entrevista_ imagem, sujeito, poder

Upload: ericooal

Post on 06-Jul-2018

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 8/16/2019 Entrevista_ Imagem, Sujeito, Poder

    1/24

    20/01/2016 FLANAGENS: Imagem, sujeito, poder  

    http://flanagens.blogspot.com.br/2014/03/imagem-sujeito-poder.html 1/24

    S E X T A - F E I R A , 2 8 D E M A R Ç O D E 2 01 4

    Imagem, sujeito, poder

    Entrevista com Marie‐José Mondzain

    A imagem se tornou, nos últimos anos, um dos temas

    teóricos em voga: dela não se fala apenas em termos

    de história da arte, mas também em termossociológicos, de teoria das mídias e de filosofia

    política. Em uma das suas entrevistas precedentes, a

    senhora menciona que na época em que o tema da

    imagem não estava tão na moda era preferível falarde semiologia, do “campo de especialidade que se

    desenvolve entre a filosofia e a gestão dos signos

    sociais”, e que, durante o reinado da semiologia, a

    imagem era abordada em termos de leitura: “lia‐se”

    as imagens. A senhora poderia indicar por que a

    semiologia da imagem finalmente perdeu seu crédito?

    O que supostamente a substitui, no nível do

    pensamento contemporâneo da imagem?

    Marie‐José Mondzain: O controle industrial e comercialdas imagens está inteiramente centrado na ideia de que

    A R Q U I V O D O B L O G

    ► 2016 (2)

    ► 2015 (43)

    ▼  2014 (83)

    ► Dezembro (7)

    ►  Novembro (6)

    ► Outubro (8)

    ► Setembro (4)► Agosto (10)

    ► Julho (8)

    ► Junho (4)

    ► Maio (7)

    ► Abril (9)

    ▼ Março (7)

    Pequeno parágrafo sobre a dor

    Imagem, sujeito, poder

    Ao pescador

    Pequeno parágrafo sobre os

    traços

    Moradas no mundo

    Inequivalência

    Por um fio

    ► Fevereiro (5)

    ► Janeiro (8)

    ► 2013 (90)

    ►  2012 (110)

    ► 2011 (149)

    ► 2010 (41)

    ► 2009 (28)

    ► 2008 (44)► 2007 (80)

    0   mais Próximo blog»   Criar um blog  Login

    F L A N A G E N S

    http://1.bp.blogspot.com/-Imoq6o3qcnI/UzWeLBTlTbI/AAAAAAAABb8/vk7om0BRxDw/s1600/IMG_5885.JPGhttp://1.bp.blogspot.com/-Imoq6o3qcnI/UzWeLBTlTbI/AAAAAAAABb8/vk7om0BRxDw/s1600/IMG_5885.JPGhttp://1.bp.blogspot.com/-Imoq6o3qcnI/UzWeLBTlTbI/AAAAAAAABb8/vk7om0BRxDw/s1600/IMG_5885.JPGhttp://void%280%29/http://flanagens.blogspot.com.br/2014_12_01_archive.htmlhttp://1.bp.blogspot.com/-Imoq6o3qcnI/UzWeLBTlTbI/AAAAAAAABb8/vk7om0BRxDw/s1600/IMG_5885.JPGhttp://void%280%29/http://flanagens.blogspot.com.br/search?updated-min=2014-01-01T00:00:00-02:00&updated-max=2015-01-01T00:00:00-02:00&max-results=50http://void%280%29/http://flanagens.blogspot.com.br/search?updated-min=2015-01-01T00:00:00-02:00&updated-max=2016-01-01T00:00:00-02:00&max-results=43http://void%280%29/http://flanagens.blogspot.com.br/search?updated-min=2016-01-01T00:00:00-02:00&updated-max=2017-01-01T00:00:00-02:00&max-results=2http://flanagens.blogspot.com.br/https://www.blogger.com/https://www.blogger.com/next-blog?navBar=true&blogID=5846467664559625160http://flanagens.blogspot.com.br/2014_02_01_archive.htmlhttp://flanagens.blogspot.com.br/2014/03/inequivalencia.htmlhttp://flanagens.blogspot.com.br/2014/03/moradas-no-mundo.htmlhttp://flanagens.blogspot.com.br/2014/03/moradas-no-mundo.htmlhttp://flanagens.blogspot.com.br/2014/03/pequeno-paragrafo-sobre-os-tracos.htmlhttp://flanagens.blogspot.com.br/2014/03/pequeno-paragrafo-sobre-os-tracos.htmlhttp://flanagens.blogspot.com.br/2014/03/imagem-sujeito-poder.htmlhttp://flanagens.blogspot.com.br/2014/03/imagem-sujeito-poder.htmlhttps://www.blogger.com/home#createhttps://www.blogger.com/home#createhttps://www.blogger.com/home#createhttp://void%280%29/http://flanagens.blogspot.com.br/search?updated-min=2008-01-01T00:00:00-02:00&updated-max=2009-01-01T00:00:00-02:00&max-results=44http://flanagens.blogspot.com.br/https://www.blogger.com/https://www.blogger.com/home#createhttps://www.blogger.com/next-blog?navBar=true&blogID=5846467664559625160https://www.blogger.com/http://flanagens.blogspot.com.br/search?updated-min=2007-01-01T00:00:00-02:00&updated-max=2008-01-01T00:00:00-02:00&max-results=50http://void%280%29/http://flanagens.blogspot.com.br/search?updated-min=2008-01-01T00:00:00-02:00&updated-max=2009-01-01T00:00:00-02:00&max-results=44http://void%280%29/http://flanagens.blogspot.com.br/search?updated-min=2009-01-01T00:00:00-02:00&updated-max=2010-01-01T00:00:00-02:00&max-results=28http://void%280%29/http://flanagens.blogspot.com.br/search?updated-min=2010-01-01T00:00:00-02:00&updated-max=2011-01-01T00:00:00-02:00&max-results=41http://void%280%29/http://flanagens.blogspot.com.br/search?updated-min=2011-01-01T00:00:00-02:00&updated-max=2012-01-01T00:00:00-02:00&max-results=50http://void%280%29/http://flanagens.blogspot.com.br/search?updated-min=2012-01-01T00:00:00-02:00&updated-max=2013-01-01T00:00:00-02:00&max-results=50http://void%280%29/http://flanagens.blogspot.com.br/search?updated-min=2013-01-01T00:00:00-02:00&updated-max=2014-01-01T00:00:00-02:00&max-results=50http://void%280%29/http://flanagens.blogspot.com.br/2014_01_01_archive.htmlhttp://void%280%29/http://flanagens.blogspot.com.br/2014_02_01_archive.htmlhttp://void%280%29/http://flanagens.blogspot.com.br/2014/03/por-um-fio.htmlhttp://flanagens.blogspot.com.br/2014/03/inequivalencia.htmlhttp://flanagens.blogspot.com.br/2014/03/moradas-no-mundo.htmlhttp://flanagens.blogspot.com.br/2014/03/pequeno-paragrafo-sobre-os-tracos.htmlhttp://flanagens.blogspot.com.br/2014/03/aos-pescador.htmlhttp://flanagens.blogspot.com.br/2014/03/imagem-sujeito-poder.htmlhttp://flanagens.blogspot.com.br/2014/03/pequeno-paragrafo-sobre-dor.htmlhttp://flanagens.blogspot.com.br/2014_03_01_archive.htmlhttp://void%280%29/http://flanagens.blogspot.com.br/2014_04_01_archive.htmlhttp://void%280%29/http://flanagens.blogspot.com.br/2014_05_01_archive.htmlhttp://void%280%29/http://flanagens.blogspot.com.br/2014_06_01_archive.htmlhttp://void%280%29/http://flanagens.blogspot.com.br/2014_07_01_archive.htmlhttp://void%280%29/http://flanagens.blogspot.com.br/2014_08_01_archive.htmlhttp://void%280%29/http://flanagens.blogspot.com.br/2014_09_01_archive.htmlhttp://void%280%29/http://flanagens.blogspot.com.br/2014_10_01_archive.htmlhttp://void%280%29/http://flanagens.blogspot.com.br/2014_11_01_archive.htmlhttp://void%280%29/http://flanagens.blogspot.com.br/2014_12_01_archive.htmlhttp://void%280%29/http://flanagens.blogspot.com.br/search?updated-min=2014-01-01T00:00:00-02:00&updated-max=2015-01-01T00:00:00-02:00&max-results=50http://void%280%29/http://flanagens.blogspot.com.br/search?updated-min=2015-01-01T00:00:00-02:00&updated-max=2016-01-01T00:00:00-02:00&max-results=43http://void%280%29/http://flanagens.blogspot.com.br/search?updated-min=2016-01-01T00:00:00-02:00&updated-max=2017-01-01T00:00:00-02:00&max-results=2http://void%280%29/http://1.bp.blogspot.com/-Imoq6o3qcnI/UzWeLBTlTbI/AAAAAAAABb8/vk7om0BRxDw/s1600/IMG_5885.JPG

  • 8/16/2019 Entrevista_ Imagem, Sujeito, Poder

    2/24

    20/01/2016 FLANAGENS: Imagem, sujeito, poder  

    http://flanagens.blogspot.com.br/2014/03/imagem-sujeito-poder.html 2/24

    é preciso que elas sejam de todo co‐extensíveis aodiscurso que as habita – é assim que se vendem ideias,pessoas, coisas. A quantidade de produções visíveis nãotem nada a ver com o excesso de imagem que designeicomo seu próprio, como sua propriedade. Minha relaçãocom a semiologia e a linguística é de curiosidade, de

    interesse. Mas, ao mesmo tempo, sempre vejo que essestextos são – com frequência virtuosos do ponto de vistaconceitual e que desenvolvem os instrumentos de umamicrocirurgia dos objetos –, na maior parte dos casos,redigidos com um espírito de inteligibilidade oucontrole que não necessariamente revelam uma vontadede poder, mas que são, para mim, saberes acadêmicos.A imagem é tratada como um objeto, um objeto do

    saber que tem seus experts e é suscetível deespecialidade.

    Até um período relativamente recente – dado que aquestão da imagem se tornou cada vez maispreponderante desde o início do século XX –, aquelesque escreviam sobre as imagens eram tanto oshistoriadores da arte quanto os industriais da imagem.Mas percebíamos que a filosofia aí não encontrava seuregime: deixamos a imagem se desenvolver sem colocarquestões. Também estou muito interessada pelasleituras das imagens feitas por historiadores comoDaniel Arasse ou Georges Didi‐Huberman que, de fato,integraram aos seus modos de análise a dimensãopropriamente filosófica. A leitura renovada de AbyWarburg permitiu uma espécie de oxigenação emrelação ao aparato bem equipado dos semiólogos, dos

    estruturalistas, dos linguistas, que acabaram por asfixiartotalmente seu objeto ao reduzi‐lo ao estado de coisa.Eu diria que, para certos analistas da imagem e da suahistória, a redescoberta de Aby Warburg ou o retorno aWalter Benjamin são as aberturas libertadoras emrelação à polissemia da imagem. Por polissemia querodizer que a imagem é indecidível, jamais unívoca. Suaequivocidade, sua liberdade, seu excesso, nela se

    encontram como uma respiração. Saímos do laboratórioinstrumentalizado e do senhorio.

    Mas por que também não estou na mesma posição que

    C O L A B O R A D O R E S

    Khôra

    jnf ‐ dos subterrâneos

    https://www.blogger.com/profile/10379530396775754632https://www.blogger.com/profile/06654908722644519478

  • 8/16/2019 Entrevista_ Imagem, Sujeito, Poder

    3/24

    20/01/2016 FLANAGENS: Imagem, sujeito, poder  

    http://flanagens.blogspot.com.br/2014/03/imagem-sujeito-poder.html 3/24

    esses pensadores? De início, porque não sou historiadorada arte e não realizei o mesmo trajeto a partir dafilosofia. Considerando que a imagem havia sido causade guerras, de destruições e de crimes, que pessoas sãomortas por sua causa e que outras tomaram o poder comela, optei por olhar para onde estavam aqueles que as

    faziam, aqueles que as queriam, aqueles que asdestruíam, aqueles que as defendiam, e àqueles paraquem eram verdadeiramente uma aposta de vida emorte. Cheguei a um terreno onde estava, de fato,sozinha. Sou parte do que se passa com a imagem nosmonoteísmos. Era preciso, então, traduzir os textos;passei muito tempo na leitura e tradução desse primeiromaterial.

    É por isso que, para responder a sua questão – é precisouma nova leitura da imagem pois a semiologia não valemais nada? –, não estou nesse regime da questão.Coloquei a questão na sua genealogia: como a questãoda imagem foi posta? Em que momento a imagem setornou uma questão que provoca aqui a repulsão, adelação, a idolatria, a glorificação política, e em outraparte a perversão? Em que momento essa questão foiatrelada? Passei tempos em lugares um pouco solitários,uma vez que se tratava do mundo proto‐cristão,bizantino, iconoclasta, e me encontrei na comunidadecientífica dos filósofos da antiguidade, para os quais aimagem não era um bom objeto, e dos historiadores daIdade Média oriental, para quem a imagem era apenasum problema teológico. Construir um objeto filosóficonessas condições não era simples. Mas penso, em parte,

    ter conseguido, isto é, ter convencido de que havia umaconstrução filosófica do objeto chamado imagemnaquele momento. E é desse momento que é precisopartir. Eis aí a gênese.

    Passemos às questões de conceitos para mencionar

    seu percurso teórico e especificar o vocabulário

    “imagem, ícone, ídolo”, constitutivo de sua obra. Nos

    seus livros Image, icône, économie e Le commerce desregards, a senhora emprega os conceitos “ícone” e

    “ídolo” para falar da imagem e de suas raízes

    religiosas. Ainda que esses dois termos sejam muito

  • 8/16/2019 Entrevista_ Imagem, Sujeito, Poder

    4/24

    20/01/2016 FLANAGENS: Imagem, sujeito, poder  

    http://flanagens.blogspot.com.br/2014/03/imagem-sujeito-poder.html 4/24

    próximos, eles são de significações opostas: a senhora

    indica que ícone, imagem da paz, dá sua legitimidade

    ao ídolo, o qual funciona como um funil do olhar. Ao

    mesmo tempo, a senhora afirma que “ A imagem é

    independente do regime da verdade”. A senhora

    poderia especificar a distinção que aí faz entre o

    ícone, o ídolo e a imagem em geral?

    Em vez de dizer a imagem em geral, diria que “imagem”é um termo genérico, designa o gênero cujas espéciesseriam o ícone e o ídolo. Mas isso também não é de todoverdade.

    Voltemos, assim, às palavras. Uma vez que estamosconversando em língua francesa, somos obrigados apassar por tal língua para falar de coisas que forampensadas primeiramente em hebraico, em grego e,então, em latim. Esses termos não se recobrem de todo:a palavra “imagem” não é a tradução do latim “imago”,esta que não é a tradução do grego “eikon”. Entãovamos, aqui também, tomar as coisas de modo histórico,ir ao terreno histórico onde as coisas se colocaram eaconteceram, em situação de crise, onde a imagem se

    constituiu como questão ao mesmo tempo filosófica epolítica. É importante saber que as coisasprimeiramente foram ditas em grego. Mesmo que, nasigrejas ortodoxas, chamemos eikon os objetos quevemos nas igrejas ortodoxas e que são chamados“ícones”, a palavra eikon, em grego, não é umsubstantivo. Quando Platão ou, mais tarde, os padres daIgreja falam de eikon, eles não designam uma coisa.

    Eles designaram um modo de aparição no campo dovisível, pois o eikon, em grego, é análogo a uma formaverbal no particípio presente. Quando um grego querdizer a coisa, a coisa icônica, ele toma a raiz dessapalavra, eikon, e a coloca no neutro, pois eikon é umaramificação verbal no particípio presente ativo e nofeminino. Quando ele a coloca no neutro – para ascoisas, em grego, o neutro termina normalmente com

    “ma” – ela se torna “eikonisma”, como “apeikasma”,“ fantasma”. Tomemos o exemplo do verbo “fazer”( pratto, prattein): se você utiliza a palavra “ práxis”, éa ação, é uma palavra no feminino, como “eikon”; mas

  • 8/16/2019 Entrevista_ Imagem, Sujeito, Poder

    5/24

    20/01/2016 FLANAGENS: Imagem, sujeito, poder  

    http://flanagens.blogspot.com.br/2014/03/imagem-sujeito-poder.html 5/24

    a coisa é “ pragma”, que deu pragmático, e  práxis deu“prático”. O grego distingue o estatuto da coisa da açãoque a traz à existência: “ poiésis” é o gesto de criar,“ poiéma” é o poema. Ao contrário, as palavras noneutro também terminam com “on” – como “eidolon”,que fez “ídolo” – e designam, no visível, as operações

    das coisas, dos objetos, na sua consistência opaca epresente, no seu efeito de real. Ergon não é  poièsis,nem todo fabricante é poeta.

    Voltemos agora ao eikon, que foi traduzido por “ícone”.Da minha parte, prefiro traduzir por “semblante”, pois a

    tradução literal de eikon é “semblante”[1], no particípio

    presente, é a “coisa aparente”. O segundo sentido da

    palavra eikon é “semelhante”[2]: “semblante”,“aparência do outro”, portanto, “semelhante”, “quanto

    ao retorno da aparência[3]”. É muito importante

    compreender que o grego diferencia as operações dovisível das operações do sensível e que, se o platonismorejeitou as imagens, em grande parte – salvo em algunscasos, como no Timeu, em que a imagem serve à visãocosmológica do mundo – é porque a aparência coloca um

    problema ontológico à filosofia. Pois se uma coisa queparece não é, ela não tem um estatuto ontológico deverdade. Ela é inapreensível. Platão não confunde eikone eidolon, e coloca o eikon ao lado daquilo que parece.E, de fato, para ele é ainda ontologicamenteinsuficiente. É insuficiente porque sobre aquilo que parece não se pode construir um saber. O que Platão vêaí é de todo justo e eu o defendo: não há saber sobre a

    imagem. Para Platão é sua fraqueza, para mim é suaforça e seu destino político. Como analisei em meu livroLe commerce des regards, a filosofia platônica sóreconhece dignidade àquilo que permite construir umsaber e uma verdade, associando o ser das coisas àverdade do discurso sobre tal ser das coisas, o que fazcom que, ontologicamente, a imagem não possa ter seulugar na dignidade metafísica de uma verdade sobre o

    ser. Mas Platão diz, apesar de tudo, que essa aparêncianão é não‐ser: é uma insuficiência. O fato de que aaparência não seja nem ser nem não‐ser coloca opróprio Platão em dificuldade: ele diz que é verdade

    https://www.blogger.com/blogger.g?blogID=5846467664559625160#_ftn3https://www.blogger.com/blogger.g?blogID=5846467664559625160#_ftn2https://www.blogger.com/blogger.g?blogID=5846467664559625160#_ftn1

  • 8/16/2019 Entrevista_ Imagem, Sujeito, Poder

    6/24

    20/01/2016 FLANAGENS: Imagem, sujeito, poder  

    http://flanagens.blogspot.com.br/2014/03/imagem-sujeito-poder.html 6/24

    que a imagem não é – Ontos mè onta. É ontologicamenteque ela não tem ser. Assim, ela participa, ela é aomesmo tempo on e mè onta, ela está entre o ser e onão‐ser. O fato de ser “entre” é o modo do eikon: é ser“entre”, entre o ser e o nada, é esse modo de apariçãodo mundo que coloca o olhar em crise, que faz com que

    nós vejamos nos inquietemos, duvidemos, suspeitemos.Ao mesmo tempo, talvez isso tenha a ver – pensaAristóteles, mais do que Platão – com os regimes daquiloque os homens partilham na cidade, das coisas poucocertas, verossimilhanças, dos regimes opinativos dapalavra, das ignorâncias sobre o amanhã, dascontingências, das fragilidades: partilhamos muito maisfragilidades e dúvidas do que certezas em uma cidade.

    Platão gostaria que o rei fosse filósofo e que omatemático fosse filósofo e, portanto, que omatemático fosse o rei e o filósofo, ou seja, ele gostariaque tudo isso fabricasse um poder um pouco sólido;enquanto o interesse do pensamento aristotélicobuscava compreender a política como um regime defragilidade e de dúvida, de inconstância, de ignorância,pois a vida política é temporal e, assim, ligada à mortedo passado e à ignorância do futuro, e o presente erafeito, trabalhado, por essa desaparição das coisas e poressa ignorância do que vem. E a imagem esta aí, entretodas essas coisas que são partilhadas pelos cidadãos.Portanto, o eikon, esse regime de aparência, antes deter sido um objeto, foi designado pela língua grega, comdesconfiança ou esperança, como um regime singular daaparência e da verossimilhança, da doxa e do endoxon.

    Quanto aos ídolos, sem dúvidas é preciso esperar umareflexão mais aprofundada dos Padres da Igreja paralhes dar um estatuto no coração do pensamento daimagem. O ídolo é um objeto que mediatiza as relaçõesentre os viventes e os mortos, entre os poderes ocultose as impotências reais. Ele não é o antônimo do ícone,antes do debate doutrinal sobre a imagem. Por razõesque enunciei em minhas obras – a saber, que há uma

    crise do olhar na produção das imagens entre instânciasdo poder –, sou tocada pelo fato de que a imagem, nessedebate, é denunciada, criticada ou defendida de acordocom a questão: “o eikon e o eidolon são a mesma coisa

  • 8/16/2019 Entrevista_ Imagem, Sujeito, Poder

    7/24

    20/01/2016 FLANAGENS: Imagem, sujeito, poder  

    http://flanagens.blogspot.com.br/2014/03/imagem-sujeito-poder.html 7/24

    ou são coisas diferentes?” Os iconoclastas dizem quetodo eikon não se deixa conhecer como eidolon,portanto, há idolatria. A resposta dos iconófilos,triunfante – e que penso ser extremamente interessante–, é que o único meio de salvar o regime da imagem édizer que entre eikon e eidolon há incompatibilidade,

    uma distinção definitiva; há mesmo uma contradição.Eikon designa uma relação, eidolon designa um objeto.E, portanto, os iconófilos puderam dizer aosiconoclastas: vocês é que, ao destruírem os ícones, sãoidólatras, uma vez que diante da fragilidade e aparênciado ícone vocês veem apenas o objeto. Assim, vocês têmum olhar idólatra para aquilo que não deveria ser senãoum objeto. É seu olhar que reifica o objeto da

    fragilidade, da aparência. Fazemos referência ao doislados da questão sobre o ídolo. Mas se quisermosverdadeiramente responder a tais questões – “o que éum olhar que reifica?” e “o que é um olhar que respeitaa fragilidade do ícone?” –, a cada vez, vamos encontrarapenas a palavra “imagem” por ser lida. Daí a reflexãosobre a “imagem”.

    Ora, quando em francês dizemos “imagem”, há umdesconforto – que encontramos também nas línguasanglo‐saxônicas, as quais não nos auxiliam muito –, poisa grande reflexão de fundação é feita em grego eencontrou a sutileza de um desdobramento plural daspalavras em latim. O francês exige muita explicação aíonde o grego, que a respeito disso também se explicou,encontra palavras para especificar os regimes: tantoarticulados quando incompatíveis uns com os outros. Se

    pesquisarmos sobre o latim “imago” teremos maisnuances, sabendo que o interessante do latim imago éque é muito ligado às práticas funerárias e, portanto,sem dúvida ligado à experiência da morte, dodesaparecimento e do que é retido daqueles que nãoestão mais aqui. Mas percebemos que a imago flutuouentre os latinos, tanto que, no latim medieval, palavrasdiferentes circularam e se esforçaram para dar conta da

    dimensão espiritual da imago. Santo Agostinho e ospadres latinos, necessariamente, precisam se ocupar daimagem por razões teológicas evidentes, uma vez que aencarnação é uma estrita questão de visibilidade da

  • 8/16/2019 Entrevista_ Imagem, Sujeito, Poder

    8/24

    20/01/2016 FLANAGENS: Imagem, sujeito, poder  

    http://flanagens.blogspot.com.br/2014/03/imagem-sujeito-poder.html 8/24

    imagem. Encontraremos reflexões muito sutis eapaixonantes a respeito de “signum”, de “species”,“ figura”, “ fictio”, “res picta”, a coisa pintada, “res ficta”, a coisa imaginada. Entre “imago” e “imagines”acontecerão também idas e vindas.

    Assim, como dar conta dessas vibrações lexicais quandoescrevemos em francês? E quem escreve em francês?Todo esse tempo que passei trabalhando entre noçõesgregas que faziam distinções de extrema sutileza, para,em seguida, falar de imagem a meus contemporâneos,era preciso retrabalhar os efeitos do própriovocabulário. A maior parte do tempo fui obrigada adizer: chamo “visibilidades” o modo no qual aparecemno campo do visível objetos que ainda esperam suaqualificação por um olhar. Irei chamar “imagem” omodo de aparição frágil de uma aparência que seconstitui a olhares subjetivos, em uma subjetivação doolhar. A “imagem” é efetivamente, no meu léxico, oque constitui o sujeito. O eikon é o modo de apariçãodos signos que permite a estes se constituir parapermitir a partilha do simbólico. O “ídolo” é o modo sobo qual pode totalmente se afundar e se aniquilar aquestão do desejo, quando o desejo de ver dá a simesmo o objeto de sua completa satisfação, digamos,de seu gozo. E, assim, quando os antigos criticam oídolo, é preciso não se esquecer jamais de que há essasuspeita, de todo legítima, em relação a objetos que seconsomem e que consomem o sujeito. O ídolo é entãoaquilo que ameaça a subjetividade, uma vez que essarelação é de consumo passional, fusional e

    fantasmática. Nesse sentido, o desejo de destruição éinseparável do destino dos ídolos. Finalmente, quandocoloco “imagens” no plural, designo o conjunto deproduções do visível às quais ainda não dei qualificação,ainda não sabendo a quais operações do olhar elas vãodar lugar.

    Várias vezes a senhora colocou em evidência o fato de

    que a imagem encontra seu lugar entre a visão e arepresentação, que ela necessita de uma construção,

    uma formação prévia do olhar de um sujeito falante (e

    que ela é, nesse sentido, inacessível aos olhares dos

  • 8/16/2019 Entrevista_ Imagem, Sujeito, Poder

    9/24

    20/01/2016 FLANAGENS: Imagem, sujeito, poder  

    http://flanagens.blogspot.com.br/2014/03/imagem-sujeito-poder.html 9/24

    outros mamíferos, por exemplo). Trata‐se, assim, no

    caso do olhar humano, de uma competência cultural.

    A senhora poderia especificar qual é a natureza da

    relação entre o sujeito e a imagem?

    Nas nossas sociedades de hoje, encontramo‐nos diante

    da designação massiva da palavra “imagem” a tudo oque é produzido no visível: fotos, obras de arte,publicidades, televisão, cinema, documentos. Todos são“imagens”. Sim, mas em que são eles imagens? Sob qualtítulo? Pelo meu trabalho, gostaria de dar conta dosregimes de pensamento que foram fundadores emrelação à definição da imagem: fundadores não quantoao seu estatuto de objeto, mas quanto àquilo a que elaremete nas operações do olhar a ela dirigido por umsujeito. As coisas se esclarecem a partir do momento emque classificamos a imagem na relação que ela tem como olhar do sujeito, com o cruzamento de olhares e coma troca, a circulação de signos, distinta do comércio dascoisas, daquilo que chamo o comércio de olhares. É oolhar do sujeito que dá à imagem seu estatuto de“eikon”, de “eidolon”, de “ fantasmata”, de“ fantasma”; é a maneira de construir o olhar que reificaou não seu objeto. Posso tomar os maiores lugares doolhar e da aparição frágil da história da arte e delesfazer objetos idolátricos. E é justo por isso que osartistas surrealistas, em particular, os dadaístas,lutaram contra a arte burguesa, necessariamenteidólatra e que reifica a arte como mercadoria. Por meiodos objetos de arte, eles jogaram e atacaram os ídolosda cultura burguesa para mostrar que estes são

    operações do olhar que foram lentamentedesqualificadas pelo comércio dos objetos. Eis as coisasque nos concernem de modo vital hoje.

    Minha abordagem faz um apelo a cada um de nós,enquanto sujeitos, a nossa potência subjetiva dequalificação do visível; a neste reconhecer signos em umcampo de signos que circulam; a dizer que o que

    chamamos de imagem pode ser, ou não, constituinte oudestituinte dos sujeitos que as olham.

    É aí que as coisas se complicam na definição, pois é

  • 8/16/2019 Entrevista_ Imagem, Sujeito, Poder

    10/24

    20/01/2016 FLANAGENS: Imagem, sujeito, poder  

    http://flanagens.blogspot.com.br/2014/03/imagem-sujeito-poder.html 10/24

    preciso explicar em que, antropologicamente, a imagemé constituinte da relação entre os sujeitos, e do própriosujeito. A fim de dar conta da abordagem patrística edos efeitos bastante modernos que ela poderia ter paranós, e do interesse que por ela poderíamos ter paranutrir nosso pensamento da imagem, o problema

    mencionado me obrigou a me dirigir à antropologia e àpsicanálise. Ambas me fizeram ver como,genealogicamente – do ponto de vista filogenético (aconstituição da humanidade) de um lado, ouontogenético (a constituição do sujeito humano na suaindividualidade e singularidade) do outro –, a questão daimagem era parte envolvida na gênese do sujeito. Eassim compreendia que um sujeito que era privado de

    imagens, que não podia construir uma imagem de si,havia produzido na nossa sociedade, tão plena deimagens, uma verdadeira patologia da imagem. Isto é,que havia um sofrimento, uma patologia, um abuso doolhar, que fazia com que houvesse uma destituição daimagem, um abuso do narcisismo primário: como nosconstituímos a nós mesmos na imagem que temos de siem relação a um outro sujeito, em relação ao olhar deum outro sujeito? A psicanálise, a psicopatologia, ostextos sobre a psicose, muito me esclareceram sobre ofato de que a imagem era uma aposta constituinte paraos sujeitos na sua relação matricial, na sua origem.Filogeneticamente, também, percebia que, no fundo, aprópria humanidade assinalava‐se como humanidade porinscrição dos signos que, antes de dar testemunho deuma linguagem ou mesmo de uma escritura, designavamo modus imaginis, o modo da imagem, como primeiro

    gesto de separação. Tornando‐se a condição necessáriaao acesso de cada um de nós às operações simbólicas dapalavra, a imagem pode ser um separador, um operadorde separação. Um bebê, por exemplo, que não temnenhum meio de construir e apreender sua própriaimagem – sinestésica e visual ao mesmo tempo – é umacriança que jamais terá acesso à palavra. E, assim, nosautismos, nas afasias, nas psicoses infantis, tratamos e

    retomamos as coisas pela questão da imagem: fazemosdesenhar. Recomeçamos pela construção da imagem.

    Se o sujeito se constrói, então compreendemos que o

  • 8/16/2019 Entrevista_ Imagem, Sujeito, Poder

    11/24

    20/01/2016 FLANAGENS: Imagem, sujeito, poder  

    http://flanagens.blogspot.com.br/2014/03/imagem-sujeito-poder.html 11/24

    que os Padres designavam pela palavra eikon era algoconstituinte das relações entre os sujeitos. Desse modo,o que é constituinte do político, isto é, do viver juntos,no sentido grego, assim o é porque é constituinte dosprocedimentos, dos protocolos de subjetivação. Não hásujeito sem imagem. É muito importante. O ídolo torna‐

    se, no seu processo de reificação, muito mais o modopelo qual o visível não produz o sujeito, mas o reduz aoestado de objeto: o ídolo é o que reifica o sujeito, aoser uma reificação da imagem.

    É nesse sentido que digo que há uma verdadeirapatologia da imagem, a qual faz com que aqueles quenão têm imagem de si mesmos, senão por meio deobjetos, sejam reduzidos ao estado de objeto epersuadidos de que é a apropriação e o consumo dosobjetos que vão lhes permitir construir uma imagem desi mesmos. Do ponto de vista inicial do sofrimento socialde hoje, pedir o reconhecimento de identidade pelooconsumo dos objetos produz violências. Isto é, alguémque não tem nenhum meio de se fazer reconhecer emum campo social por um outro olhar, procura chamar aatenção desse olhar pelo consumo de objetos que lhe

    dão uma identidade em relação ao olhar do outro. Paraele serão precisos Nike, Lacoste etc.. O consumo dasmarcas torna‐se um marcador identitário. De uma sóvez, vamos nos tornar qualificados, identificados, pelosobjetos que estamos à altura de consumir. Fazemos denós mesmos objetos – e pensamos ser esse tornar‐seobjeto o único meio de obter o olhar do outro e umprocesso de reconhecimento, portanto, de dignidade.

    Estamos em uma história de loucos: as pessoas tornam‐se criminosas porque não têm nenhuma imagem de simesmas. Estão em uma tal desqualificação interna quevem como uma dor absoluta, que engendra umaviolência absoluta, que dá vontade de matar, demorrer.

    Com o objetivo de especificar o papel cultural do

    “eikon”, voltemos mais uma vez à terminologia. Noseu livro Image, icône, économie, a senhora dirige sua

    atenção para o fato de que, nos contextos não

    cristãos (clássicos e pagãos), a palavra “oikonomia”

  • 8/16/2019 Entrevista_ Imagem, Sujeito, Poder

    12/24

    20/01/2016 FLANAGENS: Imagem, sujeito, poder  

    http://flanagens.blogspot.com.br/2014/03/imagem-sujeito-poder.html 12/24

    designava tudo o que era gestão e administração, ao

    mesmo tempo dos bens (economia) e das visibilidades

    (ikonomia). A senhora assinala igualmente que o

    termo “economia” tornou‐se, no momento da crise

    iconoclasta bizantina, o leitmotiv da defesa icônica. A

    senhora poderia elucidar as razões dessa retomada do

    termo “economia” no contexto cristão?

    Para mim, foi uma descoberta saber que os Padres daIgreja tinham, depois de São Paulo, construído toda adoutrina do “eikon” sobre algo que eles opunham à“teologia”. A imagem é uma relação econômica, isto é,anti‐teológica. A economia é a dimensão real, histórica,é a dimensão temporal do olhar. Ela designa essanegociação ininterrupta dos olhares entre o que estápresente e o que está ausente. É dizer que só há vidados signos numa relação com a ausência e em umaseparação da presença. É magnífico que “a economia”tenha se tornado o conceito operatório dessaconstrução, pois isso toca a totalidade das trocashumanas e vai, efetivamente, do comércio e circulaçãode signos até o comércio das coisas e a circulação dasmercadorias. A mesma palavra! A que isso se refere? À

    nossa responsabilidade ética e política no campo dovisível. Cabe a nós escolher. Os objetos, nisso, nãopodem nada. Eles não fazem nada, eles não mata, elesesperam.

    Ora, a palavra “economia” não é uma invenção doscristãos, mas é retomada do grego clássico: foi muitoutilizada por Xenofonte, por Aristóteles. Ela designa

    toda a gestão e administração doméstica e, emAristóteles, é tomada nas suas relações com aadministração da cidade. Como, para Aristóteles, omodelo familial permanece o modelo da economiapolítica, passamos da gestão e administração dopatrimônio pelo pai, à gestão e administração dos bense serviços no campo social. E mesmo o “oikonomos” erajá um intendente. É ele que está encarregado de gerir,

    administrar, regular, compatibilizar, velar, peloequilíbrio na produção, na difusão, no gasto.

    A palavra “economia” foi traduzida ao latim

  • 8/16/2019 Entrevista_ Imagem, Sujeito, Poder

    13/24

    20/01/2016 FLANAGENS: Imagem, sujeito, poder  

    http://flanagens.blogspot.com.br/2014/03/imagem-sujeito-poder.html 13/24

    essencialmente por duas palavras: “dispositio” e“dispensatio”. “Dispositio” é como o grego “systema”; éo conceito de organização que está por trás e a partir doqual encontramos o sentido na “oikonomia”: aorganização. O grande “oikonomos” na teologia é Deus,o grande organizador, o ordenador do mundo, o

    arquiteto cosmológico. É também por que a economiafoi identificada tão rapidamente com a providência,com o “cosmos”, em grego, querendo dizer ao mesmotempo a ordem, a beleza e o mundo. Estamos em ummundo onde só podemos admirar e anotar ainteligibilidade, a regularidade, a ordem e a beleza –“cosmos”. A origem desse “cosmos” é um “oikonomos”:uma entidade, um princípio de organização racional e

    estético sem falha. É por isso que “oikonomia” se tornou“ pronoia”, providência.

    Mas, a partir do momento em que essa providência, nomundo cristão, entregou‐se ao exercício históricoadmirável da economia, produzido pela imaginaçãocristã da encarnação, a providência e a ordem do mundoforam mudadas. Em todos os casos, eles seimplementam sobre um outro regime do que o que

    conhecemos da teologia cosmológica: aquele da históriados homens como gasto de Deus (Dispensatio). Talmudança é devida à encarnação, esta que consiste emduas coisas fundamentais. Um, a temporalização dadivindade que nasce, vive e morre: a divindade se tornatemporal e histórica; dois, a divindade, que não évisível, torna‐se visível. Temporalização e visibilidadesão as duas características da encarnação. A partir do

    momento em que é Deus que a quis, em que é aprovidência que organiza isso, será preciso integrar essahistória, essa narração, à “oikonomia”, e dizer que essefenômeno da encarnação faz parte do plano geral dadivindade, que se torna um plano não simplesmenteinvisível, inteligível e cósmico, mas histórico e vivível.

    Assim, “eikonomia” – cuja homofonia, em grego, com

    “oikonomia” assinalei, pois, para os grego, “oi” e “ei”são ambos pronunciados “i” –, o direito do ícone, a leido ícone, é também a lei da casa, a nova habitação. Elese fez Verbo, Ele se fez Pai e Ele veio habitar entre nós.

  • 8/16/2019 Entrevista_ Imagem, Sujeito, Poder

    14/24

    20/01/2016 FLANAGENS: Imagem, sujeito, poder  

    http://flanagens.blogspot.com.br/2014/03/imagem-sujeito-poder.html 14/24

    Desse modo, essa lei da habitação, do “oikos” e doícone, que são completamente homofônicos; e, penso,não apenas homofônicos: eles são sinônimos. Nãopodemos separar o registro icônico do registro históricoe do registro providencial, de gestão e de administraçãodo mundo. Apenas – como compreenderam muito bem os

    latinos ao dizer que há não somente “dispositio”,reorganização, mas também “dispensatio”, gasto – essaeconomia é, ao mesmo tempo, em um regimecomputável, um investimento, com tudo o que issorepresenta de perdas e benefícios. E, numa boaeconomia, é preciso que o gasto seja um investimentoque traga benefícios. Por consequência, a ressurreição éo modo pelo qual a perda será superada por um

    benefício incalculável, incomensurável, que é aRedenção. Há aí uma economia, um investimento e umgasto – pois não é pouca coisa enviar um filho, umaimagem, e entregá‐lo à paixão e à morte: é um granderisco econômico assumido pela própria divindade. Mastal risco é bem gerido, uma vez que isso dura até agorae que é um caso que não conheceu a bancarrota.

    A aposta de seu livro Image, icône, économie era a de

    desvelar as fontes do imaginário contemporâneo naquerela iconoclasta na época bizantina (725‐843).

    Ainda que falemos com frequência em relação às

    “guerras das imagens” do ataque terrorista de 11 de

    setembro de 2001, em Nova York, poderíamos

    mencionar também a recente lide seguida à

    publicação das caricaturas de Maomé em um jornal

    dinamarquês. Para a senhora, podemos identificar a

    censura contemporânea à iconoclastia bizantina? Hádiferenças entre essas duas estratégias de eliminação

    das imagens?

    Todo poder tem suas imagens e recusa ao contra‐poderter sua visibilidade. Aqui estamos perto da problemáticaiconoclasta: quem toma o poder tem o monopólio daimagem e de sua significação. E, portanto, interrompe a

    busca icônica do outro, ou o censura.

    Entretanto, a iconoclastia bizantina não era umacensura: era uma maneira de destruir uma instância de

  • 8/16/2019 Entrevista_ Imagem, Sujeito, Poder

    15/24

    20/01/2016 FLANAGENS: Imagem, sujeito, poder  

    http://flanagens.blogspot.com.br/2014/03/imagem-sujeito-poder.html 15/24

    poder, recusando as imagens àqueles que delas seserviam para tomar o poder, justo por reconhecer quetal era o poder das imagens. Essa prática consistiu emsuprimir imagens retirando uma categoria do poder quese queria eliminar, mas para substitui‐lo por imagens dopoder que se queria constituir. E aquele que as destruiu,

    ao mesmo tempo, compreendeu bem que as imagenstinham um poder, uma vez que atribuiu a si mesmo opoder de fazer suas próprias imagens. Os iconoclastasnão são an‐icônicos: eles são contra as imagensreligiosas, as imagens no campo da Igreja, paradesenvolver um imaginário profano, um imaginário dopoder; há até mesmo uma arte iconoclasta. Assim, nãose trata de uma eliminação das imagens, mas de uma

    eliminação do outro enquanto utiliza suas imagens paratomar o poder.

    Ademais, em Bizâncio, a imagem não é um pretexto. Aocontrário, ela é a aposta do poder e a própria razão dacrise: todos queriam tomar o poder com suas própriasimagens e suprimir as imagens do outro para tomar‐lhe opoder. Isso quer dizer que a imagem é, nesse momento,reconhecida como portadora de um poder de convicção,

    de submissão e de representação do poder do qual sequer privar seu adversário.

    Quando as caricaturas de Maomé são proibidas, isso nãoé feito por que se quer tomar o poder, suprimir umpoder às imagens. É em um contexto de todo diverso,em uma outra paisagem política, que é a do terrorideológico. Muitos não foram enganados por esse

    história de censura das caricaturas de Maomé, dizendoque a produção e a denúncia das caricaturas eram umaoperação de propaganda nos dois sentidos. A questão daimagem era aí extremamente secundária: nem mesmoeram caricaturas que faziam rir, com algum uminteresse gráfico. Apenas se aproveitou de umamanchete visual por meio da caricatura para inflamarum conflito ideológico que é somente a máscara de um

    conflito de tipo econômico. O Islã e as convicçõesreligiosas são hoje a aposta sob a qual se opõempotências econômicas no mercado do ópio, do petróleo,das armas. Ora, em vez de dizer que, neste momento,

  • 8/16/2019 Entrevista_ Imagem, Sujeito, Poder

    16/24

    20/01/2016 FLANAGENS: Imagem, sujeito, poder  

    http://flanagens.blogspot.com.br/2014/03/imagem-sujeito-poder.html 16/24

    as pessoas morrem por causa do ópio, do petróleo e domercado das armas, criou‐se uma martiriologiaterrificante, ao dizer que as pessoas se matam porquehá um choque de culturas, uma incompatibilidade deculturas. Mesmo no momento das caricaturas de Maomé,dizia‐se que o conflito advinha da fratura cultural entre

    os regimes de religiões. Ora, para mim, tudo isso eraapenas simulacro, uma montagem teatral para esconderas apostas políticas do conflito.

    Tomemos um outro exemplo, aquele dos Budas deBamiyan: eles estavam ali há muitos séculos, em umpaís islâmico que, até aí, neles não viaminconvenientes. Para eles eram ídolos, o Deus dosoutros, e isso não lhes concernia uma vez que nãoretirava atenção das sua própria divindade. Somente apartir do momento em que o outro se tornou inimigoeles notaram que aqueles Budas de Bamiyan faziamparte do patrimônio mundial da cultura, defendido pelaUnesco, representante da cultura ocidental com a qualeles estão em guerra. Decidiram atacar o Ocidente,tocá‐lo onde declara seus mais altos valores. A saber,não quiseram matar o budismo, mas atacar a ideia que o

    Ocidente faz da obra de arte e do patrimônio cultural. Étambém por isso que filmaram a cena da destruição. Eurecebi uma imagem em que o filme da destruição éobjeto de um auto‐de‐fé: filma‐se o auto‐de‐fé do filmepara fazer um filme de auto‐de‐fé das imagens.

    Estamos aí em uma espécie de circularidade dasvisibilidades – e o 11 de setembro de 2001 foi a fórmula

    exemplar do mesmo princípio – que é: uma vez quevocês são uma sociedade espetacular, nós tambémiremos fazer espetáculo e fazer de vocês osespectadores privilegiados da sua destruição... Elessabem que Hollywood é inseparável dos modosnarrativos escolhidos pelo Pentágono para construir suasnarrações guerreiras e sua legitimidade. São oscenaristas de Hollywood que fornecem ao Pentágono os

    cenários para contar aos jovens soldados e convencê‐losda grandeza heroica e legítima de seu sacrifício noIraque. As pessoas gostam que para elas sejam contadassuas histórias. George Bush disse em um discurso:

  • 8/16/2019 Entrevista_ Imagem, Sujeito, Poder

    17/24

    20/01/2016 FLANAGENS: Imagem, sujeito, poder  

    http://flanagens.blogspot.com.br/2014/03/imagem-sujeito-poder.html 17/24

    “People like stories”. Então a eles contamos histórias. Ecomo os militares não sabem contar histórias, pedimospara que Hollywood escreva histórias que iremos contaraos militares. No mundo islâmico, em guerra econômicae financeira com os Estados Unidos, acontece de modosimilar. Estamos em uma gestão espetacular: a

    organização econômica e industrial do espetáculo torna‐se o sujeito de narrações que são lendas – no sentido emque fazemos lendas em torno de imagens, para torná‐lascompreensíveis – que precisam ser contadas paralegitimar operações estritamente imperialistas, de umlado e do outro. O ícone de Bin Laden é inesgotável dosdois lados.

    Assim como a imagem foi verdadeiramente uma grandeaposta no momento da guerra iconoclasta, também agestão industrial do espetáculo coloca‐se como pano defundo aos verdadeiros contextos do conflito. Mastambém não é o contrário da iconoclastia, porque naquestão da iconoclastia, a denúncia dos ídolos faz parteda problemática escondida do poder. Hoje assistimos auma gestão industrial dos ídolos. Cada um quebra osídolos do outro pois o próprio dos ídolos, de modo

    contrário às imagens, é que podemos quebrá‐los. OsPadres já haviam compreendido muito bem que nãopodemos quebrar a imagem, pois a imagem não é umobjeto. Quando vocês destroem um ícone, vocês nãodestroem a imagem. Vocês atacam a sacralidade, masisso não pode atacar a imagem: vocês destroem oobjeto. A imagem é indestrutível.

    Em 2002 a senhora participou de um projeto deexposição Iconoclash, concebido e realizado pelo

    filósofo Bruno Latour e pelo artista Peter Weibel. Aaposta teórica da exposição era chamar a atenção

    para a problemática da produção e destruição das

    imagens existentes nos três domínios culturais

    diferentes: a ciência, a arte e a religião. A senhora

    era membra do comitê científico desse projeto; como

    a senhora o julgaria em face do pensamento teóricoda imagem nos nossos dias?

    Essa exposição, para mim, foi um pouco um problema,

  • 8/16/2019 Entrevista_ Imagem, Sujeito, Poder

    18/24

    20/01/2016 FLANAGENS: Imagem, sujeito, poder  

    http://flanagens.blogspot.com.br/2014/03/imagem-sujeito-poder.html 18/24

    pois a problemática que Bruno Latour queria apresentarprovinha diretamente de meu trabalho sobre a economiaicônica e a iconoclastia. Sem dúvidas foi por isso que eleme associou ao projeto: porque a maneira com a qualabordei a questão da iconoclastia havia sugerido que elepoderia abordar o conjunto da problemática da imagem

    em campos diferentes sob o signo da positividade daprópria destruição e da reversibilidade dasinterpretações da violência no campo da criação. Issopermitiu a ele – com a cumplicidade amigável de muitosteóricos e artistas – fazer uma exposição de todo atual,isto é, na qual era possível ver formas críticas, formasde ironia, formas de destruição, no sentido crítico esarcástico, dadaísta, surrealista ou científico. Mas em

    vez de ser um espaço onde colocar em crise a crença emtodos os níveis, por fim, isso produziu uma exposição dearte contemporânea: a enésima exposição de artecontemporânea na qual experts em arte contemporâneaarranjaram‐se, bem ou mal, para impor um certonúmero de artistas como emblemáticos dessapositividade da destruição e dessa turbulência. Pensoque, apesar da abundância das obras e dos textos, issodissimulou mal uma fraqueza teórica e uma organizaçãoconsensual sobre a questão da destruição: a exposiçãoIconoclash atraiu o mundo, queria fazer sorrir e ser aomesmo tempo muito epicurista e agradável, pois oprojeto dizia respeito a um grupo de pessoas talentosase cúmplices, as quais tinham estabelecida umacolaboração de longa data. Nada de conflitual, nãopodendo dar à manifestação sua dimensãoverdadeiramente política. Por certo é muito excitante

    para Bruno Latour, que é de uma grande inteligênciafilosófico‐especulativa, dizer que se tornou o curadorque preside eventos de cultura e de arte que cobrem,cada vez mais, todos os campos: a religião, a ciência, aarte. É um poder. Mas ele estava proibido de falar doIslam em Iconoclash. O assunto é demasiado delicado!Enquanto poderíamos, ao contrário, ter feito uma seçãoextremamente interessante – sem indignidade, por outro

    lado – para dizer que era agora ou nunca o momento deproduzir um espaço de reflexão positiva sobre ainterdição e a destruição. Mas os responsáveis tinhammedo de que os terroristas chegassem a Karlsruhe! Isso

  • 8/16/2019 Entrevista_ Imagem, Sujeito, Poder

    19/24

    20/01/2016 FLANAGENS: Imagem, sujeito, poder  

    http://flanagens.blogspot.com.br/2014/03/imagem-sujeito-poder.html 19/24

    não desqualifica o que foi mostrado, mas devo dizer quea ambição da empresa revela um desejo de cobrir umatotalidade. Hoje as exposições são eventos no mercadoda comunicação cultural. As ideias circulam, os objetosdeixam‐se reconhecer, mas não é certo que opensamento tenha tido tempo de se renovar

    verdadeiramente. Em muitos casos, a publicaçãoprogramática de um conceito não contribui ao avanço dopensamento. Entretanto, estamos contentes por tervisto objetos admiráveis que jamais teríamos podido verde outro modo, pois se encontram do outro lado domundo ou são desconhecidos da maior parte daspessoas... E mesmo se o objeto parece incongruentenesse lugar, e se o curador da exposição decidiu fazer

    dela algo completamente diferente, podemos noscontentar por tê‐la visto.

    O historiador pode fazer várias ligações, pode se tornarexpert das articulações entre as imagens: por exemplo,entre os magníficos quadros do século XV que estavamem Iconoclash. Não tenho nada contra, mas, torná‐lossolidários a um sistema é esquecer que eles excedem talsistema. E quando eles são co‐extensivos ao sistema,

    eles não são mais operantes. É por isso que asexposições temáticas são tomadas por um paradoxointerno: serem obrigadas a justificar a co‐extensividadedo conceito aos objetos que são apresentados e, se osobjetos forem muito bem escolhidos, eles excedem emmuito o projeto. Assim, eles fazem aparecer o caráterinoperante.

    O que acho mais interessante, como modo de reuniãodos objetos, é a exposição das coleções de alto nível.Somos convidados a seguir um olhar colecionador quepôde, durante uma vida, comprar coisas: tentamosentrar na história de um olhar, apreender o fio de umasensibilidade com suas aberturas, seus riscos, seustransbordamentos. Vi a exposição da doação DanielCordier, em Toulouse, onde está tudo o que ele

    acumulou durante sua vida: pode ter aí um tronco deárvore, um objeto das Novas Hébridas, um talismã, umobjeto da vida quotidiana, um quadro de Matta,desenhos de Henri Michaux. História de um olhar que se

  • 8/16/2019 Entrevista_ Imagem, Sujeito, Poder

    20/24

    20/01/2016 FLANAGENS: Imagem, sujeito, poder  

    http://flanagens.blogspot.com.br/2014/03/imagem-sujeito-poder.html 20/24

    exerce em toda uma vida. Há obras de arte no meio detudo aquilo que uma vida pôde recolher de bonito, desurpreendente, de improvável ou de inquietante.

    Finalmente, eu me permitiria colocar‐lhe uma última

    questão concernente à fotografia. No seu livro Image,

    icône, économie a senhora fala da fotografia a fim decolocá‐la em paralelo com a imagem aquiropita (a

    imagem que não é feita pela mão do homem). A

    senhora assinala que, uma vez que todo gesto

    fotográfico coloca a questão da impressão, a invenção

    da fotografia foi acolhida como confirmação da

    possibilidade de produzir a imagem aquiropita pelo

    artefato e de fabricar as impressões fetiches, taiscomo o Santo Sudário e o Véu de Verônica. A senhora

    poderia indicar qual a natureza da relação entre essas

    imagens supostamente “verdadeiras” e a demanda de

    veracidade da fotografia documental?

    A questão da impressão é muito ligada ao fato de que otexto ao qual você faz alusão é consagrado à construçãodo Santo Sudário de Turim. Portanto, a uma fotografiade tipo impressa e na qual se joga com a impressão

    fotográfica e a impressão de um corpo real. Dizendo quea fotografia, que já é uma impressão, tinha fotografadouma impressão que, ela mesma, era o negativo de umafotografia. É, verdadeiramente, a fotografia sobreposta,em uma perspectiva indicial da fotografia. Hoje, a maiorparte da produção fotográfica é digital, portanto, nãomais indicial. Ela é por pixels, segundo um sistemabinário, e permite todas as manipulações.

    No que diz respeito à veracidade da fotografia, ainda naépoca em que era indicial, era já uma arte do falso, nosentido do simulacro habitado pela crença doespectador. As imagens não têm realidade ontológica.Eu disse há pouco, mesmo antes de falarmos sobrefotografia: o estatuto do eikon é uma aparência. Assim,o fato de que a fotografia possa ser uma punção em um

    estado do mundo não dá a prova desse estado do mundopor causa da fotografia.

    Para compreender melhor, remeto a um filme de Jean

  • 8/16/2019 Entrevista_ Imagem, Sujeito, Poder

    21/24

    20/01/2016 FLANAGENS: Imagem, sujeito, poder  

    http://flanagens.blogspot.com.br/2014/03/imagem-sujeito-poder.html 21/24

    Eustache que se chama Les photos d’Alix. Esse filme,absolutamente genial, consiste em mostrar uma jovemfotógrafa que mostra a um jovem, filho de JeanEustache, fotos que ela tirou. Ela diz o que há, a data, ahora, o lugar, a estação, os nomes, quem são as pessoasque vemos na foto. Há, portanto, uma relação com o

    real: compreendemos que ela tirou essas fotografias emLondres, há três meses, de noite etc.. Mas quandovemos a foto, não vemos nada correspondente àquiloque ela diz. No início, há uma correspondência umpouco vaga, mas a credibilidade cresce. Em seguida,progressivamente, no correr dos 18 minutos e 18 fotos,estamos no fim do filme e vemos um quarto, umaescrivaninha diante de uma janela, o que há sobre a

    escrivaninha, uma lâmpada, um espelho. Ela diz: “ah,esta foto eu tirei há três meses em Fez, é um pôr‐do‐solem Fez”. “Podemos reconhecer Fez”, dirá ela, e vemosa escrivaninha e a janela etc..

    Esse filme mostra bem que a foto remete a estados domundo. Em um momento, ela diz “eis uma foto”: vemosque tal foto é tirada dentro de um carro, o condutor éentão tomado pelas costas, há o retrovisor e, no

    retrovisor, vemos longe ao fundo. “Esta é umalembrança da infância, é a foto de meu pai, enfim, demeu padrasto, tal como eu sempre o vi; viajávamosjuntos, era os Estados Unidos, entre São Francisco e nãosei mais onde, enfim, era os Estados Unidos; eu estavaatrás, via suas duas grandes mãos no volante e só via, deseu rosto, aquilo que se mostrava no retrovisor. É umalembrança da infância.” E ela diz: “É uma lembrança da

    infância mas não como as crianças delas se lembram, eé por isso que esta foto é uma lembrança. Enfim, é afoto que fiz recentemente, de uma lembrança quetive.” Pouco a pouco percebemos que estamos vendouma foto de infância, mas não como são as fotos deinfância: ela fotografou há um mês uma lembrança dainfância. Não vemos nem seu pai nem os Estados Unidos:a foto está na provocação da palavra à cegueira que

    exige a composição do olhar. O objeto que vemos flutuaentre eles como um espectro de um mundo que nãoexiste mais, de sua infância, de um pai que não estámais aí, de um país: não vemos por que, sobre essa foto,

  • 8/16/2019 Entrevista_ Imagem, Sujeito, Poder

    22/24

    20/01/2016 FLANAGENS: Imagem, sujeito, poder  

    http://flanagens.blogspot.com.br/2014/03/imagem-sujeito-poder.html 22/24

    ela tem necessidade de dizer que foi há anos, nosEstados Unidos, uma vez que fora há um mês, namemória dessa viagem que fez com seu pai. Esse filme éuma obra‐prima sobre a desrealização do olhar em faceda imagem.

    Aliás, o que ela diz, tecnicamente, sobre os objetos éverdade. Por exemplo, em certo momento, vemos umafoto como duas botas, como as de Van Gogh. Antes queas vejamos, vemos a fotógrafa dizer “bem, é uma fotoque tirei em Londres, em um pub, gosto muito dospubs”, e, de pronto, vemos a foto que mostra, ao ladodas botas, um vazio. Ela diz: “eu estava em pé, comesses dois homens; com este – ela mostra um sapato –,com este eu perdi contato, o outro é ainda um amigo,gosto muito da atmosfera dos pubs”. Ela conta umahistória. E então, repentinamente, diz: “o que meimportava nessa foto era, efetivamente, trabalhar coma falta de foco na parte de baixo – que está desfocada –e com essa luz branca – de fato, tudo está branco – quedescia desde o canto – e também aí, realmente, há umaluz branca –, é uma lembrança da Inglaterra”. Semparar, estamos entre o que vemos e o que ela diz mas

    não vemos: a referência ao quadro de Van Gogh e o queela mostra ao jovem, o que ela faz entender ao mostrar‐lhe. Essa mudança do que damos a ver, do que damos aentender, do que fazemos crer, é o regime dafotografia, compreendido neste o da fotografiadocumental.

    O que dizemos, o que escrevemos, o que contamos, de

    modo intrínseco faz parte daquilo que fazemos ver. Semostramos a foto sem dizer nada, sem palavra, comoum material bruto, nós a damos à visão de um outro semconstruir uma relação entre o ver e o fazer ver por meioda palavra e da partilha da crença. A foto não prova oreal, mas ela sempre coloca em jogo, como todaimagem, a relação de confiança e de crença que umolhar tem em relação a um outro olhar.

    No meu trabalho sobre o fotojornalismo, dou umagrande importância ao que é dito do país e do momentoem que uma foto foi tirada, àquilo que me dão a ver, à

  • 8/16/2019 Entrevista_ Imagem, Sujeito, Poder

    23/24

    20/01/2016 FLANAGENS: Imagem, sujeito, poder  

    http://flanagens.blogspot.com.br/2014/03/imagem-sujeito-poder.html 23/24

    razão pela qual tal foto fora tirada, e ao que ela podesignificar para quem a tirou. Em muitos casos, penso sera foto inútil, desinteressante ou excessiva, pois não sedirige mais a mim como alguém que partilharia apossibilidade de construir, ao mesmo tempo, o que elaquer dizer. Ainda que tenha necessidade de um efeito

    real, a imagem o excede, e é sobre tal excesso que seconstrói a liberdade do outro, a quem nos endereçamos.Mas se essa liberdade é deixada, é preciso ver sobrequal base de partilha: há aí um caminho dos regimes decrença diferentes que podem ir da credulidade àconfiança, e da confiança a uma necessidade deliberdade.

    Acabo de escrever um texto em que homenageio SophieRistelhueber, pois penso que em seu trabalho sobre oIraque e a Palestina – no qual não vemos nem a guerra,nem o guerreiros, nem as vítimas – ela não mostracenas, nem teatraliza o conflito. Pelo contrário, é o queela não mostra que faz ver e, portanto, compreender.Ela se considera totalmente oposta às fotos dofotojornalismo: não é uma reportagem, é um objetopolítico e, ao mesmo tempo, suficientemente artístico,

    pois ela compõe, trabalha, ela faz as coisas não importacomo.

    Acho que isso nos esclarece também sobre o que temosdireito de exigir dos fotojornalistas que trabalhamdemasiadamente, como na revista Choc, por exemplo,em que vemos até onde pode ir a obscenidade naapreensão do real. A obscenidade do real pode ser algo

    lamentavelmente trivial: é a pretensão de tudo mostrar,em vez de retirar. Assim, como diz Comolli para ocinema documentário: “quando vou fazer umdocumentário, começo por me perguntar sobre o quenão vou mostrar. Começo decidindo o que nãomostrarei.” Começamos pela retirada, depois vemos oque deixamos a ver: construímos o fora de campo. Epara a fotografia é o mesmo: é preciso sempre construir

    seu fora de campo.

  • 8/16/2019 Entrevista_ Imagem, Sujeito, Poder

    24/24

    20/01/2016 FLANAGENS: Imagem, sujeito, poder  

    Postagem mais recente Postagem mais antiga

    Entrevista publicada originalmente em: http://sens‐public.org/spip.php?article500&lang=fr

    (tradução para o português: Vinícius Nicastro Honesko)

    Imagem: Basílica de San Vitale, Ravenna.

     

    [1] N.T.: A filósofa utiliza o termo “semblant”, que diz respeito ao que se

    dá a ver, à aparência. Assim, a depender do uso feito pela autora,

    traduzimos por “semblante” ou “aparência”.

    [2] N.T.: “Ressemblant”, que diz respeito ao que se “assemelha”, que se

    “parece”.

    [3] N.T.: “Semblance”.

    P O S T A D O P O R K H Ô R A  À S 1 : 0 8 P M

    N E N H U M C O M E N T Á R I O :

    Postar um comentário

    Página inicial

    Assinar: Postar comentários (Atom)

     

    Recomende isto no Google

    https://www.blogger.com/share-post.g?blogID=5846467664559625160&postID=529307454315054880&target=pinteresthttps://www.blogger.com/share-post.g?blogID=5846467664559625160&postID=529307454315054880&target=facebookhttps://www.blogger.com/share-post.g?blogID=5846467664559625160&postID=529307454315054880&target=twitterhttps://www.blogger.com/share-post.g?blogID=5846467664559625160&postID=529307454315054880&target=bloghttps://www.blogger.com/share-post.g?blogID=5846467664559625160&postID=529307454315054880&target=emailhttp://flanagens.blogspot.com/feeds/529307454315054880/comments/defaulthttp://flanagens.blogspot.com.br/https://www.blogger.com/comment.g?blogID=5846467664559625160&postID=529307454315054880http://flanagens.blogspot.com.br/2014/03/imagem-sujeito-poder.htmlhttps://www.blogger.com/profile/06654908722644519478https://www.blogger.com/blogger.g?blogID=5846467664559625160#_ftnref3https://www.blogger.com/blogger.g?blogID=5846467664559625160#_ftnref2https://www.blogger.com/blogger.g?blogID=5846467664559625160#_ftnref1http://sens-public.org/spip.php?article500&lang=frhttp://flanagens.blogspot.com.br/2014/03/aos-pescador.htmlhttp://flanagens.blogspot.com.br/2014/03/pequeno-paragrafo-sobre-dor.html