguindo uma dinâmica que é decorrente da sua experiência: começar com conceitos mais simples e ir gradualmente aumentando a dificuldade.

P2 descreve com maior riqueza de detalhes sua sequência de aulas e, com isso, é possível perceber que o professor atua de maneira autônoma em sala de aula. Tal opção parece importante, pois, apesar de haver toda uma programação curricular e das qualidades e limitações das apostilas, somente o professor, por estar diariamente com seus alunos, é que tem condições de avaliar o que se torna necessário ou desnecessário na sua abordagem em sala de aula. P2 ainda trabalha com experimentação, decisão que relaciona com sua vivência no PIBID.

Q3. Quais mudanças você pode citar entre o conhecimento científico e o conhecimento escolar no conteúdo de Equilíbrio Químico?

“Eu acho que ele se baseia é exatamente isso... é você saber adequar a linguagem científica que é uma linguagem que tem uma ferramenta matemática mais complexa, principalmente na área de físico-química, que você tem o uso de cálculos mais complexos, que para um aluno do Ensino Médio ele não tem essa ferramenta ainda para trabalhar, né? (P1) “Olha, eu lembro que quando a gente aprendeu constante de equilíbrio... que a gente viu essa constante de equilíbrio, foi uma coisa monstruosa, a gente tinha que aprender a deduzir a fórmula se não me engano, e também é.... os gráficos eram diferentes, se não me engano, tinha que descobrir alguma coisa usando derivada (....) E para eles não... simplesmente “engolem”... eu digo para eles, olha: Kc é produto

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sobre reagente, e eles “engolem” aquilo ali, então a diferença principal é essa. Para eles é o conteúdo pronto, e para gente, não! (P2)

Os dois professores têm consciência do processo de didatização que os saberes

são submetidos, evidentes quando da transposição didática para o saber escolar no Ensino Médio, e intrinsecamente aceitam, pelo fato dos estudantes não terem acesso as ferramentas necessárias para a compreensão de conceitos mais complexos.

Q4. O que você considera mais importante no conteúdo equilíbrio químico, especificamente a abordagem do equilíbrio químico molecular?

“Na parte de equilíbrio molecular eu não posso deixar de falar de deslocamento de equilíbrio, essa parte é essencial para eles. ” (P1) “Eu acho que é o deslocamento de equilíbrio... a constante de equilíbrio... tem alguns tópicos da constante de equilíbrio que são importantes. (...) eu acho essa parte mais importante porque é mais palpável, é a mais lógica porque assim... até então, se a gente for trabalhar o conteúdo de constante de equilíbrio eles vão estar aplicando uma fórmula, certo? (...). Aí pode trabalhar também recordando essa parte mais conceitual... com a parte de deslocamento de equilíbrio que eu acho que é a mais importante! ” (P2)

Observamos uma convergência na fala dos professores entrevistados com

relação ao conteúdo mais importante considerado por eles. Nesta escolha, entendemos que as possibilidades de contextualização e de exemplos, são bem maiores, e isso facilita também a dinâmica da aula em sala de aula. Na resposta de P2, recorremos a Marangon e Lima (2002, p.19), que afirmam que um determinado saber “só quando sai da disciplina e consegue contextualizar é que o educando vê ligação com a vida”.

Q5. Como você encara os processos de recontextualização e repersonalização dos saberes no conteúdo de Equilíbrio químico?

“Eu encaro em primeiro lugar com muito cuidado, muita atenção, e eu acredito que seja uma responsabilidade muito grande, porque você pegar um conteúdo, principalmente um conteúdo científico, e você contextualizar aquele conteúdo, né? E aplicar isso daí... é preciso que você tenha cuidado na hora que você vai fazer isso, para você não passar uma falsa informação daquele conteúdo para o aluno. ” (P1) “ É... essa parte inicial, como a gente falou é muito pura, é muito dura, digamos assim! E, como lá é uma escola muito simples com relação a parte científica... de você ter um laboratório estrutural (...). Eu sigo a sequência da apostila deles, mas eu não vou pelo que tem na apostila deles, eu pego os livros, até o Atkins mesmo, eu troco, né? Eu vou trocando palavras, vou comparando o que eles têm no cotidiano. Pronto, eu acho que na recontextualização eu poderia fazer nessa parte da abordagem do experimento, né? Da questão da situação problema, contextualizar... até esse exemplo que eu fiz do sabonete e da produção de sabão eu acho que chega a ser uma recontextualização. ” (P2)

Antes de realizar a pergunta, explicamos os processos de repersonalização e

recontextualização. Destacamos a ideia de vigilância epistemológica, que é essencial para que tais modificações não culminem por desfigurar de tal maneira o saber científico original, que o saber a ser ensinado deixe de ser fiel a ele, o que pode induzir certos obstáculos à aprendizagem.

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Em sua resposta, P1 se revela consciente da necessidade de atenção nesses processos. P2 argumenta com um enfoque mais para a recontextualização, e acredita realizar a contextualização quando leva práticas experimentais para sala de aula, ou simplesmente exemplos de questões mais contextualizadas.

Um problema que podemos observar na fala de P2 é a utilização do livro Princípio de Química, de Atkins e Jones, elaborado para o trabalho no Ensino Superior, e que não representa um texto do saber escolar. Esse problema já foi identificado por Simões Neto e Brito Menezes (2010), e é chamado de problema do professor, relacionado à situação em que os docentes tentam realizar sua própria transposição didática, utilizando livros do Ensino Superior e artigos científicos nas turmas do Ensino Médio.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

As transformações que o saber é submetido da academia, quando se apresenta na forma de saber científico, até as escolas, na manifestação do saber a ser ensinado e saber ensinado, são deveras perceptíveis na abordagem do conteúdo de Equilíbrio Químico. Percebemos que o processo de transposição didática externa para o conteúdo de Equilíbrio Químico nos mostrou muitas supressões, mas do que qualquer outra modificação do saber, resultado que converge com os trabalhos realizados para reações orgânicas (SILVA, SILVA e SIMÕES NETO, 2015a), termoquímica (SILVA, SILVA e SIMÕES NETO, 2014) e cinética química (SILVA, SILVA e SIMÕES NETO, 2015b). Contudo, foi possível observar também acréscimos e deformações, além da ocorrência de criações didáticas. Essas modificações são inevitáveis na transposição didática do saber, uma vez que a natureza do saber é modificada, para que seja mais didático e portador de uma intencionalidade de ensino.

Durante a entrevista foi possível observar como a relação do professor ao saber influencia a forma como ele vai ensinar esse saber, ou seja, na elaboração do novo texto do saber. O tempo que cada conceito fica em cena no jogo didático é associado a essa relação: se for um tópico no qual o professor tem maior conhecimento, mais exemplos surgirão, mais discussões serão realizadas e o trabalho intramuros de sala de aula se constitui de forma diferente (CÂMARA DOS SANTOS 1997).

Um outro ponto identificado na entrevista a contextualização não é simples de ser realizada para todos os conceitos relacionados ao conteúdo: percebemos que os conceitos de natureza científica mais complexa e/ou conceitos que exigem maior conhecimento de matemática, são mais difíceis de serem recontextualizados, e isso pode levar a uma abordagem mais asséptica do conteúdo. No entanto, quando o professor se depara com conceitos de mais fácil contextualização, fica mais livre para exercitar a sua criatividade em sala, com exemplos, situações-problema, dinâmicas, experimentos, notícias da atualidade e outras estratégias para explorar aspectos da Química do cotidiano.

Diante do exposto, vimos que a noção de transposição didática por ser uma ferramenta para analisar os processos de modificação do saber. Ainda, possibilita aos professores que recentemente concluíram a formação inicial um olhar sobre quais modificações eles enfrentarão ao iniciarem suas carreiras docentes com um público que deve ser apresentado o saber escolar, ou seja, produto da transposição didática externa.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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