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junho 2008 vol. 5 nº 2 Eqüidade e soberania nos mercados Eqüidade e soberania nos mercados

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junho2008vol. 5

nº 2

Eqüidade esoberania

nos mercados

Eqüidade esoberania

nos mercados

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2 Agriculturas - v. 5 - no 2 - junho de 2008

ISSN: 1807-491X

edito

rial

Nv. 5, nº 2

(corresponde ao v. 24, nº 1 da Revista Leisa)

Revista Agriculturas: experiências em agroecologia é umapublicação da AS-PTA – Assessoria e Serviços a Projetosem Agricultura Alternativa –, em parceria com a Funda-ção Ileia - Centre of Information on Low External Input

and Sustainable Agriculture.

Rua Candelária, nº 9, 6º andarCentro, Rio de Janeiro/RJ, Brasil 20091-020

Telefone: 55 (21) 2253-8317 Fax: 55 (21) 2233-8363E-mail: [email protected]

www.aspta.org.br

Fundação IleiaP.O. Box 2067, 3800 CB Amersfoort, Holanda.

Telefone: +31 33 467 38 70 Fax: +31 33 463 24 10www.ileia.info

Conselho EditorialEugênio Ferrari

Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata, MG - CTA/ZMJean Marc von der Weid

AS-PTAJosé Antônio Costabeber

Ass. Riograndense de Empreendimentos de Assistência Técnica eExtensão Rural – Emater, RS

Marcelino LimaCaatinga/Centro Sabiá, PEMaria Emília Pacheco

Federação de Órgãos para a Assistência Social e Educacional Fase, RJMaria José Guazzelli

Centro Ecológico, RSMiguel Ângelo da Silveira

Embrapa Meio AmbientePaulo Petersen

AS-PTARomier Sousa

Grupo de Trabalho em Agroecologia na Amazônia - GTNASílvio Gomes de Almeida

AS-PTA

Equipe ExecutivaEditor Paulo Petersen

Editor convidado para este número Silvio Isopo PortoProdução Executiva Adriana Galvão Freire

Pesquisa Adriana Galvão Freire e Paulo PetersenBase de dados de subscritores Nádia Maria Miceli de Oliveira

Copidesque Rosa L. PeraltaTradução Maria José Guazzelli e Gabriel Fernandes

Revisão Gláucia CruzFoto da capa Xirumba

Projeto gráfico e diagramação I GraficciImpressão Holográfica

Tiragem 5.300

Essa edição contou com o apoio daCompanhia Nacional de Abastecimento (Conab)

A AS-PTA estimula que os leitores circulem livremente os artigos aquipublicados. Sempre que for necessária a reprodução total ou parcial de

algum desses artigos, solicitamos que a Revista Agriculturas: experiênciasem agroecologia seja citada como fonte.

o atual momento em que a crise mundial de alimen-tos ganha destaque nos noticiários e nos debates so-bre desenvolvimento rural, as grandes corporaçõesdo agronegócio pressionam governos nacionais para

que sejam implantadas políticas voltadas à intensificação produ-tiva nos moldes da Revolução Verde. Valendo-se dos mesmosargumentos empregados há quarenta anos, buscam legitimar suasnovas tecnologias perante a opinião pública, apresentando-as comoinstrumentos indispensáveis à superação da crise. Receitam maisdo mesmo, como se a subordinação da agricultura aos grandescomplexos agroindustriais não houvesse atuado como fator deci-sivo para o acirramento das disparidades sociais e para o aumen-to da insegurança alimentar.

A expansão das grandes monoculturas, viabilizadatecnicamente pela modernização agroquímica, juntamente comos acordos de livre comércio celebrados nas últimas três décadasde neoliberalismo, acentuaram o perfil agroexportador de paísesdo Terceiro Mundo que, com isso, assistem ao desmantelamentode suas já frágeis capacidades de abastecimento alimentar autô-nomo. É nesse contexto histórico que o princípio da soberaniaalimentar ganha relevância política. Aplicado desde a escala localaté a nacional, ele reafirma que as comunidades/nações devemter resguardado o direito de produzir e distribuir sua própria ali-mentação independentemente das oportunidades de mercado.Reforça também que os alimentos não podem ser tratados comocommodities nos mercados internacionais, o que favorece a cria-ção de ambientes econômicos propícios para que o capitalespeculativo influencie seus preços, colocando em risco o abaste-cimento alimentar das populações mais empobrecidas.

A soberania alimentar traduz-se, nesse sentido, naassociação da autonomia tecnológica nos processos de produ-ção com o controle local sobre os mecanismos de distribuiçãoe consumo dos alimentos. Como enfoque científico, a Agro-ecologia provê a primeira dessas condições. Fundamentada nomanejo regenerativo e nos serviços ambientais da biodiver-sidade, a abordagem agroecológica é capaz de assegurar pro-duções elevadas e diversificadas com baixa necessidade doaporte de insumos e conhecimentos externos.

A diversificação dos canais de comercialização,por sua vez, apresenta-se como a contrapartida nos mercadosdos processos de diversificação dos sistemas produtivosestruturados segundo os princípios da Agroecologia. Ao com-binar o acesso a mercados locais com vendas em circuitoscomerciais de produtos específicos, as famílias agricultorasreduzem a vulnerabilidade econômica de seus sistemas produ-tivos e asseguram maiores margens de manobra para optarementre diferentes alternativas disponíveis de comercialização.Dessa forma, adquirem maior poder de negociação nos circui-tos comerciais, condição necessária e insubstituível para queas relações de troca nos mercados sejam mais justas.

Esta edição da Revista Agriculturas apresenta inicia-tivas concretas que situam a ampliação e a multiplicação de mer-cados para a produção agroecológica no contexto da luta pelasoberania e segurança alimentar e nutricional. Alguns artigosmostram estratégias de grupos e organizações envolvidos na pro-moção da Agroecologia para se inserir nos mercados locais, valo-rizando a capacidade que esses circuitos comerciais de proximida-de e de reciprocidade entre produtores e consumidores têm paraabsorver grande variedade de gêneros produzidos nos sistemasecológicos. Outros se referem ao desafio da construção de rela-ções econômicas mais justas no comércio realizado em cadeiasprodutivas especializadas. Algumas das experiências ressaltamtambém o papel importante que políticas de Estado, em especialas compras governamentais, podem exercer no sentido de viabilizaro acesso aos mercados para famílias agricultoras que orientamsua atividade econômica essencialmente à produção alimentar.

O editor

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Agriculturas - v. 5 - no 2 - junho de 2008 3

sum

ário

Publicações pág. 29

Editor convidado Silvio Isopo Porto pág. 4

Agroecologia em Rede pág. 31

Artigos

Trajetória e desafios da construção de mercados locais pág. 18para a agricultura ecológica em Porto União (SC) eUnião da Vitória (PR)Aires Niedzielski, Anésio da Cunha Marques e Luis Cláudio Bona

Algodão agroecológico no comércio justo: fazendo pág. 37a diferençaPedro Jorge B. F. Lima

Justo até a última gota: desafios ao mercado justo pág. 32Eric Holt-Giménez, Ian Bailey e Devon Sampson

Sistemas Participativos de Garantia possibilitam pág. 30certificação alternativaTegan Renner

Circuito Sul de circulação de alimentos da Rede Ecovida pág. 26de AgroecologiaNatal João Magnanti

Promovendo feiras agroecológicas no semi-árido pág. 23brasileiro: a experiência do Projeto Dom Helder CâmaraFelipe Jalfim, Espedito Rufino, Fábio Santiago e Mª Sarah C. Vidal

O Programa de Aquisição de Alimentos como pág. 14instrumento revitalizador dos mercados regionaisMarcos César Pandolfo

O mercado institucional como instrumento para o pág. 7fortalecimento da agricultura familiar de base ecológicaCláudia Job Schimitt e Leonardo Alonso Guimarães

pág. 7

pág. 14

pág. 18

pág. 23

pág. 26

pág. 37

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4 Agriculturas - v. 5 - no 2 - junho de 2008

edito

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Acesso amercados:

desafios e oportunidades

E sta edição da Revista Agriculturas aborda o tema do acesso aos mercados porparte de empreendimentos de base familiar e agroecológica. Apresenta inici-ativas coletivas que, por meio de variadas estratégias, combinam a valoriza-ção econômica da agrobiodiversidade com abordagens mais amplas relacio-

nadas ao desenvolvimento sustentável e à promoção de processos de inclusão social e de segurançaalimentar e nutricional.

Por inúmeras razões e explicações distintas para cada situação, podemos afirmar que aparticipação das famílias agricultoras e de suas organizações nos mercados está muito aquém de seupotencial. Ao acompanharmos diferentes iniciativas de inserção da produção de base familiar nosmercados, mesmo aquelas de empreendimentos mais consolidados, é possível perceber a existênciade algumas dificuldades comuns a todas. Dentre elas, salienta-se o enfrentamento ao processo demassificação do modelo de produção e consumo que favoreceu a enorme concentração de poder nasmãos de poucas corporações transnacionais que atuam nas áreas de insumos agrícolas, processamentoe venda ao varejo.

Para fazer frente ao crescente poder econômico dessas corporações, esses empreendi-mentos de base familiar não têm encontrado o respaldo necessário no Estado, que tem se mostradodespreparado para responder às demandas da agricultura familiar, camponesa e dos povos ecomunidades tradicionais, uma vez que não dispõe de instrumentos jurídicos, normativos, fis-cais, tributários e sanitários que contemplem as especificidades desses setores.

Em geral, suas organizações se encontram desprovidas de equipe dedicada e capaci-tada para a gestão econômica, administrativa e financeira dos empreendimentos. Além disso,costumam se dedicar simultaneamente ao campo de ação política e à atividade comercial, o quemuitas vezes compromete o desempenho econômico.

No Brasil, o tema da comercialização de produtos da agricultura familiar tem ganhadorelevância nos últimos cinco anos. Em grande medida, esse fato se deve à recriação do ConselhoNacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), pelo Governo Federal, em 2003. Essefórum permanente de debate, elaboração e articulação das diferentes ações, programas e políticasde segurança alimentar e nutricional permitiu qualificar a atuação do Estado, bem como as pautas denegociação dos movimentos sociais com o governo em torno dessa temática. O Programa de Aqui-sição de Alimentos (PAA) e, mais recentemente, a inclusão de produtos agroextrativistas ou dasociobiodiversidade na Política de Garantia de Preços Mínimos (PGPM) têm sido instrumentosimportantes para orientar a ação do Estado nesse campo. Representam grande importância estraté-gica nesse momento em que a crise mundial de alimentos se evidencia, já que podem responder emparte ao desafio de aumentar a disponibilidade de alimentos e de fortalecer os circuitos locais eregionais de abastecimento.

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O artigo O mercado institucional como instrumento para o fortalecimento da agriculturafamiliar de base ecológica apresenta uma abordagem ampla da problemática da inserção qualificadae abrangente no mercado por parte da agricultura de base camponesa e familiar. Chama a atençãopara a existência de duas lógicas distintas: uma que vê a globalização e o poder das transnacionaisnos mercados como fatores irremediáveis, enquanto a outra acredita que é possível transformar asrelações de produção e de consumo, tendo a Agroecologia como referencial orientador dessa mu-dança. O texto apresenta ainda o mercado institucional como meio para a construção de espaçosalternativos de comercialização, em especial para alimentos ecológicos. A partir de um caso sistema-tizado na região de Pelotas (RS), ilustra e detalha o processo de construção do PAA, seus avançose as inovações institucionais ocorridas no Estado com a sua implementação.

O artigo seguinte apresenta outra iniciativa no Rio Grande do Sul, entre muitas que estãoem curso no Brasil, onde fica demonstrado como a gestão do PAA serviu como instrumentorevitalizador dos mercados regionais. Seu autor explica como o programa foi capaz de promover ofortalecimento da Cooperativa Agropecuária dos Agricultores Familiares de Tenente Portela(Cooperfamiliar), em particular ao articular agricultores(as) familiares e indígenas associados à coo-perativa com organizações de consumidores beneficiárias. Entre outros aspectos ressaltados daexperiência, aborda-se o fato de que o PAA permitiu que as comunidades indígenas passassem dereceptoras de cestas básicas para fornecedoras de alimentos para programas sociais do Estado.Desta forma, propiciou a inserção digna e respeitosa da comunidade indígena na sociedade local apartir do estabelecimento de relações sociais baseadas em uma percepção renovada, superandopreconceitos e reconhecendo os indígenas como cidadãos integrados na economia local e regional.

Além disso, a entrega dessa produção a famílias em situação de insegurança alimentar enutricional incentivou o aumento e a diversificação da produção, o fortalecimento de variadoscanais de comercialização local, a revitalização de agroindústrias familiares, a afirmação daAgroecologia como matriz tecnológica, a promoção de relações de gênero mais justas e a criação deum sistema de controle social, a partir da implantação de um Comitê Gestor Regional que fomentao aprimoramento técnico e político das famílias e organizações envolvidas.

O artigo Trajetória e desafios da construção de mercados locais para a agricultura ecoló-gica em Porto União (SC) e União da Vitória (PR) ressalta a articulação interinstitucional geradacom a implementação de feiras ecológicas nas sedes dos dois municípios. Pontua a importância doinício do processo de organização a partir da produção das sementes crioulas e da publicidade dotrabalho que estava em curso na região por meio da realização das feiras de sementes. Além de seremespaços de comercialização e de reprodução cultural, as feiras representam uma das escolas maisqualificadas para o aprendizado sobre comercialização. A relação direta com os consumidores propi-cia uma melhor compreensão sobre suas exigências, ao mesmo tempo em que favorece a construçãode laços de fidelidade e de credibilidade sobre a qualidade ecológica dos alimentos comercializados,bem como a ampliação da consciência ambiental relacionada aos processos de produção e de consu-mo dos alimentos.

Por outro lado, a experiência relatada evidencia que muitas vezes as feiras não são capa-zes de escoar toda a produção das famílias agricultoras, sobretudo quando elas passam a produzirvolumes maiores e mais diversificados. É neste sentido que os autores chamam a atenção para anecessidade de abertura de outros canais de comercialização.

O artigo sobre as feiras agroecológicas apoiadas pelo Projeto Dom Helder Câmara seguea mesma linha de argumentação. Essas feiras são promovidas por uma rede que envolve 50 organiza-ções não-governamentais (ONGs) e cerca de 12 mil famílias agricultoras, de oito territórios rurais daregião. Destaca-se nesse projeto o papel exercido pelas ONGs que prestam assessoria técnica pauta-da por uma metodologia que combina o enfoque agroecológico com processos de aprendizagemparticipativa em que se estabelecem relações horizontais entre o saber técnico e o saber popular queé criado e recriado a partir da experimentação prática.

Ao continuar na leitura da revista, percorremos o Circuito Sul de circulação de alimentosda Rede Ecovida de Agroecologia, projeto que articula núcleos da rede dos três estados do Sul do

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Brasil e de São Paulo para o intercâmbio de produtos agroecológicos com base nos princípios daeconomia solidária. Os grupos que integram o circuito criaram uma rede de estações-núcleo e subestaçõesresponsável pelo planejamento e monitoramento das atividades, bem como pela negociação dos pre-ços praticados. Uma carta de princípios orienta procedimentos e define os valores éticos adotados narede. Entre as idéias inovadoras apresentadas por essa experiência, destaca-se o emprego mínimo derecursos financeiros nas operações de comercialização realizadas entre as estações, sendo estes utiliza-dos apenas para cobrir as diferenças de valor monetário entre os produtos trocados.

O artigo que trata do mercado justo do café a partir de experiências desenvolvidas naAmérica Central e no México apresenta uma importante reflexão sobre os canais de comercializaçãoque vêm se estabelecendo mundialmente com a pretensa intenção de constituir relações justas esolidárias, a partir da valorização do público envolvido, da qualidade e da procedência geográfica doproduto comercializado sob o rótulo do mercado justo. A grande questão levantada no texto refere-se ao fato de que a bandeira desse mercado vem sendo apropriada pelas grandes corporaçõestransnacionais, nesse caso específico, pelas grandes tradings de comércio do café. Os autores defen-dem a visão de que os alimentos não podem ser tratados como mercadorias, ainda mais nos proces-sos que surgiram para, em princípio, refutar as relações tradicionais de mercado. A constituição doscircuitos alternativos deve ser realizada por dinâmicas que assegurem autonomia às organizaçõessociais e que permitam estabelecer relações estratégicas e eqüitativas para a construção de ummundo melhor – ético, humano, democrático, ambientalmente sustentável e economicamente des-centralizado.

Já o texto sobre o mercado justo do algodão agroecológico demonstra como foi possívelestabelecer outra relação de mercado pautada pela economia solidária e orientada para romper como modelo de produção de algodão implantado no Brasil a partir dos anos 1990, que excluiu aagricultura familiar do processo produtivo, seja no Nordeste, onde a experiência relatada vem sendodesenvolvida, seja no Paraná ou em São Paulo. A iniciativa apresentada revela que, mesmo sem oapoio da pesquisa pública, foi possível desenvolver um sistema de produção alternativo ao modeloinsumista (de uso intensivo de insumos) do agronegócio, que só se reproduz com base na altadependência de subsídios governamentais. Cabe salientar que, segundo dados da Companhia Nacionalde Abastecimento (Conab), somente nos últimos cinco anos, a cultura do algodão carreou doscofres do governo federal mais de R$ 1,38 bilhão para assegurar o escoamento da produção combase nos Preços Mínimos. Outro aspecto apresentado no artigo refere-se à liberalização dostransgênicos no Brasil. Os riscos de contaminação tornam-se ainda mais iminentes já que não foramdefinidas regras para o plantio do algodão transgênico, deixando altamente vulneráveis os produto-res ecológicos e convencionais desse produto.

O conjunto das iniciativas aqui publicadas traduz, cada uma ao seu modo, estratégias ealternativas construídas pela experimentação e forjadas por um processo de conquistas, acertos edesacertos que permitiram acumular conhecimento técnico e empírico a partir da sua inserção nomercado.

Finalmente, identifica-se que a falta de arcabouço institucional apropriado que permita aarticulação dos instrumentos de política agrícola – como crédito, seguro, assessoria técnica, forma-ção e capacitação, comercialização e fortalecimento institucional – e seu ajuste às especificidadesda agricultura familiar, dos assentados da reforma agrária e dos povos e comunidades tradicionaispermanece como uma das principais dificuldades encontradas no âmbito do Estado para que expe-riências como as aqui relatadas se multipliquem e se expandam.

Sílvio Isopo PortoAgrônomo, ocupa a diretoria de logística e gestão empresarial da

Companhia Nacional de Abastecimento (Conab)e coordena o PAA na Conab

[email protected]

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Agriculturas - v. 5 - no 2 - junho de 2008 7

ste artigo buscarefletir acerca doslimites e poten-

cialidades do mercado institu-cional enquanto instrumento defortalecimento da agricultura cam-ponesa e familiar de base ecológica.Tem como referência a experiên-

O mercado institucionalcomo instrumento para o

fortalecimento da agriculturafamiliar de base ecológica

Cláudia Job Schimitt e Leonardo Alonso Guimarães

E cia desenvolvida pelo Programa deAquisição de Alimentos (PAA),criado em 2003, considerando tan-to a sua implementação, em nívelnacional, como sua operaciona-lização em um contexto regionalespecífico, a metade sul do RioGrande do Sul.

Sede da COOPAR em São Lourenço

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O lugar dos mercados nofortalecimento de uma agriculturade base ecológica

A discussão acerca do lugar dos mercados noprocesso de fortalecimento da agricultura de base ecológicaé marcada por inúmeras controvérsias. Ainda que talvez cor-rendo o risco de simplificar as diferentes posições, destaca-mos pelo menos duas principais correntes. Em um pólo,estão aqueles que percebem a globalização do sistemaagroalimentar como um modelo que “veio para ficar” e acre-ditam na necessidade de se adaptar, da melhor maneira pos-sível, às regras de um mercado de dimensões planetárias,altamente concentrado e onde os padrões de qualidade sãocrescentemente normatizados. Nesse sentido, a certificação(e, junto com ela, o chamado prêmio orgânico), a ênfase noacesso aos mercados de exportação e às prateleiras dos gran-des supermercados e a regulação governamental como for-ma de garantir a identidade do produto orgânico, como vemocorrendo no Brasil, são entendidos como único caminhocapaz de assegurar a viabilidade econômica de uma agricul-tura ambientalmente sustentável.

Para os camponeses e agricultores familiares,resta como opção se ajustar às regras de um mercadocujos índices de crescimento (entre 15 e 20% ao ano)aumentam na mesma medida e rapidez com que ocorre oenfraquecimento da capacidade de influência dos agri-cultores e comunidades de consumidores frente ao podercada vez maior das grandes empresas que atuam no co-mércio varejista. Em 2004, os supermercados já eram res-ponsáveis por 40% das vendas de produtos orgânicos naAlemanha, 49% nos Estados Unidos, 80% na Argentinae na Inglaterra e 85% na Dinamarca (Scialabba, 2005).No Brasil, em 2001, as exportações absorviam 70% dovolume total de produtos orgânicos certificados. Pesqui-sa realizada em 1999 junto a agricultores certificadoscomo orgânicos do estado do Rio de Janeiro, mostrava,já naquele momento, que o grande setor varejista absor-via 73% do valor anual comercializado por esses produto-res em frutas e olerícolas (Fonseca e Campos, 2008).

Entretanto, no outro extremo, encontram-seaqueles que defendem que é possível transformar as rela-ções de produção, distribuição e consumo dominantesno atual sistema agroalimentar, incorporando, nesseredesenho, não apenas variáveis relacionadas à susten-tabilidade ambiental dos sistemas produtivos, mas tam-bém valores éticos, sociais e culturais. Princípios comojustiça social, soberania alimentar, solidariedade, auto-nomia, respeito à diversidade cultural, entre outros, e suatradução prática do ponto de vista das relações sociaisque permeiam a produção e o consumo, são afirmadoscomo dimensões-chaves do processo de transição parauma agricultura de base agroecológica.

As feiras de produtos ecológicos, as coopera-tivas de consumo e a entrega direta de cestas de alimen-

tos são alguns exemplos de iniciativas que buscam redu-zir a distância entre produtores e consumidores, valori-zando circuitos locais de comercialização e reforçandoformas associativas e comunitárias de organização social.Configuram-se, nessa perspectiva, como formas de resis-tência frente a uma racionalidade de mercado que distan-cia cada vez mais a produção e comercialização de produ-tos agrícolas dos processos ecológicos e sociais que lhesdão sustentação em nível local.

É importante ter presente que as percepçõesem relação à forma como essas estratégias de resistência searticulam, ou não, com um movimento mais amplo de cons-trução de alternativas econômicas emancipadoras em dife-rentes escalas – regional, nacional e global – variam bas-tante. É preciso lembrar, entretanto, que a prática muitasvezes aproxima aqueles que acreditam na integração com-petitiva da produção ecológica ao mercado global e os quedefendem uma transformação mais radical na organizaçãoatual do sistema agroalimentar. Ao mesmo tempo, é nessecontexto que se revelam os inúmeros conflitos e tensio-namentos presentes na construção de formas alternativasde produção e comercialização que buscam se contraporao modelo dominante.

As iniciativas de comercialização de produtosecológicos fornecidos por agricultores familiares para omercado institucional introduzem novos elementos nodebate sobre o lugar dos mercados na transição para umaagricultura de base ecológica. Provocam também umareflexão acerca do papel do Estado na reestruturação doscircuitos de produção, distribuição e consumo de alimen-tos com base em princípios de justiça social e sus-tentabilidade ambiental.

Agricultura familiar e o mercadoinstitucional no Brasil

No Brasil, a comercialização de produtos daagricultura familiar por meio do mercado institucional éum fenômeno relativamente recente. As primeiras expe-riências dessa natureza foram localizadas e, muitas vezes,descontínuas no tempo, desenvolvidas por governos mu-nicipais e estaduais interessados em incentivar a agricul-tura familiar e a produção local de alimentos.

Ações desse tipo foram implantadas, antes de2003, nos municípios de Belém (PA), Hulha Negra (RS),Rio Branco (AC), entre outros, bem como pelos gover-nos estaduais do Rio Grande do Sul e do Amapá. Algu-mas delas já tinham como objetivo incentivar a produçãoe o abastecimento de produtos ecológicos, como, porexemplo, a experiência piloto de merenda ecológica de-senvolvida pelo governo do estado do Rio Grande do Sul,durante a gestão de Olívio Dutra. Outras mantinham umfoco mais centrado na produção local e/ou familiar.

A criação do PAA no âmbito das ações do Pro-grama Fome Zero trouxe uma série de inovações impor-

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tantes nesse campo.1 Um primeiro elemento a ser destacadoé o fato de que a Lei 10.696, que cria o PAA, autoriza adispensa de licitação na aquisição de produtos da agricultu-ra familiar. No texto da lei a dispensa é definida nos seguin-tes termos: (i) os produtos deverão ser adquiridos de agri-cultores familiares enquadrados no Programa Nacional deFortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf); (ii) essasaquisições têm por finalidade “incentivar a agricultura fami-liar, compreendendo ações vinculadas à distribuição dessesprodutos a pessoas em situação de insegurança alimentar eà formação de estoques estratégicos”; (iii) para que haja adispensa da licitação é necessário que os preços de aquisiçãonão sejam superiores aos praticados nos mercados regionais.Abriu-se com isso uma exceção aos complexos procedimen-tos de aquisição estabelecidos pela Lei 8.666 (Lei de Licita-ções e Contratos Administrativos) que praticamenteinviabilizava o acesso da grande maioria dos agricultores fa-miliares aos mercados institucionais.

Outro aspecto importante na formulação doPAA é o fato de que a Lei 10.696 e seu decreto de regula-mentação permitem que as aquisições sejam feitas com baseem preços de referência que devem levar em conta “as dife-renças regionais e a realidade da agricultura familiar”. Trata-se, aqui, de mais uma inovação, considerando que a Políticade Garantia de Preços Mínimos, criada em 1945 e reestru-turada na década de 1960, sempre utilizou mecanismos deaquisição de caráter universal, atendendo, oficialmente, aoconjunto dos produtores rurais, mas, na verdade, subme-tendo todos eles aos mesmos tipos de exigências na hora dacomercialização. Por esse motivo, na grande maioria doscasos, esses instrumentos só conseguiam beneficiar médiose grandes produtores. Ao romper com essa tradição, o PAAdirige suas ações para a agricultura familiar, contemplando,sob tal designação, camponeses, agricultores familiares, as-sentados e acampados da reforma agrária, extrativistas,quilombolas, pescadores artesanais, atingidos por barragense comunidades indígenas.

O programa começou trabalhando com um li-mite de R$ 2,5 mil ao ano por família. Em 2006 esse limitefoi ampliado para R$ 3,5 mil, sendo que o Programa doLeite, um mecanismo específico do PAA destinado à com-pra e distribuição de leite nos estados do Nordeste, nortede Minas Gerais e do Espírito Santo, adota esse valor parao período de um semestre.

Os produtos comprados pelo governo, pormeio de diferentes mecanismos, são distribuídos a pro-gramas sociais, de caráter governamental ou não-gover-namental. Podem ainda ser destinados à formação de esto-ques públicos, sendo posteriormente repassados a bancos

de alimentos, doados a instituições assistenciais, distribuí-dos em cestas de alimentos a grupos sociais em situação derisco alimentar ou vendidos a pequenos criadores e peque-nas agroindústrias. Parte desses produtos é distribuída, tam-bém, para escolas, como um complemento ao atendimentoque já é prestado aos estudantes por meio do ProgramaNacional de Alimentação Escolar (PNAE). O excedente,que não consegue ser encaminhado para os programas soci-ais, é comercializado pelo governo em leilões públicos.

No período entre 2003 e 2005, foram investidospor meio do PAA aproximadamente R$ 735 milhões, aten-dendo a um universo de 240 mil famílias de agricultores fa-miliares (atuando como fornecedores), em 25 estados dafederação, e mais de 7 milhões de pessoas em situação deinsegurança alimentar. Somente no ano de 2006, por meiodo mecanismo de compra com doação simultânea2, foramaplicados R$ 474,85 milhões na compra de 421.525 tonela-das de alimentos produzidos por 143.011 famílias de agri-cultores familiares, beneficiando 10,7 milhões de pessoasem situação de insegurança alimentar.

Em que pese o grande alcance social e geográ-fico já obtido pelo programa, as organizações da socieda-de civil e o próprio Conselho Nacional de Segurança Ali-mentar (Consea) têm chamado atenção que existe umagrande demanda ainda não atendida por conta da insufi-ciência dos recursos alocados a esse fim pelo governo fe-deral. De fato, os movimentos sociais têm reivindicadoque, para responder a essa demanda reprimida, os recur-sos do programa deveriam girar em torno de oitocentosmilhões a um bilhão de reais por ano.

A recente publicação do Decreto 6.447/2008,que autoriza a dispensa de licitação para a compra deprodutos agropecuários com recursos do PNAE, repre-sentou um importante avanço. Essa medida, que já vinha

1 O PAA é operacionalizado pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) com recursos do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e do Ministériodo Desenvolvimento Agrário (MDA). É também implementado por estados e municípios com recursos do MDS. O acompanhamento das ações do programa é realizado por umgrupo gestor, coordenado pelo MDS e integrado por representantes de mais quatro ministérios: MDA, Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) – representadopela Conab, Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MP) e Ministério da Fazenda (MF).2 A compra com doação simultânea inclui os mecanismos de Compra Antecipada Especial da Agricultura Familiar (CPR Doação), operacionalizado pela Conab diretamente comas organizações de agricultores, e Compra Direta Local da Agricultura Familiar, operacionalizado pelo MDS por meio de convênios com governos estaduais e municipais. Os produtoscomprados pelo governo são imediatamente doados a programas sociais governamentais e não-governamentais.

Produtos ecológicos distribuídos através do PAA

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sendo reivindicada há vários anos por organizações dasociedade civil, abre perspectivas efetivas para que agri-cultores familiares e suas organizações econômicas rom-pam com a quase exclusividade das empresas privadas noacesso ao mercado da merenda escolar que, em 2007,movimentou R$ 1,6 bilhões.

O PAA e o estímulo à agriculturade base ecológica

Ainda que o PAA tenha como objetivo central aaquisição de produtos da agricultura familiar e não necessa-riamente de produtos ecológicos, o formato adotado peloprograma, sobretudo no caso de alguns de seus mecanis-mos, como a compra com doação simultânea, tem estimula-do de forma bastante positiva as iniciativas locais de produ-ção baseadas nos princípios da Agroecologia.

Um primeiro aspecto a ser ressaltado nesse sen-tido é que as normas do programa asseguram que os pro-dutos ecológicos sejam adquiridos com um acréscimo deaté 30% sobre os preços de referência. Mas esse estímulonão seria tão eficaz se a ele não fossem combinados outroselementos igualmente importantes para que processoslocais de transição agroecológica fossem estimulados.

Um desses elementos combinados vem do fatode o programa viabilizar a comercialização de grande diversi-dade de produtos, bem como a estruturação de circuitoslocais e regionais de distribuição de alimentos que anterior-mente não existiam. A tabela 1 apresenta algumas categori-as dos produtos adquiridos por meio do mecanismo CPRDoação. Uma análise mais detalhada das informações dispo-níveis permite observar que a listagem de produtos adquiri-dos é ainda maior já que, em alguns casos, uma única cate-goria, por exemplo, sucos, abrange na prática um conjuntoainda mais diversificado de produtos, ou seja, vários tipos desucos feitos com diferentes espécies de frutas.

É importante observar, no entanto, que essefator de estímulo à diversidade se torna extremamenterestrito em alguns outros mecanismos do programa. Amodalidade Incentivo à Produção e ao Consumo do Lei-te, por exemplo, concentra suas ações unicamente nadistribuição de leite de vaca e de cabra, por meio de con-vênios estabelecidos pelo MDS com governos estaduaisnos estados do Nordeste e em Minas Gerais. No ano de2006 esse mecanismo absorveu aproximadamente 50%dos recursos investidos pelo MDS no PAA.

A compra e doação de sementes de variedadescrioulas, tradicionais ou localmente adaptadas, bem comode variedades não-híbridas, é outro mecanismo do pro-grama que vem fortalecendo a perspectiva agroecológica.As sementes são produzidas por agricultores familiares,adquiridas por meio do PAA e distribuídas a outros agri-cultores como forma de incentivar iniciativas locais deresgate, conservação e uso da agrobiodiversidade, assimcomo fortalecer sistemas locais de produção e abasteci-

mento de sementes. Na Paraíba essas aquisições apoia-ram, em 2006, uma rede estadual de 228 bancos de se-mentes comunitários que integrava cerca de 7 mil famíliasde agricultores. Por intermédio desse sistema, foram dis-tribuídas diferentes variedades de milho e feijão, além desementes de fava, gergelim, sorgo e girassol. Essas aqui-sições se repetiram por vários anos sucessivos, fortale-cendo a capacidade de auto-abastecimento dos bancosde sementes (Cordeiro, 2007).

Por fim, como fica evidente no caso descritoa seguir, o programa tem contribuído para fortalecer aconstrução de redes de produção e consumo que envol-vem um amplo leque de organizações sociais, e cujo foconão se reduz ao acesso aos mercados já que incorporamtambém uma série de objetivos relacionados à promoçãoda segurança alimentar e nutricional.

Promovendo a diversidade nasredes da Agroecologia namicrorregião de Pelotas-RS

A microrregião de Pelotas, onde se encontra amaior concentração de agricultores familiares na metade suldo Rio Grande do Sul, compreende, além de Pelotas, outrosnove pequenos municípios situados no seu entorno.

Em 2001, antes mesmo da criação do PAA, or-ganizações de agricultores familiares da região, assessora-das pelo Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor (Capa),já estavam mobilizadas no sentido de garantir o acesso dosagricultores ao mercado institucional, tendo implementadouma experiência piloto de merenda ecológica nos municí-pios de Pelotas, Canguçu e São Lourenço. Existiam tam-bém na região iniciativas de comercialização de produtosecológicos em feiras, uma cooperativa de consumidores eoutros circuitos mercantis.

A criação do PAA ajudou a estruturar uma rede deprodução e distribuição de alimentos ecológicos e convencio-nais para os mercados institucionais. Entre o final de 2003 e2005 a rede chegou a articular 16 organizações, incluindoassociações, cooperativas e grupos informais.3 Duas delas (aCoopar e a Unaic) assumiram-se, em nome da rede, comoproponentes formais de projetos de Compra Antecipada Espe-cial (Doação Simultânea). O Capa prestou assistência técnicaàs atividades de produção e processamento de produtos eco-lógicos, apoiou a estruturação de uma central de informaçõesresponsável pelo monitoramento das entregas e assessorou agestão administrativa dos projetos.

3 Integravam a rede as seguintes organizações: Cooperativa Mista dos PequenosAgricultores da Região Sul (COOPAR), União das Associações Comunitárias doInterior de Canguçu (UNAIC), Cooperativa Sul Ecológica, Cooperativa dos Pe-quenos Produtores de Leite (COOPAL), Associação Regional dos ProdutoresAgroecológicos (ARPASUL), Cooperativa de Pescadores Lagoa Viva, AssociaçãoSão Roque, Assentamento Renascer, Grupo de Produtores de Leite de Pelotas,Grupo de Mulheres Assentamento 12 de Julho, comunidades quilombolas dosmunicípios de São Lourenço e Canguçu, Associação de Trabalhadores da Lavourade Arroz (ATLA).

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Nessa primeira fase o trabalho envolveu cerca de800 famílias de produtores do universo de 3.600 famíliasligadas às organizações da rede. Os consumidores benefici-ados, todos eles vinculados a escolas e programas sociais emexecução em Pelotas, foram identificados por meio do pro-jeto Segurança Alimentar: Alimentando a Cidadania,implementado pela prefeitura municipal. Até dezembro de2004, foram atendidas por essas ações 25 escolas de educa-ção infantil (com crianças de zero a seis anos), seis unidadesassistenciais e 31 comunidades religiosas, ligadas às igrejasCatólica, Luterana e Anglicana. O atendimento feito pelasescolas e unidades assistenciais consistiu em oferecer refei-ções diárias, servidas a cerca de 2 mil crianças, adolescentese idosos. No caso das comunidades religiosas, o trabalhoenvolveu a preparação de refeições (sopão, feijão ou arrozcarreteiro) e a distribuição semanal de sacolas de alimentospara aproximadamente 2,5 mil famílias. Grupos comunitá-rios ligados às diferentes igrejas ficaram responsáveis pelaseleção das famílias beneficiadas, pela composição das saco-las, pela distribuição dos alimentos e pelo acompanhamentodo andamento do projeto, sendo as refeições preparadaspor cozinheiras voluntárias da própria comunidade. A pre-feitura de Pelotas implantou ainda uma central de distribui-ção dos alimentos, que ficou responsável pela armazena-gem, acompanhamento da qualidade dos produtos e distri-buição. Durante o primeiro ano de execução do projeto,foram distribuídas 1,2 mil toneladas de alimentos, sendoque 70% destes foram produzidos por agricultores ecológi-cos ou em transição agroecológica.

Uma segunda fase da rede iniciou-se em 2005.As mudanças no contexto político-administrativo ocorridasapós as eleições municipais levaram a um redesenho dosfluxos de distribuição existentes, com o enfraquecimentoda atuação de alguns parceiros da rede, como a prefeiturade Pelotas e, por outro lado, o surgimento de novos, comoa prefeitura de São Lourenço. Além desse fator, a própriaevolução da experiência contribuiu para que a rede se desa-fiasse a ampliar e diversificar sua produção ao nível das uni-dades produtivas, a incorporar novas famílias de produtorese a construir novas parcerias envolvendo prefeituras, entida-des assistenciais e comunidades em situação de insegurançaalimentar de outros municípios. Com isso, os mercadosinstitucionais do município de Pelotas deixaram de ser osúnicos consumidores dos produtos distribuídos pelo pro-grama e redes de distribuição de produtos foram organiza-das também nos municípios de Canguçu e São Lourenço.

Oito novas organizações de agricultores passa-ram também a assumir-se como proponentes dos projetosdo PAA por meio da compra com doação simultânea e deoutros mecanismos do programa como a Compra Antecipa-da Especial com Formação de Estoque e a Compra Direta.

Esforços importantes no sentido de qualificaro acesso das famílias aos alimentos distribuídos foram rea-lizados nessa segunda fase. No município de Canguçu,estruturou-se um grupo de acompanhamento das açõesdo programa, envolvendo as organizações dos produ-tores, as entidades beneficiadas pela distribuição dosprodutos, o poder público municipal, além de outras

Tabela 1. Diversidade de produtos adquiridos nacionalmente, por meio do mecanismo CPR Doação segundo diferentescategorias – 2006

Categorias de Produtos Espécies, Tipos ou Variedades

Frutas 43

Hortigranjeiros (outros) 28

Hortigranjeiros (folhosas) 23

Sucos, polpas e outros processados de frutas 23

Farinhas e derivados de milho e mandioca 18

Carne e derivados 13

Massas, pães, bolos e bolachas 12

Leite e derivados 11

Outros (produtos diversos) 9

Grãos 8

Temperos (processados), azeites, condimentos e chás 8

Açúcar e derivados de cana 5

Amendoim e castanhas 4

Palmitos 3

Total 208

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organizações. Em Pelotas, como resultado de um diag-nóstico participativo realizado com apoio da Conab ecom o envolvimento das comunidades religiosas e en-tidades assistenciais, organizou-se também um gru-po responsável por avaliar periodicamente as ativida-des do PAA, com participação das organizações deprodutores e entidades assistenciais com atuação jun-to às populações em situação de insegurança alimen-tar. Buscou-se, com isso, superar problemas relaciona-dos à qualidade dos alimentos e à regularidade de suaoferta, bem como questões relacionadas à distribuiçãoàs famílias beneficiadas.

Cumpre ressaltar que a presença do produtoecológico nas aquisições do PAA na região é bastanteexpressiva. A análise dos projetos desenvolvidos entre2003 até meados de 2007 identificou a comercializaçãode uma “cesta completa” composta de 23 diferentesprodutos atestados como ecológicos pelo Capa. Entre-tanto, há projetos que trabalham com base em umacomplementaridade entre produtos ecológicos e produ-tos convencionais. Nesse período, foram adquiridos edistribuídos 7,7 milhões de reais em produtos namicrorregião, beneficiando 3.166 famílias.4 Se conside-rado o conjunto dos mecanismos do PAA, o valor totaldas aquisições feitas através do mercado institucionalsobe para aproximadamente R$ 25,7 milhões, com al-gumas operações sediadas em Pelotas, mas abrangendoum universo um pouco mais amplo de municípios, inclu-sive de fora da região.

As lições da prática

A experiência de comercialização de alimentosecológicos e convencionais por meio do PAA vivenciada poragricultores familiares, assentados, pescadores artesanais equilombolas da microrregião de Pelotas reúne alguns ele-mentos importantes para uma reflexão sobre o lugar dosmercados, mais especificamente do mercado institucional,no fortalecimento da agricultura familiar de base ecológica.

O ingresso nos mercados institucionais, particu-larmente na compra com doação simultânea, promoveu oacesso dos produtores a um mercado próximo, capaz de ab-sorver grande diversidade de produtos e de se ajustar, pelomenos em certa medida, às variações sazonais. Na prática, agrande variedade de produtos presente nos cardápios dasescolas, entidades assistenciais e demais programas sociaisfavorece a diversificação dos sistemas produtivos da agricul-tura familiar, proporcionando também a valorização de gê-neros muitas vezes negligenciados nos mercados convencio-nais. Dois exemplos ajudam a ilustrar essa constatação.

Até a década de 1970, a batatinha era um im-portante produto comercial em São Lourenço do Sul, sen-do exportada, inclusive, para a região Sudeste. Nas últi-mas décadas, o cultivo e a comercialização entraram emdeclínio. A partir da oportunidade criada pelo PAA, a pro-dução de batata ecológica foi novamente estimulada, oque permitiu que os agricultores comercializassem suasproduções tanto para os mercados institucionais locaisquanto para compradores de outros estados.

O PAA também possibilitou que pescadoresartesanais comercializassem algumas espécies de peixe quenão são bem aceitas no mercado, embora sejam nutritivas ede grande importância para o autoconsumo das famílias pes-cadoras. Além disso, algumas dessas espécies são justamen-te aquelas que estão menos ameaçadas pela sobrepesca eque podem ser capturadas com equipamentos muito simplesem pequenas embarcações que navegam próximo às mar-gens da Lagoa dos Patos. O acesso aos mercados institucionaispermitiu, portanto, que mesmo os pescadores menos capita-lizados pudessem comercializar sua produção.

É importante frisar que o ajuste entre a oferta e ademanda de alimentos nos projetos do PAA é feito median-te o acerto entre as organizações dos produtores e as insti-tuições receptoras, diálogo este que se torna necessário ain-da na fase de elaboração da proposta. Existe, portanto, umamargem de manobra para a adaptação dos cardápios àsazonalidade da produção agrícola, bem como para a intro-dução de produtos regionais na dieta dos consumidores, oque não significa que o pólo do consumo não exija umaoferta permanente, ao longo do ano, de determinados ali-mentos. O atendimento a essa demanda acaba sendo nego-ciado e administrado de diferentes formas. O processamentode alguns produtos, como doces e sucos de frutas, por exem-plo, funciona como um instrumento de ajuste da oferta deprodutos às variações sazonais da produção agrícola.

4Com repetição, tendo em vista que uma mesma família pode acessar o programa pormais de um ano seguido. O número total foi calculado tendo como referência o acessopor família por ano.

Alimentação escolar na E.M. Machado de Assis

Montagem das sacolas de alimentos na comunidade de SantoExpedito

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Por fim, é importante lembrar que a garantia decomercialização, oferecida pelo programa, serve de estímulopara que os agricultores cultivem essa diversidade, tantopara a aquisição por meio do PAA e de outros mercadoscomo para a alimentação da família. Vale ressaltar ainda quemuitas organizações que acessam o PAA na microrregião dePelotas participam do Programa Nacional de Diversificaçãoem Áreas Cultivadas com Tabaco, implementado pelo MDA,o que demonstra todo um esforço, por parte delas, na buscade instrumentos capazes de potencializar a transição parauma agricultura familiar de base ecológica em uma regiãofortemente marcada pela presença da agroindústria do fumoe, portanto, pelo intenso uso de agrotóxicos.

Outro elemento a ser ressaltado é o papel desem-penhado pelas redes de organizações sociais que são criadase/ou fortalecidas no processo de construção dos mercadosinstitucionais. O trabalho em rede é fundamental para queos agricultores familiares, pescadores artesanais, quilombolase demais grupos envolvidos possam acessar o PAA, explo-rando complementaridades, não apenas entre os diferentesprodutos, mas também no que se refere à infra-estruturadisponível para processamento e comercialização. A estru-tura de transporte mobilizada por meio da rede, por exem-plo, propiciou que os quilombolas comercializassem a suaprodução. São também as redes, contando com a parceriado poder público municipal, assim como com um aportesignificativo de trabalho voluntário, que possibilitam que osprodutos, tanto os convencionais quanto os ecológicos,cheguem até as populações em situação de insegurança ali-mentar. Rompe-se, com isso, o paradigma de que acomercialização desses produtos só é viável quando dirigidaa um mercado de alto poder aquisitivo.

É claro que os desafios presentes na construçãode um mercado institucional para os produtos da agriculturafamiliar não podem ser esquecidos. Uma série de limitaçõesoperacionais são enfrentadas pelos órgãos governamentaisna implementação do PAA, entre elas atrasos na liberaçãodos recursos, problemas de acesso por parte dos agricultoresà documentação exigida e falta de convergência entre dife-rentes instrumentos de política pública que poderiam darsuporte às ações do programa. Existem também fragilidadesorganizativas e de gestão a serem superadas pelas redes eorganizações envolvidas localmente na construção do tra-balho, tais como melhor acompanhamento das entregas,qualificação das formas de acesso dos beneficiários aos ali-mentos e fortalecimento de sua atuação em outros circuitosde comercialização de forma a minimizar a dependência emrelação ao mercado institucional.

Mas o reconhecimento das dificuldades existen-tes não deve ofuscar o mérito dos agricultores familiares dese organizarem para ingressar no mercado institucional. Tra-ta-se de um avanço importante na construção de estratégiasde acesso a mercados por parte desses produtores, impulsio-nando, inclusive, a criação de mecanismos de aquisição deprodutos e de regulação de preços voltados especificamentepara a agricultura familiar. As experiências desenvolvidas pelo

PAA mostram também que essas estratégias podem serdirecionadas no sentido de potencializar processos de tran-sição para uma agricultura de base ecológica, reforçandooutras iniciativas de comercialização já existentes, como asfeiras, os pontos de oferta e as cooperativas de consumo.

As iniciativas em andamento indicam, final-mente, que é possível mobilizar o poder regulador e decompra do Estado na construção de novos circuitos decomercialização, com base em princípios de justiça sociale sustentabilidade ambiental. A experiência acumuladapelas diferentes redes, hoje engajadas em iniciativas con-cretas de acesso ao mercado institucional, bem como seuamadurecimento, traduzido na elaboração de propostastanto de organização como de políticas públicas, são in-gredientes fundamentais para que as compras governa-mentais possam se consolidar, de fato, como uma ferra-menta capaz de potencializar formas alternativas de pro-dução e consumo de alimentos. Entretanto, devemos terem mente que a capacidade de o mercado institucionalincorporar princípios éticos, ecológicos e de valorizaçãocultural às suas dinâmicas de funcionamento dependerá,em grande medida, da ação organizada tanto dos produ-tores familiares como das entidades com atuação juntoaos consumidores desses produtos.

Cláudia Job Schimittsecretária executiva da Articulação Nacional de

Agroecologia, doutora em sociologiaLeonardo Alonso Guimarães

engenheiro agrônomo, especialista em agroecologia edesenvolvimento sustentável pela Universidade Federal

de Santa Catarina

Referências citadas:CORDEIRO, Ângela. Documentação Participativa

do PAA. Intervenções governamentais em se-gurança alimentar e nutricional com geração derenda e valorização da biodiversidade. Resulta-dos do Programa de Aquisição de Alimentos daAgricultura Familiar. Agosto de 2007.

FONSECA, M. F.; CAMPOS, F. F. de. O merca-do de alimentos orgânicos certificados noestado do Rio de Janeiro. Disponível em:< h t t p : w w w . t o d a f r u t a . c o m . b rtodafrutamostra_conteudo.asp?conteudo=11728>.Acesso em: maio 2008.

SCIALABBA, Nadia El Hage. Global trends inOrganic Agriculture Markets and Countries’demand for FAO assistance. Rome : Global LearningOpportunity – International Farming SystemsAssociation. Roundtable, Organic Agriculture,Nov. 2005. Disponível em: <www.fao.org/organicag>. Acesso em: maio 2008.

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A

O Programa deAquisição de Alimentos

como instrumento revitalizadordos mercados regionais

Marcos César Pandolfo

comercializaçãosempre foi umdesafio para a

agricultura familiar. Entre os prin-cipais problemas, destacamos a ne-cessidade de vender produtos compreços baixos para sustentar umaestratégia perversa de industrializa-ção e urbanização; legislações ina-dequadas voltadas para atender in-teresses das grandes indústrias edesqualificar o produto artesanal; ea inexistência de instrumentos deinclusão nos mercados. Esses e ou-tros elementos tornaram a agricul-tura de base familiar dependente depolíticas assistencialistas, causandodesde o endividamento até o com-prometimento da sucessão da uni-dade de produção.

Muitas famílias agricultoras adotaram a estra-tégia de se integrar a grandes complexos agroindustriais,com vistas a garantir a comercialização de alguns produ-tos, como suínos e aves. Outras optaram pela especializa-ção em algumas atividades, como grãos. Entretanto, taisiniciativas as deixaram vulneráveis a oscilações do merca-do globalizado, gerando, em alguns casos, um cenário deinsegurança alimentar.

Contudo, recentemente, a partir de novas dis-cussões sobre desenvolvimento local, os agricultores fa-miliares vêem surgir algumas oportunidades com a criaçãode programas que recolocam a importância da produção e

da distribuição de alimentos, proporcionando a constru-ção de mercados específicos para a sua produção diver-sificada. O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA)da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) temcomprovado seu papel dinamizador das economias locais.Entre as suas modalidades, apontamos em especial a doa-ção simultânea, que adquire produtos das comunidadesrurais e distribui a diversas instituições beneficentes, comohospitais, creches e famílias que estão em vulnerabilidadesocial. Muito além de um programa assistencial, o PAAtem transformado a realidade das pequenas cidades e co-munidades rurais, promovendo a diversidade e trazendosustentabilidade para as mesmas.

A Cooperfamiliar nagestão do PAA

A produção agrícola familiar corresponde a 90%do total do município de Tenente Portela, noroeste doRio Grande do Sul, sendo responsável pela oferta de gran-de diversidade de gêneros de origem vegetal e animal quecompõem a base alimentar local. A Cooperativa Agropecu-ária dos Agricultores Familiares de Tenente Portela(Cooperfamiliar Ltda.), constituída em 2001, é fruto daorganização dos agricultores e da mobilização dos movi-mentos sociais locais. Reúne agricultores familiares e in-dígenas e tem como objetivos: a) construir um novo mo-delo de gestão participativa; b) contribuir para a organi-zação e fortalecimento da produção agroecológica, bemcomo para a segurança alimentar; e c) abrir canais decomercialização para os produtos dos agricultores familia-res e indígenas.

Desde 2005, por meio de convênio celebradocom a Conab, a Cooperfamiliar vem comercializando umavariedade de mais de 40 itens alimentares em seis municí-pios da região. Nos anos de 2006 e 2007, foram distri-buídas mais de 10 mil cestas de alimentos, totalizando

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Moinho da família Kirsch revitalizado

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mais de 780 toneladas produzidas por famílias de peque-nos agricultores e, em especial, pela comunidade indíge-na. Com essa iniciativa, alterou-se a tradição de manteressas comunidades como receptoras de cestas básicas paratransformá-las em produtoras e fornecedoras de gênerosalimentícios entregues a parcelas da população que nãoproduzem seus próprios alimentos.

Produtos como verduras, legumes, frutas, ovos,bolacha caseira, macarrão colonial, frango caipira, entreoutros, foram adquiridos dos agricultores familiares, valo-rizando a produção local e contribuindo para a geração derenda. Ao mesmo tempo, proporcionaram alimentos dealta qualidade para famílias de baixa renda. Outro aspectolevado em conta na experiência foi a reflexão sobre mu-danças nos hábitos alimentares, com a inclusão nas cestasde gêneros como banha, mel, melado e açúcar mascavo.Além de se contrapor aos produtos análogos ofertadospela indústria alimentícia, essa medida despertou o inte-resse dos consumidores que, desde então, passaram a de-mandar esses produtos nos mercados.

A dimensão ambiental também foi consideradae gerou duas iniciativas relacionadas à questão das emba-lagens, um dos principais desafios ambientais associadosao sistema alimentício industrial. A primeira concentrou-se no recolhimento das embalagens de alguns produtospara reciclagem e no reaproveitamento das embalagensde outros produtos, tais como mel, banha e bandejas deovos. Cada família ou instituição beneficiada possui a suaembalagem identificada, não sendo necessária uma emba-lagem nova a cada entrega. A outra iniciativa foi valorizara cultura e a comunidade indígena por meio da aquisiçãode cestos (balaios indígenas) fabricados pela associaçãoindígena Agroartes, que são utilizados para distribuir osalimentos às famílias. Cada família possui o seu balaio e éresponsável pelo mesmo.

Controle social

A Cooperfamiliar acredita que o controle socialé uma condição básica para garantir a transparência dosprojetos e programas, além de ser a melhor forma de des-centralizar a tomada de decisões, proporcionando assim ofortalecimento do capital social e o empoderamento dasociedade. Com esse pressuposto, foram criados váriosprocedimentos e instâncias de controle social. Dentre elas,destacam-se os Comitês de Bairro, formados por repre-sentantes das instituições e organizações existentes emcada bairro, como escolas, igrejas, grupos de idosos e pas-torais. Os comitês são responsáveis pela indicação e sele-ção das famílias beneficiárias e têm a função de auxiliar nadefinição das contrapartidas, bem como garantir aconcretização das mesmas. O Conselho de Merenda Es-colar também participa da gestão do programa especifica-mente na questão da merenda escolar. Já os Comitês

Reunião com Associação Indígena Três Soitas

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Gestores Municipais são constituídos por representantesdos diversos segmentos da sociedade e do setor públicoque têm relação com o programa. Sua função é organizara produção, monitorar o recebimento das cestas pelosbeneficiários e coordenar o armazenamento e a distribui-ção dos alimentos. Finalmente, o Comitê Gestor Regionalé composto por dois representantes de cada Comitê GestorMunicipal e tem a função de socializar problemas e solu-ções encontrados em cada município, discutir assuntosde ordem geral que dizem respeito ao programa, além depromover a discussão em nível regional de propostas parao desenvolvimento sustentável.

Essa estrutura favoreceu a promoção do deba-te sobre segurança alimentar e nutricional e culminou nacriação do Conselho Municipal de Segurança Alimentar eNutricional Sustentável de Tenente Portela. Também es-timulou o debate relacionado a alternativas para o desen-volvimento regional equânime por meio da criação de umarede solidária de comercialização e de trocas de saberes,conhecimentos e experiências.

As transformações promovidaspelo PAA na regiãoRevitalização do Moinho Colonial

Os moinhos coloniais sempre foram uma marcada agricultura familiar da região. Presentes até pouco tem-po na maioria das comunidades rurais, alguns ainda resis-tem ao tempo e à modernização como símbolo da culturacamponesa e como alternativa ao processo industrial deprocessamento de grãos.

Essas estruturas trazem consigo histórias demuitas gerações e têm um papel fundamental na preserva-ção da cultura e na economia das comunidades rurais, namedida em que o consumo de grãos, como milho e trigo,

em forma de farinha faz parte da basealimentar das mesmas. Além disso, coma crescente introdução de produtos ge-neticamente modificados e a recente li-beração do milho transgênico – que co-loca em risco a biodiversidade e a saúdede produtores e consumidores –, essasestruturas tornam-se instrumentos deautonomia para os agricultores e ummeio de proteger a economia e a segu-rança alimentar locais.

Com a comercialização asse-gurada a partir do convênio entre aConab e a Cooperfamiliar, a família deValdino e Eni Kirsch, residente na loca-lidade de São Pedro, município de Te-nente Portela, resolveu reativar um mo-inho colonial que estava parado em suapropriedade. Até então a família não

havia recebido nenhum tipo de incentivo para valorizar aprodução local e as oportunidades de comercialização erammuito reduzidas. Com pouco investimento e com acomercialização garantida, o moinho passou a processarmilho e trigo diariamente. De acordo com o Sr. Valdino, ademanda pelas farinhas aumenta a cada dia. Além de pro-cessar a produção da própria família, o moinho é utilizadopor outros agricultores da comunidade. Assim, muitos agri-cultores que compravam farinha nos mercados por não teropção de transformar seus produtos, hoje têm a oportuni-dade de consumir a farinha de seu próprio milho. Os con-sumidores da cidade, por sua vez, têm a chance de adqui-rir um produto de qualidade, produzido localmente e livrede transgênicos.

Incremento da Feira Livre do Produtor

A Feira Livre do Produtor no município deTenente Portela se iniciou na década de 1980 com opropósito de criar uma opção de comercialização paraos produtos dos agricultores familiares. Desde então,

Organograma da gestão e controle social do PAA - Cooperfamiliar

Distribuição de alimentos nos balaios

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vários agricultores tiveram a oportunidade de comer-cializar sua produção diretamente ao consumidor. Atu-almente, a feira possui espaço para nove feirantes dedois grupos, um constituído por agricultores ecológi-cos e outro pela comunidade indígena.

Após o início da operação do PAA no municí-pio, em 2005, os feirantes perceberam o aumento da de-manda por seus produtos. Como a maioria deles tambémfornece para mercados intermediados pelo PAA, seus pro-dutos tornaram-se mais conhecidos e valorizados por umsegmento significativo de cidadãos e instituições que pas-saram a receber as cestas.

Fortalecimento e integração das organizaçõese instituições regionais

A implementação do PAA na região proporcio-nou a integração de várias instituições e organizações so-ciais na medida em que a Cooperfamiliar tem procuradoenvolvê-las nos debates a fim de construir propostas queatendam os interesses do conjunto da sociedade. Entre osprincipais parceiros envolvidos estão as prefeituras e se-cretarias dos municípios, a Emater (RS), o Conselho deMissão Entre Índios (Comin), o Sindicato dos Trabalha-dores na Agricultura Familiar (Sintraf), o Movimentos dosPequenos Agricultores (MPA), a Associação de Peque-nos Agricultores Agroecológicos de Tenente Portela(Apagro), a Associação Indígena de Produtos OrgânicosSustentáveis Três Soitas, a Associação Indígena Agroartesde Produção Agropecuária e Artesanato, a UniversidadeRegional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul(Unijui), o Banco do Brasil, a Cooperativa de Crédito Ru-ral com Interação Solidária (Cresol), a Pastoral da Criançae igrejas. Além desses, destacam-se como parceiros eapoiadores a Prefeitura Municipal de Tenente Portela, oMinistério do Desenvolvimento Agrário (MDA), o Minis-

Industrialização artesanal de farinhas

tério do Desenvolvimento Social (MDS), o Ministério daAgricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e a Conab.

Marcos César Pandolfoassessor técnico da Cooperfamiliar

[email protected]@redemeganet.com.br

Canais de comercialização para os agricultores familiares de Tenente Portela e região

Público Forma de organização Oportunidades de mercado

Apagro PAAAgricultoresfamiliares Agroartes Feira Livre do Produtor

Comunidade Assoc. Indígena Três Soitas Venda Direta ao Consumidorindígena

Cooperfamiliar Mercado da Agricultura Familiar1

Merenda Escolar2

1 O Mercado da Agricultura Familiar é uma estrutura que está sendo construída para comercialização dos produtos dos agricultores familiares e indígenas. Voltado também à culturae gastronomia, dedica um espaço para venda e degustação de pratos típicos da região e da cultura local oriundos da produção agroecológica.2 A Merenda Escolar também é um importante canal de comercialização dos produtos da agricultura familiar e está na pauta das reivindicações da Cooperfamiliar junto aosmunicípios da região.

Curso de panificação artesanal

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Trajetória e desafios daconstrução de mercadoslocais para a agricultura

ecológica em Porto União (SC) eUnião da Vitória (PR)Aires Niedzielski, Anésio da Cunha Marques e Luis Cláudio Bona

orto União (SC) eUnião da Vitória(PR) são municí-

pios vizinhos situados na região doContestado, território que compreen-de parte do Planalto Norte Cata-rinense e do Centro-Sul do Paraná.Suas sedes municipais são geminadas,tendo a linha férrea como divisa. Fun-cionam, portanto, como um únicoaglomerado urbano com uma popu-lação de cerca de 55 mil habitantes.

Em ambos os municípios, assim como em todoo Contestado, a presença da agricultura familiar é signifi-cativa nos meios rurais, sendo as principais atividades eco-nômicas os cultivos de milho e feijão, bem como oextrativismo de erva-mate. A região se destaca por ser ricaem iniciativas de produção de base agroecológica, frutodo empenho de centenas de famílias agricultoras e suasorganizações, que também contam com a assessoria deONGs e de técnicos do serviço oficial de extensão rural,além de apoios eventuais de alguns governos municipais.

Entretanto, o acesso a mercados seguros queabsorvam a diversidade produtiva característica da agri-cultura familiar da região tem se revelado um dos princi-pais desafios para o avanço e a consolidação dos proces-sos de transição agroecológica. Como parte das estratégiaspara viabilizar a comercialização de alimentos ecológicosproduzidos por um número crescente de famíliasagricultoras de Porto União e União da Vitória, foramconstituídas feiras livres descentralizadas nas sedes muni-

cipais – cujo histórico, importância e atual situação abor-damos neste texto.

O embrião da experiência

As feiras livres coloniais, espaços tradicionaisonde os agricultores vendem seus produtos diretamen-te aos consumidores, sempre alternaram períodos de al-tos e baixos em ambos os municípios. No final de 1995,havia em União da Vitória uma pequena feira junto aoterminal urbano de ônibus. Era composta por apenascinco feirantes, sendo comum a comercialização de mer-cadorias adquiridas no Ceasa de Curitiba. Em PortoUnião, também junto ao terminal rodoviário, seis famíli-as compunham na mesma época uma feira. Mas, ao con-trário da feira do município vizinho, os alimentos alicomercializados eram produzidos pelas próprias famíliasfeirantes. Uma delas – os Niedzielski – comercializavaunicamente alimentos ecológicos produzidos em suapropriedade. A experiência e a ação dessa família foramdeterminantes no processo de construção das feirasagroecológicas em ambos os municípios.

A prática da família na produção ecológica e nacomercialização em feiras se iniciou em 1983, após AiresNiedzielski ter concluído curso técnico na Fundação MokitiOkada. Simultaneamente, Aires começou a desenvolvertrabalhos de divulgação da Agroecologia na região e, paratanto, contou com o apoio da Igreja Católica e do Centrode Assessoria e Apoio aos Trabalhadores Rurais (Cepagri),ONG sediada no município de Caçador (SC). A partir des-sas iniciativas e da frustração das experiências de plantiode pêssego pelo sistema técnico convencional vivenciadapor agricultores da comunidade Km 13, em Porto União,várias famílias deram início a processos de conversão eco-

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lógica de suas propriedades. Já em 1996, 22 fa-mílias fundaram a Associação dos ProdutoresEcológicos de Porto União (Afruta).

Em 1993, a ONG AS-PTA – Assesso-ria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternati-va deu início a suas atividades na região, aportandodesde então grande contribuição para o desen-volvimento da Agroecologia, por meio de proces-sos continuados de formação e de experimenta-ção técnica e sócio-organizativa. Entre 1997 e2000, período em que a prefeitura de União daVitória foi administrada pelo Partido do Traba-lhadores, a Secretaria Municipal de Agriculturafoi composta por profissionais oriundos justamen-te da AS-PTA e da Afruta. Ao assumir como prio-ridade a promoção da Agroecologia no municí-pio, a secretaria criou o Programa Municipal deAgricultura Ecológica (PMAE), que tinha como objetivoatuar tanto no campo da organização e da formação quan-to no apoio a compras comunitárias e à comercialização daprodução, com ênfase no desenvolvimento do mercadolocal. Nesse sentido, o PMAE apoiou a estruturação defeiras livres ecológicas e a organização de agricultores paraa produção e venda de grãos e diversos produtos hortícolasem mercados de Curitiba e São Paulo.

Essas novas condições possibilitaram signifi-cativo avanço nos processos de transição agroecológicade muitas propriedades do município. Assim, foram orga-nizados campos de sementes crioulas e as primeiras feirasde sementes, proporcionando o aumento local da escalade um trabalho que já vinha sendo realizado na região.

Do ponto de vista dos agricultores, os maioresavanços foram percebidos na diversificação dos sistemas pro-dutivos, com a inclusão de cultivos alimentícios, de espéciesde adubação verde de inverno e verão, além da produçãoprópria de sementes. Essas iniciativas tornaram os sistemasprodutivos menos dependentes de insumos externos e leva-ram à redução dos custos de produção. Além disso, os agri-cultores reconheceram que a produção agroecológica trou-xe benefícios com relação à conservação do meio ambiente eà saúde de suas famílias e dos consumidores.

O início das feiras e a conquista demercados

A partir de 1997, o PMAE e a Afruta intensifi-caram o trabalho de divulgação da Agroecologia, por meioda realização de palestras em escolas, de matérias nasrádios e jornais locais e da promoção de eventos. Bonsníveis de aceitação por parte das famílias agricultoras econsumidoras foram alcançados.

Porém, a demanda por hortaliças e frutas porparte da população urbana continuava sendo atendida so-bretudo com produtos vindos do Ceasa. Diante disso, oPMAE e a Afruta deram grande incentivo ao aumento da

produção hortícola que até então vinha sendo feita apenaspara suprir as necessidades das próprias famílias produtoras.

No início de 1998, o PMAE estruturou a FeiraColonial em uma das praças locais. A iniciativa envolveu 12famílias, algumas das quais ainda não produziam de formaexclusivamente ecológica. Para identificar as barracas dosfeirantes ecológicos, foram afixados cartazes com os dizeres“Alimento Ecológico”. Na mesma época, seis famílias asso-ciadas da Afruta perceberam o potencial dessas feiras para adiversificação da produção e deram início a duas Feiras Eco-lógicas em dois bairros, além de continuarem com a barracaecológica na feira do terminal urbano de Porto União.

A criação de um sistema degarantia de qualidade

O trabalho de difusão dos benefícios trazidos pelaprodução ecológica despertou nos consumidores maior in-teresse pela qualidade dos alimentos, o que resultou no au-mento da demanda por esses produtos nos municípios. Aomesmo tempo, esse maior interesse fez com que consumi-dores exigissem uma comprovação da qualidade ecológicados alimentos que adquiriam nas feiras. Para dar resposta aessa questão, deu-se início a um sistema de garantia funda-mentado no trabalho com grupos e inspirado na experiênciaanterior de agricultores gaúchos assessorados pelo CentroEcológico de Ipê (RS). A partir desse momento foram cons-tituídos cinco grupos de produtores ecológicos em Uniãoda Vitória e em Porto União, que vieram a se somar aos seisgrupos de associados à Afruta já existentes.

Cada grupo manteve uma dinâmica própria de fun-cionamento que, em geral, consistia em pelo menos uma reu-nião mensal de planejamento da produção e da comercialização.As reuniões eram realizadas nas propriedades dos membros dogrupo em sistema de rodízio, o que favorecia visitas a diferen-tes áreas de produção, contribuindo tanto para a capacitaçãodo grupo, com base em intercâmbio de experiências, quantopara viabilizar a certificação participativa.

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Reuniões de planejamento dos feirantes da Afruta

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No segundo semestre de 1998, realizou-se emUnião da Vitória um seminário para que o tema do siste-ma de garantia – que nesse momento vinha sendo debati-do por grande número de organizações no Sul do país –fosse aprofundado e aperfeiçoado. Um dos encaminha-mentos do evento foi a criação de uma Rede Regional deAgroecologia, que foi finalmente homologada em um se-gundo seminário promovido alguns meses depois na cida-de de Caçador (SC). Deu-se início assim à Rede Ecovidade Certificação Participativa e, desde então, os gruposdo PMAE e da Afruta passaram a se identificar com osímbolo da Rede Ecovida.

Novas soluções, novos desafios

Embora as feiras tenham se iniciado relativa-mente bem, conseguindo escoar a produção dos agricul-tores ecologistas pioneiros, a ampliação dos mercadosmostrava-se como condição para permitir o aumento dosvolumes comercializados e a adesão de novas famílias aoprocesso. As tentativas de colocar os produtos nos su-permercados e no comércio local não prosperaram em fun-

ção da baixa regularidade da oferta dos produtos e dalimitada diversidade de gêneros produzidos localmente.As casas comerciais preferiam se abastecer no Ceasa deCuritiba onde, ademais, adquiriam produtos com preçosmuito baixos em épocas de safra.

Para enfrentar esse desafio, o PMAE e a Afrutafirmaram no segundo semestre de 1998 uma parceria coma Associação de Agricultura Orgânica do Paraná (Aopa),organização que coordenava a comercialização de alimen-tos orgânicos em Curitiba. Frente às dificuldades na aber-tura de novos mercados locais, essa estratégia se mostroumais viável nesse momento, apesar do custo de transpor-te dos produtos até Curitiba. Para viabilizar essa oportu-nidade àquelas famílias que em geral não têm acesso aprogramas governamentais, o PMAE subsidiou financei-ramente a organização e o transporte da produção.

Esse novo sistema de comercialização permi-tiu inclusão de um maior número de agricultores ecológi-cos em ambos os municípios. Além dos associados daAfruta, 61 famílias de União da Vitória comercializaramalimentos ecológicos através da Aopa em 1999. No piqueda safra (entre novembro e março), o volume semanal decomercialização variou entre 6 e 10 toneladas dos maisdiversos produtos, tais como cebola, tomate, cenoura,batata-salsa, beterraba, batata-doce e feijão adzuki. Na-quele ano, o município de União da Vitória foi considera-do o maior produtor de cebola orgânica do Paraná.

Não obstante os bons resultados iniciais dasvendas em mercados de Curitiba, esse canal de comer-cialização mostrava-se vulnerável, já que dependia dacontinuidade dos subsídios financeiros e da assessoriatécnica do PMAE. Além disso, tratava-se de um mecanis-mo comercial que exigia padrões rígidos de qualidade, oque implicava em constantes perdas de produtos. De fato,a vulnerabilidade do sistema se tornou evidente no finalde 2000, quando as fortes geadas ocorridas na região deCuritiba praticamente destruíram as plantações dos agri-cultores associados à Aopa e inviabilizaram a manuten-ção dos canais comerciais abertos pela associação.

Felizmente, o sucesso inicial alcançado com aabertura da frente de comercialização em Curitiba nãosignificou o abandono da estratégia original voltada paraos mercados locais. Muito pelo contrário. Estimuladospelo aumento dos volumes de venda, os agricultores in-tensificaram sua presença nas feiras locais. Com isso, elasse multiplicaram, criando um grande número de pontosdescentralizados nas cidades, a maior parte deles consti-tuída por associados da Afruta. A Feira Colonial da PraçaAlvir Riesemberg, de União da Vitória, por sua vez, trans-formou-se na Feira Ecológica, espaço para a comerciali-zação exclusiva de alimentos ecológicos. Portanto, o perí-odo em que os mercados de Curitiba operaram possibili-tou que os mercados locais se consolidassem. Prova dissosão os dados da comercialização do tomate ecológico:em 1999, foram vendidas 40 toneladas do produto emmercados de Curitiba e de São Paulo e apenas 4 nos mer-

Pontos descentralizados de feira da Afruta

Pontos descentralizados de feira da Afruta

Placa indicando a qualidade dos produtos

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Tipo de Feira Número de Número de Número de feirantesfeiras feirantes que comercializam só

alimentos ecológicos

Feiras grupais de Porto União 03 28 05 (18%)

Feiras descentralizadas de Porto União 18 19 13 (68%)

Feiras grupais de União da Vitória 03 31 12 (39%)

Feiras descentralizadas de União da Vitória 19 20 09 (45%)

Total 43 98 39 (40%)

cados locais. Já em 2000, apenas 2 toneladas foram esco-adas para Curitiba, enquanto os mercados locais, princi-palmente as feiras, absorveram 50 toneladas.

A partir de 2001, o PMAE foi praticamentedesestruturado com a perda das eleições por parte dogrupo político que vinha administrando a prefeitura.Com isso, os serviços de assessoria e os subsídios fo-ram descontinuados, e as reuniões de planejamento eorganização da produção praticamente cessaram. Apartir desse momento, o apoio da prefeitura às feiraslimitou-se ao transporte dos produtos de um númeroreduzido de famílias.

Ao final de 2003, a Emater de União da Vitó-ria, juntamente com a Prefeitura de Porto União, criou aFeira Colonial na estação ferroviária que separa as duascidades. Vinte famílias agricultoras de ambos os municí-pios passaram a comercializar seus produtos nesse espa-ço. Entretanto, como os produtos ali comercializados nãoeram exclusivamente ecológicos, criou-se um dilema, quepersiste até hoje, na medida em que a população das ci-dades já associava as feiras de agricultores a pontos devenda de alimentos ecológicos. Afinal, quase todos ospontos de feira abertos nos cinco anos anteriores foraminiciativas de agricultores ecológicos.

De forma autônoma, a Afruta deu seguimentoao seu processo de organização para assegurar e ampliaros mercados locais, centrando sua estratégia comercialnas feiras e investindo em processos de agroindustria-lização. Em 2004, após a criação do Programa de Aquisi-ção de Alimentos (PAA) da Companhia Nacional de Abas-tecimento (Conab), agricultores vinculados à Afruta fun-daram a Cooperativa dos Agricultores Ecológicos do Valedo Iguaçu (Coavi), com o objetivo de apoiar as feiras e deorganizar a comercialização via PAA.

A situação atual das feirasDe acordo com dados da Afruta e da prefeitura

de União da Vitória, assim como de estimativas dos auto-res, existem hoje 43 pontos de feira mantidos por 98 fa-

mílias agricultoras, 39 das quais (40% do total) dedicadasexclusivamente à produção agroecológica (ver Tabela 1).

Nesse quadro geral, destaca-se o grande nú-mero de feiras descentralizadas mantidas por uma ou duasfamílias agricultoras. Esse formato tem se mostrado inte-ressante, pois não depende de grandes estruturas ou de-moradas negociações com o poder público. Além disso,proporciona uma relação de proximidade com os consu-midores, que passam a estabelecer laços mais fortes comas famílias produtoras de seus alimentos. Uma das dificul-dades desse sistema tem sido manter a variedade de pro-dutos procurada pelos consumidores. Alguns feirantestêm minimizado essa questão ao comercializar produtosde outras famílias agricultoras de suas comunidades.

Outro aspecto a ser destacado é o fato de queos feirantes não identificados como ecológicos tambémnão são necessariamente convencionais. Acredita-se quepor meio de processos simples de adequação, esses pro-dutores-feirantes poderiam ser classificados como ecoló-gicos. Esse fato, associado à tendência de a populaçãorelacionar as feiras à produção agroecológica, revela aimportância da continuidade dos trabalhos de esclareci-mento dos consumidores e do apoio aos processos deconversão técnica dos sistemas de produção.

De forma geral, as feiras mais bem estruturadassão aquelas mantidas pela Afruta, já que a associaçãocultivou um processo autônomo e permanente de plane-jamento, inclusive com a manutenção de um sistema deredistribuição de produtos (rodízio) entre os pontos defeira (ver Quadro 1). A Afruta conta atualmente com 23pontos de feira distribuídos nos centros e nos bairros dosdois municípios, todos identificados com banners da RedeEcovida de Agroecologia. A comercialização do conjun-to desses pontos chega a 100 toneladas mensais, varian-do entre 0,8 e 4 toneladas mensais por ponto. A diversi-dade de produtos envolvidos também é grande. Qual-quer um dos pontos de venda apresenta cerca de 40 a 60itens diferentes, entre eles, 10 tipos de folhosas e outros15 tipos de olerícolas, além de grãos, frutas, pães, geléi-as, sucos, conservas e derivados do leite.

Tabela 1. Tipos de feiras e feirantes dos municípios de Porto União (SC) e União da Vitória (PR)

Fonte: Afruta e Prefeitura Municipal de União da Vitória

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A renda obtida nesses espaços tem deixadosatisfeita a maioria dos feirantes. Em 1999, a renda brutamensal obtida por cada feirante ligado à Afruta girava emtorno de 1 a 2,5 salários mínimos. Atualmente, situa-seentre 2 e 8 salários. Esses resultados são bastante positi-vos, sobretudo considerando que essa não é a única fontede renda das famílias feirantes. Além disso, com a adoçãodo sistema de produção ecológica, os custos de produ-ção e de comercialização tornaram-se bastante baixos.Outro aspecto a ser ressaltado é que o aumento da diver-sidade de cultivos e a maior conscientização sobre a qua-lidade dos alimentos consumidos pelas famílias feirantesaprimoraram muito o padrão nutricional e a segurançaalimentar das mesmas.

Considerações finais

Muitos foram os aprendizados nessa trajetó-ria. De um sistema que começou com grande dependên-cia do poder público municipal, originou-se um proces-so autônomo que hoje se autoregula a partir da inter-venção direta das famílias agricultoras e suas organiza-ções. Trata-se de um sistema de gestão simplificado edinâmico, garantindo tomadas de decisão com amplaparticipação de todos – homens, mulheres, jovens e adul-tos – e atuando por meio de redes locais, sem dependerde grandes estruturas, apenas do exercício de aprendi-zados coletivos.

Por sua vez, o PMAE demonstrou que é possívelestruturar políticas públicas de inclusão social fundamenta-das na troca de experiências, na valorização do conhecimen-

to dos agricultores, na simplificação de práticas de gestãoeconômica, viabilizando a geração de renda ou novas expec-tativas para as famílias por meio da utilização de recursospúblicos com economia e de forma transparente.

Mesmo com um número significativo de feirasdescentralizadas, distribuídas em diversos pontos do núcleourbano de Porto União e de União da Vitória, existe aindaum grande potencial para ampliação da comercialização lo-cal de produtos ecológicos, principalmente se mantida aproximidade e a relação direta entre produtores e consumi-dores, servindo de estímulo à transição agroecológica dossistemas de produção por parte de outras famílias.

Por fim, vale ressaltar que a experiência bem-sucedi-da de feiras ecológicas nos dois municípios inspirou a criação deiniciativas semelhantes em outros municípios da região, comoCanoinhas (SC), Mafra (SC) e São Mateus do Sul (PR).

Aires Niedzielskiagricultor ecológico, técnico agrícola, coordenador da

Afruta e presidente da [email protected]

Anésio da Cunha Marquesengenheiro agrônomo, professor de Agroecologia da

Uniguaçu e analista ambiental do [email protected]

Luis Cláudio Bonaengenheiro agrônomo e coordenador do Programa deDesenvolvimento Local da Região do Contestado da

[email protected]

As famílias associadas à Afruta reúnem-se men-salmente para organizar a produção e trocar experiên-cias. Esses momentos privilegiados são destinados aotratamento de variados assuntos, tais como: políticade preços, planejamento da produção, avaliações sobreos pontos de feira e a qualidade dos produtos ofertados,debate sobre a abertura de novos pontos, etc.

As feiras se concentram nas terças e nos sába-dos, o que facilita o processo de redistribuição de pro-dutos, ou rodízio, como é chamado pelos feirantes. Essetrabalho é realizado por um dos feirantes que, apósarrumar a sua banca, deixa alguém da família em seuponto e faz uma primeira rodada no início da manhã eoutra entre as 9 e 10h. Percorre todos os pontos reco-lhendo em cada um os produtos que estão sobrandopara então repassá-los a outro ponto. No final da ma-nhã, faz um acerto entre quem cedeu e recebeu produ-

Quadro 1. A organização das feiras da Afruta

tos, cobrando 10% do valor comercializado pelo servi-ço. Com base nesse sistema simples de gestão coletivaassegura-se a grande diversidade de produtos em cadaponto e minimizam-se as perdas de produção.

Desde 2007 a Afruta vinculou-se ao Circuitode Circulação da Rede Ecovida, sendo criada umaestação em Porto União que envia e recebe produtosde estações localizadas em outras regiões, comoErechim (RS), Lages (SC), Curitiba (PR) e Barrado Turvo (SP) (para mais informações sobre o cir-cuito, veja artigo na página 26).

Em geral, os preços nas feiras são muito pró-ximos aos dos alimentos convencionais vendidos nossupermercados. Não existe intenção ou razão paracobrar preços acima do mercado pelo alimento eco-lógico. O objetivo dos associados é simplesmente re-ceber uma remuneração justa pelo seu trabalho.

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Promovendo feirasagroecológicas no semi-

árido brasileiro: a experiênciado Projeto Dom Helder Câmara

Felipe Jalfim, Espedito Rufino,Fábio Santiago e Mª Sarah C. Vidal

agricultura fami-liar da regiãosemi-árida brasi-

leira enfrenta desafios relacionadosà segurança hídrica, à segurança ali-mentar e de natureza sociocultural,especialmente em função da neces-sidade de rompimento com o histó-rico caráter assistencialista eclientelista das políticas públicas.Desafios de grande monta tambémexistem no que tange ao acesso aosmercados, na medida em que osobstáculos à comercialização mos-tram-se como poderosos gargalospara a sua viabilidade econômica.

Apresenta-se neste artigo a experiência deenfrentamento dessa questão a partir da valorização de mer-cados locais de pequenas cidades por meio da constituiçãode feiras agroecológicas. A experiência vem se desenvolven-do no âmbito do Projeto Dom Helder Câmara, uma iniciati-va do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e doFundo Internacional para o Desenvolvimento da Agricultu-ra (Fida), que tem por objetivo apoiar ações referenciais dedesenvolvimento humano sustentável com foco na agricul-tura familiar em comunidades rurais e áreas de reforma agrá-ria no semi-árido nordestino. O projeto articula atualmenteuma ampla rede de parcerias com movimentos sociais e sin-dicais dos trabalhadores e trabalhadoras rurais e mais de 50ONGs que assessoram diretamente cerca de 12 mil famíliasem oito territórios rurais da região.

A Estratégias rumo a mudanças

A experiência se orienta para promover proces-sos que levem à conversão agroecológica dos agro-ecossistemas de gestão familiar, integrando-os a canais cur-tos de comercialização, especialmente as feiras agroeco-lógicas. Tem como linha estratégica a geração de referênci-as que subsidiem transformações mais amplas nos sistemasde produção tradicionais e de acesso a mercados da agricul-tura familiar da região. Nessa perspectiva, o mercadoagroecológico não é percebido como um nicho. Pelo con-trário, é concebido como um caminho possível para o desen-volvimento de processos de produção, comercialização econsumo de alimentos em bases socioeconômicas e ecológi-cas sustentáveis (Montiel, 2004).

Para colocar em prática essa estratégia, o Proje-to Dom Helder vem estimulando e apoiando uma ação coor-denada de assessoria técnica, executada por ONGs e movi-mentos sindicais e sociais presentes em cada território ruralde sua área de atuação direta. A metodologia de assessoriapauta-se pela combinação do enfoque agroecológico comprocessos de aprendizagem baseados na geração parti-cipativa de conhecimentos e compreende planejamento par-ticipativo, formação de grupos de interesse, experimenta-ções participativas, acesso a fundos de investimento social eprodutivo e intercâmbio entre agricultores(as). Essa abor-dagem de trabalho, aliada ao arranjo territorial de assessoriatécnica, vem possibilitando transformações no estado desegurança hídrica e alimentar, bem como na organizaçãosocial das áreas de assentamentos e comunidades rurais.

Para concretizar a ocupação de mercados locais deforma sustentável foi fundamental o desenvolvimento de umametodologia participativa de planejamento municipal e territorialorientada à implantação das feiras agroecológicas. Resumida-mente, essa metodologia consiste nos seguintes passos:

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a) mapeamento de famílias, grupos produtivos ou comu-nidades/assentamentos, envolvidos ou não com o Pro-jeto Dom Helder, com interesse e condições básicas deestrutura produtiva, organizacional e conhecimentoque lhes permita uma produção com certa freqüência,diversidade, volume e qualidade ao longo do ano, res-peitando a sazonalidade;

b) motivação das famílias e grupos produtivos para o temada comercialização direta a consumidores(as) via fei-ras agroecológicas;

c) mobilização da sociedade e instituições públicas lo-cais visando ao fortalecimento dos laços de coesãosocial e política entre as famílias e diversos atores lo-cais interessados em apoiar a implementação de umafeira agroecológica;

d) realização de oficina com as famílias e diversos atoresengajados na proposta objetivando elaborar um projetobásico de estruturação material, gestão, comunicação(enfocando a importância dos valores cultural, econômi-co, social e ambiental dos produtos agroecológicos daagricultura familiar) e publicidade (criação de identidadevisual e peças publicitárias para divulgação das feiras);

e) realização de oficinas voltadas para o debate sobre aadministração da feira e para planejar o equilíbrio entreoferta e demanda da produção, de modo a garantirdiversidade, freqüência, volume e qualidade de alimen-tos disponíveis na feira ao longo do ano (ver Figura);

f) instalação da feira agroecológica; eg) realização mensal do Dia de Aprendizagem1, com foco

no aprimoramento técnico para a produção agroeco-lógica e gerenciamento da feira, envolvendo todos(as)os(as) produtores(as).

Os primeiros frutosEntre 2002 e 2008, foram implantadas onze

novas feiras agroecológicas2, enquanto nove que já exis-tiam por iniciativa de ONGs parceiras foram fortalecidas.No total, 477 famílias produtoras comercializam seus pro-dutos nessas feiras, o que tem permitido a agregação deR$ 40,00 a R$ 120,00 por semana às suas rendas. Segun-do a avaliação das famílias envolvidas, esses valores sãobastante significativos, uma vez que a feira não é a únicaatividade a que se dedicam. Esse acréscimo nas rendastambém tem criado a possibilidade de (re)investimentona estrutura produtiva de suas propriedades.

Vale ressaltar ainda que a maior parte das fei-ras tem gerado um ciclo virtuoso tanto para os(as)agricultores(as) quanto para os(as) consumidores(as).Pelo lado dos(as) agricultores(as) feirantes, verificam-setransformações positivas nos agroecossistemas. Nesse sen-tido, percebe-se que, além de uma maior diversificaçãona produção de sequeiro, há um melhor aproveitamentode tipos de fontes de água que antes eram pouco e malutilizados para a irrigação em pequena escala, como asfontes de água dos poços amazonas. Há também um olhar

mais atento para o aproveitamento de alimentos in naturaou beneficiados que até então não eram valorizados en-quanto fontes de renda, como as frutas de época, a exem-plo de mangas, goiabas e umbus, produzidas nos baixiose na vegetação nativa. Além disso, a diversificação pro-dutiva tem tido repercussões muito positivas sobre o pa-drão alimentar das famílias feirantes.

Pelo lado dos(as) consumidores(as), verifica-se um rápido e constante aumento do número de adeptosà alimentação de base agroecológica. Outro aspecto im-portante é a aproximação que estabelecem com os(as)feirantes, que sempre convidam seus clientes para visitarsuas propriedades e conhecer in loco os processos desen-volvidos desde o plantio até a colheita. Conseqüentemen-te, a relação entre consumidores(as) e feirantes vai alémdo atendimento de suas necessidades individuais e imedia-tas. Observa-se, por exemplo, que muitos(as) consumi-dores(as) já se colocam como defensores(as) incondicio-nais da feira agroecológica, ingressando nas campanhasde esclarecimento da população local acerca dos benefí-cios que a produção e comercialização direta oferecempara a economia, o meio ambiente do seu município e paraa manutenção da saúde das pessoas.

Desafios para o futuro

Alguns desafios se apresentam para a consoli-dação das feiras agroecológicas existentes e para aimplementação de novas, entre eles, a ampliação dos adep-tos de alimentos agroecológicos. Esse aumento de consu-

Dia de aprendizagem

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Feira Agroecológica em Monteiro - PB

1 O Dia de Aprendizagem é realizado nas propriedades/lotes dos(as) agricultores(as).2 Feiras implantadas nos seguintes municípios: Monteiro (PB); Sumé (PB); Triunfo(PE); Caraúbas (RN); Upanema (RN); Campo Grande (RN); Olho D’água dosBorges (RN); Janduís (RN); Apodi (RN); Exu (PE) e Ipubi (PE).

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3 Metodologia aplicada com êxito nas feiras agroecológicas dos municípios de Monteiro(PB), Sumé (PB) e Olho D’água dos Borges (RN).

midores será reflexo do fortalecimento de uma consciên-cia crítica que resista aos apelos da mídia, em grande parteatrelada ao poderio econômico do modelo agroalimentarglobalizado. Além disso, como conseqüência, reduzirá aprogressiva dependência da população urbana por alimen-tos prontos ou semi-prontos. Outro grande desafio a sersuperado é a realização de revisões no aparato legal queregulamenta as certificações impostas por tal modelo eque, via de regra, marginaliza a agricultura familiar.

Como oportunidades a serem melhor explora-das, o Projeto Dom Helder e seus parceiros visualizam apossibilidade de estruturação de redes territoriais de feirasagroecológicas como forma de apropriação e domínio

organizacional para o acesso a diversos mercados. Paratanto, torna-se fundamental dar continuidade ao empre-go de abordagens metodológicas que privilegiem a plenaparticipação dos(as) agricultores(as) no processo. Outraoportunidade a ser considerada refere-se à implementaçãode sistemas de certificação participativa dos produtos des-tinados às feiras agroecológicas que permitam a um sótempo criar ambientes favoráveis ao aprendizado coletivoe garantir a qualidade dos produtos comercializados.

Felipe Jalfimveterinário e Mestre em Agroecologia

[email protected]

Espedito Rufinoeconomista e Doutor em Economia

do [email protected]

Fábio Santiagoengenheiro agrônomo, especialista e Mestre em Solos

[email protected]

Mª Sarah C. Vidalengenheira agrônoma e Mestra em

extensão rural e desenvolvimento [email protected]

Referência bibliográficaMONTIEL, M. S. O contexto socioeconômico da

agricultura ecológica: a evolução dos sistemasagroalimentares. Universidade de Sevilha, 2004.

Feira Agroecológica em Monteiro - PB

Levantamento rápido da demanda poralimentos agroecológicos (tipo,

quantidade, qualidade e distribuiçãoao longo do ano)

Levantamento rápido da produçãoatual das famílias envolvidas na

feira agroecológica

Balanço entre a demanda e a ofertade alimentos agroecológicos

Identificação das famílias com potencial pararegularizar a oferta dos alimentos

(famílias garantidoras)*

Planejamento da escala de produção dasfamílias garantidoras*

Registro da comercialização e reuniõesde ajustes entre demanda e oferta

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OItinerário metodológico do planejamento em busca do equilíbrio entreoferta e demanda por alimentos nas feiras agroecológicas3

* Essas famílias são chama-das de garantidoras porquese comprometem (e rece-bem apoio especial para de-sempenhar essa função) ase dedicar com mais afincoà produção dos principaisalimentos demandados ecom déficit de oferta. Po-rém, elas continuam sendoincentivadas a plantar deforma diversificada.

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26 Agriculturas - v. 5 - no 2 - junho de 2008

Circuito Sul de circulação dealimentos da Rede

Ecovida de AgroecologiaNatal João Magnanti

Rede Ecovida deAgroecologia foicriada em 1998 a

partir da necessidade de congregaresforços e dar maior consistência po-lítica ao movimento agroecológico doSul do Brasil. São agricultores(as),técnicos(as), consumidores(as) e co-merciantes unidos em associações,cooperativas, ONGs e grupos infor-mais que têm por objetivo organizar,fortalecer e consolidar a agriculturafamiliar ecológica da região.

A Rede Ecovida é formada por núcleos regionais,também chamados de nós, que buscam, em regiões geográfi-cas determinadas, promover a troca de informações,credibilidade e produtos (Santos, L.C.R; Fonseca, M.F. 2004).

Historicamente, a comercialização tem sido umgargalo para a expansão da Agroecologia. Normalmenteexiste dificuldade em manter os mercados locais abasteci-dos com diversidade, quantidade e qualidade durante o anotodo. Assim sendo, um grupo de instituições de agriculto-res familiares agroecológicos e algumas entidades de asses-soria tomaram a iniciativa de se articular para resolver essalimitação. A partir do trabalho coletivo dessas organizaçõesfoi criado o Circuito Sul de Circulação de Alimentos da RedeEcovida de Agroecologia.

Os primeiros passos do Circuito

Em meados de 2006, a Cooperativa Ecoserrade Lages (SC), a Associação Regional de Cooperação eAgroecologia (Ecoterra) de Erechim (RS), a Associaçãopara o Desenvolvimento da Agroecologia (Aopa) deCuritiba (PR) e a Associação Cooperafloresta de Barra doTurvo (SP) se articularam para desenvolver a proposta deum sistema de comercialização baseado nos princípios da

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Reunião do Circuito em Barra do Turvo - SP

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economia solidária e da Agroecologia. Essa iniciativa deuseqüência a encontros realizados anteriormente emChapecó (SC), envolvendo dezenas de organizações vin-culadas à Rede Ecovida de Agroecologia e a outras insti-tuições promotoras da Agroecologia no Sul do Brasil, paradebater e encaminhar uma proposta conjunta decomercialização. A partir dessa idéia original, o grupo rea-lizou diversas rodadas de reuniões, assumindo o desafiode conduzir a discussão teórica e, ao mesmo, tempo avan-çar na efetivação de estratégias comerciais para o escoa-mento de alimentos agroecológicos. Dessa forma nasceuo Circuito Sul de Circulação de Alimentos da Rede Ecovidaque, atualmente, conta com a participação de entidadesdos três estados do Sul e de São Paulo (ver tabela 1).

Organização e gestão do circuito

O circuito funciona com base em sete esta-ções-núcleos1 e dez subestações2. Seu sistema de gestãoé enxuto e se fundamenta em reuniões mensais que ocor-rem em rodízio nas estações ou subestações. Essas reu-niões vêm sendo promovidas regularmente desde 2006,por ocasião da instituição do circuito. Esses encontrostêm por objetivo o aprimoramento das políticas que re-gem o circuito, bem como a realização de planejamento emonitoramento das atividades e a negociação dos preçospraticados. Para tanto, são reservados momentos especí-ficos para a reflexão e debate dos princípios funcionais docircuito, para a definição dos planos operacionais e para oacerto de contas das transações realizadas no períodoentre as organizações.

Desde as primeiras vendas, alguns princípios ge-rais orientaram o sistema e conferiram a ele um caráter dife-

rencial com relação aos mecanismos convencionais de aces-so aos mercados. Em primeiro lugar, para integrar o circuito,é necessário que os alimentos ofertados para a comer-cialização sejam produzidos ecologicamente e que estejamcertificados com selo da Rede Ecovida de Agroecologia.Também devem ser necessariamente oriundos da agricultu-ra familiar, sendo produzidos em sistemas diversificados queassegurem alto nível de segurança alimentar para as famíliasprodutoras. A economia da agricultura familiar é assim con-cebida como o somatório da produção destinada ao auto-abastecimento das famílias e aos mercados. Nesse sentido,o enfoque comercial que rege o sistema difere das lógicasconvencionais, privilegiando a segurança alimentar de pro-dutores e consumidores.

Um segundo princípio norteador do sistemadetermina que as organizações que vendem devem se com-prometer também a comprar produtos de outras organi-zações do circuito. Esse procedimento garante o inter-câmbio de produtos entre os núcleos regionais, o que per-mite a ampliação da diversidade de mercadorias ofertadasnos diferentes mercados locais: feiras, famílias agricultorassócias da Rede Ecovida, mercados institucionais, entreoutros. Assim concebido, o sistema favorece ainda a redu-

Tabela 1. Organizações que atualmente integram o Circuito

São Paulo Associação Cooperafloresta (Barra do Turvo)

Paraná Associação de Agricultura Orgânica do Paraná - Aopa (Curitiba), Associa-ção dos Produtores Orgânicos do Médio Oeste do Paraná (Apomop), Coo-perativa das Famílias Agroecológicas - Cofaeco (São Mateus do Sul), Asso-ciação dos Produtores Ecológicos de Palmeira – Apep

Santa Catarina Centro Vianei de Educação Popular (Lages), Centro de Estudos e Promo-ção da Agricultura de Grupo (Florianópolis), Cooperativa Ecoserra (Lages),Coooperativa de Organização, Produção e Comercialização Solidária doPlanalto Norte de Santa Catarina (Comsol), AS-PTA (Porto União)

Rio Grande do Sul Centro Ecológico Serra (Ipê), Central de Comercialização de Ipê, Associa-ção Ecoterra (Três Arroios), Centro de Alternativas Populares – Cetap(Passo Fundo)

1 Localizadas nos municípios de Erechim(RS), Lages (SC), Curitiba (PR), Lapa(PR), Palmeira (PR), Jesuítas (PR), Porto União (SC).2 Localizadas nos municípios de Passo Fundo (RS), São Mateus do Sul (PR), Lapa(PR), Palmeira (PR), Castro (PR), Cerro Azul (PR), Morretes (PR), Torres (RS),Praia Grande (SC), Florianópolis (SC).

Comercialização de produtos do circuito naFeira Agroecológica de Curitiba

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ção dos custos com frete, na medida em que os caminhõessempre viajam carregados entre as estações. O mecanis-mo de compra e venda entre estações permite também amenor circulação de dinheiro, já que em muitos casos ocor-re simplesmente a troca de produtos. Os recursos mone-tários são empregados nessas situações apenas para cobrireventuais diferenças de valor na transação.

A política de comercialização solidá-ria segue também o princípio da justi-ça e da transparência na valoração dosprodutos, sendo necessário avaliar pe-riodicamente os critérios para a forma-ção dos preços. Para tanto, conside-ram-se todas as etapas do processo pro-dutivo, observando essencialmente queo trabalho das famílias agricultoras sejajustamente remunerado e que, ao mes-mo tempo, os produtos sejam acessí-veis aos consumidores.Para garantir a transparência e a participação efe-

tiva nesse processo, as organizações que realizam acomercialização criaram planilhas em que apresentam todosos custos envolvidos nessa atividade. Dessa forma, a com-posição de preços praticados em cada núcleo é conhecidapor todos, permitindo que haja debates sobre formas deracionalização dos custos. Além desse sistema entre as orga-

nizações, cada estação-núcleo deve estabelecer com os agri-cultores a ela articulada um processo de debate e de defini-ção de política de preços.

O sistema de gestão e organização das esta-ções também prevê que haja uma instituição responsávelpor cobrir os custos operacionais. Uma pessoa de contatoem cada estação se encarrega de levantar os pedidos e asofertas de produtos e a passar essa informação ao sistemaem datas pré-definidas de forma a planejar as rotas doscaminhões. É também atribuição dessa pessoa avaliar aqualidade dos produtos recebidos e ofertados ao circuito.

Até o momento o circuito é constituído por trêsgrandes rotas articuladas por dez núcleos da Rede Ecovida:

a) Erechim–Curitiba: tem uma extensão de 1.130 km eenvolve 200 famílias agricultoras;

b) Lages–Curitiba–São Paulo: tem uma extensão de2.100 km e envolve 280 famílias;

c) Barra do Turvo–Curitiba: tem uma extensão de 300km e envolve 80 famílias.

As demais sub-rotas envolvem aproximadamen-te 150 famílias. Uma quarta rota está em fase de constitui-ção e ligará o Planalto Serrano (Lages), o Alto Vale doItajaí (Presidente Getúlio) e o Litoral de Santa Catarina(Florianópolis), com uma extensão de 450 km e cerca de100 famílias participantes. Além dessa quarta rota em viasde abertura, outros núcleos da Rede Ecovida manifesta-ram interesse em se integrar ao circuito.

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Agriculturas - v. 5 - no 2 - junho de 2008 29

Desde os primeiros intercâmbios de produtos,em 2006, foram comercializados aproximadamente 831mil kg de 74 tipos de alimentos, movimentando o mon-tante de R$ 1,5 milhões.

Desafios para o futuro

Um dos principais desafios colocados para aviabilização do circuito a longo prazo refere-se à necessi-dade de consolidação de sua capacidade de obtenção emanutenção de resultados econômicos efetivos sem quepara isso abra mão dos princípios da economia solidária eda Agroecologia que regem a Rede Ecovida. A superaçãodesse desafio envolve desde questões de políticas públi-cas até outras de natureza prática e organizativa.

Do ponto de vista político, torna-se necessáriolutar pela ampliação e consolidação das políticas públicasvoltadas para a comercialização da agricultura familiaragroecológica. Programas de compras institucionais, comoo Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), devem terseus formatos aprimorados e ser mais abrangentes. Tam-bém é necessário construir novos programas de acesso aomercado institucional, como é o caso do projeto de Lei2.877 que trata da ampliação e qualificação da alimenta-ção escolar por meio do Programa Nacional de Alimenta-ção Escolar do Ministério da Educação (Pnae/MEC).

Outra estratégia a ser intensificada relaciona-se aoestímulo para que as próprias famílias agricultoras que integrama Rede Ecovida consumam produtos ecológicos, já que elascompõem um mercado potencial de grande envergadura.

Na dimensão organizativa, destaca-se a necessida-de de criar uma marca guarda-chuva do circuito que permitaidentificar os produtos que comercializa, sobretudo para darvisibilidade e favorecer o processo que está sendo engendradojunto aos consumidores dos diferentes mercados locais. Tam-bém são necessárias medidas para minimizar perdas de produtosentre as estações e as subestações. Essas perdas ocorrem pordois motivos principais: a utilização de embalagens pouco ade-quadas e a falta de padronização dos produtos.

No terreno da organização formal, uma possibilida-de a ser discutida é a constituição de uma cooperativa base oucentral para filiação das estações e subestações de forma a faci-litar a emissão de notas fiscais e diminuir a tributação incidentenos produtos comercializados por intermédio do circuito.

Finalmente, o emprego de biocombustível a partirde óleo reciclado nos caminhões do circuito tem sido tambémuma proposta debatida com o propósito de ecologizar a matrizenergética do transporte de alimentos.

Natal João Magnanti engenheiro agrônomo e pedadogo, Msc. ciências do

solo, secretário de administração e finanças do CentroVianei de Educação Popular e membro do conselho de

administração da Cooperativa Ecológica [email protected]

Referências bibliográficasARL, V. Caderno de Formação 01. Rede Ecovida

de Agroecologia, 2007. 46p.

SANTOS, L.C.R.; FONSECA, M.F. Construindoa certificação participativa em rede no Brasil:cartilha para subsidiar as oficinas locais.Florianópolis: Grupo de Trabalho deCertificação Participativa do GAO, 2004. 44p.

Entrega de produtos da Associação Ecoterra na sede da Coo-perativa Ecoserra em Lages-SC

Acertos e conferências entre Ecoterra e Ecoserra em Lages - SC

Descarga de produtos na estação de Porto União-SC

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30 Agriculturas - v. 5 - no 2 - junho de 2008

Sistemas Participativosde Garantia possibilitam

certificação alternativaTegan Renner

o longo das últi-mas três décadasa agricultura or-

gânica ganhou uma dimensão glo-bal com a criação de um sistema decertificação por terceiros voltadopara atender requisitos do mercadointernacional. Esse sistema se dis-seminou enormemente nos últimosanos, trazendo consigo mais desa-fios do que oportunidades aos pro-dutores familiares, especialmente osdos países do Sul. Muitos acatam osprincípios da agricultura orgânica,

mas não conseguem vender seusprodutos nesses mercados uma vezque lhes falta a certificação por ter-ceiros.O fato é que a maioria dos agricultores não pode

arcar com os altos custos implicados nesse sistema decertificação. A vasta documentação exigida também é vistafreqüentemente como um obstáculo. Além dessas barreiras,deve-se levar em conta que os padrões internacionais para aprodução orgânica como os da Ifoam (Federação Internaci-onal dos Movimentos da Agricultura Orgânica) foram de-senvolvidos por pessoas dos países do Norte, apesar de 75%de seus membros serem do Sul. O resultado são padrões quenão consideram os climas ou as economias do Sul.

Diante desses desafios, pequenos produtores detodo o mundo criaram sistemas alternativos para a certificação

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Comitê de certificação participativa no México. Certificação como um processo educativo.

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que são adaptados às suas realidades ecológicas e econômicaslocais. Ainda que fundados nos princípios da agricultura orgâni-ca, esses sistemas comumente não são presos aos padrões bási-cos da Ifoam. Eles incorporaram as modificações necessáriaspara refletir as necessidades da comunidade, incluindo diferen-tes meios culturais de assegurar a qualidade “orgânica”. As mu-danças mais básicas envolvem a redução da papelada e doscustos de certificação.

A ênfase no caráter participativo dadapor todos esses sistemas alternativoscunhou o termo geral “sistemasparticipativos de garantia” (SPGs).Com foco na comunidade, os padrõessão criados conjuntamente por produ-tores e consumidores que se beneficia-rão do sistema. Dessa forma, a trans-parência e a participação configuram-se como valores centrais nos sistemasalternativos de certificação.

A confiança também é um dos pilares do SPG,não só por conta de sua criação coletiva, mas também emfunção da relação continuada entre produtores e consu-midores na compra direta em mercados e feiras e na es-treita relação entre produtores que trabalham juntos paramanter o sistema funcionando. A troca de informações eexperiências entre os participantes ajuda a construir es-ses laços de confiança mútua. Nesse sentido, a formaçãoé outro componente chave do SPG. O compartilhamentode soluções e a realização de encontros para discutir te-

mas ligados ao manejo da propriedade é uma prática cor-rente nesses sistemas. A maioria dos SPGs apresenta estruturanão-hierárquica que é garantida pela distribuição de responsabi-lidades relativamente igualitária entre os produtores que inte-gram o sistema.

A Rede Ecovida de Agroecologia, no Sul do Brasil,é um exemplo dos mais significativos de SPG. O sistema, com-posto por ONGs locais e instituições de pesquisa, envolve comomembros 2.300 famílias de agricultores, 25 organizações deassessoria, 15 grupos de consumidores, 8 firmas de comer-cialização e 7 pequenas agroindústrias. A maioria dos agriculto-res da Rede comercializa seus produtos individual ou coletiva-mente em feiras e mercados locais. Outros vendem para coope-rativas ou unidades de processamento que também fazem parteda Rede. Os membros recebem um valor prêmio pela certificaçãoe podem ficar com uma fatia maior do lucro, já que o sistemadispensa a ação dos atravessadores.

A Ifoam relata a existência de dezenas de SPGs pelomundo, que variam em escala e abordagem. Embora os SPGstenham princípios fundadores comuns, a forma deles operaremvaria de acordo com as demandas das comunidades locais. Deve-se destacar que mesmo em um sistema como o da Rede Ecovida,o foco continua sendo o do consumo direto e local. Há nomovimento dos SPGs aqueles que desejam acessar nichos demercado no Norte, mas essa ambição ainda está longe de serconcretizada. Existem vários sinais de que a Ifoam reconhece aimportância dos SPGs nas relações de consumo local e direto,mas não como um sistema voltado à exportação. Recentemen-te ela publicou uma série de sugestões para orientar ONGs egovernos na promoção de SPGs. Suas idéias incluem a constru-ção da credibilidade desses sistemas por meio da criação de mer-cados locais, pela viabilização de melhores condições de acessoaos mercados urbanos pelos produtores, e outras iniciativas. OsSPGs representam a oportunidade de o movimento orgâniconovamente apoiar o consumo local, ao mesmo tempo em quefortalece laços comunitários, economias e o meio de vida rural.

Tegan RennerUniversidade de Waterloo, Ontário, Canadá

[email protected]

Referências:FAO, 2007. Participatory Guarantee Systems for

marketing organic products, Brazil. Food andAgriculture Organization, Rome, Italy.

IFOAM, 2007. Participatory Guarantee Systems:shared vision, shared ideals. InternationalFederation of Organic Agriculture Movements,Bonn, Germany.

Raynolds, Laura T., 2004. The globalization oforganic agro-food networks. WorldDevelopment, 32,5.

Feira orgânica semanal em Lima - Peru

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32 Agriculturas - v. 5 - no 2 - junho de 2008

Justo até a última gota:desafios ao mercado justo

Eric Holt-Giménez, Ian Bailey eDevon Sampson

mercado justo docafé tem experi-mentado uma re-

cente e extraordinária expansão noplano internacional, além de uma leverecuperação do preço do produto.Por outro lado, tem sido alvo de cres-centes críticas. Grupos de estudantes,movimentos que lutam por justiça so-cial e mesmo alguns torrefadores queatuam nesse mercado vêm questio-nando, ainda que por razões distintas,o caráter justo, bem como o futurodesse comércio. Organizações de agri-cultores, como a Via Campesina, de-

safiam o movimento do comércio jus-to a implementar e lutar politicamen-te por mudanças estruturais nos mer-cados. Muitos consumidores e ati-vistas desse movimento também sesentem incomodados com o fato deos produtos certificados como justosestarem sendo vendidos por meio decorporações multinacionais que ado-tam práticas injustas de trabalho e sevalem do poder de monopólio queexercem nos mercados.

A Organização Internacional de Certificação deComércio Justo (Fair Trade Labelling OrganizationInternational – FLO) e outros organismos certificadores

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Julio Cesar Rumaldo, membro da Cooperativa La Concordia, selecionando cerejas de café de sua colheita (Tacuba, El Salvador)

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Agriculturas - v. 5 - no 2 - junho de 2008 33

vêm disseminando a idéia de que o chamado mercadojusto deve assumir a hegemonia no campo da comercia-lização. No entanto, é justamente essa a principal razãodas críticas mais recentes. Para os maiores compradoresde café, o mercado justo representa apenas uma pequenaporcentagem de suas compras. Para essas companhias,esse mercado não é um movimento social ou um comér-cio ético, mas simplesmente uma oportunidade demarketing e um nicho lucrativo. Um produto vinculadoà noção de mercado justo faz com que a corporaçãopareça socialmente responsável, mesmo que ela conti-nue a comprar a maior parte de sua mercadoria no mer-cado convencional. Essa situação faz com que muitosatores do mercado justo questionem o que significa aprópria noção de justiça nesse comércio.

O objetivo do comércio justo é auxi-liar o maior número possível de cam-poneses a vender a maior quantidadepossível de café? É transformar as es-truturas historicamente injustas domercado do café? Será o mercado uminstrumento para mudanças sociais?Serão os movimentos sociais as for-ças para transformá-lo? Afinal, é pos-sível que esse mercado venha a se tor-nar uma forma bem mais ampla decomercialização para os camponesestendo como intermediárias as mes-mas corporações que foram as prin-cipais responsáveis pela crise do mer-cado internacional do café? Essas sãoquestões que estão no cerne da cres-cente discordância entre defensoresdo comércio justo.

Mudanças sociais?Ainda que o valor diferenciado do café comer-

cializado pela via do mercado justo tenha proporciona-do uma importante segurança durante a pior das crisesdo produto, pesquisas recentes questionam muitas dasafirmações feitas por certificadores e corporações vare-jistas. Em estudo sobre famílias e comunidades produ-toras de café do México e da América Central, por exem-plo, pesquisadores da Rede Comunitária de Agroecologia(CAN, sigla em inglês) não identificaram diferenças sig-nificativas na possibilidade de enviar as crianças à escolaou no nível da segurança alimentar entre famíliasagricultoras ligadas ou não ao mercado justo. O estudotambém não encontrou evidências de que a certificaçãopara o mercado justo, por si só, tenha empoderado osagricultores para que saíssem da pobreza por seus pró-

prios meios. Ao contrário, registrou que a cooperativaque aparentemente mais se beneficiava tinha uma rela-ção direta com um comprador norte-americano que com-prava anualmente todo o café por um preço acima da-quele mínimo recebido pelos agricultores que vendiamsua produção no mercado justo.

Estudos também sugerem que os êxitos obti-dos por meio do mercado justo se devem tanto aos esfor-ços de organização local dos agricultores quanto àcertificação. Pelo menos parece haver uma relação mutu-amente benéfica entre os valores mais elevados de vendae o amplo trabalho social e político realizado pelos movi-mentos camponeses. Nessas circunstâncias, é difícil ima-ginar que o mercado justo consiga realmente se aprimo-rar sem estar apoiado nas históricas lutas pela reformaagrária, pelas organizações de cooperativas e pelos direi-tos das comunidades locais. Contudo, nenhum dessesaspectos é destacado no marketing corporativo do mer-cado justo, onde as declarações sobre seu desenvolvi-mento são politicamente pasteurizadas para o consumode massa. No máximo enfatiza-se a cooperação entre oscamponeses, mas não a sua luta.

Renda mínima ou renda justa?Em dezembro de 2006, a Associação de Coo-

perativas dos Pequenos Produtores de Café da Nicarágua(Cafenica) e o Órgão Coordenador dos Pequenos Produ-tores do Comércio Justo na América Latina e Caribe (Clac)submeteram um relatório à FLO demandando um aumen-to de preço de R$ 0,55 por quilo de café. Alegando faltade informações, a FLO inicialmente negou a solicitação eadiou as conversações. Depois da pressão de organiza-ções de agricultores e de grupos de consumidores, a FLOconcordou com um aumento equivalente a um terço daquantia reivindicada.

O relatório do Clac e outros estudos de impac-to mostram algumas desvantagens da certificação do mer-cado justo e seus mecanismos. O preço mínimo nessemercado funcionou como um salva-vidas durante a crisedo café. Porém, ele nunca esteve atrelado aos custos deprodução ou de vida dos produtores, sendo, atualmente,cada vez menos efetivo em assegurar benefícios sociais.Alguns estudos indicam que os agricultores estão inclusi-ve perdendo dinheiro com o mercado justo – eles só per-dem menos do que os produtores convencionais. Alémdisso, ao buscar se tornar uma forma bem mais dissemina-da de comercialização, o mercado justo acaba asseguran-do aos agricultores apenas uma renda mínima e não umarenda justa. Hoje há grandes divergências entre os agri-cultores representados no Clac e os certificadores do mer-cado justo, que insistem na manutenção do preço baixopara assegurar a comercialização por intermédio das gran-des corporações varejistas.

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Alternativas ao mercado justo dascorporações

Acordos comerciais como os praticados pormuitas das organizações de comércio alternativo me-lhoram as condições e as oportunidades para as coope-rativas de cafeicultores com as quais comercializam di-retamente, uma vez que a certificação assegura umpreço mínimo e não um preço máximo. Torrefadores,como a Equal Exchange, dos EUA, e a Cafédirect, doReino Unido, têm o compromisso de só vender cafécertificado pelo mercado justo e usam a certificaçãocomo ponto de partida para formar parcerias comerci-ais de longa duração com as cooperativas de produto-res. A Thanksgiving Coffee paga prêmios 40% superi-ores ao preço do mercado justo. O proprietário, PaulKatzeff, procura cooperativas com certificação orgâ-nica e as auxilia na obtenção da certificação para omercado justo para, então, trabalhar junto com as co-munidades produtoras para ajudá-las na melhoria daqualidade do café. O esquema de comercialização dire-ta adotado pela CAN, por exemplo, estimula que ospróprios agricultores agreguem valor à sua produçãolocalmente e ainda viabiliza um modelo alternativo decertificação. Outras empresas são co-propriedades deorganizações de agricultores. Esses modelos de em-presas que têm os agricultores como sócios permitemnão só o aumento da remuneração dos mesmos, comotambém maior autonomia nos processos de decisãosobre a comercialização.

De forma geral, essas organizações alterna-tivas que atuam nos mercados justos possuem algumascaracterísticas comuns que as diferenciam das grandescorporações. São elas:• Transparência. Ao contrário do comportamento da

maioria das corporações, que fazem segredo sobrea quantidade de café certificado como justo quevendem, as empresas ligadas ao movimento são bas-tante transparentes sobre essa questão e sobre osvalores pagos aos agricultores.

• Compromisso de longo prazo. As empresas ligadasao movimento trabalham com cooperativas de pro-dutores para investir na melhoria da qualidade doseu café. Podem tanto oferecer treinamento paraprovadores locais de café – para que eles sejam ca-pazes de reconhecer e se empenhar pelo aprimora-mento do produto – como auxiliar as cooperativasa diversificarem a produção. Há casos também deempresas que apóiam projetos nas áreas de saúde ede educação em comunidades que produzem o caféque comercializam.

• Retenção da maior parte do valor do café na comu-nidade produtora. Tradicionalmente, a maior partedo valor do café é apropriada por agentes externosàs comunidades produtoras, gerando grandes lu-

cros para torrefadores e revendedores. Já empresasligadas ao movimento atuam para que a maior parteda renda gerada na cadeia produtiva seja retida nacomunidade produtora.

Indo além do aspecto comercial:comércio justo e transformaçãosocial

A discussão sobre se o comércio justo deve setornar uma forma bem mais ampla de comercialização re-flete as crescentes divergências sobre o sentido de justiçaque vem sendo adotado nos mercados. Essas divergênciastêm sua raiz em tensões entre diferentes estratégias de-fendidas para a promoção de mudanças sociais: umas sebaseiam na regulação pelo mercado, enquanto outras naação política e na capacidade de organização dos movi-mentos sociais. Os certificadores ligados ao mercado jus-to defendem a primeira estratégia, ou seja, a de vender omaior volume possível graças ao preço mínimo relativa-mente baixo praticado no comércio justo. Os produtorese as organizações que atuam no comércio alternativo, porsua vez, reivindicam preços baseados nos custos de pro-dução e se preocupam com a perda de controle e de au-tenticidade do comércio justo.

Essas tensões colocam o movimento docomércio justo em uma posição difícil.Se abrir mão da idéia de que deve se tor-nar uma forma bem mais disseminadade comercialização, corre o risco de nãoser suficientemente significativo para

Membros da Cooperativa La Concordia, assim como produ-tores de café de todo o mundo, merecem um preço justo paraseus produtos

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mudar a situação dos agricultores. Poroutro lado, se seguir nessa linha, sem sepreocupar com as razões estruturais dainjustiça social, pode vir a se diluir, res-tringindo suas capacidades de transfor-mação social. Ou seja, a ênfase em tor-nar o comércio justo uma forma hege-mônica de comercialização pode margi-nalizar ativistas e agricultores – os ver-dadeiros condutores das transformaçõessociais e os que defendem fazer do co-mércio justo um mecanismo que vá alémde um simples mercado um pouco me-lhor para produtores de café pobres.

A transparência, o risco, as condições de tra-balho e a distribuição dos lucros são elementos que refle-tem diretamente o grau de poder dos agentes do merca-do. No atual mercado desregulamentado de café, as re-gras são impostas por aqueles que dominam a torrefaçãoe a distribuição, ou seja, as partes mais lucrativas da ca-deia produtiva. Enquanto os agricultores não possuíremparticipações substanciais na torrefação e na distribui-ção, eles estarão sempre sujeitos aos níveis de justiça acei-táveis determinados por aqueles que controlam o merca-do do café. Felizmente, já há iniciativas encorajadorasque abalam essa estrutura da cadeia produtiva. A multi-plicação dessas iniciativas ajudaria a deslocar o equilíbriode poder do comércio justo na direção dos agricultores,ao invés de favorecer as grandes corporações.

Uma experiência exemplar naNicarágua

Um dos papéis mais importantes do comér-cio justo tem sido o de auxiliar a construir e apoiarcooperativas de agricultores. Na Nicarágua, quan-do o governo sandinista de esquerda perdeu o po-der, em 1990, as cooperativas de agricultores fica-ram sem qualquer apoio governamental. Elas for-maram, então, cooperativas para comercialização,crédito e outras finalidades. A primeira de tais or-ganizações foi a Promoção do Desenvolvimento Co-operativo da Região de Segóvia (Prodecoop). Ro-sário Catellón, co-fundadora da Prodecoop, contaa história:

“Em 1991, as primeiras cooperativas que hojecompõem a Prodecoop exportaram sua produçãopara a Equal Exchange, uma empresa compradorade café do comércio justo sediada nos EUA. Algunsdos membros da Prodecoop haviam tomado em-préstimos durante a revolução sandinista, mas onovo governo exigiu sua restituição imediata. O ban-co reteve a produção de café desses agricultores comogarantia e executou a hipoteca sobre a terra deles.Os representantes das cooperativas levaram essa si-tuação difícil aos escritórios da Prodecoop.

Jonathan Rosenthal, então diretor executivoda Equal Exchange, ouviu as cooperativas e assu-miu o risco que nenhum outro banco ou instituição

financeira se dispunha a assumir. Ele nos adiantouuma parte da compra do nosso café. Após negocia-ções, a Prodecoop comprou de volta o café do ban-co, comprometendo-se a aplicar toda a renda dasvendas para quitar os débitos das cooperativas.

A Equal Exchange contribuiu para tirar aProdecoop do anonimato. Eles foram os primeiroscompradores do nosso café e ajudaram a torná-loconhecido no mercado norte-americano. JonathanRosenthal e a Equal Exchange têm se empenhadoem construir pontes de tal forma que aqueles quehistoricamente estiveram em desvantagem no mer-cado possam assumir as etapas da cadeia produtivada indústria do café e com isso quebrar a extensacadeia de intermediários. Dessa forma, eles podemobter rendas mais elevadas; reduzir a pobreza; ga-nhar sustentabilidade econômica, ambiental e soci-al; e, mais do que tudo, recuperar sua esperança nofuturo e em si mesmos. Os pequenos agricultores daProdecoop nunca imaginaram que iriam estar sen-tados para negociar frente a frente com importa-dores e torrefadores de café norte-americanos e eu-ropeus. A Prodecoop tem sido um exemplo para opaís e para o mundo. Ela tem motivado o ressurgi-mento de muitas cooperativas de pequenos agricul-tores na Nicarágua e em outros países.”

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Rede de segurança ou estratégiade desenvolvimento?

A teoria neoliberal de que os mercados por simesmos são suficientes para reduzir a pobreza, terminarcom a fome e promover o desenvolvimento sustentáveltem sido refutada pelas duas décadas da globalizaçãoconduzida pelas corporações. Os propagandistas do co-mércio justo que afirmam que ele “empodera os agricul-tores” estão, na essência, declarando que a certificação éo pequeno ajuste necessário para que as promessasneoliberais sejam cumpridas.

Quando os preços do café caíram drasticamen-te em 2001 e 2002, os preços mínimos do mercado justode fato funcionaram como um mecanismo de segurançapara os agricultores. Esse aspecto é amplamente divulga-do nas páginas eletrônicas e nos materiais promocionaisdos certificadores e das companhias de café que comer-cializam produtos do mercado justo. Além disso, cente-nas de agricultores testemunham que se beneficiaram comos melhores preços conseguidos nessa época.

Contudo, agricultores que se organizam emcooperativas, estudantes e consumidores, bem como ONGsque realizam campanhas em defesa da justiça nos merca-dos, têm em mente algo mais do que uma simples rede desegurança que é acionada nos momentos de crise. Elestrabalham para pôr fim à fome, à pobreza e à extrema injus-tiça provocadas pelo livre comércio. Para esses atores, omercado justo deve ser concebido dentro de um processomais amplo para o desenvolvimento sustentável.

Apesar de os preços mínimos garantirem aosagricultores uma proteção contra quedas abruptas de pre-ço, é necessário lançar mão de uma estratégia de desen-volvimento abrangente que assegure que as instituiçõeslocais dos produtores sejam fortalecidas para que seu po-der de influência nos mercados aumente. É evidente queo modelo de certificação que está sendo adotado com aentrada das grandes corporações no negócio do mercadojusto é insuficiente para responder a essa questão.

Para cumprir sua promessa quanto à promo-ção de um desenvolvimento eqüitativo, o mercado justoprecisa intensificar seu trabalho com os movimentos cam-poneses para fazer a globalização corporativa retroceder,bem como para restabelecer as instituições sociais e polí-ticas rurais necessárias para o avanço de uma agriculturaprodutiva e saudável.

Pensando no futuro: a construçãoda soberania de mercado

O futuro do mercado justo do café dependeráde sua capacidade de trazer produtores, consumidores etorrefadores-distribuidores para dentro dos crescentesmovimentos sociais por mudanças nas estruturas agrári-as. Está claro que a consolidação desse movimento mais

amplo deverá estar vinculada à construção de um sentidode pertencimento cada vez maior, ao estabelecimento decompromissos mútuos e à efetiva participação dos dife-rentes atores nas tomadas de decisão. Como o mercadojusto possui dimensões tanto econômicas quanto políti-cas, para que a participação dos agricultores seja politica-mente comprometida, eles deverão ser incorporados nosnegócios não como parte interessada, mas como sócios.Dar aos agricultores uma posição majoritária no conselhodiretor da FLO, por exemplo, seria um bom avanço nabusca desse objetivo.

É improvável que as grandes corporações pro-movam uma agenda orientada para o atendimento dosinteresses dos agricultores e que visem a mudanças soci-ais. Elas tentarão vender a menor quantidade possível decafé do mercado justo, ao preço mais baixo possível, con-tando com seu vasto poder de mercado para assegurarque os agricultores fiquem a elas subordinados. Mas essanão é uma razão para que se desista do mercado justo.Pelo contrário, para evitar que ele se torne irrelevantepara as lutas dos agricultores, cabe às organizações alter-nativas, às ONGs e aos ativistas auxiliar os produtores decafé a aumentarem não só o seu mercado, mas também oseu poder sobre o mercado; não só o seu negócio, mastambém a sua parte de controle do negócio.

A capacidade de fazer com que os atorescorporativos no mercado justo assumam crescente respon-sabilidade pública por padrões mais eqüitativos dependedo quanto o movimento do comércio justo consiga avan-çar no que diz respeito à soberania de mercado dos agricul-tores – o poder de determinar como produzir, processar,vender e distribuir de formas justas e sustentáveis.

Felizmente, o movimento do mercado justoé dinâmico e constantemente origina novas formas deorganização social, econômica e política. Mesmo a FLOsurpreendeu aos mais céticos ao redesenhar sua estru-tura para incluir organizações de agricultores em seuquadro diretivo, dando passos concretos na direçãode, finalmente, permitir aos produtores a participaçãonos processos de certificação do mercado justo. Àmedida que o poder dos agricultores cresça dentro domercado justo e que o movimento se articule estrategi-camente com os movimentos de agricultores e consu-midores por mudanças sociais, esse mercado estará bemposicionado para cumprir com suas promessas maisamplas relacionadas à promoção de um desenvolvimen-to verdadeiramente justo.

Eric Holt-Giménez, Ian Bailey e Devon SampsonFood First/Institute for

Food and Development [email protected]

Este texto é uma versão editada do artigo publicado pelo Instituto Food First. Aversão original, com referências completas, pode ser solicitada por correio ou acessadaem: http://www.foodfirst.org/node/1794.

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Algodão agroecológicono comércio justo:

fazendo a diferença1

Pedro Jorge B. F. Lima

Brasil passou a fi-gurar entre ospaíses produto-

res de algodão orgânico a partir dasafra colhida em 1993/4 por agri-cultores familiares do município deTauá, no semi-árido do estado doCeará (Lima, 1995). Esse algodão,produzido sem uso de agrotóxicos,foi adquirido pela Filobel IndústriasTêxteis do Brasil, de Jundiaí (SP),para fabricação de camisetas para aONG Greenpeace.

Desde o princípio, essa experiência pioneiracontou com o apoio técnico do Esplar – Centro de Pes-quisa e Assessoria, uma ONG sediada em Fortaleza (CE),e foi organizada pela Associação de DesenvolvimentoEducacional e Cultural (Adec), formada por agricul-

tores(as) familiares agroecológicos daquele município eresponsável pela compra do algodão em rama, bem comopelo beneficiamento e venda da pluma.

Durante cerca de dez anos, algumas grandesempresas do setor têxtil procuraram comprar o algodãoagroecológico cearense, mas nenhuma se interessava emestabelecer uma aquisição permanente em função dospequenos volumes de pluma ofertados, sempre inferio-res a cinco toneladas por ano. Empresas de pequenoporte, em início de atividade, embora não necessitas-sem de grandes volumes, esbarravam na dificuldade deencontrar quem se dispusesse a produzir pequenos vo-lumes de fios e tecidos em caráter de prestação de servi-ço. Mesmo assim, até 2002, a pluma era vendida noincipiente mercado orgânico brasileiro a preços 30%superiores aos do produto convencional.

O

1 Para fins deste artigo, considera-se orgânico o algodão que é auditado e certificadopor um organismo credenciado como certificador de tais produtos. Já o algodãoagroecológico é aquele cultivado em sistemas de manejo agroecológico, ou seja,preenche os requisitos para a certificação orgânica, porém, não é certificado comotal, seja por falta de recursos dos agricultores para arcar com os custos da certificaçãoou porque o comprador da fibra dispensa o certificado (Lima; Souza, 2007).

Geraldo Germando da Silva e Jacó Ramos da Silva colhem algodão agroecológico no assentamento Tiracanga, Canindé -CE

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Comércio justo: fazendo adiferença

Em 2004, a recém-criada empresa francesa VejaFair Trade procurava algodão orgânico para fabricar calça-dos esportivos no Brasil, destinados ao comércio justo euro-peu. Acessando a página eletrônica do Esplar, seus donosobtiveram informações sobre o algodão agroecológicocearense. Logo um deles veio ao Ceará onde adquiriu asprimeiras três toneladas de pluma de algodão da Adec, dasafra de 2003. Na sequência, negociou a assinatura de umcontrato de compra com duração de três anos, firmado em2005 (Lima, 2005). Em novembro de 2007, acertou as ba-ses de sua renovação por mais três anos.

Também em 2004, a Univens, uma cooperati-va de costureiras de Porto Alegre (RS), articulou umarede de cooperativas e associações de trabalhadores(as)de todos os elos da cadeia têxtil para fabricar confecções,pautando-se pelas normas do comércio justo e mercadosolidário (Lima, 2005). Uma dessas cooperativas, a Coo-perativa Nova Esperança (Cones), de Nova Odessa (SP),ao aceitar o desafio de produzir fios com volumes de algo-dão entre 3 e 5 toneladas por ano, superou o principalobstáculo ao funcionamento das cadeias projetadas pelaVeja e pela Univens. Assim, em 2005, a Univens pôdelançar a marca Justa Trama, da cadeia ecológica do algo-dão solidário cearense.

As negociações entre a Adec, a Veja e a JustaTrama para definir os preços do algodão, assessoradaspelo Esplar, levaram em conta: os níveis de produtivida-de obtidos; a manutenção do interesse dos(as) agricul-tores(as) em continuar produzindo; a cobertura dos cus-tos de beneficiamento; a sustentabilidade da Adec; e anecessidade da Veja e da Justa Trama de cobrirem oscustos ao longo da cadeia e ainda obterem taxas de re-torno que garantam a competitividade dos seus produ-tos no mercado.

Tanto a Veja como a Justa Trama compram oalgodão a U$ 3,30/kg de pluma, o que permite à Adecpagar aos agricultores(as) o equivalente a U$ 0,90/kg dealgodão em rama, pouco mais que o dobro dos preçospraticados no mercado convencional.

Essas condições e preços configuram um qua-dro bastante distinto da situação a que eram subme-tidos(as), até duas décadas atrás, os(as) agricultores(as)familiares cearenses. A maioria, por não possuir terra, pro-duzia nas grandes fazendas em regime de parceria, pa-gando aos latifundiários metade do algodão colhido atítulo de renda da terra. A outra metade do algodão, obri-gatoriamente, era entregue ao dono da terra que por elapagava preços abaixo daqueles vigentes no mercado lo-cal. Além disso, esses(as) agricultores(as) não sabiam paraonde se destinava a pluma do algodão que produziamnem que tipos de produtos eram fabricados a partir dela.Hoje, muitos sabem que com o algodão que produzem

Auxilia Alexandrina da Silva colhendo algodão agroecológico, Canindé - CE

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são fabricados os tênis da marca Veja e as roupas daJusta Trama, bem como conhecem os donos da empre-sa e os dirigentes da rede de cooperativas, por quem jáforam visitados mais de uma vez. Trata-se assim de umamudança essencialmente qualitativa nas relações entrequem produz e quem compra o produto agroecológicono comércio justo.

Ampliam-se as oportunidades

Com preços, volumes e demais condi-ções de venda do algodão preestabe-lecidos pelo contrato com a Adec, foipossível ao Esplar estimular a expan-são da produção para outros municípi-os, tais como Quixadá, Choró, Canindé,Massapê, Sobral, Forquilha e Santanado Acaraú, por meio dos respectivossindicatos de trabalhadores(as) rurais(STRs), de modo a responder ao cres-cimento da demanda. A partir da in-serção do algodão no comércio justo emercado solidário, o número de agricul-tores(as) familiares participantes des-se projeto tem crescido de maneira con-sistente, passando de 97, em 2003, para245, em 2007, enquanto a produçãosubiu de modestos 7 mil kg, em 2003,para 43 mil kg de algodão em rama,em 2007 (ver Figura 1).

Para 2008, espera-se que o total de agricul-tores(as) chegue a 500 e que a produção atinja 85 tone-ladas de algodão em rama.

Esses resultados influenciaram agricu-ltores(as) familiares nos estados vizinhos do Rio Grandedo Norte e Pernambuco. Apoiados pela ONG Diaconia,esses grupos já vinham há três anos produzindo algodãoagroecológico, mas sem conseguir vendê-lo com condi-ções diferenciadas em relação ao produto convencional.Já em 2007, negociaram contratos com duas outras em-presas francesas do comércio justo do ramo de confec-ções: a EnVão e a Tudo Bom?. No estado da Paraíba,outros grupos de agricultores(as) familiares, apoiadospelas ONGs Arribaçã, AS-PTA e Patac2, também ingres-saram na produção agroecológica de algodão, comerciali-zando-o no mercado orgânico nacional. A Copnatural,por exemplo, é uma cooperativa de Campina Grande(PB) que trabalha com confecções de algodões colori-dos da marca Naturalfashion.

Essas iniciativas nos quatro estados se articu-lam em nível regional através de reuniões, visitas de inter-câmbio e troca de informações e experiências relaciona-das a técnicas de produção, beneficiamento e relaçõescom o mercado. Trata-se de um esquema de cooperaçãoque envolve organizações de agricultores(as) familiares,ONGs, a Embrapa Algodão, a Universidade Federal doCeará e empresas do comércio justo e mercado orgânico,tendo promovido, na Paraíba e no Ceará, em 2006 e

Figura 1 - Número de agricultores e produção de algodão agroecológico - 1997/2007

2 Associação de Apoio a Políticas de Melhoria da Qualidade de Vida, Convivência coma Seca, Meio Ambiente e Verticalização da Produção Familiar (Arribaçã); Assessoriae Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (AS-PTA); e Programa de Aplicaçãode Tecnologia Apropriada às Comunidades (Patac).

Fonte: Esplar

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2007, seminários regionais sobre o tema “Algodãoagroecológico, agricultura familiar e comércio justo”.

Gestão compartilhada

À medida que a produção de algodão agroe-cológico se estabeleceu em outros municípios, além de Tauá,o Esplar convidou dirigentes da Adec e dos STRs dos de-mais municípios para discutirem e decidirem coletivamentesobre as principais questões relacionadas com o cultivo, acompra do algodão em rama, seu beneficiamento e venda dapluma. Desde 2004 esse coletivo autodenominado GrupoAgroecologia e Mercado (GAM) se reúne entre 4 e 6 vezesao ano para planejar a safra, definir ajustes nas bases técni-cas do cultivo agroecológico, socializar informações, acom-panhar o desenvolvimento da safra em curso e negociar avenda do algodão com a Veja e com a Justa Trama. Nessesentido, o GAM exerce importante papel de articulador po-lítico-organizativo nesse trabalho inovador de acesso daagricultura familiar ao comércio justo e às oportunidades desocialização de experiências e informações em benefício doconjunto dos(as) agricultores(as) participantes e das orga-nizações nele representadas.

Desafios atuais

O cultivo do algodão em sistemas consorciadoscom milho, feijão de corda e gergelim é uma estratégia téc-nica adotada pelos agricultores para minimizar riscos de per-

das de safra numa região caracterizada por grande irregu-laridade no volume e distribuição das chuvas. Nessas con-dições adversas, a produtividade global das roças agroe-cológicas tem variado entre 400 e 800 kg de grãos, alémde 100 a 200 kg de algodão por hectare. Tais volumesgeralmente satisfazem as necessidades de consumo defeijão, milho e gergelim das famílias agricultoras, enquantoo algodão proporciona uma renda monetária entre U$ 85 eU$ 170/ha.

Para atender ao crescimento da demanda, foipreciso aumentar a área cultivada, por meio do ingressode novas famílias no projeto. Entretanto, a introduçãode outros(as) produtores(as) sempre exige pessoal adici-onal para dar conta das tarefas de capacitação e acompa-nhamento técnico, o que implica a disponibilização demais recursos.

Outro obstáculo à produtividade têm sido as fre-qüentes infestações do bicudo do algodoeiro (Anthonomusgrandis Boheman), que limitam os rendimentos médiosdo algodão a menos de 200 kg/ha, indicando a necessi-dade de investimentos dos órgãos oficiais de pesquisa nodesenvolvimento de tecnologias limpas que facilitem oconvívio com essa praga nos sistemas agroecológicos con-sorciados.

Além disso, embora a produção tenha crescidonos outros municípios, principalmente em Quixadá, tam-bém aumentaram os gastos com transporte do algodãoem rama até a unidade de beneficiamento da Adec, emTauá, que, em 2007, significou cerca de 4,25% do valor

Auxilia e Jacó colhendo algodão agroecológico

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Referências bibliográficasLIMA, P.J.B.F. Ecological management of “mocó”

cotton in northeast Brazil. In: I CONFERÊN-CIA INTERNACIONAL DA IFOAM SOBREALGODÃO ORGÂNICO, 1993, Cairo.

LIMA, P.J.B.F. Algodão Orgânico: bases técni-cas da produção, certificação, industrializaçãoe mercado. In: VIII REUNIÃO NACIONAL DOALGODÃO, 1995, Londrina, 20 p. (mimeo).

LIMA, P.J.B.F. Algodão agroecológico: uma ex-periência no semi-árido cearense. Revista agri-culturas: experiências em agroecologia, v. 2,n. 3, p. 19-22, Out. 2005.

do algodão. Como naquele ano o peso relativo da produ-ção de Tauá representou apenas 27% do total colhido,tornou-se evidente a necessidade de pelo menos uma novadescaroçadeira de pequeno porte, cuja compra está sendopleiteada pelos STRs de Quixadá e Choró junto ao gover-no do estado do Ceará.

Outro desafio é a insuficiência de capital degiro que permita à Adec pagar à vista o algodão adquiri-do dos(as) agricultores(as). Nas três últimas safras asolução encontrada foi obter adiantamentos da Veja(cláusula do contrato com a Adec) e da Justa Trama,além de empréstimos junto ao Esplar, o que fragiliza aautonomia da Adec.

Finalmente, cumpre ressaltar que tanto aVeja como a Justa Trama até agora adquiriram o algo-dão agroecológico cearense sem exigência decertificação orgânica. Isso se deve à credibilidade con-quistada em cerca de dez anos de história no mercadoorgânico, ao respaldo da Adec e do Esplar, que semprese responsabilizaram pela qualidade do produtoagroecológico, bem como ao fato de que até então aoferta no Brasil era mínima. Com o crescimento da ofer-ta gerada por outros grupos produtores, porém, asempresas do mercado orgânico e do comércio justo co-meçam a ser mais exigentes. A Veja, por exemplo, jáexplicitou a necessidade de comprar algodão certifica-do. Diante desse quadro, os(as) agricultores(as) parti-cipantes do projeto encontram-se em processo decertificação para obter o selo orgânico, aproveitandooportunidade proporcionada pelo Ministério do Desen-volvimento Agrário (MDA), que pagou a certificaçãoem 2007. A Veja, por sua vez, está pagando os custospara certificação da Adec de acordo com os padrões doselo da entidade Fair Trade Labelling OrganizationsInternational (FLO). Assim, é possível que em 2008esse produto da agricultura familiar cearense obtenhauma dupla certificação: orgânica e justa (fair trade), oque certamente favorecerá a manutenção dos atuaispreços praticados.

Algodões transgênicos:uma ameaça

A recente liberação do cultivo de al-godões transgênicos pelo governobrasileiro é uma grave ameaça à pro-dução de algodão agroecológico debase familiar no semi-árido cearensee nordestino, que hoje experimentaum crescimento calcado em basesconsistentes. Afinal, a Agroecologiae a agricultura orgânica não admi-tem, sob qualquer hipótese, o empre-go de organismos resultantes de

transgenia. O mais grave é que a pre-sença de lavouras de algodõestransgênicos na região pode levar aorisco real e preocupante de contami-nação da produção agroecológica/orgânica. Assim, com uma eventualimplantação de lavouras transgê-nicas, os(as) produtores(as) nordes-tinos(as) poderão ver abortada essaimportante retomada da atividadealgodoeira, que agora apresenta ba-ses sustentáveis.

Essa grave ameaça começa a ser en-frentada por meio da mobilização deagricultores(as) e suas organizações,ONGs e demais entidades de apoio àprodução agroecológica, no sentidode pressionar o governo federal paraque defina a região semi-árida brasi-leira como Zona de Exclusão de al-godões transgênicos. Além disso, éimprescindível que essas mesmas en-tidades realizem o monitoramentopermanente das áreas produtivaspara detectar eventuais presenças delavouras transgênicas nas suas vizi-nhanças e assim poder assegurar queo algodão agroecológico colhido sejade fato livre de contaminação comalgodões transgênicos.

Pedro Jorge B. F. Limaengenheiro agrônomo e pesquisador do Esplar

[email protected]

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Publicações

Mercados e reprodução social: um estu-do comparativo entre agricultores ecolo-gistas e não-ecologistas de Ipê - RS

OLIVEIRA, Daniela. Porto Alegre: UFRGS/PGDR, 2007.

Dissertação de mestrado que teve como objeto deanálise as estratégias de reprodução social de fa-mílias agricultoras do município de Ipê (RS), pro-curando evidenciar distinções significativas entrefamílias de produtores ecologistas e não-ecologis-tas. A proposta central do estudo foi avaliar emque medida a perspectiva agroecológica vem seapresentando como alternativa concreta para quefamílias agricultoras atualizem suas estratégias de

Local harvest:Delicious waysto save thePlanet

DE SELINCOURT,Kate. London:Lawrence & Wishart,1997.

Com base na realida-de da Inglaterra, a au-tora examina critica-mente o desenvolvi-

mento do sistema agroalimentar nas últimas dé-cadas, colocando em realce os contrastes entre ossistemas locais de produção e consumo alimentare os mecanismos de abastecimento dominadospelos grandes conglomerados agroindustriais e devenda ao varejo. Argumenta que o aumento daconsciência ecológica e social dos consumidoresé fundamental para que a cultura dos supermerca-dos seja questionada de forma que a produção ali-mentar local seja revalorizada promovendo efei-tos em cadeia positivos que beneficiariam as eco-nomias rurais, o meio ambiente e a saúde humana.

Feiras doJequitinhonha:mercados, cul-tura e trabalhode famílias ru-rais no semi-ári-do de MinasGerais

RIBEIRO, EduardoMagalhães (Org.).Fortaleza: Banco doNordeste do Brasil;

Universidade Federal de Lavras, 2007. (Coleção BNBProjetos Sociais, n.1)

O livro traz resultados de pesquisas sobre feiras livresdo Jequitinhonha situando-as como espaços essenci-ais para a reprodução sociocultural e econômica daagricultura familiar da região. Após a descrição doambiente sociocultural em que as unidades agrícolasde base familiar se inserem, são apresentados estudosa partir de variadas perspectivas que suscitam refle-xões importantes para subsidiar a elaboração de pro-gramas públicos orientados para o fortalecimento dopapel e do lugar das feiras livres nas estratégias para odesenvolvimento rural.

reprodução social no contexto da crescente mer-cantilização da produção agrícola provocada pelamodernização tecnológica e pela liberalização dosmercados a partir dos anos 1990. Entre outrasconclusões importantes, a autora destaca a cons-trução de novas formas de acesso das famílias deagricultores ecologistas aos mercados, sejam aque-les de insumos produtivos ou de produtos. O tra-balho foi desenvolvido com base em um referencialteórico inovador que possibilita analisar a inser-ção nos mercados pela agricultura familiar a par-tir de um enfoque que propicia o diálogo entre aperspectiva agroecológica de gestão produtiva dosagroecossistemas e as estratégias camponesas dereprodução social.

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Publicações

Quando se mudou para o sítio Oiti, emLagoa Seca (PB), seu João Teixeira Guimarãesutilizava muito veneno e plantava campos intei-ros de uma verdura só. Foi durante a seca de1998-1999 que descobriu a necessidade e suavocação para plantar verduras sem veneno. Apoi-ado pelo Sindicato de Trabalhadores Rurais(STR) de Lagoa Seca, seu Guimarães mudoutambém a forma de vender sua produção. Ela-borou e distribuiu uma carta ao consumidor emque apontava as vantagens de se consumir ali-mentos ecológicos. Logo essa carta chegou aum restaurante vegetariano, seu primeiro com-prador e o principal divulgador de sua proposta.Sua segunda estratégia de venda foi a distribui-ção de cestas de alimentos diretamente aos con-

Comercialização de verduras: a experiênciade seu Guimarães

http://www.agroecologiaemrede.org.br/experiencias.php?experiencia=384

Agroecologia e acesso a mercados:três experiências na agricultura familiarda região Nordeste do Brasil

BLOCH, Didier. Recife: Oxfam, 2008.

O texto traz uma análise crítica de três experi-ências de comercialização da produção agroe-cológica desenvolvidas por organizações econô-micas da agricultura familiar assessoradas porONGs do Nordeste do Brasil. A primeira aborda acomercilização de algodão agroecológico no mer-cado justo conduzida pela Associação de Desen-volvimento Educacional e Cultural (Adec), deTauá (CE), e assessorada pelo Esplar – Centro dePesquisa e Assessoria. A segunda orienta-se parao abastecimento de feiras locais e mercados institu-

sumidores. No começo, vendia ainda com certoprejuízo, mas confiava na qualidade dos produ-tos, na aplicação de preços justos e na divulga-ção boca-a-boca de seu serviço. Para organizara venda, elaborou uma comanda para marcar asquantidades e variedades de produtos que cadafreguês deseja. Assim, todas as manhãs, ele re-tira dos canteiros somente o que vai ser vendi-do, separa em sacolas e distribui até as 9:30h damanhã. Faz ainda anotações diárias em um ca-derno para ter controle semanal das vendas, pro-curando identificar quais os produtos mais pro-curados e quais as deficiências e os acertos deseu negócio. É também a partir dessas anota-ções que faz o pagamento do pessoal que cola-bora em sua horta.

Agroecologia em Rede

cionais, sendo promovida pela Associação dosAgricultores Agroecológicos Oeste Verde(AAOEV), no sertão do Rio Grande do Norte, eassessorada pela ONG Diaconia. A última experi-ência enfoca a produção e a venda de óleo da pal-meira babaçu pela Cooperativa dos Pequenos Pro-dutores Agroextrativistas de Lago do Junco(COPPALJ), que conta com o apoio da Associa-ção em Áreas de Assentamento no Estado doMaranhão (Assema). As três iniciativas oferecemum panorama sobre diferentes estratégias de aces-so aos mercados empregadas por organizações daagricultura familiar engajadas na promoção daAgroecologia. Além disso, o autor apresenta umconjunto de questões e proposições com o intuitode fomentar debates relacionados ao desafio de apri-morar, irradiar e consolidar iniciativas similares.

Page 44: Eqüidade e soberania nos mercados - AS-PTAaspta.org.br/files/2011/05/Agriculturas_v5n2.pdf · mercados: desafios e oportunidades E sta edição da Revista Agriculturas aborda o tema

Divulgue suas experiências nas revistas Leisa

Convidamos pessoas e organizações do campo agroecológico brasileiro a divulgarem suas experiências na RevistaAgriculturas: experiências em agroecologia (edição brasileira da Leisa Global), na Leisa Latino-americana (editadano Peru) e na Leisa Global (editada na Holanda).

Chamada para v.5, n.4 (dezembro de 2008)Superando a pobreza rural

O Brasil continua apresentando um dospiores índices de desigualdade social do mundo. Apobreza no país mantêm-se concentrada no meiorural, em que pese a forte urbanização ocorrida nasociedade brasileira nas últimas décadas. As políti-cas e programas governamentais implantados como objetivo de erradicar a pobreza no campo nãotêm sido efetivas, além de acentuarem as diferenci-ações sociais. Uma das grandes falhas demonstra-das nessas iniciativas é o fato de não terem sidoconcebidas para promover a cidadania e a plenaparticipação das populações mais empobrecidasnos processos de desenvolvimento. Pelo contrá-rio, orientam-se a partir da falsa dicotomia que com-preende as famílias rurais ou como público-alvo dosprogramas de desenvolvimento econômico oucomo beneficiárias da assistência social.

A pobreza rural se expressa de variadasformas e combina privações de natureza material,cultural e política. Ela se manifesta por meio dainsegurança alimentar e nutricional; dos baixosingressos monetários; do acesso precário ouinexistente à terra e aos recursos naturais; e tam-bém na destituição de culturas e identidadessocioculturais; no baixo nível de participação emorganizações locais; e na marginalização no aces-so aos benefícios das políticas públicas. As orga-nizações da sociedade civil empenhadas noenfrentamento da pobreza rural se deparam com

o desafio de intervir nesse contexto complexo em quemúltiplas privações ocorrem de forma simultânea,realimentando-se mutuamente. Nesse sentido, acompreensão dos mecanismos de reprodução da po-breza e suas formas de manifestação nas realidadesespecíficas em que essas organizações atuam é con-dição essencial para que programas de desenvolvi-mento não reforcem involuntariamente os processosde segmentação social.

Apesar da relevância do tema, não há mui-ta reflexão sobre ele a partir da análise crítica de inter-venções de programas de desenvolvimento rural comenfoque agroecológico, sejam eles governamentaisou não. O objetivo da edição v.5, n.4 da Revista Agri-culturas é trazer à cena experiências sistematizadassob esse ângulo, bem como compartilhar seus apren-dizados. Essa questão permite variadas abordagens,dentre as quais destacamos: como as estratégias des-ses programas têm conseguido contemplar a diversi-dade no universo social em que trabalham, em parti-cular ao criar as condições para a participação e oempoderamento das famílias mais pobres? Como oenfoque agroecológico tem contribuído para que fa-mílias agricultoras pobres sejam capazes de enfrentara sua condição de pobreza? Como a perspectiva degênero tem sido incorporada nas estratégias voltadaspara a superação da pobreza em suas dimensões ma-terial, sociocultural e política?

Data-limite para envio de artigos:30 de setembro de 2008

Instruções para elaboração de artigosOs artigos deverão descrever e analisar experiências con-cretas, procurando extrair ensinamentos que sirvam de ins-piração para grupos envolvidos com a promoção daAgroecologia. Os artigos devem ter até cinco laudas de2.100 toques (30 linhas x 70 toques por linha). Os textos

devem vir acompanhados de duas ou três ilustrações (fo-tos, desenhos, gráficos), com a indicação dos seus autorese respectivas legendas. Os(as) autores(as) devem infor-mar dados para facilitar o contato de pessoas interessadasna experiência. Envie para [email protected].

Acesse: www.agriculturas.leisa.info