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A transição do trabalho escravo ao trabalho livre no Grande ABCe os fluxos populacionais: 1880/1920 Káti; ristina Keru Entreo mar e o planalto No Brasil, durante todo o período de ocupaçãoda Colônia, a Coroa Portuguesa teve como aliados os jesuítas, tendo estes, buscado inserir o índio no processo produtivo, emboraesse intento não tenha seconcretiza- do por inteiro. A ação jesuítica, entretanto, foi alternativa de assimilação da cultura indígena,em contraponto à posição do colono que optou, na maio- ria dasvezes, pelo extermínio. No litoral, os freqüentes ataques indígenas, no princípio da ocupação dasterras brasileiras peloseuropeus, inviabilizava asatividades produtivas, tornando, assim,a penetração no Planalto vanta- josa, tanto para a economia colonial como para a nova fonte de mão-de- obra escrava que sevislumbrava. Assim, ainda em 1553, se deu a instalaçãoda Vila de Santo André da Borda do Campo, com JoãoRamalhoe um grupo de colonos.Somenteum ano mais tarde foi fundado o Colégio de SãoPaulode Piratininga, quando, através do projeto do PadreManuel da Nóbrega, sepropagou a fé aosser- tões, particularmente aos índios Carijós, que também eram o principal alvo dos colonos. A disputa entre jesuítas e colonos foi, no entanto, colocadanum segun- do plano, quando centralizou-se forçasna resistência aosataques tamoios, que perduraram por toda a década de 1550. Pela localização geográfica, de difícil proteção, o governador Mem de Sá optou pela extinção da vila e remoçãode seus moradores parajunto ao Colégio, em SãoPaulo.Embora não se tenha ainda a localização exatada extinta Vila de Santo André da Rnr~~ ~n r~mnn- ~Iulln~ hi~rnri~~nrp~ ~tP~t~m tpr p~t~~n " vil" n" ~rp" ri"

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A transição do trabalho escravo aotrabalho livre no Grande ABC e os

fluxos populacionais: 1880/1920

Káti; ristina Keru

Entre o mar e o planalto

No Brasil, durante todo o período de ocupação da Colônia, a CoroaPortuguesa teve como aliados os jesuítas, tendo estes, buscado inserir oíndio no processo produtivo, embora esse intento não tenha se concretiza-do por inteiro. A ação jesuítica, entretanto, foi alternativa de assimilação dacultura indígena, em contraponto à posição do colono que optou, na maio-ria das vezes, pelo extermínio. No litoral, os freqüentes ataques indígenas,no princípio da ocupação das terras brasileiras pelos europeus, inviabilizavaas atividades produtivas, tornando, assim, a penetração no Planalto vanta-josa, tanto para a economia colonial como para a nova fonte de mão-de-obra escrava que se vislumbrava.

Assim, ainda em 1553, se deu a instalação da Vila de Santo André daBorda do Campo, com João Ramalho e um grupo de colonos. Somente umano mais tarde foi fundado o Colégio de São Paulo de Piratininga, quando,através do projeto do Padre Manuel da Nóbrega, se propagou a fé aos ser-tões, particularmente aos índios Carijós, que também eram o principal alvodos colonos.

A disputa entre jesuítas e colonos foi, no entanto, colocada num segun-do plano, quando centralizou-se forças na resistência aos ataques tamoios,que perduraram por toda a década de 1550. Pela localização geográfica, dedifícil proteção, o governador Mem de Sá optou pela extinção da vila eremoção de seus moradores para junto ao Colégio, em São Paulo. Emboranão se tenha ainda a localização exata da extinta Vila de Santo André daRnr~~ ~n r~mnn- ~Iulln~ hi~rnri~~nrp~ ~tP~t~m tpr p~t~~n " vil" n" ~rp" ri"

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atual região ocupada pela cidade de Santo André. Manteve-se viva na me-mória a idéia de que Santo André hoje, seria uma descendente direta da vilafundada por João Ramalho.

"Succederam-se dias, annos e séculos, da fundação desta localidadepor João Ramalho, neste pedaço de pátria, com a denominação deSanto André, alli na Borda do Campo, onde começou a creçer aprimeira povoação, a vida de um grande porvir, impulsionando essedesejo o seu fundador a ponto de que não fôra as desavenças havidascom os Padres Jesuítas, q'protegidos pelo governo do Reino, funda-ram São Paulo de Piratininga, onde hoje se ergue a grande Capital,ter-se-ia esta erguido hoje neste seu recanto." (O MONITOR, SãoBernardo, 04/08/1904)

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Assim, a história teria roubado, com a extinção da vila, o destino grandiosoque lhe competia, deixando-o para a cidade de São Paulo. De qualquermaneira, no ano de 1560, Santo André perdeu seu status de vila e passou aser designada como 'bairro rural da Borda do Campo' da cidade de SãoPaulo. A região abrangia as atuais cidades de Santo André, Diadema e SãoBernardo (da Serra do Mar até Rudge Ramos). Sendo que somente no séculoXVIII, com a fundação das capelas de Nossa Senhora da Conceição e SãoBernardo, a região passaria a ser um único bairro, Nossa Senhora da Con-ceição de Guacuri e São Bernardo.

Isso veio a estimular uma historiografia que deixa como adormecido es-tes três séculos, registrado como período de pouca importância histórica.Assim, quando no século XVIII, essa sociedade ganha novos contornosorganizacionais, sua memória também recebe novo impulso, relegando àobscuridade todo um período de relações entre São Paulo e o mar, no seucotidiano de comercialização e transporte. Tal passado, sem grandes perso-nagens ilustres, fatos marcantes ou mudanças significativas, foi tido comoincipiente, sem ser digno de maiores relatos. Seus personagens, nacionais,estrangeiros, índios, instalados pelos caminhos formando pousos, pratican-do cultura de subsistência ou extrativista, foram apagados da memória daregião, da mesma maneira que selecionou-se o processo de imigração paracaracterizar a população, enquanto foram apagados seus personagens ne-gros das fazendas da região.

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Diadema nasceu no Grande ABC: História Re!rospectiva da C!~~e _Vermelha

As terras situadas entre São Paulo e a Serra do Mar foram logo de imediatosendo requisitadas por sesmarias, sem que se tenha formado, no entanto,algum núcleo significativo. O povoamento da região se daria por um pro-cesso constante, porém, lento. A ocupação das terras, a partir do séculoXVI, pode ser rastreada através de inventários, escrituras ou sesmarias, emesmo com tais lacunas, pode-se ter uma idéia do lento processo de povoa-mento ou tomada de posse dessas terras. A documentação encontrada ecoletada por Wanderley dos Santos I , comprova a utilização da terra para

fazendas de subsistência ou criação de gado, numa área de escassa popula-ção mas de boa localização, entre a Serra do Mar e o Planalto.

São Paulo definiria sua comunicação por terra. Caminhos partiam davila, estimulados pelo crescimento do comércio e, deste modo, tudo que aolongo deles se encontrava, havia também de se desenvolver. Hospedarias,pastagens e ranchos cresciam com o movimento cada vez maior de viajantese mercadorias, criando-se até empresas de transporte para condução de pas-sageiros entre Santos e São Paulo pelo velho Caminho do Mar.

A estrada do Oratório, como ficou conhecida, foi o primeiro caminhoque ligava a Serra do Mar a São Paulo. Passava pela Vila de Santo André daBorda do Campo rumo ao rio Tamanduateí, Utinga, Sapopemba, Tatuapé,etc. Esse caminho caiu em desuso ainda em 1560, devido a uma nova vari-ante que interligava a Borda do Campo e o Ipiranga.

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o Caminho do Padre Anchiera cruzava toda a região bernardense, ligandodiretamente a Serra do Mar ao Ipiranga. Iniciado em 1560, sendo sempremuito utilizado, gerando consequentemente alguma preocupação na suamanutenção. Durante os séculos seguintes, os reparos ocorriam somente quan-do se sabia da chegada de alguma autoridade. Os atoleiros foram vencidos aospoucos com aterros nos trechos mais críticos. Faltava assim vencer a serra, suaaspereza e sinuosidade. Tal problema só se resolveu com a Calçada de Lorena,concluída em 1790, assegurando a rota de comércio e de movimentação.

Muitos caminhos cortavam a região, como o chamado Caminho Velho,que saía de Piassaguera para Santo Amaro e São Paulo. O caminho doCaaguaçu, ou talvez, o caminho do Sapopemba, localizado entre o atualbairro de Santo Amaro até Rio Grande da Serra, por onde chegava o gadode Moji das Cruzes. Ou ainda, numa região próxima de Pilar, existira achamada trilha dos Tupiniquins, sinal da primeira penetração na região,anterior ao caminho de Anchieta.

O Caminho do Carro, numa ampla região cruzando a Vila Mariana,existiu com essa designação desde o fim do XVIII, sendo considerado du-rante muito tempo como divisa entre São Paulo e Santo Amaro. Começavano Largo da Pólvora, Liberdade, subindo até a atual rua Vergueiro, ruaParaíso, Domingos de Moraes e rua Luís Gois. Já no bairro da Saúde, haviaum pequeno córrego e uma velha casa onde se tem notícia de que carreirose tropeiros descansavam os animais e faziam pouso. Saindo de Santo Amaro,havia um outro caminho, na altura da atual Rua Correia Dias seguindo atéSão João Clfmaco, indo dar no mar, e ainda, a estrada do Capitão Cursinoatravessando o atual Jardim da Saúde e o bairro de Vila Moraes chegandoao Arraial do Curral Grande (Vila Conceição e depois Diadema) que davanovos caminhos a Santo Amaro e São Bernardo.

A região sempre se caracterizou por grande mobilidade. Os caminhos detropeiros e canoeiros penetravam por toda essa área, e suas famílias, dealguma maneira, permaneciam nessas terras, divididas em três grandes bairros,Borda do Campo (atual São Bernardo) bairro de São Caetano e bairro deCaaguaçu (atual São Bernardo, Rio Grande da Serra e Ribeirão Pires). Umaárea era de campo, no vale do Rio dos Meninos, dedicada à criação de gado, eoutra, de mata, com fazendas agrícolas de subsistência e mão-de-obra escrava.~

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)iadema nasceu na Grande ABC: História Retrospectivo do Cidade Vermelho

Bl

No século XVIII, os poucos fazendeiros abandonaram a região para se

estabelecer no Vale do Paraíba. Muitas destas terras foram doadas a ordem

de São Bento, que acabou por formar duas fazendas, a de São Caetano

(bairro do Tijucussu) e São Bernardo, que mais tarde se desdobrou em

fazenda Jurubatuba. Os beneditinos, fora dos palcos de relações sociais da

escravidão na época, montaram uma fazenda industrial com mão-de-obra

indígena, sendo que só chegariam os escravos negros na segunda metade do

século XVIII.

Os caminhos, neste período, mantinham uma grande circulação de car-

ros de bois e tropas de cargueiros, viajantes e negros vindos do litoral, para

as fazendas de café do interior paulista. Tais caminhos não passavam, mui-

tas vezes, de picadas no mato, feitas há tempos, por homens à procura de

ouro e índios para escravizar. A aparência se mantinha pela passagem dos

que a utilizavam. Sem pontes, tais caminhos eram penosamente percorri-

dos, atravessando a nado os trechos baixos dos córregos ou acompanhando

longamente a sua margem.

Só a partir de 1840 é que os caminhos começaram a receber algumas

melhorias, que foram sendo feitas através de Serviços Públicos, quando o

governo passou a se voltar mais para tais questões. O desenvolvimento esta-

va atrelado às melhorias dos trajetos. Novos caminhos eram necessários

para encurtamento das distâncias, no transporte dos produtos agrícolas,

comerciais e industriais, bem como, era vital a conservação mínima e repa-

ros nas estradas já existentes.

As estradas se mantinham sempre sob condições muito ruins, desde os

primeiros viajantes que descreviam os intermináveis atoleiros, aos carroceiros

que reclamavam no começo deste século, do péssimo estado das estradas na

região. O aumento da população livre, quando do início da chegada das

levas de imigrantes, fez com que o processo de incremento das estradas e

caminhos também se ampliasse. O transporte sempre foi uma preocupação

muito relevante na organização destes novos grupos, tanto para seu próprio

deslocamento como para escoamanto de suas mercadorias.

"Os habitantes desta zona só o que desejam, aliás com toda a jus-tiça, é facilidade de comunicação, rápida e barata, para o seu de-;envolvimento progressivo." (O PROGRESSO, São Bernardo, -I5/1911)

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Não só a quantidade e qualidade destes caminhos se impunha em taispreocupações, mas também a disponibilidade de tais vias, visto que muitasvezes elas despareciam em atoleiros, se fechavam pelo mato ou se confundi-am dentro de terras particulares. Alguns colonos, que possuíam lotes emlocais estratégicos, eram acusados de interromper a passagem através deseus terrenos ou de exigir tributos por ela. Mesmo em estradas tidas comopúblicas, isso ocorria com certa freqüência, como o abaixo assinado noLivro de Atas das Sessões da Câmara Municipal de São Bernardo, em agos-to de 1901, de moradores de Ribeirão Pires reclamando de José Gaelo, queexigia uma mensalidade para os que transitavam na estrada que seguia até a'capela', à qual os abaixo assinados declaram ser pública.

"O jornal O Progresso, órgão em apoio ao prefeito, afirmava ser im-possível solucionar os problemas das péssimas condições das estra-das, devido as forças climáticas da regiões, ou seja, grandes chuvas.O problema, por muitos mandatos, esteve longe de soluções, sórecebendo recursos para melhotias trechos de estradas com uma im-portância muito maior, como o caso da estrada do "V átios carroceirospedem-nos que sejamos o porta-voz de suas justas queixas, por issoque a estrada que vae à colônia do Rio Grande não permite transi-tar[...]" (O PROGRESSO, São Bernardo, 03/03/1912).

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o desenvolvimento de várias regiões da cidade estava condicionado aotrajeto desses caminhos, assim como também sua conseqüente degradaçãoquando o foco de interesse passou para as áreas cortadas pela linha férrea.Na segunda metade do século XIX, a estrada de ferro marcaria o começo deum processo constante de decadência das tropas e seus caminhos, bem comodas áreas e pessoas que a esse movimento deviam sua vitalidad~.

São Bernardo, antes da estrada de ferro, era passagem obrigatória entreSantos e São Paulo, entre eles, muitos viajantes relacionados com o alferesFranco Martins Bonilha, rico proprietário daquela freguesia, e dono da maiorfábrica de chá da província.

O estabelecimento da estrada de ferro, em 1867, fez com que muitoscaminhos caíssem em desuso, ficando quase abandonado o Caminho doMar. Diminuído o movimento que anteriormente faziam tropeiros e nego-ciantes de diferentes partes da Província, ficou determinado a decadênciamomentânea de regiões, como por exemplo, Ipiranga e São Bernardo. A fer-

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Diadema nasceu no Grande ABC: História Retrospectiva da Cidade Vermelha

roviana região não causou de imediato o impacto esperado, embora tenham-se formado núcleos significativos ao redor das estações. Um número muitopequeno de trens suburbanos e de ligação à outras cidades mais distantes, fezcom que não houvesse uma generalização dos deslocamentos. A dificuldadede transporte, de um modo geral, teria retardado a expansão da cidade que sóse daria em função do crescente aumento do mercado de trabalho.

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o mercado de trabalho

São Paulo, nos seus primeiros séculos de vida, embora tenha tido umafraca mineração e agricultura, intensificou seu mercado interno, valorizadopelo comércio de gado e de escravos índios caprurados no sertão com desti-no às áreas de plantio do litoral. Os índios sabiam melhor que ninguémcriar trilhas de penetração para o interior ou beirando o litoral, sabendoescolher os melhores caminhos, servindo como guias indispensáveis aosbandeirantes e monçoneiros.

Se, num primeiro momento, a agricultura não pareceu motivar a econo-mia paulista, o comércio se diversificou bastante. A descoberta do ouro nasMinas, apesar de esvaziar boa parte da população paulista, colocou São

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Diadema nasceu no Grande ABC: História Retrospectiva da Cidade Vermelha

Paulo, já em 1800, como fornecedor de animais de carga, alimentos, couroe objetos para a região aurífera que investia .u~icamente na mineração. Aproximidade com o mar daria a São Paulo o caráter de intermediário, utili-zando-se cada vez mais das rotas que cruzavam a região do atual ABC.Lucraria muito com isso na agricultura e transporte das mercadorias, basea-da no consumo das minas.

Estimulou-se o desenvolvimento da produção de milho, de feijão, dearroz, de farinhas, de azeites de mamo na e amendoim, de toucinho e carnesde porco, para atender a esse comércio. Nas regiões de mata, bairro doCaaguaçu e Oratório, próximas à serra, haviam grandes fazendeiros combom número de escravos na agricultura. No entanto, na região de ,campo,mais tarde conhecida como São Bernardo, a caminho de São Paulo, haviapequenos sítios com poucos braços escravos, especializados na criação degado, com um grande movimento de carros de boi que transportavam le-nha e madeira para a cidade.

No início do século XIX, uma nova população se formaria com o ingres-so de um número mais significativo de negros e europeus, como também,seria esse o momento quando fazendeiros, em busca de um maior controlede seus produtos serra abaixo, se fixariam na região. Santos seria o únicoporto que mantinha comércio direto com a cidade de Porto, Lisboa e asilhas portuguesas. Cananéia e Paranaguá, neste momento, não eram portosutilizáveis pela longa distância a que se encontravam. Os produtos escoadosnos portos citados são, segundo D'Orbogny em 1826, farinha, couro, car-ne seca, mate e chá.

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"Embora afastado apenas doze léguas de São Paulo, Santos é deleseparado pela alta cordilheira Marítima, de maneira que tal distân-cia, multiplicada pelos obstáculos, corresponde à cerca de setentaléguas.[...] íngreme e escarpada, só é acessível a mulas. Para se trans-portar a mercadoria a tais alturas, tem-se de dividi-Ia em pequenosvolumes, pois, de outro modo, o transporte só poderia fazer-se por

.,um custo enorme.

Apesar de pouco populosa, a região do ABC abrigou em sua história umcontingente de mão-de-obra escrava, tanto indígena quanto negra, sendoque em momentos específicos de sua ocupação, isso se deu em maior oumenor escala. Os negros de ganho, da capital paulista, também tiveram

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as

relações com a economia da região do ABC e nos caminhos para Santos.Esta particularidade fez com que ocorresse um relacionamento estreito como mercado interno paulistano. Os maiores agrupamentos de escravos sedariam nas fazendas beneditinas de São Caetano e São Bernardo.

Muitas gerações de escravos se reproduziam naquelas fazendas, criandolaços de parentesco e similaridade na estrutura familiar, devido ao fato detais fazendas terem, por longo período, permanecido como terras de padresbeneditinos, sem que tivessem sido vendidas. No século XIX, com a dimi-nuição do número de abades, já proibidos por novos noviçados, estreitou-se as relações do próprio abade com seus escravos.

O aumento do tributo escravo encareceu bastante sua força de trabalho,criando dificuldades aos beneditinos para a manutenção da concorrênciana comercialização dos tijolos da fazenda. Assim, com o intuito de aumen-tar a produção, tentaram mudanças na disciplina do trabalho, readequandoo tempo útil e reagrupando os escravos que moravam dispersos pela fazen-da, a se estabelecerem próximos às olarias e fornos, pretendendo uma econo-mia de tempo. Além disso, ao que parece, seus escravos estavam mais dedi-cados ao trabalho das roças, onde os beneditinos permitiam que se traba-lhasse aos domingos, fins de tarde e dias santos, para acúmulo de um pecú-lio que poderia lhes servir para compra de alforria.

Os beneditinos mantinham diferentes oficinas em suas fazendas, abadi-as e olarias. Os escravos podiam especializar-se adquirindo um saber que iamuito além da lida com a lavoura. Muitos ex-escravos podiam com esseconhecimento continuar trabalhando para os mosteiros, mesmo após sualibertação. Embora esse fato não possa representar um avanço nas relaçõesentre brancos e negros, ocorridas na região, coloca uma das particularida-des entre os escravos e os beneditinos neste momento.

As fazendas produziam mandioca, arroz, feijão, milho e amendoim paraazeite, algum gado e pequenos animais. A produção da olaria de São Caeta-no era comercializada com a cidade de São Paulo, através do rio Tamanduateí,que mantém esse nome desde a segunda metade do século XIX. Nos sécu-los XVI, XVII, XVIII e XIX o que se chamava rio Tamanduateí é o atualRin ~n~ M..ninn~

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"No extremo do Beco das Barbas (ladeira Porto Geral) havia umporto onde atracavam as canoas que conduziam mercadorias dasro~ ribeirinhas e das olarias da fazenda de São Caetano. Era oporto mais importante do Tamanduateí, e vivia por isso cheio detropas, de mercadores e de escravos."3

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A fazenda São Caetano pertenceu a ordem de São Bento entre 1631 e1877. Havia uma pequena capela onde eram batizados os escravos,construída em 1720 e reformada em 1772, tendo sido demolida em 1883para a construção, pelos colonos italianos que lá residiam, da atual MatrizVelha. O local, antigamente chamado de Pateo de São Caetano é hoje a

praça Ermelindo Matarazzo, ao lado da fábrica Matarazw.As antigas terras do Tijucussu, ou em tupi "Grande Lamaçal" ou "Barreiro

Grande", cobriam o atual rio dos Meninos e o Ribeirão do Moinho Velho,na Vila Carioca e Sacomã. Tendo sido separadas do Núcleo Colonial São

Caetano com a criação do município de São Bernardo em 1889.No século XVIII a fazenda São Caetano compreendia a área entre o atual

córrego do Moinho e o ribeirão do Moinho Velho já em São Paulo. A áreada atual Vila Barcelona, bairro Santa Maria, Cerâmica, Vila São José e cen-tro de São Caetano formaram uma faixa rural denominada como Bairro deSão Caetano, fora do Núcleo Colonial. Aí moravam posseiros, arrendatári-

os, tropeiros e mestiços.O número de escravos na região cresceu com o estabelecimento da fa-

zenda São Caetano. Em 1730 eram somente 17, sendo que em 1826 onúmero cresceria para mais de 50, devido às atividades da fazenda. Noinício, trabalhava-se basicamente com criação de gado na Fazenda doTijucussu, mas em 1730, já com o nome de Fazenda São Caetano doTijucuçu, iniciou-se a fabricação de telhas e tijolos, com a construção deforno e olaria. O processo foi se modernizando e crescendo, tendo ocupadoa olaria a área entre a atual Matriz Velha e o Rio dos Meninos. A produçãode tijolos de alvenaria ampliou-se para lajotas, ladrilhos, telhas e telhões

para canalização de água.Em louça vidrada eram produzidos pratos, panelas, potes, bacias e

alguidares, além de obras-de-arte. Todo o trabalho técnico da cerâmica eraorientado por um mestre oleiro, livre e assalariado. O trabalho era realizadopor escravos e escravas, entre os quais alguns aprendizes de oleiro. O traba-

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lho das olarias se manteve em São Caetano por mais 250 anos. O mesmobarro que serviu ao trabalho dos negros na fazenda São Caetano nos séculosXVI ou XIX, serviria a trabalho e sustento de imigrantes, já neste século.

Ao escravo também cabia remar pelo Tamanduateí até o Porto Geral (hoje,rua 25 de Março), levando em canoas sua produção. Somando ao trabalho dogado, cerâmica e transporte, a agricultura na fazenda manteve uma grandehorta e pomar atrás da casa grande. Também o cultivo de milho, feijão emandioca; corte de lenha, extração de madeira, extração de pedras para canta-ria, eram atividades importantes na região.

A fazenda São Bernardo remonta sua história em terras adquiridas em1637, parte dela de mata e outra de campo. Estava localizada à margem doCaminho do Mar, sendo inicialmente voltada à agricultura e pecuária.Manteve um número de 30 escravos até 1825, quando esse número caiupela metade. Em 1831 a Câmara de São Paulo já dizia ser aquele terreno deutilidade pública, quando já era comum a invasão das terras de campo dafazenda do Mosteiro de São Bento em São Bernardo. As matas tambémestavam sendo invadidas por negociantes de lenha e madeira, empurrandoos beneditinos e seus escravos mata adentro. De um modo geral a popula-ção era pobre, sendo que por volta de 1840, menos da metade de seusmoradores eram brancos, e a maioria dividia-se entre negros, pardos, mes-tiços e escravos.

Luiz Gonzaga Piratininga Júnior, no seu livro Dietdrio dos Escravos deSão Bento, descreve com farta documentação, o viver cotidiano desses es-cravos, através de registros nos livros das abadias, resgatados por seus pró-

"'\'! prios antepassa-dos. O grande vo-lume de informa-ções nos mostra as

particularidadesda escravidão nas

fazendas, permi-tindo uma visãodiferenciada deentendimento daree:ião.

..

~

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Diadema nasceu no Grande ABC: História Retrospectiva da Cidade Vermelha

Os escravos da fazenda São CaetanQ e São Bernardo viveram sob a pres-são moral de uma escravidão junto à igreja, cobrindo todo o calendáriolitúrgico, podendo ter realizadas proclamas e editais de seus casamentos efeitos seus sepultamentos, muitas vezes, dentro da própria capela. Wanderleydo Santos coloca que, embora o negro que viveu nas senzalas de São Bentotenha se solidarizado o quanto pode, teve de viver constantemente sobre apersistente tentativa de eliminação de seus valores, passando a sobrevivercomo outros tantos, em condição inferior, mesmo após sua libertação.

De qualquer maneira, com essa rebeldia dos escravos da fazenda SãoCaetano, que não se submetiam a esse novo arranjo da ordem, os beneditinosforam tomando, nos seguintes anos, atitudes de reordenação possível, pe-rante seus trabalhadores, antevendo o enfraquecimento da própria escravi-dão. Após a rebelião dos escravos das olarias da fazenda São Caetano, aOrdem de São Bento decide libertar todas as escravas com mais de 5 filhos;mais tarde, todas as crianças que nascessem a partir daquela data, sendo quetodas as fazendas beneditinas no Brasil libertaram seus escravos em 1871,muito antes da Lei Aurea.

88 "Neste ano, então, os escravos revoltam-se por que queriam apenastrabalhar na roça. Veio um monge do Rio de Janeiro, professor docolégio D. Pedro 11 e fez uma inspeção onde concluiu que não podemais haver escravidão quando o indivíduo começa a afirmar quenão vai trabalhar mais como escravo. Era necessário reprimir a re-volta ou acabar com a escravidão."4

José de Souza Martins cita como os beneditinos criaram nestas fazendasuma sociedade de três ordens: a dos monges, dos negros escravos e umaterceira dos bastardos, índios, mestiços, sedimentadas em relações cheias decontradições e peculiaridades para a época. Tal particularidade não foi afe-tada, de imediato, com o início da vinda dos estrangeiros, no relaciona-mento com alguns dos serviçais negros ou mulatos. Porém, a medida que asabadias voltaram progressivamente à vivência monástica, foi desaparecen-do essa figura do ex-escravo.

A implantação dos Núcleos Coloniais em São Caetano e São Bernardo,em 1877 inibiria, mais uma vez a escravidão, pois em tais núcleos_ficavaproibida a escravidão. Os núcleos abrangeriam as duas antigas fazendas deSão Caetano e São Bernardo e também a de Francisco Martins Bonilha. A

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Diadema nasceu no Grande ABC: História Retrospectiva da Cidade Vermelha

escravidão permaneceu enfraquecida no Caaguaçu, Oratório, Rio Grande e

na região que seria depois Santo Amaro, na mata.

Quando falamos da adaptação ao trabalho livre, vemos as novas condições

que se colocaram, ou antes, se impuseram, diferenciando o tratamento que se

daria aos novos grupos de trabalhadores que surgiam. Um grande número de

mestiços eram tidos como bastardos, vivendo em grande parte como agrega-

dos nas fazendas, sem direitos e sem registros. Fazendeiros da região, durante

o século XVIII, tentaram arregimentar tais homens, tidos como vadios, para

serviços públicos. Há, sem dúvida, um grande contingente de mão-de-obra

nacional disponível, porém esta não está organizada para o trabalho.

Segundo o Congresso Agrícola de 1878, necessitavam-se de leis, polícia

e magistrados para organizar esse mundo do trabalho que, segundo o Con-

gresso, se desvirtuava na 'preguiça, vagabundagem e indolêncià do traba-

lhador nacional, numa noção muito anterior a essa data. O escravo passaria

a ser definitivamente desqualificado, carregando a pecha da indolência e

inaptidão ao trabalho disciplinado nos moldes pretendidos por uma elite,

que tinha em si própria a caracterização da ociosidade.

O escravo passa a ser, no momento do projeto imigrantista, um entrave

no processo de acumulação que vislumbram, embora tenha servido de base

da economia, por quase 300 anos. Pode-se dizer, de um modo geral, que

toda burguesia do século XIX, bem como, a própria igreja, teve dificuldade

em incorporar regras disciplinares no trabalho capitalista, pela recusa na

aceitação desses trabalhadores da noção de tempo útil. A ótica é sempre a

do lucro e da acumulação, sendo que

89

"... se a ociosidade era interpretada como entrave para o progressomaterial e para a realização da liberdade, os projetos acalentadospelos proprietários [não só de terras] colocavam em risco as condi-ções de vida de homens livres e pobres e de pequenos recursos"s.

Estes resistiram sustentando SUa autonomia para não se atrelarem às ne-cessidades da vida e do labor, não submisso ao controle político e econômi-codos setores sociais que concentravam riquezas. Os trabalhadores livres eescravos libertos no ABC mantiveram-se à margem do processo de estabe-lecimento dos núcleos coloniais, que privilegiou unicamente o imigranteeuropeu. O mercado de trabalho urbano possibilitava ao escravo certa cons-

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Diadema nasceu no Grande ABC: História Retrospectivo do Cidade Vermelho-

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ciência daquilo que lhe era imposto, bem como, ampliava seus limites atra-vés de um ap.rendizado social. Até 1870, a cidade cresceria lentamente e suaeconomia tardava a desenvolver-se em uma especificidade urbana.

O escravo estava dentro de um grupo social heterogêneo, aquele queagregava os despossuídos, os que estavam a margem do poder econômi-co e político, sendo que o negro de ganho era o que prevalecia dentro daeconomia urbana gerada pelo escravo. Além dele, destacam-se órfãos

tutelados, diaristas, colonos imigrantes presos por contrato, agregados,africanos livres, libertos condicionais, ingênuos, libertos da guerra doParaguai, etc. 6

Alguns traços, vistos nos escravos de São Paulo, podem ser projetadosnos escravos dos arredores rurais da cidade. São Paulo sempre buscou obranqueamento de sua população, o que acentuou ainda mais as diferençassócio-raciais, não permitindo aos negros espaço de expressão e sobrevivên-cia. No tipo de escravidão urbana não havia ritmos coletivos, nem tampoucograndes plantações de latifúndio, sendo que a concorrência, no mercado detrabalho, estimulava, mais uma luta individual e pessoal.

Não somente os escravos especializados eram os que usufruíam da liberda-de de ir e vir e de uma remuneração direta ou indireta, havia também tropeiros,carreiros, vendedores ambulantes que trabalhavam nas ruas, nos mercados enos Campos ao redor da cidade. Assim, pode-se ver que, mesmo numa peque-na proporção, este escravo integrou-se à sociedade urbana paulista, enquantoconsumidor e produtor, através do uso de capitais líquidos.

No ABC uma visão bastante diferenciada de escravidão, nas suas rela-ções sociais, é desenvolvida pelos beneditinos, numa sociedade particularque permaneceu por três séculos, quando, em 1877, tais fazendas foram

desapropriadas pelo Império.?

"Enquanto o europeu é considerado um trabalhador já formado...Concorrem para dificultar o processo de adequação dos elementosnacionais ao trabalho agrícola qualidades adquiridas ou inerentes acondição de vida de cada um (brutalização do trabalho escravo, iné,r-cia e vícios do agregado e a resistência à vida sedentária do índio ...)Configurações sociais bastante sedimentadas, respondendo as nece~-sidades econômico-político-ideológicas, expressam a persistência darealidade de vida da formação social apesar do surgimento de umnovo componente - o trabalhador livre."8

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Numa sociedade em transformação, as leis de locação de serviços, que sederam em 1879, carregavam consigo a trajet6ria de leis anteriores que assustentavam. Uma lei, em setembro de 1830, teria sua forte ligação com ofavorecimento da imigração, tendo sido criada seis meses ap6s a proibiçãolegal do tráfico. Embora nesse período não haja falta de mão-de-obra escra-va, a nova lei não dá conta de organizar o trabalho no país ou ainda servirde incentivo real para a imigração. A lei de 1830 acena apenas para a transi-ção, onde se vê o trabalho livre dentro do escravismo. Ela apenas legitima e

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acomoda uma já dada realidade social, detonando o processo de diferenci-

ação do trabalhador nacional.Já em 1837, vê-se a intensificação da pressão inglesa contra o tráfico

ilegal, dando-se ênfase às sanções legais a que ficava sujeito o trabalhadorestrangeiro, no caso de quebra de contrato. Tal lei já está integrada à políti-ca efetiva de atração do imigrante, quando aumenta a fiscalização ao tráficoe se coloca a necessidade de povoamento no sul do país. Ela colocará as

bases de todos os contratos seguintes.A Lei de Locação de Serviços de 1879, permanecendo até 1890, revoga-

rá as duas anteriores e valerá ao mesmo tempo ao trabalhador nacional e

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Diadema nasceu no Grande ABC: História Retrospectiva da Cidade Vermelha

estrangeiro, servindo de garantia e atração do imigrante, embora sempre os

interesses dos fazendeiros estivessem priorizados. Ao trabalhador nacional

esperava-se uma organização de seu trabalho, garantindo seus serviços de

maneira regular e que respeitassem seus contratos.

"... os anos finais da década de 70 tem a sua significação especIal,pois permitiram que se vislumbrasse de modo m~is efetivo nas duasmedidas Uma alternativa possível para a ttansiçãodo trabalho escra:.vo para o trabalho livre"9

92

A década de 80 poderia bem ser exemplificada por um momento em quea estruturação do mercado de trabalho livre se efetiva, culminando no finalda década com a atração do imigrante e sua escolha como o trabalhadorideal para as terras paulistas. São Paulo importaria para o resto do país umprojeto imigrantista, que, demorou para ser definido.

Caminha-se, assim, na direção da substituição do trabalhador escravo pelolivre, processo este, que mesmo respeitando seus fluxos e refluxos, chega aofinal do século XIX, em grande parte concretizado. Neste caminho coexisti-ram, formas de trabalho livre com trabalhadores nacionais e imigrantes, ser-viço escravo e diferentes formas de parceria, arrendamentos, etc. Homensque mesclaram-se no cultivo da terra, sendo que a todos foi igualmente nega-do o direito pleno da posse de terra. Na cidade de São Paulo, o processo deimigração se daria com características diferenciadas no campo, nos centrosurbanos e nos núcleos coloniais, como se verá mais adiante.

Sendo ainda maioria na lavoura brasileira, a mão-de-obra escrava inici-ará um processo mais sistemático de resistência em São Paulo, a partir de1870, coincidindo com a revolta dos escravos na fazenda de São Caetano.São fugas em massa que aos poucos desorganizariam o trabalho nas fazen-das, o que levaria os fazendeiros a uma desejável acomodação da ordemda produção. A partir da premissa que a ordem escravista entrara emdecadência, tais fugas tomam uma conotação não mais esporádica e aleató-ria, mas uma dimensão mais consistente. São Paulo seria o principal focodessas revoltas, e estas se tornariam mais eficientes, num processo acelera-do e crescente até 1887.

A permanente necessidade de mão-de-obra na cidade de São Paulo fezcom que o mercado absorvesse os fugitivos, assegurados em alguma medida

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nos centros urbanos. Aos escravos africanos era esperado um perfeito ajuste

ao trabalho, para tanto valeu-se, como se sabe, de dois fatores distintos. Por

um lado aplicava-se a violência como mecanismo de disciplinização, apoi-

ado na imposição de um poder que pouco a pouco se desgastava. De outro,

meios mais sutis, como os mecanismos de controle social e moral aplicados

de maneira plena pela Igreja.

Se o processo de abolição se impunha e se encaminhava, não o foi com a

ajuda dos fazendeiros paulistas, que resistiram à toda espécie de pressão a que

foram submetidos. Os fazendeiros republicanos só aderem ao movimento,

ainda com receios, quando este se mostrou inevitável e o próprio projeto

imigrantista já estava colocado como solução, sob as expensas do Estado.

A partir dos primeiros fluxos de imigrantes, houve sempre muitas e dife-

rentes maneiras, de ambas as partes, em se adaptar à nova ordem e política

imigratória. As conjunturas mudavam e juntamente a elas, as soluções da-

das aos contratos também se alteravam, bem como à acomodação desse

novo grupo às terras brasileiras, sua própria arregimentação na Itália e sua

fixação nas fazendas.

A trajetória desses imigrantes, em solo brasileiro, tomavam rumos dife-

renciados. Muitos se encaminhavam diretamente para o cafezal, porém,

trocavam de fazendas freqüentemente, migravam para outras cidades como

mão-de-obra barata na indústria nascente, ou se estabeleciam como artesãos.

Muitos voltariam à terra natal, alguns com, outros sem, o tão sonhado

pecúlio acumulado nas terras brasileiras.

O Congresso Operário de 1912 aconselha um contato maior com os

países de origem, para obtenção de maiores informações e o término defi-

nitivo dos intermediários.

"considerando que os trabalhadores, como vítimas principais dessamá organização, são obrigados a se transportarem de um país paraoutro, impelidos pelas crises de desocupação provocadas pela ganân-cia do capitalismo, e em busca de trabalho;[...] não encontrando, aoaportar aqui, elemento algum de defesa, cheios de necessidades[...]"IO

Se a imigração italiana para São Paulo, hoje nos parece tão óbvia, sepensado naquele momento, percebe-se que assim não o foi para osimigrantistas. Um ideal de trabalhador se delineava bem distante do que

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parecia ser o povo italiano ou meridional. A ambição estava nos povos do

norte europeu, plenamente aptos e disciplinados ao trabalho.

"No decorrer de minha permanência em São Paulo[1860] fui visita-do por grande número de colonos suíços, que tinham abandonadoseus contratos de parceria depois de haverem pago as dívidas contra-ídas ou de se haverem delas esquivado por meio de fuga[...] Todos semostravam muito satisfeitos com os ofícios que então exerciam; unsjá haviam conquistado posição econômica estável, outros lutavam aindacontra grandes adversidades, mas sentiam-se homens livres."!!

o trabalhador do norte europeu fez parte dos imigrantes vindos paraSão Paulo logo nas primeiras décadas do século XIX, na maioria dos casossob o sistema de trabalho de parceria. Muitos deles como mão-de-obra,estando estabelecidos principalmente em Santo Amaro e Itapecerica, con-forme relata Tschudi, viajante suíço, que visitou o Brasil em 1860.

"No dia 2 de setembro [1860], saí bastante tarde de São Paulo,visitei o engenheiro Wieland em São Bernardo, que trabalhava naconstrução da via férrea e cheguei ao alto da serra de Cubatão, noalbergue Sansalá, debaixo de nevoeiro denso e forte chuva. O donodo albergue, no qual se obtém por elevados preços boa comida eaposentos medianos, era um suíço chamado Jean Perraud.Conseguiraamealhar boa fortuna mas era pessoa rude e violenta. [...]A estradaserra abaixo era um mar de lama.[...] Sob uma chuva torrencial,cheguei à Santos, à uma hora, nadando, antes que cavalgando. Doisdias mais tarde, embarquei no Piratininga, que depois de uma vaga-rosa viagem de 22 horas, me deixou no porto do Rio de Janeiro."12

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No ABC, os primeiros a se estabelecerem ocupam funções variadas, des-tacando-se as pousadas, tão citadas pelos viajantes do século XVIII e XIX.Outros alemães viriam mais próximos à virada do século, provenientes jáde outras regiões do país, organizando-se em economias rurais de pequenoporte. A 'ação benéfica' exercida pelos alemães por toda a região, se caracte-rizou pelo incremento na produção de bens caseiros e da pequena indús-tria, corno o cultivo de legumes, apicultura e laticínios, sendo tais produtoscomercializados pelos próprios "parceiristas". No entanto, seria urna vanta-josa política imigrantista firmada entre os dois países que colocaria o traba-lhador italiano, corno mão-de-obra real, aceito mais no período de 1877.

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Depois disso não se colocou mais a discussão da inadaptabilidade do traba-lhador italiano na lavoura.

"Finalmente a chegada [1885]. O desembarque em Santos e a via-gem de trem até a Capital da Província de São Paulo. Depois, novaordem: o destino 6nal era uma tal Villa de São Bernardo, direta-mente ao Posto de Imigração, no sobradão da rua principal, à épocachamada Caminho do Mar[...] A região servida pela linha Jurubatubaera coberta de matas semi-virgens. Era muita vegetação rasteira. Malpodia-se caminhar. Todo o trabalho estava para ser feito [...] A pri-meira vitória era a casa. Depoishavia mais mato a ser derrubado. Emais carvão e mais lenha para se vender. A terra era destocada, oterreno limpo. Depois começava o plantio[...]A vida era sacri6cada porque as chuvas eram constantes e as peque-nas estradas e atalhos não passavam de péssimos caminhos no meiodo mato. Era muito difícil o transporte da lenha, do carvão e dosprodutos das chácaras para serem vendidos em São Paulo, nas vizi-nhas São Caetano - também reduto de imigrantes italianos e - na

estação de São Bernardo, hoje Santo André. Para o transporte deprodutos era preciso a colaboração dos amigos. Os carretóes, carro-ças e charretes encalhavam a todo instante nas estradas encharcadase barrentasr...]"13

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Capital e Trabalho

A Lei de Terras de 1850 institucionalizou o não acesso do homem pobre,ou do trabalhador livre à terra, sendo que a expropriação desses homensacarretou numa massa assalariada de trabalhadores, que vendendo sua forçade trabalho, entraram definitivamente na roda do processo capitalista. Tallei esteve dentre as preocupações dos grandes proprietários de terras, ante avisão do término da mão-de-obra escrava. Assim concentraram a terra numpequeno grupo de grandes proprietários, abrindo oportunidades, emboralimitadas ao máximo, de imigrantes adquirirem lotes de terras devolutas

através da colonização.Não se viu esforços no sentido de integrar o escravo liberto ao trabalho

livre através de um sistema produtivo. O elemento nacional tem dificultadasua aualificacão Dara o trabalho al!rícola. através de atribuição de Qualida-

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des adquiridas ou àquelas inerentes à condição de vida de cada um. a capi-tal liberado, antes aplicado na compra de escravos, migra em parte paraoutros setores, colocando novas possibilidades de enriquecimento, em ho-mens ainda atrelados à propriedade como um bem concreto. Fortunas in-teiras flutuavam ao prazer da instabilidade gerada dentro desta contradi-ção, que colocava neste mesmo homem, o velho e o novo modo de acumu-lação de recursos. Assim, "como esmerar transformações profundas em paísonde eram mantidos os fundamentos tradicionais da situação que se pre-tendia ultrapassar?"14

De qualquer maneira, tal capital foi em parte aplicado na rede bancária enos negócios de exportação. Crescendo a importância do café brasileiro nocontexto da divisão internacional do trabalho, crescia também os meios deescoamento do produto para os portos, bem como uma priorização pelotrabalhador qualificado, mais condizente com o modo de produção capita-lista que se colocava.

Somente a partir de 1850, que em São Paulo iniciam-se diversas trans-formações econômicas e sociais, ligadas ao estabelecimento de um capita-lismo industrial aos moldes internacionais e à superação do trabalho escra-vo. No entanto, foi a década de 1870 que traduziu com maior clareza essascontradições. Neste momento, toda uma conjuntura econômica e social sedeu nos termos do trabalho livre, sendo a imigração, dentro das especifi-cidades paulistas, fator dominante desta economia até as primeiras décadasdo século xx. Toda uma lógica sustentará a justificativa do imigrante comointeresse prioritário do setor agro exportador.

a setor urbano é secundário na economia paulista no momento, embo-ra o processo de industrialização seja concomitante ao das fazendas de café.Mesmo não se colocando de imediato, o mundo urbano paulista aparecedefinitivamente num movimento crescente. Embora essencialmente volta-do para o rural, três fatores podem ser destacados para salientar o início daindustrialização: um deles poderia ser o excedente de capital, outro seria acrescente demanda da mão-de-obra livre e por fim a própria necessidade deaprimoramento no que se refere ao produto nuclear da economia, o café.

Assim, 1870, acena no cenário industrial, com ainda incipientes ativida-des voltadas para o café. É o caso do próprio beneficiamento do produto,oouoando mão-de-obra escrava e melhnr~ndn Sll~ ml~lid~dp nllp nnr ~11~~

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Diadema nasceu no Grande ASC: História Retrospectiva da Cidade Vermelha

vez, aumentava seu valor no mercado internacional. A indústria de sacariatambém tinha como fim o empacotamento dos grãos. Por fim a indústriamanufatureira, como um todo, se beneficiava com o novo mercado, fazen-do nascer as primeiras fábricas de bens de consumo imediato, mais voltadaa alimentos e têxteis.

O transporte e intercâmbio de mercadorias foi potencializado, ao mesmotempo em que facilitou o deslocamento de mão-de-obra, requisito essencialna formação do novo mercado de trabalho. Estimulou ainda a acumulação,ao viabilizar a incorporação crescente de novas terras. O pr6prio trajeto daestrada de ferro definiria, por todo o Estado de São Paulo, a rede urbana,tornando tais municípios focos irradiadores influentes de sua região.

São Paulo soube relacionar uma economia de exportação plena com ati-vidades industriais e urbanas, mesmo que isso não tenha sido previamentedeterminado. Dentro de uma política definida de investimento concomitante

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em ambos os setores, o fato, é, que aos poucos foi-se optando pela produ-ção e acabamentos de produtos ao invés de diretamente importá-lo. A par-tir de 1870, no Brasil, foram instaladas umas poucas fábricas de tecidos,marcando no decorrer das décadas seguintes o crescimento desse setor, pa-ralelamente ao próprio desenvolvimento de São Paulo e outras regiões.

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"O povoado Estação São Bernatdo [futura cidade de Santo André]já iniciou o século XX com dois estabelecimentos têxteis de certovulto: "Bergman, Kowarick & Cia", fundada em 1900, produtor decasimira de lã, e, "Silva, Seabra & Cià' de fundação ainda anterior

[1885], que produzia brim de algodão"15"Ouvimos dizer que dois importantes capitalistas, residentes nessemunicípio, pretendem montar nesta villa, uma grande fábrica detecidos, si obtiverem da nossa Câmara Municipal a dispensa poralguns annos dos impostos municipais, em relação ao novo esta-bellecimento.[...] Parece que a nossa municipalidade não deve per-der a opportunidade de mostrar-se protectora de nossa já retardadavida industrial. " (O PROGRESSO, São Bernatdo, 02/07/1911)

Os empresários referidos eram os Caputo, Setti & Slhossarck, que pe-dindo oficialmente à Câmara Municipal, requisitaram privilégios que opr6prio jornal julgou exagerados. 16 A concessão de 8 a 10 anos de isenção

de impostos já lhes parecia bastante suficiente, embora o jornal ainda refor-ce a idéia de que é essencial se chegar a um acordo entre a Câmara e taisindustriais, pois os lucros para toda a municipalidade seriam grandes. As-sim, eles se baseiam no exemplo tirado de Mogi das Cruzes. Tal cidade teriaconcedido além de um longo período de isenção de impostos, a pr6priadoação dos terrenos de instalação das fábricas. Com isso, as três empresasbeneficiadas em Mogi das Cruzes, eram: Fábrica de Chapéus dos Srs. M.Vilela & Cia, Companhia Franco-Brazileira de Conserva e Cia Industrial

Mogyana de Tecidos, tendo empregado, conjuntamente, 550 operários.Em 30 de julho de 1911 é dada a concessão à indústria fabril de Caputo,

Setti & Schossareck para suainstalação. Com isenção de impostos de 15anos, a fábrica de tecidos de seda, seria de grande valia aos agricultoreslocais, enquanto fornecedores de matéria prima (sericultura}.17 O terrenotambém foi cedido gratuitamente e a pr6pria empresa diz gozar de "protecçãoe favores dos poderes públicos". Isso lhe dava ainda maior credibilidade,servindo de estímulo aos que se interessavam por comprar-lhes as ações. A

Companhia já dizia ter, em agosto deste ano, como capital inicial o prontofuncionamento de 25 teares de seda, pretendendo com a venda das açõesdobrar esse número, o que lhes garantiria em poucos anos a certeza de bons

e volumosos lucros. Este processo de beneficiamento do capital privado

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Diadema nasceu no Gra!y_deABC~~istória Retrospectiva da Cidade Vermelha

pelo Estado se manteve ativo e ainda hoje faz parte do processo de proteci-

onismo ao setor industrial.

"O Sr. Gaspar José Pereira, capitalista residente em Santos, pretendeestabelecer em São Caetano uma importante olaria, a qual propor-cionará trabalho a mais de 50 pessoas. Muito auspicioso." (O PRO-GRESSO, São Bernardo, 15/10/1911)

Notícias como estas eram comuns, tanto na imprensa da época comonas discussões da elite dirigente. A expectativa era, como descrita por elespróprios, a de estabelecer-se nestas localidades uma indústria tão promisso-ra quanto as tecelagens que permeavam, por exemplo, todo o Brás.

A concessão de impostos às novas indústrias que ocupem pelo menos 50funcionários, se dá definitivamente sob a Lei n. 95 de 16 de Setembro de

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1911, ísentando taís índústrias dos ímpostos munícípaís pelo período deseís anos, bem como ímpostos predíaís para seus edífícíos, escritórios e de-pósítos. Isso víria íncenrivar efecivamente a ínstalação de novos estabelecí-mentos índustriaís por toda a regíão. No entanto, esse benefícío nos ímpos-tos só se estendía a esse determínado grupo empresarial, quando na mesmadata, uma leí também coloca que todo contribuínte lançado como fabri-cante de carvão vegetal, como sendo obrigatório o pagamento de seus ím-

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Diadema nasceu no Grande AS C: História Retrospectiva da Cidade Vermelha

postos, mediante a primeira íntimação dos fiscais distritais, não importan-

do a época do exercício.,As concessões às novas indústrias se multiplicam. O Livro de Leis cita

inúmeros casos logo na primeira década deste século. Mesmo que as indús-

triasfabris tenham tido maior destaque, pelo porte ou pelo próprio registro

histórico que as atrela a história do movimento operário, muitas outras

eram instaladas no período. Assim, há de se dizer que no material pesquisado

não houve registro de concessões de instalações ne~das. Ao contrário, sempre

eram louvadas, cada nova indústria ou estabelecimento que aqui se instala-

va, atraídas pela isenção de impostos, farta mão-de-obra, terrenos baratos e

mais privilégios que a classe dirigente podia oferecer.

"Brevemente, segundo nos consta, será installada em Santo André,mais uma importante Fábrica de tecidos, no grande prédio já come-çado em frente à estação da estrada de ferro[...] Como se vê, SantoAndré ficará em poucos annos sendo o centro fabril mais importan-te do Estado." (O PROGRESSO, São Bernardo, 22/10/1911)

Os privilégios, no entanto, res-tringiam-se a grandes empreendi-mentos, valorizando o maior nú-mero possível de empregos que secolocariam à disposição, e o inte-resse do tipo de indústria para aregião. Pequenos estabelecimentospermaneciam com suas dificulda-des em pagar os impostos devidos,como se vê pelo grande número de

inadimplentes que desapareciamdos livros de registros de recolhi-mento de impostos sobre' indús-tria e profissões', que abrangia vá-rios setores de prestação de servi-ços, pequenos estabelecimentos in-dustriais e comércio.

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Oiadema nasceu no Grande ABC: História Retrospectiva da Cidade Vermelha-

Movimento Operário no ABC

As cidades mais industrializadas do país tiveram muitas greves sendoorganizadas a partir do primeiro de maio de 1906, sendo que, o sucesso dealgumas delas estimularia outras tantas no final de 1907 e início de 1908. Ahistória operária do ABC pode ser marcada por sua primeira significativagreve, na Ipiranguinha, ainda em 1906. Empregando 500 operários, a em-presa entra em greve, no setor de tecelagem, com seus 150 homens. A grevedurou um mês, período em que seus proprietários puderam de algumamaneira tentar reverter a situação. Foi proibido o acesso dos grevistas aomercado da fábrica, bem como, foi solicitado reforço policial para São Pau-lo, na tentativa de reprimir o movimento.

A opção dos donos da Ipiranguinha foi de demitir todos os tecelões efechar a fábrica por tempo indeterminado. Nos últimos dias da paralisação osgrevistas estavam sendo presos e agredidos pela polícia. Os operários volta-ram ao trabalho somente com a ameaça dos patrões de contratar novos tece-lões em Tatuí para reabertura da fábrica. O jornal A Terra Livre, na figura de

Edgard Leuenroth, encorajou todo o movimento de greve da Ipiranguinha.A greve da Ipiranguinha foi discutida no Primeiro Congresso Operário

Brasileiro de 1906, no Rio de Janeiro, onde ficaria resolvida a adoção deum sistema federativo, garantindo a autonomia dos sindicatos ou socieda-des de resistência que reunissem diferentes categorias de operários, rejeitan-do a anterior idéia de sindicatos de ofício. Apesar de maioria anarquista, o

Congresso estaria, segundo Dulles, dividido religiosa e ideologicamente,tendo como única base sólida de acordo os interesses econômicos comuns atoda classe operária. 18

101

"O Congresso Operário aconselha o operariado a organizar-se emsociedades de resistência econômica, agrupamento essencial e, semabandonar a defesa, pela ação direta, dos rudimentares direitos po-líticos de que necessitam as organizações econômicas, a por fora dosindicato a luta política especial de um partido e as rivalidades queresultariam da adoção, pela associação de resistência, de uma dou-trina política ou religiosa, ou de um programa eleitoral"'9

Embora o Congresso de 1906 tenha estabelecido uma forte campanhade luta pela redução da jornada de trabalho, o ABC não seria tão participativo

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na greve pelas oito horas em 1907. Desestimulados pelo pouco sucesso dagreve realizada pelos operários da Ipiranguinha, a adesão só se deu na seçãode tecelagem da Kowarick. 20

John French afirma que a participação pouco efetiva do operariado doABC, se deu devido aos laços que se criaram entre empregado e emprega-dor. Com características bastante próprias, a região demoraria mais tempopara organizar uma classe operária, propriamente dita. Segundo ele, desdea virada do século, a população do ABC vivia de atividades extrativas (car-voaria, serraria, olaria...) e uma produção agrícola de subsistência.

"Para esses trabalhadores, a idéia de luta coletiva organizada dosoperários não tinha sentido. Mesmo quando mais e mais trabalha-dores passaram a um estado de dependência, grande número delesainda estavam ligados a seuS empregadores por um status comumde imigrante e por uma ideologia de trabalho duro e parcimônia de

que compartilhavam."21

102

A recessão econômica de 1908 inibiria significativamente o grande mo-

vimento de greves que se dava no país desde 1901. Os operários temiam o

desemprego e os empregadores, sem saber exatamente como reagir ao peri-

go da falência, utilizavam-se do aparato de repressão policial. Muitas con-

quistas feitas, até então, se perderiam naquele momento.

De qualquer maneira, 1908 seria o ano da organização da União Inter-

nacional dos Canteiros de Ribeirão Pires, de caráter anarquista. Esse grupo

seria o melhor organizado do ABC durante toda a Primeira República. Ele

marcaria o ressurgimento, em 1913, do movimento operário no ABC, em

letargia entre 1909 e 1912 devido à crise econômica, o que mostraria a

fragilidade da organização operária de então.

Os anos de 1913 e 1914 marcam um ressurgimento no movimento operá-rio que teria seu apogeu no período de 1917 - 1919. Ribeirão Pires colocaria o

ABC no contexto, embora não seja este um exemplo de regra geral da organiza-

ção operária na região. O caso dos canteiros de Ribeirão Pires é bastante singu-

lar, com uma militância permanente, relativo êxito econômico, estreitos laços

com o anarquismo e um operariado organizado. Foram também bastante re-

presentativos nos congressos operários nacionais, ocorridos em 1913-14 e 1920.

A ausência quase total do empregador no processo de produção (só lhes

fornecia o carvão para preparo das ferramentas), pode ter dado aos cantei-

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ros uma proximidade com as idéias anarquistas, de sociedades de federa-ções operárias livremente cooperativas. A concorrência com outras pedrei-ras na Grande São Paulo aumentava o poder de pressão dos canteiros atra-vés de greves ou diminuição de produção.

Aparentemente, o fato de ser um grupo artesanal qualificado e estávellhe proporcionou boas perspectivas dentro do movimento operário organi-zado. Possuíam maiores facilidades de enfrentamento a seus empregadorese à repressão do governo. Os operários fabris, mesmo sendo maioria entreos trabalhadores, estavam mais sujeitos a perseguição de seus líderes, dificul-dades de organização e expostos a pressão das autoridades e patrões.

Os Canteiros de Ribeirão Pires eram caros aos anarquistas, sempre citadoscomo exemplo de organização e merecedores de apoio. Respondiam ao maiscaloroso apelo desses militantes, que era pela propaganda, coesão e iniciativa,que se desencadearia na ação direta como método de uma revolução proletá-ria. Esta mesma coesão era valorizada, no momento em que o anarquismo,sempre delimitado pela ação de uma minoria, via nos operários de cantariaum grupo pequeno com práticas definidas e um federalismo extremado.

Dean levanta a questão de que, no Brasil, a industrialização não contavacom o apoio de uma ideologia operacional de desenvolvimento. "Conside-rava-se a difusão da cultura cafeeira intrinsecamente vantajosa, chave doprogresso material, e em seu favor se mobilizou o eficaz apoio do Estado. "22

Nícia Vilela Luz, em A luta pela industrialização em São Paulo, demonstraa fragilidade de uma ideologia 'industrialistà, especialmente, devido ao ca-ráter complementar do setor.

A industrialização tardia reflete de forma significativa no tratamento dosempresários e das autoridades às manifestações operárias. As primeiras in-dústrias de grande porte começam a se desenvolver a partir de 1889. Destaforma, no Brasil, no início do século XX, quando começam a estourar asgrandes greves operárias, sendo a de julho de 1917, em São Paulo, a primei-ra com grande repercussão e mobilização, os industriais se encontram fren-te a um problema praticamente desconhecido.

"Greve em perspectiva. Chegando ao conhecimento do Sr. Arman-do Pamplona, subdelegado de polícia da estação de São Caetano,que os operários da "Companhia Mechanica e Importadora" pre-:endem declarar-se em greve, s. s., como medida de prevenção, pe-

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diu hoje ao delegado geral de polícia, para ser reforçado o destaca-mento local, com mais dez praças." (Diário Popular, SP, 05/07/.1917)

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Como não tinham experiência alguma em negociações, uma das primei-

ras atitudes foi fechar a fábrica, como o fez Rodolpho Crespi, um dos mais

importantes industriais paulistas. Na greve de 1917, como sabemos, a polí-

cia interviu nas negociações, sem sucesso, sendo então, formada uma co-

missão negociadora liderada pela imprensa y'aulista. O governo não tomou

nenhuma atitude, a não seI: por meio dos delegados de polícia e do secretá-

rio da Justiça de São Paulo.

O fato do Estado não intervir diretamente nas negociações de greves

pode ser explicado a partir da verificação do poder que a produção indus-

trial tinha perante a economia do país. No caso das greves em São Paulo, a

indústria têxtil era a mais afetada, porém, esse setor não afetava a economia

de forma significativa, por não atingir o setor de exportações.

Patrão e operário, neste contexto criado, não teriam necessidade de se

tornarem 'inimigos'. O Brasil necessitava de paciência, pois passava por

uma fase de organização do trabalho, não comparável com a plena expan-

são da Europa. Essa concepção evolucionista de que o Brasil se tornaria no

futuro, uma grande potência econômica, tornou-se uma constante em muitos

textos desta época. São Paulo parecia estar livre e distante da movimentação

operária que ocorria no Rio de Janeiro, porém, antes que qualquer menção

a greve na cidade fosse feita pelo jornal, as posições de combate já estavam

bem definidas.

A crise decorrida das sucessivas greves ameaçaria a ordem pública e o

progresso industrial, caso não houvesse um pouco de boa vontade nas ne-

gociações entre operários e patrões. A greve de 1917 foi conduzida de ma-

neira mais centralizada do que a de 1907, resistindo mais a repressão conse-

guindo inclusive, um canal que os levou a negociação. Os Canteiros de

Ribeirão Pires eram ainda exemplos a serem seguidos, embora a organiza-

ção anarquista proposta seria a liga operária geográfica.

"OS CANTEIROS. Em São Paulo, Ribeirão Pires, Cotia e Itaquera.Em todas essas localidades continua a greve generalizada dos cantei-ros[...] Por esses fatos deve se avaliar as razões que obrigaram os ope-rários a abandonar o trabalho."(A PLEBE, Sp, n. 02, 16/06/1917)

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Organiza-se neste momento, pela primeira vez, um movimento coeso

entre os ferroviários de São Paulo, destacando-se Paranapiacaba. No perío-

do mais relevante da greve, aderiram operários de São Caetano, São Bernardo,

Ribeirão Pires e Paranapiacaba.

"Em São Caetano. Neste subúrbio da Ingleza foi constituída umasociedade de trabalhadores metallurgicos, que já tem realizado algu-mas reuniões de propaganda[...]"(A PLEBE, SP, n.Ol, 09/06/1917)"Em São Caetano o movimento operário vae acentuando-se pro-gressivamente, pela actividade dos camaradas que constituem oSyndicato dos Laminadores. Já passaram de 100 o número de asso-ciados, e todos os dias se inscrevem novos adherentes." (A PLEBE,SP, n.02, 16/06/1917)

"Os laminadores de São Caetano estiveram em greve, na qual sahiramvitoriosos. Devido a um desastre do trabalho, foram despedidos doisoperários, com os quaes se declararam em greve todos os seus com-panheiros. Com a readmissão dos operários foi retomado o traba-lho. (A PLEBE, SP, n. 12,01/09/1917)

105A greve de 1917, que se estendeu rapidamente pelo ABC e interiorpaulista, penetrou em diferentes setores no meio operário. Participaram dagreve os grupos de operários mais especializados e organizados, como oscanteiros de Ribeirão Pires, o setor fabril e metalúrgico de São Caetano eSão Bernardo e os ferroviários de Paranapiacaba. Os canteiros de RibeirãoPires que tanto serviram de exemplo ao movimento na imprensa operária,serviriam agora como um repensar da utilização da ação direta como únicomecanismo de luta, dando-se espaço, cada vez mais, à organização e forta-lecimento das ligas e sindicatos. O grande sucesso das greves de 1917 e1919 colocaram em alertatodas as lideranças industri-ais e do governo paulista.Desarticulado pela intensarepressão, estaria agora,mais do que nunca, sob osolhos dos empregadores eda polícia.

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Notas

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1 SANTOS, Wanderley dos, Antecedentes Históricos do ABC Paulista: 1550-

1892, São Bernardo do Campo, SECE, 1992.2 PAS SARELI , Sílvia Helena, Notas sobre a evolução urbana da Borda do

Campo. O impacto daferrovia no ambiente. FAU-USp, 1990.3 SILVA BRUNO, Ernani, História e Tradiçjes da cidade de São Paulo, Ed.

Hucitec, São Paulo, 1983,p. 611.4 PIRATININGA JUNIOR, Luiz Gonzaga, Dietdrio dos escravos de São

Bento, Ed. Hucitec, São Paulo, Prefeitura de São Caetano do Sul, São Cae-tano do Sul, 1991.5 OLIVEIRA, Cecília Helena de Salles, Imagens do ócio na construção da

disciplina do trabalho, Revista do Colégio de Esportes, UNICAMP, 1993,

p.260,6 WISSENBACH, Maria Cristina Cortez, Arranjos da sobrevivência escrava

na cidade de São Paulo do século XIX. Revista de História, São Paulo,USP(119), 1988, p. 103.7 MARTINS, José de Souza, In 1° Congresso da História do ABC, p. 88.

8 BRESCIANI, M. S. Martins, Suprimento de mão-de-obra escrava.p.349.

9 LAMOUNIER, Maria Lúcia. O trabalho sob contrato: a Lei de 1879, Re-

vista Brasileira de História, São Paulo, Vol.6, N .12, Mar/ Ago 1986.10 ANDRADE, Pedro de, Encontros da Classe trabalhadora de 1906 até a

Conc/at-1981 Ed. Quilombo, São Paulo, p. 46.

11 TSCHUDI, J.). von, Viagem às Provlncias do Rio de Janeiro e São Paulo,

Ed. Itatiaia, Belo Horizonte, EDUSP, São Paulo, 1980, p. 128.12 TSCHUDI, J.J von, Viagem às Provlncias do Rio de Janeiro e São Paulo,

Ed. Itatiaia, Belo Horizonte, EDUSp, São Paulo, 1980, p. 218.13 STANGORLINI, Mario" As colônias do bairro Assunção, São Bernardo

do Campo, SECE, 1988, p. 14.