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• HUMANIDADES 11 ENTREVISTA: CARM EN MARTIN De volta à vida Centro ti ra atividade de medicina legal do limbo ao privilegiar ensino e pesquisa NELDSON MARCOLIN O dia 30 de junho de 1999 marcou uma mudança de paradigma na medicina legal brasileira. Nessa da- ta começou a funcionar em Ribeirão Preto, São Paulo, o Centro de Medicina Legal (Cemel). A diferença principal com outros centros é o fato de esse estar instalado dentro do campus de uma universidade - no caso, a de São Paulo (USP) -, junto com o Servi- ço de Verificação de Óbitos do Interior (SVOI) e o Núcleo de Perícias Médico- Legais (NPML) da cidade, transferidos para lá. A pesquisa realizada na univer- sidade é, assim, estendida ao 1ML, fato raro na história da medicina brasileira. A idealizadora do centro, Carmen Cini- ra Santos Martin, professora do Depar- tamento de Patologia da Faculdade de Medicina, lutava havia quase 18 anos pa- 88 • JUNHO DE 2003 • PESQUISA FAPESP 88 ra tirar a especialidade do limbo. Seu interesse ia além de ter um prédio me- ·lhor do que o decrépito e apertado necro- tério da cidade. "Eu queria aprimorar o ensino da disciplina de medicina legal e torná-lo tão bom quanto os melhores que existem no mundo", conta Carmen. Isso ela ainda não conseguiu. Mas hoje, quatro anos depois da inaugura- ção, Carmen começa a receber de volta a atenção que dedica ao centro e à me- dicina legal. A edição de 1 0 de maio da Nature trouxe duas páginas sobre o tra- balho realizado no Cemel. A revista se interessou pelo distante centro de um país subdesenvolvido quando soube de um trabalho de Marco Aurélio Gui- marães, jovem pesquisador brasileiro do Cemel que fazia pós-doutorado na Universidade de Sheffield, na Inglater- ra. Guimarães extraiu DNA (ácido de- soxirribonucléico) de ossos e dentes de velhas ossadas, algo difícil de se conse- guir mesmo nos melhores laboratórios do mundo. Carmen colhe outros frutos de sua perseverança. O Cemel é referência para cidades brasileiras e ela é constan- temente convidada a dar assessoria em todos os cantos do país para explicar como chegou a esse sistema de traba- lho com a medicina legal. O modelo do centro, um prédio com l.200 metros quadrados, que hoje funciona com 30 funcionários (incluindo o IML e o Ser- viço de Verificação de Óbitos do Inte- rior), serve de inspiração também para o Sistema Único de Saúde (SUS), que já tem pronta uma minuta de lei sobre questões de verificação da causa de óbito. Na entrevista a seguir, Carmen explica a razão desse sucesso.

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Page 1: ENTREVISTA: CARM EN MARTIN Devolta àvida€¦ · sidade é, assim, estendida ao 1ML, fato raro na história da medicina brasileira. A idealizadora do centro, Carmen Cini-ra Santos

• HUMANIDADES

11 ENTREVISTA: CARM EN MARTIN

De volta à vidaCentro ti ra atividadede medicina legal do limbo aoprivilegiar ensino e pesquisa

NELDSON MARCOLIN

Odia 30 de junho de 1999marcou uma mudança deparadigma na medicinalegal brasileira. Nessa da-ta começou a funcionar

em Ribeirão Preto, São Paulo, o Centrode Medicina Legal (Cemel). A diferençaprincipal com outros centros é o fato deesse estar instalado dentro do campusde uma universidade - no caso, a deSão Paulo (USP) -, junto com o Servi-ço de Verificação de Óbitos do Interior(SVOI) e o Núcleo de Perícias Médico-Legais (NPML) da cidade, transferidospara lá. A pesquisa realizada na univer-sidade é, assim, estendida ao 1ML, fatoraro na história da medicina brasileira.A idealizadora do centro, Carmen Cini-ra Santos Martin, professora do Depar-tamento de Patologia da Faculdade deMedicina, lutava havia quase 18 anos pa-

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ra tirar a especialidade do limbo. Seuinteresse ia além de ter um prédio me-

·lhor do que o decrépito e apertado necro-tério da cidade. "Eu queria aprimorar oensino da disciplina de medicina legal etorná-lo tão bom quanto os melhoresque existem no mundo", conta Carmen.

Isso ela ainda não conseguiu. Mashoje, quatro anos depois da inaugura-ção, Carmen começa a receber de voltaa atenção que dedica ao centro e à me-dicina legal. A edição de 10 de maio daNature trouxe duas páginas sobre o tra-balho realizado no Cemel. A revista seinteressou pelo distante centro de umpaís subdesenvolvido quando soubede um trabalho de Marco Aurélio Gui-marães, jovem pesquisador brasileirodo Cemel que fazia pós-doutorado naUniversidade de Sheffield, na Inglater-ra. Guimarães extraiu DNA (ácido de-

soxirribonucléico) de ossos e dentes develhas ossadas, algo difícil de se conse-guir mesmo nos melhores laboratóriosdo mundo.

Carmen colhe outros frutos de suaperseverança. O Cemel é referênciapara cidades brasileiras e ela é constan-temente convidada a dar assessoria emtodos os cantos do país para explicarcomo chegou a esse sistema de traba-lho com a medicina legal. O modelo docentro, um prédio com l.200 metrosquadrados, que hoje funciona com 30funcionários (incluindo o IML e o Ser-viço de Verificação de Óbitos do Inte-rior), serve de inspiração também parao Sistema Único de Saúde (SUS), quejá tem pronta uma minuta de lei sobrequestões de verificação da causa deóbito. Na entrevista a seguir, Carmenexplica a razão desse sucesso.

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Material enviado ao Cemel:tecnologia e um pouco de sorteajudam na identificação

• Como a revista Nature descobriu otrabalho de vocês?-- O pesquisador Marco Aurélio Gui-marães foi fazer o estágio de pós-dou-toramento na Universidade de Sheffield,na Inglaterra, realizando exame de DNAde ossadas de sítios arqueológicos eu-ropeus. Os resultados foram excelen-tes. Posteriormente aplicou a mesmatécnica em material enviado do Brasil.Os resultados também foram muitointeressantes e divulgados na impren-sa local, no Reino Unido. A Nature to-mou conhecimento e fez contato como Marco Aurélio para conhecer melhoros casos identificados. Da troca de in-formações entre o repórter da Nature,David Adam, e o pesquisador, resultouo interesse da revista em conhecer deperto a medicina legal da Faculdade deMedicina de Ribeirão Preto, o mate-

rial do Brasil que estava sendo pes-quisado e o pesquisador responsávelpor ele. Trata-se do professor DanielMufioz, da Faculdade de Medicina daUSP de São Paulo, que foi o primei-ro entrevistado pela revista inglesa efalou do seu trabalho relacionado à iden-tificação de pessoas desaparecidas du-rante o regime militar.

• A reportagem foi feita aqui?-- O Marco Aurélio voltou em dezem-bro para Ribeirão Preto e ficou trocan-do e-mails com o repórter da Nature.Contou que trabalhava num centroemergente de medicina legal, mas quenosso país tinha dificuldades imen-sas nessa área. Aí o repórter veio paracá em fevereiro e ficou dois dias com agente, conhecendo o local e pergun-tando tudo.

• A senhora é carioca. Como veio pararem Ribeirão Preto?-- Vim para fazer pós-graduação. Cur-sei medicina na Universidade de Bra-sília iniciando no começo dos anos70. Terminei a faculdade e fiz residên-cia médica em patologia. Lá pelo ter-ceiro ano quis largar a medicina, por-que não gostava de lidar com pessoasdoentes. Então um dos meus profes-sores disse: "Ah, vá trabalhar com mor-tos': Achei ótima idéia e no quarto anojá estava fazendo estágio em medicinalegal. Nunca mais saí da área. Quandoterminei a residência, queria dar aulas,seguindo a tendência da minha famí-lia. E queria dar aula sobre violência,um assunto que me fascinava. EscolhiRibeirão Preto porque era a melhorpós-graduação em patologia no Brasil.Aliás, não era a melhor, era a segunda

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Quando auniversidadeestá junto, amedicinalegal funcionamelhor

melhor. Só que a primeira, a de Salva-dor, eu não consegui cursar. Fui até lá,fiza inscrição,só que eu era a única can-didata naquele ano e não fui aceita.

• A senhora queria fazer carreira do-cente em que, exatamente?- No que eu podia fazer, que era pa-tologia. Eu era patologista, mas tinhainteresse em medicina legal. Escolhipatologia porque trabalha com cadá-ver.Era a única forma de aprender a li-dar bem com o assunto, para depoisaplicar nas questões sobre violência.Como não existia mestrado, doutora-do e residênciamédica em medicina le-gal, nem mesmo umcursinho de especiali-zação dentro das uni-versidades, optei pelapós em patologia. Naverdade, eu poderia atéfazer o concurso paraa polícia, que é ondeos legistas aprendemno Brasil, mas nãoqueria me envolverem Academia de Polí-cia. Em Ribeirão Pre-to, os professores to-dos me entrevistarampara ver se me aceita-vam na pós. Eu fui cla-ra: disse que não gostava de patologia,mas de medicina legal. Aí me pergun-taram: "O que você esta fazendo aqui,então?". Mas um deles, que acabousendo meu orientador para o mestradoe para o doutorado, professor José Al-berto Melo de Oliveira, folheou meucurrículo e disse: "Espera aí, você gos-ta mesmo de medicina legal?".Eu con-firmei e ele me ajudou. Acabei fazendomestrado e doutorado com assuntosde medicina legal, dentro do Departa-mento de Patologia.

• Agora, tantos anos depois, a senhorapretende montar o primeiro curso depatologia forense. Como vai ser?- No Brasil não existe ainda residên-cia médica em medicina legal funcio-nando. Pretendemos fazer uma ponteentre a patologia e a medicina legal, naFaculdade de Medicina aqui de Ri-beirão Preto, criando o quarto ano deresidência em patologia forense, que éparte da medicina legal. Estamos emnegociação dentro do Departamentode Patologia.

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• Então, o mestrado e o doutorado emmedicina legal vai ser de patologia fo-rense, que nada mais é do que parte damedicina legal, certo?- É isso. Eu não quero sair do Depar-tamento de Patologia, que é excelente.É só uma questão de nomenclatura,quem quer trabalhar, trabalha, inde-pendentemente do nome da especia-lidade.

• Por que sempre houve dificuldade emensinar medicina legal no Brasil?- Em primeiro lugar, não existe for-mação de médico legista. Qualquermédico, com qualquer formação, pode

fazer hoje o concur-so para médico legis-ta. Ele faz o concursosó lendo teoria. NaAcademia de Polícia- estou falando doEstado de São Paulo-, esses candidatossão treinados duran-te aproximadamen-te um mês. Eles têmque largar tudo, fa-mília,outros afazeres,etc. Muitos desis-tem. Após esse trei-namento iniciam aatividade profissional

realizando exame necroscópico e de le-são corporal em pessoas vivas.

• O que eles aprendem a fazer é um tra-balho meramente impressionista? -Ape-nas descrevem o que vêem, como qual-quer pessoa faria?- É mais ou menos isso. Não é à toa'que a qualidade da medicina legal noBrasil é péssima. Ela só é boa na medi-da em que o indivíduo que a faz é umprofissional muito bom, por méritopessoal.

• O Instituto Nina Rodrigues, de Salva-dor, para onde a senhora gostaria de terido, também é assim?- Lá é mais ou menos igual, assimcomo no Brasil todo. A diferença é queem Salvador há um ambiente maisaberto. Até me inspirei no prédio doInstituto Nina Rodrigues para pensarnas coisas aqui. O instituto lá já foi,em tempos passados, melhor. Ainda é amelhor estrutura do Brasil. Porque apessoa que construiu o prédio, a profes-sora Maria Teresa Pacheco, é uma vi-

sionária. Construiu um belo edifício de5 mil metros quadrados. Na época daconstrução, a universidade estava jun-to com o IML. O que faz a medicinalegal avançar é a universidade. Quan-do ela está junto, funciona melhor.Quando está separada, a qualidade caipela falta de pesquisa.

• A senhora inspirou-se em quais cen-tros para criar o Centro Médico-Legal(Cemel)?- Portugal tem o modelo que eu con-sidero ideal. Mas, no Brasil, Salvador eBrasília têm também uma impor-tância grande, porque são mais aber-tas. Como aluna, ia ao Instituto Médi-co-Legal e podia andar pelo prédio àvontade. Isso em pleno regime militar.Essas coisas só aconteciam porque auniversidade abriu o espaço. MariaTeresa Pacheco, hoje professora titularaposentada, permitia que o aluno deSalvadorvisse a medicina legalpor den-tro e não apenas em teoria. Em Brasí-lia era igual.

• Por que o modelo do Cemel é diferente?- Porque nós convidamos o IMLpara vir para a universidade e traba-lharmos juntos, principalmente napesquisa. Hoje já temos quatro médi-cos legistas de Ribeirão Preto com pós-graduação concluída ou em andamen-to e suas pesquisas foram motivadaspelo trabalho que realizamos em con-junto. Essa é a grande diferença. Issofoi possibilitado por pesquisadoresda Faculdade de Medicina de RibeirãoPreto. Quem teve a coragem de assi-nar um cheque de R$ 600 mil para acriação deste centro foi o professorJosé Antunes Rodrigues, que é um dosmaiores pesquisadores que nós temos,e ex-diretor da faculdade.

• Como foi esse processo?- Um dia, por volta de 1996, eu che-guei para o professor Antunes e disseque já estava nesta escola há quase 15anos e nunca havia levado aluno à salade necrópsia do IML de Ribeirão. E quejamais levaria. O IML tinha uma salaterrível, pequena, extremamente feia,mal preparada. A medicina legal já lidacom tudo muito triste, tudo muito feio- feio para os outros, para mim é bo-nito - e não podia levar um aluno queestava pensando em fazer outra espe-cialidade para um lugar desse. Eu que-

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ria trazer os alunos para a me-dicina legal, seduzi-Ios para aminha especialidade e não es-pantá-Ios. Se os levasse paraaquele necrotério, nunca maisiriam querer saber de medici-na legal. Passei 18 anos dandoaula com figurinha. Até diziapara eles: "Se vocês quiserem irao IML de Ribeirão, podem ir,mas eu não levo vocês". Eudisse para o professor Antunesque não continuaria traba-lhando daquela maneira, queiria fazer outras coisas, e eleacabou por encampar o proje-to do Cemel.

• Por que Portugal serviu deinspiração?- Lá, o professor universitá-rio, obrigatoriamente por leifederal, tem de ser o diretor doIML. É um sistema muito maisavançado que o nosso. O dire-tor não pode ser da carreira dapolícia. Nem tem polícia nomeio, porque o legista é filiadonão à Secretaria de Seguran-ça Pública, mas à Secretariade Justiça. Lida com a magis-tratura, é outro nível. Não temdelegado no meio. O pesqui-sador português Nuno Ro-drigues, da Universidade deCoimbra, especialista em medicinalegal, de renome mundial, sempre quevem ao Brasil, diz nas suas conferên-cias que não dá para concordar como sistema brasileiro, em que a máqui-na que pune é a mesma que investi-ga. Ele também é membro da AnistiaInternacional.

• Esse modelo de Portugal é parecidocom o inglês e com o norte-americano?- Eu copiei o modelo norte-ameri-cano num sentido e o português emoutro. No administrativo eu copiei oportuguês. Nos Estados Unidos, nãonecessariamente a universidade está demão dada com o IML. Por exemplo: euconheço muito bem o pessoal do Co-lorado, nos Estados Unidos. O chefedo serviço do IML não é professoruniversitário, mas cursou patologia. Aíestá a base de tudo: ele é patologista,em primeiro lugar. Depois ele vai fazerpatologia forense. Essa é a parte boa domodelo norte-americano, inglês e ca-

nadense. Mas a administração delesnão é tão boa quanto a de Portugalporque o IML não trabalha juntq coma universidade.

• Por que o sistema é melhor quando. chefiado por um professor?- Por causa da universidade. O pro-fessor preza a pesquisa.

• Mas não é um problema quando osmelhores quadros de pesquisa da uni-versidade se tornam também quadrosburocráticos?- O professor de medicina legal nãofaz pesquisa na área se não estiver acom-panhando o que ocorre dentro do IML.Essa é a grande questão que as pessoasnão entendem. Nos IMLs há profissio-nais competentes, mas se não têm for-mação em pesquisa, vão trabalhar demodo limitado. Estou junto com o IML,mas não administro o IML. Embora acarga administrativa seja realmentemuito grande, é preciso que alguém se

disponha a criar núcleos depesquisa em locais onde háensino e assistência e a inves-tigação científica não ocorrecomo deveria. Hoje tenho duasadministrações. Administro oCemel porque ele é da USP. Aoutra administração, tempo-rária, é a do Serviço de Verifi-cação de Óbitos do Interior(SVOI), que é uma unidadeda USP.

• É uma vantagem ter os cole-gas do IML aqui dentro?- É, porque agiliza todo otrabalho. É semelhante ao mo-delo usado pelos americanos.O americano faz isso, só quecom uma base melhor, porqueo médico que faz a verificaçãode óbito é o mesmo que exa-mina morte violenta.

• A formação de legistas emPortugal também é assim?- Não, em Portugal não é tãoboa. Nos outros países, a for-mação do médico legista é empatologia forense. Em Portugaleu encontrei essa grande falha,ou seja, o médico legista tam-bém faz a verificação de óbitosem ser patologista.

• Por que a lei de 9 de fevereiro de1998, editada pelo ex-governador Má-rio Covas, foi importante para vocês?- A lei anterior a essa dizia que o le-gista estava subordinado a um delega-do. Quem chefiava o legista era o poli-cial. O Mário Covas colocou no lugardo delegado um perito criminal ou ummédico legista. Esse cargo, na lei doCovas, é o do diretor da polícia técnica .Em cada gestão estaria um perito mé-dico ou um não-médico.

• Como é projeto de Políticas Públicas,financiado pela FAPESP?- Esse foi o segundo projeto do Ce-mel. A idéia é passar tecnologia e trei-nar o pessoal do IML de Ribeirão Pre-to e do SVOI. Quando começamos atrabalhar aqui, os advogados contesta-vam diariamente os laudos de dosa-gem alcoólica porque a metodologiaera inadequada. Aí pensei que o BrunoMartinis, um pesquisador muito bemformado já desenvolvendo projeto no

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pagamento de todo mundo que traba-lha aqui paga pela USP e uma partepela Secretaria de Segurança Pública.Agora, a verba da manutenção é mui-to pequena, que vem do SVOI. Tenhopor mês o total de R$ 4.489,00 paracomprar material de limpeza e fazertoda a manutenção do centro. Quandopreciso de móveis, ou de um pedreiro,a faculdade me dá. O IML não me dádinheiro nunca. Mas arrumamos ou-tras soluções para conseguir as coisas.O Hospital das Clínicas me emprestauma máquina caríssima, que é a reve-ladora de raios X. Ela não presta parao HC para tirar radiografia em pacien-te vivo, mas presta para tirar de osso,dá uma ótima qualidade. Então 'para'que eu vou comprar um aparelho deponta? Eu pego emprestado aqueleaparelho que é do HC. O material demanutenção desse equipamento é da-do pelo IML. Ele não pode me dar odinheiro, mas ele me dá o líquido, aschapas de raios X, etc. Somando tudo,tenho ajuda do Hospital da Clínicas,funcionários emprestados pela Secreta-ria Municipal, pela Secretaria Estadu-al, material do IML, e com isso monta-mos e mantemos o centro.

Aparelhos bonse técnicos bemtreinados sãouma garantiapara asociedade

Cemel (modalidade Jovem Pesquisa-dor, da FAPESP), poderia assumir olaboratório de toxicologia. O projetode Políticas Públicas, que está entrandona segunda fase,tem como objetivo trei-nar o pessoal técnico das instituiçõesparticipantes para fazer coleta deamostras para dosagem alcoólica, queé o exame mais pedido. São alguns pro-cedimentos muito básicos como, porexemplo, ensinar que há recipientespróprios para colher sangue. Uma vezcertificado que o treinamento ocorreude forma adequada, a instituição propo-nente, que é a Faculdade de Medicina,tem o compromisso de fazer a transfe-rência da tecnologiasofisticada para o ma-nuseio do cromatógra-fo, equipamento queprocessa as amostrasde sangue. O resultadofinal esperado é a efi-ciência dos procedi-mentos e a certeza deresultados fidedignos.

• Ou seja, vocês tinhamum problema de faltade tecnologia e de trei-namento.- O melhor aparelhona mão de técnicos nãotreinados não produz resultados. Quan-do eu digo que o trabalho é elementar,é porque tinha que ensinar a coletar, aguardar, a pôr na geladeira, etc. Hoje ocenário mudou completamente e ascoisas estão mais fáceis. O projeto fi-nanciado pela FAPESP é importanteporque não é possível imaginar, naépoca em que estamos vivendo, aindanão termos sanado esses problemastão primários. Ter equipamentos bonse técnicosbem treinados é uma garantiapara a comunidade.

• Como é o projeto do laboratório deDNA que vai funcionar no Cemel?- O laboratório será importante quan-do não conseguirmos fazer a identifi-cação odonto-legal, ou por uma pró-tese, ou pela ausência de um membro.Na região de Ribeirão Preto é muito co-mum encontrarmos ossadas durantea colheita de cana. O canavial é um lu-gar muito usado para esconder corposporque a cana, mesmo pequena, cobreo cadáver facilmente, que só é desco-berto quando a planta é colhida. O la-

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boratório vai ajudar quando famíliasreclamarem os corpos e os métodos co-muns de identificação não forem sufi-cientes para resolver a questão. Aí entrao exame de DNA de osso.O projeto estápronto, mas falta equipar o laboratório.O problema não é montar o laborató-rio, o mais difícil é saber fazer. E isso oMarco Aurélio Guimarães sabe. Alémdisso, ele já tem a cultura médico-le-gal. Isso é importante.

• E como vocês poderão ajudar a identi-ficar as ossadas suspeitas de serem dedesaparecidos políticos durante o regi-me militar encontradas no Cemitério

Dom Bosco, em SãoPaulo?- Não existe só ummétodo de identifi-cação. Hoje só sefala em DNA, pare-ce que só existe isso.Mas não é assim. Ométodo mais fácil,mais elementar, omelhor deles, é aidentificação odon-to-legal. Sevocê temuma arcada dentáriatrabalhada, porquecolocaram amálga-ma, resma e ISSO es-

tá registrado, fica fácil identificaruma ossada. O mesmo ocorre compróteses. Eu tenho aqui umas duasdúzias de identificações feitas assim.Não tem como ter dúvida. Não é pos-sível um médico cirurgião colocaruma prótese na sua perna e na minhae elas serem iguais, tantas são as variá-

. veis. Nós vamos ajudar nessa identi-ficação por meio de exame de DNAquando formos solicitados.

• Quem banca o Cemel? É a USP?- A USP paga grande parte. Este pré-dio custou R$ 600 mil, pagos pela Fa-culdade de Medicina para termos umadisciplina de medicina legal. O dinhei-ro é da USP,mas saiu do orçamento daFaculdade de Medicina de RibeirãoPreto, não pedimos verba especial àuniversidade. Para pagar as despesascom material de limpeza, por exem-plo, há uma outra fonte, também daUSP, que é o SVOI, uma unidade dauniversidade, que está alojada aqui por-que é atrelada ao Departamento dePatologia. Esse serviço tem a folha de

• Onde a FAPESP entra?- O excelente laboratório de toxi-cologia, de responsabilidade do BrunoMartinis, foi montado graças a umprojeto de Jovem Pesquisador. Não temum tostão da universidade. No labora-tório há quase R$ 1 milhão em equi-pamentos financiados integralmentepela FAPESP,se somarmos tudo o queo Bruno ganhou com o projeto, alémda bolsa de Jovem Pesquisador. O Bru-no e o Marco Aurélio Guimarães tam-bém fizeram mestrado e doutoradocom bolsa da Fundação .

• Sem esse gerenciamento, então, seriamais difícil o Cemel funcionar?- É preciso sempre achar soluções ori-ginais. Pode parecer curioso, mas eunão me considero uma pesquisadora.Acho que sou uma estrategista, vamosdizer assim. Claro que publico trabalhosno exterior, oriento alunos em mestra-do e doutorado, sugiro boa parte daspesquisas que são feitas aqui. Mas aci-ma de tudo sou uma educadora. Respi-rei o mesmo ar da minha mãe - e atémorrer minha mãe foi uma das maio-res educadoras que eu conheci. •