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11 ENTREVISTA: NUNO CARVALHO Em defesa da biodiversidade Ompi adota o termo biogrilagem para atos de apropriação do conhecimento tradicional N uno Pires de Carvalho é che- fe da Seção de Recursos Gené- ticos, Biotecno- logia e Conhecimentos Tradicio- nais Associados, da Organização Mundial da Propriedade Inte- lectual (Ompi), em Genebra. Em entrevista à revista Pesquisa FAPESP, ele comentou o regis- tro da marca cupuaçu e o depó- sito da patente sobre processos de extração do óleo e gordura da semente pela Asahi Foods Co Ltd., do Japão, explicou as razões pelas quais a Ompi está substituindo o termo biopirata- ria por biogrilagem e detalhou as medidas que têm sido ado- tadas para a proteção da bio- diversidade e das comunidades locais. •O registro da marca e a paten- te do processo de produção do óleo e gor- dura do cupuaçu fora do Brasil pode ca- racterizar um ato de biopirataria? - Quando se fala em biopirataria ou, mais corretamente, biogrilagem, há que ter dois aspectos em conta: o primeiro é o da alegada apropriação indébita de ativos intangíveis, como símbolos, desenhos, conhecimentos téc- nicos tradicionais, que pertencem a comunidades indígenas e locais. O se- gundo é o da ofensa à identidade e aos valores culturais dessas comunidades. Carvalho: palavra utilizada para identificar um fruto não oferece distinção que justifique o seu registro como marca Sem entrar no mérito, parece que o re- gistro da palavra "cupuaçu" como mar- ca para designar produtos alimentí- cios vai contra o requisito essencial de registrabilidade de marcas, que é o da sua capacidade distintiva. Seria a mes- ma coisa que registrar as palavras "la- ranja", "mamão", "banana", etc., para identificar produtos alimentares. Pa- rece óbvio que uma palavra normal- mente utilizada para identificar um fruto não oferece suficiente distin- guibilidade que justifique o seu regis- tro como marca para distinguir pro- dutos derivados desse fruto dos que são fabricados pelos concorrentes. É verdade que não existe nenhum trata- do internacional estabelecendo crité- rios de registrabilidade. Apenas o Acor- do Trips, em seu Artigo 15.1, se refere à "capacidade distintiva" das marcas re- gistráveis. No entanto, há uma prática internacional nesse sentido. Será, por- tanto, talvez possível invocar a nulida- de desse(s) registro(s) no exterior, des- de que observados eventuais prazos de PESQUISA FAPESP 84 • FEVEREIRO DE 2003 • 17

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Page 1: ENTREVISTA: NUNO CARVALHO Em defesa da biodiversidade€¦ · presa japonesa é idêntico, em parte ou no todo, ao da Embrapa, ou se apenas modifica aspectos pouco relevantes, sem

11 ENTREVISTA: NUNO CARVALHO

Em defesa dabiodiversidadeOmpi adota o termo biogrilagempara atos de apropriaçãodo conhecimento tradicional

Nuno Pires deCarvalho é che-fe da Seção deRecursos Gené-ticos, Biotecno-

logia e Conhecimentos Tradicio-nais Associados, da OrganizaçãoMundial da Propriedade Inte-lectual (Ompi), em Genebra.Em entrevista à revista PesquisaFAPESP, ele comentou o regis-tro da marca cupuaçu e o depó-sito da patente sobre processosde extração do óleo e gordurada semente pela Asahi FoodsCo Ltd., do Japão, explicou asrazões pelas quais a Ompi estásubstituindo o termo biopirata-ria por biogrilagem e detalhouas medidas que têm sido ado-tadas para a proteção da bio-diversidade e das comunidadeslocais.

• O registro da marca e a paten-te do processo de produção do óleo egor-dura do cupuaçu fora do Brasil pode ca-racterizar um ato de biopirataria?- Quando se fala em biopiratariaou, mais corretamente, biogrilagem,há que ter dois aspectos em conta: oprimeiro é o da alegada apropriaçãoindébita de ativos intangíveis, comosímbolos, desenhos, conhecimentos téc-nicos tradicionais, que pertencem acomunidades indígenas e locais. O se-gundo é o da ofensa à identidade e aosvalores culturais dessas comunidades.

Carvalho: palavra utilizada para identificar um fruto nãooferece distinção que justifique o seu registro como marca

Sem entrar no mérito, parece que o re-gistro da palavra "cupuaçu" como mar-ca para designar produtos alimentí-cios vai contra o requisito essencial deregistrabilidade de marcas, que é o dasua capacidade distintiva. Seria a mes-ma coisa que registrar as palavras "la-ranja", "mamão", "banana", etc., paraidentificar produtos alimentares. Pa-rece óbvio que uma palavra normal-mente utilizada para identificar umfruto não oferece suficiente distin-guibilidade que justifique o seu regis-

tro como marca para distinguir pro-dutos derivados desse fruto dos quesão fabricados pelos concorrentes. Éverdade que não existe nenhum trata-do internacional estabelecendo crité-rios de registrabilidade. Apenas o Acor-do Trips, em seu Artigo 15.1, se refereà "capacidade distintiva" das marcas re-gistráveis. No entanto, há uma práticainternacional nesse sentido. Será, por-tanto, talvez possível invocar a nulida-de desse(s) registro(s) no exterior, des-de que observados eventuais prazos de

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prescrição. No caso da(s) patente(s), aquestão toda reside, em primeiro lu-gar, em saber se é verdade que o pro-cesso de produção de óleo e gorduraa partir das sementes do cupuaçu étradicionalmente utilizado por comu-nidades da Amazônia. Parece que não.Segundo informação contida na pa-tente européia em questão, tradicional-mente apenas se conhecia o uso das se-mentes para alimentação do gado ecomo fertilizante. Parece que o proces-so de extração da gordura das semen-tes do cupuaçu é bem mais difícil doque o do cacau, e que até recentemen-te não se sabia como fazê-lo. A Embra-pa chegou a solicitar uma patente aoInstituto Nacional de Propriedade In-dustrial (INPI) sobre um "Processo deobtenção de cupulate em pó e em ta-bletes meio amargo com leite branco apartir de sementes de cupuaçu", em1990. O pedido ficou parado no INPI,

já que, nessa época, alegislação brasileiranão permitia o pa-tenteamento de pro-cessos de fabricaçãode produtos alimen-tares. Foi redeposi-tado em 1996, já,portanto, à luz da

nova lei de proprie-dade industrial. O pedido chegou a serdeferido em 1999, mas foi arquivadoem setembro de 2000. Na verdade,haverá que saber se o processo da em-presa japonesa é idêntico, em parte ouno todo, ao da Embrapa, ou se apenasmodifica aspectos pouco relevantes,sem a inventividade necessária. O se-gundo passo, e se ficasse comprovadoque a invenção japonesa não é nova, eque as patentes poderiam ser contesta-das no exterior, seria o de se examinarse valeria a pena contestá-Ias. A mes-ma questão se levanta quanto à marca.Aqui há dois pontos a levar em consi-deração: o primeiro é o custo-benefí-cio. Há perdas econômicas para as co-munidades amazônicas em razão doregistro da marca "cupuaçu" e da ob-tenção da patente? Se a resposta forsim - e parece que é, sobretudo no quediz respeito à marca -, então as entida-des competentes deverão promover aeliminação desses obstáculos à expor-tação nos países onde os registros demarca e as patentes têm validade. Masse do ponto de vista econômico não

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houver interesse em contestar os regis-tros no exterior, ainda assim há que seconsiderar a segunda dimensão, a dabiogrilagem, ou seja, o da ofensa à iden-tidade e aos valores culturais das co-munidades amazônicas. A palavra"cupuaçu" e a utilização econômica daplanta constituem um elemento deidentificação cultural das comunida-des amazônicas? O registro da marca ea patente constituem uma ofensa mo-ral a essas comunidades ou apenas umato de agressão econômica? Cabe tal-vez às próprias comunidades amazô-nicas responderem a essas perguntas.

• Por que a Ompi está adotando o termobiogrilagem (biosquatting) em vez de bio-pirataria (biopiracy)?- O termo biopiracy foi cunhado háalguns anos para designar os atos nãoautorizados de utilização comercial ede obtenção de direitos de proprieda-de intelectual- sobretudo de patentes-a partir de recursos genéticos e de co-nhecimentos tradicionais associados.O problema é que essa palavra implicaduas noções equivocadas. Em primeirolugar, a pirataria é, e sempre foi, um atoilegal. Ora, nem todos os atos desig-nados por biopirataria são necessaria-mente ilegais. Na falta de uma legisla-ção que restrinja o acesso aos recursosgenéticos - e até há alguns anos, antesdo advento da Convenção da Divérsi-da de Biológica, os recursos genéticoseram considerados um patrimônio dahumanidade -, os atos de recolher umespécime de uma planta, levá-lo para oexterior, identificar um componenteativo, sintetizá-lo e patenteá-lo não sãoilegais. Ou, se existe essa legislação, es-ses atos podem ser ilegais no país ondefoi feita a coleta desautorizada, mas nãono país onde a pesquisa foi feita e a pa-tente foi solicitada. A palavra "biopira-taria", portanto, está equivocada. O se-gundo equívoco é de natureza maisparticular: a palavra "pirataria", desde oadvento do Acordo Trips, aplica-se paradesignar alguns tipos de infração dosdireitos de autor - e só dos direitos deautor. Ora, os atos de biopirataria po-dem também ocorrer no campo do di-reito de autor, mas geralmente tocamoutras áreas da propriedade intelectual,como as marcas e, sobretudo, as paten-tes. Por isso, num dos documentos queestão sendo preparados pela Secretariada Ompi para a próxima reunião do

Comitê Intergovernamental, sugere-seque a qualificação mais apropriadapara esses atos seria a de biosquatting,que poderia ser traduzida por biogrila-gemo Squatting significa a reivindicaçãoprivada de terras que pertencem a ou-trem ou que são de domínio público.Também designa simplesmente "in-vasão" ou "ocupação" de propriedadeimóvel e não são necessariamente ile-gais, pois pode haver lacunas na lei queacabam por "legitimar" a ocu pação pri-vada de terras públicas. A palavra "bio-grilagem", portanto, continua sendo defácil compreensão popular para carac-terizar atos de natureza técnica e juridi-camente complexa, mas é mais corretado que "biopirataria"

• Empresas e laboratórios estrangeiros játinham registrado o uso da ayahuasca edo curare, por exemplo. Por que paísescomo o Brasil ficam tão expostos a essetipo de predação?- O crescente aumento das acusaçõesde biogrilagem deve-se a um conjuntode circunstâncias. Em primeiro lugar,houve avanços tecnológicos no scree-ning em laboratórios de componentesativos em materiais vivos, o que permi-te identificar muito mais rapidamentemateriais potencialmente úteis para afarmacologia. Isso exige, claro, a neces-sidade de se obter mais amostras de re-cursos genéticos nos países em que elessão mais abundantes e diversos. Por issomesmo, em segundo lugar, por razõespuramente geográficas, as regiões tro-picais e equatoriais dispõem de enor-mes mananciais de recursos genéticos ebiológicos, os quais podem eventual-mente conter componentes para utili-zação comercial e industrial nas áreasfarmacêutica, química, alimentar, etc.Em terceiro lugar, com a Convenção daDiversidade Biológica, houve um des-pertar internacional para a questão dapropriedade e da soberania sobre os re-cursos genéticos. Até um certo ponto, aquestão coloca-se em termos simples:se um país pode decidir o que fazer como petróleo que jaz em seu subsolo, porque não decidir também o que fazer comos recursos que estão acima do solo? Oproblema dos recursos genéticos é quea sua importância não está nos recursosem si mesmos, mas na informação ge-nética que eles contêm. Por isso, não setrata de um poder de vender espécimesdos recursos, mas sim o de controlar o

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uso que se faz do conhecimento sobreos componentes ativos que se encon-tram nesses recursos. Por isso a Con-venção da Diversidade Biológica fala napartilha dos benefícios resultantes dautilização dos recursos e não propria-mente na sua apropriação. E, em quar-to lugar, lentamente as comunidadesindígenas e tradicionais vão despertan-do para a necessidade de proteger osseus ativos intangíveis. No entanto, essepotencial só poderá ser disponibiliza-do quando existir um regime jurídicoque formalize a sua titularidade.

• Os países desenvolvidos adotam me-didas de proteção do conhecimento tra-dicional?- Um dos primeiros países a tomarmedidas efetivas para proteger as co-munidades indígenas contra ofensasculturais causadas pela comercializa-ção de nomes e insígnias tribais foramos Estados Unidos, onde se criou umabase de dados de símbolos e nomes in-dígenas, que os examinadores de mar-cas deverão consultar antes de deferirum pedido de registro. O mesmo seestá fazendo na Nova Zelândia. Naárea dos recursos genéticos, o Brasil éum país naturalmente sensível às práti-cas de biogrilagem - afinal, o nome dopaís é o nome de um recurso genético,o pau-brasil, que foi objeto de um con-trato de acesso outorgado pelo rei D.Manuel I a Fernão de Noronha, nosprimeiros anos do séc. XVI, como con-ta Eduardo Bueno, no livro Náufragos,Traficantes eDegredados. O trabalho dosíndios, que já conheciam o uso da ár- .vore para extrair o corante, foi utiliza-do intensamente para cortar e trituraro tronco da árvore. Esse é um exemplohistórico da apropriação indébita deum conhecimento tradicional, e cuja fi-nalidade comercial foi a de concorrercom o corante que ia de Sumatra paraas tecelagens do norte da Europa, e queera de melhor qualidade do que o co-rante brasileiro, mas muito mais caro.

• A biogrilagem se agrava com a ausên-cia de um sistema de proteção legal?- Sem dúvida, o recurso a um meca-nismo jurídico efetivo de proteção, tan-to no plano nacional quanto no inter-nacional, evitaria muitas das práticasde biogrilagem ou, pelo menos, ajuda-ria a reprimi-Ias. Num documento pre-parado para a quarta sessão do Comitê

Intergovernamental, a Ompi identifi-cou quatro razões para a adoção de umregime jurídico de proteção dos conhe-cimentos tradicionais: a) o exercício dedireitos de propriedade intelectual so-bre conhecimentos tradicionais permi-tiria a sua proteção contra atos distor-sivos ou ofensivos, mesmo que os seustitulares não tivessem a intenção decornercializá-los diretamente; b) umsistema claro e efetivo de proteção dosconhecimentos tradicionais aumentaa segurança e a previsibilidade das re-lações jurídicas, as quais beneficiariamnão só as comunidades, mas tambéma sociedade em geral; elimina-se assima enorme incerteza e desconfiança querodeiam naturalmente as relações en-tre bioprospectores e os titulares dosconhecimentos; c) um sistema formalde proteção permitiria às comunida-des registrar e capitalizar os ~eus co-nhecimentos, de forma a transfor-má-los em ativos suscetíveis de seremutilizados como base de sustentação apequenas atividades empresariais, noscampos da agroindústria, do artesa-nato, etc.; e, finalmente, d) assim comonos últimos anos se assistiu a um avan-ço da base de proteção das patentesnos setores da indústria farmacêuticae biotecnológica, nos setores da infor-mática e do audiovisual, como meiode evitar barreiras não- tarifárias aocomércio internacional, também sedeveria facilitar a exportação de arte-sanato e de recursos genéticos incor-porando conhecimentos tradicionaismediante a sua proteção - a falta des-sa proteção no plano internacional re-presentaria também uma barreiranão- tarifária à sua exportação.

• E quais são as formas de proteçãopossíveis?- No que diz respeito ao sistema deproteção dos conhecimentos tradicio-

nais, há duas perspectivas posslvels.Por um lado, existe a chamada prote-ção "defensiva", ou seja, medidas quesão tomadas com vistas única e exclu-sivamente a evitar que terceiros seapropriem dos conhecimentos tradicio-nais. Assim, as listas de nomes e desímbolos indígenas com vistas a evitaro registro de marcas, como fizeram osEstados Unidos, são um exemplo. Ou-tro são as bases de dados de conheci-mentos tradicionais, como a dos co-nhecimentos medicinais ayurvédicos,da Índia, estabelecidas de modo a queos examinadores de patentes possamlevar em conta os conhecimentos tradi-cionais já divulgados publicamente eque, portanto, fazem parte do estadoda técnica e constituem anterioridade apedidos de patente. Um terceiro exem-plo, o qual está sendo objeto de um es-tudo técnico por parte da Ompi e queestá na origem de uma polêmica inter-nacional, é a possibilidade de se exigirque todos os pedidos de patente rela-tivos a inventos originados ou deriva-dos a partir de recursos genéticos e/oude conhecimentos tradicionais asso-ciados identifiquem a origem dos re-cursos utilizados, bem como dêem pro-va de que houve consentimento prévioinformado por parte dos detentoresdesses conhecimentos. A Medida Pro-visória brasileira que trata do acessoaos recursos genéticos tem um disposi-tivo nesse sentido. Há dúvidas sobre acompatibilidade desse requisito com al-guns tratados internacionais. De outraparte, existe a proteção "positiva", ouseja, a aquisição de direitos proprietá-rios sobre os conhecimentos tradicio-nais. Há a possibilidade de se utilizarmecanismos pré-existentes de proprie-dade intelectual: o direito de autor, paraalgumas expressões dos conhecimen-tos tradicionais, como as artes folcló-ricas; as patentes, para algumas inven-

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ções tradicionais; as marcas, para no-mes e símbolos; os desenhos industriais,para símbolos, figuras, etc. Sem dúvi-da, há problemas de ordem jurídica nautilização de alguns desses mecanismospara proteger conhecimentos tradicio-nais. Há também um outro problema:a propriedade intelectual é geralmenteum conceito que as comunidades indí-genas e locais não apreendem. Nessecampo, o INPI, sob a direção de JoséGraça Aranha, teve um papel pioneirono mundo: pela primeira vez, não sóreuniu pajés em São Luís,no Maranhão,para discutir questões de propriedadeintelectual, em dezembro de 2001, mastambém, em maio de 2002, organizouum curso de propriedade industrial pararepresentantes das comunidades indí-genas e seus advogados. Mas ainda há,dentro da proteção "positiva': a possibi-lidade de desenvolver um sistema depropriedade intelectual especialmenteadaptado às característicasholísticas e informais dosconhecimentos tradicionais:um sistema sui generis. OBrasil tem um esboço deum regime desse tipo, emsua Medida Provisória. Maspaíses como o Panamá, Pe-ru e Portugal estão bem maisavançados nesse sentido. Háainda a necessidade de se adotar umtratamento multilateral dos conheci-mentos tradicionais. É que, com a glo-balização dos mercados, a proteçãodentro das fronteiras de um país não ésuficiente se o produto ou o conheci-mento é comercializado em outros paí-ses. A propriedade intelectual, pré-existente ou sui generis, é territorial, eportanto não ultrapassa as fronteiras decada país, a não ser que existam acordosinternacionais nesse sentido.

• Qual o papel da Ompi e quais açõestêm sido desenvolvidas para combater abiogrilagem?- O trabalho da Ompi em matéria deconhecimentos tradicionais começouem 1998,depois da eleição do atual di-retor-geral, o dr. Karnil Idris, que trouxepara a organização uma nova visão: autilização da propriedade intelectualpara promover o desenvolvimento eco-nômico e social dos países e das comu-nidades carentes. Uma das iniciativasfoi a de que se estudasse quais os seto-res da sociedade que não haviam ain-

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da sido beneficiados com a proprieda-de intelectual e o que se poderia fazerpara que a situação mudasse. Em razãodos debates então mantidos em tornoda implementação do Artigo 8(j) daConvenção da Biodiversidade,escolheu-se trabalhar com as comunidades indí-genas. A Ompi passou por um perío-do de aprendizado, entre 1998 e 2000,no qual organizou duas mesas-redon-

das, visitou nove regiões domundo e promoveu quatroconsultas regionais, junta-mente com a Unesco, so-bre a proteção das expres-sões do folclore. Quando aOmpi se preparava parapassar a uma segunda fase,na qual verificaria como é

que as comunidades indíge-nas haviam utilizado os mecanismos dapropriedade intelectual para protegeros seus conhecimentos, houve um -de-bate em torno da proposta de Tratadosobre o Direito de Patentes, adotadoem Genebra, em junho de 2000. Odebate versou sobre a exigência de in-formação da origem dos recursos ge-néticos nos pedidos de patente, quea Colômbia, com o apoio de váriospaíses, incluindo o Brasil, sugeriu queintegrasse aquele tratado. Perante oimpasse que resultou desse debate,acordou-se estabelecer na Ompi umfórum de discussões sobre as questõesenvolvendo os recursos genéticos, osconhecimentos tradicionais e o folclore.Em setembro de 2000 as assembléias daOmpi criaram, então, o Comitê Inter-governamental sobre Propriedade In-telectual e os Recursos Genéticos, osConhecimentos Tradicionais e o Fol-clore, composto de todos os estadosmembros da Ompi, mais a Comuni-dade Européia, várias organizaçõesinternacionais e várias organizaçõesnão-governamentais. O comitê não

tem competência para interferir naspráticas dos seus estados membros.Seu papel é o de permitir as discus-sões entre os seus membros sobre ostrês temas de que ele cuida.

• Quais são as linhas de trabalho no quese refere aos recursos genéticos?- Em matéria de recursos genéticos,o comitê trabalha na coleção de cláu-sulas contratuais relativas ao acesso derecursos genéticos e poderá, eventual-mente, vir a discutir recomendaçõessobre práticas aceitáveis nesse campo.Quanto aos conhecimentos tradicio-nais, o comitê trabalha no lado defen-sivo, ou seja, no que respeita às basesde dados. Discutem-se os critérios téc-nicos para estabelecer essas bases, esobretudo prepara-se um toolkit, ouuma caixa de ferramentas, contendoconselhos e recomendações em maté-ria de propriedade intelectual para aspartes envolvidas no estabelecimentodessas bases de dados. Quanto ao as-pecto positivo, o comitê faz um levan-tamento das experiências dos paísesquanto à utilização dos mecanismostradicionais de propriedade intelec-tual na proteção dos conhecimentostradicionais, bem como quanto ao de-senvolvimento de mecanismos sui ge-neris. Além disso, a Ompi preparouum estudo sobre os possíveis elemen-tos de um sistema sui generis de prote-ção dos conhecimentos tradicionais,bem como um outro sobre uma defi-nição operacional de conhecimentostradicionais. Ao mesmo tempo, inten-sifica-se a assistência técnica aos paí-ses que queiram desenvolver iniciati-vas e legislação para proteção dosconhecimentos tradicionais e do fol-clore. Todos os documentos do co-mitê são disponibilizados no site(http://www. wipo.int/globalissues/igc/ documents/index.html). •

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