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Repensando Carolina Maria de
Jesus
José Carlos Sebe Bom Meihy*
* É professor aposentado do departamen-to de História da Universidade de São Paulo, onde obteve os títulos de doutor e livre-docente, respectivamente em 1975 e 1981. Atualmente é Professor do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras e Ciências Humanas da UNIGRANRIO. Bolsista de Produtividade em Pesquisa 1A - UNIGRANRIO/FUNA-DESP. Membro da Comissão Coordena-dora do Programa (CCP) do Programa de Pós-Graduação “Humanidades, Direitos e outras Legitimidades” e do Conselho Deliberativo do Diversitas — Núcleo de Estudos das Diversidades, Intolerâncias e Conflitos.
A amizade do analfabeto é sincera.
E o ódio também.
Carolina Maria de Jesus
O legado de Caroli-
na Maria de Jesus
(1914? – 1977) re-
ponta como de-
safio para a me-
mória nacional1. Como mensurar
1 Para uma visão biográfica de Carolina Maria de Jesus, publiquei uma breve biografia ba-seada nos escritos pessoais da autora “Os fios
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a fortuna crítica dessa polêmica personagem, mulher,
semianalfabeta, negra, migrante, mãe solteira, amante
de homens brancos – teve quatro filhos, todos com es-
trangeiros – detratora de nordestinos e até 1961 também
de seus pares de raça2? Paradoxalmente acolhida como
autora de feições revolucionárias, apesar da exígua obra
conhecida, foi consagrada mais pela força mercadológica
da contracultura que pelo verdadeiro teor testemunhal
de alguns de seus textos escolhidos e configurados por
Audálio Dantas3.
A obra de Carolina tem um antes e um depois do golpe
militar de 1964. Com a instalação da ditadura, o clima de
dos desafios: o retrato de Carolina Maria de Jesus no tempo presente. In Memória Afro-brasileira: Artes do corpo - 2, São Paulo, Selo Negro Editores, 2004, p.15–51.
2 Em muitas passagens Carolina detrata nordestinos e pobres. Famosa depois do lançamento de seu primeiro livro, em 1961, o movimento negro brasileiro assume Carolina como figura de destaque e neste sentido convites lhes são dirigidos para apresentações, festas e ela muda de posição, passa tecer comentários contra o preconceito racial colocando-se, inclusive, como vítima.
3 Lançado no Brasil em 1960, seu livro mais conhecido Quarto de despejo foi traduzido para quatorze línguas, tendo até hoje mais de um milhão de có-pias vendias no mundo. Sobre o assunto leia de minha autoria juntamente com Robert M. Levine, entre outros, Cinderela Negra: a saga de Carolina Maria de Jesus, Rio de Janeiro, Editora da UFRJ, 1994, e, Meu estranho diário, São Paulo, Editora Xamã, 1996. Em 2007, Eliana de Moura Castro e Marília Novais de Mata Machado lançaram Muito bem, Carolina: Biografia de Carolina Maria de Jesus, Editora Arte, Belo Horizonte, e Joel Rufino dos Santos publicou o livro Caro-lina Maria de Jesus: um escritora improvável, Rio de Janeiro, Fundação Biblioteca Nacional, 2009, onde relaciona Carolina a outras figuras do universo negro brasileiro.
suspeita, atento aos tipos pobres que se aproximavam
do que seria vulgarizado como “subversivo”, sutilmente
cuidou de afastá-la de cena. Em complemento, sua fama
como revelação literária declinara desde o lançamento
do “Quarto de despejo”, sem que, contudo ela saísse do
noticiário agora não mais como escritora e sim como
personagem4. O que fora sucesso literário no auge dos
agitados anos dourados, exatamente em 1960, declinou
sob o jugo imposto pela censura explícita ou velada5. O
sombreado dos anos de chumbo implicara em uma espé-
cie de apagamento da memória de uma figura dramática
que metaforizava a rebeldia ou possível ascensão social
mais viável antes do golpe militar. Para um regime que
pretendia se construir na linha do progresso e da ordem,
seus escritos não serviam. O padrão estável pretendido
pelo regime no lugar de insatisfeitos, propugnava modelos
de disciplinados, coerentes com supostos de um “país que
vai pra frente”.
4 Além de Quarto de despejo, a Livraria Francisco Alves publicou também, sem o sucesso esperado, Casa de Alvenaria: diário de uma favelada, em 1961. Por conta própria, Carolina publicou mais dois pequenos opúsculos Pedaços da fome, São Paulo, Áquila Ltda, 1963 e Provérbios, São Paulo, s/e. s/d. Mais tarde, depois de um périplo estranho, Diário de Bitita, que foi publicado antes na França, mereceu tradução do texto em francês e foi lançado no Brasil pela Nova Fronteira.
5 “Anos dourados”, de 1956 a 1964, corresponde ao tempo iniciado pelo governo de JK indo até o momento de instalação da ditadura militar.
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Na sequência do apagamento de Carolina, o silêncio foi
alimento pela crítica literária saneadora das “impurezas”
de classe — em particular os comentários liderados por
Wilson Martins — que a remetiam de volta ao lugar “me-
recido”, ou seja, ao obscurantismo6. Na balança oposta, a
aceitação internacional, desconhecedora dos bastidores
domésticos, a celebrava em constantes republicações do
“Quarto de despejo” que, aliás, ainda fulgura como um dos
livros brasileiros mais conhecidos de todos os tempos.
Com a abertura política dos anos de 1980, figuras “esqueci-
das” voltaram à cena e entre elas Carolina. Juntamente com
a “redescoberta”, detalhes da produção começam emergir
suscitando dúvidas sobre a produção do fenômeno. Afinal,
teria sido mesmo Carolina uma escritora ou produto de
mercado?
Independentemente de simpatias, não cabe dúvida que
Carolina foi fruto de um tempo, trabalhado por um artífice
em momento de surto mercadológico e populista. Audálio
Dantas, genial cronista da São Paulo que então ainda se
apresentava como “a cidade que mais cresce no mundo”,
funcionava como crítico dos equívocos da paulicéia. Já
definido como autor de prestígio no amanhecer da década
de 1960, Audálio era destaque no novo jornalismo e soube
6 Entre muitas referências contra Carolina, a mais agressiva foi publicada por Wilson Martins em artigo no Jornal do Brasil, intitulado “Mistificação Literária”, Rio de Janeiro, 23 de outubro de 1993, p.4.
tornear uma personagem encontrada por acaso. Sobretudo
o que cativou o jornalista foi a possibilidade de torná-la
atraente porque avesso das mulheres, brancas, educadas,
detentoras da norma culta, que então estreavam nas letras.
Antídoto das Raquéis, Clarices, Cecílias e Nélidas, Carolina
tinha a seu favor o fato inexorável de ter uma favela como
cenário e a miséria como matéria do cotidiano existencial7.
Certamente, o fato de detalhar as mazelas da legião de
pobres da metrópole alimentou a curiosidade de leitores
que questionavam o papel da ficção elegante, dos livros
ditos eruditos e dos estudos sociológicos. Ao mesmo tem-
po, a política nacional avançava por temas pertinentes ao
desenvolvimento urbano, aliado ao progresso econômico
da nova era industrial.
Audálio soube burilar sua descoberta. Indo para fazer
reportagem sobre brutos que ameaçavam destruir me-
lhorias feitas na extinta Favela do Canindé, na São Pau-
lo de 1954, ouviu uma mulher bradando que tinha tudo
registrado e que iria mostrar a todos os acontecimentos
deploráveis que se passavam. Curioso, atraído por ela,
foi-lhe apresentado no barraco uma série de cadernos.
Com anuência dela, que queria ser famosa por se julgar
escritora, ele, perspicaz, escolheu entre vários gêneros da
7 Lajolo, M. A leitora no quarto dos fundos, Leitura: teoria, São Paulo, p.25.
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lavra o diário8. Carolina fazia cópias de seus escritos e dei-
xou mais de um exemplar de fragmentos desses registros
e isso possibilita cotejamentos convidativos de revisões
que vacilam ante o sentido lógico dado ao texto final no
“Quarto”. Isso, porém, ficou ofuscado pelo impacto de um
livro “verdadeiro” ou “testemunhal”. Carolina, porém, não
se ajustou por muito tempo ao modelo pretendido e em
meio aos conflitos pessoais com o criador, ao seu modo
continuou a escrever, editar e divulgar sua obra. Logica-
mente, sem um nome masculino e profissional por traz
,o fracasso lhe foi fatal. A obstinação de Carolina, porém,
a mantinha escritora e vasta é sua obra, não publicada,
ainda inédita. São mais de cinco mil páginas, distribuídas
por 37 cadernos, além de alguns outros guardados por
Audálio Dantas. Se “Quarto de despejo” foi o lado luminoso
do projeto, foi também o enclausuramento da outra parte.
O sucesso foi para ela seu próprio veneno. Ainda pouco
conhecidos, seus poemas, contos e, principalmente, três
peças de teatro, representam o que de mais eloquente
nossa pobreza produziu como expressão estético literária.
Tudo praticamente inédito9.
8 Os diários de Carolina, eram anotações atentas ao andamento cronológico da vida dela como catadora de papel. Eram notas feitas para si, mas editadas tiveram impacto por revelar a intimidade de um cotidiano que apenas era dimensionado pelos números estatísticos e por idéias vagas sobre o que seria a pobreza.
9 Graças a atuação de Heloísa Buarque de Holanda, publiquei os poemas
O critério dos cortes assumido por Audálio no “Quarto”,
visava evitar repetições e promover leitura palatável, e
assim ele mesmo explicou que “a repetição seria inútil... daí a
necessidade de cortar, selecionar as histórias mais interessantes”10. Na
realidade, removeu páginas e páginas, gerando um texto
final de inegável brilho, mas com nítido filtro, principal-
mente em face de questões espinhosas como preconceitos.
Audálio inventou uma Carolina de sucesso, uma escritora
aceitável exatamente por ser negra e pobre11. De sucesso
sim, mas não inteira, nem legítima. O “apagamento” do
resto da obra de Carolina, no melhor dos juízos, a conge-
lou como uma espécie de heroína, precursora das lides
pró-negros, femininas, feministas e da rebeldia popular.
Não que não tangenciasse tais situações, mas no geral,
sempre esteve longe de vanguardas ou de coerências12.
Mesmo filtrados, cabe reconhecer o valor de Carolina
menos pelo seu conteúdo estético e mais por gerar uma
obra emblemática de um tempo contraditório em sua
dinâmica. Semiletrada, Carolina tinha em seus escritos
de Carolina em livro sob o título “Antologia Pessoal”, Editora da UFRJ, Rio de Janeiro, 1966.
10 Veja-se o prefácio assinado por Audálio Dantas no “Quarto de despejo”, op. cit. 1960, p. 11.
11 Sobre a relação complicada entre Audálio Dantas e Carolina, diz Joel Rufi-no dos Santos que ela o via como “um pai incômodo que lhe vinha cobrar disciplina de uma vida autônoma e difícil”. Op. cit. p. 96.
12 Sugere-se o cotejamento entre o “Quarto” e “Meu estranho diário”, pois neste cuidei de manter as páginas onde a questão fica evidente.
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vícios da linguagem oral. Ao mesmo tempo, o cabedal de
leituras de clássicos da literatura brasileira e portuguesa
permitia uso de palavras comuns à norma culta. O fator
distintivo da obra de Carolina se deu exatamente por
esta combinação de escrita “errada” e conteúdo poético
ilustrado ainda que de marcas do século XIX. Sobretudo,
porque na contemplação dos demais escritos, dos inéditos,
é possível fazer leituras menos crivadas, mais completas,
vale a retomada dessa mulher única. A par dos defeitos
lógicos, incompatíveis com o que seria a “grande literatura”
e mesmo do apoio posterior dado à ditadura militar e aos
políticos que continuaram a esquecê-la, cabe reconhecer a
audácia da escrita pretensiosa e atrevida, mostra rara em
contexto de miséria. Mesmo com julgamentos ambíguos,
Carolina não deixou de expressar o que pensava sob o
denominador de um tema comum: a pobreza em sua luta
diuturna pela subsistência. Afim de apresentar algo varia-
do, estrategicamente, optei por duas histórias que, dentre
os escritos inéditos de Carolina, figuram com originais13.
Foram selecionadas duas “estórias” e uma pequena série
13 As duas histórias mostradas e a compilação dos “provérbios” estão em ca-dernos inéditos depositados na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro com cópia na National Library de Washington, DC. Estes textos foram cedidos pela filha Vera Eunice para microfilmagem e os originais devolvidos à fa-mília de Carolina foram doados para a cidade de Sacramento, MG, terra da escritora. Há também um caderno na Coleção de José Mindlin que contém fração dos provérbios. Neste artigo foram mantidos os erros de grafia da autora.
de “provérbios” e com isto, procurou-se entender a visão
de alguém que como miserável, idealizava o “mundo de lá”.
O que se aprende com a retomada desta formidável
figura é que a par da manipulação — e ironicamente,
graças a ela — pode-se rever um patrimônio documental
que transcende as fronteiras da literatura, da história. Por
todos os motivos, vale repensar Carolina Maria de Jesus.
José Carlos Sebe Bom Meihy
Unigranrio – Duque de Caxias – RJ – Brasil