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Gabinete do Reitor • Coordenadoria de Comunicação da UFRJ • Ano VI • Nº 55 • Julho/Agosto de 2010 Loucura: caem os muros Entrevista Maria Paula Cerqueira Gomes O reconhecimento de que o hospital psiquiátrico é incapaz de “apaziguar” a loucura foi o primeiro passo para mudar a história do tratamento da doença mental. Do espaço de confinamento do manicômio – o primeiro surgiu em 1247, em Londres – às redes públicas de cuidado psicossocial, já no século XX, a transformação foi radical. No mundo inteiro, a luta antimanicomial ganhou impulso na segunda metade dos anos 1960 e teve imensa repercussão no Brasil. “Vários movimentos passaram a defender como inadiável o fim da centralidade do hospital psiquiátrico como única oferta de tratamento para os doentes mentais”, afirma Maria Paula Cerqueira Gomes, professora do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Faculdade de Medicina (FM) e do Instituto de Psiquiatria (Ipub) da UFRJ, coordenadora da recém-criada Residência Multiprofissional de Saúde Mental do Ipub. Reforma universitária: “modernização” vigiada Políticas do governo mili- tar para o Ensino Superior ampliaram os recursos, for- taleceram as pesquisas e expandiram as instituições federais, mas o braço repres- sivo da ditadura, com atos de perseguição a professores e estudantes, eliminou o de- bate e o pensamento crítico na universidade. Em perspectiva Brasil A discussão em torno dos avanços e limites das políticas públicas nas áreas social, ambiental e de saúde ganha cada vez mais destaque às vésperas das eleições presidenciais. Essa é a reportagens desta edição com vistas à eleição presidencial que se aproxima. O estado do Rio de Janeiro possui o segundo pior Ensino Médio do Brasil, ganhando apenas do Piauí. É o que constatou o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), divulgado, em julho, pelo Ministério da Educação. O ensino fluminense não alcançou o número de pontos considerado ideal pela avaliação. Poesia de bamba Almir Guineto “Teus olhos me passam relatos de fácil leitura. Me revelam teus hiatos. De afeição nas aventuras. Me contam que a velha saudade ainda te guia. Não te traz felicidade. Um amor a cada dia”. O que pode parecer um poema, na verdade é a letra da música Papel Principal , interpretada por Zeca Pagodinho, tendo com um de seus compositores Almir Guineto.

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Gabinete do Reitor • Coordenadoria de Comunicação da UFRJ • Ano VI • Nº 55 • Julho/Agosto de 2010

Loucura:

caem os muros

EntrevistaMaria Paula Cerqueira Gomes

O reconhecimento de que o hospital psiquiátrico é incapaz de “apaziguar” a loucura foi o primeiro passo para mudar a história do tratamento da doença mental. Do espaço de

confinamento do manicômio – o primeiro surgiu em 1247, em Londres – às redes públicas de cuidado psicossocial, já no

século XX, a transformação foi radical. No mundo inteiro, a luta antimanicomial ganhou impulso na segunda metade dos anos 1960 e teve imensa repercussão no Brasil. “Vários movimentos passaram a defender como inadiável o fim da centralidade do

hospital psiquiátrico como única oferta de tratamento para os doentes mentais”, afirma Maria Paula Cerqueira Gomes,

professora do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Faculdade de Medicina (FM) e do Instituto de Psiquiatria

(Ipub) da UFRJ, coordenadora da recém-criada Residência Multiprofissional de Saúde Mental do Ipub.

Reforma universitária:

“modernização” vigiada

Políticas do governo mili-tar para o Ensino Superior

ampliaram os recursos, for-taleceram as pesquisas e

expandiram as instituições federais, mas o braço repres-

sivo da ditadura, com atos de perseguição a professores e estudantes, eliminou o de-bate e o pensamento crítico

na universidade.

Em perspectivaBra

sil

A discussão em torno dos avanços e limites das políticas públicas nas áreas social, ambiental e de saúde ganha cada vez mais destaque às vésperas das eleições presidenciais. Essa é a reportagens desta edição com vistas à eleição presidencial que se aproxima.

O estado do Rio de Janeiro possui o segundo pior Ensino Médio do Brasil, ganhando apenas do Piauí. É o que constatou o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), divulgado, em julho, pelo Ministério da Educação. O ensino fluminense não alcançou o número de pontos considerado ideal pela avaliação.

Poesiade bamba

Almir Guineto

“Teus olhos me passam relatos de fácil leitura. Me revelam teus hiatos. De afeição nas aventuras. Me contam que a velha saudade ainda te guia. Não te traz felicidade. Um amor a cada dia”. O que pode parecer um poema, na verdade é a letra da música Papel Principal, interpretada por Zeca Pagodinho, tendo com um de seus compositores Almir Guineto.

Reitor Aloisio Teixeira

Vice-reitora Sylvia da Silveira Mello Vargas

Pró-reitoria de Graduação (PR-1) Belkis Valdman

Pró-reitoria de Pós-graduação e Pesquisa (PR-2)

Ângela Maria Cohen UllerPró-reitoria de Planejamento e Desenvolvimento (PR-3)

Carlos Antônio Levi da Conceição Pró-reitoria de Pessoal (PR-4) Luiz Afonso Henriques Mariz Pró-reitoria de Extensão (PR-5) Laura Tavares Ribeiro Soares

Superintendência Geral de Administração e Finanças

Milton FloresChefe de Gabinete

João Eduardo FonsecaFórum de Ciência e Cultura

Beatriz ResendePrefeito da Cidade Universitária

Hélio de Mattos Alves Sistema de Bibliotecas e Informação (SiBI) Paula Maria Abrantes Cotta de Melo

Coordenadoria de Comunicação Fortunato Mauro

Setor de Convênios e Relações InternacionaisGeraldo NunesOuvidoria Geral

Cristina Ayoub Riche

Fotolito e impressão Gráfica Posigraf

25 mil exemplares

Av. Pedro Calmon, 550. Prédio da Reitoria – Gabinete do Reitor

Cidade Universitária CEP 21941-590

Rio de Janeiro – RJ Telefone: (21) 2598-1621

Fax: (21) 2598-1605 [email protected]

JORNAL DA UFRJ é UmA PUBlICAçãO mENSAl DA COORDENADORIA DE COmUNICAçãO DA UNIVERSIDADE

FEDERAl DO RIO DE JANEIRO.

Supervisão editorial João Eduardo Fonseca Jornalista responsável

Fortunato mauro (Reg. 20732 mTE) Edição

Fortunato mauro e luciana Crespo Pauta

míriam Starosky, luciana Crespo, Daniela magioli, larissa Elias

e Fortunato mauro Redação

Aline Durães, Bruno Franco, Coryntho Baldez, márcio Castilho Pedro Barreto,

Rafaela Pereira e Rodrigo Baptista

Revisão Dayse Barreto eluciana Crespo

Arte Anna Carolina Bayer

Ilustração Diego Novaes, João Rezende,

marco Fernandes e Zope Charge ZopeFotos

Adyr, Alberto Jacob, Gonzales/Acervo da Agência JB, França/ Acervo CPDOC e

marco Fernandes Expedição

marta Andrade

Interessados em receber esta publicação devem entrar em contato pelo e-mail

[email protected]

O Jornal da UFRJ publica opiniões sobre o conteúdo de suas edições. Por restrições de espaço, as cartas sofrerão

uma seleção e poderão ser resumidas.

UFRJJornal da 2

Queremos inicialmen-te manifestar as nossas fe-licitações pela excelente e oportuna matéria publica-da no Jornal da UFRJ sob o título “UFRJ 90 anos, In-tegração: um desafio quase centenário”, páginas 3 a 5. A matéria apresenta, de forma clara e objetiva, a trajetória histórica da UFRJ. No en-tanto, gostaríamos de tomar a liberdade de ponderar so-bre uma das ideias ali apre-sentadas e que nós, da Es-cola Politécnica e da Asso-ciação dos Antigos Alunos da Politécnica, entendemos de maneira diferenciada. A ideia de que “Dois anos de-pois, a corte transforma a Real Academia de Artilha-ria, Fortificação e Desenho, fundada em 1792, em Aca-demia Real Militar, voltada

Especial UFRJ 90 anosIntegração: um desafio quase centenário

para a formação de engenhei-ros civis e militares. A insti-tuição representou a origem da atual Escola Politécnica da UFRJ”, afirmada na página 4, não nos faz sentido. É fato que em 1808 a corte trans-formou a Real Academia de Artilharia, Fortificação e Desenho em Academia Real Militar. Mas a origem da Es-cola Politécnica da UFRJ não está nessa última Academia, e sim na própria Real Aca-demia de Artilharia, Fortifi-cação e Desenho, criada em 1792.

Nota do EditorOs comentários acima

nos foram enviados pelos professores Ericksson Rocha e Almendra, diretor da Es-cola Politécnica, Heloi Jose Fernandes Moreira, ex-dire-

tor da Escola Politécnica e presidente da Associação dos Antigos Alunos da Po-litécnica, e Flavio Miguez de Melo, ex-diretor-adjun-to da Escola Politécnica e presidente do Conselho Di-retor da Associação dos An-tigos Alunos da Politécnica.

Na carta, editada em ra-zão das limitações de espa-ço, os docentes justificam as explicações com base em pesquisa no Arquivo Nacio-nal realizada no início dos anos 1980 pelo professor Paulo Pardal, professor da Escola Politécnica e mem-bro do Instituto Históri-co e Geográfico Brasileiro (IHGB), e observações do professor Pedro Carlos da Silva Telles, ex-professor da Escola Técnica e também membro do IHGB.

(Edição nº 53, maio de 2010)

60 anos do IMPPGComemorando 60 anos de

existência, o Instituto de Micro-biologia Paulo de Góes (IMPG) promoverá o Simpósio Internacio-nal de Microbiologia e Imunologia nos dias 30 de setembro e 1º de outubro. O objetivo do evento é marcar o aniversário do IMPG com discussões sobre temas atu-ais e de destaque no âmbito das ciências microbianas e suas fron-teiras.

Os temas incluem biodiversi-dade e microbiologia ambiental, patogêneses das doenças media-das por fungos, vírus e bactérias e, ainda, mecanismos da infla-mação e desenvolvimento do fe-nômeno de memória no sistema imune.

A conferência de abertura do evento será proferida por Arturo Casadevall, chefe do Departa-mento de Microbiologia e Imu-nologia do Albert Einstein Col-lege of Medicine (Nova Iorque, Estados Unidos), especialista em patogênese e terapia imune de in-fecções por criptococos. As con-tribuições de Casadevall no cam-po das doenças infecciosas têm sido reconhecidas por seus pares, tendo sido inclusive agraciado pelo National Institute of Health com o Merit Award, em 2007.

No segundo dia, a conferên-cia inicial será ministrada por James Tiedje, diretor do Center for Microbial Ecology da Michi-gan State University (EUA). Sua pesquisa enfoca ecologia micro-biana, fisiologia e biodiversidade, especialmente com relação ao ci-

clo de nitrogênio, biodegradação de ambiente poluídos e no uso de métodos moleculares para a com-preensão da estrutura da comu-nidade microbiana e sua função. Tiedje recebeu em 1992 o prêmio Finley Prize, da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), destinado a pesquisadores que contribuíram significativamente para a microbiologia internacio-nal.

Além de Casadevall e Tiedje, foram convidados palestrantes dos mais prestigiados centros de estudos e pesquisa do Brasil e do mundo, como: Charles Rice (The Rockefeller University-EUA), Cristina Plotkowisk (UERJ), David Ojcius (University of Ca-lifornia-Merced, EUA), Eliana Barreto Bergter (IMPPG-UFRJ), Francois Vandenesch (Université Lyon-França), Gabriel Schmunis (Former WHO – EUA), Jan Dirk van Elsas (University of Gro-ningen-Holanda), Juan Lafaille (Skirball Institute of Biomolecu-lar Medicine - EUA), João Santa-na da Silva (USP-Ribeirão Preto), Luiz Travassos (UNIFESP) e Mau-ro Martins Teixeira (UFMG).

O Simpósio será realizado no Colégio Brasileiro de Cirur-giões, situado na Rua Visconde Silva, nº 52, 3º andar – Botafogo. As inscrições podem ser feitas no site do IMPG: www.microbiologia.ufrj.br

Evento comemora90 anos da UFRJ

A UFRJ realiza, no próximo dia 8 de setembro, uma série de atividades em comemoração aos 90 anos da instituição. A cerimônia, que ocorrerá no auditório do Centro de Tec-nologia (CT), na Cidade Universitária, inclui música clás-sica, exposição e lançamento de publicações.A abertura do evento está marcada para as 15h com a pre-sença do reitor Aloísio Teixeira. Após exibição de um ví-deo institucional, a programação prossegue, às 16h, com a apresentação da Orquestra Sinfônica da Escola de Música da UFRJ. Às 17h30, está previsto o lançamento do livro Universidades e lugares de memória II , de Andrea Cristina de Barros Queiroz, historiadora e responsável pelo Proje-to Memória do Sistema de Bibliotecas e Informação (SiBI) da UFRJ, e Antônio José Barbosa de Oliveira, professor do curso de Biblioteconomia e Gestão de Unidades de Infor-mação da Faculdade de Administração e Ciências Contá-beis (Facc). O evento também marca a reedição da obra A universidade do Brasil: das origens à reconstrução, de Maria de Lourdes Fávero, pesquisadora do Programa de Estudos e Documentação Educação e Sociedade (Proedes) da Fa-culdade de Educação (FE) da UFRJ.Durante as comemorações de aniversário da univer-sidade, será inaugurada a exposição UFRJ 90 anos, resgatando, através de textos e imagens, a me-mória da primeira insti-tuição oficial de Ensino Superior do Brasil e sua contribuição para a produção do conhe-cimento e do pensa-mento crítico e refle-xivo em momentos decisivos da história brasileira.

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3UFRJJornal da

Julho/Agosto 2010

A mão que afaga é a mesma que apedreja.” Assim es-creveu o poeta Augusto

dos Anjos (1884-1914) em uma das célebres passagens de Versos ínti-mos. Essa aparente contradição que separa dois gestos tão díspares ajuda a ilustrar as políticas do regime mili-

Márcio Castilho

Políticas do governo militar para o Ensino Superior ampliaram os recursos, fortaleceram as pesquisas e expandiram as instituições federais, mas o braço repressivo da ditadura, com atos de perseguição a professores e a estudantes, eliminou o debate e o pensamento crítico na universidade.

Reforma universitária:

tar para o Ensino Superior brasileiro. Se de um lado as universidades expe-rimentaram mudanças consideradas “modernizantes” a partir da chamada Reforma Universitária no final dos anos 1960, com ampliação de recur-sos e expansão das Instituições Fede-rais de Ensino Superior (Ifes), de ou-

tro, estudantes e professores tiveram de enfrentar o braço repressivo da ditadura: a “mão que apedreja”, re-presentada por atos de perseguição. Os avanços institucionais, sobretudo nas áreas tecnológicas e biomédicas, e os retrocessos que culminaram na eliminação do debate livre e do pen-

samento crítico são os dois lados de uma mesma política que sintetiza a complexa relação entre o Estado e a comunidade acadêmica no período entre 1964 e 1985.

Como ocorrera anteriormente, a instituição que surgiu com o nome de Universidade do Rio de Janeiro,

1960

1970 “modernização”vigiada

Alberto Jacob/ Acervo da Agência JB

Manifestação de estudantes no pátio interno da Faculdade Nacional - de Medicina, contra a invasão da Polícia. - 1966

1960

Especial UFRJ 90 anos

1964 1965 1965/68 1968 1969 19701966

Criação do Escritório Técnico da Universidade (ETU), responsável por planejar e executar as obras da Cidade Universitária.

O Conselho Universitário expulsa, em de abril daquele ano, 19 estudantes por suposto envolvimento com atos subversivos.

mudança de nome de Universidade do Brasil para Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) por força da lei nº 4.831, de 05/11/1965.

Ocupação militar da FNFi e da Faculdade Nacional de medicina.

Uma vasta legislação embasa a Reforma Universitária, incluindo o Plano Atcon (1965), os decretos-lei nº 53/66 e nº 252/67, o relatório da comissão do general meira mattos (1967) e o estudo do Grupo de Trabalho encarregado de estudar as medidas para resolver a “crise da universidade” (1968).

Edição do Ato Institucional nº 5, restringindo as liberdades individuais e fortalecendo os aparatos de repressão política.

Extinção da FNFi.

Afastamento, por aposentadoria compulsória, de dezenas de professores através do Decreto-lei nº 477, de 26/02/1969.

Consolidação da atuação da Agência Regional de Segurança e Informações (ARSI) no interior das universidades.

Implantação da Reforma Universitária.

em 1920, transformada em Universi-dade do Brasil, em 1937, foi rebatiza-da durante a ditadura. À mudança de denominação para Universidade Fe-deral do Rio de Janeiro, por força da Lei nº 4.381, de 05/11/1965, segui-ram-se outras medidas que ajudaram a compor a atual estrutura da UFRJ: valorização da departamentalização, introdução do sistema de créditos, extinção formal da cátedra vitalícia, docência em tempo integral e forta-lecimento da pesquisa, dentre outras mudanças. A universidade que, até então, seguia a orientação das escolas francesas assume uma concepção de Ensino Superior fortemente influen-ciada pelo modelo norte-americano.

Enquanto passava por um mo-mento de modernização, a UFRJ, a exemplo de outros campos da vida social, deparava-se com o proces-so de recrudescimento da repressão política. Em setembro de 1966, a Fa-culdade Nacional de Filosofia (FNFi) e a Faculdade Nacional de Medicina (FNM) foram ocupadas pela polícia. Com o fortalecimento dos aparatos de combate aos grupos que faziam resistência política, o movimento estudantil passou a sofrer ostensi-vo controle do Estado. Resulta daí a perseguição, as prisões e assassina-tos sob tortura de estudantes secun-daristas e universitários em todo o país. A edição do Ato Institucional nº 5 (AI-5), de 13/12/1968, represen-tou o esfacelamento da experiência da FNFi. Já o Decreto-Lei nº 477, de 26/02/1969, legitimou o afastamento de dezenas de professores da UFRJ por meio de processo de aposenta-doria compulsória. O clima de “caça às bruxas” nas universidades foi re-forçado pela atuação da Agência Re-gional de Segurança e Informações

(ARSI), integrando o amplo sistema montado pelo Serviço Nacional de Informação (SNI) contra os “elemen-tos subversivos”, como eram chama-dos pelo regime aqueles que se opu-nham à nova ordem política.

Para Carlos Fico, professor e co-ordenador do Grupo de Estudos so-bre a Ditadura Militar (GEDM), do Instituto de Filosofia e Ciências So-ciais (Ifcs) da UFRJ, fazia parte do projeto de poder a combinação de atitudes repressivas com iniciativas que, de algum modo, provocaram um impacto transformador em dife-rentes setores da sociedade. “Poderia falar, em tese, de uma contradição, mas era um traço essencial do gover-no militar a combinação entre esse dois elementos. Essa contradição aparentemente esdrúxula aparecia já no Estado Novo: havia uma ativida-de repressiva bastante significativa e, em paralelo, grande transformação na universidade e em outras institui-ções. Faz parte da complexidade do fenômeno histórico que é a ditadura, esse anseio de modernização, essa utopia de setores militares e civis de que seria possível transformar o Bra-sil numa grande potência, mas elimi-nando elementos de conflito”, afirma o pesquisador.

A construção da ReformaAs reivindicações por uma ampla

reformulação no sistema universitá-rio podem ser localizadas ainda no período pré-golpe de 1964. Com o processo de crescimento econômico acelerando o ritmo de desenvolvi-mento do país e a ampliação do mo-vimento estudantil, que discute no-vas formas de acesso à universidade e maior participação nas instâncias deliberativas, o Conselho Universi-tário da Universidade do Brasil (UB) cria, em 1962, uma comissão especial presidida pelo reitor Pedro Calmon, resultando no relatório “Diretrizes para a Reforma da Universidade do Brasil”.

“A universidade que conheci como estudante nos quatro primei-

ros anos da década de 1960 era um espaço de amplo e aberto debate e circulação de ideias e projetos. O foco da atenção era a realidade brasi-leira, seus problemas e suas perspec-tivas. O principal questionamento girava em torno da construção do futuro do Brasil, suas limitações his-tóricas e estruturais, suas potencia-lidades enquanto povo e enquanto nação. Confrontavam-se diferentes posições e projetos econômico-sociais, políticos e ideológicos. Discutia-se muito criticamente o desenvolvimento, principalmente em termos dos seus rumos e das metas a alcançar”, lembra Miriam Li-moeiro, professora de Ciência Políti-ca e Sociologia da UFRJ, aposentada compulsoriamente pelo regime mi-litar, em abril de 1969. Temas como

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“massacre de manguinhos”,episódio marcado pela expulsão de dez cientistas de projeção nacional, interrompendo pesquisas importantes na área da saúde.

Adyr/Acervo da Agência JB

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5UFRJJornal da

1970 1971 1972 1973 1974

Crédito especial de 23 milhões de cruzeiros para acelerar as obras na Cidade Universitária, conforme Decreto nº 66.105, assinado pelo presidente médici.

Reestruturaçãoda Capes

Inaugurado o Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF).

a remessa de lu-cros para o exte-

rior, a soberania e a autodeterminação dos povos eram, se-gundo ela, objeto de ampla discussão nos centros acadêmicos (CA) e em outras instâncias da uni-versidade.

A reestrutura-ção das universi-dades no período ditatorial começa a ser esboçada por meio dos decretos-lei nº 53, de 1966, e

nº 252, de 1967. Parte integrante de uma vasta legislação que embasaria

a Reforma Universitária, os decretos estabelecem princípios como o de in-tegração e não-duplicação de meios e a indissociabilidade entre Ensino e Pesquisa. O projeto de reforma tam-bém teve forte influência do Plano Atcon, realizado pelo consultor nor-te-americano Rudolph Atcon entre junho e setembro de 1965. O docu-mento valorizava critérios básicos de eficiência e produtividade e defendia a reformulação do regime de traba-lho docente, dentre outros pontos.

O projeto de reforma incorporou ainda algumas orientações contidas no relatório da comissão especial presidida pelo general Meira Mattos. O grupo criado através do Decreto nº 62.024, de 29/12/1967, elaborou propostas para ampliação de vagas e criação de vestibular unificado e cur-

sos de curta duração. Um dos pon-tos, porém, já demonstrava a preocu-pação do governo com a “subversão estudantil”. A comissão defendia o fortalecimento do princípio de au-toridade e disciplina nas instituições de Ensino Superior. A articulação do movimento estudantil também es-tava no centro das preocupações de um Grupo de Trabalho (GT), forma-do a partir do Decreto nº 62.937, de 02/07/1968. Segundo historiadores, uma das atribuições do GT era elabo-rar, em caráter de urgência, medidas para resolver a “crise da universida-de”. Já durante o período de vigência do AI-5, a Reforma Universitária foi aprovada pelo governo militar.

Carlos Vainer, professor titular do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur) da UFRJ, observa que a reforma ditatorial, em-bora tenha trazido alguns elementos de modernidade, trouxe consequ-ências acadêmicas graves. Vainer se refere à valorização de determinadas áreas que faziam parte das deman-das políticas do projeto militar em detrimento de outros setores da uni-versidade. “A reforma ditatorial traz alguns elementos de modernidade, mas é uma modernidade autoritá-ria, focalizada nas áreas das ‘ciên-cias duras’, nas ‘tecnologias duras’, penalizando enormemente as áreas de humanidades de modo geral - as Ciências Sociais de modo particular”, afirma o docente, citando o esfacela-mento da experiência da FNFi, que constituía um foco de resistência po-lítica e de pensamento crítico.

O outro lado dessa política, lem-bra o professor, foi a expansão das áreas de Engenharia e Ciências Bio-médicas, que receberam recursos ex-pressivos para fazer sua expansão na Cidade Universitária.

Vainer salienta que a reforma ditatorial deve ser analisada na pers-pectiva de um processo de “moder-nização truncada”. Segundo ele, a adoção de modelos de ensino de outros países encontra limitações quando incorporados no Brasil. Isso

ocorre em razão das especificidades da sociedade brasileira. “Houve al-guns avanços do ponto de vista da modernização, mas essa moderniza-ção compôs com as estruturas anti-gas. Esse é o padrão de moderniza-ção ditatorial no conjunto da vida social brasileira. Houve elementos de modernização expressos por um ato de violência, autoritário, centra-lizado, antidemocrático. Esses atos, quase sempre inspirados pelo mode-lo de países centrais, se debatem com a realidade brasileira, fazendo com-posição de aspectos aparentemente modernos com conservadores”, ex-plica o pesquisador.

Segundo ele, apesar da extinção da cátedra vitalícia e da implantação da estrutura departamental, muitos dos chamados professores catedráti-cos continuaram exercendo poder na universidade após a Reforma no final dos anos 1960. Vainer cita também o estabelecimento da carreira docente. Durante a ditadura, em muitas áreas como Medicina e Direito, a docência na UFRJ era muito mais um título a ser estampado em consultórios e escritórios do que uma carreira aca-dêmica. “Muitas das questões que hoje são pensadas como elementos de modernização ditatorial são, na ver-dade, conquistas do processo de rede-mocratização”, completa o professor do Ippur.

Decorrentes também das políticas de Educação do governo militar, se-gundo as fontes consultadas pelo Jor-nal da UFRJ, foram a precarização dos níveis pré-universitários de ensino e a expansão das faculdades particula-res. José Murilo de Carvalho, mem-bro da Academia Brasileira de Letras (ABL) e professor titular aposentado do Ifcs, comenta o estabelecimento de disciplinas que visavam promover o patriotismo e sustentar a Doutrina de Segurança Nacional, dentre elas Educação Moral e Cívica (EMC), Or-ganização Social e Política Brasileira (OSPB) e Estudos de Problemas Bra-sileiros (EPB), na grade curricular, respectivamente, do 1º, 2º e 3º graus.

1976 1978

Reestruturação do CNPq

A Escola de Belas Artes é transferida para a Cidade Universitária.

Transferência de instalações da Faculdade de medicina da Praia Vermelha para a Cidade Universitária.

Inauguração, no dia 7 de setembro, da Cidade Universitária.

São instituídos os comitês assessores e o sistema de “avaliação por pares”, ampliando a participação da comunidade científica na formulação da política de ciência e tecnologia.

1970

Adyr/Acervo da Agência JB

Assembléia de estudantes na Faculdade Nacional de Filosofia -1966.

Gonzales/Acervo da Agência JB

Julho/Agosto 2010UFRJJornal da 6

“Deu emprego a muita gente, mas era uma doutrinação imposta, capaz apenas de formar súditos, e não cida-dãos”, critica o historiador. De acor-do com ele, no nível universitário, a ampliação do sistema privado se deu de forma inversamente proporcional à qualidade do ensino.

Vainer concorda que as diretri-zes do governo favoreceram uma concepção privatista para o Ensino Superior: “Houve uma evolução er-rática. Nos anos 1960, 80% dos estu-dantes universitários estudavam em instituições públicas e 20%, em ins-tituições privadas. Os números hoje mostram total inversão: 80% em pri-vadas e 20% nas públicas. Então tem que se pensar a reforma ditatorial também como elemento importante da privatização do Ensino Superior no Brasil”, afirma o professor, que so-freu perseguição política quando era estudante na UFRJ.

Vainer recorda que, em sua época de movimento estudantil, participa-va de manifestações contra o paga-mento de anuidade na universidade. O ano era 1968, período de implan-tação da Reforma: “Naquele momen-to, conseguimos barrar a universida-de pública paga, mas não consegui-mos assegurar uma expansão que pudesse acolher a grande demanda de alunos”.

“A mão que apedreja”O fechamento político da ditadura

militar, anunciado pelo AI-5 a partir de dezembro de 1968, representou o fim do que ainda restava de liberdade e pensamento crítico nas Instituições

Federais de Ensino (IFE). Os atos de perseguição política a professores se agravaram após a edição do Decreto-Lei nº 477/69, instaurando um pro-cesso de aposentadoria compulsória que afastou das universidades centenas de profissionais. Por ocasião das come-morações do 30º aniversário da Seção Sindical dos Docentes da UFRJ (Adu-frj), em junho do ano passado, a enti-dade compôs uma lista de 44 profes-sores perseguidos na UFRJ; porém, como não há regis-tros precisos sobre o período, esse nú-mero pode ser bem superior.

“Este foi, de lon-ge, o aspecto mais negativo do regime militar em relação à universidade. Em termos de cassa-ção, sofreram mais as maiores uni-versidades, como a Universidade de São Paulo (USP) e a UFRJ, mas qua-se todas tiveram professores presos, processados ou demitidos. E todas sofreram com o clima generaliza-do de insegurança que afetava a co-munidade acadêmica. O Decreto-lei nº 477 era uma arma terrível. Proi-bia qualquer atividade considerada subversiva, como incentivo a greves,

diretamente todos os professores, o que afinal seria impossível. O efeito das exclusões que as ‘aposentado-rias’ compulsórias acarretavam se abateria necessariamente sobre todo o conjunto da atividade universitá-ria e intelectual e viria a ter efeitos muito duradouros. A forma como a comunidade universitária recebeu a maior parte daqueles que ousaram retornar às suas universidades pú-blicas pela Lei de Anistia demonstra que a sua exclusão havia sido tão as-similada que o espaço a ser retoma-do por eles se tornara algo como um não-espaço, um espaço que não exis-tia mais. Infelizmente, não são pou-cos os exemplos. Parece ter sido um modo perverso pelo qual a univer-sidade pública afetada diretamente pelo AI-5 aprendeu a conviver com o arbítrio que havia sido perpetra-do contra ela enquanto instituição, e não somente contra os professores individualmente excluídos”, observa a professora.

Apesar da Lei de Anistia, decre-tada em 1979, durante o processo de abertura política, Miriam tentou retornar às atividades de professo-ra na UFRJ, mas teve seu pedido de reintegração negado. Ela somente retornou ao ser aprovada, em pri-meiro lugar, no concurso público para professor de Sociologia, reali-zado em 1984. “A exclusão da pos-sibilidade de exercer o meu ofício em qualquer instituição pública do país causou grande impacto na mi-nha vida profissional e pessoal, ainda mais porque me atingia quando eu me encontrava apenas no início da

(...) Acostuma-te à lama

que te espera! O Homem, que,

nesta terra miserável,

Mora, entre feras, sente

inevitável Necessidade de

também ser fera.

passeata, posse de material dito sub-versivo, sob pena de demissão para professores ou desligamento, para alunos. O chefe imediato, por exem-plo, chefe de departamento, tinha que processar tudo em 20 dias. Se ele se recusasse a desligar um aluno acusado, seria ele próprio demitido. Vivi uma situação dessas. A situação era pior, naturalmente, nas áreas de Ciências Sociais e Humanas, que não

podem funcionar sem liberdade de crítica”, destaca o acadêmico e pro-fessor José Murilo de Carvalho.

Miriam Limo-eiro, que lecionava as disciplinas de Ci-ência Política e So-ciologia, integrou a primeira das duas listas de aposenta-doria compulsó-ria publicadas no Diário Oficial da União (DOU) em abril de 1969. Ao atingir alguns do-centes através do ato autoritário, o governo buscava enquadrar a atu-ação de toda a comunidade aca-dêmica. Miriam, que não perten-

cia a nenhuma organização política, relata que as consequências da me-dida foram duradouras: “Esse tipo de repressão não precisava atingir

Estudantes em assembléia no Teatro de Arena do Palácio Universitário cobram diálogo ao Conselho Universitário da UFRJ.

França/ Acervo CPDOC

Especial UFRJ 90 anos

7Julho/Agosto 2010 UFRJJornal da

minha possível carreira acadêmica. Marcas como essa não se extinguem, permanecem como um estigma, e trazem consequências carregadas de pesar e de profundos danos.”

O processo de aposentadoria compulsória atingiu também o pro-fessor Lincoln Bicalho Roque, que lecionava no curso de Sociologia da UFRJ. Membro do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil (PC do B), Lincoln ficou na clandestini-dade durante os chamados “anos de chumbo”. Preso em março de 1973 pelos aparatos de repressão do regi-me militar, foi torturado e assassina-do. Seu nome consta oficialmente da lista de mortos e desaparecidos po-líticos durante a ditadura. Sua filha, Tatiana Roque, professora do Depar-tamento de Métodos Matemáticos do Instituto de Matemática (IM) da UFRJ, entrou em 1992 com um pedi-do para que o nome do seu pai fosse reintegrado à universidade. Durante o percurso, enfrentou dificuldades jurídicas. Após uma busca nos arqui-vos, a solicitação de Tatiana foi inde-ferida, à época, porque a universida-de não encontrou nenhum registro. A ficha de admissão foi localizada somente este ano. Atualmente, o pro-cesso está em andamento, o que para a família representa uma sensação de alívio e resgate da verdade histó-rica: “Era como se não estivéssemos falando a verdade. Considero muito errado negarem por falta de pro-vas. A ditadura destruiu os arqui-vos. Não são as famílias vítimas da ditadura que têm que provar. Esse papel cabe ao Estado, que detém os arquivos. É muito importante a dis-cussão para criação da lei pela in-versão do ônus da prova e abertura dos arquivos”, reivindica Tatiana Roque.

As listas de aposentadoria com-pulsória mesclaram nomes de me-nor projeção no cenário intelectual e acadêmico e cientistas com gran-de influência em diferentes áreas do conhecimento. Miriam Limoei-ro comenta que a exclusão de pro-fessores que tinham uma ascendên-cia científica “criou condições para que a ocupação dos espaços assim abertos pudesse ser feita de acor-do com critérios não propriamente ou prioritariamente acadêmicos”. Marcante nesse período foi o cha-mado “Massacre de Manguinhos”, episódio em que dez cientistas de projeção nacional foram impedi-dos de exercer sua profissão, inter-rompendo pesquisas importantes na área da saúde. Um dos atingi-dos foi Horácio Macedo, reitor da UFRJ entre 1985 e 1989, já falecido.

O historiador Carlos Fico aborda o clima de desconfiança presente no interior das universidades durante o período ditatorial. Segundo ele, al-guns chefes de departamento e pro-fessores ligados ao regime militar

aproveitaram o contexto do AI-5 para delatar outros colegas. As aposenta-dorias compulsórias se inserem nesse contexto. “Havia esse caráter exem-plar para os grandes nomes e grandes intelectuais. Mas também houve perseguições por motivos pesso-ais de competi-ção acadêmica. Muitos se apro-veitaram desse contexto para afastar esses de-safetos”, afirma Fico. De acordo com o coordena-dor do GEDM, as Agências Re-gionais de Se-gurança e Infor-mações (ARSI), que atuavam nas autarquias e em-presas estatais, serviam como órgão de rece-bimento e apu-ração das denúncias, subsidiando o trabalho do SNI. O mesmo ocorria nos ministérios através da Divisão de Segurança e Informações (DSI).

Embora os atos de arbítrio te-nham se intensificado a partir do AI-5, as perseguições aos dife-

rentes segmentos da comunida-de acadêmica tiveram início logo nos primeiros dias após o golpe de 1964, como assinala Victoria Gra-bois, uma das estudantes expulsas

por decisão do Conselho Un i v e r s i t á r i o em 19 de abril daquele ano, quando a insti-tuição ainda se chamava Uni-versidade do Brasil. Victo-ria, atualmente p e s q u i s a d o r a do Núcleo de Estudos de Po-líticas Públicas em Direitos Humanos (NE-PP-DH), órgão s u p l e m e n t a r do Centro de Filosofia e Ci-ências Huma-nas (CFCH) da UFRJ, era estu-

dante de Ciências Sociais da extin-ta FNFi. “O Conselho expulsou 19 universitários, sendo 15 homens e quatro mulheres. Com a decisão, fomos proibidos de fazer vestibular em universidade pública durante dez anos”, afirma a pesquisadora,

Toma um

fósforo.

Acende teu cigarro!

O beijo,

amigo, é a véspera

do escarro,

A mão que

afaga é

a mesma que

apedreja. (...)

que viveu na clandestinidade como membro do PC do B até o processo de anistia. Mauricio Grabois, pai de Victoria e um dos organizado-res da Guerrilha do Araguaia (mo-vimento guerrilheiro de resistência ao regime militar, estabelecido na região amazônica brasileira, ao longo do rio Araguaia, entre fins da década de 1960 e a primeira metade da década de 1970), consta na lista de mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura.

Fortalecimento da pesquisaSe o debate político, a crítica e o

livre pensar se afastaram dos cam-pi da UFRJ em razão das políticas autoritárias do poder central, as pesquisas científicas experimen-taram um momento de expansão. O período 1964-1985 foi marcado pelo fortalecimento dos programas de pós-graduação, principalmente nas áreas tecnológicas e biomédi-cas. No final dos anos 1960 e início dos anos 1970, foram instituídos os comitês assessores e o sistema de avaliação por pares, bem como a Financiadora de Estudos e Pro-jetos (Finep) e o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT). A reestru-turação do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tec-nológico (CNPq), em 1974, e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Ca-pes), em 1976, também favoreceu a abertura de campo nessa área, dei-xando marcas importantes até os dias atuais.

“A experiência positiva reflete-se na mudança das condições para a pesquisa na universidade. Essas condições foram muito mais favo-recidas”, afirma Luiz Bevilacqua, professor emérito do Instituto Al-berto Luiz Coimbra de Pós-gra-duação e Pesquisa de Engenharia (Coppe) da UFRJ. Ele cita como contribuição o regime de tempo in-tegral, permitindo aos professores desenvolverem suas pesquisas com dedicação exclusiva.

José Murilo de Carvalho apon-ta também a importância do papel político assumido por outras orga-nizações científicas, como a Fun-dação Ford, “que socorreu muitos professores cassados com bolsas no exterior”. A entidade, complemen-ta o professor, financiou a criação do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) – fórum de debate sobre os grandes problemas nacionais, reunindo sociólogos, cientistas políticos, filósofos, eco-nomistas e historiadores, muitos deles afastados da universidade pela ditadura militar – e da Asso-ciação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), dentre outros programas de pós-graduação.

Agência JB

Policiais ocupam a Faculdade Nacional de Filosofia - 1966.

Especial UFRJ 90 anos

Julho/Agosto 2010UFRJJornal da 8

Em perspectivaBra

sil

A discussão em torno dos avanços e limites das políticas públicas nas áreas social, ambiental e de saúde ganha cada vez mais destaque às vésperas das eleições presidenciais

Zope

Política

9Julho/Agosto 2010 UFRJJornal da

“Quando a

mídia fala em

déficit se refere

exclusivamente à

Previdência, não

levando em conta

que ela é parte da

Seguridade Social,

que inclui ainda

a Assistência

Social e a Saúde,

como prevê a

Constituição.”

No século XX, a criação das grandes metrópo-les e o aumento popu-

lacional amplificaram alguns pro-blemas históricos do Brasil, como a pobreza, e tornaram outros corri-queiros, como as doenças endêmi-cas. Em paralelo, a crise ambiental provocada por um padrão produ-tivo de alto consumo de recursos naturais, embora desconheça fron-teiras, se instalou preferencialmen-te nos chamados países periféricos.

Para enfrentar problemas de tal magnitude, verificou-se que o cres-cimento econômico, por si só, era insuficiente. As chamadas políticas de Estado, de largo alcance social, passaram a ser vistas por especia-listas e expressivos setores sociais como estratégicas para enfrentar os desafios típicos de sociedades desi-guais e atrasadas, como a brasileira. Às vésperas de uma acirrada eleição presidencial, o debate em relação às trajetórias e ao futuro de muitas de-las – como as políticas públicas so-cial, ambiental e de saúde – entrou na ordem do dia.

Um seguro restritoAo fazer um breve histórico das

políticas sociais no Brasil, Maria Lúcia Teixeira Werneck Vianna, coordenadora do Laboratório de Economia Política da Saúde (Leps) e decana, recentemente eleita, do Centro de Ciências Jurídicas e Eco-nômicas (CCJE) da UFRJ, aponta os anos 1930 como um marco. É a década em que foi promulgada a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) pelo presidente Getúlio Var-gas e surgiram os primeiros institu-tos de aposentadorias e pensões (os IAP) – que buscavam dar cobertura a categorias profissionais do merca-do formal, como bancários e comer-ciários, contra alguns riscos sociais.

Era um formato guiado pela ideia de seguro social, com cober-tura restrita aos associados contri-buintes de áreas urbanas. “Os traba-lhadores rurais não tinham acesso à legislação trabalhista e nem à legis-lação social. O seguro social obri-gatório já existia na Europa e era bastante conhecido. Esse sistema descentralizado perdura até 1966, quando, já sob a ditadura militar, os institutos foram unificados com a criação do Instituto Nacional da Previdência Social (INPS)”, sa-lienta Maria Lúcia Werneck, que é professora-adjunta do Instituto de Economia (IE) da UFRJ. O sistema incluía benefícios previdenciários, pensões e assistência médica, com contribuições de empregados e em-pregadores, o que, para a professo-ra, “era uma base de financiamento muito restrita” e permaneceu limi-tado aos trabalhadores com cartei-ra assinada.

Modelo inovadorMais tarde, durante o processo de re-

democratização do país, a questão social entra na agenda nacional e a Constituição, promulgada em 1988, introduz diversas inovações no modelo de assistência. Em primeiro lugar, cria o conceito de Segu-ridade Social, reconhecidamente mais abrangente do que o de seguro social, de acordo com a pes-quisadora do Leps.

A Seguridade So-cial inclui benefícios não contributivos e isenta de contribui-ção segmentos so-ciais antes excluídos, como os trabalhado-res rurais, que passa-ram a ter os benefí-cios garantidos pelo sistema. Em segundo lugar – prossegue a docente –, a Carta Magna estabelece a ideia de equidade, ou seja, todos os be-nefícios devem ser iguais, sem distinção, por exemplo, entre trabalhadores urba-nos e rurais. Estabe-leceu-se ainda que nenhum benefício pudesse ser inferior ao salário mínimo. “O conceito de segu-ridade social retira o caráter assistencialista das políticas so-ciais”, ressalta Maria Lúcia Werneck.

O truque do déficit previdenciárioAlém disso, a Constituição tam-

bém inovou do ponto de vista do financiamento, criando uma série de outras receitas sobre o fatura-mento das empresas – como a Con-tribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) e a Con-

tribuição Social sobre o Lucro Líqui-do (CSLL). Esses novos mecanismos, segundo Maria Lúcia Werneck, con-tribuíram para tornar – até hoje – o orçamento da Seguridade Social su-peravitário: “Quando a mídia fala em déficit se refere exclusivamente à Pre-vidência, não levando em conta que ela é parte da Seguridade Social, que

inclui ainda a As-sistência Social e a Saúde, como prevê a Constituição”.

De acordo com a pesquisadora, a Previdência é um benefício que exi-ge contribuição obrigatória para os trabalhadores do mercado formal. Mas há, também, os segurados es-peciais, os traba-lhadores do meio rural, que vivem em regime de eco-nomia familiar, cuja contribuição – uma taxa sobre a comercialização da sua parca produção – é irrisória para o sistema. Essas mas-sas rurais, segundo ela, são registradas no cadastro de se-gurados especiais

e recebem a chamada aposentadoria rural, citada como aposentadoria não contributiva, mas que é, na verdade, um benefício de seguridade. “Esse tem sido um programa de redistribuição de renda extremamente importante, uma vez que retira da miséria milhões de famílias e dinamiza as economias dos pequenos municípios no entorno ru-ral”, enfatiza a especialista em Políti-cas Sociais e Seguridade Social.

Nos anos seguintes à Constituição, foram aprovadas as leis orgânicas da Previdência, da Saúde e da Assistên-cia Social, separadamente, com estru-turas ministeriais e receitas que, pou-co a pouco, foram se especializando e diluindo o espírito da Seguridade So-cial. “Também as reformas da Previ-dência feitas por Fernando Henrique, em 1998, e, depois, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2003, consolidaram a ideia de que os bene-fícios previdenciários são financiados apenas pela contribuição de empre-gados e empregadores”, destaca Ma-ria Lúcia Werneck, acrescentando que o cálculo isolado fará o déficit aparecer, mas foi exatamente para evitá-lo que a Constituição ampliou a base de financiamento de toda a Seguridade Social – superavitária hoje em cerca de R$ 50 bilhões.

Ela ressalta, no entanto, que a re-forma privatizante não foi feita no Brasil, como ocorreu em outros 12 países da América, durante a déca-da de 1990, e destaca a importância da Seguridade Social como política de Estado. “Quando se fala em po-lítica social, ninguém lembra que a Previdência é uma política social. Associa-se política social apenas aos programas assistenciais, que são programas de governo, e não direitos constitucionais”, frisa a professora.

Saúde, direito de todosRoberto Medronho, professor

do Departamento de Medicina Pre-ventiva da Faculdade de Medicina (FM) e diretor do Instituto de Es-tudos em Saúde Coletiva (Iesc) da UFRJ – ao abordar especificamen-te a política de saúde no Brasil –, reforça a tese de que houve uma transição da simples assistência médica para a concepção de direi-to à saúde. Segundo ele, o modelo

Coryntho Baldez

Zope

Marco Fernandes

Para Roberto Medronho, sem a gestão ineficiente e o desvio de verbas, haveria um salto monumental na qualidade dos serviços ofertados pelo SUS.

Política

Julho/Agosto 2010UFRJJornal da 10 Política

assistencial era muito precário, ba-sicamente voltado para repor mão de obra para o trabalho. A partir da proposta de criação do Sistema Único de Saúde (SUS), consagrado pela Constituição de 1988, se cami-nhou para as metas de universali-zação do acesso e de equidade do atendimento. “Ou seja, não deveria haver mais distinção entre pesso-as que poderiam ser assistidas no serviço público e outras que não poderiam. Antigamente, quem não tinha emprego não tinha direito à assistência à saúde”, lembra o pro-fessor.

Com a Lei Orgânica 8.080, de 1990, que criou o SUS, passou-se a defender a implantação de políticas socioeconômicas que dessem conta da promoção, prevenção e recupe-ração da saúde da população, de acordo com o docente. Antes desse marco – ressalta Roberto Medro-nho – as campanhas de saúde no Brasil eram decididas na capital e implantadas de modo autoritário e uniforme em todos os municípios, sem levar em conta as especificida-des e a cultura de cada população. “Lembravam estratégias militares. Falava-se em campanhas, em guar-das sanitários, expressões utiliza-das nos quartéis”, destaca o espe-cialista.

Para ele, houve uma mudança estrutural no arcabouço dos órgãos de promoção, prevenção e recupe-ração da saúde, mas ainda persis-tem bolsões de resistência, ou seja, segmentos que consideram que as campanhas de saúde devem voltar a ser centralizadas. Roberto Me-dronho, ao contrário, defende de modo entusiástico a municipaliza-ção: “Hoje temos uma política de descentralização dos serviços de saúde, dando ao gestor municipal a responsabilidade de geri-la. É no município que a população pode exercer o seu poder de pressão e, mais do que isso, são os seus mo-radores que conhecem a realidade social e econômica em que vivem e podem sugerir as políticas mais adequadas a ela. A despeito de ain-da existirem viúvas do processo de centralização, certamente o SUS foi um avanço”.

Os entraves do SUSO diretor do Iesc, porém, está

atento aos problemas enfrentados pelo SUS. O primeiro, segundo Me-dronho, se relaciona à necessidade de adoção de políticas públicas de Estado, consistentes e de longo pra-zo, para a área da saúde. Políticas de governo, afirma, são precárias e estão sempre sob o risco de serem extintas em outras gestões. Ele dá um exemplo: “A política de erradi-cação do mosquito Aedes aegypti, transmissor da dengue, na década de 1950, foi uma política de Estado

que deu certo, mas que depois foi descontinuada. Também consegui-mos erradicar a varíola e a polio-mielite. O Brasil tem técnicos, na área da saúde, altamente compe-tentes e respeitados no mundo in-teiro. Essas ações são prejudicadas pela ‘politicagem’ e falta de fiscali-zação na alocação dos recursos pú-blicos”, critica o professor.

Roberto Medronho aponta ou-tros problemas graves enfrentados pelo SUS, como a gestão ineficiente e os desvios de verbas. Sem essas duas chagas, diz que haveria um salto monumental na qualidade dos serviços ofertados pelo Siste-ma, embora considere os recursos alocados ainda insuficientes para dar conta das demandas da po-pulação. Contudo, talvez o maior inimigo do SUS, segundo o pesqui-sador, seja a concepção de Estado mínimo e, no seu rastro, a política de terceirizações que se impôs a partir da década de 1990 e deixou no limbo o projeto de universalização da Saúde Pública.

A legislação do SUS – frisa o pro-fessor – é uma das mais avançadas, inclusivas e generosas do mundo. En-tretanto, diz que a sociedade precisa se mobilizar, aproveitando o período de eleição presidencial, para cobrar dos candidatos compromissos claros com o cumprimento da legislação. Para ele, é preciso evitar o que acon-teceu na década de 1990, quando, no governo de Fernando Collor, iniciou-se um processo de ataque ao setor público. “Colocaram em disponibilidade e forçaram a se aposentar milhares de profissionais de saúde de alta competência e de-dicados ao serviço público”, lembra Medronho. Essas medidas – prosse-gue – contaram com o forte lobby do setor privado, que existe até hoje e

opera com a lógica simples de ata-car o SUS porque ele cobre, teorica-mente, toda a população e, se fun-cionar de forma adequada e correta, ninguém pagará um plano de saúde privado.

Roberto Medronho se mostra preocupado com o programa de al-guns candidatos, que propõe a cria-ção de fundações públicas de direito privado – uma forma de privatizar a área da saúde. “Podemos retroce-der. Esse é um risco em relação aos avanços verificados ao longo dos últimos 20 anos”, alerta o docente.

A universidade e a sociedade, segundo Medronho, devem ficar atentas aos programas dos candida-tos para identificar quais impactos eles terão sobre o Sistema Único de

Saúde. “O SUS não é patrimônio de um candidato e nem de um presi-dente, mas do povo brasileiro. Não pode haver retrocesso. Ao contrá-rio, é preciso aprimorá-lo”, comple-ta o dirigente do Iesc.

Questão ambiental em cenaA política pública na área de

meio ambiente percorreu uma história diferente. O conjunto de questões hoje recorrentes nos dis-cursos de empresários, políticos e movimentos sociais começou a ganhar visibilidade apenas em 1970, na primeira Conferência Mundial de Meio Ambiente, realizada em Esto-colmo. Segundo Francisco de Assis Esteves, diretor do Núcleo em Eco-logia e Desenvolvimento Sócioam-biental de Macaé (Nupem) da UFRJ, desde o advento da Revolução Indus-trial, o modelo de produção capitalis-ta buscou reproduzir-se por meio da expansão do desenvolvimento econô-mico. Na Conferência de Estocolmo, aparece a ideia de desenvolvimento ambiental e se inaugura, então, uma autêntica “luta de boxe” entre os de-senvolvimentistas e os ambientalistas – “movimento social formado por ci-dadãos” –, explica o professor titular do Instituto de Biologia (IB) da UFRJ.

Francisco de Assis tem a convic-ção de que a grande maioria dos im-pactos ambientais no Brasil poderia ser evitada se fossem adotadas polí-ticas públicas calcadas no conheci-mento científico em Ecologia produ-zido internamente – “ocupamos o 18º lugar no ranking mundial”. O diretor do Nupem lembra que o Brasil detém enorme e invejável conhecimento em Mata Atlântica, Amazônia e em la-goas costeiras, por exemplo, mas não consegue preservar esses ecossiste-mas. Como exemplo de degradação ambiental, cita as lagoas da Barra da

Francisco Esteves: “Somente a sociedade organizada e consciente pode ditar a preservação, o manejo e a recuperação ambiental do país”.

Marco Fernandes

“Também as reformas da Previdência

feitas por Fernando Henrique, em

1998, e, depois, pelo presidente Luiz Inácio Lula

da Silva, em 2003, consolidaram a ideia de que os benefícios previdenciários são financiados apenas

pela contribuição de empregados e empregadores”.

11Julho/Agosto 2010 UFRJJornal da Política

Muito se discute, hoje, a cota de contribuição tanto das polí-ticas de Estado como dos programas assistenciais de governo, como o Bolsa Família, para a redução das desigualdades sociais. Entre 1995 e 2008, por exemplo, 12,8 milhões de pessoas saí-ram da condição de pobreza absoluta – medida pelo rendimento médio domiciliar per capita de até meio salário mínimo mensal –, de acordo com estudo divulgado no último dia 13 de julho pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). No caso da taxa de pobreza extrema – rendimento médio domiciliar per capita de até um quarto de salário mínimo mensal –, a pesquisa indica que 12,1 milhões de brasileiros saíram dessa condição no mesmo pe-ríodo.

Segundo o Ipea, quando se projeta no tempo a redução nas taxas de pobreza absoluta (3,1%) e extrema (2,1%) alcançada no período de melhor desempenho, entre 2003 e 2008, pode-se es-perar que em 2016 o Brasil tenha superado a miséria e reduzido a 4% a taxa nacional de pobreza absoluta.

Para Maria Lúcia Werneck, mesmo que de forma lenta, a redu-ção das desigualdades sociais tem, de fato, ocorrido nos últimos anos. Segundo ela, isso se deve, em parte, às políticas de trans-ferência de renda focalizadas, como o Bolsa Família, e às transfe-rências constitucionais, como as aposentadorias e pensões.

“A chamada aposentadoria rural é uma transferência de renda que vem funcionando e também contribui para esses resultados”, frisa a professora. A pesquisadora relaciona, ainda, outros fatores que vêm melhorando os indicadores sociais, como o aumento do salário mínimo – “particularmente no governo Lula” – e o desem-penho da economia em anos recentes, que permitiu a criação de novos empregos. Já em relação aos programas assistenciais, as-sinala que são interessantes do ponto de vista emergencial, mas não alteram a estrutura das condições que produzem a desigual-dade.

Tijuca. “Quem entrar naquelas águas pode contrair doenças graves por causa do esgoto que é despejado lá, diuturnamente. No entanto, aquele é um dos bairros mais valorizados do Rio de Janeiro do ponto de vista da especulação imobiliária. E isso foi proporcionado exatamente pela bele-za daqueles ambientes”, afirma o pes-quisador.

Na Amazônia, Francisco Este-ves aponta a sanha exploratória da madeira como a principal vilã do desmatamento. No mundo – afirma o pesquisador – há escassez de ma-deira e o único país que detém re-servas consideráveis é o Brasil. “O problema é que não investimos suficientemente na geração de conhecimento para promover a reprodução em massa de mudas e espécies importantes, como o mogno e outras madeiras de lei, cuja extração é proibida pela legislação ambiental”, subli-nha o professor.

Outro problema am-biental gravíssimo, segun-do o diretor do Nupem, é a retirada da vegetação do Cerrado e da Região Amazônica para a criação de gado – “que vai garan-tir a nossa picanha de fim de semana e a produção de hambúrgueres para aten-der à demanda de fast-foods no Brasil” – e também para a produção de soja. “Quando o Brasil registra no Produto Interno Bruto (PIB) um grande per-centual resultante da exportação de grãos, sobretudo soja, isso pode ter um custo ambiental imenso”, afirma o professor. Segundo ele, estudos mos-tram que, se um chinês passar a comer um ovo a mais por dia, será preciso devastar toda a floresta amazônica a fim de produzir soja para a ração de aves na China, que importa do Brasil 90% do que consome do grão.

Avanços recentesAo comentar a legislação ambien-

tal brasileira, Francisco Esteves afir-ma que houve avanços inquestioná-veis nos últimos anos, consagrados tanto na Constituição Federal de 1988 como em muitas Constituições esta-duais. No entanto, segundo o diretor do Nupem, a estrutura pública para a aplicação dessa legislação é extrema-mente frágil, sobretudo em âmbito local. “Os gestores municipais devem se conscientizar que a questão am-biental diz respeito a toda a socieda-de. Hoje, ninguém precisa conhecer o conceito de sustentabilidade para sentir a falta dela em seu dia a dia”, frisa o pesquisador. Mesmo em ou-tros níveis de governo – acrescenta – muitos gestores responsáveis pelas políticas públicas sequer conhecem a sua área de atuação.

No âmbito federal, Francisco Es-teves aponta como um avanço a cria-

ção, no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, de instrumentos como o Ministério do Meio Ambiente e o Instituto Chico Mendes de Preser-vação Ambiental (ICMBio) – “voltado para a gestão das unidades de conservação, um depositário

de enorme potencial biotecnológi-co”. Mas também identifica proble-mas na execução das políticas para

Francisco Esteves: “Somente a sociedade organizada e consciente pode ditar a preservação, o manejo e a recuperação ambiental do país”.

o setor. Embora enalteça a abertura de concursos para órgãos federais da área ambiental, diz que ainda faltam escritórios do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e do

ICMBio em vários pontos do ter-ritório brasileiro para fiscalizar a aplicação das leis brasileiras, que considera das mais avançadas do mundo.

Outro obstáculo para a im-plantação de políticas públicas de

longo prazo na área ambiental, de acordo com o docente, é o “eterno conflito” existente nas sociedades pe-riféricas entre desenvolvimento eco-nômico e preservação ambiental. Ele dá como exemplo a exploração de minério de ferro para a exportação, commodity que representa expressi-va parcela do PIB. “Essa é uma fonte

de conflito porque o minério brasilei-ro está embaixo de florestas”, assinala Francisco Esteves. O Brasil, segundo

o pesquisador, é o se-gundo maior pro-dutor mundial de bauxita, minério do qual se extrai o alu-mínio, cujo uso vem crescendo de modo exponencial: “O pro-blema é que 90% da

bauxita nacional estão sob a floresta amazônica”.No entanto, a lei brasi-

leira não é omissa ao tratar da exploração de alguns miné-

rios, como a bauxita. Ela manda o empreendedor reflorestar a área desmatada para fins de extração e isso, em geral, tem acontecido. “O Ministério do Meio Ambiente tem pequenas estruturas nos empreen-dimentos para fiscalizá-los diaria-mente”, afirma o diretor do Nupem. O problema no Brasil – continua – são os pequenos empreendedo-res espalhados pela floresta e que possuem negócios ilegais de extra-ção de madeiras ou dedicados ao garimpo.

Ao comentar as alternativas em disputa no pleito presidencial, Francisco Esteves afirma que, no discurso, as propostas dos candi-datos para a área ambiental são, no geral, boas. “O que temos que fazer é preparar a sociedade para cobrar no período pós-eleição a aplicação das leis. Somente a sociedade or-ganizada e consciente pode ditar a preservação, o manejo e a recupe-ração ambiental do país”, destaca o professor. Não se pode esperar de nenhum dos candidatos, segundo ele, que aplique a legislação em sua plenitude, dado o gigantesco lobby do grande capital para afrouxar as regras para a liberação de empre-endimentos com riscos ambientais. Na avaliação de Francisco de Assis, está nas mãos da sociedade brasi-leira a resistência a essas pressões.

Julho/Agosto 2010UFRJJornal da 12

O processo de produção do conhecimento de Wiles, que não esteve submeti-

do a pressões de prazo, exigências de publicação em revistas acadêmicas ou questionamentos quanto ao impacto social imediato do trabalho científico, parece fazer parte de um cenário bem diferente do cotidiano dos pesquisado-res brasileiros. Isso porque a avaliação da produtividade acadêmica pelos órgãos de incentivo tende a valorizar critérios quantitativos, incentivando estudos que possam dar retorno em curto prazo para a sociedade. Tal orientação diminui o potencial de projetos capazes de fazer avançar as fronteiras do conhecimento.

Mas, afinal, como conduzir um pro-cesso de avaliação menos pragmático e que leve em conta o fator qualitativo? Como é possível afirmar, numa avalia-ção de desempenho, que um pesquisa-dor com dez artigos publicados durante

Qualificando o conhecimento

Professores e pesquisadores debatem valorização de critérios quantitativos na avaliação da produtividade acadêmica.

Bruno Franco e Márcio Castilho

um ano está contribuindo mais para o desenvolvimento científico do que aque-le que publicou apenas um paper, mas que, através dele, conseguiu gerar paten-tes para o país?

Matéria recente publicada em 11/07/2010 no jornal O Globo, intitulada “Brasil produz pouca inovação tecno-lógica e perde mercado”, mostra que o país está bem atrás no ranking mundial de patentes em relação a outros países em desenvolvimento, como China e Ín-dia. Em 1994 foi solicitado registro de 60 patentes no escritório americano de propriedade intelectual (USPTO, na si-gla em inglês). Embora, no ano passado, o número tenha aumentado para 106 pedidos, a produção continuou repre-sentando 0,06% do total mundial. No mesmo período, a China saltou de uma participação de 0,05% para 0,99%, e a Ín-dia, de 0,03% para 0,41%.

Luiz Bevilacqua, professor emérito

do Programa de Engenharia Civil do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe) da UFRJ, afirma ser importante a realização de pesquisas para aplicação em curto prazo, mas defende um equi-líbrio com outros estudos que se dedi-quem ao avanço do conhecimento, sem necessidade de gerar um impacto socio-econômico imediato. “O investimento do Brasil em pesquisa está crescendo. Com isso, a opinião pública, com razão, quer saber para qual finalidade as uni-versidades estão gastando esse dinheiro. Certamente não há dúvida acerca da necessidade de que uma parte das pes-quisas seja dedicada para o desenvol-vimento em curto prazo, mas tem que permanecer, se a gente não quiser perder potencialidade para o futuro, uma parte da pesquisa básica que não tenha essa visibilidade. A universidade tem que dar satisfação dizendo que o conhecimento

tem um valor intrínseco em si mesmo”, afirma o pesquisador.

Bevilacqua defende novos meca-nismos de avaliação da produtividade acadêmica. A discussão quantidade versus qualidade passa necessariamen-te pelo papel assumido pelos órgãos de apoio à pesquisa, como a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecno-lógico (CNPq). O professor da Coppe considera a importância de dois níveis de avaliação: “A Capes, a meu ver, deve se restringir à avaliação da produção de um departamento, de um programa. A avaliação da produção dos docentes para progressão de carreira cabe ao de-partamento da universidade, que tem condições de olhar com uma lente mais focada, mais dedicada ao próprio grupo, prevalecendo a qualidade. A Capes tem que passar agora para um patamar de

Por mais de três séculos, matemáticos lançaram-se ao desafio de tentar demonstrar o teorema de Fermat, uma variação do teorema de Pitágoras (“Em todo triângulo retângulo, a soma do quadrado dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa”). A missão de resolver aquele que era considerado o maior enigma de Matemática somente foi cumprida, 356 anos depois, pelo britânico Andrew Wiles, professor da Universidade de Princeton (EUA). Para demonstrar o teorema, foram sete anos de árdua pesquisa,

cálculos complexos e diálogo com outras disciplinas. Tanta dedicação foi reconhecida em 1993, quando o matemático surpreendeu o mundo ao anunciar a demonstração. A saga de Andrew Wiles está registrada

no livro O último teorema de Fermat (Record, 1998), de autoria de Simon Singh.

Desempenho acadêmico

13Julho/Agosto 2010 UFRJJornal da

avaliação de programas num nível ma-cro, e não um somatório de quanto cada pesquisador produziu. Eu gostaria que eles perguntassem: o que vocês fizeram de melhor como programa? Você pode dizer que tem cinco produções com maior impacto pelo número de citações ou tantas patentes que foram registradas e estão sendo utilizadas na indústria. Isso daria o valor qualitativo ao departamen-to como um todo”, explica Bevilacqua.

Avaliação por paresA avaliação feita por instâncias supe-

riores, como a Capes e o CNPq, não é, contudo, autoritária e alheia à universi-dade. Como destaca Sandra Maria Feli-ciano de Oliveira e Azevedo, professora do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho (IBCCF) e superintendente-geral de Pesquisa da Pró-reitoria de Pesqui-sa e Pós-graduação (PR-2) da UFRJ, os acadêmicos são avaliados por seus pa-res. “Ninguém da Engenharia vai avaliar curso de Ciências Humanas. Cada área se autoavalia. É muito mais uma briga intramuros. Um número expressivo de docentes da UFRJ participa das avalia-ções da Capes. Talvez o que esteja faltan-do seja um diálogo mais claro entre as partes”, relativiza a professora.

Sandra vê méritos no modelo de ava-liação acadêmica vigente no Brasil, ape-sar das imperfeições. “A gente tem difi-culdade de admitir que faz alguma coisa melhor do que os outros. Mas a nossa pós-graduação, em termos de modelo de gestão, é referência no mundo. Isso não significa que não existam pontos que não possam ser aperfeiçoados. O fi-nanciamento para a atividade acadêmica é baseado cada vez mais em quanto você fez e a pressão por isso tem aumentado no mundo todo. Mas é preciso, sim, um modelo pelo qual sejamos cobrados tan-to pela qualidade quanto pela quantida-de”, avalia a superintendente da PR-2.

José Murilo de Carvalho, historiador e professor titular aposentado do Insti-tuto de Filosofia e Ciências Sociais (Ifcs) da UFRJ, afirma que o instrumentalismo das políticas de Ciência e Tecnologia já esteve a serviço do desenvolvimento econômico e agora apresenta uma fina-lidade mais focalizada na questão social. “Houve uma reação ao que se chamou excesso de quantificação, mas a avalia-ção quantitativa, sobretudo da Capes, somente fez crescer, porque, natural-mente, ela é mais fácil de fazer do que a qualitativa”, observa Murilo de Carvalho, para quem a discussão acerca da ava-liação da produtividade acadêmica não está presente apenas no Brasil. A adoção de critérios universais também vem sen-do debatida em outros países.

Formação de doutoresEmbora o país não tenha avançado

significativamente em relação ao nú-mero de patentes registradas, é cada vez maior o número de mestres e doutores formados nas universidades brasileiras. Esse indicador mostra, segundo Luiz Be-vilacqua, que não há relação direta entre

quantidade de pesquisadores e qualida-de das publicações. “Avalio que essa dis-cussão tenha que ser vista com cuidado. Quando você faz um doutorado, é preci-so que haja um compromisso com a sua carreira. Não é simplesmente um título. Suponha que o Brasil comece a formar mais doutores que os Estados Unidos. O que isso significa? Que as nossas teses são tão boas como as de lá ou da Europa? Se elas forem, ótimo. Mas se for apenas

começam a valorizar esse diploma. Só que não podemos ter uma ‘epidemia’ de doutorado. É preciso que haja um sentido, que o doutorado signifique con-tribuição relevante para o avanço do co-nhecimento. A remuneração não pode ficar associada a títulos. Garanto que, se a remuneração fosse associada à compe-tência, muita gente não faria doutorado”, argumenta Bevilacqua.

As universidades públicas baseiam suas atividades no tripé Ensino-Pesqui-sa-Extensão; assim, a avaliação de seu desempenho não deve se ater somente aos números de produção acadêmica. É o que observa Sandra Azevedo. “Somos uma universidade com 105 cursos de pós-graduação. Nosso principal produto é a formação de recursos humanos. Isso também não é indicador de sucesso de um curso? Estamos formando apenas para aumentar o número de doutores no país ou eles estão conquistando posi-ções importantes, tornando-se líderes de pesquisas? Esse é um desafio que preci-samos enfrentar: conhecer o destino de nossos egressos”, analisa a professora.

Competição versus solidariedadeO modelo de avaliação acadêmica

vigente engendra outra consequência adversa, na avaliação do sociólogo Wal-ter Praxedes, professor da Universida-de Estadual de Maringá – UEM (PR): a burocratização da atividade docente. Segundo ele, cada instituição tem o seu histórico de atividades que não deveria justificar a ausência de um professor da sala de aula, do laboratório e do atendi-mento aos estudantes. As atividades ad-ministrativas incluem, afirma Praxedes, a participação em comissões de sindi-cância com reuniões puramente formais e o preenchimento de relatórios desne-cessários que jamais serão lidos, servin-do apenas para o controle e a vigilância do trabalho intelectual.

Na opinião de Sandra Azevedo, um mecanismo de avaliação para graduação

deveria conferir benefícios aos cursos que mostrassem qualidade. “Devemos trabalhar com mérito, e não com puni-ção. O profissional deve ser estimulado a melhorar. Há colegas que, quando vão dar aulas para graduação, assumem um ar de ‘poxa vida, hoje eu tenho que dar aula’. No contracheque está escrito ‘pro-fessor’. Na universidade, todo pesquisa-dor é, antes de tudo, um professor. Dar aula é o mínimo que deve fazer”, critica a professora.

Outra particularidade controversa do sistema vigente é o estímulo à compe-titividade. Ainda que isso possa motivar algumas pessoas a buscar o melhor de-sempenho, encarar os colegas como ad-versários por uma posição de prestígio, prossegue Walter Praxedes, pode levar à destruição da solidariedade necessária para a construção de conhecimento.

Para ele, os critérios dos órgãos de financiamento à pesquisa levam à des-valorização dos educadores. O sociólogo cita que, na UEM-PR, a publicação de um artigo científico em veículo indexa-do nacional tem o mesmo valor que le-cionar 400 horas de aulas.

Como alerta Maria Lúcia Maciel, professora do Departamento de Ciên-cia Política do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (Ifcs) e coordenadora do Laboratório Interdisciplinar sobre Informação e Conhecimento (Liinc) da UFRJ, ensino, extensão e divulgação ao público leigo não conferem vantagens na acirrada competição por recursos. Assim, muitos professores tendem a se dedicar ao “que conta”. Ela defende mudanças nos critérios de pontuação dos pesquisadores e dos programas de pós-graduação e uma ampla divulgação nos meios de comunicação para que a sociedade se aproprie dos resultados da produção acadêmica. “Os editais para fi-nanciamento à pesquisa deveriam exigir, como condição sine qua non, a divulga-ção de resultados para o grande público“, sugere a professora.

Sandra Azeedo

Bevilacqua

Para Sandra Azevedo, a avaliação de desempenho da universidade não deve se ater somente aos números da produção acadêmica.

“Os editais para

financiamento à pesquisa deveriam

exigir, como condição sine

qua non, a divulgação

de resultados para o grande

público.”

uma questão de número, não faz sentido. O objetivo não é formarmos mais pesso-as, mas termos melhores teses”, ressalta o professor.

Para ele, há uma tendência no Brasil de valorizar mais o diploma e menos a competência e a vocação, pois o título confere vantagens na carreira em termos de remuneração. “As empresas também

Marco Fernandes

Desempenho acadêmico

UFRJJornal da 14 Julho/Agosto 2010Ensino

Aline Durães

Jornal da UFRJ: O Ideb é um mecanis-mo efetivamente capaz de avaliar o ensino brasileiro?

Marcelo Corrêa e Castro: O Ideb é apenas um índice, ainda em desenvolvi-mento. De forma alguma, pode ser trata-do como algo além disso. Como instru-mento de avaliação, se ajusta mais à lógi-ca economicista, empresarial e mercado-lógica que fundamenta as atuais políticas de educação, ainda que revestidas de um discurso de universalização do acesso à educação e de mobilidade social.

Jornal da UFRJ: O Ideb constatou que o Ensino Médio no país avançou apenas 0,1 ponto no último ano. O Rio de Janeiro obteve a segunda pior marca, ficando na frente apenas do Piauí. O que explicaria o resultado do Estado?

Marcelo Corrêa e Castro: As indicações do Ideb estão longe de constituir mais do que um elemento, dentre tantos possíveis, para a análise da situação do ensino públi-co. O problema desse ensino, que se cons-trói historicamente ao longo dos últimos 50 anos, tem a ver, principalmente, com dois aspectos: o desmonte das condições de trabalho nos espaços públicos e a sua sectarização. Com isso, as escolas públicas deixam de ser o espaço da democratiza-

ção, pela via da educação do conjunto da sociedade, para se tornarem guetos de desassistidos. As escolas públicas que não sucumbiram a esses dois aspectos das políticas de governo – as federais, principalmente – continuam a desenvol-ver um trabalho de excelente qualidade, quer na formação geral, quer na prepara-ção para as etapas posteriores do proces-so de escolarização. Por estranho que pa-reça, parte expressiva dos problemas das escolas públicas tem relação direta com o fato de que deixaram de ser públicas no sentido mais amplo do conceito.

Jornal da UFRJ: A aprovação automá-tica pode ser encarada como responsável por esse baixo desempenho?

Marcelo Corrêa e Castro: Creio que a aprovação automática serve facilmente de bode expiatório no caso do processo de execração a que tem sido submetida a escola pública. Não conheço estudos que comparem consistentemente os resulta-dos do sistema de avaliação que inclua a promoção automática com outros resul-tados. Por isso, não arriscaria um juízo específico sobre ela. Estou convencido, porém, de que usar índices de aprova-ção/retenção/evasão como orientadores de políticas é mais fácil do que avaliar propriamente a educação desenvolvida

pelas escolas. Os números, sabemos to-dos, permitem muitas leituras, mas se prestam mais facilmente à construção de verdades que convenham aos dirigen-tes. Diminuir ou aumentar índices não constitui sinal inequívoco de avanço ou de retrocesso.

Jornal da UFRJ: Qual a sua avaliação sobre o currículo nas escolas públicas de Ensino Médio?

Marcelo Corrêa e Castro: O campo de currículo está entre os mais estudados pela academia nas décadas recentes. Ampliou-se muito a discussão acerca de currículo, bem como os conceitos que ela envolve. Nos anos 1990, houve um investimento forte do Governo Federal nessa área, culminando com a edição de diretrizes curriculares e parâmetros nacionais. Esse investimento, contudo, além de integrar um conjunto de me-didas mais ligadas ao controle do que ao desenvolvimento da educação pú-blica, não veio acompanhado de ações voltadas para melhorar as condições de trabalho dos educadores. Dessa forma, os currículos continuam inadequados e os sujeitos das escolas, por mais que reconheçam isso e queiram mudar a si-tuação, não dispõem de condições para fazê-lo.

Jornal da UFRJ: O resultado do Ideb serve como gancho para discutirmos a questão das licenciaturas e o problema da falta de professores em determinadas disciplinas no Ensino Médio, como Ma-temática. Nesse sentido, a universidade tem um papel importante para melho-rar o rendimento nesse nível de Ensino. Qual deve ser a atuação da universidade?Marcelo Corrêa e Castro: A questão da formação com qualidade não depende de ganchos: é uma prioridade! E deveria ser o principal alvo das ações das uni-versidades públicas em prol do ensino público: formar bons professores, capa-zes de agir como reconstrutores de uma formação cidadã nos espaços em que atuam.

Jornal da UFRJ: Como atrair os jovens para as licenciaturas? Qual o modelo ideal de política pública para formação de professores nos níveis Fundamental e Médio?

Marcelo Corrêa e Castro: A melhor for-ma de atrair jovens para as licenciaturas é desenvolver políticas agressivas de valo-rização do curso. Já é hora de tratarmos as licenciaturas como cursos de primeira linha, que formam profissionais estrategi-camente fundamentais para a democrati-zação e o desenvolvimento do Brasil.

O estado do Rio de Janeiro possui o segundo pior Ensino Médio do Brasil, ganhando apenas do Piauí. É o que constatou o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), divulgado, em

julho, pelo Ministério da Educação. O ensino fluminense não alcançou o nú-mero de pontos considerado ideal pela avaliação.

O Rio de Janeiro também amargou resultados ruins no Ensino Funda-mental. Na avaliação entre 1ª e 4ª séries, o estado aparece no 18º lugar; no ranking das turmas entre 5ª e 8ª séries, ocupa a 21ª posição. O Ideb eviden-ciou ainda certa estagnação do Ensino Médio brasileiro, que, nos últimos dois anos, avançou apenas 0,1 ponto.

Criado em 2007, o Ideb visa avaliar a educação através da análise do flu-

xo escolar e das médias de desempenho dos alunos nas avaliações escolares. Mas nem todos os especialistas acreditam que o mecanismo seja capaz de avaliar, de fato, o ensino. Para Marcelo Corrêa e Castro, educador professor da Faculdade da Faculdade de Educação (FE) e decano do Centro de Filo-sofia e Ciências Humanas (CFHC) da UFRJ, o Ideb funciona para atender à “lógica economicista, empresarial e mercadológica que fundamenta as atuais políticas de educação”.

Em entrevista ao Jornal da UFRJ, o professor opina, também, acerca dos resultados do estado do Rio de Janeiro no exame, comenta sobre as principais dificuldades existentes hoje na educação brasileira e pontua a importância da universidade para reverter esse quadro.

15Julho/Agosto 2010 UFRJJornal da

Entrevista

Entrevista

Marco Fernandes

Maria Paula Cerqueira Gomes

EntrevistaO reconhecimento de que o hospital

psiquiátrico é incapaz de “apaziguar” a loucura foi o primeiro passo para mudar a

história do tratamento da doença mental. Do espaço de confinamento do manicômio – o

primeiro surgiu em 1247, em Londres – às redes públicas de cuidado psicossocial, já no

século XX, a transformação foi radical.No mundo inteiro, a luta antimanicomial ganhou impulso na segunda metade dos

anos 1960 e teve imensa repercussão no Brasil. “Vários movimentos passaram

a defender como inadiável o fim da centralidade do hospital psiquiátrico como

única oferta de tratamento para os doentes mentais”, afirma Maria Paula Cerqueira

Gomes, professora do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Faculdade

de Medicina (FM), localizada no Instituto de Psiquiatria (Ipub) da UFRJ.

Desde a I Conferência de Saúde Mental, realizada em 1987, as políticas para o setor

no Brasil vêm contemplando um conjunto de estratégias que reduziram drasticamente a

internação em manicômios, revela a doutora em Psiquiatria pela UFRJ e coordenadora da recém-criada Residência Multiprofissional de

Saúde Mental do Ipub.Nesta entrevista, Maria Paula Cerqueira

opina acerca da experiência dos Centros de Atenção Psicossociais (CAP) – uma rede que não para de crescer no país – e também co-

menta os resultados da IV Conferência de Saúde Mental, realizada de 27 a 30 de junho,

em Brasília, que reforçou a necessidade de políticas intersetoriais ativas para o cuidado

da doença mental.

UFRJJornal da 16 Entrevista

Loucura:Coryntho Baldez

Jornal da UFRJ: Quando surgiu o re-conhecimento da loucura como doença mental?

Maria Paula Cerqueira: Essa é uma his-tória longa. Antes do reconhecimento da loucura como doença mental, que se dá na passagem do século XVIII para o XIX, ela era interpretada de vá-rias outras formas, inclusive religiosa, e o louco tinha um papel comum, era um ser que pertencia à sociedade. No momento em que a loucura é reconhe-cida como doença mental, é necessária a construção de um conjunto de saberes para intervir nessa manifestação. Quem descreveu muito bem essa passagem foi Michel Foucault, em seu livro A histó-ria da loucura. Começam a ser criados, então, os grandes dispositivos manico-miais, que vão receber esses doentes e tratá-los.

Jornal da UFRJ: Quando surgiu o pri-meiro manicômio?

Maria Paula Cerqueira: O Bethlem Royal Hospital foi o primeiro hospi-tal psiquiátrico, fundado em 1247, em Londres. Depois, especialmente a partir do momento em que o fenômeno da loucura é visto como doença mental, constrói-se todo um aparato asilar para receber essas pessoas, fundado em uma série de pressupostos tidos como verda-de. Além de separá-las da sociedade, foi pensada uma série de técnicas para apa-ziguar suas afecções, suas emoções. Era o chamado “tratamento moral”.

Jornal da UFRJ: E em que consistia esse tratamento?

Maria Paula Cerqueira: Lima Barreto foi interno do primeiro hospício brasi-leiro, que funcionava no Palácio Univer-sitário, e escreveu uma peça chamada O cemitério dos vivos, encenada recen-temente no campus da Praia Vermelha. Nela, são relatados alguns tratamentos, como as duchas e o uso de instrumentos que, à luz da modernidade, parecem de tortura, mas que tinham uma significa-ção: o de fazer intervenções morais para acalmar o ânimo daquelas pessoas.

Jornal da UFRJ: E o saber psiquiátrico, em qual momento surge?

Maria Paula Cerqueira: Ele surge exa-tamente a partir desse momento em que a loucura é vista como doença mental. A Psiquiatria surge então nesse âmbito da Medicina como uma especialidade mé-dica que vai construir o seu corpo teóri-co com esse objeto. Isso acontece em fins do século XVIII. Aí há outra discussão importante. Uma questão é o surgimen-to dos primeiros hospícios; outra, a dos grandes hospitais. O hospital como um aparato tecnológico do saber médico não nasce assim. Inicialmente, é um lugar de depósito, de recolhimento de indigentes, mendigos, loucos, os chamados errantes da sociedade. Quem os operava no iní-cio? Não eram os médicos, mas as san-tas casas, as irmãs de caridade. Somente quando aparece a figura do médico é que se constrói toda a organização tecnológi-

ca do hospital como uma casa de ciência, de produção de cuidado. Depois, have-rá uma separação e o manicômio surge como local de tratamento moral para parte dessa população, que são os loucos.

Jornal da UFRJ: Foi o médico francês Pinel (Philippe Pinel, 1745-1826) quem primeiro formulou essa concepção?

Maria Paula Cerqueira: Sim, foi ele quem propôs, no século XVIII, essa construção do asilo, do hospital psiqui-átrico, como lugar do que chamou de tratamento moral, englobando uma sé-rie de medidas. E quando ele constrói essa teoria estava imbuído das melhores intenções possíveis. Mas o que aconte-ce ao longo desse processo? No mundo inteiro, a intenção primeira de trans-formá-los em locais para isolar, estudar, apaziguar e tratar a loucura se frustrou. Os manicômios, ao lado dos conventos e prisões, passaram a ser o que Erving Go-ffman chamou de instituições totais, ou seja, espaços de confinamento, isolados da sociedade.

Jornal da UFRJ: Foi apenas no século XX que o papel dos asilos começou a ser ques-tionado?

Maria Paula Cerqueira: Foi a partir da segunda metade dos anos 1960. Nessa época, se tem, no contexto internacional, um conjunto de pensadores e de novas práticas que, mesmo partindo de visões teóricas distintas, tem um eixo de pen-samento em comum, que é o reconhe-

cimento de que o hospital psiquiátrico, por si só, não é capaz de prover um trata-mento adequado. Ele é considerado um lugar de alto custo e ineficaz porque o seu maior efeito é a retirada, em gran-de escala, dos indivíduos do convívio social. Vários movimentos passam, então, a defender como inadiável o fim da centralidade do manicômio como única oferta de tratamento ou cuidado para essas pessoas, embora eles tenham diferenças importantes.

Jornal da UFRJ: Cite algumas experi-ências.

Maria Paula Cerqueira: Vou citar duas, a norte-americana e a italiana (esta mais conhecida no Brasil), que ocorrem na mesma época, mas são muito diferentes. A experiência nor-te-americana faz o que chamamos de processo de “desinstitucionalização saneadora”. O seu eixo de sustentação gira em torno da relação custo-bene-fício. Constata-se que o manicômio tem alto custo e é ineficaz, e, a partir desse diagnóstico, cria-se uma rede, não para substituí-lo, mas para racio-nalizar o seu funcionamento. A racio-nalidade econômica foi a força motriz para a implantação dessa experiência. Mas o que aconteceu? Tivemos aquilo que muitos críticos da reforma cha-maram de “desospitalização”. Houve o fechamento de hospitais, mas as pessoas não passaram a ter uma rede de atenção efetiva e ficavam nas ruas. Isso aconteceu nos Estados Unidos.

caem os muros

Marco Fernandes

Julho/Agosto 2010

Entrevista UFRJJornal da 17

Jornal da UFRJ: E como foi a experiência italiana?

Maria Paula Cerqueira: É uma expe-riência radical de desconstrução, por dentro, do hospital psiquiátrico. A par-tir daí, se constrói uma rede de atenção psicossocial de base comunitária. É uma rede de cuidados, não um dispositivo, que é colocada à disposição para o con-junto dessa população. É algo muito im-portante porque o fenômeno da doença mental é muito radical. Para enfrentá-lo, é necessária uma rede consistente e in-tensa de cuidados.

Jornal da UFRJ: No caso brasileiro, o mo-vimento pela reforma psiquiátrica sofreu qual tipo de influência?

Maria Paula Cerqueira: O Brasil foi fortemente influenciado pela experiên-cia italiana. E também pela experiência da Psiquiatria de Setor francesa, que faz um trabalho de reorganização e de hu-manização da assistência, mas o hospital psiquiátrico continua lá. É diferente da “desospitalização saneadora”, que é cen-trada na racionalidade econômica. Essas foram as duas grandes influências na matriz ideológica brasileira.

Jornal da UFRJ: Antes, quais eram as principais características do tratamento da doença mental no Brasil?

Maria Paula Cerqueira: Qual a caracte-rística da Psiquiatria brasileira entre 1960 e 1980, em que não tínhamos o Sistema Único de Saúde (SUS)? A assistência era essencialmente centrada nos hospitais psiquiátricos. Em sua maior parte, eram instituições privadas cujos serviços eram contratados pelo Instituto Nacional de Previdência Social (INPS). Isso formou um grande parque manicomial no Bra-sil. Essas três décadas foram de expansão de leitos no setor privado. A oferta em nível ambulatorial era mínima e não ha-via continuidade. Portanto, o Estado não conseguia formular outras propostas de intervenção que não a internação.

Jornal da UFRJ: Quando isso começa a mudar?

Maria Paula Cerqueira: No final da ditadura, entre meados das décadas de 1970 e 1980, havia uma efervescência de movimentos sociais e de luta pela rede-mocratização do país. O cientista social Wanderley Guilherme dos Santos tem um conceito do qual eu gosto muito. Ele afirma que saímos de um sistema de cidadania regulada, pelo qual tinham acesso apenas às caixas de aposentadoria e pensões as pessoas que trabalhavam, para um sistema de cidadania plena, em que todos podem ter acesso à saúde, à educação, entre outros direitos. É nessa época que surge o movimento da Refor-ma Psiquiátrica, que tem a sua especifici-dade, mas sempre caminhou ao lado do movimento pela Reforma Sanitária, no campo da Saúde. Especialmente a partir

de 1980, tem início um intenso debate acerca das ideias de autores que tratam das questões da doença mental: Michel Foucault, Gilles Deleuze e Félix Guattari. Também foi criado, na mesma época, o movimento dos trabalhadores em Saúde Mental, cujo lema é “Por uma socieda-de sem manicômio”. Esse foi o primeiro grande marco da Reforma Psiquiátrica brasileira.

Jornal da UFRJ: E depois, quais foram os eventos mais importantes?

Maria Paula Cerqueira: A criação da-quele movimento culminou, em 1987, na I Conferência Nacional de Saúde Mental. Um ano antes foi realizada a VIII Conferência Nacional de Saúde, que criou a principal base teórica do que hoje é o Sistema Único de Saúde. Nessa conferência se reconheceu que a saúde é um direito de todos e dever do Estado, e o movimento pela Saúde Mental teve participação expressiva.

Jornal da UFRJ: Qual era a principal bandeira do movimento antimanicomial naquela conferência?

Maria Paula Cerqueira: A afirmação de que era inadiável a restruturação da as-sistência psiquiátrica denunciava que a oferta do dispositivo de internação tinha alto custo e era absolutamente ineficaz. Defendia-se que para fazer frente à ques-tão da doença mental era preciso montar

um conjunto de estratégias para compor uma rede de atenção psicossocial de base comunitária.

Jornal da UFRJ: Essa concepção foi aco-lhida pela Constituição de 1988?

Maria Paula Cerqueira: A promulgação da Constituição é um marco importan-te nesta luta. Não se pode desconectar a política de Saúde Mental da política so-cial. Ela conseguiu ao longo do tempo, com todas as resistências, se manter na mesma direção em defesa de uma políti-ca pública eficiente no setor. Não houve descontinuidades ou interrupções. Essa política pode ter sido desacelerada, mas não interrompida. Desde a I Conferên-cia de Saúde Mental, as políticas para o setor, com o eixo da Reforma Psiquiátri-ca, estão sendo aprofundadas. A Cons-tituição brasileira reforça os direitos sociais, como o direito à saúde, que são inalienáveis.

Jornal da UFRJ: Depois da Constituição, a reforma psiquiátrica brasileira tomou impulso?

Maria Paula Cerqueira: Como era o desenho das experiências alternativas que tínhamos em 1989? Eram pontuais, por mais que o movimento pela reforma fosse intenso. No Rio de Janeiro, exis-tiam comunidades terapêuticas no Hos-pital Pinel, no Engenho de Dentro, na Colônia Juliano Moreira. Também em

São Paulo e em Minas Gerais existiam algumas iniciativas. Essas experiências, por si sós, já mostravam a potência da implantação desses dispositivos. Mas o que acontece em 1989, um ano eleitoral, é que muitas das novas gestões nos mu-nicípios passam a sustentar um projeto político claro de defesa de políticas de saúde como um direito social, sem o viés da racionalidade custo-benefício. Começam então a ser criados os pro-gramas municipais de Saúde Mental, que atingem o âmbito municipal, e, por conseguinte, uma rede de atenção. Isso é muito interessante e não para mais. Saímos dos anos 1980 com experiências isoladas e na virada da década vivencia-mos a ampliação dos programas muni-cipais. Há uma curva ascendente do au-mento da cobertura assistencial da rede e de redução dos leitos psiquiátricos.

Jornal da UFRJ: E a chamada Lei Pau-lo Delgado, que nasceu em 1989, embo-ra tenha sido aprovada 12 anos depois, também é reflexo desse movimento?

Maria Paula Cerqueira: Em 1989 o deputado Paulo Delgado propôs o pro-jeto de lei de Reforma Psiquiátrica, que sofreu inúmeras resistências. O debate em torno dele é tão intenso que a lei somente será aprovada em 2001, com alterações importantes. O projeto não chegou a ser desfigurado, embora tenha sido excluída a ideia clara de extinção dos hospitais psiquiátricos. Mas está lá toda a sustentação de que é necessário criar uma rede alternativa e comple-mentar de cuidados e que o doente mental somente deve ser internado em hospitais psiquiátricos como última me-dida.

Jornal da UFRJ: Quais os interesses que emperram a aceleração da Reforma Psi-quiátrica no Brasil?

Maria Paula Cerqueira: Já houve um embate maior com os donos dos mani-cômios privados. Partiu desse segmento a resistência mais intensa. Mas o fato é que há uma política pública importan-te para o setor sendo implementada, o que não quer dizer que ela está pronta. Existe um campo de ações a ser implan-tado, mas muito já foi feito e de forma eficiente. Isso porque se construiu para essa política um conjunto de instrumen-tos normativos, políticos e de financia-mento. Hoje, mundialmente, a política nacional de Saúde Mental é reconhecida como política pública equânime e eficaz. É impressionante o impacto dela nos indicadores clínicos e epidemiológicos e de organização de saúde. Esse monito-ramento está mostrando que houve uma diminuição significativa das internações e a melhoria indiscutível na qualidade de vida das pessoas que passaram a ser tra-tadas por essa nova lógica. Na década de 1970, a oferta era basicamente de leitos privados contratados, o que não aconte-ce mais hoje, com a rede dos centros de Atenção Psicossocial (CAP).

Marco Fernandes

Julho/Agosto 2010

UFRJJornal da 18 Entrevista

Jornal da UFRJ: E como a senhora ava-lia a ideia de que o hospital psiquiátrico se transformou, hoje, em uma agradável clínica de repouso?

Maria Paula Cerqueira: É uma forma de ver. Mas não acho possível que qual-quer manicômio seja um agradável lugar de repouso. É possível, sim, haver lugares de internação humanizados, coerentes com os instrumentos normativos, que prestem uma assistência de qualidade. Agora, não se pode vê-los como a cen-tralidade do processo de tratamento. Qualquer espaço único de tratamento corre o sério risco de se tornar uma insti-tuição impenetrável à vida.

Jornal da UFRJ: Fale um pouco sobre a disseminação da experiência dos CAP.

Maria Paula Cerqueira: Ela começa na década de 1970 e não para mais. É uma experiência muito diversa, mas houve um fortalecimento da rede de atenção psicossocial extra-hospitalar e os CAP ocupam lugar privilegiado nesse proces-so. Um dos instrumentos normativos, inclusive, define que ele é o organizador da rede, mas não quero nem entrar nesse debate. Pela sua potência e capacidade em estratégias de cuidado intensivo, no entanto, é visto como dispositivo funda-mental. Uma das heranças dos hospitais psiquiátricos e do longo tempo de inter-nação é o fato de os pacientes não terem lugar para ficar fora dos manicômios. Não são poucos. No Rio de Janeiro, cerca de 30% dos internos de hospitais psiquiátricos estão nessa situação. Para se fazer um trabalho consequente com essa população, os CAP não bastam. São necessários, por exemplo, os servi-ços residenciais terapêuticos, lugares de moradia para no máximo oito pacientes, financiados pelo poder público. É o con-junto de dispositivos que pode tornar o tratamento bem-sucedido.

Jornal da UFRJ: Há uma crítica de que alguns CAP estariam sendo apropriados pela velha lógica de “medicalizar” a loucu-ra. Como a senhora avalia essa questão?

Maria Paula Cerqueira: É muito inte-ressante. Não acho que seja uma crítica, mas uma boa questão. Com o aumento da cobertura dos CAP se começa a ter outras zonas de visibilidade do modelo assistencial. Não é o fato de se montar um serviço fora do manicômio que, por milagre ou simples mandato, passará a operar na lógica da atenção psicossocial. É necessário que o conjunto da equipe de saúde trabalhe para a construção des-se modelo. Não dá para dizer que todos os CAP funcionam do jeito que acha-mos que têm que funcionar. Mas esse é o bom desafio da implantação da política pública. Hoje, o poder público tem ins-trumentos, inclusive normativos, para a qualificação de equipes. Por exemplo, faço uma supervisão clínica institucio-nal no CAP Torquato Neto, no Bairro de Fátima, que é uma potente ferramen-

ta de trabalho para melhorar o modelo assistencial do serviço. Existem centros que, de fato, estão capturados e funcio-nam numa lógica quase manicomial. A Reforma Psiquiátrica brasileira mostra, hoje, várias questões. Se eu for uma crí-tica empedernida posso dizer que nada andou. Prefiro ser aquela que diz que avançamos muito, mas que temos ainda muitos desafios pela frente.

Jornal da UFRJ: Quais foram as gran-des questões debati-das na IV Conferên-cia Nacional de Saú-de Mental, realizada em junho?

Maria Paula Cer-queira: O grande desafio identificado na Conferência foi o de continuar sus-tentando toda essa formulação da po-lítica pública e, ao lado disso, ampliar as parcerias intersetoriais. O maior resulta-do dessa Conferência foi agregar vários parceiros e atores interinstitucionais que são fundamentais para a consolidação da política pública de Saúde Mental. Por exemplo, a questão de álcool e drogas não deve ser vista apenas pela ótica sa-nitária. É muito superficial a ideia de que é apenas responsabilidade do setor de

Saúde a formulação de propostas para o problema. Para que essa política se de-senvolva, ela precisa ser intersetorial. A Justiça, a Educação e a Assistência Social também devem ter responsabilidades sobre ela. Esses setores precisam estar juntos pensando e desenhando os passos e as diretrizes principais dessas políticas.

Jornal da UFRJ: Na universidade brasilei-ra, o Ensino e a Pes-quisa ainda valorizam o hospital e o labo-ratório especializado como espaços privi-legiados para tratar da doença mental?

Maria Paula Cer-queira: Acho essa uma falsa questão. A universidade tem a obrigação de ser plu-ral. Ela precisa pro-duzir conhecimento e dialogar com as experiências da vida. São necessárias pes-quisas que possam

colocar em verificação todos os disposi-tivos, inclusive o hospitalar. Não se trata de excluir um espaço e substituí-lo por outro, mas sim de abrir o leque das pro-posições e da capacidade de intervenção. Hoje, a universidade é muito tradicio-nal? Sim. Ela pouco conversa com a rede pública de saúde? É verdade, em alguns casos. Mas, por exemplo, o coordenador

nacional de Saúde Mental do Ministério da Saúde, Pedro Gabriel Delgado, é pro-fessor da UFRJ. A diretora do Instituto de Psiquiatria (Ipub) é professora da UFRJ. Eu trabalho diretamente com a rede de assistência. A universidade é muito in-teressante quando é capaz de ser plural. Hoje, a UFRJ passa por um processo de renovação, com novas estratégias peda-gógicas, novas ações de Ensino, Pesquisa e Extensão, com visão multidisciplinar.

Jornal da UFRJ: Nesse contexto de re-novação do Ensino na UFRJ, foi criada a Residência Multiprofissional de Saúde Mental do Ipub, da qual a senhora é coordenadora. Quais as características dessa nova residência?

Maria Paula Cerqueira: A primei-ra turma foi criada há pouco tempo. Nela, contemplamos os cursos de Psi-cologia, Serviço Social e Enfermagem. Mas é importante dizer que tínhamos no Brasil um hiato entre os ministérios da Educação e da Saúde. A partir de determinado momento, houve uma aproximação e cada vez mais essas duas pastas desenvolvem estratégias conjuntas em algumas áreas e o SUS é uma delas. A implantação de resi-dências multiprofissionais de saúde se situa nesse conjunto de iniciativas. No final do ano passado, o Ministério da Educação propôs qualificar os hos-pitais de ensino e, a partir daí, neles foram criadas residências multipro-fissionais de saúde. Na UFRJ, além do Ipub, foram criadas residências com esse perfil, há pouco tempo, no Hos-pital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF), no Hospital-Escola São Francisco de Assis (Hesfa) e na Maternidade-Escola (ME). A nossa residência surge como uma dessas es-tratégias de qualificação da formação para o SUS. Como a nossa universi-dade é pública, ela tem responsabili-dade no protagonismo e na condução desse processo.

Jornal da UFRJ: E qual o nosso maior desafio?

Maria Paula Cerqueira: O nosso de-safio é dialogar mais com a socieda-de. Hoje, temos um momento muito propício. Na área da saúde, temos 14 profissões reconhecidas pelas Diretri-zes Curriculares Nacionais (DCN). E também existe um movimento bas-tante ativo de redirecionamento do projeto político-pedagógico de cada uma das instituições. A Faculdade de Medicina, por exemplo, passa por esse processo. No campus de Macaé, pensam-se em metodologias ativas de aprendizagem. No Ipub, há um conjunto de pesquisas que vão desde aquelas em laboratórios, mais instru-mentalizadas, até as feitas na rede de saúde. Esse deve ser o nosso caminho. A universidade não pode ser monote-mática e precisa ser aberta às deman-das da sociedade.

Marco Fernandes

“(...) houve uma diminuição significativa

das internações e a melhoria

indiscutível na qualidade de

vida das pessoas que passaram a ser tratadas por essa nova

lógica.”

Julho/Agosto 2010

19Julho/Agosto 2010 Tecnologia digital

Metas de Banda LargaAbrangência e

tipos de acesso

Metas para 2014

Acesso Fixo Individual(Urbano e Rural)

30 milhões de acessos banda larga fixa (urbanos e rurais), somando-se os acessos em domicílios, proprie-dades, empresas e cooperativas.

Acesso Fixo Coletivo(Urbano e Rural)

levar acesso banda larga a 100% dos órgãos de Gover-no, incluindo:• 100% das unidades da Administração Federal, dos Estados e municípios.• 100% das escolas públicas ainda não atendidas (mais de 70.000 rurais).• 100% das unidades de saúde (mais de 177.000).• 100% das bibliotecas públicas (mais de 10.000).• 100% dos órgãos de segurança pública (mais de 14.000).

Acesso móvel • 60 milhões de acessos banda larga móvel, entre ter-minais de voz/dados(com serviço de dados ativo) e modems exclusivamente de dados.

”Não basta cabear“

Criar meu website/ Fazer mi-nha homepage/ Com quantos gigabytes/ Se faz uma janga-

da/ Um barco que veleja.” Os versos da canção Pela Internet (1997), de Gilberto Gil, descrevem algumas possibilidades da rede mundial de computadores e exaltam as ferramentas da Era Digital. Em 2008, o mesmo Gil lançou o álbum Banda Larga Cordel disponível na Internet para stre-aming (modo no qual é possível ouvir as músicas, mas não baixá-las para o compu-tador). No entanto, 13 anos após o lança-mento de Pela Internet, apenas 12 milhões de domicílios (21% da população brasilei-ra) têm banda larga (capacidade de trans-missão superior à da primária do ISDN - Integrated Services Digital Network). O acesso é praticamente inexistente no Ama-pá e em Roraima, conforme Comunicado n° 46 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), “Análise e recomenda-ções para as políticas públicas de massifi-cação de acesso à Internet em banda larga”, divulgado em abril passado. Para tentar solucionar essa “exclusão digital”, o gover-no lançou, em maio, o Plano Nacional de Banda Larga (PNBL), que tem como meta levar para 40 milhões de domicílios o aces-so à Internet até 2014 a um preço máximo de R$ 35.

A pesquisa do Ipea avaliou o mercado considerando o cruzamento de bases de dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2008, do Insti-tuto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), além de informações da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), do próprio IBGE e do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI). A avaliação levou em consideração ainda três indicadores

utilizados no mercado internacional: pre-ço, densidade de penetração da banda lar-ga e velocidade. Foram avaliados 15 países e definiu-se uma série de recomendações para a banda larga no Brasil.

Mesmo sujeita à livre concorrência, a oferta, no Brasil, é exageradamente con-centrada. Enquanto cerca de 50% dos do-micílios do Distrito Federal contam com acesso à banda larga e, nos estados do Sul e Sudeste, a penetração varie entre 20% e 30% dos domicílios, menos de 1% dos la-res de Roraima e Amapá possuem Internet de alta velocidade. Em termos de preço, a situação também é alarmante. De acordo com o Ipea, em 2009, o gasto médio, no país, custava, proporcionalmente, 4,58%, enquanto na Rússia esse índice era de me-nos da metade: 1,68%. Já nos países desen-volvidos, essa mesma relação situa-se em torno de 0,5%, ou seja, quase dez vezes menor que no Brasil. A velocidade de aces-so também preocupa, pois em 54% dos domicílios com banda larga a velocidade é predominantemente menor ou igual a 1 megabyte por segundo (Mbps), o que dificulta, por exemplo, a visualização de vídeos, imagens e documentos na Internet.

De acordo com João Maria Oliveira, um dos pesquisadores do Ipea responsá-veis pela elaboração do Comunicado, o governo não pode ficar de braços cruza-dos. “A distância entre o Brasil e os países desenvolvidos no que tange ao acesso e ao preço da banda larga vem aumentando, se compararmos os indicadores de 2007 e 2009. Se não houver intervenção de gover-no, essa distância vai aumentar”, afirma o especialista em Planejamento e Pesquisa. Entre as recomendações, Oliveira destaca ainda a necessidade da regulação estatal:

“O papel do Estado é fundamental. Há exemplos de países liberais como Estados Unidos da América e Austrália que utili-zam forte regulamentação no setor, por julgarem-no estratégico. O governo deve custear áreas que não dão rentabilidade para promover a competição, e não res-tringir”.

O pesquisador lembra que o espaço regulatório brasileiro é tarifado por voz e utiliza duas variáveis: tempo e distância; enquanto a Internet é diferente, pois pa-gamos pelo serviço 24 horas, não importa tempo e distância para o acesso, o que acar-retaria redução nas receitas das operadoras de telecomunicações. “A Internet tem po-tencial para ser mais barata e democrática. As empresas do segmento de telecomuni-cações não querem que o serviço de voz/telefone seja reduzido. Elas sabem que não é possível evitar, mas tentam retardar, pois existem inúmeros casos em outros países nos quais o mesmo cenário ocorreu e elas tiveram reduções significativas de receitas. Existem já, na Europa, orelhões nos quais a comunicação é feita via Internet”, explica Oliveira.

Para Marcos Dantas, professor da Es-cola de Comunicação (ECO) da UFRJ, as grandes operadoras têm que fazer um discurso de que serão prejudicadas, mas isso não ocorrerá. “O que vai acontecer é que esse enorme espaço que não tem atendimento nenhum vai acabar sendo atendido pelo Estado via Telebrás. A ban-da larga está presente em no máximo 400 municípios porque a operadora de banda larga, a mesma que está presente no país todo com telefonia fixa, não é obrigada a estar presente com banda larga. Então, ela somente está nos municípios que interes-sam. Como o governo não quer botar o PNBL em regime público, ninguém será obrigado a prestar o serviço. Vamos acabar tendo na banda larga brasileira o mesmo que você tem na escola: uma escola priva-da de grau razoável para quem pode pagar e uma escola pública de péssima qualidade para quem não pode pagar”, ilustra Dantas.

O professor critica também a velocida-de sugerida pelo PNBL. “O modelo que o governo criou para dar o acesso às classes C e D prevê que pessoas vão pagar até R$ 35 para ter uma taxa de transmissão de até 784 Kbps. Hoje, 784 Kbps em termos de Internet não é nada.” Em sua opinião, o PNBL é um caminho necessário, mas não suficiente, pois não basta “cabear” o país para que se tenha acesso à informação. “Se o PNBL vier efetivamente a ser cumprido, não há a menor dúvida de que ampliar a infraestrutura e recuperar esse tronco

nacional (backbone) é um começo. Claro que, como hoje você tem zero, mesmo que não sejam alcançadas as metas que estão sendo anunciadas, qualquer expansão das redes óticas pelo interior do país já é signi-ficativa. Alguma coisa daqui a quatro, cin-co anos terá acontecido, que é melhor do que está hoje. Entretanto, a mera difusão da infraestrutura não é o suficiente para se ter uma democratização do acesso à infor-mação. Até porque, para que as pessoas acessem informação, sobretudo quando tratamos de Internet, elas precisam saber operar nesse ambiente, precisam saber buscar informação”, argumenta o pesqui-sador da ECO.

Ele destaca ainda a necessidade de mudança nos padrões educacionais e cul-turais para que a Internet se transforme em espaço democrático, no qual não seja reproduzido o modelo de grupos de co-municação hegemônicos: “Você tende a ter uma reprodução na Internet do mes-mo modelo geral que você tem em outros campos das comunicações. Primeiro, tudo é pago. Então, na medida em que as coisas são pagas, o modelo de publicidade que banca a televisão comercial, o rádio e o jornal tende a se estender na Internet. Nos Estados Unidos hoje, 70% da verba publi-citária que vai para a Internet se concen-tra nos dez maiores portais, ou seja, esse modelo já está se reproduzindo. A solução para isso seria uma mudança nos padrões educacionais e culturais da sociedade, que obviamente é algo complicadíssimo”.

Ponto polêmicoO Plano Nacional de Banda Larga ge-

rou um grande número de debates na mí-dia. Especialmente em função da consti-tuição de uma operadora especificamente voltada a oferecer serviços de acesso à In-ternet em banda larga a preços populares, no caso, a Telebrás. Para Oliveira, tal me-dida é válida desde que não limite a con-corrência: “Se o governo achar que seja ne-cessária a criação de uma empresa estatal para o setor, ótimo; mas nada de restringir, e sim competir”.

Segundo Marcos Dantas, o sucesso do PNBL vai depender muito das iniciativas locais, sejam do Estado, do município ou do interesse de grupos privados: “A ideia de que o tronco central de banda larga seja operado pela Telebrás é um ponto polê-mico, pois a Telebrás não vai fornecer, a princípio, os acessos locais, nem os acessos finais. Você precisa de infraestrutura local no espaço urbano, uma rede urbana, e de-pois essa rede urbana tem que estar conec-tada ao domicílio. Isso a Telebrás não vai fazer. Então, você vai precisar ter uma ini-ciativa ou de empresas privadas que ope-ram localmente ou de poderes públicos locais para que o plano seja efetivo. A não ser que em outra fase, diante do fracasso dessas iniciativas locais, a Telebrás expan-da suas atividades, mas não é isso que está previsto”.

Rodrigo Baptista

UFRJJornal da

Julho/Agosto 2010UFRJJornal da 20

Twitter, Orkut, Facebook, blog, celular. Esses são alguns instrumentos indispensáveis

para quem deseja estar supostamente “antenado” com o mundo de hoje. As novas mídias, como são chamadas as tecnologias e métodos de comunicação que se opõem às mídias tradicionais como televisão e rádio, alcançam, cada vez mais, legitimidade junto ao público. Através delas, é possível conversar com pessoas distantes, conhecer lugares nun-ca antes visitados pessoalmente, fazer compras sem sair de casa, obter infor-mações técnicas e serviços até então ina-cessíveis a um cidadão comum.

As estatísticas mostram com proprie-dade o raio de ação das novas mídias, conceito que inclui, além da Internet e de aparelhos móveis, os dispositivos de armazenamento (pendrive e Blu-ray) e a TV digital. Apenas no primeiro trimes-tre de 2010, uma única empresa fabri-cante de smartphones atingiu a marca de 12 milhões de aparelhos vendidos, fatu-

A_revolução_do _clique_

rando cerca de U$4 bilhões. A amplitu-de dos dados relativos ao acesso à rede mundial de computadores é ainda maior. Pesquisas evidenciam que as conexões à Internet aumentam exponencialmen-te em todo o mundo. No Brasil, são 66 milhões de internautas, segundo estudo realizado, em dezembro do ano passado, pela joint-venture Ibope Nielsen. O país ocupa o quinto lugar no ranking mun-dial de acessos à Internet.

Mais do que números, as novas mí-dias podem representar uma revolução na maneira de o homem se comunicar. Em poucas décadas, ao que parece, elas modificaram a produção e a veiculação de informação e produziram impactos na maneira de os indivíduos se relacio-narem, de fazerem política e de realiza-rem transações comerciais. “Vivemos em um cenário ‘pan-midiático’, ou seja, estamos cercados pelos meios de co-municação por todos os lados. Esses diferentes meios ‘dialogam’, como, por exemplo, quando utilizamos um telefone

celular para acessar a Internet. A grande novidade gerada pelas novas mídias é justamente esse processo de convergên-cia de conteúdo nos diferentes meios”, afirma Beatriz Polivanov, pesquisadora do Laboratório de Pesquisa em Culturas Urbanas, Lazer e Tecnologias da Comu-nicação da Universidade Federal Flumi-nense (UFF).

Um dos maiores impactos das novas mídias se deu na construção da infor-mação. Se antes ela partia de um meio de comunicação emissor para um público amplo de receptores, hoje ela pode ser produzida por qualquer um que tenha acesso à tecnologia. É a interatividade di-tando as regras? “Durante muito tempo, entendemos que o produtor da informa-ção qualificada era o especialista, ou seja, o jornalista, o cineasta. Com a Internet e o seu processo de produção de conteú-do, com as redes sociais e com o barate-amento dos equipamentos, descobrimos que muito mais pessoas estão habilitadas a produzir informação e conteúdo qua-

lificado. A mídia somos nós”, observa Ivana Bentes, diretora da Escola de Co-municação (ECO) da UFRJ.

Os limites do infinitoEm julho de 2009, o tempo médio

de navegação no Brasil foi de 71 horas e 30 minutos por usuário, média superior a de países como Estados Unidos, Rei-no Unido, França e Japão. Mas será que quantidade de acesso se traduz em qua-lidade de informação e conhecimento?

Estatísticas do Ibope Nielsen cons-tatam que, apesar do longo tempo em frente ao computador, o brasileiro utiliza a rede para acessar, principalmente, ser-viços de mensagens instantâneas, como o MSN, e redes sociais, como Orkut e Twitter.

Apesar disso, Beatriz Polivanov acredita que o público está mais bem informado. “O próprio conceito do que vem a ser notícia e informação muda constantemente ao longo da história. Temos mais rapidez na transmissão das

Aline Durães

Zope

Tecnologia digital

21Julho/Agosto 2010 UFRJJornal da

mensagens e uma ideia de que há mais informação por aí, quantitativamente falando. Alguém poderá dizer que as in-formações são mais curtas, menos pro-fundas, não levam tanto à reflexão quan-to antes, até porque temos menos tempo para debatermos e pensarmos sobre elas. Mas avalio que não seja uma questão de medição, mas de entender a lógica e a di-nâmica das mensagens de hoje. Se pen-sarmos por este caminho, chegaremos à conclusão de que estamos mais bem informados sim. Hoje, em questão de se-gundos, podemos, supostamente, achar a ‘informação’ que quisermos. Antes, isso realmente não era possível”, avalia a pesquisadora.

Além do tipo de acesso, outra ques-tão inerente à utilização das novas mí-dias é o limite entre público e privado, cada vez mais tênue e menos respeitado. A exposição pessoal gerada nas redes sociais pode levar, na opinião de Ivana Bentes, à ideia errônea de intimidade. “Onde acaba a minha função de pro-fissional e começa a minha vida pesso-al? Algumas dessas redes sociais geram uma ‘hiperinflação’ de relacionamentos, sendo que a quantidade de ‘amizades’ existentes ali não significa intimidade ou proximidade; na verdade, estão mis-turados, naquela rede, afetos, desafetos, relações mais diversas. Você tem que passar, então, a se ver com os olhos dos outros. Parece que existe o tempo todo um termômetro que mede suas palavras, seu comportamento, sua forma de agir. Você reaprende a interagir socialmen-te. Mas esse é um processo muito novo, as pessoas ainda não sabem totalmen-te como se comportar. Muitas perdem mesmo os limites”, ressalta a professora, que, há algumas semanas, foi cobrada por alunos da ECO-UFRJ em função de um comentário postado por ela em seu Twitter pessoal.

Destruição criadoraEm alguns setores econômicos, o ad-

vento das novas mídias, ao que parece, pode provocar estragos, como é o caso do Jornalismo Impresso. O Jornal do Brasil, um dos mais antigos periódicos brasileiros, por exemplo, anunciou, no mês passado, que, em virtude da queda nas vendas, deixará de circular em se-tembro, quando passará a ter apenas ver-são on-line. As gravadoras de músicas também precisaram se readaptar, tanto é que a venda de música digital, principal-mente por meio de telefones celulares, é a aposta da indústria fonográfica diante da drástica redução das vendas de CDs verificada nos últimos anos.

Para Paulo Bastos Tigre, professor do Instituto de Economia (IE) da UFRJ e especialista em Tecnologias da Infor-mação e da Comunicação, a ordem para as empresas interessadas em sobreviver é se adequar à tecnologia. “O processo de desenvolvimento tecnológico é um processo de destruição criadora: você cria oportunidades, mas destrói formas tradicionais. Não tem como as empresas impedirem a veiculação de informações.

MySpaceApesar de ter perdido popularidade para o Twitter e para o Facebook, o MySpace registrou 119 milhões de visitantes em janeiro de 2010.

Elas terão que criar formas de lidar com as novas tecnologias. O modelo de negó-cio precisa mudar”, enfatiza o pesquisa-dor.

As novas mídias, entretanto, estão longe de significar impactos negativos na Economia. Pelo contrário. Graças a elas, novas modalidades de negócios ganham fôlego, como é o caso do comércio inter-nacional de serviços. “Além disso, elas possibilitam aumento de produtividade e lucro para muitas empresas, já que me-lhoram a gestão e aceleram os processos de produção e de vendas. Elas permitem acesso a informações técnicas e a um mercado mais amplo, através do comér-cio eletrônico”, destaca Paulo Tigre.

A nova políticaO perfil de Twitter mais seguido da

Venezuela não é de nenhum artista de TV ou astro da música pop. É de Hugo Chávez, presidente do país. Criado em abril deste ano, o microblog já possui mais de 432 mil seguidores e recebe, diariamente, elogios, críticas, insultos, denúncias de má administração pública e pedidos de ajuda.

Recorrer às novas ferramentas de comunicação não é exclusividade do presidente venezuelano. Virou mania também entre os políticos brasileiros. Presidenciáveis como Dilma Rousseff (@dilmabr) e José Serra (@joseserra_);

Novas mídias em númerosTwitterCriado em 2006, possui 105 milhões de usuários cadastrados. Recebe cerca de 180 milhões de visitantes por mês, que geram 65 milhões de tweets por dia.

FacebookPossui mais de 400 milhões de perfis em todo o mundo. É o quarto site mais visitado dos Estados Unidos e, no Brasil, já conta com 3,6 milhões de participantes.

YouTubeLançado em 2005, em maio deste ano atingiu dois bilhões de visualizações diárias. Pesquisas mostram que seriam necessários mais de 400 anos para uma pessoa assistir a todo o conteúdo armazenado no site.

OrkutExiste desde 2004 e tem mais de 80 milhões de usuários. Os brasileiros compõem mais da metade (51%) dos perfis existentes no site de relacionamentos.

vereadores como Eliomar Coelho (@EliomarCoelho), do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), e Fernando Ga-beira, do Partido Verde (PV) do Rio de Janeiro; deputados como Aloizio Merca-dante (@mercadante), federal pelo Parti-do dos Trabalhadores (PT) de São Pau-lo, e Marcelo Freixo (@MarceloFreixo), estadual pelo PSOL do Rio de Janeiro; senadores como Cristovam Buarque (@Sen_Cristovam), Partido Democrático Trabalhista (PDT) do Distrito Federal, e Tasso Jereissati (@Tassojer), do Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB) do Ceará, assim como o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, já aderiram aos ser-viços de microblog e a perfis em redes sociais, demonstrando o interesse em es-tar em contato direto com seus eleitores através do Twitter.

De acordo com Ivana Bentes, esse processo denota uma nova forma de fa-zer política. “Na democracia representa-tiva, alguém representa você, mas faz isso de forma distante. As novas mídias po-dem propiciar as primeiras experiências de uma democracia participativa. Você continua a ter alguém que o representa, mas agora esse político está em conta-to direto com as suas bases, com seus eleitores e suas demandas. Cria-se uma relação de cobrança, de observatório. A sociedade pode se tornar um partici-pante ativo na construção e no acompa-

nhamento das políticas públicas. Temos a oportunidade de controlar quem nos controla”, argumenta a professora.

Já para Beatriz Polivanov, a utilização da Internet e de redes sociais se constitui em um esforço dos políticos em vender uma imagem de transparência. “O que parece estar acontecendo é que as novas mídias funcionam como uma espécie de ‘reforço’ para a construção das imagens dos candidatos. E não podemos esque-cer que, não importa qual é o meio, estamos sempre lidando com constru-ções discursivas que têm, ainda mais no caso das eleições, interesses e ob-jetivos muito bem definidos”, alerta a pesquisadora da UFF.

Acessar é democratizar?O setor de Comunicação é um dos

menos democratizados no Brasil. Isso porque um pequeno grupo de empresas ainda controla os principais meios de comunicação do país. Para os entusias-tas das novas mídias, elas podem repre-sentar a diversificação de opiniões que moldam o pensamento e os pontos de vista dos brasileiros. Mas Beatriz Polivanov acredita que o processo de democratização da informação passa pela ampliação de acesso à tecnologia: “Há uma poderosa estrutura que difi-culta muitos sujeitos a terem acesso às novas mídias e, mesmo quando o têm, seu poder de fala não é legitimado como o de outros e, portanto, suas vo-zes continuam num volume mais bai-xo do que outras vozes. Ainda assim, acho inegável que esteja ocorrendo ao menos um processo de descentraliza-

ção do controle das informa-ções, o que talvez permita que

certas vozes, antes caladas facil-mente, agora consigam aparecer

um pouco mais.”Ivana Bentes compartilha dessa

opinião: “Estamos em um momento de reconhecimento da importância da in-clusão digital. A estrutura deve ser uni-versal, porque a tecnologia não é para uso de determinados grupos. Ou todo mundo se apropria dessas ferramentas ou vamos criar problemas sociais graves, deixando parcelas da população fora do processo de expressão e de construção do conhecimento.”

Para o economista Paulo Bastos Ti-gre, é essencial que, nesse caminho, seja criada uma política educacional que fo-mente o uso consciente das novas mídias. “Uma política de desenvolvimento que não leve em consideração a necessidade de qualificar melhor as pessoas não terá sucesso. Não estamos mais no tempo do Fordismo, quando bastava adestrar o su-jeito para que ele operasse uma máquina de forma simples. Estamos falando de informação, que sem conhecimento não vale nada. Essa iniciativa tem que partir do próprio governo, através da melhoria na qualidade das escolas públicas e na in-serção dessas novas mídias nos colégios desde cedo. Devemos fazer com que as pessoas saiam preparadas para usufruir e usar bem essa informação”, conclui.

Tecnologia digital

UFRJJornal da 22 Junho 2010

No dia 30 de junho, foi realizada a “UFRJ Free Soft”, I Mostra de Software

Livre da universidade. O evento, vol-tado para o público interno, reuniu professores, estudantes e funcioná-rios que puderam assistir a pales-tras sobre as novidades na área de software livre, além de estudos de caso da adoção de programas não-proprietários em instituições pú-blicas como o Proderj (Centro de Tecnologia da Informação e Comu-nicação do Estado do Rio de Janei-ro) e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mais do que acom-panhar o processo de implantação de programas livres na esfera públi-ca e ouvir opiniões de pesquisado-res e atuantes na área, o evento teve como objetivo dar visibilidade ao debate na UFRJ e indicar a intenção da Administração Central em ado-tar e estimular o uso de softwares livres. “Não estávamos tão preocu-pados com a questão tecnológica, mas em saber quais foram os impac-tos da adoção disso em larga escala, em outras instituições, que é o que estamos tentando incentivar aqui na UFRJ”, explica Cláudia Werner, da Superintendência de Tecnologia da Informação e Comunicação (Su-perTIC), vinculada à Pró-reitoria de Planejamento e Desenvolvimen-to (PR-3), e professora do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-gra-duação e Pesquisa de Engenharia (Coppe).

Mundo livreRodrigo Baptista

De acordo com a definição da Free Software Foundation, organi-zação sem fins lucrativos fundada em 1985 por Richard Stallman e que se dedica à defesa da liberdade na Internet, o termo software livre re-fere-se às possibilidades de os usu-ários executarem, copiarem, distri-buírem, estudarem, modificarem e aperfeiçoarem programas sem qual-quer impedimento.

Para Márcio Ayala, diretor de Desenvolvimento da SuperTIC, apesar de o tema software livre ser discutido há décadas, a UFRJ ain-da está dando os primeiros passos. “Estávamos ficando para trás nessa questão. O Governo Federal vem incentivando, há pelo menos oito anos, o uso desse tipo de programa. Tínhamos notícias de que existiam algumas iniciativas aqui na UFRJ, mas de grupos isolados, ações bem individualizadas. A SuperTIC surge inclusive com o propósito de tentar pensar essa e outras questões relati-vas à Tecnologia da Informação de forma mais estratégica e homogê-nea”, esclarece o dirigente.

Dia DA realização da I Mostra de

Software Livre foi apenas o passo inicial em um processo mais am-plo de orientação das políticas na área de Tecnologias da Informação. Para tanto, assim como na Segunda Guerra Mundial e o seu Dia D, a Su-perTIC planeja uma ação estratégi-

ca para a divulgação de programas não proprietários na universidade. Para marcar a adoção de softwa-res livres, a ideia, segundo Cláudia Werner, é eleger um dia (ainda não definido) para a realização de uma operação na qual se pretende ins-talar softwares livres em computa-dores da Administração Central da UFRJ e nas unidades que aderirem à

que surgirem no contato diário com os programas”, tranquiliza Márcio Ayala.

Segundo Toacy Cavalcante, pro-fessor de Engenharia de Software do Programa de Engenharia de Siste-mas e Computação da Coppe, é co-mum haver resistência no ambiente de trabalho em razão de mudanças de ferramentas: “É natural. A Mi-crosoft (multinacional de softwares) é pioneira em diversas áreas e man-tém a liderança em vários sistemas operacionais. Não significa, no en-tanto, que não existam alternativas de qualidade a custo mais baixo. As pessoas têm dificuldade em li-dar com o novo, há receio de que os softwares livres não funcionem tão bem, mas temos vários exemplos que mostram que são confiáveis”.

O professor diz ainda que a con-fiança cresce quando há assistência adequada. “Apesar de ser mais bara-to, não é correto dizer que o software livre é gratuito. A partir do momen-to que você tem a assistência técnica de qualidade, a confiança naquilo aumenta.” Ele lembra ainda que a hegemonia dos softwares proprietá-rios está sendo quebrada. “Se você vai para um nicho de mercado que é o de ferramentas para escritório, nesse realmente a Microsoft ainda domina. Mas se você vai para um mundo de linguagem de programa-ção ou de servidor web, por exem-plo, já não há mais dominância das grandes multinacionais. A maioria é de programas livres, o que não quer dizer, no entanto, que softwares li-vres e proprietários não possam co-existir”, informa Toacy Cavalcante.

Essa também é a opinião de Cláudia Werner. De acordo com a superintendente da SuperTIC, o diagnóstico feito até o momento in-dica que os softwares livres não atra-palharão os servidores no exercício das funções. “A maioria, que basi-camente usa as suítes de escritório, não terá problemas, como mostram os exemplos de vários órgãos públi-cos que já adotaram essas ferramen-tas. É claro que também estamos prevendo aquelas situações específi-cas, nas quais o uso de determinado software é fundamental para a rea-lização da tarefa. Isso não será mu-dado e poderemos, inclusive, com-partilhar as licenças com unidades

Mandamentos da Filosofia Livre

causa. “Percebemos que outras uni-dades já vinham se movimentando, como a Escola Politécnica (Poli), a Coppe e o Núcleo de Computação Eletrônica (NCE), mas faltava, tal-vez, este incentivo”, explica Cláudia Werner, para quem o ideal é que a ação ocorra ainda em 2010.

Mas, diferente de uma guerra, a operação de instalação de softwares será pacífica. “Ninguém será obri-gado a aderir, mas questões impor-tantes serão debatidas. O propósito da “UFRJ Free Soft” foi levantar esse debate e informar que a Adminis-tração Central já havia tomado a decisão de adotar softwares não-proprietários e que outros já esta-vam aderindo. Nada vai ser impos-to”, esclarece a professora.

ResistênciaPara que ninguém saia ferido, a

SuperTIC realiza um estudo de im-pacto. “Sabemos que as pessoas têm dificuldade em mudar, mas efetiva-mente não vai haver alteração signi-ficativa no trabalho. Esse estudo de impacto está sendo realizado para que se possa dar atendimento não apenas no período anterior à ope-ração, mas também posterior. Dare-mos apoio e esclareceremos dúvidas

Para ser considerado software livre, ou free software, é necessária a existência simultânea de quatro tipos de liberdades.

- A liberdade de executar o programa, para qualquer propósito (Liber-dade nº 0);

- a liberdade de estudar como o programa funciona e adaptá-lo para as suas necessidades (Liberdade nº 1). Acesso ao código-fonte é um pré-requisito para esta liberdade;

- a liberdade de redistribuir cópias, de modo que você possa ajudar ao seu próximo (Liberdade nº 2);

- a liberdade de aperfeiçoar o programa e liberar os seus aperfeiçoa-mentos, de modo que toda a comunidade se beneficie (Liberdade nº 3). Acesso ao código-fonte é um pré-requisito para esta liberdade.

“Os brasileiros,

sejam eles

consumidores finais

ou pesquisadores,

em geral, não têm

dinheiro para

comprar softwares

proprietários.”

Tecnologia digital

23Julho/Agosto 2010 UFRJJornal da

Mundo livre

diferentes e negociar para conseguir preços reduzidos”, avalia Cláudia.

Ela destaca também que foi im-portante o exemplo de outras ins-tituições para a elaboração de uma estratégia de implantação oficial do software livre na universidade. “A I Mostra da UFRJ foi fundamental por apresentar caminhos. Como não havia um grande case aqui na universidade, procuramos inicia-tivas externas já consolidadas. Foi possível, através da experiência de outros, perceber o quanto é difícil dar esse primeiro passo, mas perce-

bemos também que a vantagem de estarmos atrasados é que já conse-guimos analisar esses casos todos e não repetir os mesmos problemas”, finaliza Cláudia Werner.

Brasil tem papel de destaqueSe na UFRJ a discussão é recen-

te, o Brasil ocupa lugar de destaque no “mundo livre”. Entre 21 e 24 de julho, por exemplo, Porto Alegre recebeu a

11ª edição do “Fórum Internacional Software Livre” (Fisl), considerado o maior encontro de comunidades de software livre da América Latina e um dos maiores do mundo.

Promovido, organizado e realiza-do pelo Projeto Software Livre Brasil e pela Associação Software Livre.Org (ASL), o Fisl se tornou um ponto de encontro anual de empresários, pro-fessores, pesquisadores, estudantes, profissionais das áreas privada e públi-ca para debates técnicos e estratégicos sobre o desenvolvimento e o uso do software livre.

Para Ulisses Telemaco, mestre em Mecatrônica pela Universidade Fede-ral da Bahia e participante ativo em comunidades de desenvolvedores de softwares livres, como o Projeto JE Brasil, comunidade na qual disponibi-liza material didático para ferramentas livres, o Brasil tem uma comunidade e participação bastante ativa. “Essa fi-losofia de desenvolvedores de quem trabalha com TI é muito forte, assim como a filosofia de código livre no Bra-sil. Existem vários projetos open source (código aberto) que contam com forte presença de brasileiros como o projeto Java”, destaca o pesquisador.

Na esfera governamental, alguns órgãos como o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal (CEF), a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e o Serviço Federal de Pro-cessamento de Dados (Serpro) já ado-tam o uso de software livre. O país pos-sui também algumas iniciativas que o promovem como o Centro de Difusão de Tecnologia do Conhecimento, que oferece cursos de software livre através do Ensino a Distância; o Guia Livre, que fornece conselhos para as agên-cias públicas sobre como mudar para

o software livre, o Portal do Software Público Brasileiro, no qual o governo disponibiliza programas livres úteis, e o programa Computador Para Todos, que encoraja a venda de computadores de baixo custo com software livre.

De acordo com Toacy Cavalcante, a ideia de software livre é bem recebi-da porque há uma ligação forte dessa concepção com a realidade e a forma de pensar do brasileiro: “Os brasilei-ros, sejam eles consumidores finais ou pesquisadores, em geral, não têm dinheiro para comprar softwares pro-prietários. Se montarmos uma equipe para desenvolver algum produto e comprarmos tudo que a Microsoft e a Oracle mandam, sai uma fortuna, o que inviabiliza qualquer projeto. Isso estimula, entre outras coisas, a pira-taria. No caso do desenvolvimento de softwares, se você tem os especia-listas suficientes para montar esse ambiente de desenvolvimento com software livre, fica muito mais ba-rato”.

Ulisses Telemaco atribui esse fato também a uma forte cultura participativa nas comunidades de desenvolvedores brasileiros. “Ou-tro aspecto positivo do software livre é que você consegue ter um trabalho colaborativo muito maior do que com o software proprietá-rio. Por exemplo, se você identifica uma falha de segurança no Windo-ws, o ciclo que aquilo ali passa para ser corrigido envolve por volta de mil desenvolvedores, enquanto o software livre conta com milhões de possíveis desenvolvedores”, ex-plica o desenvolvedor, lembrando-se de um caso no qual ficou clara essa cultura participativa: “Duas horas após a solicitação da tradu-ção de uma ferramenta no Twitter, do inglês para o português, estava pronta a versão brasileira. É im-pressionante a rapidez da comuni-dade brasileira”.

João Rezende

Cláudia Werner: “A I Mostra da UFRJ foi fundamental por apresentar caminhos.”

Marco Fernandes

Tecnologia digital

Julho/Agosto 2010UFRJJornal da 24 Saúde da mulher

Um novo estatuto reacen-de, no país, a discussão acerca do aborto. Aprova-

do, no último dia 19 de maio, pela Co-missão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei 478/07, conhecido como “Estatuto do Nascituro”, define que a proteção da vida começa na concepção. Proposta pelos deputados Luiz Bassuma (PV-BA) e Miguel Martini (PHS-MG), a medida objetiva resguardar integral-mente o direito à vida do indivíduo concebido, ainda não nascido.

O “Estatuto” vem para intensificar a legislação contra o aborto no Brasil, nação que se destaca por ser uma das mais atrasadas do mundo no que tange a leis sexuais e reprodutivas. A lei atual-mente em vigor é de 1940. Ela somente permite o aborto em casos de estupro ou quando a mãe corre risco de vida. De resto, a prática é considerada crime, com pena prevista de um a três anos de detenção.

Além de reconhecer a natureza hu-mana do nascituro desde a concepção, o “Estatuto” visa garantir, através do Sistema Único de Saúde (SUS), que o indivíduo não nascido tenha o mesmo atendimento dispensado à criança. “O nascituro goza da expectativa do direi-to à vida, à integridade física, à honra, à imagem e de todos os demais direitos da personalidade”, estabelece o parágra-fo único do artigo 3º do projeto.

O texto proíbe “qualquer dano ao nascituro em razão de um ato delituoso cometido por algum de seus genitores” e prevê pena de um a dois anos de de-tenção e multa para quem induzir mu-lher grávida a interromper a gravidez. Além disso, determina detenção de seis meses a um ano e multa para aquele que fizer “publicamente apologia do aborto ou de quem o praticou, ou incitar publi-camente a sua prática”.

O documento agrada a uma par-cela da população que interpreta o aborto como crime. “Ninguém tem o direito de tirar a vida de outra pessoa. Por mais difícil que seja a situação, a mulher, mesmo que tenha o direito de

Estatuto do Nascituro cria mecanismos ainda mais duros de combate ao aborto, visando proteger a vida do feto, mas, ao mesmo tempo, deixa desamparadas as vidas de milhares de mulheres que, todos os anos, se arriscam em clínicas clandestinas para interromper a gravidez.

Aline Durães

escolha sobre seu próprio corpo, não tem o poder de escolha sobre a vida e a morte. Por isso, creio que esse estatuto seja sim um avanço para os que lutam pela vida”, opina Rose Santiago, teóloga, diretora do Centro de Reestruturação para a Vida (Cervi), organização não-governamental (ONG) que, há 10 anos, oferece assistência a mulheres que en-frentam uma gravidez indesejada.

Na outra ponta, estão os que enten-dem o aborto ilegal como um risco à saúde da mulher, e por isso condenam a proibição. “Na discussão do direito à vida, somente se fala no direito do nas-cituro, mas e a vida da mulher? Acho complicado colocar acima da vida dela uma vida que ainda é intrauterina”, ob-serva Anna Marina Madureira de Pi-nho Barbará Pinheiro, pesquisadora e professora do Laboratório de Estudos de Gênero do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (Ifcs) da UFRJ.

Números proibitivosSegundo a Pesquisa Nacional do

Aborto, realizada pela ONG Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gêne-ro (Anis) e pela Universidade de Brasí-lia (UnB), uma em cada cinco brasilei-ras de 40 anos (22%) já fez, pelo menos, um aborto. Delas, 55% precisaram ser internadas por causa de complicações na cirurgia. O estudo, que entrevistou 2.002 mulheres entre 18 e 39 anos, foi divulgado em maio deste ano, poucos dias depois da aprovação do “Estatuto do Nascituro”.

No Brasil, mesmo com todas as restrições, a taxa de aborto chega a 20 para cada grupo de 100 mil mulheres. Na Holanda, onde é legalizado, esse número é de 5 para cada 100 mil. As estatísticas desmontam o argumento de que descriminalizar a prática po-deria incentivá-la. “Será que a mulher recorre ao aborto por prazer? Ela não aborta porque quer. Ninguém entende o sofrimento e as dificuldades envol-vidos numa decisão desse tipo”, avalia Margarida Maria Lacombe Camargo, professora e uma das coordenadoras do Observatório da Justiça Brasileira da

Faculdade de Direito (FD) da UFRJ.

Rose Santiago, entretanto, acredita que a descriminalização não é a saída. “No México, por exem-plo, em agosto de 2008, o aborto foi des-criminalizado. Hoje, existem mulheres com nove meses de gestação esperando na fila para abortar. Portanto, não creio que seja essa a solução que precisamos. A descriminalização não resolveria, ainda mais com a Saúde Pública que te-

25Julho/Agosto 2010 UFRJJornal da Saúde da mulher

mos. O ideal é um trabalho de pre-venção. O capital gasto no aborto poderia muito bem ser colocado na melhoria do planejamento familiar e na educação da população quanto a isso”, ressalta a teóloga.

O aborto ilegal, geralmente con-duzido em clínicas clandestinas e sem condições adequadas de higie-ne, constitui uma das maiores causas de mortalidade materna no Brasil. Dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), divulgados no final da década passada, mostram que 6 milhões de mulheres praticam aborto

induzido na América Latina, todos os anos. Destas, 1,4 milhão é de brasileiras e uma em cada mil morre em decorrên-cia da cirurgia.

Os números publicados pela norte-americana Kaiser Foundation Research Institute são ainda mais alarmantes. De acordo com a fundação, o Brasil regis-tra oito abortos por minuto, o que gera 5 milhões de procedimentos por ano. Das gestantes, 40% voltam para o hos-pital com infecções sérias; destas, 10%, ou seja, 200 mil, morrem. “Proibir o

aborto não impede que ele aconteça. As grandes desvantagens da ilega-

lidade são os perigos enfrentados pela mulher. São riscos de vida

e de esterilização involuntá-ria. Apesar de ser ilegal, todo mundo sabe que existem

clínicas clandestinas que cobram caro para fazer um aborto. Há aí um viés de classe muito grande. A mulher pobre não tem acesso a esses locais. Muitas vezes, tenta abortar sozinha ou cai em algum lugar sem qualquer condição de higiene”, destaca Anna

Marina, do Ifcs.

O polêmico artigo 13O artigo 13 do texto

original do “Estatuto do Nas-cituro”, embora não tenha sido

aprovado e não conste no substitu-

tivo atualmente em trâmite na Câmara Federal, foi o que mais chamou a aten-ção, mesmo dos setores mais conserva-dores da sociedade. Isso porque preten-dia proibir o aborto inclusive em casos de estupro, revogando, assim, o artigo 128 do Código Penal Brasileiro.

De acordo com o texto inicialmen-te proposto, a gestante que fosse vítima de violência sexual não poderia inter-romper a gravidez, podendo ser puni-da caso o fizesse. “Muitos estudiosos trabalham com a hipótese de que não existam vítimas de estupro, mas sim so-breviventes, de tão invasivo e violento que esse ato é. Obrigar uma mulher que engravidou de um estupro a ter o filho é um absurdo. Esse estatuto represen-ta um retrocesso de décadas, como se caminhássemos para trás. As pessoas que propuseram isso não sabem o que é uma mulher e o que é a maternidade para a mulher”, critica Anna Marina.

O artigo 13 determinava ainda que o agressor deveria pagar pensão ali-mentícia até que a criança completasse 18 anos. Se o autor do estupro não fos-se identificado, a responsabilidade da pensão recairia sobre o Estado.

Rose Santiago conta que já acolheu, em sua ONG, vítimas de estupro que optaram por ter o filho. Segundo a di-retora, é possível que a mãe conviva com a criança sem associá-la ao trau-ma provocado pelo ato violento. “Os judeus não escolheram o holocausto. As mulheres não escolheram o estu-pro. Os bebês não escolheram o abor-to. Quem deve ser punido é quem pra-ticou o estupro, e não a criança, que não tem culpa. Já tivemos casos de mulheres que foram violentadas e as atendemos. A menos abalada foi a que optou por ficar com o bebê. De vez em quando, ela vem ao escritório para passar pela psicóloga. A menina é linda e ela nos diz que, quando olha para ela, sequer se lembra do estuprador”, pontua a te-óloga.

Para Margarida Lacombe, uma lei como essa está em descompasso com a realidade. “O aborto é uma questão de Saúde Pública. Fazer uma lei que ignora

propositalmente a realidade brasileira de altos índices de aborto é uma tragé-dia”, opina a professora e advogada.

Nem tão laico assimA legislação afasta o Brasil dos pa-

íses mais desenvolvidos, que, em sua maioria, já possuem dispositivos legais para regulamentar a interrupção da gravidez. Com raras exceções, os países da Europa e da Ásia tendem a autori-zar, variando apenas a semana-limite da gestação para a prática do aborto. Em contrapartida, a África e a América do Sul ainda mantêm leis proibitivas. Mes-mo assim, Colômbia, Peru, Argentina e Uruguai estão à frente, pois permitem o aborto para preservar a saúde física ou mental da paciente.

Alguns especialistas creditam à Igre-ja e à influência das bancadas religiosas na política a responsabilidade do atraso do Brasil diante de seus vizinhos. “Te-mos uma posição ultrapassada, chama-da natalista, que visa proteger o feto. A Igreja Católica é uma aliada nesse caso, porque acredita na Tese da Ladeira, ou seja, ela acha que, ao abrir brecha para aprovar o aborto, serão aprovados tam-bém o suicídio assistido e outras medi-das polêmicas”, afirma José Ribas Viei-ra, professor de Direito Constitucional e um dos coordenadores do Observató-rio da Justiça Brasileira da Faculdade de Direito (FD) da UFRJ.

Também para Anna Marina, a ine-xistência de um Estado efetivamente laico no Brasil explica os retrocessos verificados no “Estatuto do Nascituro”: “Aqui, a gente não tem consolidada a ideia de um Estado laico. Tudo no Brasil é bastante atravessado pelo discurso re-ligioso. Não conseguimos ter a concep-ção do nosso corpo como sendo algo nosso, sobre o qual podemos legislar. O aborto é uma questão de foro íntimo e os índices mostram que muitas mulhe-res morrem fazendo aborto clandestino e outras tantas ficam esterilizadas. Isso já deveria ser suficiente para a gente ter caminhado para a regulamentação do aborto, numa direção oposta à pro-posta pelo projeto de lei”.

“Aqui, a gente não tem consolidada a

ideia de um Estado laico. Tudo no

Brasil é bastante atravessado pelo

discurso religioso.”

Julho/Agosto 2010UFRJJornal da 26

Após os atentados terroris-tas ao edifício World Trade Center, símbolo do capitalis-

mo, no coração de Nova Iorque, e ao Pen-tágono, sede do Departamento de Defesa dos Estados Unidos, o mundo entrou em uma nova era geopolítica - a guerra ao ter-ror - capitaneada pelos norte-americanos, vítimas desses grandes atentados, que ti-veram a maior repercussão na história. A agressão foi planejada, financiada e condu-zida pela al-Qaeda, organização terrorista até então praticamente desconhecida, li-derada pelo milionário saudita Osama bin Laden. Dezenove terroristas, 15 dos quais sauditas, sequestraram quatro aviões. Dois chocaram-se com as torres gêmeas do World Trade Center, um contra o Pentágo-no e o quarto caiu na Pensilvânia antes de atingir seu alvo, possivelmente o Capitólio, em Washington.

A reação dos EUA foi endossada pela ampla maioria da comunidade internacio-

nal, que apoiou a invasão do Afeganistão,

país no qual o go-

IslãApós os atentados de 11 de setembro de 2001, a fé de 1,5 bilhão de pessoas vem sendo estigmatizada por conta das atrocidades de uma minoria.

Bruno Franco

a tolerância denegrida pelo terror

verno extremista Talibã abrigava e prati-cava treinamentos conjuntos com diver-sos grupos terroristas como a al-Qaeda e o Movimento Islâmico do Uzbequistão (MIU), que supostamente representa uma ameaça à estabilidade não apenas da repú-blica uzbeque como às demais nações da Ásia Central.

O 11 de setembro e o seu corolário, a guerra ao terror, não tiveram apenas con-sequências militares. Os check-ins dos ae-roportos norte-americanos tornaram-se mais rigorosos para viajantes do mundo todo, sobretudo a revista aos passageiros muçulmanos, ou somente de aparência muçulmana. Nos EUA, até mesmo sikhs, confundidos com muçulmanos pelo uso do turbante, foram vítimas de agressões, e na Europa, nos países que contam com significativas minorias islâmicas, a animo-sidade cresceu.

Os injustificáveis atos de uma mino-ria extremista têm sido associados a um dos maiores grupos religiosos do planeta, reforçando preconceitos, estereótipos e fomentando discriminação e hostilida-de, em uma espiral de irracionalidade na

qual mídia e opinião pública nutrem-se mutuamente.

Mas a ideia de que o islamismo está associado à intolerância e à violência é contradita pelo próprio significado do Islã, uma palavra que deriva de salaam, ou seja, paz, no idioma árabe. Como ex-plica Sami Isbelle, diretor pedagógico da Sociedade Beneficente Muçulmana do Rio de Janeiro (SBMRJ) e autor dos livros Islam: a sua crença e a sua prática e O Es-tado islâmico e a sua organização (ambos da editora Azaan), muçulmano é todo aquele que se submete voluntariamente à vontade de Deus e assim está em paz con-sigo mesmo, com a sociedade ao seu re-dor e com Deus. “A primeira palavra que o muçulmano diz pela manhã é salaam e a saudação entre muçulmanos é Assala-mu Alaikum (Que a paz esteja sobre vós!), com a resposta Alaikum Assalam (E sobre vós a paz!). A paz é o que norteia esta reli-gião, e não a guerra, o terrorismo”, ensina o pedagogo.

Inquisição e Cruzadas: o Ocidente esqueceu?

O estereótipo da intolerância islâmi-ca frente às demais culturas é desmentido pela história, tal como ela é conhecida por qualquer ocidental. Durante oito séculos, parte do atual território espanhol (a An-daluzia) esteve sob domínio muçulmano. A liberdade de culto de judeus e cristãos foi preservada durante todo esse tempo, bem como foram respeitadas igrejas e sinagogas. A ocupação islâmica deixou um significativo legado na Arte, na Ar-

quitetura, na Álgebra, na Geometria e na Química. “Quando os cristãos reconquis-taram a região, não procederam da mes-ma forma, mas perseguiram todos os que professavam outras religiões, os conver-tiam à força ou os matavam e instauraram a Inquisição”, relembra Isbelle.

O mesmo se deu na Palestina, à épo-ca das Cruzadas, onde cristãos e judeus tinham garantida sua liberdade de culto e de construção de templos, embora o governo fosse islâmico. “Quando os cru-zados chegaram, os historiadores, mes-mos os cristãos, relatam os massacres que impuseram não apenas a muçulmanos e judeus, mas mesmo aos cristãos que não seguiam a fé católica, como os ortodoxos. Quando chegaram a al-Aqsa, o sangue derramado de suas vítimas batia nos jo-elhos de seus cavalos e não faziam distin-ção se eram idosos, mulheres ou crian-ças”, relata o diretor da SBMRJ.

O terrorismo não é justificado, nem aceito pelo clero muçulmano. Em sermão proferido em agosto de 2008, o principal líder religioso saudita, o mufti Abdula-ziz bin Abdala al Sheikh, enfatizou que nem o Islã nem Alá apoiam o terrorismo e missões suicidas. “O terrorismo é um problema internacional [...]. O dever do muçulmano é se opor a isso”, afirmou o xeque, na mesquita de Namira, local em que, segundo a crença, o profeta Maomé pronunciou seu último sermão.

Mídia como reprodutora de preconcei-tos

A concentração dos meios de co-municação nas mãos de poucos empre-

O preconceito contra o Islã e os muçulmanos é chama-do de islamofobia (Islam + phobia, palavra grega que de-signa medo ou aversão). Na Europa, o problema já foi re-conhecido em diversas instâncias, como o “Fórum Inter-

nacional de Combate à Intolerância de Estocolmo” e o Centro Europeu de Monitoramento do Racismo e da Xenofobia. A islamofobia e a segregação de minorias muçulmanas foram condenadas pelo Conselho dos Direitos Huma-nos da Organização das Nações Unidas (ONU), no dia 25 de março de 2010.

O think tank (usina de ideias) Runnymede Trust (agência inglesa indepen-dente de pesquisa política e social), que defende um futuro multiétnico para a Grã-Bretanha, identificou algumas percepções correlatas à islamofobia, dentre as quais: o Islã é visto como um bloco monolítico, estático e incapaz de acom-panhar mudanças; como o “Outro”, uma exterioridade absoluta; é tido como inferior ao Ocidente; é considerado violento, ameaçador e conivente com o terrorismo. Por outro lado, o escritor britânico Salman Rushdie encabeçou um manifesto, divulgado em 2006, chamado “Juntos, enfrentando o novo totalita-rismo”, no qual afirma: “Nos recusamos a renunciar a nosso espírito crítico por medo de sermos acusados de islamofobia”. Rushdie é o autor do livro Versos satânicos, publicado em 1989, que levou o aiatolá iraniano Khomeini a emitir uma fatwa (pronunciamento legal, que pode ou não ser seguido) ordenando a execução do escritor pela blasfêmia contra o Islã. A fatwa foi revogada em 1998.

O que é islamofobia?

27Julho/Agosto 2010 UFRJJornal da

sários faz com que as informações das grandes agências de notícias sejam reproduzidas quase literalmen-te por veículos do mundo todo. Essa é a visão de Isbelle, para quem a mídia pas-sa uma mensagem subliminar. “Bate na mesma tecla e as pessoas desenvolvem aversão ao Islã e nem mesmo querem saber do que se trata. As primeiras coisas que lhes vêm à mente são terrorismo, Bin Laden, mulher oprimida. É isso o que a mídia veicula o tempo inteiro. Parece que há um objetivo de levar as pessoas à aver-são completa ao Islã”, protesta o islamita.

O escritor adverte que um ato ter-rorista, quando realizado por um muçul-mano, é sempre noticiado enfatizando-se a religião do criminoso. Mas, se o mesmo ato é feito por um não-muçulmano, a fé dessa pessoa não costuma ser mencio-nada: “Quando o Exército Republicano Irlandês (IRA) fazia algum atentado na Ir-landa do Norte, não se falava em terroris-mo católico. Agem como se o terrorismo fosse algo pregado pelo Islã. Hoje, somos mais de 1,5 bilhão de muçulmanos. Caso isso fosse algo pregado pela nossa religião, acho que já não existiria mais pedra sobre pedra. Não é?”.

Para Renzo Taddei, antropólogo e professor da Escola de Comunicação (ECO) da UFRJ, tal representação feita pela mídia ocorre em um contexto espe-cífico e mesmo durante a primeira guerra do Golfo não era forte “essa balela de cho-

que de civilizações”. Segundo Taddei, essa teoria (proposta pelo cientista político norte-americano Samuel Huntington, pela qual as diferenças culturais seriam a causa maior de conflitos), do ponto de vista antropológico, é completamente equivocada. “Não existem no mundo

representações estanques. Impossí-vel pensar isso no contexto atual

de integração de comuni-cações, de finanças, de

mercado de traba-lho. Tampouco

existe uma ú n i c a c o i s a

c h a m a -da islamismo.

Existe uma infinidade de variações do islamismo da

mesma forma que acontece com o cristianismo. Não há como contrapor mun-do ocidental e mundo is-lâmico, pois não são blo-cos monolíticos”, explica

o professor.O fundamentalismo, de

acordo com Taddei, é um proble-ma comum ao islamismo, ao cristia-nismo e ao judaísmo. “Um dos maiores problemas do Estado de Israel é com o fundamentalismo judaico, responsável pela morte do ex-primeiro-ministro Yitzhak Rabin. Todos os grupos cultu-rais têm problemas com fundamenta-listas. A questão é o porquê de a mídia

tratar os fundamentalistas como se fossem bons representantes da co-

munidade muçulmana, coisa que nunca faria com fundamentalis-tas cristãos”, critica o professor.

Como exemplo desses dois pesos e duas medidas da mídia, Tad-dei relembra um caso ocorrido quando morava nos EUA: “Um artista africano fez uma exposição no Museu de Arte do Brooklyn e um de seus quadros, uma Ave-Maria, cuja composição tinha excrementos de elefante, causou grande comoção em Nova Iorque. A exposição foi cancelada quase que imediatamen-te”. Comoção semelhante despertou a publicação de 12 charges, chamadas de “As Faces de Maomé”, pelo jornal dina-marquês Jyllands-Posten. As caricaturas levaram a protestos de ministros árabes e a passeatas pelas ruas de Copenhague. “A história do artista africano é muito parecida, mas afetando a sensibilidade cristã, e ninguém menciona a seme-lhança”, compara o antropólogo.

“A imprensa sofre cronicamente a ditadura do espaço”, analisa Taddei, para quem “às vezes o jornalista tem de se esforçar para preencher o espaço do jornal, mas é mais comum que ocorra o contrário.” Nesse panorama, o antro-pólogo considera difícil que a mídia dê conta de questões culturais complexas, buscando assim o lugar-comum. “O es-tereótipo é uma coisa ruim do ponto de vista ideológico, mas é conveniente do ponto de vista operacional. É um me-canismo de concisão coletiva, por mais

distorcido que seja, e todos são. Ele faz com que a comunicação funcione de maneira mais rápida e tomando menos tempo e menos espaço”, analisa o pro-fessor.

Isso explica por que a mídia faz uso de estereótipos, e como eles refle-tem o senso comum; os jornalistas nem sempre percebem que fazem uso deles. “Quando se apresenta uma situação de complexidade cultural, a coisa fica mais difícil. Desmontar o estereóti-po requer esforço intelectual, tempo”, conclui Taddei.

Um dos mais frequentes estereóti-pos associados ao Islã é o da submissão da mulher. Isbelle rebate mais essa ca-ricaturização com argumentos históri-cos. “O Islã garantiu à mulher o direito a escolher seu marido, a receber heran-ça, a divorciar-se, a ter prazer sexual, a estudar (uma obrigação religiosa, na verdade), a trabalhar e receber o mes-mo salário que o homem, no exercício da mesma função, e de dispor de seus bens sem interferência do pai ou mari-do. A sociedade ocidental somente con-feriu alguns desses direitos às mulheres no século passado”, explica o escritor.

JihadUm conceito islâmico que é cons-

tantemente distorcido e entendido como algo ruim é o jihad. Essa palavra, quase sempre traduzida como guerra santa (harb al makadass), na realida-

de significa empenho. O Islã distin-gue o conceito em duas variantes. No livro Jihad (ed. Cosac & Naify), o jor-nalista Ahmed Rashid ensina que “o grande Jihad, na explicação do profeta Muhammad, é, em primeiro lugar, uma busca interior: implica o esforço de cada muçulmano para se tornar um ser humano melhor, a luta para melhorar a si mesmo”.

O jihad menor, por sua vez, é ex-tremamente amplo. “É desde tirar uma pedra do caminho para outra pessoa não tropeçar, até conceder uma entre-vista para esclarecer o que é o Islã”, ex-plica Isbelle. Como reforça Rashid em seu livro, “em parte alguma dos escritos ou da tradição muçulmana o Jihad san-ciona a matança de homens, mulheres ou crianças inocentes, muçulmanos ou não, com base em etnia, seita ou crença. É esse desvirtuamento do Jihad – como justificativa para massacrar inocentes - que em parte define o neofundamen-talismo radical dos movimentos islâmi-cos mais extremistas da atualidade”.

O Islã permite ao muçulmano a autodefesa, mas não que inicie um combate, e caso o adversário cesse as hostilidades, o muçulmano deve fazer o mesmo. “O Corão antecipou em mais de 1.400 anos a Convenção de Genebra (que dispõe sobre o direito em conflitos arma-dos) e muitos de seus artigos, na proibição de ataques a mananciais de água, a crianças, mulheres e idosos”, orgulha-se Isbelle.

Grupo da UFRJ acompanha o terrorismo internacional

O Programa de Pós-graduação em História Comparada do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (Ifcs) da UFRJ mantém o Grupo de Acompanha-mento e Análise do Terrorismo Internacional (Gaati). Coordenado pelos pro-fessores Francisco Carlos Teixeira e Alexander Zhebit, também professor do curso de Relações Internacionais, o grupo, criado em 2006, organizou desde então diversos seminários, entre eles “Sete Anos de 11 de Setembro de 2001: da guerra ao terror à estratégia antiterrorista”, que resultou na publicação em 2009 do livro Neoterrorismo: reflexões e glossário (Gramma, 2009), organiza-do por Zhebit e Teixeira.

De acordo com Zhebit, o culto à violência e o desprezo pela vida hu-mana são os traços comuns aos grupos terroristas. No entanto, o chamado neoterrorismo “rompeu os quadros nacionais do velho terrorismo, trans-bordou os limites da luta por uma causa política ou nacional (autodeter-minação, secessão, descolonização). As fronteiras de terrorismo expandi-ram, formando um desafio não meramente aos governos, mas aos valores da comunidade internacional, expressados na Carta das Nações Unidas. Atentados de grande porte foram cometidos em Buenos Aires, Nova Ior-que, Madrid, Beslan, Londres, Mumbai, Moscou, e de menor porte em de-zenas de cidades do mundo. O Iraque, o Afeganistão e o Paquistão sofre-ram os piores ataques pelo número dos mortos e mutilados desde 2001”, analisa Zhebit.

“O fundamentalismo religioso e a luta pela secessão, apesar de fomen-tarem terrorismo”, explica Zhebit, “não são os únicos ambientes em que ele pode prosperar.” Segundo o professor, o terrorismo surge em situações de conflitos armados prolongados, de repressão aos direitos políticos e sociais, de discriminação religiosa ou étnica, de marginalização econômica e social, de avanço do narcotráfico e do crime organizado.

Nos últimos anos, o terrorismo teve avanço expressivo no Oriente Médio e no Sul da Ásia. Na avaliação de Zhebit, isso se deve ao conflito duradouro que assola essas regiões e em consequência da guerra ao próprio terrorismo. Mas “hoje em dia transformou-se em uma ameaça que é capaz de atingir, tan-to de dentro quanto de fora, qualquer sociedade que não o enfrenta e se atrasa na solução de problemas de segurança e desenvolvimento”.

UFRJJornal da 28 Assédio Moral Junho 2010

Desde que a divisão social do trabalho foi estabele-cida, ela existe. Mas, so-

mente em tempos recentes, a violência moral no ambiente de trabalho tem sido objeto de atenção. Os males provocados por essa prática, à qual a sociedade es-teve, longamente, indiferente e da qual foi cúmplice, são muitos: tanto à saúde, à sociabilidade e ao desempenho profis-sional da vítima, como à produtividade e eficiência da instituição que não reprime a constituição de uma cultura de violên-cia no seu interior.

Esse fenômeno social começa a ser identificado por meio de pesquisas nos campos da Psiquiatria e da Psicolo-gia do Trabalho, de pioneiros como o alemão Heinz Leymann, em 1984, e a francesa Marie-France Hirigoyen, au-tora do livro Assédio moral: a violência perversa no cotidiano (Bertrand Brasil, 2000). Atualmente, mesmo a Organi-zação Internacional do Trabalho (OIT) reconhece que o assédio moral (tam-bém chamado, em inglês, de mobbing) constitui um problema internacional.

O problema se caracteriza pela rei-teração de comportamentos abusivos e humilhantes – sejam gestos, pala-vras ou ações – que prejudicam a in-tegridade psíquica do trabalhador. Na definição de Margarida Maria Silveira Barreto, autora de Violência, saúde, trabalho: uma jornada de humilhações (Educ, Fapesp, 2003), participante da equipe do site www.assediomoral.org, o assédio moral é “revelado por atos e comportamentos agressivos, que vi-sam à desqualificação, desmoralização profissional, desestabilização emocio-nal e moral do assediado, tornando o ambiente de trabalho desagradável, insuportável e hostil”. As agressões podem partir tanto de colegas do mesmo cargo e função quanto de su-periores hierárquicos.

De acordo com Marisa Palácios, professora do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva (Iesc) da UFRJ, a existência de conflito por si só não basta para configurar a situação de assédio. “Não há violência no confli-to quando há negociação, quando se reconhece a autonomia do sujei-to”, explica a pesquisadora da área de Saúde Coletiva, com ênfase em Bioética e Saúde Mental e Trabalho.

O ambiente de trabalho, no qual o indivíduo põe em prática anos de estudo e aperfeiçoamento, provê o seu sustento e emancipa-se como sujeito, pode trazer uma grave ameaça à sua carreira e

mesmo à sua saúde: o assédio moral.

Bruno Franco

ViolênciaConstrangimentos e humilhações

Segundo Marisa, a violência moral afeta a dignidade de milhões de trabalhadores em todo o mundo e é fonte de estigmatização social: “um pro-cesso de intimidação, humilhação, que leva a vítima ao descrédito de si mesma. Pode culminar na perda de autoestima e mesmo danos irreversíveis à saúde física e mental”. Além disso, quando ocorre no setor de serviços, gera impacto na qua-lidade. “No ambiente onde um não res-peita o outro, o cliente também não será respeitado”, acrescenta a especialista.

Ângelo dos Santos Soares, professor da Universidade de Québec (Canadá), durante o XIV Encontro de Enferma-gem, Trabalho e Saúde do Trabalhador, organizado pela Escola de Enfermagem Ana Nery (EEAN) da UFRJ, explicou que o assédio moral possui três compo-nentes: o agressor, o alvo e o contexto – este último, tolerante ou incitador da violência.

Para Soares, o assédio moral é esti-mulado pela estruturação competitiva da atividade produtiva, expressa em ca-racterísticas como densificação do tra-balho, e novas formas de gestão. “Tempo integralmente útil, qualidade total, flexi-bilidade e empoderamento são palavras bonitas que travestem o ‘neotaylorismo’”, critica o especialista em Assédio

Moral, Emoções e Saúde Mental no Tra-balho.

Segundo ele, o chefe não deve re-preender o funcionário em frente a seus colegas. “Aí, escorrega-se para o assédio moral, pois é humilhação. O funcionário pode ser ruim, mas o feedback tem de ser em particular.” Para Soares, o autor do assédio age como um vírus: quer que a vítima cometa autofagia (destrua a si mes-

ma). “Poucos percebem e a pessoa culpa a si mesma pelo fracasso. No fim, nasce um profissional incompe-tente e descartável, pronto para pedir demissão ou ser demitido”, sintetiza o pesquisador.

De acordo com Terezinha Mar-tins dos Santos Souza, também pro-fessora do Iesc, o assédio moral é uma violência, usualmente velada, insidiosa, cujo foco é a identidade da

29Julho/Agosto 2010 UFRJJornal da

Junho 2010Junho 2010 Assédio Moral

insidiosa

pessoa, o que a constitui. No entanto, Terezinha acredita que não haja fór-mula fechada para defini-lo. “Normal-mente é uma reiteração de atos, mas,

às vezes, um ato isolado, feito de forma violenta, pode produzir o

dano que o assédio sistemá-tico não conseguiu infligir”,

relativiza a especialista em Psicologia Social.

A agressão, tam-pouco, nem sempre é

sorrateira. Como exemplo, Teresinha Martins cita que a empresa AmBev já foi condenada por fazer seus funcioná-rios de menor rendimento passar por situações constrangedoras. “Caso fosse um homem branco, desfilaria com um pênis negro; caso fosse negro, o faria com um pênis branco. Isso não tem nada de sutil”, relata a professora.

O “caldo de cultura” desse ambiente de trabalho nocivo é o estabelecimento de um paradigma gerencial que esti-mula a competitividade entre os fun-

cionários, como forma de ampliar sua produtividade. “Em um país

como o nosso, com situação de desemprego estrutural, baixo nível educacional, as pessoas se submetem. É preciso haver um sistema de regulação que não per-

mita que essas coisas aconteçam”, defende Teresinha Martins.

Combatendo a violência moral na UFRJNa UFRJ, não havia nenhum diag-

nóstico acerca da incidência do assédio moral entre servidores da universida-de, nem mecanismos adequados para combatê-lo. Para mudar o panorama, a equipe do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva (Iesc) – que orienta pesquisas sobre o assédio moral no setor de saúde da instituição - se reu-niu com o Sindicato dos Trabalhado-res em Educação da UFRJ (Sintufrj), com a Pró-reitoria de Pessoal (PR-4) e a Divisão de Saúde do Trabalhador (DVST) para a montagem de um flu-xo de atendimento às vítimas de vio-lência moral.

Segundo Marisa Palácios, do Iesc, em comum acordo, foi decidido que a porta de entrada para o atendimento a essas pessoas seria o Serviço Social da DVST, e a partir daí todos iriam acompanhar o processo. “Antes de dizermos se é ou não um caso de as-

sédio moral, essa pessoa que procura a DVST precisa de acolhimento, de pro-teção, pois dada a gravidade do assédio moral não podemos dizer ‘vamos dar um tempo’, mas vamos acompanhando, já que o dano pode se tornar perma-nente. A situação de assédio tem de ser interrompida imediatamente”, explica a professora.

A questão, contudo, está longe de ser simples. Um entrave é que a PR-4 não pode afastar o servidor de sua unidade, interferindo na autonomia dela. Além disso, “caso o assediado não possua um diagnóstico clínico do dano que vem so-frendo, como conseguir licença médica para afastá-lo? A gente precisa de um mecanismo que, nos marcos da admi-nistração, possibilite proteger as pessoas”, reflete Marisa.

Como a pessoa assediada costuma sentir-se isolada, a intenção das pesqui-sadoras do Iesc é de que a universidade

se contraponha a isso. “Quem está sen-do assediado não tem como se dirigir ao chefe, que normalmente é o assedia-dor. A ideia é que possamos iniciar um amplo debate na UFRJ acerca do tema, e que o atendimento seja algo integrado à administração da universidade”, afirma Teresinha. Para Luciene Lacerda, tam-bém pesquisadora do Iesc, “os colegas de trabalho do assediado sabem que a ‘corda arrebentará’ do lado mais fraco e se afastam da vítima, deixando-a sozi-nha. Assim, o assediador consegue seu intento”.

Além disso, o objetivo não se limi-ta à assistência ao assediado, mas abar-ca a prevenção à ocorrência do assédio. Segundo Teresinha, há uma proposta para que em cada unidade acadêmica da UFRJ haja um local de discussão a respeito da organização e da ética do tra-balho. “Não para impor nada às uni-dades, mas onde houver interesse, a

Durante a Conferência Internacional sobre Assédio Moral e outras Manifestações de Violência no Trabalho: Ética e Dignidade dos Trabalhadores (realizada no Centro de Ciências Matemáticas e da Natureza, entre os dias 12 e 15 de julho), a equipe coorde-nada por Marisa Palácios, Luciene Lacerda e Teresinha Martins, apresentou os resultados de uma pesquisa sobre violência moral no trabalho, feita com 868 trabalhadores de unidades dede saúde da UFRJ, o que corresponde a 20% do efetivo desse setor da UFRJ. Na avaliação de Marisa, um percentual significativo, que respalda a sondagem.

A equipe esperava encontrar um público mal-informado quan-to ao assédio moral e teve uma grata surpresa: 73% dos entrevista-dos já tinham ao menos ouvido falar do problema.

Nos últimos 12 meses, 7,9% dos entrevistados foram humilha-dos ou desqualificados de forma persistente. Os casos de assédio concentram-se entre os mais jovens (até 29 anos) e mais velhos (mais de 50 anos), mas, a diferença de resultado entre mulheres (8,8%) e homens (7,1%), bem como entre negros (8,8%) e brancos (7,1%) não foi considerada estatisticamente relevante pelas pes-quisadoras do Iesc.

A pesquisa revelou que auxiliares de enfermagem (16,7%), téc-nicos em enfermagem (13,1%) e enfermeiros (10,5%) sofrem mais com o assédio moral do que os médicos (5%) da universidade.

Mais da metade dos entrevistados considera o assédio um pro-blema institucional (52%), e preocupante (66%). No entanto, 19% não relataram caso de assédio, pois não sabiam a quem relatar, e 30% não o fizeram porque achavam que não seria tomada qual-quer providência. Em 42% dos casos, os assediados receberam al-gum tipo de apoio, de colegas ou da unidade na qual trabalha. Em pouco mais de um terço dos casos de violência moral (34%) não houve nenhuma consequência ao agressor.

gente pode fomentar essa discus-são. Pensamos em fazer uma vez por ano, no início de maio (2 de maio é o Dia Nacional de Comba-te ao Assédio Moral), uma sema-na de discussões para tentar mu-dar as condições que propiciam o assédio. Não nos interessa apenas ‘correr atrás do prejuízo’ depois que ele foi feito”, explica a professora.

A abertura do amplo debate é importante, pois, como explica Marisa, a universidade tem gran-de responsabilidade com seus trabalhadores e estudantes. “Caso tenhamos aqui um ambiente de violência, formaremos pesso-as que reproduzirão isso mundo afora. Caso queiramos um mundo de paz, precisamos mostrar, claramente, em nossas ações, que não toleraremos forma alguma de violência”, conclui Marisa.

Avaliando o assédio na UFRJ

Junho 201030 UFRJJornal da

Pedro Barreto e Rodrigo Baptista

Cultura

No diálogo imaginado por José Saramago em O evan-gelho segundo Jesus Cristo

(1991), o Diabo tenta convencer Deus a aceitá-lo de volta à sua fileira de anjos, em troca da salvação de Jesus e de cen-tenas de milhares de homens que, ao longo dos séculos, perderiam a vida em consequência de torturas, execuções e guerras religiosas travadas em evocação ao Divino. O romance é conduzido sob a perspectiva do filho de carpinteiro, através de uma narrativa onisciente, em que o autor habilmente levanta questões sobre o lugar da fala margi-nal. “É uma opção pelos pequenos. Alguns podem dizer que é a ótica de Jesus, mas, naquele contexto, Jesus é o pequeno, o aprendiz”, observa Teresa Cristina Cerdeira, professora da Facul-dade de Letras (FL) da UFRJ e autora de José Saramago - entre a história e a ficção: uma saga de portugueses, tese de douto-rado defendida pela docente, na UFRJ, em 1987, diante da presença do próprio escritor.

O evangelho expõe de maneira evi-dente o pensamento de Saramago sobre a forma como as religiões, em especial, a católica, exercem seu poder sobre os homens. Por pressão dos eclesiastas, o governo português vetou a indicação do romance para o Prêmio Literário Euro-peu, em 1992, decisão que levou o autor a exilar-se na Ilha de Lanzarote, nas Ca-nárias, onde residiu até o dia de sua mor-te, em 18 de junho último, aos 87 anos. Saramago deixará como legado seu assu-mido ateísmo e, ao mesmo tempo, uma inabalável fé nos homens, a despeito do suposto pessimismo que alguns lhe atri-buem. Este, pelo menos, é o pensamento de Cleonice Berardinelli, titular da ca-deira número oito da Academia Brasi-leira de Letras (ABL), professora emérita da FL e, sobretudo, amiga do literato. “Estou certa de que Saramago acredita-va que o mundo poderia ser melhor. Se não o acreditasse, não se empenharia em lutar pelos homens, com a força da sua palavra, como sempre fez”, afirma a imortal, a respeito do primeiro autor de língua portuguesa a conquistar o Prêmio Nobel de Literatura, em 1998, por Ensaio sobre a cegueira, e vencedor do Prêmio Camões, em 1995, entre outros.

A Boa-novaSaramago“Não te aceito, não te perdôo, quero-te como és, e, se

possível, ainda pior do que és agora, Porquê, Porque este Bem que eu sou não existiria sem esse Mal que tu és,

um Bem que tivesse de existir sem ti seria inconcebível, a um tal ponto que nem eu posso imaginá-lo, enfim, se

tu acabas, eu acabo, para que eu seja o Bem, é necessário que tu continues a ser o Mal, se o Diabo não vive como

Diabo, Deus não vive como Deus, a morte de um seria a morte do outro (...).”

“Comunista hormonal”, como ele próprio se definia, Saramago deixou uma obra que o eleva à plêiade dos principais autores de língua portuguesa contempo-râneos, um patamar acima dos homens de letras, verdadeiro intelectual e mordaz crítico da cultura ocidental capitalista. Luci Ruas, professora do Departamento de Línguas Vernáculas da FL, observa no escritor português o legado da literatura neorrealista portuguesa das décadas de 1940 e 1950, sem, no entanto, deter-se neste gênero. “O Neorrealismo foi um movimento literário que tentou deslocar o olhar do indivíduo para o coletivo. Da mera transcrição de uma realidade pro-blemática para as tensões que envolvem essa realidade: sociais, econômicas etc. E Saramago faz isso com extrema poesia, ou melhor, com um extremo apelo poé-tico”, aponta a docente.

Teresa Cristina Cerdeira faz coro com a análise de que Saramago conseguiu transpor com maestria sua indignação com as injustiças sociais para as páginas de seus romances. Mas acrescenta que o engajamento do autor ia além dos livros. “Era uma voz presente tanto no episódio de Eldorado dos Carajás como na ques-tão de Israel. Quer dizer, era alguém que ofereceu a ‘cara à tapa’. Não teve medo de não ser diplomático. Não se limitou à Literatura, extrapolou de longe o espa-ço literário. Era um homem de atuação”, destaca a professora.

Estilo literárioParágrafos intermináveis, raros pon-

tos finais, diálogos entremeados em uma

mesma frase são algumas características que identificam a inconfundível escrita do autor e que, por vezes, afastam os jo-vens de seu universo e fazem os incautos e apressados leitores o rotularem como escritor “difícil”, hermético ou rebusca-do. “A narrativa ‘saramaguiana’ jamais me pareceria enfadonha, pois que fui fascinada por ela desde a primeira leitu-ra de seus primeiros livros: Levantado do chão e Memorial do convento. Acho que a disposição do discurso em blocos, que quase tomam toda a página, desprovi-dos de uma parte da pontuação habitu-al, é um convite ao leitor para participar da criação do sentido, o que lhe dá uma sensação de estar também no processo criativo. Tenho pena de não lhe ter nun-ca perguntado se estava certa. Agora, já não posso fazê-lo, com grande pena”, la-menta Cleonice Berardinelli.

Luci Ruas observa que, ao permitir-se subverter as próprias normas da lín-gua portuguesa, Saramago chamava a atenção para o lugar do interlocutor em sua relação com o outro. “As coisas se interpenetram ao ponto de ganhar uma fluidez tal que a gente não consegue às vezes definir o que são as falas de suas personagens. Em Levantado do chão, há um trecho que pode servir de exemplo: ‘Tanta paisagem, tantos são os cami-nhos... Um homem é capaz de se perder nesse caminho se já nasceu perdido.’ En-tão, acho que, nas páginas de Saramago, o sujeito é capaz de se perder nas vias da sua fala se não se atenta ao próprio dis-curso”, aponta a pesquisadora.Saramago e a tecnologia

O mesmo escritor para quem “a In-ternet não veio para salvar o mundo” criou o blog “Outros Cadernos”, que

31Julho/Agosto 2010 UFRJJornal da

Junho 2010 Cultura

passou a ser atualizado pela Fundação Saramago, após sua saúde debilitar-se. Seu perfil na rede social Twitter ainda está ativo. Tentava resistir de dentro à ló-gica dos 140 caracteres: “De degrau em degrau, vamos descendo até o grunhido”, disse, em entrevista ao jornal O Globo, em 26 de julho de 2009.

Repudiado por Adorno e Horkhei-mer, em A dialética do esclarecimento (1944), por estar inexoravelmente inte-grado à indústria cultural, mas louvado por Walter Benjamin, em seu clássico A obra de arte na época de sua reprodutibi-lidade técnica (1936), o cinema rendeu-se – ou apropriou-se de, como prefe-rem os apocalípticos – a Saramago. Seu romance Ensaio sobre a cegueira (1995) foi adaptado pelo cineasta brasileiro Fer-nando Meirelles em 2008 e tornou-se rapidamente sucesso de crítica e público. O próprio diretor contou que, ao final da exibição do filme, em sua pré-estreia, o escritor chegou a deixar rolarem as lágrimas. A amiga Cleonice diz ter du-vidado do êxito da versão do romance para as telas. “O tema e a maneira como era apresentado no livro me pareciam um obstáculo quase intransponível para uma adaptação cinematográfica. Acho que a realização é excelente. E sei que Saramago gostou muito e ficou emocio-nado em vê-lo”, constata a imortal, que torce por outras adaptações de obras do autor. “Seria ótimo, mas será necessário que o diretor tenha a mesma sensibili-dade de Fernando Meirelles ou que este volte a fazê-las”, sugere a emérita.

LegadoAmado por muitos, rejeitado por

outros, foi perseguido pelas forças con-servadoras que, mesmo após sua morte, insistem em combatê-lo. “Lamento a morte de qualquer um, também a de Sa-ramago, motivo de orgulho para os falan-tes da língua portuguesa. Quem recorrer ao arquivo vai saber que eu estava muito

longe de ser fã de sua obra. Nada mudou. As ditas ‘inovações’ que ele introduziu na literatura — que novidades não eram — nunca me interessaram. A sua tão elogiada ‘técnica’, para mim, depois de algumas páginas, ia se transfor-mando num maneirismo”, publicou o colunista Reinaldo Azevedo em artigo no blog da Revista Veja, no dia da morte do escritor.

Tanto para amigos quanto ini-migos haverá tempo para descons-truir e reconstruir o escritor que se tornou, ele próprio, um perso-nagem de nosso tempo. “Acho que todo grande artista é interpretado

e reinterpretado por muito tempo e por muita gente. Com ele não deve-rá ser diferente, já que, dos autores do nosso tempo, tem sido sempre o mais citado, o mais julgado. Seu legado não será diferente do que é hoje”, prevê Cleonice Berardinelli sobre a memória do escritor que privilegiava a fala dos mais fracos e dava de ombros para os louros que teimavam em conceder a ele. “Sim, tenho o Prêmio Nobel. E quê? Não que eu ache pouco ter o Prêmio No-bel, não, não. É que no fundo, no fun-do, tudo é pouco, tudo é insignificante”, disse, certa vez. Assim é Saramago.

“Estou certa de que Saramago acreditava

que o mundo poderia ser melhor. Se não

o acreditasse, não se empenharia em lutar pelos homens, com a força da sua palavra, como sempre fez.”

Cleonice Berardinelli.

Rafaela Pereira

Julho/Agosto 201032 UFRJJornal da

Almir Guineto

Persona

Poesiade bamba

“Teus olhos me passam relatos de fácil leitura. Me revelam teus hiatos. De afeição nas aventuras. Me contam que a velha saudade ainda te guia. Não te traz felicidade. Um amor a cada dia”.

O que à primeira vista pode parecer um poema, na verdade, é a letra da música Papel Principal, que ficou fa-mosa na voz de Zeca Pagodinho, mas

foi composta pelo trio Almir Guineto, Luverci Ernesto e Dedé Pataiso.

Nascido no Morro do Salgueiro e, desde pequeno, convivendo com músicos de primeira linha, Almir Guineto é considerado, por muitos, um sambista com-pleto e, por que não, um poeta. “Aqueles que fazem samba, eu considero como poetas de primeira qualida-de. Mas é o tempo e o reconhecimento do gosto popu-lar que vão colocá-los como sujeitos que têm alguma coisa especial para dizer”, analisa Fred Góes, professor do Departamento de Ciência da Literatura da Faculda-de de Letras (FL) da UFRJ.

O samba, para Samuel de Araújo, professor do La-boratório de Etnomusicologia da Escola de Música (EM) da UFRJ, é o melhor exemplo de união entre po-esia e música. “Temos a poesia de um Elton Medeiros, de um Cartola, a poesia malandra de um Nei Lopes. É impossível que isso não se traduza em poesia genu-ína e uma poesia à altura da força de expressão dessa música. E nisso, Almir Guineto é exemplo”, aponta o professor.

Samuel vai adiante ao afirmar que a poesia de Gui-neto não é imediata e nem apenas descritiva. “Não está falando apenas do fato que foi presenciado e tampouco de questões simplórias. Ele fala de algo muito mais além, tem certo ar metafísico perpassando. ‘Mel na minha

boca’, por exemplo, transcende a exploração do tema amoroso, pura e simplesmen-

te. Abre possibilidades de interpretações que vão além do corriqueiro”, acredita Samuel de Araújo.

Cria do sambaA veia musical vem de berço. Sofreu influência do

pai, Iraci de Souza Serra, que era violonista e integrante do grupo Fina Flor do Samba, e também de sua mãe, Nair de Souza Serra, a Dona Fia, costureira do Salguei-ro e personagem conhecida nas rodas de samba.

Com uma mistura dessas não poderia ser diferente. Até os irmãos puxaram aos pais. Foi ao lado do irmão Chiquinho que, aos 16 anos, entrou para o grupo Origi-nais do Samba, no qual foi instrumentista por dez anos. “A contribuição de Almir Guineto é bem coerente, no aspecto de união entre música e letra, com a história do samba de uma maneira em geral. Talvez essas mesmas letras cantadas por outros intérpretes, ou compostas por outros autores, tivessem um destino diferente do que acabaram tendo”, avalia Samuel de Araújo.

Como filho do Morro do Salgueiro, Almir Guineto não poderia ter escolhido outra escola de samba. Por 15 anos conduziu a bateria do G.R.E.S. Salgueiro e, ao sair, deixou o cargo para o irmão mais novo, conhecido como Mestre Louro.

Outra participação que merece destaque foi sua atuação no bloco carnavalesco Cacique de Ramos. Foi justamente durante os ensaios do bloco, convivendo

com outros músicos, que Almir Guineto, apoiado por nomes como Beth Carvalho e Jorge Aragão,

fundou o grupo Fundo de Quintal, nele perma-necendo até seguir carreira solo, no início dos

anos 1980.Com boa voz e ritmo insistente e vivaz, Almir

Guineto encantou sua geração. “Eu acredito que o gran-de diferencial dele está na interpretação. Na capacidade de dar um conteúdo e uma densidade que outros não conseguiam. Ele é alguém do mundo do samba que explorou todas as possibilidades. Tanto as de massa – que foi gerir uma bateria de Escola de Samba – quanto fundar um grupo de pagode mais intimista, que acabou virando um movimento”, analisa Samuel de Araújo.

Para o próprio sambista, seu sucesso contou com uma boa dose de sorte. “Acredito que cada um tenha a sua própria história e dê sua contribuição para a cons-trução da nossa música popular. Tive a sorte de ser de uma família de sambistas, crescer em meio a grandes músicos e pertencer a uma geração privilegiada. Mas essa história de sambista completo é um exagero, tem muita gente boa por aí”, afirma, modestamente, Almir Guineto, que saiu do Rio de Janeiro e atualmente mora em São Paulo.

Academia e sambaAos poucos o samba vem ganhando espaço na Aca-

demia. Hoje, na UFRJ, muitas são as teses referentes ao assunto. Porém, ainda faltam atividades que resgatem o seu valor. “Um gênero como esse, uma criação carioca, deveria ter mais espaços. Autores como Elton Medei-ros, Nei Lopes e o próprio Almir Guineto, dentre ou-tros, levaram o samba ao estado de uma arte. E ela de-veria ser ensinada na universidade”, questiona Samuel de Araújo.