entre tumbas e senzalas: os direitos remanescidos de santana dos pretos - edmeire exaltação

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAS ENTRE TUMBAS E SENZALAS: Os Direitos ‘Remanescidos’ do Quilombo Santana dos Pretos. Edmeire Oliveira Exaltação Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro UERJ, como requisito à obtenção do grau de Mestre em Ciências Sociais. ORIENTADORA Profa. Dra. CléIa Schiavo Weyrauch. Rio de Janeiro 2002

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Este trabalho tem o objetivo de entender os processos de construção e preservação da identidade negra, assim como os elementos sociopolíticos constitutivos do cotidiano de uma comunidade negra rural fluminense. Com esta finalidade, foi escolhida para estudo a comunidade negra de Santana, localizada no médio Paraíba do Estado do Rio de Janeiro. Interessa a este trabalho, analisar os “quadros” persistentes da memória coletiva da comunidade e fazer uma avaliação das estratégias que seus membros têm utilizado para exigir e garantir os seus direitos conforme prenunciados pela Constituição de 1988. This thesis aims to understand the processes of construction and preservation of black identity and the sociopolitical elements that constitute the daily life of a rural black community in Rio de Janeiro. For this purpose, was chosen the black community of Santana, located in the middle of Paraiba, Rio de Janeiro. Our interest is to analyze the persistent memories frames and make an assessment of the strategies that the community members have used to ensure and to demand citizenship rights as foretold by the 1988 Constitution.

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Page 1: ENTRE TUMBAS  E SENZALAS: Os  Direitos Remanescidos de Santana dos Pretos -  Edmeire Exaltação

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAS

ENTRE TUMBAS E SENZALAS:

Os Direitos ‘Remanescidos’ do Quilombo

Santana dos Pretos.

Edmeire Oliveira Exaltação

Dissertação apresentada ao Curso de

Mestrado em Ciências Sociais da

Universidade do Estado do Rio de Janeiro –

UERJ, como requisito à obtenção do grau de

Mestre em Ciências Sociais.

ORIENTADORA

Profa. Dra. CléIa Schiavo Weyrauch.

Rio de Janeiro

2002

Page 2: ENTRE TUMBAS  E SENZALAS: Os  Direitos Remanescidos de Santana dos Pretos -  Edmeire Exaltação

Exaltação, Edmeire Oliveira

ENTRE TUMBAS E SENZALAS: Os Direitos

‘Remanescidos’ de Santana dos Pretos.

Rio de Janeiro – UERJ, 2002-09-09

Dissertação: Mestrado em Ciências Sociais, UERJ

I . Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ

II. Quilombos, Memória, Identidade Étnica.

Page 3: ENTRE TUMBAS  E SENZALAS: Os  Direitos Remanescidos de Santana dos Pretos -  Edmeire Exaltação

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________________

CLÉIA SCHIAVO WEYRAUCH

________________________________________________________

JACQUES D’ADESKY

_______________________________________________________

HERIS ARDNT

Page 4: ENTRE TUMBAS  E SENZALAS: Os  Direitos Remanescidos de Santana dos Pretos -  Edmeire Exaltação

Para os meus filhos:

Eduardo Sol, Pietro Terra e Isis Natureza.

Page 5: ENTRE TUMBAS  E SENZALAS: Os  Direitos Remanescidos de Santana dos Pretos -  Edmeire Exaltação

RESUMO

Este trabalho tem o objetivo de entender os processos de construção e

preservação da identidade negra, assim como os elementos sociopolíticos

constitutivos do cotidiano de uma comunidade negra rural fluminense. Com

esta finalidade, foi escolhida para estudo a comunidade negra de Santana,

localizada no médio Paraíba do Estado do Rio de Janeiro. Interessa a este

trabalho, analisar os “quadros” persistentes da memória coletiva da

comunidade e fazer uma avaliação das estratégias que seus membros têm

utilizado para exigir e garantir os seus direitos conforme prenunciados pela

Constituição de 1988.

Cabe aqui situar a discussão sobre comunidades negras rurais dentro de

uma estrutura conceitual chamada política de identidades. Será assim chamada

por entendermos que os movimentos de identidades específicas têm utilizado

imagens, concepções, memórias, representações e práticas culturais como

cenário para as suas ações e demandas políticas. Assim tem sido em Santana:

a identidade étnica, memória e cidadania são temas constantes nas vozes dos

seus moradores.

Será observado neste trabalho como a conquista do direito à cidadania

pelas comunidades negras rurais, está ligada a um processo que se completa

pela preservação da sua memória coletiva. A partir da análise estruturada pela

tríade memória, etnicidade e cidadania, procuraremos entender como estes

conceitos são enunciados e definidos pela comunidade negra de Santana de

Quatis.

Page 6: ENTRE TUMBAS  E SENZALAS: Os  Direitos Remanescidos de Santana dos Pretos -  Edmeire Exaltação

ABSTRACT

This thesis aims to understand the processes of construction and preservation of

black identity and the sociopolitical elements that constitute the daily life of a

rural black community in Rio de Janeiro. For this purpose, was chosen the black

community of Santana, located in the middle of Paraiba. Our interest is to

analyze the persistent memories frames and make an assessment of the strategies

that the community members have used to ensure and to demand citizenship

rights as foretold by the 1988 Constitution.

We will focus the discussion on the quilombo black communities within a

conceptual framework called identity politics. We believe that the movements of

specific identities have used images, concepts, memories, representations and

cultural practices as the setting for their actions and political demands. So it has

been in Santana: ethnic identity, memory, and citizenship are a constant theme in

the voices of the residents.

It will be observed how the right to citizenship for the traditional black

communities are linked to a process that is completed by the preservation of

collective memory. From a structured analysis through the triad memory,

ethnicity and citizenship, we will look to understand how these concepts are

listed and defined by the black Santana community.

Page 7: ENTRE TUMBAS  E SENZALAS: Os  Direitos Remanescidos de Santana dos Pretos -  Edmeire Exaltação

ÍNDICE

Pag.

Introdução

Sobreviventes Quilombolas: Memória como Poder de Organização........ 01

Capítulo 1

Um Olhar Esguio sobre Sant’Ana dos Pretos......................................... 14

Capítulo 2

Entre Tumbas e Senzalas: As Ruínas de um Significado....................... 31

Capítulo 3

Do Tamanho do Mapa à Cor do Título: Traçados e Pontilhados na

Linha da História............................................................................... 49

Capítulo 4

Os Direitos Remanescidos dos Sobreviventes da Memória............... 65

Capítulo 5

Perfil Sócio-Econômico de Santana..................................................... 84

Considerações Finais............................................................................. 100

Bibliografia............................................................................................ 108

Anexos..................................................................................................... 114

Page 8: ENTRE TUMBAS  E SENZALAS: Os  Direitos Remanescidos de Santana dos Pretos -  Edmeire Exaltação

1

Foto: Creuza Flores

INTRODUÇÃO

Sobreviventes Quilombolas:

Memória como Forma de Organização

Morador de Santana e seus filhos

Estou ouvindo um lamento

Que não sei de onde vem

Sei que é lamento do Homem

Talvez do fundo do mundo

O fundo do mundo onde é

Quem sabe pra me dizer

Este lamento é do homem

De deuses é que ele não é

Que cor esse homem tem

Sei que é lamento do Homem

Mas não sei de onde vem

Vem ó Maria Santana

Lamento do Homem escutar!

Lamento, de Solano Trindade.

O Poeta do Povo, pg. 103.

Page 9: ENTRE TUMBAS  E SENZALAS: Os  Direitos Remanescidos de Santana dos Pretos -  Edmeire Exaltação

2

Esta pesquisa tem o objetivo de entender os processos de construção e

manutenção da identidade negra e os elementos sociopoliticos constitutivos do

cotidiano de uma comunidade1 negra tradicional. Com esta finalidade, foi

escolhida para estudo de caso a comunidade negra de Santana, localizada no

médio Paraíba do Estado do Rio de Janeiro, „provisoriamente‟ titulada em

julho de 20002. Interessa também a este trabalho analisar os “quadros”

persistentes da memória coletiva da comunidade3 e fazer uma avaliação das

estratégias que seus membros têm utilizado para exigir e garantir os seus

direitos conforme prenunciados pela Constituição de 1988.

Com a Constituição de 1988 as comunidades negras rurais começaram a

atrair certa visibilidade graças ao Artigo 68O

dos Atos das Disposições

Constitucionais Transitórias - ADCT que assegura, “aos remanescentes das

comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras” o

reconhecimento da propriedade definitiva, “devendo ao Estado emitir-lhes os

títulos respectivos”4 . Desta forma, este dispositivo constitucional abriu um

espaço legal através do qual centenas de comunidades negras puderam

efetivamente reivindicar a regularização de suas terras.

Também com o artigo 68o, tenta-se reparar uma injustiça que vem

desde o período escravistas quando, com a Lei de Terra de 1850, os

1 A idéia de comunidade neste trabalho será utilizada conforme sugerido por Weyrauch, isto é,

“comunidade subentendida como um pacto de igualdade entre seus membros”. WEYRAUCH, Cléia.

Pioneiros Alemães de Nova Filadélfia. Educs, R.G. do Sul, 1997, pg. 165.

3 Conforme Halbwachs, é por meio dos quadros sociais - sobrepostos - da memória que as lembranças

vão e voltam transportando eventos do passado que não existem por si só, mas em relação às idéias e

percepções do presente. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990. pg. 52

4 Constituição da República Federativa do Brasil, COAD, Centro de Estudos Superiores, São Paulo,

1988, pg. 60.

Page 10: ENTRE TUMBAS  E SENZALAS: Os  Direitos Remanescidos de Santana dos Pretos -  Edmeire Exaltação

3

descendentes de escravos ficaram impedidos de ter acesso a terra5. O novo

preceito constitucional reconhece não só o direito de posse dos quilombolas

como também o status histórico destas comunidades enquanto patrimônio

cultural brasileiro.

O trabalho aqui proposto é oportuno por trazer uma discussão muito

recente nos debates políticos e acadêmicos no Brasil: a utilização de direitos

constituídos a partir da condição étnica da pessoa. Temos como exemplo mais

recente as legislações baseadas em ações afirmativas que se institucionalizam

em instrumentos de cidadania e de direitos reparadores dos traumas e prejuízos

causados à população negra pela escravidão e pela prática do racismo.

Enquanto o século XX foi exaustivo na produção das grandes teorias

relacionadas à diferença de classes, à opressão política e outros paradigmas de

caráter universalista, a era contemporânea parece preferir o particularismo

através da celebração da diferença e da heterogeneidade cultural expressas

pelos variados grupos étnicos que compõem as sociedades multiculturais6.

Porém, só muito recentemente - com a Constituição Federal de 1988 - o Brasil

começou a fazer parte de forma mais cômoda deste cenário de reivindicações

baseadas nas diferenças étnicas.

O reconhecimento da pluralidade e das diferenças étnicas existentes em

nosso país veio assim reverter uma antiga crença de que a identidade racial não

teria relevância no contexto da sociedade brasileira7. Entretanto, com todas as

considerações à diversidade étnica do país encontradas na Constituição Federal

5 Ver no Capítulo 2 deste trabalho maiores referências à Lei de Terra de 1850. 6 KILIMCKA, Will . Multicultural Citizenship, 1995, Clarendom Press, Oxford, pg. 2 7 DADESKY, Jacques. Pluralismo Étnico e Multiculturalismo, Rio de Janeiro, Pallas, 2001, pg 12.

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4

de 1988, ainda observa-se um certo incômodo nos debates sobre as diferenças

e as pluralidades étnicas e culturais existentes na nossa sociedade. Qualquer

manifestação legítima de demarcação de fronteiras étnicas neste país é vista

como uma atitude ameaçadora e seccionista à „harmonia racial‟ existente no

país. Esta atitude pode ser traduzida como uma ação de controle por parte do

pensamento dominante. Controle este que tem trazido irreparáveis prejuízos à

comunidade negra que se viu muitas vezes impedida de administrar a

manutenção das suas tradições e das suas singularidades enquanto um grupo

étnico detentor de uma origem e herança culturais específicas.

Cabe aqui situar a discussão sobre as comunidades negras rurais dentro

de uma estrutura conceitual chamada política de identidade. É assim chamada

por entender que os movimentos de interesses específicos utilizam imagens,

concepções, representações e práticas culturais como cenário para as suas ações

e demandas políticas8. Nesta direção, o movimento negro, onde incluem-se

também as comunidades rurais negras, o movimento indígena, o movimento

feminista, o movimento homossexual, entre outros, utilizam demandas que

realçam a identidade e a diferença, ou mesmo a intersecção entre estas, como

táticas de garantias de direitos da pessoa humana e de cidadãos(ãs).

A conquista do direito à cidadania pelas comunidades negras rurais está

intrinsecamente ligada a um processo que se completa pela preservação da sua

memória. Daí porque não termos como não associar a tríade utilizada neste

trabalho: memória, etnicidade e cidadania. A partir da análise articulada desta

8 KILIMCKA, op. Cit. Pg. 35.

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5

tríade, procuro entender como estes conceitos são enunciados e definidos em

diferentes estratégias utilizadas pelas comunidades negras rurais.

No sentido clássico, cidadania tinha um significado abstrato e estava

associada a uma imagem de atendimento mais amplo, mais universal de

demandas. Atualmente, porém, a concepção de cidadania tem a sua imagem

recortada pelo interesse dos grupos organizados em torno das suas múltiplas

identidades específicas. Assim, a cidadania étnica, cidadania de gênero, de

orientação sexual, da condição etária, etc., substituíram a outrora imagem

unificada de identidade nacional, de unidade cultural de uma nação9.

Sob este ponto de vista, podemos entender a cidadania reclamada pelas

comunidades negras rurais não apenas como aquela restrita ao atendimento de

seus direitos fundiários ou ao atendimento das suas necessidades materiais. Os

moradores de Santana também reclamam por uma cidadania onde tenham as

suas tradições culturais e suas crenças preservadas ou resgatadas. É aquela a

qual podemos chamar de cidadania étnica onde as práticas culturais, simbólicas

e econômicas do grupo não podem ser vistas desvinculadas dos seus direitos

civis, políticos e sociais.

Em atenção ao que diz o artigo constitucional (68º) , muitas

comunidades negras começaram a perceber que - se era importante antes -

agora, mais do que nunca, a condição étnica tornar-se-ia um instrumento

imprescindível, na cobrança e conquistas de políticas de direitos humanos.

9 KILIMCKA, op. cit. pg. 58.

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6

Desta forma, o Artigo 68o legitima e associa juridicamente, o reconhecimento

da diferença etnocultural como um direito estabelecido por inclusão e igualdade

social.

O conhecimento da origem e o sentimento coletivo de pertencimento

étnico são peças cruciais na comprovação dos direitos especiais destas

comunidades. Por isto, é de fundamental importância para a comunidade o

resgate e a “preservação” da memória coletiva acompanhados dos artefatos

arqueológicos e culturais herdados dos seus antepassados. Em vista disto, é

oportuna a preocupação de Miguel, presidente da Associação dos Moradores de

Santana com a constituição de um capital mnemônico que garanta assim, a

transmissão da história da comunidade às gerações vindouras10

.

Comunidades Negras Rurais: números e significados.

Apesar de ter obtido ordenamento jurídico com a Constituição Federal

de 1988, os direitos especiais dos remanescentes de quilombos só começaram a

entrar no debate político nacional na metade da década de 90 por ocasião das

comemorações de 300 anos de morte de Zumbi de Palmares. Desde então, o

Artigo 68O tem sido objeto de interesse acadêmico e político. O debate

suscitado, além de dar visibilidade a estes novos atores sociais, trouxe também

uma situação nova ao quadro político nacional11

: o Estado foi obrigado a

10 Assim, este capital mnemônico garantiria um estoque de informações herdadas, que devem ser

armazenadas na memória coletiva e serem transmitidas de geração para geração.

11 Mesmo tendo um sentido de reparação de uma dívida histórica, é bom não confundir os direitos

especiais conquistados pelos remanescentes de quilombos com as políticas de ação afirmativa também

tão discutidas atualmente. As políticas de ação afirmativa são planejadas para um tempo limitado. Ou

seja, espera-se que à medida que as desigualdades sociais e étnicas diminuam, tais políticas percam,

gradativamente, o seu sentido de aplicação. Por sua vez, os direitos especiais dirigidos aos quilombolas

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7

reconhecer e a atender a novas demandas vindas da área rural.

Há uma estimativa de que exista em todo o país cerca de 900

comunidades rurais negras acolhendo por volta de dois milhões de habitantes.

Somente no Estado do Rio de Janeiro já foram “reconhecidas”12

14

comunidades negras com características que atendem a aplicabilidade do Art.

68O13

.

Mas, afinal, à luz da realidade atual o que vem a ser uma comunidade

negra rural ou comunidade remanescente de quilombos? Como se define um

remanescente ou quilombola? Quais foram os processos sociais e estratégias

utilizados por estes moradores, de forma a persistirem enquanto um grupo até

os dias de hoje? Como esses grupos mantiveram características específicas

vivendo em condições sociais tão adversas?

Costuma-se associar a história de quilombos no Brasil apenas ao

período escravista. Pouco se conhece sobre as comunidades negras rurais que

sobreviveram a este período e procuraram levar suas vidas dentro de práticas

simples e cotidianas até hoje. Por causa deste “esquecimento” há pouca

consonância entre o imaginário popular - mesmo o dos militantes negros - sobre

quilombos e a realidade concreta destas comunidades. Muitos acreditam que há

nestas comunidades uma realidade sócio-cultural contígua e inalterada do

tal como a titulação definitiva de suas terras ou os projetos de desenvolvimento básico dentro dos seus

territórios, são direitos permanentes que visam o desenvolvimento contínuo da comunidade.

12 “Reconhecer” a comunidade é uma das etapas dos processos de elaboração do laudo pericial

antropológico. Estes processos estão expostos com maior detalhe no Capítulo 3.

13 Segundo informações da Fundação Cultural Palmares encontradas no site da internete

www.minc.org.br

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8

passado, pronta, onde poder-se-á até encontrar pedaços intactos da África14

.

Esta é uma imagem que ignora a dinâmica própria de cada comunidade,

fixando-as em um passado que não mais existe. Por outro lado esta imagem tem

impedido o exercício de pensar estas comunidades a partir das suas realidades

atuais, trazendo desta forma, sérias implicações para a criação e adoção de

políticas públicas dirigidas a estas comunidades.

É no campo da história escravista que vamos encontrar muitos autores

preocupados em narrar a saga dos quilombos15

. Porém, nas ciências sociais,

apesar de ser imenso o volume de estudos e pesquisas sobre as condições de

vida da população negra urbana, muito pouco até agora foi pesquisado sobre

comunidades negras rurais. Temos alguns trabalhos pioneiros da década de 80,

mas é somente a partir de 1995, por volta da comemoração da morte de Zumbi

dos Palmares, que a atenção para este tema é aumentada.

É possível, que a tradição político-ideológica de negar a existência de

uma alteridade racial e cultural entre brancos e negros na sociedade brasileira,

tenha refletido na produção das ciências sociais. Esta omissão fez com que

ficassem pouco conhecidos as condições de existência e os processos de

inserção social vivenciados pelos ex-escravos após 1888.

Através de um intenso trabalho de campo procedeu-se à observação da

comunidade de Santana, com a realização de entrevistas abertas e aplicação de

questionários fechados. Com a utilização desses instrumentos procuramos:

14

REIS, José Reis e Flávio Gomes. "Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil", São

Paulo, Cia. das Letras, 1996, pg. 11.

15 Vale aqui ressaltar o extenso e rico trabalho feito por historiadores sobre negros escravos e libertos

durante o período escravista,

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9

1. Entender como estes novos atores sociais têm utilizado a

memória coletiva, o território e a identidade étnica como

elementos normativos de autopreservação e garantia de

direitos especiais.

2. Observar como uma comunidade quilombola manifesta juízos

em relação a questões de diferenças étnicas, racismo,

desigualdade social e justiça distributiva.

3. Mapear e analisar as estratégias de articulação e de ação dos

moradores de quilombos no atendimento às suas demandas

por políticas de promoção e de desenvolvimento social.

Conforme já dito, muitos acreditam encontrar nos quilombos um

autêntico repertório cultural da tradição africana. Será Através do

levantamento de elementos de natureza etnográfica – constituição familiar,

práticas culturais, redes sociais, uso comum do território, lideranças e

articulação entre as esferas individuais e coletivas, histórias de vida, etc. –

procurei entender o papel da memória coletiva e histórica no processo de

constituição das identidades culturais e sociais dos moradores de Santana.

No Capítulo 1, sob a inspiração das teses halbwachianas, é mostrado

como estas comunidades têm tentado redimensionar o presente voltando sempre

ao passado. Assim, é discutido como através da evocação ao passado, o espaço

e o lugar formam um cenário essencial para a (re)constituição da identidade

quilombola. A memória de Santana é reconstruída a partir de imagens

históricas, relatos e lugares que brotam do estoque mnemônico dos seus velhos

e novos habitantes, numa interessante organização de imagens retidas no

discurso cotidiano e nos lugares.

Page 17: ENTRE TUMBAS  E SENZALAS: Os  Direitos Remanescidos de Santana dos Pretos -  Edmeire Exaltação

10

No Capítulo 2 argumento que tanto a definição do termo

“remanescente” quanto as políticas pensadas para os povos destas comunidades

se fundamentam em duas referências concretas: território e etnicidade. Para

atender à definição “ressemantizada” de quilombo, os moradores destas

comunidades começam a visualizar a origem histórica e o espaço territorial

como um cenário que vai ser usado para preencher uma agenda política de

legitimação de direitos e de reconhecimento da diferença entre o de dentro e o

de fora, entre o Eu e o Outro16

. Entendemos então que a definição de

comunidade negra rural ou e de remanescente tal como profetiza o art. 68o está

atrelada a elementos fixos, tais como a uma fronteira, a um tempo e a um lugar,

sem os quais esta não teria a representação que lhe foi atribuída.

As origens de uma comunidade podem ser várias: desde terras herdadas

de escravos fugidos do regime escravocrata; doações de senhores ou ordens

religiosas a ex-escravos até terras compradas por escravos libertos e herdadas

pelos seus descendentes; ou ainda, terras conseguidas do Estado em troca de

participação em guerras17

.

No Capítulo 3 são descritos os procedimentos técnicos utilizados

durante todo o processo de titulação de uma terra remanescente de quilombos.

Obedecendo às etapas de mapeamento, identificação, reconhecimento e

titulação, todo o ritual empregado para a regularização fundiária destas

comunidades tem um sentido evocativo tanto à origem socioétnica da

16 Canclini analisa como através da evocação e dramatização do passado, muitas culturas têm assegurado

os seus direitos. CANCLINI, Nestor Garcia.Culturas Híbridas. São Paulo, Edusp, 1997, pg. 42. 17 GOMES, Flavio e Richard Price em “Reinventando a história dos quilombos: rasuras e

confabulações” , Revista Afro-Ásia, 1998-1999, pg.252.

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11

comunidade quanto à essência do espaço geográfico no qual estas estão

assentadas. O primeiro passo para a titulação é a busca e identificação

“arqueológica” de traços sobreviventes da cultura negra concentrados em um

espaço geográfico definido, cujos habitantes de maioria negra mantenham

práticas culturais e regras sociais autônomas. Aqui é demonstrado como uma

equipe de profissionais juntamente com a comunidade, traçam limites e

fronteiras, descrevem e reconstroem uma memória e observam as redes de

relação existentes entre os quilombolas e o mundo. É também observada neste

capítulo a contradição de uma legislação que enquanto concede direitos

especiais a estas comunidades, tira-lhes ao mesmo tempo a tranqüilidade. A

partir do momento em que estas comunidades reivindicam os seus direitos

históricos de donos da terra, tornam-se alvos de atenção dos fazendeiros locais

e são assim incluídos numa questão fundiária que muitas vezes nega-lhes o

direito de propriedade á terra.

Ressalto também que as reivindicações por titulação de terras vindas dos

remanescentes de quilombos, apesar de alguma semelhança, são diferentes

daquelas demandadas pelo Movimento dos Sem Terra. As reivindicações das

comunidades negras, além da questão fundiária, incluem também condições

para a preservação do patrimônio cultural herdado de seus antepassados. Neste

sentido, uma comunidade negra remanescente não tem prioritariamente a

obrigação de demonstrar vocação pelo cultivo da terra conforme é requerido do

Movimento dos Sem Terra. Para a jurisdição destinada a atender aos

quilombolas, o importante é a comprovação da associação histórica entre as

suas identidades e o território ocupado.

Page 19: ENTRE TUMBAS  E SENZALAS: Os  Direitos Remanescidos de Santana dos Pretos -  Edmeire Exaltação

12

A partir do que institui a Constituição de 1988, o Capítulo 4 busca

examinar os pontos de convergência entre etnicidade e cidadania. Aqui é

demonstrado como a comunidade de Santana está entre as expressões mais

extremas dos limites da pobreza rural. As opiniões dos moradores do quilombo

de Santana foram colhidas com vistas a formar um retrato da comunidade que

revelasse elementos constitutivos da sua realidade atual. A análise do perfil

socioeconômico da comunidade de Santana é feita com o objetivo de mostrar

que para além de serem vistos como portadores de uma cultura, eles querem ser

vistos também como cidadãos com direito aos bens simbólicos e materiais

produzidos por esta sociedade que se diz global.

Por fim, vale aqui lembrar Canclini que sugere que a pós-modernidade

não é uma etapa evolutiva de eras anteriores, mas sim, uma revisão destas.

Assim, no lugar em que alguns estudos vêem as mudanças atuais como uma

ruptura, Canclini as entende como uma releitura de experiências históricas18

.

Desta maneira, procurei entender Santana de Quatis como uma comunidade

étnica que está tentando reler e reescrever a sua experiência histórica.

Espero com este trabalho contribuir para uma melhor compreensão sobre

as diversas comunidades negras rurais espalhadas pelo Brasil.

18 CANCLINI, NESTOR. Consumidores e Cidadãos: Conflitos Multiculturais da Globalização. Rio de

Janeiro, Ed. UERJ, 1996, pg. 149.

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14

Foto: Creuza Flores

CAPÍTULO 1

Um Olhar Esguio sobre Sant’Ana dos Pretos

“ Que você pode observar aqui em Sant‟Ana,

que você não acha um branco... Todo mundo

aqui é negro. Muita gente vem aqui, pode até

pensar: „gente mas só tem preto aqui ? É só

preto mesmo, e no tempo da escravidão, não

tinha branco aqui, só tinha negro. Aí foi onde

que ficou Sant‟Ana dos Negros, mas nós somos

felizes com isso, graças a Deus. Somos pretos

e somos felizes.

Olga Maria de Jesus Moreira, moradora de Santana,

depoimento retirado do Laudo Historiográfico de Santana,

Iterj/Minc, 1998, pg. 20.

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15

Este capítulo analisará os processos de transmissão de herança e de

preservação do patrimônio cultural, material e imaterial da comunidade negra de

Santana. Entende-se aqui que as variáveis explicativas tanto da origem quanto da

montagem social da comunidade são encontradas nesses processos. Este capítulo

mostrará também como funcionam os códigos que regulam a estrutura cultural e

existencial de Santana.

A identidade negra da comunidade de Santana, além da memória

coletiva, é contornada pela presença e posse de um patrimônio herdado dos seus

antepassados: o território e os monumentos1. Os bens herdados de Santana

constituem assim numa propriedade especial visto que estes não se limitam

apenas ao seu valor histórico ou material. Os poucos monumentos restantes em

Santana têm a capacidade não somente de lembrar o passado, mas também, de

estabelecer uma ligação entre passado, presente e futuro da comunidade2.

De fato, os monumentos antigos, principalmente de cidades pequenas,

tornam-se especiais “lugares da memória” por serem espaços onde geralmente as

pessoas da comunidade lembram da sua infância, lembram dos encontros com

amigos, dos conflitos, dos amores, namoros e festas3. Mas, como bem lembra

Bosi, estas recordações não são passivamente armazenadas nas memórias das

pessoas4. Monumentos, como qualquer outro artefato arqueológico, levam as

1 O significado de monumento neste trabalho restringe-se simplesmente ao aspecto físico da construção,

ou artefato arqueológico encontrados na comunidade. 2 De acordo com Hobsbawn, a idéia de passado ou memória, como relevante na construção das identidades

pessoais e coletivas é uma invenção moderna do século XVIII. HOBSBAWM, Eric e RANGER, Terence (orgs.).

1984. "Introdução". In: A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra. pp. 9-24 3 NORA, Pierre.” Entre memória e história”. Projeto História: Revista do Programa de

Estudos Pós-graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP. SãoPaulo: PUC. 1981 4 BOSI, Ecléia. "Memória e sociedade: lembranças de velhos" - 3. ed. - São Paulo: Compainha das

Letras, 1994, pg. 232.

Page 22: ENTRE TUMBAS  E SENZALAS: Os  Direitos Remanescidos de Santana dos Pretos -  Edmeire Exaltação

16

pessoas a criar recordações ativas dentro do contexto social no qual elas vivem.

Tais recordações podem ser de grande importância na definição das identidades

tanto individual quanto coletiva. Assim posto, pergunta-se, de que maneira a

comunidade de Santana vive as suas recordações

Espaço e Tempo em Santana dos Pretos

O espaço e o tempo são conceitos construídos pelas representações

coletivas. Considerando que o espaço e o tempo são categorias fundamentais

nas construções sociais, acredita-se que estes só têm sentido quando fruto de

uma construção social. Aqui supõe-se também que cada sociedade tem um

tempo e um espaço próprios que garantem a vida social5. Para Halbwachs,

espaço e tempo unificam e dão ritmo à vida social. Como fiel discípulo de

Durkheim, Halbwachs não poderia deixar de relevar o tempo e o espaço como

construções imprescindíveis à manutenção da memória coletiva6.

Seguindo a abordagem durkheimiana, Halbwachs acreditava que os

processos sociais vivenciados por qualquer grupo social são determinantes para

a manutenção das memórias tanto pessoal quanto coletiva do grupo. Além

disso, tais processos influenciariam sobremaneira a construção da identidade

coletiva e das suas variações tais como a relação de parentesco, sistema de

crenças e religião, ou mesmo de classe dentro do grupo7.

5Durkheim, Émile. As Formas Elementares da Vida Religiosa”, Editora Paulinas, SP, 1988. 6 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo, Vértice, 1990. pg.25

7 HALBWACHS, idem. pg.25

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17

Estrada de barro que dá acesso a Santana.

Acima, a estrada de ferro que segue para

Minas.

Halbwachs afirma ainda que a memória coletiva é resultado de

diferentes memórias individuais. Ou seja, a memória tem sempre um caráter

social. Para este autor, qualquer memória, mesmo que seja muito pessoal, esta

existe em relação a um conjunto de percepções de vida que nos dominam mais

que outros. Lembrança de pessoas, grupos, lugares, datas, palavras e mesmo

idioma formam, até mesmo através de raciocínios e idéias, toda a vida

material e moral das sociedades da qual nós temos sido parte. Cada grupo

social tem uma história que é reconhecida por testemunhos, olhares pessoais,

versões distintas e referências do cotidiano. Além disto, cada grupo ou cultura

específica tem o seu ritmo e o seu olhar sobre si e seu mundo a partir de uma

espacialidade própria, particular. É isto que veremos a partir de agora: a

maneira como Santana vê a si mesma dentro da sua própria dinâmica espacial.

***

Viajei a Santana por várias

vezes com dois objetivos. O primeiro,

para atender a uma obrigação de

trabalho. Fui contratada pelo Instituto

de Tecnologia Social, o qual, em

convênio com o Instituto de Terras do

Rio de Janeiro, tinha naquele momento

a incumbência de mapear as terras de quilombos existentes no estado do Rio de

Janeiro.

Page 24: ENTRE TUMBAS  E SENZALAS: Os  Direitos Remanescidos de Santana dos Pretos -  Edmeire Exaltação

18

Foto: Creuza Flores

O segundo objetivo, embora não deixasse de ser também por razões

profissionais, fui especialmente observar a comunidade para completar a

minha análise etnográfica sobre aquele grupo que dizia ter uma única origem: a

de descendentes diretos de escravos.

Santana é um lugarejo composto

por 20 famílias negras localizado no

município de Quatis, que está distante

cerca de 130 km da capital do estado, Rio

de Janeiro. Antes de ser Quatis, a área foi

habitada pelos povos indígenas Acaris e

Puris que desapareceram com a

devastação dos fazendeiros locais. Muitos

dos fazendeiros que ali chegaram vinham

fugindo da derrocada do ouro em Minas, à procura de terras para plantar café.

Atrás deles vieram também colonos, trabalhadores rurais livres e escravos.

Dessa movimentação migratória, resultaram duas grandes fazendas que

se destacaram economicamente:a de Faustino Pinheiro e a do Barão de Cajuru,

que veio a tornar-se personagem importante na história de Sant‟Ana dos

Pretos8.

Santana é uma comunidade de características eminentemente rurais e

está situada a uma altitude média de 600 metros. É uma região adornada por

8 Informações obtidas em documentação da Secretaria Municipal de Cultura de Quatis.

Vista do Alto de Santana

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19

pequenas cordilheiras de montanhas, o que dá à área uma beleza verde

singular. Os 15 km de estrada de barro que ligam Santana a Quatis9, foram

construídos na metade da década de 80. Este é o único caminho que a

comunidade dispõe para sair ou chegar ao local. A eletricidade chegou com a

inauguração da escola em 1997 e somente foram beneficiados por este serviço

aqueles moradores que moram no entorno da escola e da igreja. Cerca de 30%

dos moradores de Santana ainda não sabem o que é ter luz elétrica dentro de

casa. A única escola local, construída sobre as ruínas da senzala só ensina até a

4a série.

Contam os moradores mais velhos que aos escravos da Fazenda da

Grama, ficou a incumbência de enterrar os últimos membros da família do

Barão do Cajuru. Em troca deste cuidado, receberiam como recompensa a

fazenda. O último membro da família, Maria Isabel de Carvalho, filha do

Barão do Cajuru, morreu em 1903 sem descuidar-se da promessa feita aos

escravos10

. Embora as folhas do livro de registro de doação tenham

desaparecido do cartório de Barra Mansa, não desapareceu da memória

coletiva a lembrança de que a doação foi feita e registrada em cartório pela

própria Maria Isabel de Carvalho no mesmo ano em que veio a falecer, 1903.

9 O município de Quatis localiza-se ao sul do Estado do Rio de Janeiro, mais especificamente no Vale do

Rio Paraíba do Sul. Faz divisa com Resende, Barra Mansa e Valença no Estado do Rio de Janeiro e

Passa Vinte no Estado de Minas Gerais. Distando 127 Km da capital e 270 Km da cidade de São Paulo.

O Rio Paríba do Sul é o principal rio da região. A estrutura hidrográfica caracteriza-se pela grande

quantidade de riachos e córregos perpendiculares ao Rio Paraíba do Sul. Destacam-se os Rios Ribeirão das Pedras, Ribeirão Vermelho e Rio Preto.

10 O‟Dwyer, Laudo Antropológico da Comunidade Negra Rural de Santana. Fundação Cultural

Palmares; Instituto de Terras, op. cit. pg. 10.

Page 26: ENTRE TUMBAS  E SENZALAS: Os  Direitos Remanescidos de Santana dos Pretos -  Edmeire Exaltação

20

A capela, construída pelos escravos em 1867, além de se configurar

como o principal ícone fundante da comunidade é também uma testemunha

silenciosa dos fatos e histórias ali ocorridos.

Para não perder a ligação com o passado, a comunidade utiliza o

recurso estratégico de teatralizar constantemente a sua história11

. A D. Ana

Maria Gouvêa ao narrar a origem de Sant‟Ana ilustra a importância da capela

na vida da comunidade:

“(...) Maria Isabel de Carvalho tinha uma menina e o nome dela era

Elisabete. E essa menina ia naquela padiola, né? Um escravo pegava

numa ponta o outro na outra e ia aquela menininha sentadinha no

meio ali, estudar lá no Areal, que é essa fazenda do falecido George

Salgado. E todo dia ela vinha de lá da casa dele e chegava ali onde é

a igreja de Nossa Senhora de Sant‟Ana. Tinha uma moita grande de

árvore, de mata. Então chegava ali ela pedia para os escravos deixar

ela descer que ela tinha que ir lá atrás da moita para conversar com

uma moça muito bonita que tinha lá. Então ela descia e corria lá.

Conversava com a moça lá, voltava, entrava na padiola outra vez e ia

embora pra a escola. De tarde, os escravos iam lá e buscavam ela

outra vez. Quando chegava ali, tinha que parar para a menina

conversar com a moça. Aí, um dia, um escravo chegou e falou pra

sinhá Maria Isabel: „Ôh sinhá, a sinhazinha vai com a gente, todo dia

a gente tem que parar e ela vai lá atrás daquela moita pra conversar

com uma moça. Diz que tem uma moça muito bonita que conversa com

ela, mas a gente vai lá e não vê nada. A sinhá pegou e disse: mas não

é possível. Eu vou junto então pra eu ver. Vou a cavalo junto com os

escravos. Chegou ali, a meninha desceu e foi lá ver. Aí a sinhá Maria

foi lá ver e não viu nada. Aí perguntou pra menina: minha filha

porque você faz isso ? Todo dia você faz os escravos parar pra você ir

lá atrás dessa moita conversar com essa moça. Que moça é essa?

Você está ficando maluca! A gente vai lá e não vê nada. Aí ela falou:

11

Ver Canclini, op. cit. pg. 136. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio

de Janeiro: DP&A, 1999, pg. 40.

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21

Foto: Creuza Flores

„Não mãe! Lá tem uma moça muito bonita. Ela falou pra mim que

chama Ana‟. Aí chegou em casa a sinhazinha entrou no quarto, ficou

doente, passado um tempo, morreu. Então Maria Isabel pegou e

mandou construir aquela igreja ali, naquele lugar, por causa disso. E

colocou o nome de Sant‟Ana por causa da menina que via essa santa

lá”12

Ana Maria Gouvêa.

A lírica descrição de D. Ana nos permite entender o papel da herança

da capela de Santana. Além disto, nos permite também entender o significado

do „passado‟ da comunidade tanto no seu passado quanto no presente. A sua

narrativa mostra também como os membros da comunidade socializam as suas

recordações dentro de um espaço territorial, utilizando o mesmo cenário da

história de sua origem.

Por conseguinte, a organização

social de Santana é (re)inventada a

partir de uma história particular que

dá o sentido de existência e de um

passado comum ao grupo. Dessa

história particular, vinculada à construção de uma identidade coletiva, emergem

lembranças com base uma singular experiência histórica que se revela no plano

social e cultural.

É através da lembrança da capela que Santana assegura a sua

continuidade. Preservando mnemomicamente o conhecimento coletivo da sua

origem, eles têm a segurança de que as gerações posteriores irão reconstruir a

sua identidade etnocultural.

12

Laudo Historiográfico de Santana, op. cit. pg. 13.

Portal da Capela de Sant’Ana.

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22

A capela de Santana, situada numa pequena colina na entrada da

comunidade, mesmo em ruínas é uma hostess elegante e acolhedora. Com

inscrições em romano, ainda é legível a data da sua construção – 1867 –

cravada acima do portal principal da capela. Além disto, há no seu interior, os

túmulos do Barão do Cajuru e da sua família, conforme desejo deles. Apesar

do péssimo estado de conservação, a capela é ainda hoje a referência central do

espaço público de Santana. Tanto a capela quanto os túmulos já foram violados

por pessoas vindas de fora, atrás de supostos tesouros ali enterrados.

Quando algum monumento da comunidade é violado, conforme relato de

D. Nair e a nora Matilde, responsáveis pela limpeza e manutenção da igreja,

É como se tivesse tirado um pedaço da casa da gente. Aqui a gente não

tem prefeito nem polícia porque não precisa. Todo mundo toma conta de

tudo, mas mesmo assim essas coisas acontece (Matilde).

Santana tem bem estruturada uma memória socioétnica, onde, as lembranças,

mesmo aquelas narradas em caráter íntimo ou pessoal transformam-se em

narrativas sociais13

. Estas muitas vezes são contadas repetidamente na cozinha,

na sala, na mesa, na praça na igreja ou em qualquer lugar onde as pessoas se

reúnam. Como nos lembra Halbwachs, estas histórias são contadas ora em

meio a muita emoção, ora em meio a gargalhadas, ora em meio a lágrimas,

ressentimentos ou por meio de qualquer outra expressão emocional. Estas

narrativas apontam para o que Halbwachs chamou de os “quadros sociais da

memória”, que na leitura de Bosi, podem ser também traduzidos como

13 HALBWACHS, op. cit. pg. 52.

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“realidade interpessoal das instituições sociais”

14. Esses quadros, cruciais na

evocação e localização das lembranças, ao

mesmo tempo que possibilitam a extração

das informações sobre o passado,

configuram uma base a partir da qual se

pode discutir o futuro da comunidade15

.

Paisagem, Símbolos e Ruínas

As lembranças do passado não

permanecem apenas na memória dos velhos moradores de Santana mas

também no solo que estes ocupam16

. O solo, as árvores, o rio, as crianças e os

velhos narradores de história, tudo e todos impregnam os recantos seculares de

Santana. Pela narrativa de D. Ana, observa-se que Santana dispõe de uma

coleção de imagens, símbolos e mitos – incluindo os próprios moradores – que

narram a sua origem em meio a ruínas e miséria, tristeza e nostalgia, mas sem

contudo perder a dimensão política do território-história que lhes pertence17

.

Impossível falar de Santana sem realçar a sua paisagem porque o

passado da comunidade está colado nela. De fato, estudos geográficos têm

feito a observação de que as paisagens não são somente naturais, mas também,

14

Ecléa Bosi, op. cit. pg. 17. 15

Halbwachs, op. cit. pg. 51. 16

Halbwachs, op. cit. pg. 52. 17

Canclini, op. cit. pg. 60

D. Nair, atual responsável pela capela

Foto: Creuza Flores

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culturais

18 Sendo assim, em Santana o natural e o cultural, formam uma

unidade com o ambiente no qual se vive amoldando à paisagem as

experiências coletivas e individuais da comunidade. Conforme assinalado por

Halbwachs, as memórias coletivas contêm uma forte dimensão de espaço e

estas normalmente estão ligadas a certos lugares da paisagem local19

.

Para entender a relação da comunidade com os seus monumentos é

necessário entender as atitudes das pessoas diante destes, porque não é só o

que está diante dos olhos que tem valor para a comunidade mas principalmente

o que está dentro das suas mentes e memórias. É assim que monumentos do

porte da capela de Santana ganham importância por carregar muitos

significados para a comunidade.

Além da capela, há também um cemitério onde eram enterrados os

escravos e um alambique antigo. Ambos não são mais utilizados pelos

moradores. D. Nair e a nora Matilde, zeladoras da igreja ao serem perguntadas

por que a comunidade não enterrava mais os seus mortos no cemitério local ou

porque não ativava a produção de aguardente ela responde:

Ah minha filha, aqui não tem padre todo dia. O padre daqui nem brasileiro é

e só vem aqui uma vez no mês. Todo mundo aqui gosta de rezar os parentes

morto, né Então, só em Quatis mesmo pra rezar. Ta tudo lá cheinho de mato,

nem dá mais pra ver nada mais. Também ninguém liga mais, né, nem pro

alambique nem pro cemitério. O alambique eu acho é bom não ter. Ninguém

planta mais cana aqui. É bom „que aí não tem bebedeira, né Aqueles que

18 LOWENTHAL , David. The Past is a Foreign Country, Cambridge University Press, 1985, pg. 192. 19 Halbwachs, op. cit. pg. 80.

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quer beber tem que beber ou nas fazenda dos patrão ou lá em Quatis. Eu acho

é bom isto.D. Nair.

Os santos mais venerados na comunidade são Sant'Ana, a padroeira, e

São Joaquim. Sant'Ana, padroeira da comunidade, é o grande ícone sacro da

comunidade. Por conta disso, é comemorada com festas e procissões durante

todo o mês de julho20

.

Os cânticos e danças, muito freqüentes no passado da comunidade de

Sant'Ana já não são mais comuns hoje, principalmente entre os jovens. Poucos

deles sabem que canções de jongo eram cantadas por seus antepassados “por

mato e noites adentro”. Danças como o calango e o jongo, balançaram os

corpos alegres e apaixonados de muitos que hoje vivem apenas na lembrança

da comunidade como o Seu Candinho e Seu Carreiro, já falecidos.

A trajetória histórica imprimiu em tudo que há em Santana um

significado especial. Uma capela em ruínas...! uma escola construída sobre os

escombros de uma senzala...! uma cisterna sempre cheia de água de

nascente...! uma estrada de barro...! e um campo improvisado de futebol!

Memória, Religião e Família.

Tudo vira símbolo em Santana. Símbolos que muitas vezes não

explicam o seu significado, mas emitem referenciais que ajudam a definir a

identidade negra de Santana. São por estes referenciais que circulam as 20

20 Como demonstra o historiador Robson Martins, cultuar e festejar o dia de Sant‟Anna em 27 de julho

tornou-se uma tradição cultural entre os negros escravos e livres a partir do século XIX. MARTINS,

Robson L. “Em Louvor a „Sant‟Anna‟: Notas sobre um plano de revolta escrava em São Matheus, norte

do Espírito Santo, Brasil, em 1884”. In Estudos Afro-Asiáticos, no. 38, Rio de Janeiro, Universidade

Cândido Mendes, Dezembro 2000.

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famílias negras moradoras de Santana. Dividindo um forte sentimento de

parentesco, vizinhança e compadrio, os Ricardino, os Francisco da Silva, os

Carreiro, Serafim, Gouveia e Felício são nomes patriarcais das famílias mais

antigas do lugar. A forma como as 20 famílias se distribuem pelos 800 ha de

vales verdes, revelam as normas de convivência da comunidade.

FAMÍLIAS MAIS

ANTIGAS DE

SANTANA

Ricardino

Moreira

Paixão

Silva

Serafim

Carreiro

Gouvêa

Felicíssimo

As famílias de Santana moram na sua maioria em casas muito pobres

de pau-a-pique. A grande extensão de terras herdadas e a gradativa diminuição

de famílias fazem com que os vizinhos distem muitas vezes quilômetros um

dos outros. Por outro lado, um único lote pode comportar até 10 famílias onde

filhos, sobrinhos, parentes próximos dividem-se em pequenas casas.

Difíceis condições econômicas em comunidades tradicionais podem

ocasionar profundas transformações nos padrões de organização social e

familiar. Isto foi observado em Santana. A escassez de trabalho nas fazendas

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tem forçado muitas famílias a migrarem para os municípios mais próximos de

Santana. Há por exemplo em Quatis um bairro negro chamado São Benedito,

cujos moradores vêm em grande parte de Santana.

Nota-se que a forte rede social outrora existente entre as memórias

familiares de Santana está se fragmentando. É fácil perceber pelas narrativas

dos seus moradores que Santana está se

transformando numa comunidade muito triste.

Não era assim no passado. Segundo os velhos

moradores, Santana era uma comunidade muito

alegre e animada, onde aconteciam jogos,

encontros e festas regularmente.

Santana há 50 anos atrás tinha muita festa! Era

S. João, Santo Antônio, N. Sra. De Santana no

dia 26 de julho, Dia de Santa Aninha, S. Sebastião... aqui era mesmo

uma festa! Acabava uma vinha outra. Era dança do Calango, era

forró... E o jongo! Era uma coisa! Era botequim para todo o lado e

não tinha briga, não tinha nada...! Aqui morava mais pessoas do que

hoje... bastante gente. Aí foi indo..., muita gente foi imbora , acabou!

D. Nair Conceição, 79.

Estas lembranças de d. Nair afloram rapidamente, sem um mínimo de

esforço. São lembranças que ela diz, estarem sempre presentes „na minha

mente‟. A nora Matilde reclama, dizendo que ela repete as mesmas histórias

sempre, quase todos os dias, mas, mesmo assim ela não se cansa de ouvi-las.

"A partir da idade madura, a pobreza dos acontecimentos, a monótona

As crianças desta família já

fazem parte da 4a geração dos

primeiro herdeiros da fazenda.

Foto: Creuza Flores

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sucessão das horas, a estagnação da narrativa no sempre igual pode fazer-nos

pensar num remanso da correnteza. Mas, não: é o tempo que se precipita, que

gira sobre si mesmo em círculos iguais e cada vez mais rápidos sobre o

sorvedouro."

Percebe-se que Santana é uma comunidade fortemente marcada pelo

sentimento étnico e que vem, solitariamente, construindo a sua própria

representação de territorialidade e cidadania.

D. Nair em frente à Capela de Sant‟Ana

Foto: Creuza Flores

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D. Nair e Matilde, responsáveis pela manutenção da Capela. A santa que aparece nas fotos, é

de N.Sra. Aparecida. Como medida de prevenção contra roubo, os moradores substituem, nos

dias ordinários a imagem de N.Sra. de Sant‟Ana pela de N.Sra. Aparecida. A imagem

original da santa fica bem guardada na casa de um morador, onde, poucos têm conhecimento.

Pôde ser notado, que tanto cuidado não é só pelo valor histórico, mas principalmente pelo

valor simbólico, afetivo e emocional que a comunidade tem com Sant‟Ana.

Foto: Creuza Flores

Foto: Creuza Flores

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Localização aproximada de Santana

A comunidade de Santana não existe em mapas oficiais. Este é um esforço da autora em

situar o leitor sobre a localização de Santana, no Médio Paraíba do Estado do Rio de Janeiro.

Quilombo de Sant’Ana

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CAPITULO 2

Entre a Senzala e as Tumbas: As Ruínas de um

Significado.

“As denominadas terras de preto

compreendem aqueles domínios doados, entregues

ou adquiridos, com ou sem formalização jurídica,

a famílias de escravos a partir da desagregação de

grandes propriedades monocultoras. Os

descendentes de tais famílias permanecem nessas

terras há várias gerações sem proceder ao formal

de partilhas e sem delas se apoderarem”.

Alfredo W. Berno de Almeida, 1988:451.

1 BERNO DE ALMEIDA, Alfredo W. “ Terras de Preto, Terras de Santo, Terras de Índio: Posse

Comunal e Conflito. In Humanidades, Ano IV, no. 15, 1988.

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Desde o século XVIII que vários países das Américas já têm

incorporado nas suas constituições, políticas fundiárias recortadas por

interesses raciais. O Brasil, entretanto, só começa a fazê-lo em 1988, por

ocasião das comemorações dos cem anos da abolição da escravatura. Através

de artigos constitucionais, os quilombolas tanto teriam os seus direitos de

propriedade sobre as terras que ocupam reconhecidos quanto ganhariam o

status de “patrimônio cultural” da nação2.

Como poderíamos definir um cidadão santanense É Santana uma

comunidade remanescente de quilombo ou uma comunidade negra rural

tradicional? São estas terminologias adequadas para identificar estas

comunidades atualmente? O que a academia, movimento negro e os

representantes do Estado têm pensado sobre estas “ressurgidas” terras de

negros? Qual o significado que estas comunidades têm para o aparelho

jurídico?

Pode-se primariamente definir uma comunidade remanescente como

aquela que carrega formas específicas de existência material e cultural,

expressas pela organização social, pela sua representação de mundo, e,

principalmente pelos elementos fundantes da identidade. Os moradores de tais

comunidades têm na sua maioria origem comum, se autopercebem enquanto

2 Os artigos referidos são os 215o. e 216o. da Constituição Federal e o Art. 68º dos Atos Constitucionais

das Disposições Transitórias - ADCT. Este último só foi regulamentado em 1995.

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um grupo de identidade distinta dos vizinhos e tentam construir

compartilhadamente o destino da comunidade3.

O sentimento de pertencimento étnico, se não procede necessariamente

de uma referência territorial física, claramente definida e delimitada, supõe,

entretanto, que tal grupo pode definir-se por um elo material ou por

representações coletivas que tomam forma em um espaço onde estão em jogo

interesses econômicos ou ainda atividades sociais, culturais e políticas,

representações coletivas que permitem aos membros de uma comunidade dar

às características de seu espaço significados reconhecidos por todos4.

A definição de quilombos hoje é ainda influenciada sobremaneira pela

definição colonial. No entanto, além de serem originadas a partir das fugas de

escravos, muitas terras de negros foram constituídas a partir de outras

circunstâncias que não apenas a da fuga5. Pela estrita interpretação jurídica,

somente são considerados quilombolas aqueles descendentes de escravos

fugidos. Entretanto, como aponta Flávio Gomes, várias foram as formas de

ocupação da terra por estes descendentes de escravos6:

3 BARTH, Fredrik. “Grupos Étnicos e suas Fronteiras”. In POUTIGNAT P. E STREIFF-FENART J.

Teorias da Etnicidade, Unesp, 1997, pg. 201. MUNANGA, Kabengele. “A Importância da Memória e

do Imaginário na Conceituação da Identidade Social Afro-Brasileira”, , FFLCH/USP mímeo, 1988, pg. 3. 4 Cf. D'Adesky, op.cit. pg. 38.

5 Eliane Cantharino destacar que o termo terra de quilombo e/ou remanescente de quilombo tem sido

atualmente usado pelos próprios membros das comunidades negras rurais, organizações de mobilização e

defesa dos movimentos sociais e agências governamentais para designar o pertencimento étnico dos

grupos que são caracterizados como de exclusividade negra, originários da escravidão e da resistência

nos chamados quilombos ou mocambos. Para a autora, ainda que tenha um conteúdo histórico o termo

quilombo vem sendo utilizado para designar a situação presente de segmentos negros em diferentes regiões e contextos do Brasil. Boletim ABA-Ford, no. 30, 1995.

6 Flávio Gomes utiliza a metáfora da Hidra de Lerna para informar sobre a existência de inúmeros

quilombos existentes no século XIX na região de Iguaçu, então província do Rio de Janeiro. A Hidra de

Lerna, Serpente de sete cabeças, que renasciam assim que eram cortadas, morta por Hércules. Ainda,

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falência da fazenda (os donos voltaram para Portugal; deixando

as terras com os escravos);

doações por parte dos senhores a ex-escravos;

terras compradas por escravos alforriados;

doações de terras por parte do exército como recompensa aos

escravos que participaram de guerras;

Doações por parte de ordens religiosas.

Frente a essas variadas origens surge uma dificuldade de interpretação

jurídica para aquelas comunidades negras que reivindicam a titulação das suas

terras com base no Artigo 68O. Esta dificuldade advém de uma interpretação

herdada da legislação colonial que restringia a interpretação de quilombos a

apenas um grupo de negros fugidos e rebeldes7. Palmares foi o quilombo de

maior visibilidade na história e por causa disto, parte da literatura histórica

ficou presa ao seu ícone.

As primeiras definições de quilombos apareceram no Brasil Colônia.

Os donos de fazendas, preocupados com o aumento do número escravos que

fugiam do regime escravo conseguiram criar um recurso legal de condenação

aos negros que fugiam. As definições variaram de lugar para lugar.

quanto à existência de comunidades negras no século passado, segundo Flávio, “ No Brasil, muitos

mocambos e quilombos acabaram se transformando, ao terminar a escravidão, em vilas camponesas. É

possível sugerir também, considerando a escassez de pesquisas conclusivas sobre este tema, que

provavelmente as estratégias em busca de autonomia e a integração das práticas econômicas e sociais dos

quilombos, dos escravos nas plantações e da população livre de cor tenha ajudado a forjar uma das faces

dos campos negros. GOMES, Flávio. Para matar a Hidra: uma história de quilombolas no recôncavo da

Guanabara, séc. XIX. Texto de História, Brasília, v.2, no. 3, 1994. 7 SILVA, Valdélio Santos. Rio das Rãs: à luz da noção de quilombos. Afro-Ásia, n. 23, 1999. Segundo

este autor: “ Conceber a noção de quilombo tendo como parâmetro apenas as fontes documentais oficiais

é insuficiente, também, porque a partir dessas fontes deduz-se que o acesso às terras quilombolas se

verificou apenas pela ocupação das mesmas pelos escravos que se evadiram das fazendas para se

amocambar, como querem os principais textos sobre quilombos no Brasil”. (pg. 276).

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Em 1733 em São Paulo, por exemplo, quilombo foi definido pelas

autoridades competentes como um grupo formado por "mais de quatro

escravos vindos em matos para viver neles, e fazerem roubos e homicídios" .

Já no Rio de Janeiro em 1757, entendia-se por quilombo grupos de escravos

que "estivessem arranchados e fortificados com ânimo a defender-se [para]

que não sejam apanhados" . Mas foi por iniciativa do governador das Minas

Gerais que a repressão aos quilombos adquiriu uma dimensão legislativa

nacionalmente aplicada8.

O Artigo 68o. falha ao não considerar no seu texto aquelas

comunidades negras que surgiram ou sobreviveram a partir do estabelecimento

de um sistema de relação orgânica baseada no parentesco e na vizinhança.

Santana é um bom exemplo. A partir de um evento próprio – o ganho da

fazenda em troca do zelo pelos restos mortais dos últimos donos - a

comunidade negra de Santana criou formas independentes de organização que

são referendadas pelas identidades etnocultural e geográficas.

Pelo Artigo 68o uma comunidade rural negra tradicional ou

comunidade quilombola é caracterizada pelos seguintes traços:

a) Pela composição étnica da comunidade e ancianidade da

ocupação em conjunto com a manutenção da memória

coletiva, tudo isto circunscritos no espaço que deu origem à

história da comunidade;

b) Pela ritualização da cultura, tradições e costumes específicos que lhes

dão um caráter distintivo em relação às demais comunidades do seu

8 LARA, Silvia H. “Do Singular ao Plural: Palmares, Capitães-do-mato e o Governo dos Escravos. In

Liberdade por um fio... op.cit. pg. 97.

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36

entorno;

c) Pela ligação com a terra utilizando a agricultura de subsistência e a

preservação do ambiente como elementos de sobrevivência.

Contudo, o entendimento do que seja uma comunidade quilombola requer

ainda que reflitamos sobre algumas associações teóricas como por exemplo,

terra, etnia, cidadania, grupos étnicos e direitos civis.

Barth propõe que ao se estudar um grupo étnico leve-se em consideração

as variações culturais destes grupos que são locais e descontínuas. Sob o ponto

de vista de Barth seria um erro pensar as comunidades negras como iguais.

Para o autor , não se deve "considerar como característica primária dos grupos

étnicos seu aspecto de unidades portadoras de cultura"9.

Em vista das teses de Barth, percebe-se que há um equívoco de

interpretação por parte do artigo quanto insinua que os quilombos falam do

lugar original dos seus antepassados10

. A crença de que estas vivem isoladas e

sem interação com o seu entorno também é um falso mito criado em torno

destas comunidades. Diferente do que alguns estudiosos supunham, tanto os

quilombos quanto as comunidades rurais negras não viveram e nem vivem

isoladas do seu entorno.

Mesmo no período escravista, conforme documentado por Santos, os

quilombos estabeleceram redes de trocas comerciais e afetivas entre as

9 Neste sentido, Barth aponta que o significado destas comunidades passa pelo entendimento do que seja

um grupo étnico, no sentido de que estas comunidades se autopercebem vivendo de maneira

interdependente dentro de uma fronteira geográfica e cultural, onde seus membros dividem o mesmo

estilo de vida. Op. Cit. pg. 203. 10 Idem, pg. 221.

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37

senzalas e centros urbanos11

. De acordo com Santos “as revisões conceituais

têm aberto caminhos para novas leituras de como os negros – escravizados e

livres – utilizaram-se de múltiplas formas políticas para ocupar a terra”12

.

São inúmeros os autores brasileiros que estudaram quilombos a partir

da perspectiva histórica de serem estes originários de uma resistência ao

regime escravista. De Nina Rodrigues, passando por Arthur Ramos, Edison

Carneiro nos anos 30 até Roger Bastide e Clóvis Moura nos anos 60 e 70, a

literatura sobre quilombos vai ocupar um espaço marcado por variadas

correntes interpretativas13

.

Gomes e Reis identificam, entre os historiadores, estas correntes

dentro de dois vieses: uma culturalista/ restauracionista e o outro marxista14

.

Aculturalistas ou restauracionistas seriam aqueles autores que definiram os

quilombos como organizações negras de resistência à cultura européia do

senhor. Esta corrente tende a perceber os quilombos como comunidades que

viveram isoladas do seu entorno, numa tentativa de recriar a África dentro dos

seus espaços de domínio.

Esta lógica interpretativa ainda orienta não somente muitos estudos

etnográficos atuais como também as políticas públicas pensadas pelo

11 GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de Quilombolas: Mocambos e Comunidades de Senzalas no Rio

de Janeiro, século XIX. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, 1993. _____________"Em torno dos

Bumerangues: Outras Histórias de Mocambos na Amazônia Colonial". Revista USP. 12 Flávio Gomes. Histórias de Quilombolas... op. Cit. pg. 189. 13 RODRIGUES, Raimundo Nina. Os Africanos no Brasil, 5a. Edição, São Paulo Editora nacional, 1977,

cap. 3; RAMOs, Arthur. O negro brasileiro, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1935. CARNEIRO,

Edison. O quilombo de Palmares, 4a. Edição, São Paulo, Editora nacional, 1988. BASTIDE, Roger. As

Américas Negras, São Paulo, Difel/Edusp, 1974; MOURA, Clovis. Rebeliões da Senzala, São Paulo,

Edições Zumbi, 1959; __________. Quilombos, Resistência ao escravismo, Série Princípios, 3a. Edição,

São Paulo, 1993. 14 GOMES, Flávio. “Quilombos do Rio de Janeiro no Século XIX”. In Liberdade por um fio... op.cit. pg.

273.

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38

movimento negro para estas comunidades como o é o Artigo 68. Ou seja, as

pistas investigativas são traçadas seguindo-se apenas a sinalização dos

achados/resíduos africanos. Gomes e Reis sugerem que seria mais

enriquecedor sobrelevar-se nessas investigações a forma como os arranjos

sociais foram recriados e estabelecidos pelos escravos desde o período anterior

à escravidão na África até o pós-senzala15

.

O crescimento dos movimentos de esquerda na década de 50, vieram a

influenciar sobremaneira parte dos historiadores que trabalhavam com

escravidão no Brasil. Daí o aparecimento de algumas interpretações marxistas

que viam a organização dos quilombos como um enfrentamento ao regime

escravocrata na tentativa de estabelecerem uma sociedade livre16

.

Nas décadas de 70/80 surgem alguns trabalhos provindos da militância

intelectual negra. Abdias do Nascimento, Beatriz Nascimento, Helena

Theodoro, para citar alguns, vêm sugerir que para além de uma manifestação

de resistência ao período escravista o quilombismo seria também uma filosofia

política a ser adotada pelo movimento negro no sentido de enfrentar o racismo

e a opressão racial vigentes17

. As primeiras definições de quilombos vêm do

tempo do Brasil Colônia. Com o crescimento de negros que fugiam das

fazendas para os quilombos, buscou-se um recurso legal de condenação no

qual quilombos foram definidos como: “ Toda habitação de negros fugidos,

15 Idem, pg. 22. 16 Entre Edson Carneiro (1988) e Clóvis Moura (1959) oportunamente citados, podemos lembrar os

estudos de Décio Freitas, Palmares, A guerra dos escravos, 5a. edição, Porto Alegre, Mercado Aberto,

1984; Luiz Luna, O negro na luta contra a escravidão, Rio de Janeiro, Leitura, 1968 e Ivan Alves Filho,

Memorial de Palmares, Rio de Janeiro, Editora Xenon, 1988. 17 Ver NASCIMENTO, Abdias. O Quilombismo: Documento de uma militância pan-africanista. Editoa

Vozes, Petrópolis, 1980. NASCIMENTO, Beatriz. “O Conceito de Quilombo e a resistência cultural

afro-brasileira. In NASCIMENTO, Elisa Larkin. Sankofa, Seafro, v.1, 1994, pp. 142-158.

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39

que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos

levantados e nes se achem pilões neles”18

Essa é uma discussão que traz algumas dificuldades de entendimento.

Uma destas dificuldades é com o próprio significado do termo. Afinal, o quer

dizer quilombos hoje ?

O trabalho de Edson Carneiro19

foi o primeiro a tratar do tema dentro

dos padrões acadêmicos’ influenciando assim toda uma bibliografia vindoura.

Embora ignorado pela academia, Abdias do Nascimento20

tem sua importância

e lugar na história do pensamento racial brasileiro, ao trabalhar com questões

polêmicas já naquele período (décadas de 50, 60 e 70) dentro da temática

racial. Abdias define quilombismo como um “movimento social de resistência

física e cultural da população negra que se estruturou não só na forma dos

grupos fugidos para o interior das matas na época da escravidão, mas também,

na forma de todo e qualquer grupo tolerado pela ordem dominante em função

de suas declaradas finalidades religiosas, recreativas, beneficentes, esportivas,

etc”21

. Percebe-se já aí uma tentativa de ressemantização do termo,

deslocando-o do significado estritamente histórico para significado político.

No entendimento de Abdias quilombo significa além de um grupo de escravos

fugidos um movimento revolucionário com objetivos políticos definidos, entre

os quais criar o Estado Nacional Quilombista22

”.

18 Conselho Ultramarino de Portugal, 1740, cf. Citado por Silvia Lara em Liberdade por um fio... op. Cit.

Pg. 96. 19

Edson Carneiro, op. Cit.1940 20

Nascimento em O Quilombismo, op. Cit. 1980 21

Idem, pg. 256. 22

Idem Nascimento, pg. 263

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40

Foi somente a partir da década de 80 que alguns estudos etnográficos

começaram a aparecer trazendo alguma informação sobre comunidades negras

rurais nas suas condições atuais de existência. A Universidade de São Paulo

foi uma das primeiras instituições acadêmicas a demonstrar interesse pelo

estudo de quilombos. Apesar de focalizarem estas comunidades como

populações institucionalmente isoladas, os trabalhos de Fry e Vogt23

foram, e

ainda são, referências obrigatórias para estudiosos de comunidades negras

tradicionais.

Em decorrência do dispositivo constitucional, a produção cresce nos

anos 90 e vai se preocupar principalmente com o conceito de quilombos, com

o formato político de regularização de seus direitos e com os novos conflitos

fundiários que a regularização destas terras têm trazido para o cenário rural do

Brasil.

Esta pesquisa, problematiza o fato de que há uma imagem idealizada de

quilombos na qual se fundamenta o art. 68o, aqui referido. Esta imagem faz

pensar que há nestas comunidades uma realidade sócio-cultural pronta, onde

poder-se-ia até encontrar pedaços intactos da África. A orientação desta

imagem figurada do passado tem impedido o exercício de pensar estas

comunidades a partir das suas realidades empíricas atuais. Com base em

trabalhos de campo já realizados em quilombos do Rio, esta pesquisa tentará

23 VOGT, Carlos e FRY, Peter. 1981. “ Ditos e Feitos da Falange Africana do Cafundó e da Calunga”

Revista de Antropologia, 26:65-92.______1982. Cuiapar e Cueandar para Conjenga: A Morte e a Morte

no Cafundó. A Morte e a Morte dos Outros na Sociedade Brasileira. _______1982.” A Descoberta de

Cafundó: Alianças e Conflitos no Cenário da Cultura Negra Brasileira. Religião e Sociedade., 8:45-52.

Antes de Fry, porém ainda podem ser encontrados os trabalhos de Brandão, Peões, Pretos e Congos:

Trabalho e Identidade Étnica em Goiás, Unb, 1977; Gusmão, Campinho da Independência: Um caso de

Proletarização Caiçara, 1979, Mestrado, PUC/SP, entre outros.

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41

mostrar que há pouca consonância entre o imaginário criado e a realidade

concreta destas comunidades.

Cabe aqui adiantar que é a hereditariedade histórica daquela

comunidade que vai explicar a diferença entre o quilombola e seus vizinhos.

Ainda que o entorno aparentemente tenha as mesmas características

socioeconômicas e raciais da comunidade quilombola, estas ainda se diferem

pela construção e manutenção da memória individual e coletiva.

Contrariando as proposições de Arruti24

, Santana porta uma visível

distinção entre a comunidade e o seu entorno. Os monumentos históricos

localizados dentre da comunidade e a concentração étnica – todos os

moradores são negros – fazem-no diferenciar do restante da vizinhança

próxima.

Ainda recorrendo a Barth, este autor sugere que as fronteiras de um

grupo étnico não sejam vistas apenas a partir daquilo que se define como

semelhança ou diferença. Para Barth, a percepção de sinais diacríticos não

pode ser estabelecida por um observador de fora. São as experiências comuns

vivenciadas pelos próprios membros da comunidade que lhes dão

legitimamente o direito de considerar o que difere “eles” dos “outros”25

. Barth

enfatiza "que grupos étnicos são categorias atributivas e identificadoras,

empregadas pelos próprios atores”. Portanto, neste sentido, não cabe a

observação de Arruti.

A estrutura conceitual de quilombo utiliza-se tanto dos suportes do

24 ARRUTI, J. A. “A emergência dos "remanescentes": notas para o diálogo entre indígenas e

quilombolas”. Mana vol.3 n.2 Rio de Janeiro Oct. 1997, pg. 28. 25 Barth, op. Cit. 223.

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discurso histórico quanto do discurso jurídico-formal. Entretanto, é no sistema

de representações sociais dos seus agentes que o novo conceito de quilombo,

redefine as suas dimensões abstratas - identidade e cultura) e materiais -

território e monumentos.

Eliane Cantharino, por outro lado, sugere que se pense na adoção de

uma definição de quilombos menos mítica e mais operacional. Neste sentido

Cantharino sugere que se evite interpretar as comunidades remanescentes

apenas como herdeiros de cultura. Para a autora deve-se considerar também a

experiência local destas comunidades que termina por influenciar a construção

das suas identidades26

.

Além do imaginário acadêmico há ainda o imaginário da militância

negra atuante. Este divide-se em duas correntes. Há uma parte da militância,

que poderíamos chamar de tradicionalistas que defende o quilombo como um

objeto histórico. Para estes, as comunidades negras devem ser interpretadas e

vistas como importantes resíduos da cultural africana sobrevivente. São estes

militantes que se sentem frustrados se por acaso visitam um quilombo e não

vêm, casas de sapê, uma casa de farinha funcionando, primos casados com

primos, um terreiro de candomblé ou um espetáculo de jongo. Há ainda os

militantes progressistas que defendem políticas sociais modernas para os

quilombos como por exemplo, asfalto na comunidade, programas integrados

com o meio urbano, capacitação das lideranças, etc.

26 O’Dwyer, 1998, op. Cit.

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Conforme sugerido por Valdélio, mais importante do que enfatizar um

aspecto jurídico do passado, o art. 68O deveria ter focalizado os processo de

formação de uma comunidade negra juntamente com os seus esforços de

coesão, sobrevivência e manutenção da cultura27

. Santos acredita que esta

interpretação pode ser alterada a partir do próprio desvendamento da história

destas comunidades.

Pela metodologia estabelecida pela Fundação Cultural Palmares, todo o

ritual empregado para a titulação destas comunidades tem um sentido

evocativo da origem, da pureza étnica e da essência do espaço geográfico no

qual estas comunidades estão localizadas. Além disto, este procedimento é

sustentado por dois pilares básicos:

1. pela comprovação da origem de ocupação da terra e

2. pelos mitos sobreviventes da memória da escravidão.

Assim sendo, o Art. 68º foi pensado dentro da concepção histórica que

implica obrigatoriamente seguir um caminho jurídico que remete à legislação

colonial-escravista na qual a oposição moderno x tradicional está presente. Isto

faz com que estas comunidades sejam vistas a partir de uma imagem

mitificadora do passado, reforçando a crença de que estas vivem isoladas da

sociedade moderna, ou de que não teriam interesse em vivê-la.

Um elemento básico para esta reflexão, e que aqui será tomado como

ponto de partida, é a noção de poder estabelecida pelo tripé natureza, cultura e

27 SILVA, Valdélio. “ Os Novos Desafios dos Quilombos Contemporâneos” , Centro de Estudos das

Populações Afro-Indoamericanas, ano I, v. 1, no. 1, Dezembro de 2001, pg. 65

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44

“raça”28

, na qual está implícita a ordem valorativa da oposição primitivo x

civilizado e/ou tradicional x moderno. Parece que esta noção faz com que estas

comunidades sejam vistas a partir de uma imagem iconoclasta do passado, a

qual as representa como parte isolada da sociedade moderna. A estas

comunidades parece não estar associado o desejo maior das sociedades

modernas: consumir a produção de seus bens materiais e simbólicos. Um

problema presente tanto no discurso do movimento negro quanto da academia

está relacionado a uma percepção reducionista sobre quilombos. Uma

percepção que as associa ora a uma fixidez, ora a um atraso cultural.

O conceito de quilombo não foi pensado, portanto, sob a coerência da

vida prática destas comunidades. O que fazer por exemplo, com as

comunidades que não conseguem comprovar à sociedade moderna os vestígios

da sua tradição ? De fato, o essencialismo espacial e etno-cultural no qual está

baseado o Art.68 deixa de fora inúmeras comunidades rurais que não

conseguem mostrar ao mundo “moderno” a sua exótica “tradição”.

Temos que considerar que a dinâmica racial da sociedade brasileira não

permitiu que inúmeras comunidades quilombolas organizadas durante o

período escravista, sobrevivessem ou dessem continuidade à sua consciência

histórica de organização política. A destruição de toda esta memória foi

imperativa e na maioria destas comunidades, qualquer vestígio documental que

pudesse comprovar a sua “tradição” foi totalmente destruído. Porém, é

28 Aqui utiliza-se “raça” entre aspas para a realçar o entendimento de que raça é uma construção social ,

não existindo, assim, no seu sentido biológico-natural, diferença “racial” entre os povos, conforme se

acreditava até meados do século passado.

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acreditado por muitos que os sinais da escravidão se mantiveram intactos até

os dias de hoje.

Para além dos procedimentos antropológicos que enfatizem a procura

das “essências” geográficas e africanas no âmbito destas comunidades, que se

dê relevância primeiramente à razão e aos meios pelos quais aquela

comunidade tomou posse de determinadas áreas29

. O entendimento jurídico

voltado para este sentido - independente da comprovação documental que os

remeta a um passado histórico – poderia ser elemento suficiente para que estas

comunidades já tivessem os seus instrumentos de defesa jurídica garantidos.

Porém, antes mesmo desta dificuldade, apresenta-se outra, de

expressão política, que é a discussão que ocupa parte certamente significativa

dos recursos que poderiam estar mais bem investidos nesse pleito, que é a

discussão no interior dos movimentos sociais negros e destes com o Estado

sobre o que deve ser preservado.

Um impedimento à aplicação da lei é o fato do significado desta está

presa ao conceito de quilombo tal como este era compreendido pela legislação

colonial30

. É neste ponto que se encontra a maior dificuldade para se efetivar a

titulação final dos remanescentes de quilombos.

Porém, um dos mais sérios impedimentos do Art. 68o. é o fato deste

congelar a identidade dos remanescentes de quilombos. Ou seja, o art. 68o.

celebra o que os negros destas comunidades foram. Enquanto isto, eles estão

29 Cf. Gomes e Reis, op. Cit. Pg. 23. 30 SILVA, Valdélio Santos, “ Rio das Rãs:Á luz da noção de quilombos” Afro-Ásia, 23(267-295),1999

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preocupados em que tipo de cidadãos eles podem vir a ser a partir do que

determina as leis constitutivas.

Para além dos procedimentos técnicos que têm direcionado a ação do

Estado este trabalho, compartilhando as sugestões de outros estudiosos de

comunidades rurais negras31

, chama atenção para a necessidade de, em

paralelo à valorização destas comunidades enquanto patrimônio histórico e

cultural da nação, que se priorize, sobretudo, o direito destas comunidades

sobre as terras que ocupam por gerações e gerações. Estas terras ocupadas

secularmente por gerações e gerações já poderiam por si só ser um

instrumental suficiente de garantia jurídica da posse das suas terras.

Quando se analisa não apenas o que determina a lei, mas também as

condições e os possíveis procedimentos para a sua aplicabilidade, obtém-se a

chave para alguns dos problemas que uma equivocada interpretação pode

causar. É desta forma que este trabalho ao seu final propõe:

a) Criação de um estatuto jurídico e etnográfico no qual se releve

fundamentalmente a razão e os meios pelos quais estas

comunidades tomaram posse das áreas ocupadas, sem prejuízo do

estudo e análise de qualquer dos aspectos que permitam enriquecer

o conhecimento sobre a sua continuidade histórica e cultural;

b) Estabelecimento de diretrizes para a utilização de outros recursos

jurídicos, baseados em outras leis de terras existentes, além do Art.

68º do ADTC/CF-88, que possibilitem agilizar e tornar mais

realistas os processos legais para a titulação, sem desconsiderar,

no entanto, a especificidade cultural das comunidades negras;

31 Notificados na bibliografia deste trabalhos.

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47

c) Execução de uma política de inclusão destas comunidades na

modernidade, nas terras que atualmente ocupam, sem que estas

estejam baseadas tão-somente em um essencialismo biológico,

cultural ougeográfico.

O artigo 68o. vem assim atrelar o status de cidadão à identidade

quilombola que condicionalmente, se institui dentro de uma base legal ou

jurídica. Assim, a questão de direitos dos remanescentes de quilombos não está

restrita apenas ao direito à propriedade da terra. É também, e com a mesma

intensidade do direito às suas terras, uma medida que permite a preservação da

distinção étnica associada ao direito de cidadania.

Desde os tempos mais remotos que a existência humana tem sido

representada pelas formas como o homem imagina o mundo. Portanto, por

mais racionais que pareçam ser os nossos modelos de organização social, tudo

o que os antecede é primeiramente fruto da imaginação. As formulações

conceituais que os estudiosos dos fenômenos sociais legam à sociedade são,

antes de tudo, produtos da imaginação científica. Sendo assim, examinar o

contexto das relações de poder que deu base imaginativa à criação dos

conceitos pode ajudar a compreender as dificuldades e objeções à sua

aplicabilidade. Isto é válido também para reexaminar o conceito de

quilombos.

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Foto: Creuza Flores

Morador de Santana carregando água proveniente de fonte

natural do local .

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CAPÍTULO 3

Do Tamanho do Mapa à Cor do Título: Traçados e

Pontilhados na Linha da História.

A noite é bonita

O batuque começou

Parece negro chorando

Porque negro está apanhando

Não sei bem de que feitor

Sei que negro está chorando

Porque negro sente dor

Porque negro inda se esconde

Pra adorar seu Senhor

Porque inda é pecado

Negro adorar seu Senhor

Porque a polícia prende

Negro que adora o Senhor

Branco adora o Deus que quer

Mas o negro não pode não

Tem que adorar Deus de branco

Ou sinão vai pra prisão.

Batucada, Solano Trindade.

A discussão que envolve a associação entre a propriedade da terra

e a exclusão socioeconômica a que foi relegada a população negra do

Brasil tem sido palco de muitas controvérsias. Neste capítulo, serão feitas

Page 56: ENTRE TUMBAS  E SENZALAS: Os  Direitos Remanescidos de Santana dos Pretos -  Edmeire Exaltação

50

algumas considerações sobre a forma como os órgãos governamentais

competentes procedem a titulação de terras dos quilombolas. O nosso

objetivo é apontar como as leis de acesso à terra no Brasil nunca

consideraram a ocupação de terras pelos “pretos quilombolas” como uma

importante discussão nacional e como esta ausência de pauta política tem

repercutido na situação das comunidades negras remanescentes. Para tal

utilizaremos como ponto de partida, a promulgação da Lei 601, de 18 de

setembro de 1850 - a Lei de Terras - e seu regulamento - Dec. 1318

de 30 de junho 1854. Para, portanto, desenvolver este argumento, é

indispensável uma breve contextualização da situação fundiária do Brasil

do século XIX.

Até 1822, as sesmarias eram o instituto que regulava as relações

fundiárias na Colônia. Estas eram doadas a pessoas indicadas - os

sesmeiros - com o fim expresso de ocupação. O sentido patrimonial da

política de doação de sesmarias vinha sempre reforçado, em termos

legais, pelo direito da Coroa de fazer as terras voltarem a seu domínio

quando não cumpridas as condições de efetiva ocupação.

A partir de 1822, as Ordenações Filipinas consagraram a posse

efetiva como recurso legal para obtenção da propriedade. Após a

emancipação política e a revogação do Instituto das Sesmarias, a posse

se tornaria, por algumas décadas, a forma predominante da constituição

da propriedade fundiária no Império. Naquele contexto, desde a

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vigência da política de doações de sesmarias, até a sua revogação, a

efetiva ocupação constituiu-se em eixo central da apropriação fundiária

no Brasil. Logo, o que se supõe é que no período referido - 1822 a

1850 – ainda um período escravista, abre-se a possibilidade para que

pequenos e médios lavradores pudessem adquirir a propriedade fundiária

a partir da ocupação de terras que não fossem de propriedade

determinada - as terras devolutas. Em 1850, foi promulgada a Lei de

Terras do Império. Tal lei, foi “patrocinada” pela classe política dirigente,

que a formulou, debateu e a aprovou.

A Lei de Terras instituiu vários mecanismos de distinção entre

terras públicas e terras privadas. Além disto, esta lei também proibiu o

acesso à terra pelo mero apossamento, prática muito utilizada no Brasil

colonial e imperial, principalmente após o fim do sistema de sesmarias,

em 1822. Assim, a partir de 1850, o acesso às terras devolutas só

poderia se dar por via de compra. Este período também coincide com o

declínio da escravidão, e com o patrocínio da vinda de imigrantes

europeus para o Brasil.

A Lei de Terras estabeleceu, ainda que não diretamente

mencionados, mecanismos de controle e de exclusão da população negra

ao acesso à terra. Disto resultou que um grande contingente de ex-

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escravos, com experiências e tradições ligadas ao uso da terra , ficassem

sem qualquer direito sobre este produto1.

Frente a esses longínquos impedimentos, que percurso é utilizado

atualmente por estas comunidades até conseguirem a titulação definitiva

das suas terras? Em quais contextos políticos a demanda por titulação é

criada e como a comunidade vivencia isto? Qual é a trama judicial

encontrada por estas comunidades?

Cabe à Fundação Cultural Palmares a responsabilidade

administrativa de mapear, identificar, reconhecer e titular as comunidades

rurais negras ou remanescentes de quilombos. Com este procedimento, os

quilombolas só recebem o título definitivo após ser reconhecida,

identificada e titulada enquanto uma comunidade negra remanescente

através de estudo antropológico que inclui análise etnográfica,

levantamento cartográfico e a demarcação da terra.

Além disto, até chegar à titulação definitiva das suas terras, a

comunidade quilombola tem que comprovar que é detentora dos seguintes

traços socioculturais2:

a) Ancianidade da ocupação e preservação da memória coletiva

circunscrita ao espaço que deu origem à história da comunidade;

b) Ritualização da cultura, tradições e costumes específicos que lhes

dão um caráter distintivo em relação às demais comunidades do seu

entorno;

1 MOTTA, Márcia. "Terra, Nação e Tradição Inventada - Uma outra abordagem sobre a Lei de

Terras de 1850", In: Nação e Poder: As Dimensões da História, org. Sônia Mendonça, Niterói,

EdUFF, 1998. MARTINS,José de Souza. O cativeiro da terra, Editora Hucitec, 4a. edição, São

Paulo, 1990.

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c) Sentimento de pertencimento étnico e ligação com a terra.

Para identificar estes traços na comunidade a Fundação Palmares

utiliza “pontos de referência3” entre os quais os principais são:

a) A ascendência genealógica

b) Os monumentos

c) Os lugares da memória4;

d) As datas comemorativas

e) As festas

f) Dança e música;

g) Tradição culinária e medicinal.

Embora a cultura negra se manifeste de alguma forma nos quatro

cantos do país, pode-se observar que entre os „silêncios‟ que envolvem a

questão étnica no Brasil, um deles refere-se à diferença quantitativa sobre

a notificação patrimonial dos acervos identificados à cultura negra,

principalmente o acervo religioso, daqueles identificados com a cultura

das elites brancas. Isto pode ser observado nos livros de Tombo do

IPHAN. É possível analisar as relações de poder entre grupos étnicos de

um país observando-se também a maneira como é tratado no presente, o

passado histórico e cultural destes grupos.

2 Rodrigues, Geisa de Assis. “Procedimentos Judiciais”, Revista Palmares, no. 5, Ministério da

Cultura, 2000, pg. 189. 3 POLLAK, Michael. Memória, esquecimento e silêncio. Estudos Históricos N°3. São Paulo,

Revista dos Tribunais. 1988a. ____. Memória e identidade social. In, Estudos Históricos, Vol. 05,

N°10. Rio de Janeiro,1988b 4 Pierre Nora editou um trabalho monumental de sete volumes sobre a memória de lugares da

França, intitulado Les Lieux des mémoire". Para Nora, lugar de memória é qualquer espaço ou

monumento significante para a comunidade, o qual, por meio de testamento material ou não

material, se transformou num importante elemento simbólico herdado pela comunidade. NORA,

Pierre. Entre memória e história. In, Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-

graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP. São Paulo: PUC. 1981. Ainda

de acordo com Nora, locais de memória não são comuns em todas as culturas. Locais de memória

existem para ajudar a comunidade a lembrar do passado.

Page 60: ENTRE TUMBAS  E SENZALAS: Os  Direitos Remanescidos de Santana dos Pretos -  Edmeire Exaltação

54

Com o aumento das demandas destes grupos por respeito às suas

diferenças étnicas, surge a necessidade de se considerar novas práticas,

tanto no campo das investigações arqueológicas quanto do registro

patrimonial dos acervos culturais do país. Estas novas práticas têm sido

cruciais para as comunidades negras tradicionais, visto que, com o artigo

constitucional, o passado tornou-se a maior fonte de fortalecimento das

suas identidades coletivas e de legitimação dos seus direitos de cidadãos

plenos.

Para ser considerada uma comunidade tradicional, esta tem que

portar sinais culturais de grande visibilidade e significado coletivos, como

monumentos, santuários, cemitérios, entre outros. Estes sinais culturais

visíveis, conforme comprova-se em Santana, aumentam o sentimento de

coletividade e de identidade do grupo.

Tais sinais utilizam três dimensões fundamentais para o registro da

memória coletiva: o estético, o político e o cognitivo. Estas três dimensões

associadas respectivamente aos princípios de beleza, poder e identidade

devem ser compreendidos como parte de uma cultura própria mas com

dimensões significativas iguais a todas as outras culturas

A visão de uma origem compartilhada e de antepassados comuns,

de tradições antigas, e de monumentos que lembrem o passado, dão

unidade e dignidade ao grupo5.

Page 61: ENTRE TUMBAS  E SENZALAS: Os  Direitos Remanescidos de Santana dos Pretos -  Edmeire Exaltação

55

Procedimentos para Titulação de uma Comunidade rural

negra

Os processos de concessão de título variam de comunidade para

comunidade. Tudo é mais fácil e simples quando as terras ocupadas são

devolutas, ou seja, pertencem ao Estado. Porém, quando a ocupação é

fruto de disputa com posseiros ou fazendeiros, o processo é demorado,

muitas vezes ameaçador para as lideranças locais, podendo às vezes durar

anos. Nessas disputas, o que tem se configurado como uma das maiores

dificuldades encontradas pelos membros da comunidade é conseguir, com

base no artigo 68o., instrumentos comprobatórios do direito ao título de

posse.

Esta é uma dificuldade encontrada pelos moradores de Santana.

Embora a doação de suas terras tenha sido lavrada em cartório, estes não

têm como comprovar o recebimento das terras porque as páginas do livro

onde estava registrada a doação foram arrancadas. Segundo os moradores,

os funcionários não sabem explicar como isto ocorreu e atribuem o fato a

alguma pessoa que tinha acesso aos livros e arrancaram-nas para

beneficiar o fazendeiro vizinho.

Tradicionalmente, a memória humana é vista como um arquivo do

qual podem ser guardados acontecimentos importantes ocorridos na vida das

pessoas, no lugar onde moram ou moraram, no país, e assim por diante. Para

não esquecê-los, as pessoas criam - o que Francis Yates chamou de “arte da

5 Ver Pollack, M. Op. Cit.

Page 62: ENTRE TUMBAS  E SENZALAS: Os  Direitos Remanescidos de Santana dos Pretos -  Edmeire Exaltação

56

memória” - mecanismos mnemotécnicos. Conforme já dito em capítulos

anteriores, esta busca do que já aconteceu não significa que os fatos sejam

lembrados exatamente da forma como estes ocorreram no passado. Em cada

relembrança há uma recriação daquilo que foi vivido. Sob a influência de

uma série de fatores, o passado pode ser reinventado, sem contudo perder a

legitimidade da ocorrência dos fatos.

É isto que a Fundação Palmares faz ao iniciar o processo de titulação

em uma comunidade quilombola: estimula através de mecanismo

mnemotécnicos a recriação do passado. Todo esse processo tem como

principal objetivo constituir provas jurídicas que contribuam no sentido de

convencer juízes de que aquela comunidade faz jus aos direitos atribuídos

pelo dispositivo constitucional.

Procurando obter informações sobre a memória social, herança

cultural, padrão material e expectativas que a comunidade quilombola tem

em relação as suas vidas individual e coletiva, a FCP procura criar guias de

orientação para a formulação – junto com a comunidade - de diagnósticos e

de programas de ação no sentido de melhorar as condições de vida desta

população. Dentro deste planejamento de titulação das terras quilombolas, a

FCP analisa os seguintes aspectos da comunidade:

1. Delimitação geográfica da comunidade;

2. Caracterização ecológica e fisiográfica da região

3. Padrão socioeconômico e político da comunidade;

4. Desenvolvimento de atividades agrícolas;

5. Liderança e organização política local;

6. Pertencimento Étnico

Page 63: ENTRE TUMBAS  E SENZALAS: Os  Direitos Remanescidos de Santana dos Pretos -  Edmeire Exaltação

57

1. Mapeamento - As comunidades mapeadas são aquelas que fazem parte

do cadastro de informação da Fundação mas que ainda não foram visitadas

por seus técnicos. Assim, nesse processo a FCP apenas atualiza e enumera a

distribuição destas comunidades pelo território brasileiro.

Muitas das comunidades mapeadas só tomam conhecimento dos

direitos que têm depois da visita de profissionais das instituições

governamentais. Foi assim em Santana. Segundo o presidente da

associação de moradores local, eles foram pegos de surpresa com a

chegada da equipe da Fundação Palmares dizendo que pelo fato deles

serem descendentes diretos de escravos teriam direito à regularização das

suas terras sem nenhum custo.

“ Foi uma notícia boa essa! Só que tem gente aqui que

não quer nem ouvir falar em titular o quilombo. A minha

irmã é uma. Ela tem medo dos fazendeiros. Ela é amiga

de um deles daqui que ajuda muito nós aqui. Quando cai

um doente é só ir lá chamar que ele leva pra Quatis. Mas

ele vive botando coisa na cabeça da Olga. Eu vivo

dizendo pra ela que ele faz favor porque quer. Aliás, nem

é favor porque meus sobrinhos trabalha lá na fazenda

deles quase de graça. Desde que ele soube que eu tava

envolvido com esse negócio de Fundação Palmares, ele

não me chama mais pra trabalhar. Esse foi o problema

que eu tive depois que voltei de Brasília, daquele

encontro lá de quilombos. Eles pensa que fui lá para

tirar a terra deles. Eu tenho andado escabreado porque

já apareceram dois carros aqui em Santana - só que

ficaram lá embaixo – perguntando por mim. Tenho medo

de ser baleado ou mesmo morto por aí. Qume vai saber

que fez isso... Ninguém. Mas eu não vou desistir não.

Vou continuar. Se a senhora perguntar ao meu pai e à

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58

minha irmã sobre esse negócio de titulação, eles fica

morrendo de medo e não fala nada não. Eu não. Eu

quero morrer com a certeza de isso aqui vai ficar pros

meus filhos. Miguel, Presidente da Associação.

De fato, a notícia de que estas comunidades têm direitos à titulação

definitiva de suas terras, tem desencadeado uma série de conflitos entre

elas e seus invasores, como é o caso de Santana em Quatis, de São José da

Serra em Valença, de Caveiras em Cabo Frio e de Marambaia em Angra

dos Reis. Com as repetidas experiência de fracasso nos processos de

disputas das terras quilombolas, tem-se percebido que falta ao Artigo 68o.

um complemento que dê eficiência e definição jurídica capazes de resolver

as diversas situações de conflito fundiário a que tem sido submetidas as

comunidades negras rurais.

2) Identificação - Depois de mapeada começa-se um segundo processo

que é o de identificar a comunidade enquanto uma comunidade negra

remanescente. Comunidades identificadas são aquelas nas quais a FCP e

os institutos de terras regionais realizam vistoria técnica habilitando a

comunidade como passível de enquadramento no preceito constitucional.

Nessa fase, a FCP tem como meta reunir elementos da história oral e

material dos habitantes que dêem indícios de que é possível classificar

estas comunidades a partir do artigo 68o. das ADCT e dos artigos 215

o. e

216o. da Constituição Federal. É neste momento que a memória da

comunidade é revolvida em busca de resíduos históricos visíveis ou não.

Page 65: ENTRE TUMBAS  E SENZALAS: Os  Direitos Remanescidos de Santana dos Pretos -  Edmeire Exaltação

59

3) Reconhecimento - Após o mapeamento e a identificação, segue-se ao

reconhecimento da comunidade. As preocupações nesta fase concentram-

se principalmente na construção da cadeia dominial, na delimitação

topográfica e na elaboração do laudo antropológico.

Através da elaboração de um laudo antropológico de caráter

pericial, verifica-se por meio da história oral, as linhas de descendência da

comunidade assim como outras marcas identitárias existentes no local.

Dois elementos são primordiais para o reconhecimento da

comunidade enquanto remanescente de quilombos: primeiro, a

comprovação da ancianidade da ocupação e segundo, a ascendência e o

sentimento de pertencimento étnico do grupo6.

É assim que, apesar de muitas vezes, não se perceba diferença

sócio-cultural entre aqueles que estão fora ou dentro da área mapeada, os

próprios membros da comunidade estabelecem uma demarcação de

fronteiras de forma a distinguir o Eu do Outro. Além da auto-atribuição de

identidade e pertencimento étnico feito pelos próprios moradores, a

memória social , o conhecimento e a integração com o meio-ambiente, e a

existência de uma regulação social autônoma do grupo são determinantes

para a construção de argumentos positivos no processo de titulação das

terras enquanto remanescentes de quilombos.

6 Ver por exemplo os trabalhos de PRICE, Richard. “Executing ethnicity: the killings in Suriname”

, Cultural Antrhpology, 10 (1995), pp. 437-471 _______. Maroon societies: rebel slave

communities in the Americas. Baltimore, John Hopkins University, 1996.______“Quilombolas e

direitos humanos no Suriname”, Horizontes Antropológicos, 1999.

Page 66: ENTRE TUMBAS  E SENZALAS: Os  Direitos Remanescidos de Santana dos Pretos -  Edmeire Exaltação

60

4)Titulação - Comunidades tituladas são aquelas cujo rito processual

para este fim foi concluído. São comunidades que, seguindo o que institui

o Art. 68, constituem-se em prioridade para potenciais investimentos de

políticas públicas.

O processo de titulação de um quilombo é totalmente diferente

daquele seguido por outras comunidades rurais, como os do Movimento

Sem-Terra, por exemplo. A titulação é coletiva e ninguém pode desfazer

do seu lote sem que haja um consenso da maioria da comunidade.

Obedecendo-se ao estatuto da associação de moradores, é esta quem

recebe os registros imobiliários em nome da comunidade.

Como estratégia de proteção à propriedade, a FCP instituiu que a

titulação é coletiva. Através de um estatuto da associação de moradores,

elaborado com a aprovação dos representantes da comunidade, constitui-se

uma entidade jurídica, geralmente a própria associação de moradores,

como a responsável por responder e receber o título de terras em nome dos

moradores.

Confecção de Laudos Antropológicos

O objetivo dos laudos periciais é desenvolver um estudo sobre a

representação que estas comunidades fazem de si mesmas. Assim, através

da história da comunidade, da sua organização sócio-cultural, do seu modo

de vida e tradições, o pesquisador irá verificar se há espaço para atribuição

dos direitos reivindicados pela comunidade.

Page 67: ENTRE TUMBAS  E SENZALAS: Os  Direitos Remanescidos de Santana dos Pretos -  Edmeire Exaltação

61

A prática arqueológica em busca de indícios materiais que sirvam

para a classificação, distinção e identificação cultural destas comunidades,

é fundamental na confecção dos laudos antropológicos. Estes são

elementos que irão determinar as conclusões da pesquisa etnográfica

exigida pelos requisitos jurídicos. Assim, quanto maior for o número de

sítios arqueológicos que estas comunidades apresentem maiores serão as

oportunidades de convencimento de que ali existem „reminiscências‟ e

„remanescências‟ deixadas pelos antepassados escravos.

Apenas a elaboração de laudos antropológicos não tem sido

suficientes para convencer os juízes a darem pareceres favoráveis aos

quilombolas. Tem sido mais fácil para os órgãos competentes titular as

terras públicas ocupadas pelos quilombolas pois estas não significam

problemas de disputa. Em contrapartida, as terras supostamente

particulares onde estão assentadas estas comunidades têm significado uma

série de problemas jurídicos para a fundação Palmares e outros órgãos

como os institutos estaduais de terras e Incra.

Embora o artigo 68º seja auto-aplicável, este não tem tido força

suficiente para resolver os conflitos e as invasões das terras de quilombos.

Que soluções podem ser pensadas para solucionar estes obstáculos

jurídicos

Alguns estudiosos acreditam que só a desapropriação pode dar

conta de algumas deficiências deixadas pelo Artigo 68O. Tal como

Page 68: ENTRE TUMBAS  E SENZALAS: Os  Direitos Remanescidos de Santana dos Pretos -  Edmeire Exaltação

62

acontece com as terras indígenas, a desapropriação seria um recurso

justificado por se considerar os territórios quilombolas de interesse social

ou de utilidade pública7.

A titulação não se esgota com registro da propriedade coletiva do

quilombo no cartório. Dita a legislação que a partir daí, iniciem-se

parcerias com governos, com universidades, com instituições de defesa de

direitos humanos e com agências de financiamento no sentido de atender

a estas comunidades nos seus projetos de restauração e de conservação

patrimonial, autodesenvolvimento sustentável, suprindo as suas

necessidades básicas como água, luz, escola, programas de geração de

renda e trabalho, entre outros.

Para entender um pouco a dificuldade que estas comunidades têm

enfrentado ao longo da existência para firmar os seus direitos fundiários é

necessário voltar um pouco na história e ver uma das razões que podem

explicar a origem de tudo isto.

O negro está historicamente associado a uma situação de servidão

aos donos de terras, geralmente brancos e pertencente à elite econômica.

Conforme já dito anteriormente, a dificuldade de acesso à terra por negros

aumentou em 1850 com a Lei 601. Esta lei que regulamentou a cessão de

terras públicas aos imigrantes estrangeiros fez parte do pacote de

incentivos à vinda de imigrantes europeus para o Brasil. Neste mesmo

7 SILVA, Dimas Salustiano. “A Concretização do Artigo 68” In Revista Palmares, no. 5, 2000, pg.

95. Uma das propostas do Incra é “comprar, desapropriar e incorporar estas terras ao patrimônio de

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63

período já era grande o número de escravos livres. Estes estavam fora dos

benefícios da lei de Terras. Justificava-se dizendo, que diferente da

habilidade demonstrada pelos estrangeiros, os ex-escravos não tinham

capacidade de gerenciar pequenas propriedades de terras8.

Por ironia política, estas conclusões a respeito da incapacidade da

massa escrava livre eram tiradas paralelamente ao debate que condenava a

escravidão. Ramos analisa a política de assentamento do Império dizendo

que,

Ao direcionar os imigrantes para assentamentos em terras devolutas no sul do

país, o governo imperial acabou promovendo o estabelecimento de colônias

racialmente homogêneas – principalmente alemães e italianos... Caboclos,

negros, mestiços em geral e até imigrantes portugueses eram considerados

apenas como coadjuvantes de um progresso a ser introduzido por uma

agricultura racional. Estes serviam para o trabalho pesado de desbravamento e

desmatamento9.

A Lei de Terras de 1850 complementava o grande projeto de

embraquecimento do país ao definir como dono de terras ideal, o

fazendeiro branco e civilizado.

estado, para então repô-las a quem realmente tem direito sobre elas”. Pg. 95. 8 RAMOS, Jair de Souza . “Dos males que vêm com o sangue: As representações raciais e a

categoria do imigrante indesejável nas concepções sobre imigração da década de 20”em CHOR

MAIO, Marcos e SANTOS Ricardo Ventura (orgs). Raça, Ciência e Sociedade, Editora Fiocruz,

pg. 46. 9 Idem, pg. 48.

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64

Fotos: Creuza Flores

Crianças de Santana

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65

CAPÍTULO 4

Os Direitos Remanescidos dos

Sobreviventes da Memória

“Para localizar uma lembrança não basta um fio de Ariadne; é

preciso desenrolar fios de meadas diversas, pois ela é um ponto

de encontro de vários caminhos, é um ponto complexo de

convergência dos muitos planos do nosso passado."

Ecléa Bosi (Op. Cit. pg. 413)

D. Nair.

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66

Uma série de entrevistas nos permitiu seguir as rotinas individuais,

alguns hábitos, constrangimentos, e estratégias inventivas da vida diária dos

quilombolas de Santana de Quatis. Entre experiências e vozes, este capitulo

descreverá as invenções efêmeras que preenchem, alegram ou entristecem o

cotidiano de Santana. Atenção especial foi dada à tentativa de organização

política da comunidade, à utilização do espaço e do corpo como locais onde as

práticas cotidianas são exercidas1.

Toda comunidade tem seus marcos culturais que geralmente têm

grande visibilidade e significado coletivo como monumentos, santuários,

cemitério, entre outros. Estes sinais culturais visíveis, conforme é comprovado

em Santana, aumentam o sentimento de coletividade e de identidade do grupo2.

Tais memórias utilizam as três dimensões fundamentais : o estético, o político

e o cognitivo. Estas três dimensões associadas respectivamente aos princípios

de beleza, poder e identidade devem ser compreendidos como parte de uma

cultura própria mas com dimensões significativas iguais a todas as outras

culturas.

Seu Sebastião Francisco, por exemplo, 84 anos, é um dos 19 chefes de

famílias que moram em Santana. Ele acha que a comunidade ficou triste ao

longo das últimas décadas:

Eu acho que os tempos mais atrás era melhor porque todo

mundo fazia tudo. Todo mundo plantava. Tinha uma cana, uma

1 CERTEAU, Michel de. The Practice of Everyday Life. Berkeley: UCP, 1988

2 DADESKY, op. Cit. 25.

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67

mandioca, uma banana pra dar pra uma criança... uma batata! Os

de agora não faz força! Tudo tem que ser da venda, comprado. Aí

tem que fazer muita compra porque tem muita criança! Cadê

dinheiro Cadê trabalho Naquele tempo tudo era de casa! Hoje,

mesmo aqueles que trabalha, ainda fica devendo ao patrão porque

traz tudo da venda dele. Um dia é um leite, outro dia é feijão.

Quando chega no final de semana pra receber o pagamento, já foi

tudo na compra, né Aqui eu planto meu café, minha mandioca,

laranja, banana, feijão. Nunca passo fome, nem eu nem meus filho.

Meu filho Miguel, ta desempregado mas nem eles nem os filhos dele

passa fome não.

Seu Sebastião Francisco mostra a estreita relação outrora existente em

Santana entre espaço e representações coletivas. O espaço onde se plantava,

também abrigava uma coleção de formas que refletiam o bem-estar, a fartura e

as representações que os moradores faziam de si mesmos. Como demonstra D.

Nair, plantar e ter comida farta eram fatores que indicavam além de bem-estar,

dignidade.

“ Criei 16 filhos aqui sem ir no médico. Quando chegavam a

chorar era só de fome. Eu plantava arroz, feijão, mandioca, batata,

cenoura. Eu ficava trabalhando na lavoura e meus filhos tava pra lá,

brincando. De repente paravam de brincar e sentavam tudo no batente

e começavam a chorar. Aí eu dizia, ´peraí seus filhos da puta, vocês

tão é com fome´. Aí eu subia com mandioca, batata, cana pra moer...

eu tinha um engenho de pau... botava o engenho pra tocar e botava a

batata, a mandioca no fogo... eu tinha umas baciinhas pra cada um e

aí o filho que gostava de batata comia batata, o que gostava de inhame

comia inhame, o que gostava de mandioca comia mandioca... eu

punha tudo separados naquelas baciinhas...! eu fazia o gosto de cada

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68

um. Nós não comprava quase nada. Plantava só para o gasto da casa.

Nós não comprava pó de café, açúcar... tudo era da casa, só comprava

sal e querosene”. (D. Nair, 78).

Segundo pesquisadores da sociologia rural é comum encontrar

comunidades rurais com mudanças drásticas no cultivo do humor e lazer ao

longo da sua história de vida. Ollen e Cliford, por exemplo, apontam inúmeros

fatores que podem tornar uma comunidade apática e triste. Entre os mais

comuns eles enumeram3:

1. Desproporção entre a população que produz e

a que consome;

2. Problemas de saúde graves atingindo toda a

população;

3. Baixa capacitação profissional e desemprego;

4. Grandes desigualdades socioeconômicas

entre a comunidade e o seu entorno;

5. Situação irregular da terra;

6. Deficiência na educação formal.

Dos seis itens mencionados acima, todos foram, em maior ou menor

grau, constatados em Santana: a) as péssimas condições de vida e a falta de

assistência à saúde estão fazendo com que as pessoas mais velhas morram

mais rapidamente; b) Pais de famílias sem nenhum rendimento porque não

encontram empregos nas fazendas locais criam uma desproporção entre quem

produz e quem consome c) Extrema pobreza da comunidade; d) Incerteza

quanto ao futuro.Apesar do processo iniciado pela Fundação Palmares os

3 OLEN, Leonard E. e CLIFFORD, Roy. A Sociologia Rural para os Programas de Ação. Livraria

Pioneira, SP, 1971.

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69

santanenses não têm como provar que são donos daquelas terras; e)

Analfabetismo e baixa escolaridade porque a escola só vai até a 4a. Série.

Toda a construção social de Santana é marcada por recortes memoriais

ainda muito presentes entre os moradores mais velhos. Por causa das péssimas

condições de vida os moradores mais velhos estão morrendo rapidamente. Daí

surge a preocupação de Miguel, presidente da Associação de Moradores de

Santana:

Olha senhora,, os velhos daqui tá tudo morrendo. Dois meses

atrás morreu o Seu Candinho que era a pessoa mais velha do

quilombo. Ele tinha 93 anos. Tem meu pai com 84 mas não é

nascido aqui. Seu Candinho nasceu aqui e sabia muitas

estórias daqui. Agora, tem poucos velhos vivos daquele tempo

aqui. Só tem uns quatro ou cinco. Vai chegar um tempo que

ninguém vai saber como foi isto aqui. Isto vai prejudicar a

gente porque aí vai ser mais fácil os fazendeiros chegar e tirar

a gente daqui. Já falei com a diretora da escola. Ela não mora

aqui. Mora lá em Quatis. Vem aqui de vem em quando. Acho

que é por isso que a professora daqui não se interessa. Tinha

que ter alguém aqui, falando. Mas parece que ela acha que isso

é bobagem. A senhora não acha que é importante pros meninos

saber como foi a estória da sua cidade Eu acho que é

importante. Falar com orgulho do seu lugar. Miguel, 37 anos.

A preocupação de Miguel faz sentido se levarmos em consideração os

estudos de Assman e Vansina. De acordo com Jan Assmann4 o hiato entre

uma lembrança mais recente e aquela mais distante dentro de uma

comunidade, dura aproximadamente 80 anos, ou seja, atingindo cerca de 3 a 4

4 ASSMAN, Jan. Moses, the Egyptian: The Memory of Egypt in Western Monotheism. Havard

University Press, Cambridge, 1997. pg. 48-56.

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70

gerações. Em um outro estudo sobre tradição oral na África, Jan Vansina5

sugere uma divisão semelhante entre a lembrança dos eventos de um passado

mais recente e daqueles mais distantes. Ainda, de acordo com Vansina a

consciência coletiva trabalha apenas com dois registros referenciais do tempo:

o tempo de origem e o tempo mais recente. Desta forma, segundo este autor há

um limite sobre aqueles acontecimentos a que uma geração pode alcançar e

guardar como relevantes. Para este autor, a importância memorial de um

acontecimento ou pessoa, pode mudar com a passagem de gerações6.

Nesse contexto, a memória de Santana é pensada como algo a ser

preservado e transmitida de geração a geração. O discurso de Miguel revela

que aos jovens é atribuída a responsabilidade de preservar as reminiscências

ancestrais e a memória coletiva do lugar. Mas, não são somente os jovens que

têm essa responsabilidade. Com a continuidade da narrativa, Miguel também

nos faz perceber o quanto os velhos da comunidade têm um papel fundamental

na transmissão e preservação do patrimônio cultural e social da comunidade.

Como legítimos proprietários da memória, eles guardam o capital mnemônico

que define e mantém a estrutura da identidade cultural e social do grupo7.

Miguel e Isael, presidente e vice da Associação de Moradores de

Santana, contam como se sentiram ofendidos quando na época do

reconhecimento pela Fundação Palmares, a advogada responsável pelo

5 VANSINA, Jan. Oral Tradition as History, 1985, Currey, London, 1985, pg. 168.

6 Idem, pg. 168.

7 Quanto ao papel dos velhos na construção da memória social de determinados grupo Ecléia Bosi faz

importantes considerações. De acordo com Bosi, "a memória é a faculdade épica por excelência. Não se

pode perder, no deserto dos tempos, uma só gota da água irisada que, nômades, passamos do côncavo de

uma para outra mão, a história deve reproduzir-se de geração a geração, gerar muitas outras, cujos fios se

cruzem, prolongando o original, puxados por outros dedos.". Op. cit. pg..90.

Page 77: ENTRE TUMBAS  E SENZALAS: Os  Direitos Remanescidos de Santana dos Pretos -  Edmeire Exaltação

71

processo fez-lhes a seguinte advertência: Olha, vocês vão receber o título da

terra mas cuidado para não deixarem isto aqui virar uma favela! (Miguel e

Isael).

Mesmo entendendo o cuidado que há na orientação da funcionária do

governo, tem-se aqui uma visão do patrimônio de ordem preconceituosa e

disciplinadora muito bem assimilado por Miguel:

Aqui nós somos tudo pobre. Casa de tijolo só tem duas ou três.

Mas nós é muito organizado. Temos muito cuidado com isso aqui.

Lixo a gente queima e não tem sujeira não. Aqui nunca vai virar

favela. Quando a Benedita da Silva teve aqui, ela prometeu pra

gente material de construção. Pra minha mãe ela prometeu

diretamente. Mas cadê Eu vi falar que ela foi pra Brasília. Só se

invadirem e a gente não puder reagir que aqui vai virar favela. A

gente não pode reagir nem com os fazendeiros! Ta vendo aquela

montanha toda ali, do lado da minha casa É nosso. Mas nós não

pode plantar porque o fazendeiro vizinho bota as vacas e os

cavalos dele para comer capim aí. Qualquer coisa que a gente

plante os bichos vem e come.

Não somente a história, mas cada parte do artefato arqueológico de Santana

forma o conjunto identitário dos moradores.

Os elos perdidos da memória

Há um mito criado pelos outsiders em torno das comunidades

quilombolas quanto à preservação de certas tradições culturais. O uso de ervas

medicinais, o jongo, o candomblé, o modo de viver ou morrer são traços

culturais que muitos supõem – principalmente os militantes tradicionalistas –

estejam ainda presentes em algum lugar da comunidade. Não em Santana.

Page 78: ENTRE TUMBAS  E SENZALAS: Os  Direitos Remanescidos de Santana dos Pretos -  Edmeire Exaltação

72

Com exceção do catolicismo, muitos dos traços culturais outrora existentes,

não são visíveis mais hoje.

Os moradores de Santana

não sabem ao certo o quanto lhes

resta dos 800 hectares herdados.

Muitos dos herdeiros venderam as

suas terras ou trocaram-nas por

favores com os fazendeiros locais.

Aliás, a prática oportunista dos

grileiros de trocar simples favores por terras ainda é muito presente em

Santana.

Houve fazendeiros que avançaram suas cercas para dentro dessas

terras de descendentes de ex-escravos apropriando-se delas... Existem

vários descendentes desses ex-escravos morando na cidade de Quatis e

em fazendas vizinhas onde trabalham, que sempre reclamam a perda de

suas terras e que gostariam de voltar a viver nelas...”

(Laudo Antropológico de Santana, pg. 11).

Os conflitos com os fazendeiros invasores das terras de Santana nunca

foram explícitos até à mobilização da comunidade em torno da titulação. A

partir de então, estes passaram a ser hostilizados pelos fazendeiros vizinhos.

De acordo com Miguel, antes da titulação, a relação dos fazendeiros com a

comunidade:

Era legal. Eles não perturbavam. Não tinha muito serviço mas a

gente era bem recebido. A gente chegava na fazenda e eles davam serviços

pra gente. Hoje em dia eles não querem dar mais porque acham que nós

estamos tomando a terra deles. Porque eu fui a Brasília falar com a

Page 79: ENTRE TUMBAS  E SENZALAS: Os  Direitos Remanescidos de Santana dos Pretos -  Edmeire Exaltação

73

Fundação Palmares, eu estou sendo ameaçado... tem um carro andando

por aí, um Santana bege, perguntando por mim e dizendo que vem me

pegar aqui para eu dar uma volta.

De fato, constatamos que grandes extensões de terras originariamente

pertencentes à fazenda do Barão Cajuru estavam ocupadas por fazendeiros

vizinhos e os moradores mais velhos estavam temerosos sobre possíveis

represálias que o Quilombo de Santana pudesse sofer por parte dos seus

incomodados “vizinhos”.

Esse negócio de mexer com terra dá muita confusão, muito

problema..., briga! Pra mim um pedacinho que sobrou pra gente, a gente

devia ficar satisfeito. Antes um pouco com muito do que um muito sem

nada. É só cuidar, roçar, trabalhar que dá muito lucro (D. Nair).

Sebastião Francisco, 84 anos, um dos moradores mais antigos, também

expressa o mesmo medo e resignação da D. Nair.

Nós não pode de falar que a terra é nossa! A gente pode até falar

pra eles... mas é falar e eles vem agredir. Vão botar como se fosse

nós que tivesse tirando... como se fosse o pessoal daqui que tivesse

tirando a terra deles. Nós não temos força pra isso. Eles tão

jogando... Esse menino que taí (o presidente da associação)... tão

culpando ele, dizendo que é ele que tá botando na cabeça do

pessoal pra tomar a terra deles. Agora... a senhora acha que

temos poder para isso? Sr. Sebastião Francisco, 84.

A maior preocupação dos santanenses no momento tem sido a

expropriação das suas terras por parte dos fazendeiros vizinhos. Eles têm

testemunhado impotentes o rápido avanço dos fazendeiros sobre as suas

terras.

Page 80: ENTRE TUMBAS  E SENZALAS: Os  Direitos Remanescidos de Santana dos Pretos -  Edmeire Exaltação

74

Por mais contraditório que pareça, a obtenção do título de terras por

parte dos santanenses, ao mesmo tempo que tem sido motivo de alegria, tem

também sido motivo de temor.

A euforia e esperança de ter uma vida melhor com a regularização de

suas terras foram substituídas por um misto de medo e constrangimento. Com

a notícia da titulação espalhada pelos arredores da comunidade, os donos de

fazendas vizinhas e grileiros que têm ocupado as terras pertencentes aos

santanenses, começaram a ameaçar o líder da comunidade de morte e a punir

a comunidade com a diminuição de oferta de trabalho. Lamentando a perda de

5 reais por dia por um trabalho árduo na lavoura, aqueles que perderam os

seus empregos têm apontado a recusa dos fazendeiros da área em contratar os

seus serviços, como represália ao fato deles estarem lutando por seus direitos.

Muitos dos moradores de Santana perderam as suas terras, trocando-as por

favores concedidos pelos fazendeiros locais ou como pagamento de dívidas

contraídas com estes.

Gráfico 1 – A quem procura para resolver os conflitos de terra?

Page 81: ENTRE TUMBAS  E SENZALAS: Os  Direitos Remanescidos de Santana dos Pretos -  Edmeire Exaltação

75

Racismo, mobilização política e associativismo

Os dados coletados em Santana permitem não somente inferências

sobre a construção e afirmação da identidade étnica do grupo como também

sobre a percepção que a comunidade tem sobre os padrões das relações raciais

vigentes na sociedade brasileira. Quanto a isto, mais de 80% dos moradores de

Santana disseram acreditar na existência de racismo no Brasil (Gráfico 2).

Inclusive, relatam casos de discriminação ocorridos dentro da própria

comunidade. O caso mais marcante, é contado com muita mágoa por Miguel.

Uma professora, que vinha à escola para dar aulas às crianças, proibiu os

alunos de chamarem-na de “ tia” porque ela não tinha “sobrinhos pretos”.

Gráfico 2 – Você acha que existe discriminação racial no Brasil

Àqueles que disseram acreditar na existência de racismo, foi

perguntado se já foram alguma vez discriminados. Conforme mostra o Gráfico

3, parece ser a escola um espaço potencial para a prática do racismo nas

comunidades negras rurais. É intrigante perceber que 50% daqueles que

observaram ou sofreram discriminação racial dentro da comunidade, a

Page 82: ENTRE TUMBAS  E SENZALAS: Os  Direitos Remanescidos de Santana dos Pretos -  Edmeire Exaltação

76

experimentaram no ambiente escolar, sendo esta praticada por professores que

vêm de fora8.

Gráfico 3 – Onde ocorreu

Fora da Comunidade

25.0%

Em festas da Comunidade

25.0%

Na escola da Comunidade

50.0%

Foi também perguntado aos entrevistados se estes tinham

conhecimento ou contato com organizações do Movimento Negro. Cerca de

90% disseram não conhecer nada do movimento negro. Os 10% que

responderam positivamente coincidiram com as lideranças da comunidade. Por

outro lado, à pergunta se o entrevistado conhecia alguma pessoa negra de

grande importância na história do país, 95% mencionaram o nome de Benedita

da Silva9 (Tabela 1).

8 Conforme já mencionado em capítulo anterior, os professores da escola são designados pela prefeitura

municipal local e vêm de outros municípios vizinhos. Uma das reivindicações de quase todas as

comunidades quilombolas diz respeito ao aproveitamento de pessoas da própria comunidade para darem

aula aos seus filhos. 9 Como mencionado anteriormente por um dos entrevistados, por ocasião das comemorações dos 300

anos da morte de Zumbi, Benedita da Silva esteve visitando a comunidade.

Page 83: ENTRE TUMBAS  E SENZALAS: Os  Direitos Remanescidos de Santana dos Pretos -  Edmeire Exaltação

77

Tabela 1

A maioria dos moradores de Santana não acredita nem em políticos

nem em instituições partidárias (Gráfico 4). Muitos se queixam que durante as

eleições municipais aparecem pela comunidade alguns candidatos prometendo

aumentar a rede de luz, pôr telefones públicos, uma linha de ônibus ligando a

comunidade aos municípios mais próximos, mas os anos passam e nada

acontece.

Gráfico - 4

Você tem simpatia por algum partido político Qual

Conhece alguma organização do Movimento Negro

Sim 10%

Não 90%

Conhece alguma pessoa negra de grande importância

para a história do povo negro no Brasil Quem

Benedita da Silva 95%

Não conhece/Não lembra 5%

Page 84: ENTRE TUMBAS  E SENZALAS: Os  Direitos Remanescidos de Santana dos Pretos -  Edmeire Exaltação

78

Entre as instituições que têm contribuído para a melhoria da

comunidade, a associação de moradores local foi a mais reconhecida pela

opinião de 40.8%. Em ordem de preferência estão as igrejas (15.2%) e a

instituições governamentais (14%). Porém, 30% dos entrevistados disseram

que nenhuma instituição contribui para a melhoria de Santana.(Gráfico 5).

Gráfico 5 - Quais as instituições que têm contribuído para a melhoria da

comunidade

Quando há conflitos entre membros da comunidade, os próprios moradores

fazem os seus arranjos para agir e tomar soluções. Por exemplo, se há um

desentendimento muito sério, com riscos de violência física, os moradores chamam a

polícia de São Joaquim ou Quatis, municípios mais próximos. Em épocas de festas

populares, como medida de prevenção, eles pagam a policiais destes municípios para

fazerem o policiamento (Tabela 2).

Tabela - 2

O que a comunidade faz para resolver os

conflitos entre os seus membros ?

1. “Quando tem briga a

gente separa”

85.7%

2. “A gente paga a polícia

para vir aqui e fazer o

policiamento (em época

de festas)

7.1%

3. Não se mete em briga

nenhuma

7.2%

Total 100.0%

Page 85: ENTRE TUMBAS  E SENZALAS: Os  Direitos Remanescidos de Santana dos Pretos -  Edmeire Exaltação

79

A religião é uma referência de identidade muito forte entre os

moradores de Santana. Todas as pessoas que entrevistamos nasceram e

cresceram na religião católica. Isto é fácil de entender pela própria história

fundante da comunidade. Entretanto, já é possível perceber certa penetração

das religiões evangélicas na comunidade. Dona Olga, filha do S. Sebastião

Francisco ao se converter à Assembléia de Deus resolveu fazer da sua casa um

local de encontro religioso dos novos adeptos. Alguns moradores sentiram-se

traídos por esta decisão de D Olga. A D. Nair, por exemplo, desabafa:

Eu sei que tudo é cristão. Mas aqui é nossa igreja é forte. Agora

veja „fia‟!, todo domingo vem esse povo que a gente não conhece

lá de Quatis pra rezar , rezar não, eles fala orar, na casa dela. E

ficam chamando a gente pra ir lá. Mas ninguém vai. É só ela e os

„fios‟ dela, lá. Sabe aquela cantoria chata. Eu não gosto. Acho

que ninguém aqui gosta.

Gráfico 6 - Religião de Origem e Atual

0

20

40

60

80

100

Religião de Nascimento Religião Atual

Católica

Evangélica

Não sabe

Mesmo com a preocupação da . Nair, a religião católica é predominante

entre os descendentes de escravos de Santana. Do total dos entrevistados,

90.3% dos entrevistados revelaram ter nascido na religião católica. Nota-se no

gráfico 6, a adesão de alguns moradores à igreja evangélica. Por outro lado,

enquanto a religião evangélica é uma novidade e a religião católica manteve a

Page 86: ENTRE TUMBAS  E SENZALAS: Os  Direitos Remanescidos de Santana dos Pretos -  Edmeire Exaltação

80

sua predominância, as religiões de origem africana parecem nunca ter tido

preferência entre os santanenses. Se houve em Santana, em algum tempo, uma

prática marcante de religião africana, os dados aqui colhidos mostram que na

atualidade estas não atraem os membros da comunidade.

Os santos católicos mais venerados na comunidade são Santa Ana, a

padroeira, N. Sra. Aparecida e São Joaquim. Sant'Ana, a padroeira da

comunidade, é o grande ícone sacro da comunidade. Por conta disso, é

comemorada com festas e procissões durante todo o mês de julho10

.

Os cânticos e danças, muito freqüentes no passado da comunidade já

não são mais comuns hoje, principalmente entre os jovens. Poucos deles

sabem que canções de jongo eram cantadas por seus antepassados “por mato e

noites a dentro”. Danças como o calango e o jongo, balançaram os corpos

alegres e apaixonados de muitos que hoje vivem apenas na lembrança da

comunidade como o Seu Candinho e Seu Carreiro.

Gráfico 7 – Você está Satisfeito ou Insatisfeito com :

64%

73%

62%

43%

25%

50%

30%

36%

27%

38%

57%

75%

50%

70%

R enda /Sa lá rio

Tra ba lho

Bens Ma teria is A dquirido s

Sa úde

Educa çã o do s Filho s

C a sa o nde Mo ra

Lug a r o nde Mo ra

0 20 40 60 80 100 120

Sa tisfeito

Insa tisfeito

10 Como demonstra o historiador Robson Martins, cultuar e festejar o dia de Sant‟Anna em 27 de julho

tornou-se uma tradição cultural entre os negros escravos e livres a partir do século XIX. MARTINS,

Robson L. “Em Louvor a „Sant‟Anna‟: Notas sobre um plano de revolta escrava em São Matheus, norte

do Espírito Santo, Brasil, em 1884”. In Estudos Afro-Asiáticos, no. 38, Rio de Janeiro, Universidade

Cândido Mendes, Dezembro 2000.

Page 87: ENTRE TUMBAS  E SENZALAS: Os  Direitos Remanescidos de Santana dos Pretos -  Edmeire Exaltação

81

É pertinente pensar que a extrema pobreza em que vivem hoje as

famílias de Santana justifique o „descuido‟ com a preservação das tradições

culturais da comunidade. Com exceção da educação recebida pelos filhos e

com o lugar onde mora, o gráfico 7, mostra que os entrevistados estão

insatisfeitos com aspectos da vida determinantes na indicação da qualidade de

vida e auto-realização.

O status cultural adquirido com os dispositivos constitucionais

permite que a dimensão das ações simbólicas – assumir uma identidade e ter

uma cultura própria – determine também a dimensão das ações políticas -

organização e poder de demanda. Desta forma, ficou evidente aqui que as

lideranças da comunidade, tentam utilizar o conhecimento da história como um

código de regulação necessário tanto para os mecanismos de autopreservação,

quanto para negociações e trunfos para a comunidade.

Gráfico 8 – O que você faz para se divertir

25%

25%

8,3%

8,3%

33,3%

Joga Futebol

V ai a Quatis

Assiste Televisão

Assiste Tv e escuta r ádio

Não faz nada

0 5 10 15 20 25 30 35

*****

Page 88: ENTRE TUMBAS  E SENZALAS: Os  Direitos Remanescidos de Santana dos Pretos -  Edmeire Exaltação

82

A plantação de aipim do S. Sebastião José Francisco

A criação de porco do S. Sebastião Francisco da Silva

Page 89: ENTRE TUMBAS  E SENZALAS: Os  Direitos Remanescidos de Santana dos Pretos -  Edmeire Exaltação

84

CAPITULO 5

Perfil Socioeconômico dos Moradores de Santana

Quando eu tiver bastante pão

Para meus filhos,

Para minha amada,

Pros meus amigos,

E pros meus vizinhos,

Quando eu tiver

Livros pra ler,

Então eu comprarei

Uma gravata colorida

Larga,

Bonita,

e darei um laço perfeito

e ficarei mostrando

a minha gravata colorida

a todos os que gostam

de gente engravatada.

Gravata Colorida, Solano Trindade

Parte do texto apresentado neste capítulo foi fruto de relatório apresentado ao Instituto de Tecnologia

Social, sob a coordenação de Márcia Maria Borja, em maio de 2001. Aqui cabem agradecimentos à

equipe de campo formada pelos então estagiários Robson Wander Barbosa, Raquel Barreto e Patrícia

Silva.

Page 90: ENTRE TUMBAS  E SENZALAS: Os  Direitos Remanescidos de Santana dos Pretos -  Edmeire Exaltação

85

A pobreza é produzida e reproduzida através da exclusão social e

econômica, de maneira que a distribuição de bens educacionais, sociais e

simbólicos seja estruturalmente desigual e diferenciada. Assim, a pobreza é

moldada pela diferença na aquisição material entre pessoas e grupos, pela

distribuição desigual da propriedade e valorização social1. Discutiremos neste

capítulo a organização socioeconômica encontrada no interior da comunidade

de Santana.

Apesar da riqueza cultural, a comunidade de Santana é extremamente

pobre no que se refere ao acesso a bens materiais e a bens de serviços. Não há

em Santana infraestrutura para nenhum atendimento aos bens de serviços

básicos. Esgotamento sanitário, rede geral de água, telefonia, iluminação

pública satisfatória, pavimentação, transporte, creche, saúde, entre outros,

todos esses são serviços demandados pela comunidade, porém totalmente

ausentes na comunidade. Esta é uma situação que nos força a pensar num

debate difícil, mas de fundamental importância para a comunidade negra, que é

a relação entre etnicidade e cidadania.

Cidadania e Etnicidade

Os termos exclusão social e cidadania passaram a ser utilizados com

mais freqüência pela cultura política a partir da década de 80. Freqüentes em

debates políticos e projetos acadêmicos, estes conceitos agora designavam as

1 ARZABE, Patrícia H. Massa. Pobreza, Exclusão Social e Direitos Humanos: O Papel do Estado,

USP, Programa de Pós-Graduação em Direito, 2000, mímeo.

Page 91: ENTRE TUMBAS  E SENZALAS: Os  Direitos Remanescidos de Santana dos Pretos -  Edmeire Exaltação

86

novas orientações de demandas sociais e de políticas públicas no sentido de

diminuir o distanciamento existente entre uma grande parcela da sociedade

civil e seus direitos, especialmente direitos humanos.

Entre muitas teorias, existem aquelas que preferem acreditar que

pobreza e a exclusão são resultado do modo de relação entre pessoas e grupos2.

Desta forma a situação de desvantagem econômica experimentada por

determinados grupos ocorre por causa do tipo de relações racionalmente

estabelecidas. Estas relações são orientadas por práticas discriminatórias e

mecanismos de exploração econômica, social e cultural. Tais mecanismos se

acham entranhados na sociedade a ponto de serem considerados padrões

normais de relacionamento entre os grupos, dificultando a transformação

social e a emancipação pessoal e coletiva dos grupos submetidos ou

excluídos3.

Os recursos utilizados hoje na sociedade brasileira como a adoção de

ações afirmativas e de políticas compensatórias são necessários como um

paliativo momentâneo, porém, mais importante do que isto, é pensar num

conjunto de políticas públicas que possibilitem a transformação das relações de

poder que têm estruturado a disposição dos diversos grupos étnicos deste país.

Porém, Delmas-Marty bem observa que cidadania não significa “assistência”,

mas “integração à sociedade, com o estatuto de cidadão”. Ou seja, cidadania

não se limita à garantia de meios de sobrevivência, mas sim, cidadania

2 Idem, pg. 15.

3 Idem, pg. 18.

Page 92: ENTRE TUMBAS  E SENZALAS: Os  Direitos Remanescidos de Santana dos Pretos -  Edmeire Exaltação

87

significa uma vivência plenamente com todos os outros de forma igual e

democrática4”.

Dentro do exposto, cabe aqui considerar que a situação de extrema

miséria em se encontram os moradores de Santana aponta para o fato de que a

questão das terras remanescentes não passa simplesmente pela titulação e

preservação de identidade étnica. Esta é também em um desafio à prática de

cidadania e à diminuição da discriminação racial e social porque passam estas

comunidades. Conforme será visto daqui por diante, os remanescentes de

Santana não querem apenas garantir a sua propriedade e guardar a memória do

seu passado. Isto para eles é importante, mas, além disto, eles também

querem ser incluídos nos processos de modernização e de igualdade social

através de melhorias na educação de seus membros, assistência à saúde, e

implantação de projetos de desenvolvimento sustentável e de geração de

emprego dentro da comunidade.

Dentro das características gerais do meio rural brasileiro, estas

comunidades vivem situações tão extremas de limitação das oportunidades

sócio-econômicas as quais, sem resistir a tal situação, muitas comunidades têm

desaparecido, senão pelo extermínio físico de seus membros, pela extrema

pobreza e opressão da cultura dominante5.

4 DELMAS-MARTY, Mireille Trois défis pour un droit mondial. Seuil. Paris, 1998. pg. 45. 5 Segundo Flávio Gomes, “no Brasil, muitos mocambos e quilombos acabaram se transformando, ao

terminar a escravidão, em vilas de camponeses. É possível sugerir também, considerando a escassez de

pesquisas conclusivas sobre este tema, que provavelmente as estratégias em busca de autonomia e a

integração das práticas econômicas e sociais dos quilombos dos escravos nas plantações e da população

livre de cor, tenha ajudado a forjar uma das faces dos campos negros”. “Para matar a Hidra... Op. cit. pg.

23.

Page 93: ENTRE TUMBAS  E SENZALAS: Os  Direitos Remanescidos de Santana dos Pretos -  Edmeire Exaltação

88

Do universo de 20 famílias que compreendem a comunidade de

Santana, 14 foram entrevistadas (74%). Deste total, 43% foram homens e 57%

mulheres (Gráfico 9).

Gráfico 9 – Participação por Sexo Gráfico 10 – Nasceu na comunidade ?

Mulheres são mais incorporadas enquanto novos membros às famílias

de Santana do que homens. Enquanto os homens perfazem 85% daqueles que

nasceram na comunidade, as mulheres respondem por 50%. A maioria das

mulheres é incorporada às famílias de Santana através da relação de casamento

(Gráfico 10). Quanto à idade, esta variou de um mínimo de 18 anos a um

máximo de 75, apresentando uma média de 36 anos para os entrevistados

(Gráfico 11).

Gráfico 11 – Distribuição por Idade

21.4%

14.3%

35.7%

7.1%

21.4%

15 - 19 anos 20 - 29 anos 30 - 49 anos 50 - 64 anos + de 70 anos0

10

20

30

40

Média de idade: 36 anos

Page 94: ENTRE TUMBAS  E SENZALAS: Os  Direitos Remanescidos de Santana dos Pretos -  Edmeire Exaltação

89

Apesar da pergunta sobre cor ter sido feita com base nas categorias

estabelecidas pelo IBGE, uma proporção significativa dos entrevistados fugiu

das alternativas preta e negra, preferindo parda (27%), mulata (22%), e

morena (28.6%) - Gráfico 12.

Gráfico 12 - Qual a sua cor

Porém, percebe-se que os membros de Santana, apesar da visível

uniformidade da cor de pele, estes repetem o mesmo padrão de

autoclassificação dos negros urbanos, utilizando uma gradação de cor com

uma inclinação pela preferência do uso de tons de pele mais claros.

Aqueles(as) que disseram ter a cor parda e morena somam 55.6% dos

entrevistados.

Em relação ao desempenho de atividades econômicas, Sant‟Ana se

caracteriza por ser uma comunidade mista com os entrevistados

economicamente ativos divididos em atividades agrícolas (41.7%) e em

atividades de serviços (58.3%).

Page 95: ENTRE TUMBAS  E SENZALAS: Os  Direitos Remanescidos de Santana dos Pretos -  Edmeire Exaltação

90

Tabela 3 – Ocupação por Gênero

Com papéis marcadamente definidos por sexo, as mulheres em sua

maioria, trabalham como babás, domésticas, e cozinheiras, enquanto os

homens são lavradores (Tabela 3). No momento da realização deste trabalho,

dos 50% que disseram ser lavradores, cerca de 33.3% estavam empregados.

Dos 38,5% dos entrevistados que já moraram fora da comunidade,

60% saíram atrás de empregos nas cidades mais próximas como Quatis e Barra

Mansa. Voltaram porque não se adaptaram ao lugar ou sentiram muitas

saudades da família6 (Tabela 4).

Tabela 4

6 "De onde vem, ao grupo familiar, tal força de coesão? Em nenhum outro espaço social o lugar do

indivíduo é tão fortemente destinado. Um homem pode mudar de país; se brasileiro, naturalizar-se

finlandês; se leigo, pode tornar-se padre; se solteiro, tornar-se casado; se filho, tornar-se pai; se patrão, tornar-se criado. Mas o vínculo que o ata à sua família é irreversível; será sempre o filho da Antônia, o

João do Pedro, o "meu Francisco" para a mãe. Apesar dessa fixidez de destino nas relações de

parentesco, não há lugar onde a personalidade tenha maior relevo. Se, como dizem, a comunidade

diferencia o indivíduo, nenhuma comunidade consegue como a família valorizar tanto a diferença de

pessoa a pessoa." Ecléa Bosi, op. Cit. Pg. p. 425.

Ocupação Homem

%

Mulher

%

Total

%

Lavrador 41.7 8.3 50.0

Babá ----- 10.3 10.3

Doméstica ---- 24.1 24.1

Cozinheira ------ 15.6 15.6

Total 41.7 58.3 100.0

Page 96: ENTRE TUMBAS  E SENZALAS: Os  Direitos Remanescidos de Santana dos Pretos -  Edmeire Exaltação

91

Com um traço típico das áreas rurais pobres, a mobilidade social de

Santana é extremamente lenta. Ao se verificar a herança ocupacional

intergeracional, é nítida a rigidez existente no movimento ascensional entre

pais e filhos. Do total da amostra, 92,3% e 84,6% de pais e mães

respectivamente que eram ou são lavradores, passaram a herança ocupacional

para 50% dos filhos. (Gráfico 13).

Gráfico 13 - Lavradores em Santana

Herança Intergeracional

92,3%84,6%

50%

Pai Mãe Entrevistado0

10

20

30

40

50

60

70

80

90

100

A maior fonte de renda dos entrevistados provém basicamente do

trabalho autônomo (50%). Por outro lado, apenas 14% trabalham com carteira

assinada. Em relação a questões relacionadas a trabalho, a situação de Santana

Por que saiu da comunidade

Para procurar trabalho 60%

Para seguir a família 40%

Por que voltou à comunidade

Por falta de adaptação ao local 60%

Porque perdeu o emprego 20%

Por saudades da família 20%

Page 97: ENTRE TUMBAS  E SENZALAS: Os  Direitos Remanescidos de Santana dos Pretos -  Edmeire Exaltação

92

é preocupante: a proporção de desempregado é de aproximadamente 2 pessoas

por família, na qual um dos desempregados ocupa sempre a função de

provedor econômico (Gráfico 14).

Gráfico 14 – Fonte de Renda

Tr abalhador c/ CTP S

14.0%

Autônom o s/ INS S

58.0%

Aposentados

14.0%

P ensionistas

7.0%

Diar istas

7.0%

A maior parte dos chefes de famílias em Santana (43%) ganha menos

de 1 salário mínimo. Cerca de 14% estavam sem nenhuma renda na época

desta pesquisa e 7% estavam ganhando entre 2 e 3 salários mínimos (Gráfico

15). Um dado preocupante em Santana está relacionado ao trabalho infantil.

Por menos de 1 salário mínimo, adolescentes de 13, 14 e 15 anos já trabalham

nas fazendas vizinhas.

Gráfico 15 – Faixa Salarial

Page 98: ENTRE TUMBAS  E SENZALAS: Os  Direitos Remanescidos de Santana dos Pretos -  Edmeire Exaltação

93

Conforme já dito em capítulo anterior, a única escola existente em Santana só

vai até a 4a. Série do ensino fundamental. Assim, o nível de escolaridade dos

santanenses é muito baixo. Em vista disto, conforme mostrado no Gráfico 16 é

grande o índice de analfabetismo na comunidade.

Gráfico 16 – Nível de Escolaridade

Apesar da precariedade do

ensino, a escola é ainda um

centro de referência

importante na comunidade

de Santana. Reuniões,

encontros e festas

comunitárias são realizados

no prédio escolar. Aliás, esta

é uma característica de quase todas comunidades rurais: a escola torna-se o

centro da comunidade. Por causa disto, alguns planejadores de comunidades

rurais sugerem que a extensão de prestação de serviços públicos em

Analfabeto35,7%

Sem escolaridade14,3%

1º Grau incompleto50,0%

Page 99: ENTRE TUMBAS  E SENZALAS: Os  Direitos Remanescidos de Santana dos Pretos -  Edmeire Exaltação

94

comunidades rurais - postos de saúde, bibliotecas e prédios correlatos - sejam

construídos próximos à escola7.

A alfabetização funcional, segundo critérios da UNESCO, é definida como “o

domínio de habilidades em leitura, escrita, cálculos e ciências, em

correspondência a uma escolaridade mínima de quatro séries completas (antigo

ensino primário)”. Este tem sido o padrão médio de alcance educacional

apresentado pela população brasileira. Em Santana não é diferente. O Gráfico

16 mostra que a comunidade de Santana apresenta graus de escolaridade

significativamente baixos.

Padrão de vida material

É prática do IBGE usar, além dos níveis de renda, a oportunidade de

aquisição material como indicador de alcance social e de satisfação

socioeconômica. Embora saibamos que a simples notificação de posse de bens

materiais duráveis não seja suficiente para medir graus de qualidade e de

satisfação de vida, procuramos seguir este critério do IBGE e verificar os

desejos de consumo e os níveis de acesso a alguns bens materiais, pelos

moradores de Santana. Assim, foi citada uma lista de bens aos entrevistados, e

estes mencionavam aqueles bens que já possuíam ou aqueles que gostariam

de possuir conforme listagem apresentada no Gráfico 17.

7 CARNEIRO, Diniz e Marina Menezes. Organização da Comunidade e Planejamento. Livraria Agir, 3ª

edição, 1974.

Page 100: ENTRE TUMBAS  E SENZALAS: Os  Direitos Remanescidos de Santana dos Pretos -  Edmeire Exaltação

95

Gráfico 17 – Acesso a bens materiais duráveis

4 2 .9 %

7 .2 %

3 8 .5 %

8 4 .6 %

1 0 0 %

1 0 0 %

5 7 .1 %

9 2 .8 %

3 0 .8 %

1 5 .8 %

Rá dio

Fogã o

Te le v is ã o

Ge la de ira

Fre e z e r

Te le fone

0 20 40 60 80 100 120

Pos s u i Nã o Pos s u , m a s gos ta ria de pos s u ir

Conforme Certeau8, com os processos globalizantes dos meios de

informação e comunicação, é possível que atualmente não haja uma

comunidade onde não se encontre uma pessoa que tenha reinventado o seu

cotidiano a partir do consumo de certos bens materiais. Pelo gráfico acima,

percebe-se as variáveis relativas à posse de bens materiais ou ao desejo de

possuí-los. Dos 69,2% que não possuem televisão, 38,5% gostariam de ter um

aparelho enquanto 30,7% disseram não achar importante tê-la em casa.

Evidente que o ideal de alcance material é muito subjetivo, porém, pode-se

diagnosticar os padrões de alcance material e de direitos ao consumo por um

mínimo de acesso possível.

D. Olga, uma das lideranças locais é considerada a pessoa melhor

informada da comunidade: tudo o que a comunidade quer saber sobre notícias

da cidade, novelas, entre outras, procura a D. Olga:

8 Op. Cit. Pg. 205, vol1.

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“ Olha, pra mim a televisão é a melhor coisa que esses homens já

inventou. Eu tive uma preta e branca por muito tempo. Agora eu

tenho uma colorida. Juntei, juntei uns trocados, e aí comprei de

uma conhecida lá de Quatis. É usada, mas serve.

Problemas e demandas da Comunidade

Paralelamente à preocupação com os aspectos físicos e culturais das

comunidades tradicionais negras, procuramos com este trabalho perceber

outras questões transversais relacionados ao exercício pleno do direito de

cidadania.

A partir de uma escala utilizando as categorias, Muito Grave, Grave,

Pouco Grave e Sem Gravidade, procuramos, além de identificar, hierarquizar

os problemas apontados pela comunidade de Santana.

Gráfico 18 – Educação

Falta de professores adequados

Falta de material escolar

Falta de ensino fundamental

Falta de ensino médio

Falta de pré-escolar

Falta de creche

Falta de ensino profissionalizante

0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 100

Muito Grave Grave Pouco Grave Sem Gravidade

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Mais de 80% dos entrevistados disseram que apenas o ensino fundamental

incompleto – a escola só ensina até à 4ª série - não atende aos anseios das famílias

que querem preparar os seus filhos para um futuro melhor. Assim, ter os cursos

fundamental e médio oferecidos a todos da comunidade e professores adequados à

cultura local são as principais reivindicações relacionadas à educação (Gráfico

18).

Gráfico 19 - Lazer

Falta de praças c/brinquedos

Falta de quadras de esportes

Falta de campo de futebol

Falta de locais p/ bailes

0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 100

Muito Grave Grave Pouco Grave Sem Gravidade

Quanto ao lazer, a comunidade sente necessidade de ter principalmente um

campo de futebol bem equipado (90%), um local para a realização de festas, bailes

e shows (80%), seguidos de uma praça com brinquedos para crianças e uma

quadra de esporte para os adolescentes (Gráfico 19).

Gráfico 20 – Saúde da Comunidade

Distância de hospitais

Falta de medicamentos

Falta de médicos na comunidade

0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 100

Muito Grave Grave

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Segundo 90% dos entrevistados a distância dos hospitais e a absoluta

ausência de médicos constituem um problema muito grave na comunidade. A falta de

medicamentos é lembrada por 79,2% dos entrevistados como muito grave e por 6,3%

como grave (Gráfico 20). Se alguém adoece e necessita de cuidados médicos de

urgência só terá pronto-atendimento indo ao centro de Quatis ou Barra Mansa,

municípios que ficam distantes cerca de 1 hora de Santana.

Gráfico 21 – Doenças mais freqüentes:

Vermes entre crianças

Anemia

Doenças cardiacas

Diabetes

0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 100

Muito Grave Grave Pouco Grave Sem Gravidade

Penumonia e verme entre crianças, assim como anemia e doenças

cardíacas entre os adultos foram as doenças citadas como as mais freqüentes

na comunidade de Santana (Gráfico 21).

O entendimento do significado de justiça deve ir muito além do seu

sentido judicial. Desta forma, direitos iguais de acesso a oportunidades

socioeconômicas e melhores condições de vida fazem também parte da

dimensão ética do quw é justo e humano.

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Os remanescentes de Santana não querem apenas garantir a sua propriedade e

guardar a memória do seu passado. Isto para eles é muito importante, mas, para além

disto, eles também querem ser incluídos nos processos de modernização e de

igualdade social através de melhorias da educação de seus membros, assistência à

saúde, e implantação de projetos de desenvolvimento sustentável e de geração de

renda e emprego dentro da comunidade.

Por outro lado, direitos humanos não significam simplesmente „assistência

social‟, mas, inclusão à sociedade com o estatuto de cidadão para todos.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

As „remanescentes‟ comunidades negras no Brasil são reveladoras de uma

importante experiência da diáspora africana. Assim, comunidades negras como

Santana, têm engendrados no seu cotidiano pontos particulares da sua constituição

histórica que vão além da experiência escravista. A realidade destas comunidades

deve ser compreendida, então, a partir dos mecanismos de constituição e preservação

das suas existências, utilizados por seus membros. De que maneira o status de

patrimônio cultural tem afetado o dia-a-dia destas comunidades? Quais vantagens

elas têm tido com a medida constitucional de titulação?

A textura da vida cotidiana de Santana é ao mesmo tempo densa e leve. As

suas práticas coletivas diárias definem a densidade do cotidiano. Michel Certeau

distingue bem os significados entre estratégias e táticas1. Neste sentido, estratégias

são institucionais e necessitam de espaço. Já as táticas, são temporais e individuais;

podem operar livres de ideologias. Em Sant'Ana, práticas e táticas se confundem.

O contato com a comunidade nos permitiu observar as rotinas individuais e

coletivas, assim como as práticas e estratégias empregadas na arte da sobrevivência.

Hábitos, (des)esperança, alegrias, tristezas, e estratégias inventivas do dia-a-dia,

revelaram como os entrevistados negociam a vida cotidiana. Entre falas e atitudes, as

invenções efêmeras do cotidiano quilombola, revelam como as estratégias de

sobrevivência podem se transformar em arte de viver.

1 Op. Cit. Pg. 182. vol. 1

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É na volta ao passado que estas comunidades têm tentado redimensionar o seu

futuro. Para isto, seus membros utilizam a origem histórica e o espaço territorial

como cenários de uma tradição cultural usada para atender a uma agenda política de

legitimação de direitos2.

Foi observado nesse trabalho que as lideranças de Santana têm consciência

de que as injustiças sofridas por seus antepassados não serão reparadas apenas pela

providência de uma igual distribuição do capital social e econômico, mas também,

pelo reconhecimento do capital cultural e simbólico que a distingue das demais

comunidades.

Como foi atestado por vários autores aqui apresentados, o conceito de

quilombo, preso a um entendimento jurídico do passado, não tem atendido

adequadamente à diversidade histórica de formação e organização das comunidades

negras rurais, congelando assim a identidade destas em um único conceito. Um

impedimento à aplicação da lei é o fato do significado desta está preso ao conceito de

quilombo tal como este era compreendido pela legislação colonial. É neste ponto que

encontramos a fragilidade da lei e a maior dificuldade para se efetivar a titulação

final de muitos territórios negros. Vale aqui lembrar Hall, quando este conclui que as

identidades são reconstruídas constantemente. Estas não são estáveis nem singulares.

Pelo contrário são múltiplas, fragmentadas, e se intercedem nos discursos, práticas e

posturas antagônicas3.

Um olhar sobre Santana, nos permitiu descobrir questões muito

interessantes. Uma delas foi perceber que o estudo sobre comunidades negras pode

2 Em Culturas Híbridas, Nestor Canclini analisa como através da evocação e dramatização do passado, muitas

culturas têm assegurado os seus direitos. SILVA, Valdélio Santos. “Rio das Rãs à luz da noção de quilombo”. Revista Afro-Ásia, 23(1999), pp.267-295.

3 (Hall, Gilroy,1993))

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quebrar um tabu do imaginário político-social brasileiro de não admitir a

constituição de fronteiras étnicas negras na nossa sociedade. Santana, assim como

outras comunidades negras, mostram essa existente realidade.

Castells faz uma diferença entre o que ele classifica de identidade de

resistência e identidade de projeto. A primeira seria um tipo de identidade criada por

atores sociais para fazerem frente a condições de desvantagem em relação à cultura

dominante. A identidade de projeto por outro lado, seria aquela identidade criada por

atores sociais que utilizam qualquer material cultural para redefinir a sua posição na

sociedade. Pode-se dizer que a identidade quilombola atende às duas definições dadas

por Castells4. Motivadas por uma vontade política, essas comunidades têm

reconfigurado a dimensão dos estudos étnicos, permitindo assim novas compreensões

sociológicas do negro no Brasil.

4 CASTELLS, Castells, volII. O Poder da Identidade, Paz e Terra, 1997. pg. 189.

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E N T R E V I S T A D O S

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D. NAIR, 78.

“Essas histórias de quilombo quem sabia muito era

Candinho1. Eu não sei nada, o que eu falei é pouco. Só

ouvia muito ele contar. Mas o Candinho se foi. Mas

tem morrido é muita gente antiga daqui, sabe? Daqui

um dia sou eu. Mas eu gosto muito de viver aqui, sabe

„fia‟. Sou muito feliz aqui” (gargalhadas).

“Eu casei com 16 anos e nunca saí daqui. Eu boto fé

que aqui ainda vai voltar pro tempos de antigamente.

Muita comida, muita alegria! Quem sabe né, com esse negocio aí de terra, de

quilombo, a gente não volta ao que era antes. Alguém tem que pedir pra esses

fazendeiros tirar os bois do quintal da gente. Aí a gente pode plantar sossegado. Mas

quem vai falar...?! Eu queria mesmo era ver essa igreja bem bonita, pintada. Acho que

esse telhado vai cair daqui um dia na cabeça da gente. Onde nós vai rezar? Embaixo

da árvore né? (gargalhadas). Eu sou muito feliz aqui!

1 Marido falecido da D. Nair.

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S. FRANCISCO, 80.

“Eu sou de Minas. Vim pra essas bandas de

cá em 20. Eu tinha 17 anos. A fazenda onde

eu trabalhava faliu e aí fiquei desempregado

lá em Minas. Eu tinha uns amigos que veio

pra cá plantar café e cana e diziam que aqui

era muito bom, que tinha uma terras de

escravos que era muito boa. Desde lá de

Minas que escutava falar disso aqui. Mas

nunca pensei que um dia eu ia ganhar um

pedaço de terra aqui. Tinha uma menina que

eu gostava. Ela tinha 13 anos, eu 17. Aí

resolvi vim pra cá trabalhar com meus

amigos. Falei com o pai dela, nos casemos e viemos pra Quatis, trabalhar na

fazenda do Ermo. Foi minha única mulher. Mas aqui era muito alegre! Era festa de

Santana, São João, Santo Antônio e a gente cantava e dançava jongo, cana verde,

calango a noite inteira. Eu trabalhava e morava na fazenda vizinha mas eu gostava

muito de vim aqui na terra dos escravos. Só foi lá em 1960 que eu vim aqui e pedi

um pedaço de terra pro padre Inácio e fiquei morando. Eu plantava muito. Ainda

planto hoje. Ttoda safra eu dava um saco de cada coisa que colhia pro padre. Era

café, laranja, banana, aipim. Eu plantava muito. Mas hoje só tem a festa de Santana

e a procissão de 1o. De Maio. Os mais velhos foi morrendo e os mais novo não têm

gosto com nada que foi da gente”.

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MIGUEL, 37 (presidente da Assoc.Moradores).

“Cê sabe por que eu tô nessa luta

de titular as terras dos

quilombos? Só pensando nas

crianças daqui, nas minhas filhas.

Tenho 3. Essas terras é deles ,

ninguém é de tomar! Assim que

eu tiver oportunidade, eu vou

falar com alguém importante que

possa fazer algo por nós aqui. Eu

tenho vontade de arranjar um dinheiro, um bom dinheiro e comprar

dois trator aqui pra todo mundo. Adubo, semente. Essa terra é boa

pra café e feijão. É só plantar que cresce. Ninguém ia precisar mais

trabalhar na fazenda dos outros. Era cercar e plantar. Mas isso

inda vai acontecer, se Deus quiser!

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ISAEL, 30, Vice-presidente da Associação.

“ Eu queira passar uns tempos fora daqui.

Já morei no Rio, lá em S. Gonçalo e gostei

muito. Foi lá que aprendi a ler. Chegava

do trabalho e ia pra uma escola de adultos.

Como eu gostava! Sei ler e sei escrever.

Aqui as crianças aprendem mais do que os

adultos por que têm escola. Se no tempo

de criança tivesse escola aqui, com certeza

hoje eu não estava desempregado. A minha

mulher me chama de preguiçoso porque eu

não quero trabalhar capinando aí nessas fazendas. Mas eu não quero mesm!

Eu queria ser auxiliar de escritório. Sentar numa mesa, escrever, fazer

cartas. Deve ser um trabalho muito bom! Eu gosto daqui, mas acho que sou

mesmo é gente de cidade grande. Gosto de ver aquela gente toda andando

pra lá e pra cá!”

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D. OLGA, 49.

“Eu não gosto dessa briga por causa de

terra! Dá sempre confusão feia. Tenho

muito medo porque meu irmão tá metido

nisso aí. Que adiant? Fica todo mundo

desempregado. Na minha casa meus filhos

tá tudo trabalhando. Sabe por que?. Eu

considero todo mundo aqui. O Walter aqui

da fazenda vizinha, se tiver alguém doente

aqui e eu chamar a qualquer hora da noite

ele vem e leva pra Quatis. Por isso que eu não quero arrumar confusão. Quem

sai perdendo é nós mesmos. O Miguel não arranja nem pra capinar... tem

mulher e filho!. O Isael também. Eu pra mim cada um ficava com seu lote e

deixava o resto pra lá. Eu não quero briga porque quando a gente precisa, não

aparece ninguem da cidade não, são os vizinhos daqui mesmo que ajuda a

gente”.

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