epistemologia do território_josé reis

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  • 7/24/2019 Epistemologia do territrio_Jos Reis

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    Jos Reis

    Uma epistemologia do territrio

    Introduo: espao e territrio no pensamento socioeconmico

    O desenvolvimento de perspectivas territorialistas na economia, dasegunda metade do sculo XX para c, resulta de um pressuposto aimportncia da varivel espao no conhecimento , de umobjetivo abusca de eqidade socioeconmica e de umaambio interpretativa a avaliao do papel dos territrios na formao das estruturas e dasdinmicas sociais contemporneas.

    sabido que as cincias sociais comearam por ignorar o territrio,no lhe dando lugar entre as variveis necessrias compreenso dasrealidades socioeconmicas: na economia, por exemplo, na anlisedas teorias do equilbrio geral (...), o elemento espacial foi completa-mente negligenciado (Lopes, 1987: 2). Foi a partir deste pressuposto (explcito ou implcito) e da tentativa de superao desta falha que seformaram os inmeros programas de investigao que podemos de-signar como territorialistas: a determinante espacial do desenvolvi-mento econmico simplesmente to fundamental como o tempo;

    Professor catedrtico da Faculdade de Economia da Universidade de Coim-bra. Investigador do Centro de Estudos Sociais ([email protected]).

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    de h muito se reconhece a existncia de diversidade espacial naforma como se manifestam os fenmenos sociais (id.: ib.).

    Muitos desses programas juntaram umadimenso moral e tica deli-mitao que tinham feito do seu campo de trabalho, acrescentando-lhe um propsito de eqidade, o qual se alcanaria atravs da ultra-passagem das assimetrias e das desigualdades socais evidenciadaspelo simples uso, na anlise, de uma varivel espacial: os benefciosdo desenvolvimento econmico-social devem ser para os indivduos todos os indivduos (id.: 4). Este era o caminho para a poltica: hatividades que importa localizar mais racionalmente; h uma orga-nizao espacial que como objetivo deve ser atingida (id., ib.).No tardou, porm, que umaambio interpretativa marcasse tambmos estudos territorialistas: interessava aos especialistas saber qual eraa razo de ser do que acontecia em cada territrio. Tanto podia ser amobilidade dos fatores de produo (as pessoas, os bens e os capitaisdeslocam-se no espao) quanto genealogia dos processos, visto queestes ocorrem em lugares, quer dizer, originam-se e desenvolvem-seem circunstncias concretas, identificveis e diferenciadas.Uma coisa e outra obriga a interpelar o territrio: por que razo queele atrai ou repele; por que razo se gera ali, e no noutro stio, din-micas ou dficits? A interrogao sobre a genealogia mais forte eexige uma resposta mais profunda que a interrogao sobre a mobili-dade. A razo consiste nisto: a esta ltima basta considerar o territriocomo suporte de localizaes, local de recepo, ao passo que a pri-

    meira atribui ao territrio ele prprio um papel ativo, uma aointerveniente nos processos que se pretendem analisar. Esta ltimapreocupao situa-nos j num campo radicalmente novo. Exige umaepistemologia do territrio.

    No h interpelao sobre o territrio desligada de uma interpelaosobre a forma como funcionam, de um ponto de vista socioeconmico,os sistemas e as dinmicas coletivas. verdade aceite-se isso que

    pode haver leituras e vises sobre os processos societais que prescin-

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    dam de refletir sobre o territrio (diro os territorialistas que umaopo empobrecedora). Mas o inverso no verdadeiro. Com efeito, aradicalidade de que falava anteriormente tem a ver com o fato de ainterpretao territorialista ser, em si mesma, uma leitura sobre a na-tureza das estruturas e das dinmicas da sociedade e da economia,um entendimento sobre o modo como se alcana acoordenao dos pro-cessos coletivos, sobre o papel desempenhado pelos atores neles inter-venientes (a sua ao volitiva e as possibilidades de ela se exercer efe-tivamente) e sobre as relaes (hierrquicas ou no) entre atores eprocessos de diferentes escalas espaciais.

    Essa questo, pertinente em qualquer fase do desenvolvimento socio-econmico, tornou-se especialmente relevante quando uma metforaterritorial invadiu o discurso corrente, sem contribuir muito para otornar mais inteligente e mais inteligvel: refiro-me metfora da glo-balizao. Esta se assenta em duas idias bsicas: nas escalas territori-ais relevantes para entender o funcionamento socioeconmico, as re-laes entre espaos e atores so radicalmentehierrquicas e previs-

    veis; tais relaes implicam uma lgica dederivao do nvel inferiorpelo superior. O local a outra face do global o primeiro interessacomo canal de reproduo do segundo. Por estas razes, os mbitos eas possibilidades de expresso prpria dos lugares (geogrficos, soci-ais...) hierarquicamente inferiores so essencialmente a submisso, aresistncia ou a excluso, incluindo a excluso alternativa. Se quiser-mos tomar as expresses de Albert Hirschman, soexit ou loyalty, masno voice. A globalizao totalizante: compreende o conjunto dasinteraes. A posio que aqui defendo atribui aos territrios queno so, evidentemente, paisagens: so atores, interaes, poderes,capacidade e iniciativas condio prpria e lugar especfico nas or-dens (e nas desordens) societais.

    Em termos gerais, a radicalidade da questo que quero apontar estno seguinte problema: os indivduos, como sujeitos de racionalidade eao, e os espaos em que eles se situam, como lugares relevantes devida coletiva, so funcionalmente determinados pelas necessidades e

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    pelas prticas de entidades que os transcendem e se situam numplano diferente daquele em que se exerce a ao individual (por e-xemplo, as determinantes do capitalismo, do mercado ou da globali-zao, como se tornou agora mais comum dizer)? Ou, pelo contrrio,h outros mecanismos de coordenao que dotam os atores sociais devocabulrios, lgicas, poderes e utenslios prticos com os quais pros-seguem objetivos e concretizam propsitos? O lugar do territrio en-contra-se numa resposta que inclua a segunda opo. A epistemologiado territrio consiste na discusso dos fundamentos de cada um des-tes lados do problema e na construo de uma interpretao capaz de

    acolher um conceito de territrio que responda de uma maneira ou deoutra s perguntas sobre o seu papel e lugar nas dinmicas sociais.

    Uma questo bsica: mobilidades versus territorializaes

    O problema principal, a questo bsica, aquela que permite que nosaproximemos de uma epistemologia do territrio, a tenso entre oque chamo mobilidades1 e territorializaes2 e o seu papel na es-

    truturao das sociedades e das economias de hoje (Reis, 2001).3 Para

    1 A mobilidade uma caracterstica dos fatores produtivos e dos atores queno esto presos a condies territoriais concretas. As suas localizaes ti-mas no so influenciadas pelo espao mas por parmetros de quantidade.

    2 Chamo territorializaes aos processos socioeconmicos localizados, as-sentes em dinmicas e em atores cuja ao possibilitada por interaes deproximidade, s quais esto tambm associados os respectivos desenvolvi-mentos, mesmo quando se passam a integrar em contextos mais vastos. Ascidades e os sistemas urbanos, os distritos industriais, os sistemas nacionais eregionais de inovao e as regies so exemplos de territorializaes. Territo-rializaes no so formas de fechamento autrquico de processos endgenos;so valorizaes em diversos contextos espaciais de recursos, capacidades eaes ligados ao territrio. O espao (expresso por exemplo pela proximidadede fatores, atores e condies) integra as suas decises de localizao.

    3 Este o primeiro dos quatro pilares em que baseio (Reis, 1998, 2001) umaalternativa institucionalista para a anlise das dinmicas e das formas de or-

    ganizao das economias contemporneas. O segundo pilar o do reconhe-cimento doslimites da racionalidade e da organizao. Sabemos que as mobilida-

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    quem dedica ateno s espacialidades do desenvolvimento, estaproposta, num primeiro passo, no contm em si mesma nenhumanovidade. facilmente aceito que os dois lados da formulao soelementos presentes no funcionamento dos territrios. Mas pode jno ser assim quando se interpreta a lgica da relao entre ambos ostermos e, sobretudo, o que da resulta. So, justamente, os resultadosdinmicos desta relao, aquilo que ela cristaliza sob a forma de es-truturas e de processos sociais estveis, que definem o modo de vera estruturao das economias contemporneas. O problema , ento,simples: ou as territorialidades so meras formas de reproduo das

    mobilidades e das capacidades de dominao dos fatores mveis ouexiste entre ambas umatenso que se obriga a equacionar o que confe-re fora e poder a ambos os lados. Esta ltima possibilidade tem queinterpretar o territrio de um ponto de vista que inclua o poder queele incorpora, as inter-relaes e os atores que o formam, as iniciativasque ele gera e as transformaes a que ele obriga.

    des e os redesenhos do mundo tm sempre por trs a idia de que h supe-ratores sociais, clarividentes e plenamente informados, que agem com grandeintencionalidade e total racionalidade. Contudo, a hiptese da absoluta racio-nalidade e intencionalidade das aes humanas tem sido sempre confrontadacom limites, restries morais, dependncias relacionais e capacidades apenasparciais de processamento de informao.

    Por isso mesmo terceiro pilar aincerteza e a contingncia tm um lugarnos processos inovatrios muito maior e mais central do que o que lhes da-

    do pelos modelos racionalistas, visto que estes reconhecem apenas as prticasrotinizadas dominantes. medida que se valorize este pilar que se recupe-ram as dimenses morais e humanas da vida. E este pressuposto que nospermite entender que, nos processos de desenvolvimento e de inovao, astrajetrias inesperadas so coisa certa.

    O ltimo pilar o que acolhe a diversidade dos processos socioeconmicose entende as instituies como a expresso da complexidade. com as institu-ies que se reduz a incerteza e se contextualizam as prticas. As instituiesso a espessura do territrio.

    Vale a pena sublinhar que o texto de Cumbers et al. (2003), com que vou di-alogar mais adiante, parte de uma discusso crtica do institucionalismo.

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    O significado das mobilidades para a edificao das sociedades mo-dernas imenso e indiscutvel: mobilidade associada prpria identi-ficao do territrio terrestre (os descobrimentos da chamada primei-ra globalizao, no sculo XVI, a conquista da fronteira americana,na consolidao do novo mundo, para s dar dois exemplos), mobi-lidade das tecnologias (a difuso da revoluo industrial, a partir daInglaterra do sculo XVII), mobilidade dos capitais e das pessoas (nacolonizao e nas primeiras internacionalizaes), mobilidade dasempresas (na internacionalizao da produo e na posterior organi-zao multinacional do ciclo produtivo), mobilidade financeira e da

    informao e da comunicao (na atual fase de globalizao). tambm inegvel que os processos de mobilidade tm conhecido ace-leraes espetaculares, que os transformam qualitativamente, justificando que se fale, hoje em dia, de hipermobilidades (Damette,1980; Hudson, 2004). O lugar destes fenmenos est, portanto, esta-belecido e suficientemente interpretado. As sociedades modernas, associedades industriais e as sociedades de servios, de comunicao ede consumo multiforme dos nossos dias se assentam em mobilidadesfceis e crescentes em nomadismos -, em comportamentos relacio-nais que resultam de processos em que a tendncia para a anulaoda distncia muito forte.

    Da mesma maneira, admite-se sem dificuldade que a vida tem os psassentes na terra, que os processos seculares no ocorrem na estra-tosfera. As naes, a urbanizao, a localizao de recursos, a instala-o de empresas, os fatores de identidade simblica tm um lugar,fixam-se no espao. Porm, mais fcil e bastante freqente che-gar-se a uma noo puntiforme (cf. Lopes, 2002: 35) da relao dosatores com o mundo terreno, do que a uma viso territorial, com oque ele implica de conhecimento das interaes, da genealogia e daevoluo, da incerteza e do inesperado.

    Sucede que a perspectiva territorialista tem na sua gnese e na suanatureza o pressuposto de que a arbitragem entre mobilidades (oufluxos) e territorializaes no uma simples procura de um equil-

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    brio formal entre as duas fontes de influncia. Se assim fosse, tornava-se legtimo perguntar qual era a sua utilidade e a sua razo de ser.Tratar-se-ia seguramente de um exerccio de bom senso, mas seria umexerccio relativamente andino e apenas formalmente relevante. Se-ria um resultado de soma nula. No representaria um acrscimo epis-temolgico. Tratar-se-ia de pouco mais do que uma delimitao de ter-reno, pois serviria sobretudo para definir o campo de trabalho de umgrupo de especialistas, que assim estabeleceria e defenderia a sua pro-fisso. Adicionalmente, inscrevia-se mais um termo territrio nocardpio dos recursos discursivos e instrumentais das cincias sociais.

    Ora, ao contrrio, as propostas territorialistas justificam-se na medidaem que se acrescente um utenslio cognitivo novo e relevante para aexplicao e a compreenso dos processos coletivos contemporneos.No basta que se ache que o territrio relevante como lugar matrici-al do processo da vida e da capacidade cognitiva, relacional e proa-tiva dos atores sociais. necessrio que essa pertinncia, uma vezdemonstrada, interfira na prpria produo de conhecimentos: tenha

    uma dimenso epistemolgica. E, se assim for, a estrutura conceitualque se utiliza altera-se substancialmente. Neste sentido, o territriodeve passar de utenslio descritivo para conceito que estrutura e dife-rencia a perspectiva interpretativa em que se inclui e com isso se junta a um enorme conjunto de outras discusses no campo da epis-temologia e da metodologia e das cincias sociais. Isto implica que seatribua proximidade e aos comportamentos relacionais e s prticascognitivas que ela desencadeia um papel ontolgico, e no apenasuma utilidade descritiva, um lugar na determinao dos processossociais de natureza idntica (natureza idntica no significa necessari-amente o mesmo peso em todas as circunstncias) a de outros deter-minantes sociais. Implica tambm que se concebam as dinmicas so-cioeconmicas globais como algo que no est organicamente estabe-lecido como conseqncia da hierarquia e da previsibilidade antesreferidas. Pelo contrrio, os territrios tornam-se elementos da genea-

    logia dos processos, conferindo-lhes uma natureza incerta, contingen-

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    te e inesperada.4 O pressuposto funcionalista que antecede muitas dasanlises sobre a evoluo dos fenmenos sociais deve recuar, em no-me de uma pergunta verdadeiramente inicial sobre a sua genealogia.E, conseqentemente, deve passar de uma viso organicista das estru-turas sociais para uma noo que reconhea o seu polimorfismo.

    A mudana de registro que esta opo implica deve ser entendidacomo uma outra viso das coisas, e no como uma juno de perspec-tivas. Estamos perante duas construes diferentes do universo con-ceptual com que se apreciam as dinmicas sociais. Afinal, algo de se-melhante ao que se passa com outras discusses inquietas dentro dacincia econmica que, em campos diferentes, tm igualmente contri-budo para uma soluo deste problema. Na epistemologia da eco-nomia, por exemplo, discute-se a necessidade de juntar aimaginao razo para compor os dispositivos que caracterizam os humanos e osmuniciam para a sua ao prtica. Nisso, e na idia de que os atoressociais possuem imaginao criativa, para a qual concorrem o co-nhecimento e a experincia, se baseia a anlise situacional aplicada

    a situaes com mltiplas possibilidades (multiple-exit problem situa-tions), isto , aquelas que ocorrem num mundo aberto, em que a aomais ou menos consciente dos agentes reproduz e transforma as es-truturas sociais (Neves, 2004: 922-3). O outro lado desta discusso ,evidentemente, a verso neoclssica da cincia econmica, que fez daescolha o seu nico objeto e constituiu em problema econmico

    4 No faltam exemplos de processos socioeconmicos que evidenciam estanatureza. Apesar do batismo, os distritos indstriais marshallianos no forama parte da obra de Marshall mais retida pela posteridade, at que o assuntoirrompeu na agenda de investigao e esta erudio legitimadora foi recupe-rada. A terceira Itlia, to estudada, ou a emergncia da economia japonesana cena mundial resultam de qu? Quem as previu? Norberto Bobbio lembra,com cativante simplicidade, que todos pensavam que a reconstruo italianado ps-guerra seria totalmente diferente e, afinal, aconteceu uma coisa sur-preendente que ainda agora temos diante dos olhos. Isto vale tambm para ociclo de crescimento dos 30 anos gloriosos, na Europa que se industrializou

    intensivamente a seguir Segunda Guerra. Que relaes funcionais as origi-naram? E as previses no cumpridas ou os milagres anunciados?

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    universal (Hodgson, 1996: 104) a deciso individual de alocao derecursos na base de funes de utilidades fixas e dadas.

    Colocar o territrio num contexto epistemolgico como este reifica-o do territrio? Parece-me que no, pois o que est aqui em causano o territrio como conjunto fsico de paisagens materiais, mas oterritrio como expresso e produto das interaes que os atores pro-tagonizam. O territrio, nestas circunstncias, proximidade, atores,interaes. E tambm um elemento crucial da matriz de relaes quedefine a morfologia do poder nas sociedades contemporneas.

    Assim sendo, no me parecem satisfatrias as propostas que sugeremque uma boa apreciao dos fenmenos sociais exige um simples e-quilbrio formal entre as variveis em presena. Interpreto assim aproposta de Ray Hudson (2004), quando trata do entendimento dasespacialidades que constituem as economias e as sociedades. Situan-do-se perante o mesmo problema que formulei anteriormente atravsdo que chamei tenso entre mobilidades e territorializaes, Hud-son fala de fixities of spaces e de fluidities of circuits and flows. Contra asposies que defendem que o elemento-chave para compreender associedades contemporneas est num destes elementos (sendo o outronecessariamente subsidirio), a sua proposta towards a conceptua-lization in terms of the relations between circuits, flows and spaces(Hudson 2004: 99). Uns e outros so complementares, mais do queconcorrentes.

    No discuto a pertinncia de uma sugesto prudente, como esta ,

    como proposta geral. Mas duvido que ela acrescente conhecimentopara uma melhor definio do territrio e do seu significado na estru-turao de sistemas sociais sujeitos a intensos processos de transfor-mao.5 Admito que esta formulao resulta freqentemente do fato

    5 Uma das metforas que, neste plano, me parecem mais irrelevantes a dosdois lados da mesma moeda, quando se trata, por exemplo, de avaliar as

    relaes entre global e local. O caso extremo de irrelevncia a de termos po-pularizados como o de glocal.

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    de um dos mais largos campos de discusso ser o que se relacionacom a idia, alis muito justa, de que os territrios so construes:construes sociais (em que intervm vrias escalas relacionais e emque a referida relao entre fluxos e fixaes se exprime), constru-es discursivas e construes materiais. Mas esta construtividadedo territrio que uma viso sobre o processo no evita, antes exi-ge, a pergunta sobre ooutput , o resultado, que o prprio territrioassim construdo, quando colocado em contextos de interaes maisamplas e de outra natureza (a criao de emprego, a formao de ini-ciativas, a governao6 dos sistemas urbanos, a inovao, a organiza-

    o produtiva mundial). Mesmo que seja necessrio e que enca-remos o territrio como algo dinmico, no fixado para sempre nemsequer por muito tempo, interessa saber como que essa conseqn-cia concreta das relaes construtivas vai participar em novos proces-sos dinmicos de que passa a fazer parte. um elemento-chave ou simplesmente umleft-over , um subproduto necessrio apenas comolocalizao, lugar onde os ps assentam na terra?

    Os processos sociais no podem ser interpretados numa incessantevertigem relacional e (re)construtiva. Eles assumem materialidades,cognies e dispositivos relacionais que tm espessura e durao: h

    6 Uso o termo governao que pode ser considerado como prximo de re-gulao para significar o modo como se manifestam e organizam os interes-ses coletivos (como se formamatores sociais), como se estabelecem entendi-mentos entre os atores que intervm na esfera pblica (como se consolidamconvenes sociais), como se regula a sociedade e a economia atravs de polti-cas pblicas (qual o papel doEstado e quais so os domnios estratgicos eprioritrios da sua interveno), como a sociedade se dota de organizaes(qual o desenvolvimento da suasuperestrutura organizacional ), como se criampadres, rotinas e modos de fazer (quais so oshabitus, o capital informal e oconhecimento tcito de que uma sociedade dispe) em suma, queordemconstitucional prevalece (o termo constitucional no aqui usado em sentido jurdico, embora tambm o inclua, mas sim para significar a matriz das rela-

    es materiais e simblicas que definem a esfera pblica e orientam a trajet-ria da sociedade, no seu conjunto).

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    uma secularizao dos processos e do tempo que lhes corresponde. Elesno sofrem transformaes instantneas e permanentes.

    Alis, h muito que sabemos que o territrio no apenas o espaofsico. O territrio para que olham os economistas, os socilogos, osplanejadores umterritrio relacional. A idia de que, nas sociedadescontemporneas, os territrios somatrizes quer sublinhar esta suapermanente condio relacional: perante a ordem relacional que osforma, isto , as interaes que estruturam a sua ordem interna, e pe-rante a ordem relacional externa, ou seja, as interaes que estruturamo mundo, que no o lado exterior dos territrios, mas antes um todode que eles mesmos fazem parte, como categorias prprias.A afirmao da natureza matricial do territrio exige, em primeirolugar, a afirmao da sua relevncia como ordem material e socioeco-nmica: as cidades e os sistemas urbanos so realidades materiais eno apenas construes conceituais; os recursos e os ativos de umaregio, assim como as mobilidades pendulares que mapeiam o seusistema de emprego, so identificveis e geram economias locais dife-renciadas.Importa sublinhar que existindo, evidentemente, no-territrios (osespaos desprovidos de recursos, ativos e interaes, isto , de densi-dades) a natureza de um territrio no fica na estrita dependncia damatriz relacional externa em que se insere.

    A resposta pergunta o que um territrio? exige que considere-mos trs dimenses das estruturas e das dinmicas territoriais: a) pro-ximidade, b)densidade e c) polimorfismo estrutural.

    a) A proximidade o contexto e as relaes que ela propicia: so pes-soas em co-presena; so ordens relacionais; so consolidaes de cul-turas prticas e de instituies; conhecimento e identidade parti-lhada de forma coletiva. este conjunto de circunstncias que desen-cadeia a formao de densidades.

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    b) As densidades exprimem-se em interaes continuadas, em apren-dizagens e competncias (externalidades cognitivas), em ordensconstitucionais7 que coordenam a ao de atores sociais, em multi-plicao ou definhamento de contextos institucionais e de governao.c) O polimorfismo estrutural assinala o fato de a tenso entre mobilida-des e territorializaes isto , o exerccio matricial de que os territ-rios so parte produzir diferenciaes dentro de ordens mais vastas.Quer dizer, o mundo no representvel por uma organicidade sis-tmica em que tudo--explicado-por-tudo, como acontece, por exem-plo, com a estrita lgica centro-periferia8 ou pelas vises globalistasque dela so tributrias. O mundo melhor representado pela idiade polimorfismo, isto , por uma viso das coisas em que h espaosestruturais de iniciativa e de autonomia cujo desenvolvimento afirmaa sua relevncia prpria e exerce efeitos de feed-back sobre outros es-paos. Nisto consiste a noo de que a incerteza e as trajetrias ines-peradas so tambm parte do mundo.

    por este conjunto de razes que me parece tambm importante queno se associe a anlise territorial apenas captao de uma determi-nada escala de um problema. A opo por uma viso territorial no uma opo por uma escala de anlise mais prxima da realidade, umaespcie de mincia descritiva. Neste sentido, julgo que tm pouca per-tinncia os argumentos que procuram resolver as questes levantadaspelas vises territorialistas atravs da articulao de escalas de anlisee da ateno a processos e atores que agem em escalas espaciais dife-

    renciadas. A compreenso do territrio exige, desde o incio, essacompreenso. O estudo do que constitui o territrio tem objetos de

    7 Para Charles Sabel (1998), no entanto, umaordem constitucional uma ter-ceira governance structure , que se junta aos mercados e s hierarquias. Coloco-me num ponto de vista mais amplo que no dispensa considerar tambm oEstado, as associaes e as redes.

    8 Uma das conseqncias da predominncia das vises globalistas o res-

    surgimento das estritas vises centro-periferia, que os debates dos anos 1980 e1990 tinham superado.

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    aplicao em escalas muito diversas, desde o nvel local infranacional,ao regional supranacional. Mas no isso que o diferencia e lhe dum lugar prprio na produo de conhecimentos.

    Argumento, pois, que h justificao de sobra para entender o territ-rio como detentor de um papel e de um significado prprios, no ape-nas complementares e muito menos derivados de determinaes comas quais estabelea uma relao hierrquica dependente ou sucessiva.

    Das trs dimenses que acabo de propor, duas proximidade e densida-de formam a rede matricial interna dos territrios: representam a

    identidade, a co-presena e a capacidade dinmica, assim como repre-sentam o conflito, a ausncia e as tendncias regressivas. A terceiradimenso polimorfismo estrutural representa essencialmente as rela-es de poder em que os territrios participam (e que podem ser posi-tivas ou negativas, promocionais ou degradativas) e o modo com es-ses territrios se inscrevem no mapa estrutural do mundo (como mar-gens ou como centros; como lugares ascendentes e transformadoresda matriz global ou como lugares descendentes). Por isso mesmo, de-dico a seo seguinte a esta ltima dimenso, no quadro de uma dis-cusso sobre a morfologia do poder, noo que contraponho s visesformais e unilaterais de poder.

    Territrio e poder(es): a morfologia das relaes de poder e o polimorfismo estrutural da economia

    Uma questo maior que desafia as perspectivas territorialistas , defato, a que consiste em saber se elas so cegas perante os contextosmacrossociais e macropolticos que envolvem os territrios ou se, pelocontrrio, interpretam com clarividncia as relaes que se estabele-cem entre diferentes escalas espaciais. Isto , se a opo territorialistacomporta uma estratgia de anlise relacional apenas escala de umterritrio ou escala de todos os territrios.

    Nas discusses que hoje esto em cima da mesa sobressaem duas cr-

    ticas principais s perspectivas territorialistas: o poder e a poltica (as

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    relaes de poder desiguais, o conflito) tm sido descartados dodiscurso e do quadro interpretativo que aquelas produzem, em favorda nfase que dada regio como lugar comum, como ativo relacio-nal, de todos os grupos e de todos os interesses que a constituem; domesmo modo, mas agora numa escala que inclui o exterior de cadaterritrio, negligencia-se a existncia de um processo dedesenvolvi-mento desigual gerido por agentes de governao exteriores e com po-der estabelecido, em favor da idia de que a confiana e a ao coope-rativa localizada so elementos suficientes para fundar e estruturar asevolues locais (produtivas, de inovao, de aprendizagem).

    Niel Brenner (2003: 304) muito veemente quando interpreta a emer-gncia da escala metropolitana e da governao metropolitana na a-genda da organizao territorial europia como um processo essenci-almente crisis-induced, derivado da transformao da espacialidadedo Estado (um processo destate rescaling) e como a politically media-ted outcome of complex, cross-national forms of policy transfer andideological diffusion. Por isso mesmo, nas transformaes territoriais

    que observamos, regions have become major geographical arenas fora wide range of institutional changes, regulatory expriments and poli-tical struggles within contemporary capitalism.

    Apresentei noutro lugar (Reis, 2004) uma leitura bastante diferente daemergncia dos grandes sistemas territoriais europeus de naturezametropolitana: propus que vssemos os grandes territrios infra-europeus em que tende a assentar a governao europia (territrios

    definidos por massa, conectividade, competitividade e dinmicas: isto, por estruturas prprias e por construes polticas ou ideolgicas)como resultados da geografia (proximidade, densidade, acesso), porum lado, e de culturas institucionais de governao prprias, por ou-tro. Estas razes no s ilustram a conhecida diferenciao europia(fruto, ela tambm, da geografia e das culturas institucionais) comoexemplificam a natureza complexa (no linear) da fixao das confi-guraes poltico-institucionais.

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    Pode dizer-se que, no essencial, a contraposio crtica ao territorialis-mo e as lacunas que lhe so apontadas assentam em trs argumentos:

    a) Um argumento sobrea agenda de investigao: a busca de demons-trao para a idia de que territrios e regies so participantes ativos,e no arenas passivas, do desenvolvimento econmico leva a que selimite o campo de trabalho aos casos mais significativos e dinmicos eque, alm disso, se reifique a regio e o espao, pois estas entidadesficam, desta forma, desligadas de contextos mais vastos, tornando,assim, os seus resultados facilmente refutveis.

    b) Um argumento sobreo poder e as assimetrias: a nfase no papel doscontextos, das interaes e das instituies incrustadas (embedded) lo-

    calmente leva negligncia do poder e da poltica, por um lado, e dosefeitos dos processos de desenvolvimento desigual, por outro, tudoisto num plano em que o prprio potencial de tenses inter-regionais,sendo grande, tambm negligenciado pelos estudos territorialistas.

    c) Um argumento sobreas possibilidades e a racionalidadeda ao: vistoque, para os territorialistas, a ao e a iniciativa so moldadas decisi-vamente pelo enquadramento institucional que o territrio propor-ciona (e que inclui as decises passadas, gerando-se assim a path-dependency), eles tendem a ignorar as orientaes racionais que o con-texto mais vasto impe e a inevitabilidade de as trajetrias seguidasserem as da convergncia com os grandes equilbrios macroeconmi-cos e macrossociais, e no as que o territrio proporcionaria (os terri-torialistas ignoram a tendncia pesada da convergncia entre sistemas

    socioeconmicos).9

    9 Esta discusso, muito viva nos dias de hoje, tem em Berger e Dore (1996) eem Hall e Soskice (2003) contribuies que no permitem encerr-la nos ter-

    mos da crtica ao territorialismo, pois os limites e as contratendncias idiade convergncia so abundantes.

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    No vou discutir se estas crticas so, genericamente, justas perante ostrabalhos escrutinados e as perspectivas at aqui consolidadas.10 Oque, essencialmente, me parece que uma observao contemporneadas economias e dos processos coletivos e os problemas que esto emaberto revelam mais o dficet destas crticas do que a sua valia comoinstrumentos analticos para o futuro. Ao contrrio, parece-me que asperspectivas territorialistas so mais prticas no plano operacional pois identificam situaes, em vez de apenas as deduzirem , maisrigorosas na informao em que se baseiam e que originam pois deta-lham processos complexos, e no relaes abstratas e maisteis no

    plano prospectivo pois atribuem-se formulao de polticas, rela-cionando-as com atores concretos e realidades definidas. A discussoem causa exige, contudo, que nos detenhamos na crtica principal omisso das questes do poder por parte dos territorialistas.

    O ponto de vista em que aqui me coloco o seguinte:

    a) as perspectivas territorialistas devem ser participantes ativos nadiscusso sobre o poder e o desenvolvimento desigual numa escalaglobal;b) a noo de poder dos territorialistas deve valorizar amorfologia do poder e no uma noo abstrata e reificada de poder;

    c) a estruturao hierrquica e desigual dos contextos macroecon-micos no deve impedir a observao da formao e do desenvolvi-mento de trajetrias inesperadas, visto que uma caracterstica domundo, to incontornvel como a sua natureza desigual e hierrquica, o seu polimorfismo.

    10 A minha idia que no, pois estas crticas, mais do que uma novidadetrazida por novas matrias de estudo ou novos problemas em aberto, so ecospermanentes do debate epistemolgico dentro das cincias sociais, designa-

    damente daquele que ope desde h muito as vises institucionalistas s denatureza estruturalista ou racionalista.

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    O primeiro ponto baseia-se, desde logo, na necessidade de repor odebate no lugar certo: seria injusto para o territorialismo originriodeixar esquecer a idia de que foram as assimetrias, as desigualdadese o desenvolvimento desigual que formaram a matriz gentica da ci-ncia regional e a construo da idia de desenvolvimento regional.

    Indo mais adiante, a noo dereproduo essencial para entender odebate. Segundo esta viso das coisas, o problema consiste em saberde que forma social relations, operating across different geographicalscales, interact in the reproduction of the political and economic land-scape through time. Neste sentido, as regional institutions so keyinstitutional channels through which wider regulatory practices areinterpreted and ultimately delivered (Cumbers et al., 2003: 335, grifomeu).

    Para quem pensa do modo que acaba de se ilustrar, um programa deinvestigao necessrio (e, porventura, suficiente) seria o que se con-centrasse nas conexes entre os wider regulatory mechanisms andspecific social and political interests within regions (id., ib.). Os terri-torialistas seriam, assim, simples especialistas damicro e meso repro-duo do macroglobal no territrio. Alis, a esta luz, a materialidadedo territrio e, portanto, o seu significado ontolgico no faria sen-tido, pois ela amplamente superada por um outro processo, o daproduo social das escalas. As regies no so elas prprias, masantes open spaces, instrumentos necessrios das vises liberais que v-em nelas entidades teis para a promoo da inovao e da aprendi-

    zagem na economia global, que quem as molda e lhes define as pos-sibilidades. Esta idia de que h relaes que precedem e anulam amaterialidade territorial, sendo esta ltima caracterizada por um ele-vado grau de volatilidade, no quadro de espaos abertos deixa delado qualquer possibilidade de entendermos a morfologia, no s dopoder, mas tambm das prprias realidades socioeconmicas.

    A noo dereproduo e a viso de certos fenmenos e entidades comocanais so conseqncias coerentes com o realismo crtico (cf. Sayer,

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    1992), que a posio filosfica em que as perspectivas que tenho es-tado a referir se apoiam.

    The crux of the realist position is the ontological claim that there isan independent reality, made up of social objects and structures, al-though, crucially, our knowledge and understanding of this is al-ways partial and provisional, being channeled through discourseand representation (Cumbers et al., 2003: 334).

    Neste quadro, os territrios no seriam parte daquela realidade in-dependente, estariam fora dela e, por isso, seriam essencialmenterepresentaes sociais, construes discursivas. Quer dizer, a influn-cia do realismo crtico superada por uma agenda que atribui digni-dade ontolgica a entidades como o poder, o Estado, a racionalidadedos agentes dotados de mobilidade, mas no aos territrios.

    Para os fins da discusso proposta neste texto, a questo central a queas perspectivas territorialistas tm de responder a que tem a ver coma relao entre o que define um territrio interaes de proximida-de, contextos de co-presena e as suas relaes heternimas. a quea questo do poder e das relaes desiguais essencialmente se coloca.Como tenho vindo a defender, no basta postular estas duas dimen-ses, nem basta coloc-las lado a lado. O desafio deduzir as resul-tantes das suas inter-relaes.11

    O meu argumento o seguinte: para falar de poder interessa falar damorfologia do poder. A noo de que o poder uma relao linear, as-simtrica, unilateral e exteriormente estabelecida parece-me pobre.Para alm de pobre, parece-me demissionista: esta noo de poderdispensa-se de conhecer a morfologia do poder, postula-o apenas.Dispensa-se tambm de conhecer as estruturas materiais, bastando-lhe concentrar-se numa realidade independente definida de formamuito limitada e relegando para os discursos e para a esfera da re-produo o resto da realidade.

    11 Benko e Pecqueur (2001: 39), quando se referem s proximidades geogr-

    ficas e organizacionais e aprendizagem coletiva, dizem: no se trata de pos-tular o local (...) mas de deduzi-lo.

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    Ora, o poder inscreve-se em processos, estruturas, cdigos, lingua-gens, objeto, relaes. A insero em relaes de poder submete al-guns, na medida em que os atores so desiguais, mas a frao de po-der de que estes disponham tambm os capacita, especialmente quan-do o seu uso permite criar outras redes relacionais e optar por elas.Para tal, importante admitir que as relaes em que os atores parti-cipam no so todas iguais e no se situam nas mesmas escalas. Topoucos so estticas. So dinmicas, com sentidos verticais as-cendentes, descendentes ou laterais. Por isso, podem mudar de pata-mar e de lgica relacional. Um poder inferior de um ator perante um

    dado contexto que o submete pode ser convertido num poder equili-brado noutros contextos relacionais.

    Um territrio (no sendo um dado, no sendo esttico nem sendo ga-rantidamente homogneo) , sem dvida, um lugar em que se inscre-vem relaes de poder. Mas , antes de tudo o mais, um lugar quedefine a morfologia das relaes de poder em presena. As quais, nosendo lineares nem heteronimamente estabelecidas, tm que ser defi-

    nidas e mapeadas para cada territrio e cada processo relevantes. aqui que se abrem trs outras questes:

    a) a do mapa relacional, cada aspecto da co-presena territorial ne-cessariamente um elemento que exprime assimetrias de diferentesgraus e direes das relaes de poder estabelecidas em escalas di-versas (contrariando-se, assim, a idia de relao de poder como rela-o hierrquica linear);

    b) a da distribuio desse poder, o que implica tirar ilaes da noode multi-level governance, a qual no faz sentido sem que se pressupo-nham foras e capacidades distribudas entre vrios atores e escalas,obviamente de forma desigual;

    c) a da construo e uso de novos contextos relacionais por parte deatores com posies adquiridas em processos anteriores (o que supe,evidentemente, que as possibilidades de ao no estejam estrita-

    mente delimitadas de forma hierrquica).

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    Estas trs questes, tomadas em conjunto, significam a rejeio dospostulados daconvergncia (s hone single best way), dahierarquia fun-cional utilitria (os lugares s existem numa hierarquia porque so -teis ao seu vrtice) e do entendimento de que os sistemas coletivos sefecham apenas atravs de um nico princpio de racionalidade e regu-lao. Inversamente, afirmam que a macrorregulao comporta uni-versos e possibilidades de diversa ndole, incluindo os que assentamno inesperado. A outro propsito Charles Sabel (2004: 4) escreveu so-bre disruptive technology para indicar que esta

    a superior alternative to the currently dominant know how, whosepotential escapes the most masterful producers and users of thedominant method precisely because their experience teaches howto improve on what they already know; disruptive technologiestherefore begin to realize their potential in secondary or peripheralmarkets.

    neste contexto queterritrio e economias de proximidade, por um lado,e poder e relaes assimtricas, por outro, no so questes disjuntivas (oterritrio um objeto que deve ser interpretado como lugar de rela-

    es de poder). Mas, da mesma forma e com o mesmo valor, importasublinhar que a anlise territorial no compatvel com uma noosimplificada de poder. A condio para que se alcance uma perspecti-va que assuma estes objetivos , igualmente, devolver economia anoo de que as estruturas materiais tm, tal como o poder, uma mor-fologia e que, alm disso, o polimorfismo que as caracteriza. Querdizer, a idia de que a materialidade se dilui em espaos abertos, mol-dados a seu bel-prazer por relaes construtivistas abstratas, no dei-xa lugar para os lugares, para os territrios, para os processosrelacionais que no sejam linearmente reprodutivos daquelas relaesheternimas. O problema no est, no entanto, nesta falta de agen-da territorialista. O problema est no fato de o mundo assim conce-bido ser destitudo de forma e de diversidade. Ora, o polimorfismo domundo est inscrito em interaes, aprendizagens, instituies, cultu-ras prticas, poderes que configuram territrios nos quais se mapeiam

    relaes, distribuem poderes e constroem incessantemente possibili-

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    dades e contextos. Sem que esses territrios desapaream. Apenas setransformam.

    Concluso

    Este texto exprime a vontade de intervir num debate permanente so-bre o que valem as territorializaes dos processos e dos fenmenossociais e sobre o que valem os prprios territrios. Tm eles uma valiaprpria e, por isso, so elementos radicais (no mais puro sentido lite-ral) do conhecimento das dinmicas sociais e das formas de estrutura-o das sociedades? A esta pergunta respondi que sim e procurei de-fender trs idias principais: que a relao entre mobilidades e territo-rializaes muito mais do que uma justaposio de fatores que in-fluenciam as dinmicas econmicas umatenso de que resultamprocessos constituintes das transformaes globais dos sistemas; quea idia de reproduo de determinantes sociopolticas no serve paraconfigurar uma noo de territrio, porque este no uma simplesexpresso da produo de escalas (do reescalonamento) do Estado, do

    mercado, do capitalismo ou da globalizao; que, para entendermos opoder, o desenvolvimento (mesmo quando ele desigual, como ge-ralmente ) e a estruturao poltico-econmica, devemos contrapors vises lineares do poder a idia de morfologia do poder e ao de-senvolvimento funcionalista a noo de polimorfismo das sociedadescontemporneas.

    Esta agenda resulta do meu desencontro originrio com as vises glo-

    balistas e com o velho funcionalismo. Continuo a achar que, mais doque uma noo analtica til, globalizao , sobretudo, uma metfo-ra da perplexidade (Reis, 2001), perante a nossa dificuldade de lidarcom a complexidade do mundo, um mundo que, alis, bem maiorque o universo da globalizao. Por isso, contraproponho uma alter-nativa institucionalista, de que deixei aqui os elementos essenciais,encarados do ponto de vista do territrio, com a convico de que (aoinverso das crticas que aqui ilustrei) o que os territorialistas tm a

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    acrescentar ao institucionalismo a capacidade de mapearem a mor-fologia do poder e da transformao.

    , alis, por isso que me parecem necessrias atitudes tericas e epis-temolgicas que enfatizem a interpretao dasordens relacionais asque assentam na materialidade dos territrios e as que assentam namorfologia das relaes de poder em desfavor das simples posiesnormativas.

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    REIS, Jos. Uma epistemologia do territrio.Estudos Sociedade e Agri-cultura , abril 2005, vol. 13 no. 1, p. 51-74. ISSN 1413-0580.

    Resumo. A interrogao mais forte acerca do territrio a que procu-ra compreender a genealogia dos processos socioeconmicos. Isto im-plica uma epistemologia do territrio e pressupe que se atribua proximidade uma natureza ontolgica. A contrrio do que comumpensar, no se julga que, para entender as estruturas sociais contem-porneas, baste compatibilizar uma aproximao centrada na anlisedas territorializaes com outra centrada nas mobilidades. H tensesestruturais que formam as espacialidades das sociedades. A anlisedas ordens relacionais representadas nos territrios um bom cami-nho para entender isso e para chegar a uma noo sobre a morfologiado poder.

    Palavras-chave: Territrio; proximidade; governao; urbanizao.

    Abstract. ( An Epistemology of the Territory). The most important ques-tions concerning territory are those that try to understand the geneal-

    ogy of socio-economic processes. This implies an epistemology of theterritory and assumes that proximity has an ontological nature. Con-trary to the usual way of conceiving, to understand contemporary so-cial structures it is not sufficient to compatibilize an analysis of terri-torializations with those centered on mobilities. There are structuraltensions that configure the spatial dimension of societies. The analysisof relational orders represented on territories is a good path to under-stand these tensions and to reach a notion of the morphology ofpower.Key words: territory, proximity, governance, urbanization.