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ENTRE VIAGENS E LETRAS: A PRODUÇÃO INTELECTUAL DE MARIA
DUNDAS GRAHAM NOS OITOCENTOS
Flaviana Aparecida da Silva
Universidade Federal de Juiz de Fora
RESUMO
Durante muito tempo o acesso feminino à escrita foi restrito e, às vezes, até negado. E,
em se tratando do século XIX, o número de mulheres que eram alfabetizadas, e,
principalmente, que escreviam e publicavam livros era menor se comparado à produção
masculina. Apesar das dificuldades impostas pelo sistema patriarcalista, a viajante
Maria Graham foi uma mulher de letras que teve dentre suas principais publicações,
diários de viagem pelos países que visitou. O objetivo da pesquisa é analisar a trajetória
intelectual da inglesa Maria Graham realizando um levantamento dos seus escritos e
obras, analisando especificamente as condições que possibilitaram a publicação dos
seus diários de viagem, visto que era uma mulher escritora que vivia do seu trabalho
intelectual na primeira metade do século XIX, e várias eram as dificuldades de atuação
feminina nesse campo. As principais fontes usadas são os diários de viagem acerca do
Brasil, Chile, Itália e Índia, e uma revisão bibliográfica que contribui para o contexto de
publicação das obras, e, para isso, são importantes instrumentos os livros biográficos
sobre Maria Graham. Autoras como Michelle Perrot e Miriam Moreira Leite são
utilizadas no trabalho para pensar a condição feminina e a inserção delas na escrita da
história. A partir das fontes e das referências analisadas é possível concluir que Maria
Graham publicou ao longo de sua vida um total de 16 livros, entre diários de viagens,
histórias, contos infantis, botânica e traduções. Maria era uma mulher branca, de classe
alta e tinha uma família com boas condições financeiras. Tal fato possibilitou que
recebesse uma boa educação, ter uma rede de sociabilidades que influenciou sua entrada
no campo intelectual e, também, que realizasse suas viagens em diferentes países.
Portanto, os conceitos de gênero, raça e classe perpassam toda sua trajetória intelectual,
e no presente trabalho são analisados de forma interseccional.
Palavras-chave: Maria Graham; Literatura de Viagem; Escrita feminina.
Introdução
Ao longo da história, o acesso feminino à escrita foi durante muito tempo
restrito, e, às vezes, negado. E, em se tratando do século XIX, período ao qual será
dedicado nesse trabalho, o número de mulheres que escreviam e publicavam livros era
inferior se comparado à produção masculina. Não apenas o acesso feminino à escrita foi
restrito, mas, também, sua inserção na historiografia. De acordo com Michelle Perrot,
“no teatro da memória, as mulheres são uma leve sombra” (2017, p. 22). O campo da
história das mulheres começou a se desenvolver em meados da década de 1970, e a
historiadora Michelle Perrot é uma pesquisadora muito reconhecida nessa área de
estudos. Com importantes pesquisas acerca da condição das mulheres francesas, a
autora junto com Georges Duby foi organizadora da coleção “História das mulheres no
Ocidente”.
No Brasil, as historiadoras Ludmila de Souza Maia e Stella Maris Scatena
Franco possuem importantes pesquisas na área de gênero. Ludmila Maia em sua tese
“Viajantes de saias: gênero, literatura e viagem em Adèle Toussaint-Samson e Nísia
Floresta (Europa e Brasil, século XIX)”, realizou um estudo da trajetória e dos escritos
de viagem de Adèle e Nísia. E, segundo a autora, ao contrário das discussões realizadas
na historiografia, o século XIX está cheio de mulheres intelectualizadas, escritoras e
artistas (MAIA, 2016, p. 17). Também, Stella Maris Scatena Franco, em sua tese
“Peregrinas de outrora. Viajantes latino-americanas no século XIX”, pesquisou a vida e
os escritos de Eduarda Mansilla, Gertrudis Gomez de Avellaneda e Nísia Floresta,
ambas viajantes letradas latino-americanas. Dessa forma, os estudos de gênero, e,
principalmente, de mulheres viajantes do XIX, têm crescido significativamente e são
fundamentais para compreender a condição feminina do período destacado.
A viajante Maria Dundas Graham foi uma mulher de letras que nasceu na
Inglaterra em 1785. Filha e esposa de oficiais da Marinha Britânica viajou por vários
países e colônias, e escreveu livros de viagem, botânica, arte, história e contos infantis.
Visitou o Brasil e o Chile em 1821, e durante sua viagem ao continente americano, a
inglesa foi professora na embarcação, e ensinou aos tripulantes lições de geografia,
astronomia, literatura e aritmética. Em sua segunda visita ao Brasil, aproximou-se da
Família Imperial, em especial, da Imperatriz Leopoldina, e se tornou professora da
princesa Maria da Glória (GRAHAM, 1856).
O objetivo da pesquisa é analisar a trajetória intelectual da inglesa Maria
Graham, realizando um levantamento dos seus escritos e obras, analisando
especificamente as condições que possibilitaram a publicação dos seus diários de
viagem, visto que era uma mulher escritora que vivia do seu trabalho intelectual na
primeira metade do século XIX, e várias eram as dificuldades de atuação feminina nesse
campo. O presente trabalho irá se dedicar na análise específica de suas obras na
América Latina, em especial, os livros “Diário de viagem ao Brasil e de uma estada
nesse país durante parte dos anos de 1821, 1822 e 1823” e “Diario de su residência em
Chile (1822) y de su viaje al Brasil (1823)”.
Para auxiliar na análise da trajetória intelectual da viajante, será utilizado o livro
biográfico escrito por Regina Akel, “Maria Graham: a literary biography”, que é uma de
suas principais biógrafas e seu trabalho representa um importante estudo acerca da
inglesa.
A partir das fontes e das referências analisadas, é possível concluir que Maria
Graham publicou ao longo de sua vida um total de 16 livros, entre diários de viagens,
história, contos infantis, botânica, arte e traduções. Maria era uma mulher branca, de
classe alta e tinha uma família com boas condições financeiras. Tal fato possibilitou que
recebesse uma boa educação, ter uma rede de sociabilidades que influenciou sua entrada
no campo intelectual e, também, que realizasse suas viagens em diferentes países.
Portanto, os conceitos de gênero, raça e classe perpassam toda sua trajetória intelectual.
Maria Dundas Graham e a produção intelectual de uma viajante de letras no XIX
A viajante de letras Maria Dundas Graham, nasceu em Papcastle, distrito de
Lake, na Inglaterra em 1785. Filha do Almirante Real escocês George Dundas e da
estadunidense Ann Thompson, teve três irmãos e durante a infância foi separada da mãe
e enviada para morar com parentes em Richmond (AKEL, 2009, p. 12). Existem poucas
fontes e documentos sobre esse período, pois segundo Michelle Perrot (2017, p. 43)
antes do século XX, são poucos os registros acerca da infância de meninas, tendo em
vista que elas passam mais tempo dentro de casa, se comparadas aos meninos.
Maria Graham recebeu uma boa educação escolar, pois sua família,
principalmente o tio pelo lado paterno, tinha boas condições financeiras que
possibilitaram a inglesa adquirir uma instrução de qualidade, se comparado à condição
feminina do período (AKEL, 2009). Ainda assim, em seus escritos autobiográficos
publicados por Rosamund Gotch no livro “Maria Lady Calcott. The creator of little
Arhur” a viajante relata que a educação de meninos e meninas era desigual:
Literatura amável como eu fiz, considerava que a grande diferença entre
homens e mulheres era a educação, que os homens estavam seguros, por
assim dizer, na instrução clássica, que invejava excessivamente; e nunca
entrou em minha mente que, tal como teve as mesmas perseguições, e viveu
entre as mesmas coisas, não foram livres para conversar como irmão e irmã
sobre os objetos de interesse comum (GOTCH, 1937, p. 44)1.
A primeira viagem realizada pela inglesa foi para a Escócia, acompanhando seu
pai, George Dundas. Em 1809 foi para a Índia, também na condição de acompanhante
do mesmo, e durante a viagem conheceu Thomas Graham, capitão da Marinha Britânica
e seu primeiro marido. Como resultado, a inglesa publicou em 1812 seu primeiro livro
de literatura de viagem “Journal of a Residence in India”. Dois anos depois, lançou uma
continuação com “Letters on India; with Etchings and a Map” (AKEL, 2009, p. 13).
Ainda em 1819 realizou uma viagem à Itália, e escreveu duas obras: uma
biografia do artista Nicolas Possuin intitulada “Memoirs of the Life of Nicholas
Poussin”, e um trabalho sobre a cultura de um povo que vivia em Roma, chamado
“Three Months Passed in the Mountains East of Rome, during the Year 1819” (AKEL,
2009, p. 13).
De acordo com Regina Akel (2009, p. 13), no ano de 1821, Maria Graham
acompanhou seu marido em uma viagem do serviço inglês ao continente americano.
Nesse período, as colônias portuguesas e espanholas estavam em processos de
independência, e a Inglaterra enviou diversas embarcações no intuito de defender os
interesses britânicos. E, já com o objetivo de publicar livros, Maria Graham escreveu
relatos acerca do Brasil e Chile e lançou suas obras em 1824 pela editora John Murray.
1 Trecho original: “Loving literature as I did, I considered that the great difference between men and
women was t hat of education, that men were secured, as it were, in classical instruct ion, which I envied
excessively; and it never entered into my mind that such as had the same pursuits, and lived among the
same things, were no t free t o converse like brother and sister on the objects of common interest"
(GOTCH, 1937, p. 44).
Adiante no artigo, analisarei mais detalhadamente a organização, estrutura e o conteúdo
desses dois livros.
Também, como resultado de sua viagem ao Brasil, a inglesa produziu um
escorço biográfico de D. Pedro I, escrito após a morte do imperador. O texto até o
presente momento, não foi publicado na Inglaterra, apenas no Brasil pela Biblioteca
Nacional.
Além de publicar obras de literatura de viagem, Maria Graham trabalhou como
tradutora e editora de livros. De acordo com Sônia Lúcia, a tradução era uma das formas
de escritas “recomendadas” às mulheres, pois não implicava o exercício de criar algo
autoral, mantendo dessa maneira, o anonimato. Segundo a autora, muitas escritoras
antes de lançaram suas obras autorais, publicavam primeiro traduções de livros
(LÚCIO, 1999, p. 59). Por essa razão, o conhecimento de outras línguas era um
elemento fundamental para as mulheres de classe alta. Trabalhando na editora de John
Murray, a inglesa traduziu algumas obras para o inglês, como “Memoirs of the war of
the French in Spain”, e também, revisou os livros de Jane Austen2. Maria Graham teria
realizado uma pesquisa e a edição do livro “Voyage of H. M. S. Blonde to the Sandwich
Islands, in the years 1824-1825” (AKEL, 2009).
Depois de sua viagem ao continente americano, Maria Graham retornou à
Inglaterra, e ainda trabalhando na editora de John Murray, produziu uma obra sobre a
história da Espanha, no ano de 1828, intitulado “A Short History of Spain”. A viajante
se casou em 1827 com o pintor inglês Augustus Callcott (AKEL, 2009, p. 15). Em carta
à Imperatriz Leopoldina, sua grande amiga, ela afirmou:
Estando cansada de viver só neste mundo, não me recusei em casar-me
novamente – mas não será senão no mês de fevereiro que isto se dará. O
homem que escolhi é um pintor e não faltam parentes que clamam pela
mésalliance. Que tolos! Como se um honesto nascimento e talento
superiores, com probidade e vontade, não valessem muito mais que o
privilégio de dizer-se prima, em não sei que grau, de certos Lords que não se
incomodam comigo mais do que com a rainha dos peixes! Chama-se Callcott.
É um belo homem, de 47 anos que muito me ama e me amou há muito tempo
(GRAHAM, 1997, p. 53).
2 Segundo alguns autores, Maria Graham teria revisado e comentado a obra “Emma”, de Jane Austen.
Talvez, por influência do seu segundo marido, Maria Graham nesse momento de
sua vida, passou a se dedicar aos estudos de arte. No ano de 1835 produziu a obra
“Description of the Chapel of the Annunziata Dell’Arena”; “Or Giotto's Chapel, in
Padua”. No ano seguinte, publicou dois livros para jovens pintores: “Essays Towards
the History of Painting e Continuation of Essays Towards the History of Painting”.
Em 1837, Augustus Callcott recebeu o título de cavaleiro, e a viajante passou a
assinar suas publicações como Lady Callcott, e além dos livros de arte, se dedicou a
produção de livros de botânica, geologia e contos infantis.
Em 1835 publicou o seu livro de maior sucesso na Inglaterra, “Little Arthur's
History of England”. A obra é muito reconhecida no país, pois foi a primeira que se
dedicou à história da monarquia inglesa para o público infantil. Com mais de 70
edições, segundo a editora responsável pela tiragem, o livro até o ano de 1962 já havia
vendido mais de 800 mil cópias (SOARES, 2015, p. 18). Após a escrita de “Little
Arthur's History of England” várias outras obras foram desenvolvidas. No ano seguinte,
a viajante publicou “Histoire de France du Petit Louis Londres”, e com o mesmo
objetivo que o pequeno Arthur, o Pequeno Luís, contava a história da França com um
viés pedagógico.
Em 1841, a inglesa lançou um livro com cinco contos sobre plantas, natureza,
folclore e religião. As cinco histórias são: “The Little Bracken-Burners”; “Palm Sunday
or Little Mary’s saturday’s walk”; “Easter Eve or Little Mary’s second walk”; “Little
Mary’s saturday at Home”; “Whitsun Eve or Little Mary’s Last Saturday” (SOARES,
2015, p. 20).
Em 1842, ano de sua morte, Maria Graham lançou “A Scripture Herbal”. A obra
contém duas histórias para crianças, e funciona também como uma espécie de
dicionário botânico, pois é possível pesquisar as plantas que são mencionadas na Bíblia
e sua ficha técnica científica.
Através de sua produção intelectual, é possível perceber que Maria Graham
transitou entre os mais diversos segmentos da literatura, desde a biologia, história,
viagens até o universo infantil. Como uma mulher viajante de letras, teve uma carreira
literária na Inglaterra, e, através de seu trabalho, deixou uma produção intelectual
importante para compreender a condição feminina, a cultura e sociedade do período.
Literatura de viagem: considerações bibliográficas de suas obras na América
Latina
Como mencionado anteriormente, Maria Graham realizou diversas viagens
acompanhando seu pai, George Dundas, e Thomas Graham, seu primeiro marido.
Visitou a Escócia, Índia, Itália, Brasil e Chile. Nesse momento, segundo Mary Louise
Pratt (1999) a Europa foi promotora de várias viagens de cunho cientista, natural,
político e turístico. Muitas embarcações tiveram como objetivo visitar o continente
americano seja para catalogar espécies nativas, ou para defender interesses políticos
europeus. E, a literatura de viagem, foi um gênero de escrita muito difundido no
período, pois eram a partir dos relatos dos viajantes que as pessoas até então conheciam
e obtinham informações sobre o continente americano.
As viajantes mulheres representavam um número muito reduzido se comparado
aos homens, e menor ainda eram as que escreviam e publicavam livros. De acordo com
Miriam Moreira Leite, dos 80 livros de viagem produzidos sobre o Brasil na primeira
metade do século XIX, apenas cinco foram de autoria feminina (1984, p. 24). Segundo
Carl Thompson:
Se a viajante feminina contradiz a ideologia patriarcal de esferas separadas,
saindo de sua casa e se aventurando pelo mundo, a escritora de viagem, ou
pelo menos aquela que publica um relato de viagem, contravém esta
ideologia duas vezes. Não apenas ela viaja, mas posteriormente, ela se coloca
uma segunda vez na esfera pública como escritora; e uma relutância para
assumir o último papel é a razão pela qual tão poucos relatos escritos por
mulheres foram publicados antes de 18003 (THOMPSON, 2011, p. 180).
Maria Graham e seu marido chegaram ao Brasil em setembro de 1821. Em seu
diário de viagem escreveu: “Estamos ancorados a cerca de oito milhas de Olinda, capital
de Pernambuco, com quinze braças de fundo, mas apesar de termos dado mais de um
3 Segue o trecho original: “If the female traveler contravenes the patriarchal ideology of separate spheres by quitting her home and venturing out into the world, the female travel writer, or at least, the woman
who publishes a travel account, contravenes that ideology twice over. Not only does she travel, she then
positions herself a second time in the public sphere, as an author; and a reluctance to take up the latter
role is a further reason why there are so few published travelogues by women prior to 1800”
(THOMPSON, 2011, p. 180).
tiro de canhão, pedindo um piloto, não parece que venha nenhum” (GRAHAM, 1956, p.
105). O casal visitou as províncias de Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro, e desde o
início, é possível perceber o interesse de publicar um livro sobre o país.
Após ficarem alguns meses em terras brasileiras, os dois continuaram a viagem
para o Chile. No entanto, durante o trajeto várias dificuldades foram enfrentadas.
Thomas Graham já estava doente, e a viagem agravou sua condição de saúde. O inglês
faleceu durante a passagem do Cabo de Horn, deixando Maria viúva em um continente
desconhecido. Em seu diário de viagem ao Chile, a viajante lamentou a morte do
marido:
Continuei a escrever meu diário regularmente, mas ainda que perto de dois
anos se tenham passado desde que eu escrevi, não tenho ânimo para copiá-lo.
O de três de abril em diante tornou-se o registro de um agudo tormento. De
minha parte esperanças e temores alternados através de dias e noites de tempestades, que agravavam a desgraça dessas horas. Na noite de nove de
abril, pude despir-me, e ir para a cama pela primeira vez desde que deixei o
Rio de Janeiro. Estava tudo acabado; dormi longamente e descansei; quando
acordei foi para tomar consciência de que estava só, e viúva, com um
hemisfério entre mim e meus parentes (GRAHAM, 1956, pp.231 e 232).
Apesar de várias pessoas terem oferecido uma viagem de volta em embarcações
britânicas, Maria Graham continuou o trajeto e visitou Valparaíso e Santiago. Depois de
permanecer um ano no Chile, retornou ao Brasil, acompanhando o inglês Lord
Cochrane, pois o mesmo havia sido enviado para ajudar nas batalhas contra os
portugueses em terras brasileiras. Nessa segunda visita, permaneceu no Rio de Janeiro,
onde se aproximou da família Imperial, chegando a ocupar o cargo de tutora da princesa
Maria da Glória. No entanto, antes de ocupar a função, foi à Inglaterra buscar materiais
pedagógicos, e, em 1824, ao retornar pela terceira vez ao país, foi morar no Paço
Imperial, onde residiu por aproximadamente um mês. Depois de pedir demissão do
cargo de professora, em razão dos conflitos com os funcionários portugueses e
brasileiros, a inglesa foi residir em uma casa na zona rural do Rio de Janeiro, no bairro
Laranjeiras. Maria Graham foi embora definitivamente do Brasil no ano de 1824
(GRAHAM, 1956).
Durante o período em que permaneceu na América, Maria Graham escreveu dois
livros de viagem. O livro “Journal of a Voyage to Brazil and residence there during part
of the years 1821, 1822, 1823” foi publicado em 1824 na Grã-Bretanha pelo editor John
Murray II e editado em conjunto com a Longman & Company. No Brasil, a obra foi
traduzida pelo historiador Américo Jacobina Lacombe, e publicado no ano de 1956 pela
Biblioteca Nacional, intitulado “Diário de viagem ao Brasil e de uma estada nesse país
durante parte dos anos de 1821, 1822 e 1823”. Além do diário de viagem, a obra
também possui parte de aquarelas da inglesa, adquiridos em compra pelo Sr. Walter T.
Spencer, Livreiro-antiquário de Londres (GARCIA, 1940, p. 11).
No momento de publicação na Grã-Bretanha, vários jornais divulgaram anúncios
acerca do novo livro de Maria Graham sobre a viagem na América do Sul. A título de
exemplo, o Jornal “Dublin Evening Post”, no dia 27 de maio, nº 445, em Dublin, na
Republic of Ireland, publicou o seguinte anúncio com o título “América do Sul: Neste
dia é publicado, por Longman, Hurt, Rees, Orme, Brown, e Green” 4:
1. Diário de uma Residência no Chile, e viagem ao Pacífico, nos anos de
1822 e 1823; precedidos pelos relatos das revoluções no Chile, desde o ano
de 1810, e particularmente das Transações do Esquadrão do Chile sob o
comando de Lord Cochrane. Maria Graham, Autora de Residência na Índia.
Ac. &c Em um Volume 4to, com Gravuras, preço 12s. 6d. Bds5
2. Diário de viagem ao Brasil, e de uma estada nesse país, durante parte dos anos de 1821, e 1823; incluindo um relato da revolução que provocou a
independência do Império Brasileiro. Maria Graham. 1 Vol. 4to. Com
gravuras, preço £2 Bds6 (THE SCOTSMAN, 1824, p. 240).
A historiadora Maíra Guimarães Porto, em sua dissertação “Para inglês ver: uma
análise de Journal of a Voyage to Brazil” realizou a análise de alguns desses anúncios.
Segundo a autora, existe uma diferença nos valores dos diários sobre a Índia e Brasil,
pois a obra brasileira é quase o dobro do preço da publicação de “Journal of a Residence
in India”. Existem alguns possíveis motivos, como por exemplo, o tempo decorrido
entre a primeira e a segunda publicação, e, também, quando a inglesa publicou o diário
sobre a América do Sul, já era uma escritora conhecida no país e por essa razão, o preço
4 Trecho original: “South America: This Day are Published, by LONGMAN, Hurt, Rees, Orme, Brown,
and Green.” 5 Trecho original: “JOURNAL of a RESIDENCE in CHILE, and VOYAGE from the PACIFIC, in the
Years 1822 and 1823; preceded by Account of the Revolutions in Chile, since the Year 1810, and particularly of the Transactions of the Squadron of Chile under Lord Cochrane. MARIA GRAHAM,
Author of Residence in India," Ac. &c. In one Volume 4to. with Engravings, price 12s. 6d. Bds.” 6 Trecho original: “JOURNAL of VOYAGE to BRAZIL, and Residence there, during Part of the Years
1821, and 1823; including an Account the Revolution which brought about the Independence of the
Brazilian Empire MARIA GRAHAM. 1 Vol. 4to. with Engravings, price £2 Bds.”
teria aumentado. Além disso, ao anunciar que o livro vinha com imagens, tornava-o
mais caro, pois o processo de inclusão de imagens era manual no período (PORTO,
2017, p. 22).
A partir dos relatos de sua estadia no Chile, Maria Graham também produziu um
livro de viagem: “Journal of a residence in Chili during the year 1822 and a Voyage
from Chili to Brazl in 1821”, publicado também em 1824, na cidade de Londres.
Embora a obra acerca do Brasil e do Chile serem publicadas no mesmo ano e fazerem
parte de uma mesma viagem, a inglesa optou por produzir um livro separado dos relatos
em terras chilenas no ano de 1822.
Julgou-se conveniente separar completamente as narrativas referentes à
América Espanhola e à América Portuguêsa, já que nos países as constituem
são diferentes não só o clima e as produções quanto os habitantes por suas
maneiras, sociedade, instituições e governo (GRAHAM, 1956, p. 16).
No Chile, a obra foi traduzida por José Valenzuela e organizada pela Biblioteca
Ayacucho em 1964, intitulada “Diario de su residência em Chile (1822) y de su viaje al
Brasil (1823): San Martín - Cochrane - O’Higgins”7. O livro faz parte do patrimônio
cultural do país, ou seja, possui um grande valor histórico.
Seus diários de viagem na América Latina possuem um padrão de estrutura. A
primeira parte do livro é composta por uma introdução acerca da história geral dos
respectivos países (da colonização até sua chegada ao território). Para realizar o esboço
historiográfico, Maria Graham utilizou os estudos do historiador Robert Southey8. De
acordo com Carl Thompson, a utilização das obras de um historiador masculino para
embasar seus escritos, foi uma forma encontrada de legitimar o conteúdo produzido,
visto que era uma escritora que estava na condição feminina no século XIX (2011).
As obras aqui mencionadas contêm descrições de Maria Graham acerca da
natureza, comércio, igrejas, reuniões políticas, festas, passeios, e, principalmente,
relatos das pessoas que conheceu e faziam parte de uma rede de sociabilidades da
inglesa. Em específico sobre o “Diário de viagem ao Brasil e de uma estada nesse país
durante parte dos anos de 1821, 1822 e 1823”, Maria Graham escreveu sobre a
escravidão e o comércio de escravos nas ruas do Rio de Janeiro, como o mercado de
7 O livro também está disponível no site “Memoria Chilena: Biblioteca Nacional de Chile”. Acesso em:
http://www.memoriachilena.gob.cl/602/w3-article-7694.html 8 Historiador inglês que produziu a obra “History of Brazil”.
Valongo; relatos das mulheres portuguesas, brasileiras, inglesas e francesas; descrições
de políticos e pessoas que ocupavam um cargo de importância no Império Brasileiro,
como José Bonifácio, D. Pedro I, Leopoldina, Visconde do Rio-Seco; e registros do
processo de independência do Brasil.
Quanto ao “Diario de su residência em Chile (1822) y de su viaje al Brasil
(1823): San Martín - Cochrane - O’Higgins”, a inglesa escreveu sobre os povos
indígenas da região de Valparaíso e Santiago; relatos das mulheres espanholas e
chilenas; escritos do terremoto que aconteceu no ano de 1822; e descrições de pessoas
que estavam participando do governo no país, como Lord Cochrane, San Martín,
Bernardo O’Higgins, juiz Prevost, etc.
Os livros de literatura de viagem escritos sobre o Brasil e o Chile, são, portanto,
importantes documentos não apenas porque foram escritos pelo olhar de uma mulher
viajante no início do século XIX, mas, também, porque são registros de acontecimentos
políticos, sociais e culturais de províncias e regiões que no momento estavam se
organizando para a formação de um Estado Nacional.
Considerações Finais
Atualmente a história das mulheres é um campo de estudos que vem se
consolidando e crescendo a cada dia. Existem inúmeras pesquisas publicadas e muitas
em andamento acerca da condição feminina. E, tais trabalhos, são fundamentais para
compreender a situação atual da mulher, e, principalmente, para torná-las parte do
processo histórico. Ao analisar os relatos de uma mulher viajante letrada, escritora de
livros de viagem na primeira metade do século XIX, o presente trabalho visou
contribuir para a construção de uma história em que as mulheres possam ser
representadas, estudadas, lidas e conhecidas. E, Maria Graham, foi um personagem que
escreveu sobre diversos temas, de literatura de viagem à contos infantis. Publicou ao
longo de sua vida um total de 16 livros, e teve uma carreira profissional conhecida na
Grã-Bretanha.
É importante ressaltar que as categorias de gênero, raça e classe perpassam toda
sua escrita e trajetória, na medida em que é uma mulher branca, inglesa e de classe alta.
Ou seja, os lugares que visitou e as amizades em sua rede de sociabilidades, foram
influenciados em grande parte por representar a Grã-Bretanha, principalmente nos
países que estavam em processos de independência, como por exemplo, o Brasil e o
Chile. Além disso, sua profissão de escritora, também foi influenciada pela sua classe,
pois, sua formação escolar só foi possível porque sua família, principalmente o tio do
lado paterno tinha boas condições financeiras.
As obras de Maria Graham, ou, Lady Callcott, são importantes documentos que
representam não apenas a trajetória de uma mulher viajante de letras nos oitocentos,
mas também porque contêm descrições importantes de colônias, países e regiões que
estavam em processos de independência e de formação de um Estado Nacional. Além
disso, nos diários aqui analisados acerca do Brasil e do Chile, seus relatos são
representações da economia, política, cultura, sociedade e história de um povo pelo
olhar de uma mulher viajante, branca, inglesa e de classe alta.
Referências
Fontes:
GRAHAM, Maria. Diário de viagem ao Brasil e de uma estada nesse país durante
parte dos anos de 1821, 1822 e 1823. São Paulo: S/A, 1956.
______. Diario de su residência em Chile (1822) y de su viaje al Brasil (1823): San
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https://www.britishnewspaperarchive.co.uk/viewer/bl/0000540/18240414/070/0008
Acesso em 28 set. 2019.
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