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• CIÊNCIA ENTREVISTA o prazer de fazer ciência • Qual a razão do prêmio? - O prêmio foi dado por um conjun- to de trabalhos sobre a teoria do laser e por propostas de experimentos na área de fundamentos da mecânica quântica que venho desenvolvendo há 17 anos. cias FAPESP (a publicação que deu ori- gem a Pesquisa FAPESP), em setembro de 1999, comenta também nesta entre- vista as tendências de desenvolvimento e os desafios que a Física enfrenta hoje. Fala sobre as possibilidades fantásticas de suas aplicações práticas. Aborda os avanços e as dificuldades da Física no Brasil, posiciona-se criticamente sobre a política científica brasileira e produz, por fim, uma frase altamente elucidativa sobre o prazer que está envolvido com o fazer pesquisa científica: "A ciência, pa- ra quem está envolvido com ela, é antes de mais nada uma atividade lúdica" Professor da Pontíficia Universida- de Católica do Rio de Janeiro (PUC- Rio) de 1977 a 1994 e do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) desde então, douto- rado pela Universidade de Rochester, no Estado de Nova York, e com um pós- doutoramento no Instituto Federal de Tecnologia (ETH), em Zurique, Suiça, centrado no mesmo trabalho sobre a dinâmica de decaimento de um átomo que iniciara no doutoramento, Davido- vich é casado com a psicóloga Solange Cantanhede e tem dois filhos e duas en- teadas ("mas é como se fossem quatro fi- lhos, na verdade': diz ele). Os filhos são um engenheiro e um advogado, as fi- lhas, uma psicóloga e uma modelo (Isa- bel Ibsen). A seguir, os principais tre- chos da entrevista do premiado físico (uma versão completa encontra-se no site www.revistapesquisa.fapesp.br): De olhos abertos para o futuro da Física, pesquisador premiado diz que a necessária responsabilidade social do cientista não obscurece o caráter lúdico da prática científica • Em uma revisão recente de sua área, óptica quântica, o senhor apresenta al- gumas coisas interessantes sobre a rela- ção entre o mundo físico macroscópico e o mundo da física quântica, microscópi- co. Poderia nos falar sobre isso? - Essa é uma das linhas de pesquisa que tem ocupado nosso tempo nos últi- mos anos. A idéia é a seguinte: no mun- do microscópico existem os fenômenos quânticos, difíceis de alcançar com nossa intuição. Um deles é o da interfe- rência, percebido quando, por exem- plo, fazemos uma experiência ... aliás, é uma experiência clássica realizada no século 19, a experiência de (Thomas) Young, um físico inglês que mostrou que, quando se passa a luz por um an- teparo que tem duas fendas próximas, produz-se, num outro anteparo, uma figura com franjas claras e escuras. Em outras palavras, luz mais luz - porque a luz está passando por duas fendas - pode resultar em sombra. Essa figura é chamada figura de interferência, um fe- nômeno tipicamente ondulatório que podemos observar num tanque de água, quando se produzem ondas com dois pinos oscilantes, próximos um do outro. Essas ondas interferem entre si. MARILUCE MOURA O físi~o Luiz Davidovich, canoca, 55 anos, rece- beu via fax e "com sur- presa", em março pas- sado, a notícia de que ganhara o Prêmio de Física de 2001 da Academia de Ciências do Terceiro Mundo. Antes dele, só dois outros bra- sileiros o haviam conquistado: Cesar Lattes e [ayme Tiomno. Natural que Davidovich sinta-se "honrado em estar nessa companhia". Em termos mate- riais, a honraria consiste numa placa comemorativa e em US$ 10 mil que se- rão entregues em solenidade especial, durante a VIII Conferência Geral da Academia, em Nova Délhi, no mês de outubro. A razão da premiação é o conjunto dos trabalhos desenvolvidos por Davi- dovich em óptica quântica, que repre- senta, segundo seus pares, importante contribuição para o desenvolvimento da Física. Nesta entrevista concedida a Pes- quisa FAPESP, o brasileiro fala desses trabalhos, em particular de suas propo- sições teóricas sobre transição de fenô- menos do mundo quântico para o mundo clássico, que envolvem concei- tos tão sofisticados e complicados para um leigo quanto o da superposição de dois estados de uma partícula, o da in- terferência, e até o do teletransporte que, para ouvidos menos acostumados, beira as fantasias da ficção científica. Mas Davidovich, retomando idéias que apresentou num artigo para Notí- 56 • MAIO DE 2002 PESQUISA FAPESP ,

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• CIÊNCIA

ENTREVISTA

o prazer de fazer ciência

• Qual a razão do prêmio?- O prêmio foi dado por um conjun-to de trabalhos sobre a teoria do laser epor propostas de experimentos na áreade fundamentos da mecânica quânticaque venho desenvolvendo há 17 anos.

cias FAPESP (a publicação que deu ori-gem a Pesquisa FAPESP), em setembrode 1999, comenta também nesta entre-vista as tendências de desenvolvimentoe os desafios que a Física enfrenta hoje.Fala sobre as possibilidades fantásticasde suas aplicações práticas. Aborda osavanços e as dificuldades da Física noBrasil, posiciona-se criticamente sobrea política científica brasileira e produz,por fim, uma frase altamente elucidativasobre o prazer que está envolvido como fazer pesquisa científica: "A ciência, pa-ra quem está envolvido com ela, é antesde mais nada uma atividade lúdica"

Professor da Pontíficia Universida-de Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) de 1977 a 1994 e do Instituto deFísica da Universidade Federal do Riode Janeiro (UFRJ) desde então, douto-rado pela Universidade de Rochester,no Estado de Nova York, e com um pós-doutoramento no Instituto Federal deTecnologia (ETH), em Zurique, Suiça,centrado no mesmo trabalho sobre adinâmica de decaimento de um átomoque iniciara no doutoramento, Davido-vich é casado com a psicóloga SolangeCantanhede e tem dois filhos e duas en-teadas ("mas é como se fossem quatro fi-lhos, na verdade': diz ele). Os filhos sãoum engenheiro e um advogado, as fi-lhas, uma psicóloga e uma modelo (Isa-bel Ibsen). A seguir, os principais tre-chos da entrevista do premiado físico(uma versão completa encontra-se nosite www.revistapesquisa.fapesp.br):

De olhos abertos para o futuro da Física,pesquisador premiado diz que a necessáriaresponsabilidade social do cientista nãoobscurece o caráter lúdico da prática científica

• Em uma revisão recente de sua área,óptica quântica, o senhor apresenta al-gumas coisas interessantes sobre a rela-ção entre o mundo físico macroscópico eo mundo da física quântica, microscópi-co. Poderia nos falar sobre isso?- Essa é uma das linhas de pesquisaque tem ocupado nosso tempo nos últi-mos anos. A idéia é a seguinte: no mun-do microscópico existem os fenômenosquânticos, difíceis de alcançar comnossa intuição. Um deles é o da interfe-rência, percebido quando, por exem-plo, fazemos uma experiência ... aliás, éuma experiência clássica realizada noséculo 19, a experiência de (Thomas)Young, um físico inglês que mostrouque, quando se passa a luz por um an-teparo que tem duas fendas próximas,produz-se, num outro anteparo, umafigura com franjas claras e escuras. Emoutras palavras, luz mais luz - porque aluz está passando por duas fendas -pode resultar em sombra. Essa figura échamada figura de interferência, um fe-nômeno tipicamente ondulatório quepodemos observar num tanque deágua, quando se produzem ondas comdois pinos oscilantes, próximos um dooutro. Essas ondas interferem entre si.

MARILUCE MOURA

Ofísi~o Luiz Davidovich,canoca, 55 anos, rece-beu via fax e "com sur-presa", em março pas-sado, a notícia de que

ganhara o Prêmio de Física de 2001 daAcademia de Ciências do TerceiroMundo. Antes dele, só dois outros bra-sileiros o haviam conquistado: CesarLattes e [ayme Tiomno. Natural queDavidovich sinta-se "honrado em estarnessa companhia". Em termos mate-riais, a honraria consiste numa placacomemorativa e em US$ 10 mil que se-rão entregues em solenidade especial,durante a VIII Conferência Geral daAcademia, em Nova Délhi, no mês deoutubro.

A razão da premiação é o conjuntodos trabalhos desenvolvidos por Davi-dovich em óptica quântica, que repre-senta, segundo seus pares, importantecontribuição para o desenvolvimento daFísica. Nesta entrevista concedida a Pes-quisa FAPESP, o brasileiro fala dessestrabalhos, em particular de suas propo-sições teóricas sobre transição de fenô-menos do mundo quântico para omundo clássico, que envolvem concei-tos tão sofisticados e complicados paraum leigo quanto o da superposição dedois estados de uma partícula, o da in-terferência, e até o do teletransporteque, para ouvidos menos acostumados,beira as fantasias da ficção científica.

Mas Davidovich, retomando idéiasque apresentou num artigo para Notí-

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Há regiões em que a crista de uma dasondas soma-se à da onda produzidapelo outro, há um reforço na amplitu-de da onda. Em outras regiões, a crista I

de uma se superpõe ao vale da outra, enesse caso as ondas se cancelam. Numtanque de água dá para ver que ficauma raia plana nesses pontos onde asamplitudes se cancelam. Esse fenôme-no também se vê com ondas de luz.Acontece que no século 20 aprendeu-seque a luz é constituída de corpúsculos,e daí, conciliar esse comportamentoondulatório com a composição cor-puscular tornou-se um grande desafiopara os físicos.

• Numa visão clássica não havia comoentender a superposição dos dois dados.- Sim, porque a gente espera que ocorpúsculo passe por uma fenda oupor outra. E, nesse caso, ele jamais vaiproduzir uma figura de interferência,

característica de uma onda, que passapelas duas fendas ao mesmo tempo. Aconciliação desse caráter complemen-tar da luz foi feita pela mecânica quân-tica. Por meio da mecânica quânticasabemos que, quando fazemos uma ex-periência com a luz, podemos fazer, defato, experiências complementares. Porexemplo, podemos nos perguntar "porque fenda passou o corpúsculo?" Se co-locarmos aparelhos por trás das fendasdescobriremos que passou por uma oupor outra. Mas, ao fazermos isso, elimi-namos a figura de interferência. Não épossível descobrir por qual fenda pas-sou o corpúsculo e, ao mesmo tempo,conservar a figura de interferência. En-tão apareceu no século 20 o conceito decomplementar idade, que coloca emevidência aspectos complementaresda natureza. A luz pode se comportarcomo onda ou corpúsculo dependen-do da experiência que se faça. O arran-

jo experimental passou a ser uma parteimportante do fenômeno observado, eessa foi realmente uma revolução con-ceitual na física, na década de 1920.

• Estamos falando de uma época logoapós Einstein.- Isso. São as contribuições de MaxBom, Niels Bohr e outros, que permi-tiram entender a mecânica quântica eos novos conceitos que ela represen-tava muito bem. No entanto, quandoolhamos o mundo macroscópico ànossa volta, não vemos uma pessoanuma superposição de dois estados lo-calizados.

• Passando por uma porta e...- ... pela outra, ao mesmo tempo. Ouuma superposição de estados em queela está simultaneamente localizadanuma porta e noutra contígua. E pormuito tempo as pessoas fizeram a per-gunta de como podemos explicar isso,como explicamos a transição do mun-do quântico para o mundo clássico. Defato, Einstein, em 1954, escreveu umacarta para Bom, dizendo que achavaestranho o fato de que o mundo clássi-co aparentemente proibia a existênciada maioria dos estados permitidos pelafísica quântica, que são essas superpo-sições. A questão que ele colocou erafundamental. "Por que essa seleção deestados no mundo clássico?" Houvevárias explicações ao longo dos últi-mos anos, e uma que se afirmou é quenecessariamente os corpos rnacroscó-picos estão interagindo com o resto douniverso. Essa interação destrói a pos-sibilidade de realizar experimentos deinterferência que demonstrem a super-posição.

• Isso significa que a possibilidade de su-perposição existe mesmo no mundo ma-croscópico, apenas não é observável.- Exatamente. Essa questão foi colo-cada de forma extremamente dramáticapelo físico Erwin Schrõdinger que, numartigo em 1935, formulou o famoso pa-radoxo do gato. Ele dizia o seguinte: secolocarmos um gato numa jaula her-meticamente fechada junto com umátomo que pode decair, podemos su-por que esse átomo, ao decair, faz fun-cionar um mecanismo, um motorzi-nho, que quebra uma garrafa quecontém cianureto e que mata o gato.

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se refere a aprisionamento de átomoscom cargas, e atualmente não existe ne-nhum grupo no Brasil que faça isso.Outro desdobramento é a idéia de me-dir estados quânticos de moléculas,num trabalho em colaboração com oprofessor Nicim Zagury, de nosso gru-po. De novo, queremos conseguir umacaracterização completa de um estadoquântico vibracional de uma molécula.Nessa linha do limite clássico-quânticoé mais ou menos isso que foi feito.

• E vocês conseguiram confirmar isso ob-servando apenas a luz na freqüência demicroondas.- Sim. Mas a pergunta que surgiu de-pois é: "Como medir isso?': E a idéia foimandar um segundo átomo, sensível aesse estado do campo, para dentro dacavidade. Seria análogo a, no caso dogato de Schrõdinger, mandar um rati-nho que passa pela cavidade, é sensívelao estado do gato e assinala que há umasuperposição dos dois estados que dáorigem a interferência. E mais ainda: seeu atrasar um pouco o envio do rati-nho, dou tempo para a superposiçãoquântica se transformar numa alterna-tiva clássica, como o gato morto ouvivo. Ou seja, mandando um átomo emdiferentes tempos, posso seguir o pro-cesso pelo qual a superposição quânti-ca se transforma numa alternativa clás-sica. Sugerimos a medida com umsegundo átomo em 1993, num artigocom o pessoal da École Normale. Em1996, publicamos um artigo mais deta-lhado sobre a proposta da experiência,que foi feita por eles e publicada naPhysical Review Letters. Meu trabalhofoi a elaboração teórica.

• E depois?- Começamos a pensar como medircompletamente o estado do campo nacavidade. Para uma partícula clássica, oestado é dado por sua posição e veloci-dade e isso a caracteriza completamen-te. Para sistemas quânticos, a situaçãoé mais complicada, mas é possível. Enossa proposta foi implementada naÉcole Normale em julho de 2001 pelogrupo coordenado por Serge Haroche.Agora eles tiveram novos resultados eos estão enviando para publicação.

• Esse é o desdobramento mais recentedas propostas teóricas...- São dois desdobramentos. O outrofoi publicado no ano passado na Physi-cal Newsletters. É um trabalho do nossogrupo, com a participação de dois es-tudantes, André Carvalho e Pérola Mil-man, e um pós-doe, Ruynet Matos Fi-lho, que propõe uma maneira deproteger estados dessa interação com oresto do universo. A idéia é que elespossam guardar o caráter quântico pormais tempo, ou seja, impedir que esseestado se transforme numa alternativaclássica ou desapareça. Nossa proposta

• E as experiências de teletransportei- Publicamos um trabalho propondoum experimento que lembra até ficçãocientífica, para produzir teletransportedo estado de um átomo para outro áto-mo. Essa idéia de teletransporte tinhasido proposta inicialmente em junhode 1993 por um grupo de pesquisa-dores que incluía Charles Bennett, daIBM. Eles mostraram que era possível,em princípio, fazer uma espécie de faxquântico, transferindo informação deum sistema para outro.

ENTREVISTA

Por outro lado, se o átomo não decai, ogato fica vivo. Ora, o átomo está numdeterminado instante numa superposi-ção de dois estados, exatamente como apartícula que passa pelas fendas na ex-periência de Young. Então esse átomoseria descrito como a superposição deestados do átomo que decaiu e do áto-mo que não decaiu. Claro que, se espe-rarmos muito tempo, a componenteque representa o átomo decaído vai fi-car muito mais importante que a outra,mas num instante intermediário estãoas duas componentes... Esse átomoestá numa superposição. O estado dogato depende do estado do átomo. En-tão, se o átomo está numa superposi-ção, o gato também deveria estar nu-ma superposição. Morto e não morto.Schrõdinger diz: "Não vemos isso".Como explicar essa questão? Hoje sa-bemos que um gato não pode ser isola-do, nem um átomo. O sistema áto-mo-gato não pode ser isolado do restodo universo. A interação com o resto douniverso rapidamente destrói esse ca-ráter de superposição.

• Nesse universo, qual seu foco de pes-quisa?- Anos atrás, propusemos uma expe-riência em colaboração com físicos daÉcole Normale Supérieure, em Paris,para testar a idéia de que o mundoquântico se transforma num mundo'clássico rapidamente. O experimentofoi feito em Paris, em 1996, e confir-mou a teoria. Produz-se, numa cavida-de formada por dois espelhos paralelos- que não chega a ser uma caixa porqueé aberta, e que consegue armazenar fó-tons, por um tempo muito longo - umcampo eletromagnético, bastante pró-ximo de um campo clássico, como sefosse uma luz clássica, só que na regiãode microondas. Em seguida, passa-seum átomo pela cavidade, e através deuma manipulação do átomo, conse-gue-se colocar esse campo numa su-perposição de dois estados, que corres-ponde a dois campos clássicos quediferem na fase. Podemos dizer que sãodois campos que dá para diferenciarclassicamente.

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• Mas, em termos reais, transfere-se issoa partir de que impulso?- Você precisa ter um par de partícu-las, que é compartilhado pela pessoaque quer transferir a informação e pelaque vai recebê-Ia. Esse par tem umapropriedade especial, de fato já foi con-siderada como a propriedade mais es-tranha da física quântica: as duas partí-culas estão num estado que se chamaestado emaranhado, o que significa quesuas propriedades estão correlaciona-das de uma maneira muito mais fortedo que qualquer teoria clássica poderiaprever. É uma correlação quântica. Aose medir uma das partículas, isso deter-mina o resultado da medida sobre aoutra partícula. E esse sistema dessasduas partículas em estado emaranha-do, uma com uma pessoa e a outra comuma segunda pessoa, é o que podería-mos chamar de máquina de teletrans-porte. Se essa pessoa, chame-se Alice,quer enviar a informação para a outra,Bob, ela faz sua partícula, cujo estadoela quer informar a Bob, interagir coma outra partícula do par que está comela. Em seguida, ela faz medidas sobreessas duas partículas e informa o resul-tado das duas medidas que faz a Bob. Esó com o resultado dessas duas medi-das Bob pode reconstituir o estado ori-

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ginal da partícula de Alice. Oartigo que publicamos foi oprimeiro com uma propostade realização experimentaldesse teletransporte, que atéhoje não foi implementada. Éuma experiência difícil.

• Publicamos no NotíciasFAPESP em setembro de 1999,um artigo seu, com o títuloprovocativo "Está a Física es-gotada?'; em que o senhor co-mentava as perspectivas daFísica Voltando a ele: conti-nuamos sem uma teoria quepermita entender o espectro de massas ede cargas das partículas elementares?- Sim, e esse é um grande desafio parao século 21. Seria bom encontrar umateoria unificadora, que permitisse ex-trair os valores das massas e das cargas.Essa é uma questão que possivelmenteestá ligada a outra, a da unificação dagravitaçãó com a física quântica.

• Quais são suas expectativas atuaisquanto às aplicações práticas da Física?- Quando olhamos o desenvolvimen-to da ciência e da tecnologia nos anos20, observamos que a física quânticacomeçou com um grupo de jovens en-tusiasmados, na faixa dos vinte e pou-cos anos (Schrõdinger e Max Borneram mais velhinhos), cuja única preo-cupação era entender a natureza. Ja-mais imaginariam que as descobertasproduziriam uma revolução conceitualna maneira de entender a natureza.Muito menos que mudariam o coti-diano das pessoas, com a invenção dotransistor, que viabilizou a informática.A física quântica resultou no laser, quetrouxe também uma revolução na me-dicina e nas comunicações - e até naestética. A ciência é desenvolvida porpessoas que trabalham movidas pelaemoção de aprofundar seu conheci-mento da natureza, e hoje sabemos queessa emoção e esse interesse servem àsociedade.

• E qual é a situação da Física no Brasil?- Nos últimos 30 anos, ela passou porum desenvolvimento extraordinário.Na origem, era muito teórica, até pelafalta de oportunidade de compra deequipamentos. Depois, outras áreasavançaram, como a física da matéria

condensada, e apareceram grupos ex-perimentais extremamente competen-tes. Nas regiões onde a física foi apoia-da de forma contínua, houve umaramificação tecnológica das pesquisasrealizadas nas universidades. É o casodo pólo de alta tecnologia de São Car-los e de Campinas, possíveis graças aoapoio dado à ciência no estado de SãoPaulo. Agora, devíamos olhar isso tam-bém com espírito crítico, não ficar sóno oba-oba e perguntar o que pode serfeito para melhorar a física brasileira.

• Onde estão os buracos?- Um problema sério é a necessidadede federalização da física no Brasil. Oque foi feito no estado de São Paulo éum exemplo para o resto do país. En-quanto ele não for seguido, vai haveruma discrepância muito grande entreo que é feito em São Paulo e o que éfeito no resto do país. Isso não é sau-dável para a física brasileira e, em par-ticular, para a física paulista, porquereduz as oportunidades de trabalhopara os estudantes formados e as inte-rações possíveis.

• Isso implica a necessidade de um apoiopermanente no âmbito estadual.- Também. As fundações estaduaisdevem ser incentivadas. A Faperj teveum desenvolvimento importante nosúltimos anos, isso deve ser reconheci-do. Por outro lado, há estados que nãotêm fundações de amparo e não vãofazê-Ias de um dia para o outro. Denada adianta o governo federal ficar in-sistindo com os governadores, porquenão é do interesse político deles privile-giar essa área científica. Portanto, esseapoio à pesquisa é uma obrigação tam-

bém do governo federal, que tem me-canismos para fazer isso. Há programasque estão sendo propostos, como osfundos setoriais, que funcionam, mas épreciso contar com recursos para a pes-quisa espontânea. Sem isso não há odesenvolvimento criativo, porque asidéias novas freqüentem ente saem dopesquisador isolado.

• E as sombras da ciência?- Sempre existiu, entre grupos da po-pulação, um sentimento, digamos, an-ticiência, que ressalta os malefícios daciência à humanidade. Por exemplo: asexplosões de Hiroshima e Nagasaki, osperigos nucleares, a contaminação ra-dioativa e agora os efeitos da guerrabiológica. O sentimento anticiência en-volve uma grande confusão entre ativi-dade científica e controle democráticoda utilização da ciência. Evidentementea utilização da ciência não é assunto sódos cientistas, deve ser objeto de umaampla discussão na sociedade. Paraisso, ela tem que estar informada, e nes-se ponto a divulgação científica tem pa-pel importantíssimo.

• Sua relação com a ciência é apaixo-nada?- Certamente. A ciência, para quemestá envolvido com ela, é antes de maisnada uma atividade lúdica. E não serábom o cientista que não experimenteesse caráter na pesquisa. Devíamos lem-brar todo dia, ao ir para a universida-de, do seguinte: "Faço pesquisa numpaís que é um dos campeões mundiaisda desigualdade social. Tenho esse pri-vilégio e essa responsabilidade': Então,acho muito importante, antes de maisnada, que a gente trabalhe direito: •

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