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• HUMANIDADES MARILUCE MOURA I , ENTREVISTA MUNIZ SODRE A forma de vida da mídia Uma teoria original propõe que a vinculação humana é o objeto da comunicação, e cria o conceito de bios midiático como chave para se compreender a sociedade atual A omunicação nunca desfru- tou de status muito elevado entre as disciplinas das ci- ências humanas. Esboça- da como questão para ser pensada no final do século 19, no rastro das preocupações do Estado li- beral e dos pensadores sociais com os efeitosdas grandes concentrações huma- nas nas cidades, a comunicação sempre foi tida, se tanto, como um campo de co- nhecimento menor, sem objeto teórico definido. Semelharia alguém que vive de expedientes,a tomar de empréstimo mé- todos da sociologia, da teoria da infor- mação, da antropologia, na dependência, mais adiante, do abrigo da semiologia francesa, da semiótica norte-americana, da acolhida dos cultural studies ingleses. Mesmo quando pensadores do porte de Theodor Adorno e Max Horkhei- mer criaram, nos anos 40, o conceito de indústria cultural- crucial para o cam- po da comunicação - e o elevaram à ca- tegoria de questão fundamental para entender o século 20, a comunicação continuou em sua condição um tanto marginal, a prestar reverência às gran- des disciplinasdo pensamento social.No Brasil, a situação nunca foi muito dife- rente, mesmo com a criação das escolas de comunicação no final dos anos 60. Pois bem: uma contribuição impor- tante aos esforços de especialistas de vá- rias partes do mundo para situar o cam- po da comunicação está magnificamente 86 • AGOSTO DE 2002 PESQUISA FAPESP 78 exposta no novo livro de um brasileiro: Antropológica do Espelho, editado pela Vozes,lançado no final de abril último. Nesse trabalho, com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científi- co e Tecnológico (CNPq), Muniz Sodré, professor titular e ex-diretor da Escola de Comunicação da Universidade Fede- ral do Rio de Janeiro (UFRJ), atualmen- te coordenador do programa de pós- graduação em Comunicação e Cultura e reconhecido como um dos principais pensadores latino-americanos da co- municação, apresenta uma nova pro- posta sobre o objeto deste campo do conhecimento: para ele, esse objeto é a vinculação humana, comunitária, que hoje se dá no âmbito de uma relação geral - aquela estabelecida pela mídia - que se finge de vínculo, esse laço sem- pre atravessado pelo emocional. Mais: Muniz propõe que vivemos hoje uma nova forma de vida - o bios midiático ou virtual, radicado nos negócios -, fei- ta de informação, espelhamento e no- vos costumes. Construído como um ensaio rigo- roso, denso, Antropológica do Espelho, o 25° livro desse pensador bem pouco ortodoxo, dedicado há 30 anos às refle- xões sobre a comunicação, examina o ethos desse mundo midiatizado; anali- sa a transformação das referências sim- bólicas com que se forma, educacional e politicamente, a consciência contem- porânea; especula sobre os atuais pro- cessos de construção da realidade, da memória e da identificação dos sujei- tos; apresenta a transformação das nor- mas e valores de sociabilidade, ou seja, da Ética - o grande lastro teórico do ensaio - e, por fim, discute em termos epistemológicos o campo da comuni- cação. Tudo isso deixando clara a arti- culação entre mídia e mercado dentro da chamada globalização, e mantendo ao fundo a idéia de que comunicação e mídia constituem, teoricamente, pre- textos para novas descobertas sobre o social. A seguir, alguns trechos da en- trevista que concedeu sobre seu novo trabalho a Pesquisa FAPESP: • Por que qualificar alguns respeitados teóricos, importantes para a comunica- ção, como "pensadores da morte"? - Referia-me a uma geração de pensa- dores franceses que se articularam em torno daquilo que eles chamavam "Ia théorie", e que teorizavam o mundo a meio caminho entre a filosofia, a socio- logia e a antropologia. Entre eles, Levy Strauss, Michel Foucault, Iacques La- can, [ulia Kristeva, o grupo Tel Quel, Roland Barthes, depois Iean Baudril- lard. A teoria de certo modo desapare- ceu. Esteve muito em moda na França de meados dos anos 60 até 80 e poucos, e nos anos 90 já foi começando a esva- necer, perdeu muito da aura que tinha. Sua teoria era um pensamento daquilo que estava desaparecendo nas formas

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Page 1: ENTREVISTA MUNIZ SODRE Aforma de vida da mídia€¦ · ENTREVISTA MUNIZ SODRE Aforma de vida da mídia Uma teoria original propõe que a vinculação humana éo objeto da comunicação,

• HUMANIDADES

MARILUCE MOURA

I ,

ENTREVISTA MUNIZ SODRE

A forma de vida da mídiaUma teoria original propõe que a vinculaçãohumana é o objeto da comunicação,e cria o conceito de bios midiático comochave para se compreender a sociedade atual

Aomunicação nunca desfru-tou de status muito elevadoentre as disciplinas das ci-ências humanas. Esboça-da como questão para

ser pensada no final do século 19, norastro das preocupações do Estado li-beral e dos pensadores sociais com osefeitosdas grandes concentrações huma-nas nas cidades, a comunicação semprefoi tida, se tanto, como um campo de co-nhecimento menor, sem objeto teóricodefinido. Semelharia alguém que vive deexpedientes,a tomar de empréstimo mé-todos da sociologia, da teoria da infor-mação, da antropologia, na dependência,mais adiante, do abrigo da semiologiafrancesa,da semiótica norte-americana,da acolhida dos cultural studies ingleses.Mesmo quando pensadores do portede Theodor Adorno e Max Horkhei-mer criaram, nos anos 40, o conceito deindústria cultural- crucial para o cam-po da comunicação - e o elevaram à ca-tegoria de questão fundamental paraentender o século 20, a comunicaçãocontinuou em sua condição um tantomarginal, a prestar reverência às gran-des disciplinasdo pensamento social.NoBrasil, a situação nunca foi muito dife-rente, mesmo com a criação das escolasde comunicação no final dos anos 60.

Poisbem: uma contribuição impor-tante aos esforços de especialistasde vá-rias partes do mundo para situar o cam-po da comunicação estámagnificamente

86 • AGOSTO DE 2002 • PESQUISA FAPESP 78

exposta no novo livro de um brasileiro:Antropológica do Espelho, editado pelaVozes,lançado no final de abril último.Nesse trabalho, com apoio do ConselhoNacional de Desenvolvimento Científi-co e Tecnológico (CNPq), Muniz Sodré,professor titular e ex-diretor da Escolade Comunicação da Universidade Fede-ral do Rio de Janeiro (UFRJ), atualmen-te coordenador do programa de pós-graduação em Comunicação e Culturae reconhecido como um dos principaispensadores latino-americanos da co-municação, apresenta uma nova pro-posta sobre o objeto deste campo doconhecimento: para ele, esse objeto é avinculação humana, comunitária, quehoje se dá no âmbito de uma relaçãogeral - aquela estabelecida pela mídia -que se finge de vínculo, esse laço sem-pre atravessado pelo emocional. Mais:Muniz propõe que vivemos hoje umanova forma de vida - o bios midiáticoou virtual, radicado nos negócios -, fei-ta de informação, espelhamento e no-vos costumes.

Construído como um ensaio rigo-roso, denso, Antropológica do Espelho, o25° livro desse pensador bem poucoortodoxo, dedicado há 30 anos às refle-xões sobre a comunicação, examina oethos desse mundo midiatizado; anali-sa a transformação das referências sim-bólicas com que se forma, educacionale politicamente, a consciência contem-porânea; especula sobre os atuais pro-

cessos de construção da realidade, damemória e da identificação dos sujei-tos; apresenta a transformação das nor-mas e valores de sociabilidade, ou seja,da Ética - o grande lastro teórico doensaio - e, por fim, discute em termosepistemológicos o campo da comuni-cação. Tudo isso deixando clara a arti-culação entre mídia e mercado dentroda chamada globalização, e mantendoao fundo a idéia de que comunicação emídia constituem, teoricamente, pre-textos para novas descobertas sobre osocial. A seguir, alguns trechos da en-trevista que concedeu sobre seu novotrabalho a Pesquisa FAPESP:

• Por que qualificar alguns respeitadosteóricos, importantes para a comunica-ção, como "pensadores da morte"?- Referia-me a uma geração de pensa-dores franceses que se articularam emtorno daquilo que eles chamavam "Iathéorie", e que teorizavam o mundo ameio caminho entre a filosofia, a socio-logia e a antropologia. Entre eles, LevyStrauss, Michel Foucault, Iacques La-can, [ulia Kristeva, o grupo Tel Quel,Roland Barthes, depois Iean Baudril-lard. A teoria de certo modo desapare-ceu. Esteve muito em moda na Françade meados dos anos 60 até 80 e poucos,e nos anos 90 já foi começando a esva-necer, perdeu muito da aura que tinha.Sua teoria era um pensamento daquiloque estava desaparecendo nas formas

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I,

sociais contemporâneas. Alguns derama isso o nome de pós-modernismo, quevejo mais como uma etiqueta para secolar em certas mutações. O que o ca-racterizou foi o ocaso de certas formassociais, que Gianni Vatimo preferiu cha-mar, na Itália, de pensiero deboli, o pen-samento não violento, fora da metafísica,não mais aquele deus transcendente,mas parcial, relativo, sujeito a muitasinterpretações, e respeitando a fabula-ção sobre o mundo, na trilha de Nietzs-che. Mas eles foram pensadores da mor-te também porque representavam amorte de sua própria continuidade.

• Em que sentido?- No sentido de que acadêmica e me-todologicamente não se podia levá-losmuito ao pé da letra. Os pensadorestradicionais tinham por trás deles umacausa e a possibilidade de uma continui-dade metodológica, veja Marx, e até Sar-tre. Estes de que estamos falando nãotinham uma coisa nem outra, eram maisrelacionados com o texto do que com avida concreta se agitando, e eram pessoascom um brilho que ilumina muito e seapaga em seguida. Quem tentou depoisescrever como Barthes se deu mal.

• Qual a sua relação com eles?- Eu estudei com alguns, na França,como Barthes, e me relaciono até pes-soalmente com um deles, que é Bau-drillard. Mas a questão que importa

aqui é que, como eles, de fato não acre-dito no universalismo e na exatidãocientífica das ciências sociais. Assim, ogrande interesse epistemológico da co-municação é trazer para o panoramado pensamento social uma relativiza-ção do conhecimento disciplinar. Nãocreio que a comunicação seja propria-mente uma disciplina. Repetindo umjogo de palavras já feito, ela é mais umaindisciplina em relação a limites rígi-dos, estreitos, disciplinares.

• Sem esses limites, pode-se tornar claroo objeto de um campo do conhecimento?- Sim, e com isso, primeiro, você vêque o objeto da comunicação não é amídia, é a vinculação humana. Ou seja,como é que nós socialmente, e porquesocialmente, estamos juntos. Qual laçofaz com que, estando numa comunida-de, possamos nos odiar e nos matar, maspermaneçamos juntos. Há, para alémdo trabalho, para além da economia,uma coisa chamada vínculo.

• Mas que especificidade tem esse víncu-lo objeto da comunicação?- É o vínculo diante de um outro tipogeral de vínculo que se constituiu: o mi-diático. Isso significa: é o vínculo dianteda relação, ou seja a mídia é relacional,a comunicação é vinculativa. E qual adiferença entre o vínculo e a relação? Éque o vínculo atravessa o corpo, o afeto,passa por sentimento, por ódio, enquan-

Sodré: a ciência da comunicaçãotorna imperativo romper coma metafísica dos fatos observáveis

to a relação entre pessoas pode ser com-pletamente impessoal, ou seja, são indi-víduos atomizados, separados, que serelacionam juridicamente e polidamen-te, por direito e por etiqueta, O vínculopode até ser atravessado pelo direito, masele é emocional, é libidinal, é afetivo.

• O vínculo numa atmosfera midiáticatem essas mesmas propriedades?- Pode ter, o problema é em que me-dida isso ocorre, na coexistência com aforça de um vínculo relacional que épor inteiro societal - que distingo dosocial. Entendo o primeiro como a for-ça das instituições da sociedade, do Es-tado, que nos mantêm juntos. Ora, amídia mantém com seu público umvínculo societal fingindo que é social,porque trabalha com as emoções. A mí-dia cria relação, e para fazer isso tem queinstaurar um outro tipo de sociabilida-de, uma outra regra vinculativa.

• De que maneira?- Veja o truque da televisão, por exem-plo. Aquela familiaridade com que elachega dentro de sua casa, aquele olharsimpático do apresentador, que não é odo orador em praça pública, é um pre-texto vinculativo. Na relação, as identi-dades parecem estar prontas, acabadas

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e se ligam por fios, jurídicos, sócio-psi-cológicos, etc., enquanto o vínculo, mes-mo atravessado por isso, é emocional.A comunicação é a ciência que trabalhasobre isso - e eu digo é propriamente aciência, não no sentido positivista, masno sentido que tínhamos no século 18, eque está em Kant, está nos filósofos sen-sualistas, de língua bem feita, e capaz deser assim reconhecida pela comunidade.

• Mas não é um exagero classificar a co-municação de ciência?- Não, a ciência não tem que ser ne-cessariamente um conhecimento exatoe universal. Há esse sentido da ciênciacomo língua bem estruturada, e vistaassim, a comunicação nos dá o pretextopara falar de um tipo emergente de so-ciabilidade, que não está ancorada numterritório, que são processos, são rela-ções encenadas onde é virtual sua reali-dade, e que hoje estão juntas com ou-tras formas históricas de sociabilidade.

• A pesquisa em comunicação permiti-ria, assim, flagrar de forma aguda esseprocesso de convivência das novas formascom formas tradicionais de sociabilidade.- Exatamente. Isso já foi anunciadopor várias pessoas de maneiras diferen-tes. Eu procurei anunciar de modo maisnítido porque me apoiei em Aristóteles,quando ele, de forma simples, na Éticade Nicómaco, distingue, a exemplo doque já fizera Platão no Filebo, três gêne-ros de existência na Polis, três modosde sociabilidade: o modo do conheci-mento, que é o bios theoretikos, o dosprazeres, que é o bios apolaustikos, e asociabilidade política, que é o bios poli-tikos. Ora, pensando sobre cada esferadessa, onde o indivíduo se aloja paraser social, me dei conta de que aquiloque há em relação à mídia - perceben-do que ela não é apenas um aparelho detransmissão de informação de dados,mas influi no vínculo e se relaciona como vínculo -, é que ela é um outros bios,que se apresenta a partir daquilo queAristóteles excluiu de seu sistema, que éo bios dos negócios - eu o chamo entãode bios midiático ou bios virtual. Semterritório, feito só de informação.

• E esseé o fulcro da sua proposta teórica.- É, porque partindo daí, do bios rni-diático como um outro tipo de formasocial, toda a metodologia e perspecti-va sobre a comunicação muda, porque

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"A idéia de umquarto bios já seacha inscritano imagináriocontemporâneo.Veja-se o filmeOShow de Truma",

já não posso mais me valer, stricto sensu,da sociologia, da antropologia, da filo-sofia, que são disciplinas e saberes quesurgiram a partir das articulações dosbios históricos, em torno de Estado, reli-gião e economia. Portanto, aqui tenhouma desarticulação dos objetos tradicio-nais, o que me obriga a pensar um novoobjeto, colocado em outro plano, no qualnão posso mais falar de substâncias àsquais vou predicar qualidades. Isso é oque ocorre com a lógica aristotélica pa-ra falar do social, a predicação de qua-lidades, enquanto que aqui vou falar deuma lógica que alguns autores chamamde processual, e eu vou chamar de lógi-ca propriamente comunicacional, umalógica das conexões, das interfaces.

• E qual a sua proposta metodológica pa-ra abordar esse campo?- Uma coisa é a metodologia e outra,os métodos. Edgar Morin fez essa dis-tinção. Metodologia são os métodos játestados, que muitas instituições acadê-micas aplicam mecanicamente. Eu di-ria que a comunicação tem método enão tem muita metodologia. Método éo percurso em direção a um objetivo, éum caminho. Isso significa que todo equalquer trabalho científico comportauma criação, uma descoberta, seja qualfor. A comunicação tem aquela inven-ção que C. S. Peirce chamava de abdução,o instante da descoberta, de um insightnas ciências sociais. Quando se toma osgrandes explicadores do Brasil, comoGilberto Freyre e Sérgio Buarque de Ho-landa, vê-se que há uma enorme pes-quisa pessoal por trás dos textos, masem nenhum instante neles se encontrao fetichismo da pesquisa. E, no entanto,com suas idéias, abduções, insights, elestêm sido verdadeiras sementes. Nessamesma trilha, para mim a comunicaçãoé, acadêmica e teoricamente, um pretex-to para descobertas sobre o social.

• Ao indagar sobre método, eu pensavatambém em sua defesa da necessidade deuma certa vivência prática para pensar aquestão da comunicação.- Acho que a comunicação, diferente-mente de outras disciplinas sociais, éum tipo de estudo que não prescindede uma vivência do pesquisador. Paraescrever sobre jornalismo, é fundamen-tal alguma experiência de jornalismo,pelo menos como alguém que mergu-lha numa redação, no ambiente de umatelevisão, etc. E para essa reflexão teóri-ca vir desde dentro, tem que se aceitar amídia. A atitude não pode ser simples-mente a recusa nascida do moralismocultural e intelectual, à maneira da Es-cola de Frankfurt - que, diga-se, achouma grande escola, mas, naquele mo-mento, a tecnologia emergente assus-tava muito os grandes filósofos comoAdorno e Horkeimer. É preciso aceitá-Ia porque trata-se de uma forma devida que você partilha, queira ou não.Estamos todo o tempo imersos nesseobjeto que é o biosmidiático e, como es-crevi no livro, entramos e saímos dele otempo inteiro, porque esse bios é para-sitário dos bios históricos. Quero comisso dizer que o bios midiático vai ex-trair a substância das simulações quefaz, seus conteúdos e a aparência quequer dar ao mundo, do mundo anterior.Por isso, ele é muito conservador no quediz respeito às formas. No fundo, a tele-visão, por exemplo, quer que cada es-pectador se reconheça nela para facili-tar a relação, não quer que o sujeito selacere nem quebre a sua imagem, querdo espectador um reconhecimento desi tal como o sujeito se vê no espelho.

• Dada sua condição de professor, comofaz para transmitir pistas claras sobre ométodo para pensar a comunicação?- Primeiro, cuido de uma excitaçãometo do lógica a essa lógica analógica.Dado um fenômeno, proponho: vamosexaminá-lo no nível econômico, políti-co e ideológico. Eu faço isso de formaensaística, reflexiva, lendo materiais, jor-nais, conversando, o que não impedeque o aluno possa fazer cada um dessesníveis sociologicamente, e com pesqui-sa de campo. Meu método pessoal é ainterconexão das três instâncias, por-tanto, é isomórfico, porque procuro vercomo formas diferentes têm um isos,um ponto comum. Creio que isso podeficar, metodologicamente.

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• Falemos sobre a noção do bios midiá-tico como algo que tem a superfície rasado espelho. Dá para resumi-Ia aqui?- O espelho reflete e ao mesmo tempoencerra a imagem em sua superfície rasa.Não tem profundidade de vida, e esseestar encerrado numa superfície rasa é acondição do homem que vive no biosmidiático. É como Alice no país dos es-pelhos. Ou seja, se eu estou no espelhoe estou com uma iluminação azul, sou ocidadão azul do espelho. É esse azul, ver-melho ou roxo que a mídia ilumina queé, propriamente, o bios midiático. O biosé uma qualificação, uma iluminação par-ticular. Um lado de pura aparência quepermite contágio e refração infinitos:uma imagem remete a outra, que reme-te a outra, infinitamente, e até eu rece-bê-Ias já estou tão acostumado a elas queeu próprio já sou imagem. De qualquerforma, a mídia reduz o discurso do realhistórico ao que é possível dentro dasuperfície do espelho. E é nessa reduçãoda substância à sua imagem que há atransformação de mundo. Por isso Hei-degger diz sobre a técnica: a modernida-de é o mundo que se transformou emimagem. A mercadoria é uma imagem,não qualquer uma, mas a imagem comoa forma mais perfeita e acabada da mer-cadoria, porque o que seduz nela não éo valor de uso, mas o valor de troca socialque adquiriu e que é sígnico, ou seja, umamercadoria é tanto mais sedutora hojequanto mais ela recebe uma valorizaçãodo olhar dos outros, a partir do mercado.

"Vejo a comunicaçãocomo atividadefilosófica pública,com a obrigaçãode explicara mídia aogrande público"

imagem passou a administrar, invadir,colonizar o social. Pode-se dizer: será quenão foi sempre assim? Sim, foi, mas psi-quicamente, internamente, em escalaindividual. O problema é que isso saiudo indivíduo e se realiza por mídia. Por-tanto, as imagens se substancializam semque se possa tocar nelas, elas solicitamsomente a potência do olhar.

• Em toda a modernidade do ocidente, oolhar se constitui como instrumento de po-der. O que mudou contemporaneamente?- O poder de ver é transferido, se de-mocratiza, já não se trata mais de se vermagnificado nos espelhos da grande ca-sa burguesa, nos retratos, nas avenidascom que se racionalizaram as cidades.Essas estratégias oculares clássicas setransferiram para as máquinas de visão,o olhar de subjetividades dominantes oudominadas se transferiu para os objetostécnicos, como os da medicina ou da di-versão. Temos então uma paisagemonde o interobjetivo é mais forte que ointersubjetivo. O indivíduo é um ele-mento humano numa cadeia de objetostécnicos no sistema. O porteiro que con-trola a garagem é um elemento numacadeia técnica. E isso transforma pro-fundamente as relações na sociedade.Com relação à mídia, as máquinas de vi-são alargam o espaço público. O comícioque era para alguns mil, vai para milhões.Mas a ampliação tecnológica reduz, poroutro lado, a promessa do livre agir so-cial. A representação se autonomiza. Opoder não está mais onde achamos queestá, se transferiu para a esfera técnica.A mídia traz a morte da política e da de-mocracia representativa clássicas, pas-samos para a democracia plebiscitária.

• Isso leva à seguinte questão: com a mor-te da formas clássicas de representação,com o enfraquecimento da sociedade civil,o que ocorre no plano social e político?

• A imagem é o resultado. Mas qual a ori-gem desse processo?- A origem é o mercado e o consumo,·portanto é a mudança no universo daprodução. O modo de produção tradi-cional implicava como ideologia o traba-lhador que produz diretamente algumacoisa, e o modelo desse trabalho vem dafábrica, ainda que se trate de um traba-lhador intelectual: dou tantas horas emeu trabalho pode ser medido por horasou pelo meu rendimento. Com a desva-lorização do trabalho fabril e sua subs-tituição por especialistas em máquinasou em administração ou gestão do co-nhecimento, cada vez mais passamos aoperar com signos, com imagens dascoisas e, muitas vezes, o trabalho numagrande empresa é a imagem, é aquele ca-ra que não sabe fazer nada, mas circula,gerencia, administra relações. A relaçãoem si mesma passou a ser um valor. A

- Acho que aquilo que os autores cha-mam de pós-sociedade civil é apenas umrótulo, penso que a sociedade civil con-tinua, e o que vejo é a emergência daqui-lo que a idéia hegeliana de sociedade ci-vil deixou de lado: a plebs, o resto, o quenão se articulou institucionalmente pa-ra integrar plenamente o mundo do tra-balho. É a massa. São os excluídos queaumentaram desmesuradamente com aglobalização financeira do mundo.

• Mas esse aumento não aponta para abarbárie, a violência, o crime?- Sem dúvida, é o que estamos assis-tindo. Não estou dizendo que a plebe éharmônica, quando ela nem tem aindalinguagem civil, só contra-linguagem-a violência é uma contra-linguagem.De qualquer modo, não nos esqueça-mos de que não existe fundação degrupo social sem violência. A crimina-lidade urbana é insuportável porque asociedade civil clássica não está prepa-rada para lidar com a violência, a nãoser em termos de guerra. Na criminali-dade, como nas guerras étnicas só naaparência, está implicada uma rearru-mação de território por instantes desoberania, que são instantes caóticos.As massas estão atravessando seu mo-mento de soberania na forma mais in-suportável, que é essa violência quenão é só para obtenção de coisas, mas éde crueldade.

• Acho estranho o caráter sombrio de seudiagnóstico, ante a sensação sutil que seulivro passa de que há saídas.- Eu concordo com a perspectiva doMilton Santos, que era a mesma do Mi-chel Serres, de que a produção conti-nuada de escassez, de precariedade nascondições reais do mundo, gera um sa-ber. Esse saber é o que chamo de expe-riência - o constituinte, a nascente detoda ação. E o Estado, ou aprende coma plebe ou desaparece.

• Existe uma preocupação sua com a açãoprática do teórico da comunicação, não?- Entendo comunicação como umafilosofia pública, ou seja, voltada nãoapenas para a academia, mas com umaobrigação de compromisso de voltar-setambém para o grande público, para ex-plicar-lhe a mídia. A reflexão na comuni-cação é, assim, uma atividade compro-metida com o real histórico, e não umaabstração inteiramente intemporal. •

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