cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

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RENATA MIRIAN ALVES CEMITÉRIOS ENTRE TUMBAS E ESQUECIMENTO UM PATRIMÔNIO À SOMBRA DA MEMÓRIA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS MONTES CLAROS Junho/2014

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Page 1: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

RENATA MIRIAN ALVES

CEMITÉRIOS

ENTRE TUMBAS E ESQUECIMENTO UM PATRIMÔNIO À SOMBRA DA MEMÓRIA

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS MONTES CLAROS

Junho/2014

Page 2: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

RENATA MIRIAN ALVES

CEMITÉRIOS ENTRE TUMBAS E ESQUECIMENTO UM PATRIMÔNIO À

SOMBRA DA MEMÓRIA

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade Estadual de Montes Claros como requisito para a obtenção do título de Mestre em História.

Área de concentração: História Social

Linha de Pesquisa: Cultura, Relações Sociais e Gênero

Orientador(a): Profa. Dra Jeaneth Xavier de

Araújo

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS

MONTES CLAROS Agosto/2014

Page 3: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

A474c

Alves, Renata Mírian.

Cemitérios [manuscrito] : entre tumbas e esquecimento um

patrimônio à sombra da memória / Renata Mírian Alves. – Montes

Claros, 2014.

218 f. : il.

Bibliografia: f. 209-214.

Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Montes Claros -

Unimontes, Programa de Pós-Graduação em História/PPGH, 2014.

Orientadora: Profa. Dra. Jeaneth Xavier de Araújo.

1. Cemitérios. 2. Patrimônio. 3. Memória social. 4.

Representações sociais. 5. Imaginário coletivo. I. Araújo, Jeaneth

Xavier de. II. Universidade Estadual de Montes Claros. III. Título. IV.

Título: Entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra da

memória

Catalogação: Biblioteca Central Professor Antônio Jorge

Page 4: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

RENATA MIRIAN ALVES

CEMITÉRIOS ENTRE TUMBAS E ESQUECIMENTO UM PATRIMÔNIO À SOMBRA

DA MEMÓRIA

Aprovada em _______de_____________de________.

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________

Profa. Dra. Jeaneth Xavier de Araújo Orientador (Universidade Estadual de Montes Claros – Unimontes)

____________________________________________

Profa. Dra. Regina Célia Lima Caleiro Titular (Universidade Estadual de Montes Claros – Unimontes)

____________________________________________ Profa. Dra. Marcelina das Graças Almeida

Titular (Universidade Estadual de Minas Gerais – UEMG)

Montes Claros 2014

Page 5: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

À minha família, em especial à memória de meus amores: meus avós Maria da Luz e Zé Pequeno e à memória do meu pequeno anjo, João Gabriel.

Page 6: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

AGRADECIMENTOS

―Solidariedade não se agradece. Alegra-se!‖

Mesmo partilhando da ideia acima, proferida pelo sociólogo bocaiuvense Herbert de Souza (Betinho), não poderia me furtar ao dever de agradecer. E com alegria agradeço

A Professora Jeaneth Xavier de Araújo pela orientação e encaminhamentos enquanto professora do Programa de Pós-Graduação em História da Unimontes, pela força e paciência para com minhas deficiências e por chorar comigo quando a morte veio destroçar a minha alma. Se antes a conhecia e admirava a competência profissional dela, passei a conhecer e a admirar sua sensibilidade e seu coração amoroso. Obrigada!

A Universidade Estadual de Montes Claros pela importante iniciativa de trazer à nossa região a oportunidade de crescimento intelectual.

A Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais pela concessão de afastamento das minhas atividades docentes para dedicação ao curso de Mestrado.

Os professores do Mestrado, pelo apoio e referências que contribuíram para o desenvolvimento das pesquisas no Programa. Em especial agradeço os professores Renato Dias da Silva e Laurindo Mékie pelas palavras de conforto e solidariedade no momento de dor diante da morte de meu filho.

Os Professores Franscino de Oliveira Silva e Regina Célia L. Caleiro, pelas contribuições no Exame de Qualificação e a esta também pela atenção e empréstimo de obras de referência para a pesquisa e por colaborar na banca de defesa.

A Professora Marcelina das Graças de Almeida, da Universidade Estadual de Minas Gerais, pelos materiais, apontamentos e simpatia e pela participação na banca de defesa.

A Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais pela oportunidade de partilhar de pesquisas nesse campo tão vasto, apesar de ainda pouco explorado. Em especial agradeço a Elisiana Trilha de Castro e Clarissa Grassi pela gentileza em responder meus e-mails, compartilhando seus conhecimentos e, em diálogos pertinentes, apontarem nortes para uma melhor compreensão do tema proposto.

Os amigos e colegas do mestrado, em especial Juliano pela solidariedade incondicional, seja nas reflexões sobre conceitos comuns em nossa pesquisa, seja nas contribuições técnicas a mim dispensadas. Estendo também esse último aspecto a Thiago Pereira. A estes e aos amigos João Augusto, Carlos André, Patrícia e Rozalina sou agradecida pela torcida e pelo carinho para comigo. O meu amigo Irineu, pelas palavras de conforto e orações no momento em que o meu coração fora dilacerado pela dor de perder uma parte de mim e, ainda assim, ter que seguir em frente, o meu afetuoso abraço de agradecimento. Os meus amigos e colegas de trabalho que torceram e torcem por mim, incentivando-me e acreditando em minhas possibilidades.

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A todos que me ajudaram na pesquisa e coleta de documentos, bem como na árdua tarefa (para uma leiga nesses assuntos, como eu!) de utilizar dos recursos e tratamento dos arquivos fotográficos e digitais.

A todos os meus entrevistados que abriram o baú de suas memórias e emoções, e imprimiram a essa pesquisa a vivacidade de suas histórias e imaginários, colaboradores que disponibilizaram imagens, seu tempo e suas lembranças para que o trabalho refletisse o modo como a morte, os rituais e os espaços fúnebres se constituem e se representam na história da cidade de Bocaiuva.

A minha família ―Alves/Reis/ Siqueira‖ pela confiança e torcida para a realização desse desafio, compreendendo minhas ausências, tolerando com paciência e amor meus momentos de estresse e, especialmente, dando-me forças para continuar, não só a pesquisa, mas continuar vivendo quando a morte me fez crer que nada mais fazia sentido. Em especial agradeço a minha mãe pelo exemplo de força e fé, os meus irmãos Robson, Ronan e Rômulo pela torcida e carinho e as minhas cunhadas Vânia e Gal por se desdobrarem para me acompanhar e apoiar no momento mais difícil de minha vida.

A Welson, agradeço o companheirismo e a torcida.

A minha filha Eugênia Luz, minha maior e melhor produção, por tudo e por me nutrir do amor que me mantém de pé.

Ao meu anjo, João Gabriel – minha estrelinha – que num lampejo trouxe mais luz à minha vida e ainda que me doa a sua partida, agradeço por me permitir a graça e a honra de ser sua mãe. ―Amor além da vida, para sempre!‖

A Deus, pela vida, pela luz.

Page 8: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

RESUMO

Considerando a atual problemática da preservação do patrimônio cultural em sua relação com a memória

social, este trabalho procura compreender, a partir da perspectiva da História Cultural, as representações sociais e os imaginários em torno da morte, dos rituais e das práticas fúnebres, bem como dos lugares de ocultação do corpo morto. O mote inicial desta pesquisa se deu a partir da demolição dos cemitérios centrais da cidade de Bocaiuva, localizada no norte de Minas Gerais, a saber, o cemitério da Saudade e o

cemitério do Bonfim. Com o intento de compreender o posicionamento dos moradores da cidade em relação ao processo em foco, enveredamos, no decorrer e ao final da pesquisa, por uma abordagem mais global, rastreando permanências e mudanças em relação ao imaginário coletivo e as representações sociais em torno da morte. Nosso objeto de estudo foram os discursos, materializados em relatos, entrevistas, ações e práticas dos moradores da cidade, bem como dos gestores públicos que levaram a

cabo o processo de demolição dos cemitérios centrais e idealizaram um novo ordenamento para as práticas fúnebres e local de sepultamento.

PALAVRAS-CHAVE:Cemitérios, patrimônio, memória social, representações sociais, imaginário coletivo.

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ABSTRACT

Considering the current issue of the preservation of cultural heritage in its relation to social memory, this work seeks to understand from the perspective of cultural history, social representations and the imaginary surrounding death, rituals and burial practices and places concealment of the dead body. The initial theme of this research took place from the demolition of the central city cemeteries Bocaiuva, located in northern Minas Gerais, namely da Saudade cemetery and the cemetery of Bonfim.Aiming to understand the position of city residents regarding the process in focus, we set, during and at the end of the survey, for a more comprehensive approach, tracing continuities and changes in relation to the collective imagination and the social representations about death. Our object of study were the speeches, materialized in reports, interviews, practices and actions of city residents as well as the government, who carried out the demolition process of the central cemeteries and devised a new system for funeral practices and burial place KEYWORDS: Cemeteries, equity, social memory, social representations, collective imagination.

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ABEC – Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais

CODEMA – Conselho Municipal de Meio Ambiente

CODEPAC – Conselho Deliberativo do Patrimônio Artístico e Cultural de

Bocaiuva SAAE – Serviço Autônomo de Água e Esgoto

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 Mapa: Município de Bocaiúva. Fonte: IBGE (2005) 32

Figura 2 Foto: Antiga Matriz do Senhor do Bonfim, num dia de Festa do 34

padroeiro.

Figura 3 Matriz do senhor do Bonfim na atualidade (2014). 34

Figura 4 Matriz do senhor do Bonfim em noite do Mastro em 34 homenagem ao padroeiro no mês de julho de 2013.

Figura 5 Vista da Avenida Francisco Dumont: Uma das 35

―Entradas‖ da cidade.

Figura 6 Livro de assentos de óbitos do arraial do Bonfim – século XIX 62

Figura 7 Livro de assentos de óbitos do arraial do Bonfim – século XIX 62

Figura 8 e 9 Túmulo no Cemitério do Bonfim (2011). 64

Figura 10 e 11 Fotografias no cemitério do Bonfim em Bocaiuva, fev. 2012. 64

Figura 12 Foto: Túmulo no cemitério do Bonfim em Bocaiuva 65

Figura 13 Foto: Túmulo no cemitério do Bonfim em Bocaiuva 65

Figura 14 Foto: Túmulo no cemitério do Bonfim em Bocaiuva 66

Figura 15 Foto: Túmulo no cemitério do Bonfim em Bocaiuva 66

Figura 16 Foto: Túmulo no cemitério Parque Santa Lúcia em Bocaiuva. 68

Figura 17 Foto: Túmulo no cemitério Parque Santa Lúcia em Bocaiuva. 69

Figura 18 Foto: Túmulo no cemitério Parque Santa Lúcia em Bocaiuva. 70

Figura 19 Foto: Túmulo no cemitério Parque Santa Lúcia em Bocaiuva. 70

Figura 20 Foto: Túmulo no cemitério Parque Santa Lúcia em Bocaiuva. 71

Figura 21 Foto: Túmulo no cemitério Parque Santa Lúcia em Bocaiuva. 72

Figura 22 Foto: Túmulo no cemitério Parque Santa Lúcia em Bocaiuva. 72

Figura 23 Foto: Túmulo no cemitério Parque Santa Lúcia em Bocaiuva. 73

Figura 24 Foto: Túmulo no cemitério Parque Santa Lúcia em Bocaiuva. 74

Figura 25 Foto: Túmulo no cemitério Parque Santa Lúcia em Bocaiuva. 75

Figura 26 Foto: Túmulo no cemitério Parque Santa Lúcia em Bocaiuva. 76

Figura 27 Foto: Túmulo no cemitério Parque Santa Lúcia em Bocaiuva. 78

Figura 28 Foto: Túmulo no cemitério Parque Santa Lúcia em Bocaiuva. 79

Page 12: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

Figura 29 Foto: Túmulo no cemitério Parque Santa Lúcia em Bocaiuva. 80

Figura 30 Foto: Túmulo no cemitério Parque Santa Lúcia em Bocaiuva. 80

Figura 31 Foto: Túmulo no cemitério Parque Santa Lúcia em Bocaiuva. 81

Figura 32 Foto: Livro de assentos de óbitos da Matriz de santo Antônio De 98 Itacambira – De 1779 a 1807

Figura 33 Foto: Livro de assentos de óbitos da Paróquia do Senhor do Bonfim. 105 Século XIX

Figura 34 Foto: Livro de assentos de óbitos da Paróquia do Senhor do Bonfim. 105 Século XIX

Figura 35 Foto: Livro de assentos de óbitos da Paróquia do Senhor do Bonfim. 106 Século XIX

Figura 36 Foto: Livro de assentos de óbitos da Paróquia do Senhor do Bonfim. 106 Século XIX

Figura 37 Foto: Livro de assentos de óbitos da Paróquia do Senhor do Bonfim. 107 Século XIX

Figura 38 Foto: Livro de assentos de óbitos da Paróquia do Senhor do Bonfim. 108 Século XIX

Figura 39 e 40 Foto: Livro de assentos de óbitos da Paróquia do Senhor do Bonfim. 109 Século XIX

Figura 41 Foto: Livro de assentos de óbitos da Paróquia do Senhor do Bonfim. 110 Século XIX

Figura 42 Foto: Livro de assentos de óbitos da Paróquia do Senhor do Bonfim. 112 Século XIX

Figura 43 Foto: Registro mortuário datado de 1923. 119

Figura 44 Foto: Verso da fotografia datada de 1923. 120

Figura 45 Foto: Registro mortuário datado da década de 1960. 122

Figura 46 Foto: Registro mortuário datado de1951. 123

Figura 47 Foto: Registro mortuário datado de 1956. 126

Figura 48 Foto: Registro mortuário datado de 1972. 128

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Figura 49 Foto: Verso da fotografia datada de 1992. 130

Figura 50 Foto: Registro mortuário datado de 1992. 130

Figura 51 Foto: Verso da fotografia datada de 2012. 130

Figura 52 Foto: Registro mortuário datado de 2012. 131

Figura 53 Foto: Flores depositadas junto ao cruzeiro no antigo cemitério do Bonfim 143 em 02 de novembro de 2012

Figura 54 Foto: Imagem do antigo Cemitério do Bonfim já em processo de 150 demolição. Datada de 2012.

Figura 55 Foto: Detalhe adorno no muro do cemitério do Bonfim. 150

Figura 56 Foto: Imagem do espaço do antigo cemitério do Bonfim. Datada de 156 2013.

Figura 57 Foto: Vista panorâmica da quadra 1. Cemitério Santa Lúcia em 169 Bocaiuva.

Figura 58 Foto: Quadra 1 Túmulo: Sem identificação do número. Cemitério Santa 169 Lúcia em Bocaiuva.

Figura 59 Foto: Quadra1 Túmulo: sem identificação do número Cemitério Santa 170 Lúcia em Bocaiuva.

Figura 60 Foto: Quadra 2 Túmulo : Sem identificação do número Cemitério Santa 172 Lúcia em Bocaiuva.

Figura 61 Foto: Quadra 03 Túmulo 378. Cemitério Santa Lúcia em Bocaiuva. 174

Figura 62 Foto: Quadra 03(pública). Túmulo 369 Cemitério Santa Lúcia em 175 Bocaiuva.

Figura 63 Foto: Quadra 03 túmulo 361 Cemitério Santa Lúcia em Bocaiuva. 176

Figura 64 Foto: Quadra 03. Cemitério Santa Lúcia em Bocaiuva. 177

Figura 65 Foto: Quadra 4 .Túmulo :Sem identificação do número . Cemitério Santa 178 Lúcia em Bocaiuva.

Figura 66 Foto: Quadra 5 .Vista ampliada. Cemitério Santa Lúcia em Bocaiuva 179

Figura 67 Foto: Vista geral da quadra 6 parte 1 de frente. Cemitério Santa Lúcia 181 em Bocaiuva.

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Figura 68 Foto: Túmulo de Júlia Leite, morta em 2012 e enterrada na Fazenda 185 Corguinho – município de Bocaiuva.

Figura 69 Foto: Túmulos de dois recém-nascidos enterrados na Fazenda Corguinho 186 – município de Bocaiuva, mortos em 1992.

Figura 70 Foto: Túmulo do Sr Antônio Leite. Fazenda Cedro – Município de 188 Bocaiuva

Figura 71 Foto: sepultura de filho do Sr. Antônio Leite. Fazenda Cedro – 189 Município de Bocaiuva.

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1 Levantamento de assentos do livro de óbitos do séc XIX da Paróquia do 102

Senhor do Bonfim de Bocaiúva-MG

Tabela 2 Levantamento dos túmulos da quadra 1 do cemitério Parque Santa 168

Lúcia- Bocaiúva-MG

Tabela 3 Levantamento dos túmulos da quadra 2 do cemitério Parque Santa 171

Lúcia- Bocaiúva-MG

Tabela 4 Levantamento dos túmulos da quadra 3 do cemitério Parque Santa 173

Lúcia- Bocaiúva-MG

Tabela 5 Levantamento dos túmulos da quadra 4 do cemitério Parque Santa 177

Lúcia- Bocaiúva-MG

Tabela 6 Levantamento dos túmulos da quadra 5 do cemitério Parque Santa 178

Lúcia- Bocaiúva-MG

Tabela 7 Levantamento dos túmulos da quadra 6 do cemitério Parque Santa 180

Lúcia- Bocaiúva-MG

Tabela 8 Resumo das solicitações de missas por intenções na Paróquia do senhor 191

do Bonfim no mês de novembro de 2013

Tabela 9 Resumo das solicitações de missas por intenções na Paróquia do senhor 193

do Bonfim no mês de dezembro de 2013

Tabela 10 Resumo das solicitações de missas por intenções na Paróquia do Sagrado 194

Coração de Jesus no mês de novembro de 2013

Tabela 11 Resumo das solicitações de missas por intenções na Paróquia do Sagrado 196

Coração de Jesus no mês de dezembro de 2013

Page 16: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

Sumário INTRODUÇÃO

CAPÍTULO 1 – 1.1.

1.2.

17

DA VIDA FINITA À MORTE PLENA: PERGUNTAS, 31 ANGÚSTIAS E RESPOSTAS ACERCA DA MORTE.

Memento mori: filosofias, teologias, arte, representações e imaginário 41

Concepções Escatológicas: no passado como hoje, visões do paraíso e do inferno.

43

1.2.1. Escatologias ao longo da ―História‖: linhas gerais 47

1.2.1.1. Escatologias ―primitivas‖ 47

1.2.1.2. Escatologias do eterno retorno 48

1.2.1.3. A escatologia judaico-cristã 50

1.2.1.4. A escatologia apocalíptica: Permanências e rupturas 53

1.3. Epitáfio: inscrição de mentalidades 56

CAPÍTULO 2 DO CAMPO SANTO AOS CEMITÉRIOS PARQUE: O 83

SAGRADO, O PROFANO E O LUGAR DE MEMÓRIA

2.1. Mors ultima ratio : por uma teoria das representações e do imaginário 86

sobre a transcendência

2.1.1. O Imaginário como objeto de história 87

2.2. Viver e morrer no Bonfim nos séculos XVIII e XIX 97

Page 17: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

2.3. Fotografar o morto: a imagem que apaga da memória a

lembrança. 113

CAPÍTULO 3 A MORTE EM BOCAIUVA: DO CAMPO SANTO AOS 134

CEMITÉRIOS PARQUE – O SAGRADO, O PROFANO

E A MEMÓRIA QUE RESISTE

3. A escatologia, a morte e a destinação do corpo morto 134

3.1 A MORTE DANDO LUGAR À VIDA – Imaginários e 142

discursos acerca da demolição do cemitério do Bonfim de

Bocaiuva-MG

3.1.2. Notas sobre o Sagrado e o Profano 144

3.1.3. O processo, uma narrativa. 147

3.1.4. O discurso do poder público

151

3.1.5 Discursos como materialidade do imaginário: o que pensam 154

os moradores

3.2 Cemitérios: o solo sagrado da existência 160

3.2.1 Cemitério Parque Santa Lúcia em Bocaiuva –

162 transformações e permanências

182

3.2.2 Os cemitérios particulares

Page 18: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

3.3 - A oração que abranda o purgatório e abre as portas do céu 189

Considerações 204

Finais

Fontes E 207

bibliografia

Anexos 213

Page 19: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

17

Introdução

Esta dissertação é fruto de uma inquietação pessoal e de uma reflexão

enquanto profissional do ensino de História. Embora minha graduação tenha sido em

Ciências Sociais, a História sempre me cativou, talvez porque essa disciplina cultive a

memória como combustível que resguarda uma referência, uma identidade. Nesse

sentido, a História e a Memória são fios de um mesmo tecido. Ou seja, História e

memória tem o poder de, como narrativas do passado, presentificar um tempo passado,

por meio das representações que possibilitam a manifestação e percepção do

imaginário, revelando as conexões entre as temporalidades. Não se trata de recuperar o

passado, tal qual ele foi em sua totalidade, já que este é irrecuperável, mas sim de

entendê-lo como embrião de imaginário(s) que, no presente, apresenta-se e se revela nos

discursos e imagens que, por sua vez, identificam e referenciam uma coletividade.

Segundo Lucília Neves Delgado

O passado apresenta-se como vidro estilhaçado de um vitral antes composto por inúmeras cores e partes. Buscar recompô-lo em sua integridade é tarefa impossível. Buscar compreendê-lo através da análise dos fragmentos, resíduos, objetos biográficos e diferentes tipos de documentação e fontes é desafio possível de ser enfrentado. À História e à memória compete empreender tal tarefa (DELGADO,2010,p. 36).

É nessa perspectiva que se apresenta a presente pesquisa que é também o

amadurecimento dos estudos de uma temática que venho desenvolvendo desde a pós-

graduação Lato Sensu, em Ciências Sociais, com a monografia Bocaiuva: um cenário

épico resguardado em memórias, orientada pela Professora Geralda Vânia B. Carneiro.

O título por si só já indica, para além da questão da memória, a preocupação em relação

ao patrimônio cultural da cidade, especialmente em função da descaracterização do

cenário e paisagem urbana com as constantes intervenções e, em alguns casos, a

completa destruição de seus equipamentos culturais, marcos e referências de origem e

formação espacial da cidade. Nesta pesquisa, utilizando como referencial teórico-

metodológico a proposta desenvolvida por Eclea Bosi, em sua obra Memória e

Sociedade: lembranças de velhos, pude perceber e analisar , a partir dos discursos de

idosos bocaiuvenses, os conflitos ―aparentes‖ entre memória e História, tradição e

modernidade – no sentido de progresso e inovações. O trabalho me levou a atuar na área

da preservação do Patrimônio, tendo contribuído para a criação, em 1988, do

Page 20: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

18

Conselho Deliberativo do Patrimônio Artístico e Cultural de Bocaiúva – CODEPAC. A

experiência se revelou prazerosa e, ao mesmo tempo, angustiante, no sentido de que

pude constatar que há diversos interesses e nuances que interferem numa política de

proteção do patrimônio. No entanto, duas questões ficaram patentes a partir do vivido

em Bocaiúva, quais sejam, por um lado o entendimento das implicações sócio-politico-

culturais que ―motivam‖ ou ―condicionam‖ o posicionamento da população da cidade

em relação ao seu patrimônio, se este deve ser preservado ou não, e, por outro lado, o ―efeito tempo‖ sobre estes posicionamentos. Ou seja, parece existir em Bocaiuva uma

resignada aceitação e acomodação diante de ações que depredam o patrimônio, num

primeiro momento, para depois, no decorrido dos anos, surgirem as lamentações pelo

que se perdeu.

É corrente na cidade o dito ―Bocaiuva é a cidade do já teve‖. Assim

aconteceu com a Igreja Matriz do Senhor do Bonfim, cuja origem remonta ao século

XVIII e que foi demolida em fins da década de 70 do século passado. Também

plasmados em imagens fotográficas e nas lembranças de quem os vivenciou ficaram os

carnavais de rua, famosos na região, e que atraíam visitantes de várias partes do Brasil

para a cidade. E muitos outros espaços, símbolos, marcos e referenciais da cidade se

perderam ou diluíram ao longo do tempo, sendo, muitas vezes, resguardados apenas em

memórias. No entanto, e daí vem a questão preocupante, é que a memória é seletiva e

passível de manipulação. Maurice Halbwachs, em sua obra La Mémorie Colletive (1950) apresenta o conceito de memória coletiva, salientando que as lembranças ou

aquilo que deve ser memorável são construções grupais, o que nos leva a concluir que a

memória é seletiva e como aponta Le Goff é ―elemento essencial do que se costuma se

chamar identidade individual ou coletiva‖, mas, ―a memória é não somente uma

conquista, é também um instrumento e um objeto de poder”. (LE GOFF, 2003, p. 470).

Em sua obra: Memória e Sociedade: lembrança de velhos, Ecléa Bosi,

baseada na perspectiva de Halbwachs, pontua que este autor ―amarra a memória da

pessoa à memória do grupo, e esta por último à esfera da tradição, que é a memória

coletiva da sociedade‖. (BOSI, 2004, p. 55). E essa memória individual ou coletiva

necessita do que Bosi chamou de ―Espaços da Memória‖. Estes abarcam lugares,

objetos, as ―pedras da cidade‖, ―os sons... das oficinas de trabalho, do movimento das

ruas‖, dos espaços de lazer, ―cada geração tem, de sua cidade, a memória dos

acontecimentos que permanecem como pontos de demarcação de sua história‖. (BOSI,

Page 21: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

19

2004, p. 418). Nesse sentido, reforça a importância da proteção e preservação do

patrimônio cultural, seja ele material ou imaterial.

Citado por Lucília de Almeida Neves Delgado, Poulet enfatiza a

importância da memória, ―Graças à memória, o tempo não está perdido, e se não está

perdido, também o espaço não está.‖ (POULET apud DELGADO, 2010, p.37). Segundo a autora, ―a memória é base construtora de identidades e solidificadora de

consciências individuais e coletivas‖ (DELGADO, 2010, p. 38). Essa identidade e

consciência, no entanto, podem se ―macular‖ se se perde as referências espaciais já que

a dinâmica do tempo e espaço podem ―destruir a única fixidez em que se acreditava: a

fixidez dos lugares, dos objetos ali situados. A modalidade dos lugares rouba nosso último recurso‖ (POULET In: DELGADO, 2010, p. 37).Entendemos que as premissas e

autores citados corroboram a ideia de que a cidade, como uma construção dos homens,

nunca pode ser estritamente racional. Ela expressa a natureza e a cultura, o público e o

privado, o passado e o futuro. Ela é memória e, como tal, é importante que se valorize a

memória, e esta não se restringe às lembranças das pessoas, mas se faz presente nas

marcas que a história deixou, ao longo do tempo, em seus monumentos, ruas e avenidas,

nos seus espaços de convivência.

A história da cidade e de sua cultura se manifesta ou se disfarça nesses

espaços, mas à medida que aumenta o ritmo da urbanização, em função da propalada

modernidade, devastam-se a cultura e os patrimônios da cidade. Em seu trabalho, aqui

já referido, Bosi (2004) afirma a importância da preservação do patrimônio material ao

revelar, mediante os discursos de seus lembradores, como as lembranças se apoiam nas ―pedras da cidade‖. Partilhando dessa premissa, apresentamos a pesquisa intitulada Cemitério: entre tumbas e esquecimento, um patrimônio à sombra da memória que

enfocará notadamente o aspecto da criação/desconstrução de identidades culturais e de

memória histórica, tomando como objeto de estudo, inicialmente, a demolição dos

cemitérios centrais da cidade de Bocaiuva, em Minas Gerais, o Cemitério da Saudade e

o Cemitério do Bonfim, processos ocorridos num período de uma década entre os anos

de 2002 e 2012.

Em nome do progresso e da urbanização, a demolição do Cemitério da

Saudade e a do Cemitério do Bonfim representa um dos aspectos da descaracterização

aguda dos ambientes urbanos em Bocaiuva, uma vez que eles eram

edificações/monumentos de grande relevância, por documentarem a história da cidade.

Analisar as intervenções e ações, tanto no que concerne aos atores sociais comuns (leia-

Page 22: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

20

se os munícipes/sujeitos), como dos agentes da sociedade civil organizada (Conselho do

Patrimônio Histórico), e representantes do poder público (executivo, legislativo,

judiciário), em relação ao objeto referido, é de fundamental importância para a

compreensão do processo de descaracterização urbana, notadamente o espaço ocupado

pelos cemitérios. Se a cidade traduz-se em cultura e a cidade somos nós e, se o que

somos guarda algo do que foi, interessa-nos questionar por que tem sido tão frequente,

nas cidades brasileiras, o abandono e a demolição dos cemitérios das cidades.

Talvez a resposta esteja, como adverte Marilena Chauí, em que ―Destruindo

os suportes materiais da memória, a sociedade capitalista bloqueou os caminhos da

lembrança, arrancou seus marcos e apagou seus rastros (...)‖ (CHAUÍ apud BOSI, 1979,

p.19). Embora esteja a autora referindo-se à cidade de São Paulo, verifica-se que fatos

semelhantes vêm ocorrendo em praticamente todas as cidades brasileiras, onde o

fenômeno do crescimento e modernização, somados ao descaso do poder público e da

sociedade civil, têm contribuído sobremaneira para a descaracterização do seu

patrimônio cultural. Pode-se citar como exemplo o que vem ocorrendo no município de Bocaiuva/MG, onde o poder público e a sociedade civil demonstram ―descuido‖ com

seus equipamentos culturais, marcos e referenciais de origem e formação espacial.

Nesse sentido, em busca do título de ―cidade moderna‖, marcos da origem e

da formação da cidade de Bocaiuva/MG vão se perdendo sob a alcunha de monumentos

atrasados e interioranos. Assim, a antiga Matriz, casarios da parte antiga da cidade e

cemitérios ―antigos‖só podem ser vistos, hoje, por meio de fotografias pertencentes a

particulares ou colecionadores. A praça central, palco de tantas histórias tem sido alvo

de constantes intervenções arquitetônicas, sofrendo processo de descaracterização e

perda da identidade, sem elo com o passado e com a paisagem da cidade.

No entanto, o desenrolar da pesquisa, especialmente a partir da metodologia

da história oral, encaminhou-nos para uma ampliação de nosso trabalho, melhor

dizendo, nos abriu portas para uma abordagem mais ampla e diversificada. Para além de

buscar entender a relação memória/patrimônio cultural apenas a partir de um processo

datado, concreto, o tombamento literal dos cemitérios antigos da cidade e a significação

e posicionamento da população em relação a estes, passamos a nos ocupar em entender

as implicações das transformações e permanências em relação ao imaginário coletivo, à

mentalidade e às representações sociais em torno da morte e das práticas fúnebres, bem

como dos espaços de enterramento.

Page 23: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

21

Compreendendo a diversidade de novos campos na história e que esta traz

novos objetos, muitos até então negligenciados nos estudos históricos como a loucura, o

corpo, a alimentação, a morte, dentre outros, temos assistido a um movimento na

pesquisa histórica, em que esses temas vêm ocupando lugar de destaque e se tornando

reveladores dos valores, tradições, modos de viver, conflitos e tensões, em um conjunto

de relações sociais, culturais, econômicas e políticas. Assim, seguindo tal raciocínio,

pontuaremos alguns conceitos que, a priori, nortearam a pesquisa.

O primeiro desses conceitos refere-se à cultura. Decerto que elucidar tal

conceito não é tarefa fácil, uma vez que, como salienta Schelling (1990, p.21), ―o termo

cultura é ele próprio cultural‖. Na Europa, inicialmente, o termo cultura coincidia com

civilização. Foi em meio ao advento do industrialismo e da ―democracia política‖,

durante os séculos XVIII e XIX e ao declínio da crença nos ideais iluministas e do ―progresso da racionalidade‖ que o termo cultura se dissociou da ideia de civilização,

sendo esta última o espectro da desumanização causada pela ―progressiva mecanização

da vida e da mentalidade quantificadora que a acompanha‖. (SCHELLING, 1990, p.23). Contudo, o que se percebe é que, apesar dos debates acerca da importância da

preservação da cultura e do patrimônio cultural como condição sine qua non da

preservação da identidade de uma comunidade terem alcançado novas fronteiras no

Brasil, há ainda muito que se discutir e refletir sobre a preservação do patrimônio

cultural.

Partilhando da reflexão exposta, é importante ressaltar que o discurso de

preservação do patrimônio cultural, da memória histórica, da paisagem urbana é uma

constante no meio acadêmico, artístico e político (aqui entendido enquanto Estado –

instituição do poder público), bem como e principalmente nas manifestações dos, quase

sempre nostálgicos, escritores. Mas, o que acontece no cotidiano do ―cidadão comum‖

que vivencia a descaracterização paisagística de sua cidade? Como os moradores

interpretam a demolição dos cemitérios? Que significados tal processo produz na

memória, na história e na identidade social desses moradores?

A justificativa dada pelo poder público para a demolição dos cemitérios em

Bocaiuva/MG é de que esta seria uma estratégia para coibir os atos de vandalismo,

prostituição e uso de drogas que vinham ocorrendo naquele espaço. Porém, pergunta-se:

esta medida garantiu os efeitos esperados? Como os moradores se apropriaram do novo

Page 24: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

22

espaço criado no lugar do Cemitério da Saudade?1 Como as autoridades religiosas

interpretam esse processo? Responder a tais questionamentos, a partir da memória,

representações e discursos da comunidade, constituirá o propósito deste trabalho, bem

como de uma análise da significação que o patrimônio cultural, aqui entendido

conforme expressa a Constituição Federal de 1988 em seu artigo 216: Art. 2016: ―Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e

imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à

identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira‖ (BRASIL:2005,p.230) .

O cemitério da Saudade localizava-se na Avenida da Saudade, bairro

Bonfim. Era marco da elevação do antigo distrito à condição de cidade. Datava da

década de 70 do século XIX. Sua fundação foi uma exigência legal para a elevação do

Arraial do Bonfim à condição de Vila, o que foi um processo marcado por idas e vindas,

como será pontuado no primeiro capítulo. Na década de 1930, sob o governo do prefeito

Thereziano de Magalhães Chaves, foi construído outro cemitério, o cemitério do Bom Fim, que passou a ser denominado popularmente de ―cemitério novo‖, enquanto o

cemitério da Saudade passou a ser denominado de ―cemitério velho‖. Essa

diferenciação também passou a significar a distinção entre o ―status do sepultado‖. Se

fosse de família tradicional ou abastada, enterrava-se no ―cemitério novo‖ (cemitério

dos ricos no imaginário popular). Se não se tratava de ―algum ilustre‖, enterrava-se no

―cemitério velho‖. Elucidaremos, no último capítulo, algumas questões que possam

esclarecer o sentido desse imaginário.

Investigar essas questões, o posicionamento desses atores sociais, a

descaracterização desses marcos simbólicos da cultura, memória e identidade de uma

cidade que tem se perdido em nome da ―modernidade‖, pretende ser uma contribuição às novas discussões historiográficas, bem como fundamentação teórica no que concerne

a uma política pública (seja do poder público, das instituições de ensino) seja das

organizações civis ligadas ao patrimônio cultural, e talvez até mesmo uma nova

1O primeiro cemitério demolido, localizado à Avenida da Saudade, denominado de ―Cemitério da

Saudade‖ ou ―Cemitério Velho‖ deu lugar a uma praça. Esta conta com um coreto situado ao ―fundo‖ e não sendo o local bem iluminado, voltou a ser espaço de práticas de vandalismo, prostituição e uso de drogas. Observa-se que foram essas as principais alegações do poder público municipal e dos moradores do entorno que se posicionaram em favor da demolição do referido cemitério. O segundo cemitério demolido entre fins do ano de 2011 e início de 2012, denominado de ―Cemitério do Bom Fim‖ ou ―Cemitério Novo‖, deu lugar a um Centro de Saúde.

Page 25: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

23

consciência quanto à importância da preservação da memória como condição da

preservação da própria comunidade enquanto coletividade. Isso posto, entre outros,

pode se dizer que a preservação do patrimônio pode atuar como um valioso recurso na

utilização da memória como fonte para a reflexão histórica.

A ideia de discutir cemitérios numa perspectiva patrimonial parece chocar-

se com a ideia de modernidade, já que ―falar em modernidade é pisar em um terreno de

contradições, pois esse conceito é muitas vezes posto em oposição ao de tradição, que

pode ser considerada de um ponto de vista saudosista ou como algo retrógrado‖ (SILVA, 2008, p.300). Conceito ainda mais polêmico é o de pós-modernidade. Na

historiografia, segundo o cientista político Michel Zaidan, tal conceito teria produzido uma

concepção irracionalista, influenciado por Michel Foucault ou Walter Benjamin, que parte

do pressuposto de que ―não haveria realidade, tudo seria simulação da realidade, imagem e

representação‖ (SILVA, 2008, p.341). Polêmica também é a delimitação temporal do que se

denomina ―pós-modernidade‖. Alguns a colocam como típico das sociedades pós-

industriais, num conceito em que a mídia e os meios de comunicação têm importante papel.

Para Jair Santos ―a pós-modernidade é a recriação do mundo por meio de signos. Nela, a

realidade perde sua substância, um fenômeno conhecido como a desreferenciação e a

desubstanciação do real‖ (SILVA, 2008, p. 340). No entanto, para o teórico cultural Homi Bhabba, pode-se destacar aspectos positivos na ―pós-modernidade,‖ na medida em que ―a critica pós-moderna precisa ultrapassar a

simples desconstrução dos valores da modernidade e incorporar novas formas de saber,

como o fim das ideias etnocêntricas e a possibilidade de se escutar outras vozes e

histórias, principalmente dos grupos minoritários‖ (SILVA, 2008, p.340).

As reflexões foram pontuais para a realização da pesquisa, pois se tornaram

fundamentais para a compreensão de um contexto mais amplo e aparentemente

paradoxal: se por um lado a ―pós-modernidade‖ promove uma ―desreferenciação e

desubstanciação do real‖, inserindo-se aí a problemática da demolição dos cemitérios,

bem como do processo de descaracterização urbanística, como elemento de ―desubstanciação‖ do real e, assim, da memória e identidade cultural dos moradores da

cidade de Bocaiuva/MG, por outro, na perspectiva conceitual de Bhabba, promove a ―possibilidade de se escutar outras vozes e histórias‖, aqui entendidas, segundo as

concepções da corrente historiográfica denominada de ―História das Mentalidades‖2.De

2 O século XX marca, no ocidente, a propagação do emprego da palavra mentalidade nas ciências

humanas e sociais. Na historiografia aparece como ―aqueles elementos culturais e do pensamento

Page 26: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

24

acordo com Jacques Le Goff, ―O estudo da memória social é um dos meios

fundamentais de abordar os problemas do tempo e da história, [...] os esquecimentos e

os silêncios da história são reveladores de mecanismos de manipulação da memória

coletiva‖ (LE GOFF, 2003, p.422).

Ainda na visão do autor, a palavra central – memória – criada na Idade

Média, alargou-se no século XVIII, abarcando a ideia de memória coletiva. Contudo, ―enquanto os vivos podem dispor de uma memória técnica científica e intelectual cada

vez mais rica, a memória parece afastar-se dos mortos‖ (LE GOFF, 2003, p. 456).Nos

fins do século XVIII, a comemoração dos mortos e a deferência aos túmulos e

cemitérios se perdem. Estes são abandonados. Somente no imediato pós Revolução

Francesa, na França, e em outras partes da Europa, assiste-se a um retorno à memória

dos mortos, uma vez que ―a grande época dos cemitérios começa, com novos tipos de

monumentos, inscrições funerárias e rito de visita ao cemitério. O túmulo separado da

igreja voltou a ser centro de lembrança‖ (LE GOFF, 2003, p.456).

A memória se liga ao espírito comemorativo, ainda que apareça a

manipulação da memória. A memória coletiva, manifestada e valorizada, seja nas festas

nacionais, nos museus, nos arquivos nacionais, nos selos e moedas comemorativas, nas

bibliotecas, na criação de monumentos, inclusive na construção de ―monumentos aos

mortos‖, estes a partir da 1ª Guerra Mundial. Com este último – Túmulo ao Soldado

Desconhecido – procurou-se ―ultrapassar os limites da memória, associada ao

anonimato, proclamando sobre um cadáver sem nome, a coesão da nação em torno da

memória comum‖. (LE GOFF, 2003, p.460). O autor lembra ainda que, desde a

antiguidade romana, o monumentum tende a se especializar em dois sentidos: 1) Uma obra comemorativa de arquitetura ou de escultura: arco de triunfo, coluna,

troféu, pórtico, etc.; 2) Um monumento funerário destinado a perpetuar a recordação de uma pessoa no

domínio em que a memória é particularmente valorizada: a morte (LE GOFF, 2003,

p.526).

Nesse aspecto, caberia à sociedade ―pós-moderna‖ espelhar-se nos antigos

romanos e entender os cemitérios e os ritos funerários como ―monumentos‖ que

preservam a memória e a identidade cultural de um povo. É importante lembrar que em

inseridos no cotidiano, que os indivíduos não percebem. Ela é a estrutura que está por trás tanto dos fatos quanto das ideologias ou dos imaginários de uma sociedade‖ (SILVA, 2008, p.279).

Page 27: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

25

1972 reuniu-se em Paris, para a Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial,

Cultural e Natural, a décima sétima sessão da Conferência Geral da Organização das

Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Já naquele momento verificava-

se a ameaça de destruição do que se chamava Patrimônio Cultural. 3

Os cemitérios, como patrimônio cultural, carregam valores que se ligam

tanto aos bens materiais quanto aos imateriais. Apresentam valores patrimoniais

referentes aos bens materiais no que diz respeito ao caráter ambiental/urbano, artístico e

histórico. Além destes, há os valores relacionados aos bens imateriais, simbolismos e

crenças que tanto reverenciam e sacralizam os cemitérios ou, ao contrário, produzem

uma visão preconceituosa dos cemitérios como um lugar mórbido e aterrorizante. Dessa

última, depreende o abandono destes, inclusive pela comunidade, o que faz dos

cemitérios lugar propício aos atos de vandalismo. Essa situação parece aproximar-se da

realidade verificada em Bocaiuva/MG, com a demolição dos cemitérios centrais da

cidade.

Diante do exposto, vale ressaltar que não pretendemos realizar uma História

da Cidade ou da sua condição quanto ao patrimônio cultural puramente.

Especificamente, numa perspectiva da História Cultural, pretendemos fazer um estudo

abrangente e pluridimensional que permita perceber e refletir sobre as representações

sociais e o imaginário a respeito da morte, dos ritos fúnebres e dos processos de

ocultação do corpo morto, neste caso dos lugares (campos santos, num primeiro

momento, próximos ou dentro das Igrejas e cemitérios laicos, a céu aberto,

posteriormente) e formas de enterramento.

Para tanto, optamos, no âmbito teórico-metodológico, pela utilização das

categorias de análise das representações sociais, aliada à Análise do Discurso. Tomamos

a representação a partir dos pressupostos formulados por Roger Chartier, que a define

como o modo pelo qual em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade

social é construída, pensada e dada a ler (CHARTIER, 1990, p. 17). Esse conceito nos é

útil para que possamos perceber como diferentes grupos construíram, pensaram e deram

a ler a morte, os ritos fúnebres e os processos de ocultação do corpo morto e lugares de

3 No entanto, é somente em 1993 que a UNESCO apresenta guia propondo que cada país criasse um

sistema de ―Tesouros Humanos Vivos‖. No mesmo ano, define patrimônio cultural imaterial ou intangível como, ―o conjunto de manifestações culturais tradicionais e populares, ou seja, as criações coletivas, emanadas de uma comunidade fundadas sobre a tradição. Elas são transmitidas oral e gestualmente, e modificadas através do tempo por processos de recriação coletiva. Integram esta modalidade de patrimônio: as línguas, as tradições orais, os costumes, a música, a dança, os ritos, os festivais, as artes de mesa e o ‗saber fazer‘ dos artesanatos e das arquiteturas tradicionais‖ (UNESCO apud ABREU, 2003, p. 81-82).

Page 28: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

26

enterramento, ou seja, os cemitérios. A morte – essa grande incógnita – pode ser

estudada na perspectiva da História Cultural e, segundo Giacoia (2005) ―a maneira

como uma sociedade se posiciona diante da morte e do morto, tem um papel importante

na constituição e manutenção da identidade coletiva e assim na formação de uma

tradição comum‖.

Apesar da delimitação dos capítulos, é importante esclarecer que buscamos

explicitar a mentalidade sobre a morte e os lugares de enterramento em todos os

períodos contemplados por nossa pesquisa, assim, alguns temas serão abordados nos

três capítulos, podendo citar como exemplo a temática da escatologia. Nessa

perspectiva, buscar-se-á, especificamente no primeiro capítulo, traçar um panorama das

concepções da morte, das formas como o homem ocidental lidou e lida com a morte.

Essa trajetória se faz necessária porque, para além de contextualizar a

pesquisa que se apresenta, buscamos um estudo ―transcultural‖, inspirando-nos em

Carlo Guinzburg que, em sua obra Olhos de Madeira, tratando da representação em

torno da morte de imperadores romanos da antiguidade e reis franceses e ingleses da

Idade Media, faz estudo transcultural entre práticas largamente separadas no espaço e no

tempo, com o intuito de perceber tanto os pontos de contatos entre os ritos, quanto suas

especificidades.

Neste sentido, acreditamos que o retrospecto, ainda que não abarque todas

as possibilidades de análise, uma vez que não se trata de nossa pretensão, permitiu-nos

analisar as atitudes e representações sociais em torno da morte e dos ―lugares de

enterramento‖, pela comunidade da cidade de Bocaiuva, localizada no norte de Minas Gerais, que vivenciou, no período de uma década, entre os anos de 2002 e 2012, a

demolição de seus antigos cemitérios, erigidos em áreas centrais da cidade, um em fins

do século XIX e o outro no limiar dos anos 30 do século XX. Conceituar termos

recorrentes dentro dessa temática, como por exemplo, os vocábulos morte, corpo/alma,

funerais, sepultamento, exéquias, cemitérios, escatologia, dentre outros, bem como

apresentar alguns dos principais estudos historiográficos desenvolvidos na Europa e no

Brasil, também constituem objetivo do primeiro capítulo. Para tal, utilizaremos como

metodologia a revisão bibliográfica.

No segundo capítulo, trataremos das concepções e atitudes diante da morte,

os rituais fúnebres, os processos de enterramento na perspectiva dos imaginários e

Page 29: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

27

representações sociais, focando na prática de sepultamentos ―ad sanctus‖4 e ―apud

eclesiam‖5, característicos do Ocidente cristão-católico da Idade Média ao século XVIII.

Estes foram, gradativamente, sendo rechaçados e finalmente proibidos e abolidos, ao longo

do século XIX, transformando os ―campos santos‖ de outrora em cemitérios cada vez mais

laicizados, embora nem sempre totalmente dessacralizados. Para isso, contribuíram o

advento da sociedade industrial capitalista-burguesa e, em seu bojo, o desenvolvimento

científico que propiciou o discurso médico-sanitarista que assumirá um tom de discurso de

autoridade, outrora pertencente à religião e, em especial, à Igreja.

No entanto, apesar deste ser o movimento crescente na Europa, no Brasil e

no Arraial do Bonfim,atual Bocaiuva/MG, em especial, essas transformações não

operam num mesmo ritmo. Veremos que, por aqui, os enterramentos ad sanctus, apud

eclesiam perduraram até final do século XIX, bem como os cemitérios laicos instituídos

não foram afastados do centro urbano, ao contrário, aqui os cemitérios se localizavam

em áreas centrais, E em Bocaiuva/MG, o afastamento e a ―expulsão‖ dos mortos do

―convívio‖ com os vivos só ocorrerá em fins do século XX, quando se desativaram os

cemitérios centrais e foi construído um cemitério afastado do perímetro urbano. Nesse

contexto, o cemitério foi afastado para área mais distante da cidade e a morte ―afastada

dos olhos e da mente‖.

Importante ressaltar que, em nossa pesquisa, vislumbramos a permanência

na cidade, ainda que hoje em menor escala que no passado, de práticas que remontam a

influências europeias de fins do século XIX e início do século XX, como exemplo a

prática de fotografar o morto. Cabe refletir sobre os significados dessa prática no

4Ad sanctus expressão em latim que se relaciona aos enterros ad sanctos . Ou seja, refere-se ao costume

medieval de enterrar os mortos perto dos túmulos de santos e outros locais sagrados na crença de que a alma poderia obter benefícios espirituais a partir da colocação ali de seus restos físicos. Cerca de 313 d.C., quando o édito de Constantino concedeu tolerância para os cristãos, os templos em miniatura foram construídos sobre túmulos de mártires. Este foi o início de basílicas funerárias adjacentes às cidades a partir do século IV. Acreditava-se que o enterro perto dos túmulos de santos garantiria a proteção no outro mundo. Isso deu origem ao costume de sepultamento perto de uma igreja. Enquanto os intelectuais da Igreja ocasionalmente questionaram a eficácia ou adequação deste costume, essas práticas prevaleceram durante a era medieval. Ad enterro sanctos também serviu como um meio de articular uma diferenciação social. 5 Segundo Felipe Augusto de Bernardi Silveira ―com o passar dos séculos a preocupação com o

enterramento dos cristãos, feito próximo aos corpos dos mártires, ou melhor, de suas relíquias e da memória de sua presença, foi substituído por um novo sentido. É como se o espaço circunvizinho ‗atriu‘ ou adro, tomado pelos corpos dos fiéis enterrados já não atendesse as expectativas salvíficas desses homens. A partir do século XII o sentido piedoso muda de motivo, se antes eram os santos mártires o centro gravitacional que atraia os enterramentos, agora é a ritualística e sacrifícios eucarísticos o sentido para os novos enterramentos. A este novo aspecto para escolha do local de sepultamentos dos cristãos foi denominado como ‗apud ecclesiam‘, tornando-se com o passar do tempo, hegemônico, em detrimento do sentido de enterramento ad sanctos”.

Page 30: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

28

passado e no presente. O que esta revela sobre as atitudes, as representações e o

imaginário em torno da morte? São estas algumas das questões para as quais buscamos

respostas, objetivando subsidiar as análises que se impuserem a partir dos dados obtidos

com a pesquisa de campo.

No decorrer deste capítulo, portanto, faz-se necessário um recuo no tempo e

no espaço visto que, em se tratando de um tema que permite mergulhar na ―história das

mentalidades‖ e esta história constituindo ―um campo de interesse e de sensibilidade

relativamente vasto, talvez heterogêneo‖ (BURGUIÈRE, 1993, p.528), permita-nos

fazer uso dos estudos de historiadores como Philippe Ariès, Michel Vovelle, Jacques Le Goff, bem como de sociólogos como Norbert Elias que buscou ―compreender o

‗processo de civilização‘ do ocidente e as mutações psíquicas que o acompanharam

como produto de uma ‗sociogênese do Estado‘ e das diferenciações sociais novas que o

acompanharam‖ (BURGUIÈRE, 1993,p.532).

Essa última assertiva procuraremos discutir no terceiro capítulo, quando

trataremos das transformações nos rituais fúnebres e os processos de enterramento, estas

modificações produzidas pelo ―discurso médico‖, entre fins do século XVIII e início do

século XIX e que repercutem no presente. Também serão feitos apontamentos a partir

dos estudos de Mircea Eliade sobre o Sagrado e o Profano. Suas reflexões serão

necessárias para análise das atitudes diante da morte e dos lugares de enterramento, ao

longo do tempo. A execução dessa tarefa se deu a partir de revisão de bibliografia

pertinente, bem como da utilização de documentos dos séculos XVIII e XIX, relativos à

morte e ao enterramento no Cemitério do Bom fim. Tratam-se dos assentos de óbitos da

Matriz de Santo Antônio de Itacambira (século XVIII e início do século XIX )e dos

assentos de óbitos da Matriz do Senhor do Bonfim(século XIX).

No terceiro e último capítulo, retomamos as ideias escatológicas presentes

nos cemitérios contemporâneos, apesar da suposta ―dessacralização do mundo‖ como o

intuito de compreender a manutenção de um cruzeiro no espaço do antigo cemitério do

Bom fim, em Bocaiuva/MG, demolido entre fins de 2011 e início de 2012. Também

buscamos compreender o processo de edificações que, paulatinamente, alteraram a

proposta inicial de ―cemitério parque‖ ou ―jardim‖, pretendido pelos seus idealizadores,

ou seja, os gestores da administração pública municipal. Assim, fizemos um breve

inventário do cemitério Parque Santa Lúcia, investigando desde a razão do modelo e

nome, para o qual lançamos mão de entrevista com o engenheiro responsável pelo

projeto, até a configuração atual do cemitério em relação a sua estrutura física,

Page 31: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

29

considerando as formas tumulares que este abriga, bem como as inscrições mentais que

trazem em textos e imagens presentes nas lápides.

Também abordamos a prática por famílias bocaiuvenses, de enterramentos

em cemitério particular, localizados em suas propriedades rurais. Analisamos essa

prática sob dois ângulos que se imbricam, quais sejam: as concepções escatológicas que

ainda impelem à resistência ao modelo de enterramento em gavetas, ―na laje‖, como se

referiram nossos entrevistados, e ainda como um apego à sua ―pátria‖, ou seja, às suas

origens.

Buscamos realçar os aspectos simbólicos, mediante os registros fotográficos

das características arquitetônicas das lápides, jardinagem, epitáfios. Num segundo

momento, depois de uma trajetória sob viés das representações sociais, em torno da

morte e dos lugares de enterramento, ao longo do tempo, e estas características da

cultura ocidental cristã e como tal presentes em Bocaiuva/MG, intentamos apreender a

prevalência dessa mentalidade, por meio de uma pequena prospecção da prática de

encomendação de missas em intenção pelas almas. Assim, as representações sociais e

discursos dos bocaiuvenses, em torno da morte, buscamos captá-los e compreendê-los,

utilizando-nos de diferentes metodologias.

Como propusemos investigar imaginários, representações sociais,

mentalidade, entendemos ser primordial utilizarmos da metodologia da história oral.6

Conforme Lucília Neves Delgado,

A história oral é uma metodologia primorosa voltada à produção de narrativas como fontes de conhecimento, mas principalmente do saber.[...] incluem-se entre as narrativas históricas, que se distinguem das narrativas épicas, que são lendárias, atemporais[...]. São traduções dos registros das experiências retidas, contém a força da tradição e muitas vezes relatam o poder das transformações. História e narrativa, tal qual História e memória, alimentam-se. (DELGADO, 2010, p. 44).

As perguntas que nortearam nossa pesquisa passaram pela tentativa de

compreender: o que se proclamou sobre os cemitérios nas construções discursivas,

testemunhos e ritos veiculados ao longo do tempo e quais suas permanências e rupturas

na memória coletiva local? Que representações estão predominantemente associadas ao

termo cemitérios e quais os elementos de ancoragem dessas representações? Os

6Paul Thompson, (2002, p.12 -13) diz: ―entendo por ‗história oral‘ a interpretação da história e das

mutáveis sociedades e culturas através da escuta das pessoas e do registro de suas lembranças e experiências. (...) ela é um método que sempre foi essencialmente interdisciplinar, um caminho cruzado entre sociólogos, antropólogos, historiadores, estudantes de literatura e cultura.‖

Page 32: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

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cemitérios se constituem em ―lugares de memória‖ na percepção dos moradores? Como

os moradores da cidade, ao longo de sua História, produzem e reproduzem as

representações e imaginários em torno da morte, dos ritos fúnebres e dos processos de

enterramento? Qual a percepção que tiveram e têm dos lugares de enterramento? Ou

seja, como entendem os cemitérios e como se sentiram/sentem em relação à demolição

dos cemitérios centrais da cidade?

O objetivo foi buscar perceber elementos subjetivos (memória, sentimentos)

em relação aos cemitérios e sua significação, bem como em relação à demolição destes. ―Tempo, memória, espaço e História caminham juntos‖. (DELGADO, 2010 p. 44).

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CAPITULO 1

DA VIDA FINITA À MORTE PLENA PERGUNTAS, ANGÚSTIAS E RESPOSTAS ACERCA DA MORTE

―Bocaiuva não é uma cidade urbana: é pessoal.‖

Herbert de Souza

O sociólogo Herbert de Souza, nascido em Bocaiuva/MG, registra de forma

lírica no livro A Lista de Ailce7, suas impressões e sentimentos sobre os mortos de sua

cidade. Eis o nosso objeto de estudo: Bocaiuva e seu povo, ou melhor, o imaginário e as

representações sociais que este produz/reproduz sobre uma questão que, nas últimas

décadas, tem mobilizado pesquisadores de diversas áreas do conhecimento,

especialmente os historiadores da cultura, a saber – a morte, os ritos fúnebres, os lugares

e as formas de ocultação do corpo morto.

Em nosso estudo, este último ponto – os cemitérios, as formas e as

representações tumulares – ganharam destaque no decorrer da pesquisa de campo; esta,

de certa forma, produziu uma nova abordagem,um novo viés da pesquisa que,

inicialmente, pretendia, numa linha mais ―sociológica‖, apreender o posicionamento da

população em relação ao processo de demolição dos cemitérios centrais da cidade,

ocorrido entre os anos de 2002 e 2012.A pesquisa de campo, notadamente a partir da

metodologia da história oral, nos conduziu a uma proposta acentuadamente focada no

imaginário8 e nas representações sociais

9 acerca da morte,das práticas sociais em torno

desta e dos lugares de enterramento.

7O livro A lista de Ailce foi escrito pelo bocaiuvense Herbert de Souza e publicado um ano antes de sua

morte ―pressentida e anunciada‖ pelo fato de ser hemofílico e portador do vírus HIV. Esse fato talvez explique por que o sociólogo, combatente da ditadura militar nos anos 60/70 e idealizador da campanha ação da cidadania contra a fome e a miséria tenha se voltado para a sua ―terra natal‖ e especialmente para a memória dos mortos da ―grande Bocaiuva‖. 8 O conceito de imaginário será trabalhado com maior clareza e problematização no decorrer e em alguns tópicos dessa dissertação, no entanto, entendemos a ideia de imaginário partindo do pensamento de

Michel Maffesoli que expõe ―o imaginário é uma força social de ordem espiritual, uma construção mental que se mantém ambígua, perceptível, mas não quantificável‖ (MAFFESOLI, 2001, p. 110).

9 Por representações sociais partilhamos do conceito formulado por Roger Chartier para quem a representação social pode ser definida como o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada e dada a ler (CHARTIER, 1990.p.17).

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32

O escritor russo Leon Tolstoi expressou: ―Se queres ser universal começa

por pintar a tua aldeia‖. 10

Seguindo essa perspectiva, nesta pesquisa, apresentaremos a

morte em Bocaiuva, cidade do norte de Minas Gerais qu,e segundo dados do censo

IBGE, em 2010, contava com 46.654 habitantes, com estimativa para alcançar um total

de 48.974 habitantes para o ano de 2013, numa área territorial de 3.227,627 km². Do

total de habitantes, 38.167 afirmaram serem adeptos da Igreja Católica Apostólica

Romana (IBGE: 2010). Enfocamos tal dado por ser o universo cristão católico

investigado neste estudo.

Fig1. Mapa: Município de Bocaiuva/MG Fonte: IBGE (2005).

Inicialmente, é necessário situar e contextualizar a ocupação do território

que deu origem à cidade de Bocaiuva. Do ponto de vista ―oficial‖, os registros históricos

documentais, sejam em documentos oficiais, ou em relatos de viajantes estrangeiros que

por aqui passaram, já se pode falar em um núcleo de povoamento por volta do início dos

anos de 1700. Do ponto de vista mítico ou do imaginário, esse povoamento se expandiu

a partir do ―milagre do Senhor do Bonfim‖. Tradicionalmente, a origem da cidade é

entendida a partir da mística em torno da imagem do Senhor do Bonfim que, no início do séc. XVIII, passava pela localidade e que, tendo ―pesado‖ a 10

Citado por Fátima Oliveira sem indicação de fonte e data http://www.limacoelho.jor.br/index.php/Se-queres-ser-universal-come-a-por-pintar-a-tua-aldeia/. Acesso em 20/01/2014

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ponto de vários homens não a soerguerem, ―inaugurava‖ o milagre, atraindo

povoamento a partir da edificação de uma capela em homenagem ao Senhor do Bonfim.

A tradição foi assim registrada pela bocaiuvense Eliane Maria Fernandes Ribeiro:

Na História da formação do município há várias outras histórias dentro da

mesma que mescla o mítico, a religiosidade e, nesse amálgama, a história é

narrada de geração em geração pelo bocaiuvense [...] A história da formação

do território é narrada pela lenda, desde a década de 1710 e vinculada ao

tempo da ausência de documentos escritos, do vazio de gente, quando

escravos e tropeiros transportavam uma imagem do Cristo Crucificado, e

invocada sobre o nome de Senhor do Bonfim [...] Confeccionada em madeira,

a escultura parece ter-se originado de Setúbal, cidade portuguesa, e consta

que vinha do Rio de Janeiro com destino à Bahia, quando o grupo chegou à

sombra de uma gameleira para descanso e pouso noturno. De manhã,

descansados, escravos e tropeiros mal conseguiram erguer a imagem, tão

pesada lhes pareceu e, assim, foi deliberado pelo grupo que ela permaneceria

onde estava por escolha do próprio Senhor do Bonfim. Nascia ali o povoado

do Bonfim, hoje Bocaiuva, tendo sido organizado o arranjo territorial

iniciado com a construção da capela e as moradias no entorno, até para se

chegar mais rápido às práticas religiosas; o primeiro bairro de Bocaiúva foi

Bonfim. A memória oral do mito fundador do território bocaiuvense é

resguardada na atualidade, assim como a identidade da trajetória humana é

constituída, os laços de fé cristã formados, reformados, transformados,

tecendo a cultura em busca de significados [...]. A continuidade das

festividades em comemoração ao Senhor do Bonfim é reafirmada e

consolidada até mesmo entre a população não católica, quando, a cada ano,

nas duas primeiras semanas de julho, o povo se prepara para as festividades

religiosas, ensinadas pelos ancestrais (RIBEIRO, 2013,p.41-42).

Toda a memória histórica e cultural dessa cidade, ideologicamente

produzida ou não, está permeada pelo processo de edificação de uma capela no lugar

―sagrado‖, escolhido pelo Santo Padroeiro que, inexplicavelmente pela razão e,

insistentemente como ―determinação divina‖, dará lugar ao florescimento de uma

cidade. A partir de então, desenrolam-se fatos, produzem-se personagens que encenam

– produzem ou narram – toda a história da cidade. Estes personagens – sujeitos/objetos

– reverenciam o Santo Padroeiro como fundamento de sua existência coletiva,

edificando mais do que um templo, toda uma mística, a partir da qual se constrói cada

parte desse todo, desde o cenário físico-paisagístico da florescente cidade até aos perfis

dos atores, filhos da terra do Senhor do Bonfim. De acordo com Eliane Maria Fernandes

Ribeiro:

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Na perspectiva dos cartórios, a territorialização bocaiuvense inicia-se nas primeiras décadas do século XVIII, quando morava em latifúndio, o fazendeiro baiano Faustino Leite Pereira, provável descendente da bandeira de Matias Cardoso de Almeida. Antônia Leite, esposa de Faustino, como era costume à época, decidiu doar parte das terras ao patrimônio da igreja do Senhor do Bonfim, onde seria construída a cidade, devendo, ainda hoje, os habitantes que comprarem um terreno, cumprirem a obrigação de pagar percentual à Igreja (RIBEIRO, 2013, p.45).

Fig2. Foto: Antiga Matriz do Senhor do Bonfim, num dia de Festa do padroeiro. S/d. Presumivelmente entre as décadas de 40 e 50 do século XX. Fonte: www.senhordobonfim.net /pagina.php?id=19.Acesso em 22/04/2014.

Fig3.Foto: Matriz do senhor do Bonfim na atualidade (2014). Fig4.Foto: Matriz do senhor do Bonfim em noite do Mastro em homenagem ao padroeiro no mês de julho de 2013. Fonte: www.senhordobonfim.net /pagina.php?id=19.Acesso em 22/04/2014.

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35 Fig5.Foto: Vista da Avenida Francisco Dumont: Uma das ―Entradas‖ da cidade. Fonte: jornalescolaboc.jimdo.com/conheça-bocaiúva/.Acesso em 22/04/2014

As imagens acima permitem dizer que a memória da cidade passa em muito

pelo mito fundador da cidade como já demonstramos em de dados e pesquisas enunciados.

Quanto à organização político-administrativa, segundo Waldemar de

Almeida Barbosa, a princípio foi criada a Freguesia do Senhor do Bonfim, com sede no

arraial do mesmo nome, pertencendo então ao município de Montes Claros; sendo o

primeiro vigário José Maria Versiani. Entre os anos de 1846 e 1854. três leis alteraram o

―status administrativo‖ da região.11

A lei 1996, de 14 de novembro de 1873, criou o

município de Jequitaí, com sede no arraial do Senhor do Bonfim de Montes Claros, mas

a Vila não foi instalada. Com reviravoltas nas leis, só estabeleceram a Vila com a lei de

nº 3442 de 1887 que ratificou a lei de 1873 e definiu o arraial como sede do município. Por fim ―pelo Decreto n° 90, de 04 de junho de 1890, é elevada à cidade com o nome de

Bocaiuva‖ (BARBOSA, 1995, p.52).

Como já mencionamos, a religiosidade e a doutrina cristã-católica estão na

origem da cidade de Bocaiuva, como não poderia deixar de ser numa então colônia

portuguesa. Nessa perspectiva, as crenças, as práticas, o imaginário e as representações

11

Referimo-nos, com base em BARBOSA, às leis nº 288, de 12 de março de 1846 que suprimiu a

Freguesia do Senhor do Bonfim. Em 1850 foi restaurada a paróquia com a lei nº 472, de 31 de maio de 1850. Em 1854, com a criação do Bispado de Diamantina, toda a região ficou subordinada ao Novo bispado sendo que o cônego Versiani assumiu as funções de vigário forâneo. Para maior esclarecimento conferir BARBOSA, Waldemar de Almeida. Dicionário Histórico-Geográfico de Minas Gerais, 1995, p.52.

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sociais da comunidade estão fortemente marcadas por essa religiosidade, tanto no que

diz respeito à vida, quanto à morte. Ilustra sobremaneira tais concepções, especialmente

sobre a morte, o texto destacado abaixo, que circulou na região no Jornal Correio do

Norte de 28 de Dezembro de 1884:12

O Túmulo

Que ideia lúgubre e mysteriosa se apodera de nós, ao depararmos com esse ultimo vestígio da passagem do homem pela terra! que pavor inexplicável sentimos, a vista de um cemitério, de uma cruz na estrada, às horas silenciosas da noite! Sim! O viajor cançado esquece-se, então, dos trabalhos da vida, porque é imediatamente interpelado pela consciencia. O emblema da morte ahi está, e eil-o a meditar sobe a vida de além-tumulo. Ahi está a sepultura a dizer-lhe:_memento,homo,quiapulvises,et in pulveremreverteris;ao mesmo tempo que diz a cruz: in hoc signo vinces. É nessa hora solene, quando o homem se reconhece impotente ,ante a lei da morte, e quando mais impressionado se acha com essa ideia, _que a consciência se ergue altiva, e o interroga sobre o seu passado, relembrando-lhe todos os actos da vida, ainda mais os insignificantes. Eil-o confuso, tremulo e embaraçado com o terrível calculo do bem e do mal que há praticado, resultando, as mais das vezes, não poder contrabalançar este com aquelle. E feliz daquele que na hora extrema da vida, ao lado dos prazeres e glorias mundanas, encontra algum titulo que o possa recomendar diante do throno de Deus, diante deste Supremo Tribunal, cuja ideia faz tremer o mais justo, o mais virtuoso mortal! A existência de Deus, desse Ente que creou a natureza, que a domina, é incontestavel, e jamais povo algum se apartou dessa crença universal. E, porventura, o homem que no berço já se achou à sombra da miséria e, desde então, atirado à desgraça, no deserto da vida só teve por pharol o infortúnio, não irá gosar n‘outra vida a felicidade que o mundo lhe negou? Por certo: e esta esperança é para o desventurado o mais precioso dos thesouros. É no tumulo que o misero vê o termo de sua desgraça: porquanto é ele o ocaso desta vida ilusoria, ao mesmo tempo que representa a aurora de um dia infinito – a eternidade. E, contudo, encontra-se ainda que raramente quem duvide desta verdade, e até quem a negue absolutamente! Mas em que se funda o sceptico, em que se bazêa o atheu?! Um absurdo será a resposta. Cremos, pois, na eternidade, na existência de uma outra vida, em que o bem é premiado e o mal punido. E desgraçado daquele que, rodeado de trevas, sem a luz desta crença, deixa-se surpreender pela morte. A vida, diz Chateaubriand, é um átomo na imensidade; é, na frase de Figuier,_um minuto na eternidade. Portanto, não devemos, por nossos actos, sacrificar a esta vida futura. Repetimos, pois, com V. Hugo: _ oh tu! oh ideal! Tu só existes!

12

Crônica extraída do Jornal Correio do Norte, do dia 28 /12/1884, Anno I, Nº 45, Seção Variedades, p.

03. O referido Jornal tinha, nessa época, como proprietário e redator o senhor Antonio Augusto Velloso e como editor o senhor Antonio Pereira dos Anjos. Além de noticiar fatos e acontecimentos diversos do Brasil e do mundo, com ênfase na região Norte-Mineira, de política a notas de falecimentos e homenagens póstumas, o jornal trazia na seção variedades crônicas e folhetins de cunho ―reflexão filosófica‖ como o selecionado acima. Registra-se que o transcrevemos na integra e da forma ortográfica como se apresenta inclusive a grafia dos nomes de proprietário e editor.

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O referido texto nos permite destacar alguns aspectos que abordaremos ao

longo dessa dissertação: o imaginário e os sentimentos humanos em torno da morte, as

concepções escatológicas pautadas pela ideia de juízo individual e de Deus como juiz

supremo, daí a crença em céu, inferno e purgatório, o imaginário em torno dos

cemitérios e as representações sociais presentes nesses espaços.

Voltando ao nosso objeto, a morte na ―terra do Senhor do Bonfim‖, torna-se

oportuno reportar ao artigo Cemitério e cidade: a nova capital e o lugar dos mortos13

,

no qual a pesquisadora Marcelina das Graças de Almeida nos informa sobre o culto ao

Senhor do Bonfim:

A devoção e culto ao Nosso Senhor do Bonfim são antigos e tem suas raízes em Portugal. Em razão de nosso passado colonial que nos liga umbilicalmente às terras lusitanas, o sentimento católico que permeava a sociedade portuguesa, irá se incorporar ao cotidiano do povo brasileiro em formação [...] Este é na realidade um desdobramento de todo o sentimento, respeito ao sofrimento do filho de Deus [...] A morte de Cristo no calvário é simbolizada pelo crucifixo, ficando conhecida no período colonial com a designação de Senhor do Bonfim, em outras palavras, é o momento em que Cristo encerra sua missão redentora e afirma entre suspiros: ―está tudo terminado‖ (ALMEIDA, 2013, p.149).

―Está tudo terminado‖! Com essa emblemática expressão passemos aos

apontamentos sobre o imaginário e as representações sociais em torno da morte. Seria a

morte ―o fim‖? ―Alma minha, ponha-se rígida e forte/que a morte é certa/e ela virá‖... (Domínio público).

Uma certeza acompanha a existência humana – a de que somos mortais. Os

versos acima, trechos de uma ―Reza de Santa Cruz‖ 14

revela-nos que a morte faz parte

dos mistérios da vida. Essa certeza, da qual é impossível escapar, inquieta o homem

desde tempos imemoriais, produzindo incertezas que incitam especulações filosóficas e

representações sociais.

A morte também se faz presente na produção do historiador Michel de

Certeau que em seu texto – Morrer: o inominável – parece fazer coro a Phillipe Ariès,

quando este afirma que a morte tornou-se um objeto interdito. Num texto hermético e

profundo, Certeau nos fala que ―a morte, porém não se nomeia. Escreve-se no discurso

da vida, sem que seja possível atribuir-lhe um lugar particular‖ (CERTEAU, 2008, p. 302) e revela não só como o tema é instigante como também uma aporia em termos de

13

Publicado na revista eletrônica Revista inter-legere entre janeiro /junho de 2013.Acesso em 10 de janeiro de 2014. 14

Citado por Joaquim Fonseca OFM na obra Música Ritual de Exéquias: Uma proposta de Inculturação, 2010, p.75.

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escrita. No entanto, eis o nosso desafio: enveredar pelas entranhas da morte na História,

a fim de deixar fluir os enigmas e fantasmas da ―irmã morte‖ numa alusão tomada de

empréstimo a Francisco de Assis.15

Seria essa designação dada por São Francisco uma

forma de aceitação plena e piedosa da morte como destino natural e afinal beatífico do

homem enquanto ―criatura de Deus‖? Ou seria uma estratégia de driblar o medo que a

morte produz? Para muitos até o próprio Cristo em sua face humana expôs o efeito da

morte sobre o homem quando evocara: ―Pai, por que me abandonastes‖?

Ao homem a morte impõe o terror, desde tempos remotos. Esse medo seria

da não aceitação do fim físico da existência terrena ou da imprecisão do que nos espera

após a decomposição? A matéria se esvai em pó, e a alma?16

Essa aura que nos anima e

nos faz sentir imortais, a que fim se destina após a desintegração do corpo que lhe dá

abrigo? Estranha racionalidade que despertou o homem para a fé. Imbuídos dessa fé em

seus mitos, estes criados a fim de responder às racionalizações humanas, o homem ―culturaliza‖ a morte – a materialidade primeira da transcendência e a transforma num

enigma, num mistério, num poder que arrebata a todos equanimente. O fato social17

que

15 Segundo Maria de Lourdes Pereira da Costa em seu texto A Morte: evolução e desafios da finitude―Da mesma forma há várias maneiras pela qual a denominam: ‗a Maldita‘, ‗Aquela senhora‘, ‗a Ceifadora de Almas‘, ‗o Ceifador‘, a ‗Captura‘, porém, a mais carinhosa, sem dúvida é a de São Francisco de Assis

(1981, p.831) que em seu leito de morte a incluiu em seu Cântico das Criaturas, com os versos: ‗Louvado sejas, meu senhor, por nossa irmã a Morte corporal, à qual nenhum vivente pode escapar...‖ p.104. Cf.

NEA – Núcleo de Estudos da Antiguidade www.nea.uerj.br. Acesso em 20/07/2013.

16 Alma (do lat. anima: sopro vital) I. Por oposição ao corpo, a alma é um dos dois princípios do composto humano: princípio da sensibilidade e do pensamento, fazendo do corpo vivo algo distinto da matéria inerte ou de uma máquina. 2. Na filosofia aristotélico-escolástica, a alma humana, que é uma alma pensante, constitui o principio mesmo do pensamento. Ela é um princípio de vida: "ato primeiro de um corpo natural organizado" (Aristóteles) ou, então, "forma de um corpo organizado tendo a vida em potência".3. Para Descartes, alma é sinônimo de pensamento ou de *espírito: "Sou uma substância cuja essência toda ou a natureza não é outra senão a de pensar." Depois de instituir o cogito como verdade primeira, Descartes conclui: "A proposição `Eu existo' é necessariamente verdadeira todas as vezes que a pronuncio ou que a concebo em meu espírito. De sorte que eu, quer dizer, a alma, pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo." Mas quem sou eu, quando duvido? Uma coisa que pensa, uma rescogitans, uma mente (mens). Assim se funda a distinção da alma (imortal) e do corpo (parte da res extensa). 4. Para outros filósofos, Schelling, por exemplo, a alma é o princípio de unidade e de movimento sustentando a continuidade do mundo (orgânico e inorgânico) e unindo toda a natureza num organismo universal. Essa ideia da alma do mundo já é bastante frequente nos séculos XVI e XVII. 5. Observemos que, na filosofia antiga e clássica, alma é sinônimo de espírito e se opõe a corpo. Contudo, enquanto o corpo se destrói, seu princípio oposto, a alma, é indestrutível: donde a "imortalidade da alma"; não se fala da "imortalidade do espírito". No vocabulário contemporâneo da filosofia, só se emprega o termo "espírito". Aliás, depois de Kant, os problemas concernentes à existência de Deus ou à imortalidade da alma não revelam mais da filosofia. 6. Hegel fala da "bela alma" para designar uma atitude existencial do indivíduo que procura preservar sua pureza moral, sem se engajar na ação, refugiando-se na pureza de seu coração. Cf. JAPIASSU & MARCONDES, Dicionário Básico de Filosofia, 1990.

17 O fato social, segundo Durkheim, consiste em maneiras de agir, de pensar e de sentir que exercem determinada força sobre os indivíduos, obrigando-os a se adaptar às regras da sociedade onde vivem. No entanto, nem tudo o que uma pessoa faz pode ser considerado um fato social, pois, para ser identificado como tal, tem de atender a três características: generalidade, exterioridade e coercitividade. Coercitividade – característica relacionada com o poder, ou a força, com a qual os padrões culturais de

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equaciona, pelo menos em nível terreno, a desigualdade entre os homens18

. É o que se

pode observar nas palavras do padre Raphael Bluteau, lexicógrafo que viveu no século

XVIII e que traz elucidativos verbetes relacionados à temática da qual nos ocupamos,

por denotarem concepções que marcaram a cultura ocidental-cristã em torno da morte:

No véu dos olhos se vê que a morte não distingue as pessoas, mas a grandes e pequenos, bons e maus, igualmente leva. Mostram as asas dos pés a velocidade , com que em todas as partes se acha, tirando vidas, a falta de orelhas é demonstração de que não ouve a ninguém, a razões e gemidos sempre surda, e para todos implacavelmente tirana (BLUTEAU,1712-1721,vol.8,p. 588).

Por si só essa qualidade apresentada no excerto acima poderia encerrar toda

e qualquer especulação sobre a morte. Cientes desse poder inexorável que é a morte, aos

homens, caberia viver. A vida – a antítese da morte, num primeiro momento, surge

como o usufruto de um tempo e de uma consciência terrena. E ceifados desse tempo e

consciência, a cada homem, a partir da morte, restaria comungar com a terra a sua

desintegração ou nova ―integração‖. No entanto, ao homem enquanto ―ser de razão‖ não é possível aceitá-la como o fim absoluto. Daí nascem os mitos, as religiões, as filosofias

e, em consequência destes, os ritos, as práticas, as sensibilidades e sentimentos, as

representações sociais e imaginários, materializados e reais que ajudam o homem a

conviver com o inominável – o morrer.

Ainda que inominável, a morte se faz presente até nas imagens mais

aparentemente entusiásticas da vida. A expressão latina ―Carpe Diem‖ 19

, proferida

desde a antiguidade clássica e vista por muitos, hoje, como sendo reveladora de uma

mensagem otimista, carrega em sua semântica a ideia de que a morte está à espreita,

portanto, aproveite o dia! ―É preciso amar as pessoas como se não houvesse o amanhã‖ 20

, a frase /refrão de uma música popular no Brasil, indica-nos a emergência da vida

uma sociedade se impõem aos indivíduos que a integram, obrigando esses indivíduos a cumpri-los. Exterioridade – quando o indivíduo nasce a sociedade já esta organizada, com suas leis, seus padrões, seu sistema financeiro, etc.; cabe ao indivíduo aprender, por intermédio da educação, por exemplo. Generalidade – os fatos sociais são coletivos, ou seja, eles não existem para um único indivíduo, mas para todo um grupo, ou sociedade. 18

Não se pode negar que num plano terreno ―a morte reproduz em seu bojo um sistema de distinção‖, haja vista as formas de enterramento e rituais da morte que evidenciam a condição social do indivíduo, sejam no aparato ou nas formas tumulares tornando possível um ―estudo sociológico da morte‖. O que queremos dizer ao referirmos à ideia de equidade da morte relaciona-se ao fato de que esta será, para todos, o destino último. É o que revela Raphael Bluteau nos trechos citados. 19

Carpe Diem, expressão usada pelo poeta latino Horácio (I a.C).Literalmente quer dizer ―colha o dia‖, ou seja, aproveite o momento. Assim ele começa o poema: ―Colha o dia, confie o mínimo no amanhã‖. Cf. ARANHA & MARTINS.Filosofando: Introdução à Filosofia, 2009, p.97. 20

Trecho da música Pais e Filhos, do grupo de rock brasileiro Legião urbana, sendo a letra uma composição de Renato Russo e a melodia de autoria dos três integrantes da banda: Renato Russo, Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá .

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frente à possibilidade da morte, que é certa, só não se sabe a hora. Tratar-se-á de uma

imagem escatológica? O grande problema que gira em torno de se pensar a morte é se

realmente é um fim ou se é uma continuação para uma nova realidade que não podemos

conhecer enquanto estivermos vivos.

Nessa perspectiva, temos as várias recomendações para se alcançar um ―bom lugar‖, que nem mesmo temos certeza de que exista, mas que, como trataremos

mostrar mais adiante, num tempo de longa duração, marcaram as concepções

escatológicas do Ocidente cristão católico e, mais, produziram uma cultura fortemente

centrada na dualidade corpo/alma, carne/espírito, pecado/salvação, enfim morte/vida ou

vida/morte.

Também o morrer e a morte, em todos os tempos e culturas, ocupam as

mentes humanas que objetivam defini-los. É o que veremos mediante as palavras do

padre Rapahel Bluteau. Esse autor define o morrer como ―acabar teus dias. Acabar a

vida. Mori‖ e a morte como ―separação da alma e do corpo no composto humano, e fim

da vida ou cessação do movimento dos espíritos, e do sangue dos brutos‖ (BLUTEAU,1712-1721,vol.8,p. 585,). Prossegue o lexicógrafo, numa profunda reflexão

sobre a morte, valendo-se tanto de imagens que remontam a cultura do Egito Antigo

quanto de imagens bíblico-cristãs, como se observa:

Pintaram os egípcios a morte em figura de moça, com seu arco e flechas na mão, olhos vendados, asas nos pés, e sem orelhas: moça a fizeram porque e bem em todas as idades faz estrago, principalmente atira à mocidade, tanto assim que empregou o primeiro tiro em Abel, que dos homens do seu tempo era o mais moço (BLUTEAU, 1712-1721, vol.8,p. 585,).

Reforçando as concepções que, construídas ao longo do medievo europeu,

ainda eram muito presentes à época em que produziu seus estudos, o autor aponta a

mentalidade característica do Ocidente cristão que concebia a morte como um castigo

para os pecados do homem e que esta tinha sua utilidade. Em suas palavras:

Entrou no mundo a morte para castigo do pecado, mas não deixa de ser útil ao mundo, porque senão fora o medo da morte, seria imortal a malícia humana [...] Nenhuma coisa tem mais poder, para ter o homem sujeito a Lei de Deus, que o medo da morte, porque a morte é destruição do ser, é aniquilação do composto que a padece (BLUTEAU, 1712-1721, vol. 8,p.585,).

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Num primeiro momento, a premissa acima parece contraditória a alguns

preceitos do Cristianismo católico, quando afirma que a morte é a destruição do ser.

Afinal, como coaduná-la com a teologia que prega a ressurreição dos mortos, não

apenas da alma destes, mas inclusive do corpo e que, após o juízo final, os eleitos, corpo

e alma viveriam a vida eterna no paraíso celestial? Esta é, aliás, uma lacuna que o

Cristianismo busca preencher com argumentos de retórica fundamentados na fé e que se

colocam como verdades, dogmas e que, como pontuaremos adiante, traz as influências e

confluências de ideias e culturas denominadas pagãs que foram apropriadas e

ressignificadas pelo Cristianismo.

1.1. Memento mori: filosofias, teologias, arte, representações e imaginário

A morte não passa de uma ilusão fenomênica. Põe fim à vida, mas não à existência, uma vez que longe de nos aniquilar, leva-nos de volta ao nosso estado original, o da coisa em si.

SHOPENHAUER In: HUISMAN, 2001, p. 902

-Como desejaria morrer? - Aceitando a morte como portadora da comunhão absoluta!”

Murilo Mendes em resposta ao questionário de Proust em

13/10/1962.

Resguardadas as diferenças tempo-espaciais dos autores e epígrafes acima

destacadas, bem como as circunstâncias e vieses de suas ―observações‖ acerca da morte,

entendemos que há elemento comum entre as ideias fomentadas, qual seja: a percepção

de que a morte não significa o fim absoluto de um ser. Essa concepção parece permear o

imaginário coletivo desde tempos remotos. Parece impossível ao homem, em seu

inconsciente, admitir a possibilidade de sua morte, como afirma Elisabeth Kübler-Ross:

Em nosso inconsciente, não podemos conceber nossa própria morte, mas acreditamos em nossa imortalidade. Contudo, podemos aceitar a morte do próximo, e as notícias do número dos que morrem nas guerras, nas batalhas e nas auto-estradas só confirmam a crença inconsciente em nossa imortalidade (ROSS, 1998, p. 18).

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Esse é um fenômeno verificável em nossos dias, em que a morte é

estampada nas manchetes de todos os tipos de mídia. No entanto, por um lado, essa

banalização da morte ―sem rosto‖ é tentativa inconsciente de sua negação e, por outro

lado, a ―espetacularização‖ da morte de um ―ídolo‖, promovendo uma ―histeria

coletiva‖, é parte do ―sistema de dominação que mantém a comunidade submissa às

ideias de poder‖ (CHIAVENATO, 1998, p. 41). Nesse sentido, a morte produz uma ―aura‖ de poder sobre os homens. Ela, a morte, enquanto ―fenômeno transcendental‖,

que inegavelmente atemoriza o homem pela impossibilidade de certezas ( talvez mais

do que a morte em si, o que amedronta o homem é sua incapacidade de compreensão e

explicação do que virá depois desta), quanto como ―fenômeno cultural‖ que

―caracteriza‖ a vida em sociedade, a morte exerce seu poder. Por mais que busque

distanciar-se dela ou negá-la, a voz que ecoa: Memento Mori, expressão latina que

significa ―lembra-te de que vais morrer‖.

Sem possibilidade de escapar desse poder inexorável que é a morte, ao

longo do tempo e em diferentes sociedades, o homem criou seus ―subterfúgios‖ e a

morte se integrou à vida humana, produzindo filosofias, teologias, arte, práticas e

sensibilidades que permanecem e/ ou se transformam. Um dos subterfúgios mais

presentes nas sociedades humanas desde tempos imemoriais é a crença na imortalidade

da alma. Desde as primitivas sociedades totêmicas que entendiam que o morto

incorporava-se ao totem21

ou reencarnavam. Ou seja, ―para os primitivos o homem não

é mortal: ele permanece (no totem) ou volta (reencarnado)‖ (CHIAVENATO, 1998, p. 13), essa crença foi incorporada por diversas religiões ou sistemas filosóficos,

produzindo, assim, representações sociais e imaginários que se conectam a práticas,

rituais e formas de ocultação do corpo morto.

A dualidade corpo e alma, além de uma explicação acerca da totalidade do

Ser, sempre está ligada à ideia da morte, ou seja, da finitude física. A alma, nesse

sentido, é mais um meio de salvação da própria existência ou uma forma de amenizar a

consciência da própria finitude. A morte só é suportável graças a essa promessa, de que

uma dimensão pessoal – aqui a alma vista como uma sombra do corpo – seja imortal e

que o homem possa ter consciência e espiar a própria vida terrena em outra dimensão,

após o desaparecimento do mundo.

21

Segundo Chevalier &Gheerbrant (2009, p. 890) a palavra totem tem como verdadeira significação: ‖Guardião pessoal ou poder tutelar pertencente a um homem considerado individualmente‖, e ainda ―como símbolo de um elo de parentesco ou de adoção com uma coletividade ou um poder extra-humano.‖

Page 45: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

43

Por esse fator, o tema morte sempre está presente nas religiões, pois elas

prometem uma cidade, um paraíso, uma reencarnação, uma purificação, mas o que é

importante notar é que, mesmo a alma sendo entendida como imortal e superior ao

corpo, as interpretações sempre sugerem uma ligação da alma com o mundo físico e

essas possíveis pontes podem esconder o medo de que realmente não exista nada além

desse mundo físico, o que seria uma ideia absurda para o homem, que acredita ser um

animal superior aos outros.

Acredita-se que essa crença alimenta a aproximação, numa concepção

eliadiana22

, entre a cosmogonia (ideia de criação do mundo) e a escatologia (doutrina

dos fins últimos, ou seja, do fim do mundo). Optamos por iniciar nossas reflexões sobre

a morte e as representações sociais que esta impõe à sociedade humana, a partir das

concepções escatológicas que permeiam o imaginário coletivo, em diversos tempos e

espaços, buscando demonstrar, a partir dos trabalhos de Mircea Eliade e Jacques Le

Goff, as similaridades entre concepções de sociedades primitivas, arcaicas e as

concepções judaico-cristãs que marcam o Ocidente. Acreditamos que esse caminho

possibilitará delinear, com clareza, a trajetória das representações sociais e do

imaginário coletivo em torno da morte, das práticas e rituais de ocultação do corpo

morto e dos sentidos que assumem os lugares de enterramento no mundo cristão-

católico, que é o recorte histórico proposto neste trabalho.

1.2 Concepções Escatológicas: no passado como hoje, visões do paraíso e do inferno.

O Criador assegura ao casal que criou: quando este mundo se tornar mau eu o refarei inteiramente; e depois que eu o refizer, conhecerei um novo nascimento.

Mito Maidu citado por ELIADE, 1972, p. 45.

Vi um novo céu e uma nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra passaram, e o mar já não existe... Então ouvi uma grande voz vinda do trono dizendo: e lhes enxugará dos olhos toda lágrima e a morte; já não existirá, já não haverá luto, nem pranto nem dor, porque as primeiras coisas se passaram. E aquele que está assentado no trono, disse: Eis que faço novas todas as coisas. Apocalipse de João XXI, 1-5, adaptado e citado por ELIADE,

1972, p.45.

22

Referimo-nos ao pensamento do historiador das religiões Mircea Eliade. Entre seus trabalhos mais conhecidos destacamos Mito e Realidade e O Sagrado e o Profano, utilizados nesta dissertação.

Page 46: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

44

Partindo das epígrafes citadas, pretende-se apontar alguns aspectos do que

chamamos de Escatologia. O termo escatologia23

é recente na teologia cristã. Data do

século XIX, tendo se tornado corrente no século XX. É o que nos aponta Jacques Le

Goff que, no livro História e Memória, dedica um capítulo para conceituar e historiar o

termo que tem origem no grego – taescháta – ―as últimas coisas‖ ou escháton ―o

acontecimento final‖ (LE GOFF, 2003, p. 323-324). Em síntese, afirma-nos o autor que

a escatologia ―trata-se de uma ‗doutrina dos fins últimos‘, conjunto de crenças acerca do

destino final do homem e da humanidade‖.

Le Goff ressalta que essa concepção está presente em todas as religiões, em

diferentes formas, ainda que a visão do tempo/temporalidade varie. Ou seja, há a

concepção de tempo como retorno às origens ou ao contrário, ―como um fim, senão do

mundo, pelo menos do mundo tal como é‖. (LE GOFF, 2003, p. 323). Analisando os

trechos recortados, concordamos com essa inferência do autor. Embora em se tratando

de culturas distantes e diversas, no tempo e no espaço, pode-se especular que , assim

como a Cosmogonia – ideia acerca da criação do mundo, a Escatologia – doutrina dos

fins últimos, presentes nestas culturas, apresentem similaridades. Nesse sentido, como

defende Mircea Eliade, há relação entre a escatologia e a cosmogonia, no que diz

respeito às ideias: de ―perfeição do princípio‖, de que ―o fato essencial não é o fim, mas

a certeza de um novo começo‖, de que ―o recomeço é uma réplica do começo absoluto,

da cosmogonia‖ (daí o valor do conhecimento das origens). Assim, as epígrafes citadas

confirmam a ideia de que o fim do mundo não é de todo pessimista. Ainda mais, poderia

talvez revelar a crença na imortalidade.

Segundo Le Goff, a escatologia judaico-cristã e as derivações desta como o

milenarismo que, em alguns momentos, produziu as utopias de revolução social –

teleológicas, modernas e laicas – afirma a crença no progresso da humanidade e assim

uma ―viragem histórica‖ que descortinará um ―novo tempo‖, um ―novo mundo‖. Tais

ideias se aproximam, significativamente, de muitos mitos relatados por Eliade em sua

obra Mito e Realidade (1972). A título de exemplo, citar-se-ão os andamaneses24

que

acreditam que, após o fim do mundo, surgirá uma nova humanidade, que viverá em

condições paradisíacas: não haverá mais enfermidades, nem velhice, nem morte. Os

mortos ressuscitarão após a catástrofe. Mais uma vez, a crença na imortalidade ou

23

Também denominada Novíssima ou Novíssima Tempora por dogmáticos antigos que escreviam em latim (LE GOFF, 2003, p. 324). 24

Povo das Ilhas Andamãs (arquipélago montanhoso do Golfo de Bengala). Cf. Dicionário OnLine Português.

Page 47: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

45

negação da morte se faz presente no inconsciente coletivo em diversas culturas e tempos

históricos. Conforme Eliade,

Em suma, esses mitos do Fim do Mundo, implicando mais ou menos claramente a recriação de um novo Universo, exprimem a mesma ideia arcaica e extremamente difundida da degradação progressiva do Cosmo, requerendo sua destruição e sua recriação periódicas. Desses mitos de uma catástrofe final, que será ao mesmo tempo o sinal anunciador da iminente recriação do Mundo, é que surgiram e se desenvolveram os movimentos proféticos e milenaristas das sociedades primitivas contemporâneas (ELIADE, 1972, p.46).

Importante registrar que há diferenças marcantes entre a escatologia

primitiva e/ou de culturas orientais, bem como das civilizações arcaicas e a escatologia

judaico-cristã. Mais ainda, há diferenças significativas entre as escatologias cristãs –

católica e protestante – e que, sendo o Cristianismo, essencialmente, uma ―religião

histórica‖, apresenta a sua escatologia impregnada das transformações históricas. Contudo, adverte Mircea Eliade ―O Cristianismo, tal como compreendido e praticado

nos quase dois milênios de sua história, não pode ser completamente dissociado do

pensamento mítico‖ (ELIADE, 1972, p. 47).

Assim como o mito Maidu citado acima, em diversas cosmogonias,

inclusive a judaico-cristã, presente está a ideia de Criação do Mundo, em sua plenitude,

por um Ente25

superior, e essa Criação perfeita, harmônica – é o ―Paraíso Terrestre‖. Também no Apocalipse de São João há a ideia do Onipotente e Onisciente Criador. Nos

dois casos, está presente a ideia de recomeço-recriação, ainda que na concepção cristã

este ―mundo recriado‖ não corresponda exatamente ao mundo profano, ambos afirmam

a relação entre cosmogonia e escatologia.

Na sequência dos estudos de Mircea Eliade e Jacques Le Goff,

apresentaremos, neste tópico, um breve panorama da escatologia, desde as culturas

remotas e arcaicas, passando por culturas orientais até a escatologia judaico-cristã,

sendo que dedicaremos especial atenção à escatologia cristã. Importante ressaltar, como

o fez Le Goff que, tradicionalmente, o termo escatologia foi formado e usado para falar

25

Ente (in. Being; fr.Être,ai.Selentes-,it.Ente).O que é, em qualquer dos significados existenciais de ser.

Às vezes, mas raramente, essa palavra é usada para designar somente Deus: é o que faz Gioberti, em sua fórmula ideal: "o E(Ente) cria o existente"(Introduzione alio studio delia fil.,II, p. 183): onde "Ente" equivale a Deus, como ser necessário, e ―existente" equivale às coisas criadas. Habitualmente essa palavra é usada em sentido mais geral. Diz Heidegger:"Chamamos de Ente muitas coisas, em sentidos diferentes. Ente é tudo aquilo de que falamos, aquilo a que, de um modo ou de outro, nos referimos; Ente é também o que e como nós mesmos somos"{SeinundZeit,§ 2). Mas nesse sentido generalíssimo prefere-se hoje a palavra entidade .Cf. ABBAGMANO , Dicionário de Filosofia, 2000).

Page 48: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

46

dos ―fins últimos‖ coletivos. Segundo o autor: ―A escatologia individual só assume real

importância na perspectiva da salvação que adquiriu, inegavelmente, um lugar de

primeiro plano nas especulações escatológicas, mas não é certo que ela seja

fundamental, nem original nas concepções escatológicas‖ (LE GOFF, 2003, p. 325).

É nessa perspectiva que se assenta esta reflexão. Um breve histórico a partir do

estudo de Le Goff, traçando linhas gerais das ―tipologias escatológicas‖, analisadas pelo

autor, faz-se necessário para arregimentar argumentos que referendem a proposta de

revelar, nesta análise, ainda que de forma panorâmica, as similaridades entre as

concepções escatológicas, sem com isso renegar e abandonar as especificidades destas

em diversas culturas.26

O autor as separa em escatologias não judaico-cristãs,

enumerando nesse rol as escatologias ―primitivas‖, as escatologias do ―eterno retorno‖,

as religiões do futuro ou ―reveladas‖ que compreendem o judaísmo e o Cristianismo,

mas englobam o zoroastrismo e o islamismo, a escatologia vetero-testamentária

(judaica) e a escatologia neo-testamentária (Cristianismo), apresentando o que

denomina escatologia apocalíptica, com ênfase na escatologia judaico-cristã.

A partir desse esboço, Le Goff rastreia as transformações e permanências

nas concepções escatológicas no ocidente cristão da Idade Média à contemporaneidade,

afirmando que há uma renovação escatológica nas religiões, percebida desde fins do

século XIX e que esta ―parece estar ligada à aceleração da História no mundo‖ (LE

26

Nesse ponto é importante registrar as noções de Diacronia e Sincronia. Segundo ABBAGMANO,

DIACRÔNICO/SINCRÔNICO(fr.Diachro-nique,synchronique,in.Diachronic,synchro-nic;ai.Diachronik, ynchronik,.\t. Diacronico,sincronicó).Termos introduzidos por Ferdinand de Saussure na linguística, usados depois em outros campos, especialmente na antropologia cultural. Designam o eixo da simultaneidade [sincrônico], do qual se exclui qualquer intervenção de tempo, e o eixo das sucessões [diacrônico], no qual é possível considerar apenas uma coisa por vez, mas onde estão situadas todas as coisas do primeiro eixo com suas mudanças {Cours de linguístique générale, 1922, p. 115). A dimensão S. constitui o sistema ou estrutura (v.) de uma língua, sistema este composto por elementos lexicais, gramaticais e fonológicos que têm entre si relações definidas. A dimensão D. é o conjunto de variações sofridas por um sistema linguístico sob a ação de eventos que não só lhe são estranhos como também não constituem um sistema. Essa distinção foi aceita pela linguística estruturalista (Trubetzkoy, Jakobson, v. E)e por Lévi-Strauss, que fez a distinção entre dimensão D. e história, considerando o tempo de que fala esta última irreversível ou" estatístico", enquanto a dimensão D. considera o tempo como reversível e não cumulativo{Anthropologie structurale,1958, p. 314).Para ilustrar tais conceitos na perspectiva da ―História da Morte‖ e as questões afins, nos apoiamos nas palavras de ÁRIÈS que, justificando a seleção de temas apresentados na obra ―A História da Morte no Ocidente‖ nos possibilita compreender os conceitos referidos. Sustenta ÁRIÈS ―[...]Como muitas questões de mentalidade que se situam na longa duração, a atitude perante a morte pode parecer quase imóvel através de períodos de tempo muito longos. Aparece como acrônica. E, no entanto, em certos momentos, intervém modificações, na maior parte dos casos lentas e por vezes imperceptíveis, e hoje em dia mais rápidas e mais conscientes.[...[ O primeiro [tema] situar-se-á preferencialmente na sincronia. Abrange uma longa série de séculos, da ordem do milênio. Chamar-lhe-emos a morte domesticada.Com a segunda comunicação entraremos na diacronia: quais as alterações que, na Idade Média, aproximadamente a partir do século XII ,começaram a modificar a atitude acrônica perante a morte ,e que sentido podemos atribuir as essas alterações.‖Cf. ÁRIÈS,1989,p.19.

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47

GOFF, 2003, p. 358). Seguindo esse rastro, especula-se a relação entre as concepções

escatológicas contemporâneas no ocidente e as atitudes do homem diante da morte,

especialmente no que tange aos rituais fúnebres e lugares de enterramento. Voltaremos

a esse ponto apresentando alguns apontamentos ao final deste tópico.

1.2.1. Escatologias ao longo da “História”: linhas gerais

1.2.1.1. Escatologias “primitivas”

Reafirmando a concepção eliadiana, pode-se inferir que são as cosmogonias

primitivas que informam sobre as concepções escatológicas destes, uma vez que ―poderíamos dizer, numa fórmula sumária, que, para os primitivos, o Fim do Mundo já

existiu, embora se deva repetir num futuro mais ou menos próximo‖ (ELIADE, 1972, p. 42). Tais cosmogonias se revelam repletas de mitos de cataclismos cósmicos, dentre os

quais o dilúvio é muito frequente, que narram o fim do mundo e este motivado por

razões que vão da culpa dos homens pelos seus pecados e falhas rituais, ou pela vontade

do ―Criador‖ que, onipotente, destruirá tudo o que criou sem distinguir os bons e os

maus (como acreditam os negritos da península de Malaca), ou, em outra concepção um

deus que ressuscitará os homens, corpo e alma reunidos, que alcançarão uma vida feliz

(como creem os habitantes das Ilhas Andaman).

Há ainda os que acreditam que o fim do mundo é resultado de um processo

natural de degradação da terra, como exemplo pode se falar dos Cherokees da América

do Norte, ―quando o mundo envelhecer e se desgastar, os homens morrerão, as cordas

se romperão, e a terra submergirá no oceano‖ (ALEXANDER apud ELIADE, 1972, p. 45).

Alguns povos primitivos creem na vinda de um Ente benevolente e

transcendental que ―recriará‖ o mundo, sendo que nesse ―mundo recriado‖ os homens

poderão viver felizes para sempre. É o caso dos índios Salishs na América do Norte.

Nesse sentido, aproxima-se das concepções escatológicas do ―messianismo‖ e do

―milenarismo‖ judaico-cristão. Tal ideia reforça a nossa concepção de que se pode

verificar similaridades entre as concepções escatológicas de culturas tão ―distantes‖ no

tempo e espaço e nos impele a uma ―especulação filosófica‖, qual seja, ao homem é

impossível o pensar, o imaginar o nada absoluto, daí a necessidade de criar mitos. Aqui,

entendemos o mito como intrínseco à condição humana, como Eliade, que afirma ―O

mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo

Page 50: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

48

primordial, o tempo fabuloso do ‗princípio‘[...] Os mitos descrevem as diversas, e

algumas vezes dramáticas, irrupções do sagrado (ou do sobrenatural) no

mundo‖(ELIADE,1972, p. 09)

Outra similaridade que se pode inferir diz respeito às crenças dos índios

guaranis, no Brasil, cujas migrações (desde fins do século XIX até 1912) foram

estudadas pelo etnólogo brasileiro Kurt Nimuendajú. Esse estudo foi citado por Eliade

em sua obra Mito e Realidade e também por Le Goff em Memória e História. Em

síntese, esse ―grupo em migração‖ acreditava que uma catástrofe natural que destruiu o

mundo no passado se reproduziria e que para escapar dessa ameaça futura, a eles restava

encontrar e se refugiarem na ―Terra sem Mal‖ ou ―Céu‖, ―fora do tempo e da História,

sem dor, sem doenças, sem injustiças‖ (LE GOFF, 2003, p. 334).

Para encontrar a ―Terra sem Mal‖ eram necessários ritos (no caso danças

prolongadas) que pudessem acelerar o ―Fim do Mundo‖ e revelar o ―caminho‖ que

conduz ao Paraíso. Essa ideia nos permite comparar tais migrações e crenças a um

movimento recente, percebido em diversos países que diz respeito à ―profecia maia‖ de

fim do mundo que se daria em 21/12/12. Sem entrar nas interpretações dadas ao

calendário desse povo que apontaria tal fato e sem problematizar profundamente as

razões pelas quais tal profecia tenha provocado tantos debates/comentários, nos

interessa apontar que tal crença mobilizou milhares de pessoas na América Latina, na

América do Norte, na Europa e até na Ásia. Muitos se deslocaram de seus países, suas

casas, de sua vida cotidiana para ―esperar‖ o ―fim do mundo‖ em ―lugares sagrados‖. Na pequena vila francesa de Bugarach foi montada operação de segurança por parte de

autoridades no sentido de evitar (ou amenizar) alguma possível ―convulsão social‖. Tal

exemplo, recente, é emblemático e revela as permanências de ―mitos‖ ou crenças

escatológicas desde tempos imemoriais.

1.2.1.2. Escatologias do eterno retorno

De um modo geral, as escatologias do eterno retorno,27

que apresentam

variantes de uma cultura a outra, têm como princípio a ideia de que o mundo é regido

27

Eterno retorno: Espécie de mito introduzido na filosofia por Nietzsche para descrever a "condição humana", revigorando uma ideia esboçada por certos pitagóricos, admitida pelos estoicos e certos neoplatônicos, sob uma forma astrológica, para designar a doutrina no movimento cíclico absoluto e

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49

por ciclo eterno, não tem princípio, nem fim. Este, ―passa, segundo ritmos e processos

diferentes, por fases de declínio, morte e regeneração: os fins do mundo são fins

provisórios‖. (LE GOFF, 2003, p. 334). Prevalece a concepção de tempo cíclico.

Resguardadas as especificidades, essa escatologia está presente no Oriente e no Extremo

Oriente e, segundo Le Goff, incluem-se aí a religião chinesa, o hinduísmo, o budismo. Esse autor ressalta ainda ―movimentos ou ideias religiosas‖ da Antiguidade que

comungavam da concepção do eterno retorno: a ―religião‖ da Grécia antiga e a Gnose. Afirmando que, ainda que as mesmas não se ocupassem das questões escatológicas, já

que criam ―na solidez da ordem do mundo estabelecida pela criação divina‖ (LE GOFF, 2003: 335), estes movimentos exerceram influência sobre as escatologias judaico-

cristãs.

Quanto à ―religião grega‖ há um conflito paradoxal. As concepções judaico-

cristãs, apesar de romperem com a ideia de ―tempo circular‖ grega e substituí-la pela

ideia de ―tempo linear‖, não se ―imunizaram‖ à influência grega. É o que revela a

expressão: ―Ora, a concepção cristã do tempo foi desde muito cedo contaminada, senão

‗reprimida‘, ela concepção grega e[...]uma das principais tendências da renovação

escatológica cristã atual[...]consiste em eliminar a contaminação helênica‖ (LE GOFF,2003, p. 337).

Também é inegável a influência helênica na crença da existência do Hades

(inferno) e dos Campos Elísios (paraíso) como destinos para as almas, sendo vistos

como resultados de ―escolhas‖ humanas que pode se decidir pelo ―caminho da direita‖

que levaria aos Campos Elísios grego, ou ao contrário, o ―caminho da esquerda‖ que

levaria ao Hades. É emblemático que, na teologia cristã, Jesus esteja ―à direita do Pai‖,

como se

O pai tivesse direita, o céu cadeiras e o ressuscitado ocupasse um lugar. Na verdade, o Cristianismo sofreu a influência do gnosticismo. Na disputa com a gnose, o Cristianismo primitivo se viu influenciado pelas concepções dualistas helênicas, nas quais o corpo não possui significado religioso-ético; a existência humana concreta não tem valor, não existe ressurreição corporal; somente a alma é importante. O Cristianismo mesmo acentuando, contra a gnose, a ressurreição do corpo, aceitou a primazia da alma - o que vai ser destacado a partir do século IV d.C., em Santo Agostinho, cuja compreensão

infinitamente repetido de todas as coisas. Em Assim Falou Zaratustra (1883-85) ele retoma a ideia de Heráclito do devir, segundo a qual tudo flui, tudo muda, tudo retorna, e declara: tudo passa e tudo retorna, eternamente gira a roda do ser. Em Ecce homo (1888) o autor tem sua primeira intuição quase mística do eterno retorno: se o tempo não é linear não faz sentido a distinção entre o "antes'' e o "depois". Se tudo retorna eternamente, o futuro já é um passado; e o presente é tão passado quanto futuro. Japiassú& Marcondes ..Dicionário Básico de Filosofia,2008,p.96-97.

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cristã do destino humano após a morte baseou-se, cada vez mais, nesse modelo dualista helênico (SILVA, 2009, p. 26).

1.2.1.3. A escatologia judaico-cristã

A Bíblia é a base doutrinária da escatologia judaico-cristã, sendo o Antigo

Testamento a base da doutrina judaica e, o Novo Testamento, especialmente com o

Apocalipse de João, que se pode dizer uma literatura judaico-cristã, inaugura

especificidades na escatologia cristã.

Quanto à escatologia vetero-testamentária ou judaica, Jacques Le Goff

afirma em seu texto que ―O judaísmo é a religião da espera e da esperança, isto é, da

própria essência da escatologia‖. (LE GOFF, 2003: 340). Essa frase revela, em nosso

entendimento, uma especificidade da religião judaica, inclusive em relação ao

Cristianismo, da qual foi embrionária. É sabido que os judeus ainda estão à espera do

Messias. O Antigo testamento, especialmente Gênese (12,1-7), embasa a escatologia

judaica, no sentido de que este reafirma a identidade entre fé em Deus e esperança no

futuro. Marcada pelo monoteísmo, num contexto adverso a essa concepção, a religião

judaica, no entanto, guarda algumas similaridades com as concepções escatológicas de

reinos vizinhos. É o que comenta Eliade

Quanto ao enredo do Ano Novo hebraico, escreve Mowinckel que ―uma das ideias dominantes era a entronização de Iavé como rei do mundo, a representação simbólica de sua vitória sobre seus inimigos, que eram simultaneamente as forças do caos e os inimigos históricos de Israel. O resultado dessa vitória era a renovação da criação, da eleição e da aliança — ideias e ritos das antigas festas da fertilidade, subjacentes à festa histórica. Mais tarde, na escatologia dos profetas, a restauração de Israel por Iavé foi compreendida como uma Nova Criação, implicando uma espécie de retorno ao Paraíso‖ (MOWINCKEL apud ELIADE, 1972, p.38).

Importante lembrar também, os momentos nos quais entre os judeus houve

―recaídas‖ politeístas, como relata Haroldo Reimer,28

As práticas sociais e religiosas dos chamados ‗sujeitos da fé‘, isto é, dos fiéis, nem sempre andavam em sintonia com as propostas oficiais. Nas casas e nos espaços comunitários cultuavam-se outras divindades ou mesmo se davam formas sincréticas de culto a Yahveh. Assim, por exemplo, textos atribuídos ao profeta Oséias, tidos como do século VIII a.C. , polemizam contra práticas populares em espaços comunitários como as feiras onde se realizavam rituais

28

Doutor em Teologia; professor titular no Departamento de Filosofia e Teologia da Universidade Católica de Goiás.

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51

de agradecimento ao Deus Baal pelas colheitas da roça. Frente a isso, o profeta, segundo estes textos, coloca a exigência de adoração exclusiva somente a Yahveh e rotula as formas desviantes de ‗prostituição‘ e ‗idolatria‘ (REIMER, 2008, p. 70).

Contudo, essa história marcada

por excelência, uma nação que vive em

Segundo Le Goff:

por provações faz de Israel e de seu povo,

função dessas concepções escatológicas.

verifica-se uma dramatização da escatologia nos livros proféticos – os pecados de Israel desencadearam a cólera de Yahweh. Terá lugar no ‗Dia do Senhor‘ um Juízo terrível (Amós, 5,18). Há uma dupla espiritualização da escatologia. Primeiro, no plano do Messias[...]evocado[...]um servidor de Yahweh, profeta perseguido e salvador, Messias redentor (Isaías, 7-12).[...] No plano do reino do futuro, já que não se trata de uma pura promessa material,[...] mas de uma nova Criação, selada por uma aliança (Gênese, 31; Ezequiel, 36; Isaías, 41). (LE GOFF, 2003, p. 339).

O autor destaca duas características a se observar na escatologia do antigo

judaísmo: a originalidade desta ao romper com a ideia de tempo cíclico, criando a ideia

de um tempo final como promessa de Deus, ―o judaísmo dá certo sentido ao tempo e à

história, que Deus conduz para um fim‖ (GALOT apud LE GOFF, 2003, p. 340). A

outra é a ambiguidade e hesitação da escatologia judaica diante da figura de Jesus, cujo

aparecimento produziu uma tensão entre a sua perspectiva histórica terrestre e uma

orientação voltada para o mundo transcendente e celeste. ―O judaísmo espera sempre o Messias e a realização da promessa‖ (LE GOFF, 2003, p. 342), daí reafirmarmos que a

teologia judaica, em essência, é escatológica.

A escatologia neo-testamentária, como a denominação indica, baseia-se no

Novo Testamento, no qual ,especialmente o Evangelho segundo São João, produziu

transformações na escatologia vetero-testamentária, dando origem à base doutrinária da

escatologia cristã. Para o Cristianismo a vinda de Jesus à terra marcou o início do

cumprimento da promessa – a salvação dos homens e a constituição do Reino dos Céus.

Porém, essa salvação e esse reino ainda não se realizaram a partir da vinda de Jesus (a

presença histórica, corpórea na Terra).

Com a Presença de Jesus, inicia-se um processo de reconciliação do homem

com Deus. Contudo, esse processo será marcado por provações e dor, que levaram Jesus

à Cruz e, por consequência, a humanidade que, comungando e revivendo o sofrimento e

relembrando a passagem da Cruz de Jesus Cristo e, aceitando a ideia de que Jesus

morreu para nos salvar, admitem que a culpa cabe ao homem, a todos os homens que

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52

são chamados a se redimirem com a prática das virtudes que abrirá, no fim, o Reino a

todos.

Enfim, a escatologia cristã iniciou-se com Jesus. Com Este, ―a escatologia

entrou na história e começou a realizar-se‖ (LE GOFF, 2003, p. 342). As escatologias

judaico-cristãs deram à história uma origem e um fim teleológico, mas o Cristianismo

inova ao dar à Encarnação (Jesus) um centro, conferindo assim sentido à história. No

entanto, afirma Le Goff, ―a escatologia do eterno retorno e da eternidade dão também

um sentido à história e as escatologias do tempo vetorizado não têm o monopólio da

lógica da história‖ (LE GOFF, 2003, p. 362).

Com isso o autor problematiza a própria escatologia cristã em sua relação

com a história e a ideia de tempo linear que ―camufla‖ o futuro ―tendo por modelos o

passado e o fim como uma reprodução das origens‖. (LE GOFF, 2003, p. 362). Tal ideia

nos remete a Mircea Eliade

A escatologia é apenas a prefiguração de uma cosmogonia do futuro. Mas toda escatologia insiste em um fato: que a Nova Criação não pode ter lugar antes que este mundo seja definitivamente abolido. Não se trata mais de regenerar o que degenerou — mas de destruir o velho mundo a fim de poder recriá-lo in totó. A obsessão da beatitude dos primórdios exige a aniquilação de tudo o que existiu e que, portanto, degenerou após a criação do Mundo: é a única possibilidade de restaurar a perfeição inicial (ELIADE, 1972, p. 40).

A partir desses mitos de fim do mundo é que surgiram os movimentos

proféticos e milenarismos que marcaram a trajetória também do Cristianismo, que terá

sua concepção escatológica fortemente influenciada pelos escritos do Apocalipse de São

João. As imagens apocalípticas de fim do mundo aparecem na escatologia judaico-

cristã. No entanto, conferem algumas especificidades uma vez que, para estas, o fim do

mundo será único, assim como a cosmogonia. O mundo não será destruído, mas

regenerado pelo poder e glória de Deus. O tempo, fio condutor de uma ―História Santa‖,

faz parte do domínio de Deus, impossível ao homem defini-lo, cronometrá-lo, talvez por

isso a humanidade viva a inquietação constante acerca do tempo do fim.

1.2.1.4. A escatologia apocalíptica: permanências e rupturas

Apokalysis do grego significa revelação. O termo presente na tradução grega

da Bíblia deu origem a uma literatura que, escrita entre os dois últimos séculos antes de

Cristo e os dois primeiros séculos da Era Cristã, marcaram a teologia judaico-cristã. No

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53

Cristianismo, depois de amplo e longo debate, esses textos foram aceitos como

canônicos e incluídos no Novo Testamento, como exemplo o Apocalipse segundo São João, incorporado no século I da Era Cristã. De um modo geral ―estes textos revelam a

organização do céu (com sua hierarquia de anjos, o mistério das origens com particular

insistência no Paraíso, onde se restabelecerá, no fim dos tempos, a amizade entre Deus e

o homem) e, sobretudo, os acontecimentos do fim dos tempos, isto é, a escatologia‖ (LE GOFF, 2003, p. 343-344).

São textos que se ligam tanto à teologia judaica quanto Cristã, mas que

apresentam diferenças nas interpretações teológicas. Para o propósito deste trabalho,

daremos ênfase à literatura apocalíptica Cristã. Sem dúvida, o corpus cristão, nesse

gênero, baseia-se no Apocalipse de São João, tornado canônico após longa discussão,

como já se afirmou. No entanto, os primeiros textos cristãos apocalípticos,

significativamente reconhecidos, são os capítulos dos ―Evangelhos sinóticos‖ ou

―Apocalipses sinóticos‖, assim denominados por fazerem parte de uma mesma visão.

Dentre estes se incluem Mateus, 24-25, de onde extraímos ―[...]Vocês estão

vendo tudo isso? Eu garanto a vocês: aqui não ficará pedra sobre pedra, tudo será

destruído.[...] Mas quem perseverar até o fim, será salvo‖ (MT 24,2-14), ou[...]―um

irmão entregará seu próprio irmão à morte, e o pai entregará o filho; os filhos ficarão

contra os pais, e os entregarão à morte.[...] Quem perseverar até o fim, será salvo‖ (MC 13,12-13) ou ―[...]Dias virão que não ficará pedra sobre pedra. Tudo será destruído.[...] Mestre, quando vai acontecer isso? Qual será o sinal?[...] Jesus respondeu: ‘ Cuidado

para que vocês não sejam enganados, porque muitos virão em meu nome, dizendo: ‗Sou

eu! ‘ e ainda: ‗O tempo já chegou‖. Não sigam essa gente.‖ (LC 21, 6-8). Percebe-se em

comum a questão escatológica do ―fim do mundo‖, dos sinais deste e a Parusia – a

salvação que se daria a partir da segunda vinda de Jesus. Esta repousa na perseverança e

no cumprimento da Palavra e será determinada no Juízo Final, pelo julgamento Divino.

O Apocalipse de São João, escrito no fim do século I D.C, faz uso de

imagens, símbolos, figuras e números de difícil compreensão. Escrito num momento em

que havia forte perseguição aos cultos monoteístas, notadamente aos cristãos em uma

Roma em que a decadência ameaçava a autoridade e o poder do Imperador. Os escritos

de São João parecem querer antecipar as dificuldades pelas quais passariam os cristãos

por causa de sua fé. Assim, era necessário desenvolver nestes a fé perseverante que ―manifestasse ao mesmo tempo decidida crítica à situação de opressão e firme

esperança de uma sociedade nova‖ ( BÍBLIA Sagrada ,Introdução ao apocalipse de São

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João). Também é um importante texto para o Cristianismo, visto que anuncia a salvação

e o Reino de Deus que traria um novo mundo e isso depois de um julgamento. Esse

julgamento e esse reino se realizam mediante o seguimento e testemunho de Jesus.

Nesse ínterim, corrobora a separação entre a escatologia judaica e a Cristã, pois ―o

judaísmo espera sempre o Messias e a realização da promessa. O Cristianismo defende

que, com Jesus, a escatologia entrou na história e começou a realizar-se‖ (LE GOFF, 2003, p. 342).

O apocalipse de São João exercerá por muito tempo influências sobre outras ―teses escatológicas‖ e movimentos milenaristas, bem como contribuiu para delinear o

―manual de conduta‖ imposto pelo ―Cristianismo do medo‖, como acompanhamos na

obrade Jean Delumeau (2009). Também inegável a contribuição dos textos

apocalípticos na criação de imagens que produzirão com maior ênfase, durante a ―longa

Idade Média‖, (nos termos indicados por Le Goff), esculturas, estatuárias, pinturas,

retábulos e literatura acerca do juízo Final, do inferno, do céu e do terceiro local – o

purgatório – instituído pela Igreja Católica, entre os séculos XII e XIII.

Quando aos movimentos milenaristas, Le Goff destaca o movimento

liderado por Joaquim de Fiore que, buscando um aspecto puramente espiritual, a sua

escatologia se choca com a Igreja de Roma. Outro movimento destacado foi liderado

por Savonarola, em Florença, de 1494 a 1498 que também incomodou a Igreja Católica

e fez desse líder mais um alvo do poder. Savonarola Foi preso e seu corpo queimado em

23 de maio de 1498. Esses movimentos milenaristas se desenrolam num contexto de

crise social em que o mundo é visto como em guerra entre as forças do bem e do mal,

onde um povo eleito, sob a liderança de um ―chefe carismático‖ se salvará no final,

garantindo para si o paraíso terrestre.

Quando ao encontro de ―Revoluções sociais‖ como as propostas por

Thomas Münzer, ou pelos anabatistas,29

inspirados por Melchior Hoffmamn, ou no

movimento dos levellers30

ingleses ou dos diggers31

que ―preconiza a espera do reino de

Deus já não no Além, mas num Aquém imediato‖ (Le Goff, 2003, 355), os 29

De acordo com o Dicionário OnLine de Português por Anabatistas entende-se membro de uma seita política e religiosa do séc. XVI. Os anabatistas, originários do protestantismo, rejeitavam o batismo das crianças como ineficaz, submetiam seus adeptos a um segundo batismo e preconizavam uma espécie de comunismo religioso. Tiveram como líderes Thomas Munzer, João de Leyde, e escolheram a cidade de Munster como centro. E ali foram esmagados. 30

Levellers(Niveladores):Movimento radical surgido na Inglaterra do séc.XVII cujo programa incluía a abolição da monarquia, reforma agrária e social e liberdade religiosa. 31

Diggers(cavadores):Grupo de dissidentes radicais formado em 1649 como uma ramificação dos levellers e que acreditava numa forma de comunismo agrário. Para melhor compreensão dos termos cf. EAGLETON, Ideologia: Uma Introdução, 1997, p.19.

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55

milenarismos provocaram mudanças na escatologia cristã. Se, por um lado, a Igreja

Católica combate os milenarismos, em busca de afastar as contradições das

interpretações apocalípticas, ignorando a perspectiva do fim dos tempos, dando à

escatologia um tom mais doutrinário e espiritualista, as igrejas saídas da reforma, em

maior ou menor grau, davam relevo à escatologia bíblica, especialmente para atacar a

Igreja Católica

Na Idade Moderna, no contexto das grandes descobertas e do ―encontro com

o novo mundo‖, a escatologia cristã, tanto católica quanto protestante, desenvolveram-

se enormemente e serviram para reavivar as profecias do apocalipse de São João, como

revela Cristóvão Colombo no Livro das Profecias, ao atribuir a si próprio um papel

apocalíptico: ―Deus fez de mim o mensageiro de um novo céu e de uma nova terra, que

tinha referido no apocalipse de São João, depois de ter falado pela boca do profeta Isaías

e mostrou-me o local onde os encontrar‖ (LE GOFF, 2003, 354).

Mesmo na contemporaneidade, a progressiva ―dessacralização‖ do mundo

não redundou na eliminação dos elementos escatológicos da mentalidade coletiva. Até

as ideologias ―revolucionárias‖ que se classificam como embasadas em princípios

científicos não escaparam a esses elementos, como explica Le Goff: ―A laicização da

escatologia talvez seja a primeira e a mais inovadora das metamorfoses da escatologia‖. (Le Goff, 2003, p. 359).

Entre outros exemplos, o autor cita o marxismo, com sua perspectiva de

sociedade ideal (paraíso?), num futuro que será novo e não renascido, como carregado

de elementos escatológicos. Vale dizer o mesmo para outros movimentos

contemporâneos como o sindicalismo, o bolchevismo, o nazismo, o sionismo, as

lideranças mulçumanas em sua ―cruzada contra o ocidente‖, os milenarismos

melanésios da Oceania e negros da África e América pós-colonialismo, ainda que nem

todos lançassem mão do discurso ―sagrado‖. Ou seja, mesmo que a aparência desses

movimentos seja laica, dessacralizada, caracterizando-os como movimentos profanos

motivados por questões político-econômico-sociais, revelam em seu âmago elementos

escatológicos. O mesmo se pode dizer da realidade verificada na segunda metade se séc.

XX, em que

O medo suscitado pelas armas atômicas, as diversas componentes de movimentos ecológicos e esquerdistas espalharam dois sentimentos difuso na grande corrente escatológica tradicional: por um lado, a angustiante espera de um fim catastrófico colocada a torto e a direito sob uma bandeira apocalíptica; por outro o desejo do regresso a um paraíso natural (LE GOFF, 2003, p. 361).

Page 58: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

56

1.3- Epitáfio: inscrição de mentalidades

Em busca de averiguar se as concepções escatológicas se revelam na

atualidade, num espaço, por excelência, que remete à reflexão ou expressão de uma

mentalidade voltada para ―as últimas coisas‖ ou ―os fins últimos‖, ou seja, se tais

concepções se materializam nos epitáfios presentes nos Cemitérios de Bocaiuva,

apresentaremos e analisaremos algumas dessas inscrições tumulares.

Ressalta-se que, devido à demolição dos dois antigos cemitérios centrais de

Bocaiuva e por não termos encontrado fontes e imagens mais precisas deles, a análise se

concentrará sobre os epitáfios presentes no cemitério atual, a saber, o Cemitério

denominado Parque Santa Lúcia.32

Acreditamos que esse fato não nos impede de

postular que os epitáfios ali encontrados revelem os imaginários e as representações

sobre a morte e, em especial, sobre as concepções escatológicas, uma vez que a

permanência dos epitáfios numa proposta de cemitério parque e que, em princípio,

pretendia por fim a essas manifestações,33

sinaliza uma ―continuidade‖, a manutenção

de uma mentalidade.

Destacamos ainda que, trazendo o conceito de epitáfio numa perspectiva

mais ampla, apresentaremos inicialmente análise relativa a documento referente ao

Arraial do Bonfim (Bocaiuva) século XIX. Para tanto, reportemo-nos ao significado do

termo epitáfio que tem origem no grego e é assim formado: o prefixo epi que designa

posição superior e o radical tafos que significa túmulo.

De modo geral, entende-se por epitáfios palavras, frases ou textos escritos

nas lápides, como apresenta Ana Lúcia Herberts e Elisiana Trilha Castro (Herberts&

Castro, 2011,54) no livro Cemitérios no Caminho – o patrimônio funerário ao longo do

caminho das tropas nos campos de Lages. No entanto, importante destacar o aspecto

apontado por Marcelina das Graças Almeida quando indica ―Os epitáfios são, regra

geral, textos gravados em lousas tumulares, entretanto na Idade Média era um gênero literário, nem sempre usado de fato, na ornamentação tumulária‖ (ALMEIDA, 2007, 303) (grifo meu). 32

Conferir no 3º capitulo sobre o referido cemitério. 33

Conferir mais adiante dados da entrevista com engenheiro que projetou o Cemitério Parque Santa Lúcia.

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Baseando-se em estudos de diversos autores entre os quais Phillipe Áries,

Antônio Calixto, Rita de Cássia Codá dentre outros, a autora apresenta os epitáfios

como um gênero literário em outros tempos. Relata o histórico dos epigramas na Grécia

Antiga e nos possibilita, com essa indicação, deduzir que essa forma de epigrafia

mortuária sobreviveu na mentalidade ocidental, chegando a Bocaiuva e região norte-

mineira , aqui sendo verificável no século XIX. Também o artigo Sobre o epitáfio como

tipologia poética de Luiz Fernando Dias Pita nos informa sobre os epitáfios como

gênero literário e como este sofreu o impacto da invenção da imprensa e da renascença

na Europa Moderna. Segundo o autor,

[...] duas importantes mudanças no cotidiano cujas consequências para o gênero epitáfio logo far-se-ão sentir: o advento da imprensa e o Humanismo Renascentista. O primeiro com seu consequente avanço na propagação do livro, possibilita ao gênero um novo meio de divulgação, pois poderá ser composto já não apenas para exposição em lápides e igrejas, mas para livre circulação, o que aliás ocorreria com qualquer outro texto poético. E o segundo, propugnando-se a busca pelas fontes clássicas e também mais intensas pesquisas sobre o padrão culto da língua latina, acabará por erguer a um novo patamar o nível da produção poética em língua latina como um todo e do gênero epitáfio em particular, uma vez que poetas consagrados estarão empenhados em sua produção (PITA ,2008, s/p.).

Nessa perspectiva, destacamos dois exemplares dessa manifestação,

recolhidas do jornal Correio do Norte que circulava na região em fins do século XIX. A

escolha desses se deve ao fato de relacionarem-se a cidadãos do Arraial do Bonfim

(atual Bocaiuva). Antes de apontá-los, é necessário pontuar que, segundo documento

encontrado na Matriz do Senhor do Bonfim, em Bocaiuva/MG, é possível afirmar que,

como resquício da tradição medieval europeia de enterramentos ad sanctus e apud

eclesian, tal prática não só foi real como se manteve mesmo após as transformações

operadas na Europa e nas cidades brasileiras de maior porte e que criaram os cemitérios

convencionais, não só separados da Igreja, mas afastados da urbe.

O referido documento trata-se de um livro numerado com o número seis (6)

e ―catalogado‖ com a inscrição do número ―1880‖, sugerindo ser esta uma data. No

entanto, o referido livro registra assentos dos óbitos ocorridos no Arraial e toda a região

adjacente (comunidades rurais e fazendas), sendo o primeiro registro datado de janeiro

de 1861 tendo aparecem registros de 1886(embora haja registros, na sequência,

referentes a anos anteriores). Reafirma-se que tal documento comprova os

enterramentos ad sanctus e apud eclesian e que tal situação favorece a ideia de ―epitáfios como gênero literário‖ como dito anteriormente, uma vez que, como inscrição

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em lápides, não seria possível, visto a prática de enterramentos no interior da Matriz ou

no adro desta (e estes reservados a pessoas de condição social menos favorecida e,

portanto, túmulos sem edificação ou suporte que pudessem abrigar uma inscrição nos

moldes de epitáfios, como se o concebe na atualidade).

Voltaremos a explorar esse documento tão importante e, por sinal, tão

precariamente ―conservado e resguardado‖ na Matriz do Senhor do Bonfim, em Bocaiuva/MG, em outros tópicos desta dissertação. Esse registro aqui se faz no intuito

de justificar nossa especulação de que os exemplares de textos que recolhemos do jornal

supracitado podem ser compreendidos como uma forma de epitáfio, a exemplo do que

ocorria na Idade Média, como apontamos acima. Passemos aos textos, salientando que

primeiro apresenta-se o ―obituário‖, a fim de comprovar tratar-se de um cidadão do

arraial do Bonfim (atual Bocaiuva) e depois o ―epitáfio‖. Salientamos que os

transcrevemos na integra e na forma ortográfica como se apresentavam no referido

jornal.

Correio do Norte, Nº 38, 09 de Novembro de 1884,p.01 Óbito A 26 do passado, faleceu no Bom Fim o estimado cidadão José Mariano Lopes de Araujo, nosso dedicado correligionário, e eleitor daquela parochia. Sua morte tem sido geralmente sentida.

Na mesma edição, na secção livre, p.03, encontra-se o texto que consideramos o

epitáfio:

A memoria de José Mariano Lopes de Araujo. Mais uma vida preciosa desaparece, sob silenciosa campa, nos insondáveis mistérios de um tumulo! Preciosa, sim, ao menos para os parentes e amigos daquele que finou-se. A morte, escolho eterno que aguarda implacável o frágil batel da vida, acaba de cortar, com rude golpe, o débil fio dessa existência que tanto estremece! José Mariano nasceu no arraial do Bom Fim, onde morava, gozando da estima e sympathia de seus conterrâneos, que todos, por certo, hoje lamentam sua morte prematura. Si não o pranteam a viuvez e a orfandade, choram de saudade e de dôr, seu velho pae e suas inconsoláveis irmãs, que nelle sempre encontraram arrimo seguro. Com sua morte, também ao partido conservador foi subtrahido um membro dedicado, agora eliminado do numero de seus eleitores. Compartilhando a dôr de sua desolada família, nestas toscas linhas envio-lhe a expressão de meu pezar, por tão fatal perda, lembrando-lhe ao mesmo tempo que Deus reserva aos justos a recompensa do bem que praticaram. Montes Claros, 03 de Outubro de 1884.

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Correio do Norte, Nº 42, 07 de dezembro de 1884, p.02.

Fallecimentos

Falleceu na Fazenda Poções, distrito do Bom Fim, a 26 do passado, o Sr.

Francisco Augusto de Alkmim, irmão do nosso amigo,Snr. Bento Belchior de

Alkmim.

O finado, bem moço ainda, gozava naquellelogar e nesta cidade, de merecida

estima, por suas boas qualidades. Succumbiu a uma tysicalaryngiana , de que

fora , há pouco tempo, acommettido, revelando, desde o manifestar da

terrível moléstia, uma resignação evangélica à vontade suprema.

Nossos sinceros pezames à seus irmãos.

Na referida edição, na secção livre, p. 04, um anônimo escreve o epitáfio ao falecido:

Francisco Augusto de Alkmim Qual o paciente e santo Job, háfamilias que, de um viver irreprehensivel e virtuoso, sofrem contínuos e dolorosos golpes, com que Deus se apraz de experimentar a sua fé, e acrisolar as suas virtudes. A importante família do finado G.M. Gonçalo Christovão de Alkmim, depois de carpir o passamento deste e de sua virtuosa viúva, a exmaSrª D. Thereza Gonçalves Seixas, sobrevindo-lhes quatorze filhos, todos estimados na sociedade por qualidades eminentes, dentro em poucos anos perdeu quatro destes membros. Ainda não se completarão 9mezes do falecimento do Sr. José Alfredo de Alkimim ,honrado e prestimoso pae de família, deixando viúva e filhos menores, voltou a inexorável a fazer na distincta família nova victima. Na madrugada de 25 do p.p. Novembro, o Sr Francisco Augusto de Alkimim deixou de existir em consequência de incommodosdo peito, enfermidade com que ,já estando affectado sem que o soubesse, viajou para a província da Bahia com seu irmão e intimo amigo o Sr. Herculano Augusto de Alkimim, do qual era inseparável desde o verdor dos annos. O finado era idolatrado pela família, gozava de grande estima publica, e, moço ainda, pois apenas contava 30 annos de idade, era de um comportamento exemplaríssimo. Não há, que se saiba, uma só desafeição que tivesse em toda sua vida. Dedicado ao trabalho, sendo, por longo tempo sócio do seu dito irmão, não era afetado de ambição, antes revelava tendências caridosas. Em seu testamento, e em proporção de sua pequena fortuna, algumas disposições beneficentes deixou; entre as quaes a liberdade da escrava-Anna. Era distincto membro do partido conservador,ao qual servia com dedicação e lealdade. Teve os últimos dias de sua vida passados com agros sofrimentos em casa de seu digno cunhado o Sr. Manoel Freire de Figueiredo Fonseca (ausente) e sua carinhosa irmã e ExmaSnra. D. Joaquina Thereza de Alkmim, que mais que uma extremosa mãe o tractou, velando junto a seu leito dia e noite até que o olhar incerto depois quieto, a palidez do rosto, a algidez das extremidades,

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um ultimo respirar convencerão a desvelada irmã de que seu coração recebia o terrível golpe. Há dores que se sofrem, mas não se explicão. É o inconsolável irmão, amigo e inseparavel companheiro do finado, agora forçado a deixal-o, deixal-o para sempre! De que palavras de consolação poderão os amigos da família usar que chame-a à resignação?! Só pode servir de balsamo a dôres desta ordem a consideração que nossa pátria é o céu, sendo a terra o logar por onde peregrina o justo, até restituir à terra o que dela veiu , e a Deus o espirito que dele emanou. Nossas condolencias a todos os irmãos do ilustre finado, e principalmente ao muito virtuoso sacerdote, já há tempos ausente, o Rvdm. Sr. Antonio Augusto de Alkmim. 2 de Dezembro de 1884. Um amigo da família.

A característica fundamental dos epitáfios é o elogio fúnebre, no entanto,

estes variam muito entre si, não só na sua apresentação física, mas principalmente nas

suas mensagens. Elas podem trazer informações biográficas; homenagens de familiares,

amigos e outros; podem ser trechos bíblicos, de poemas, de músicas, frases filosóficas

ou mesmo esses epitáfios podem trazer alguma mensagem criada por parentes e amigos;

e também podem trazer lamentações e/ou consolações. É o que podemos observar nos

textos destacados e, dessa forma, podemos postulá-los como formas de epitáfios.

Importante observar que os ―epitáfios‖ recolhidos no jornal deixa nítida a

origem social privilegiada dos falecidos, haja vista o registro de suas filiações

partidárias ou a menção de posse de escravaria e que, portanto, mais claramente

demonstram tratar-se de ―discursos laudatórios‖ que buscam perenizar a memória de um ―personagem social e político‖ da ―elite local‖ e o uso do jornal como meio de

veiculação desse gênero se explica tanto por essa ser a possibilidade de materialidade do

epitáfio, uma vez que prevaleciam os enterramentos ad sanctus ou apud eclesiam e,

assim como já dito anteriormente, havia dificuldade de se imprimir um epitáfio nos

moldes como se popularizaram, ou seja, como inscrição tumulária como também era

este "veículo‖ uma forma de distinção social e, assim, de perenização da memória do

individuo.

Observando os epitáfios de maneira um pouco mais atenta, percebe-se o

quanto o homem deseja tornar imortais aqueles que já se foram, não apenas por

questões sociais ou ligadas exclusivamente a tradições, mas por não se conformar com a

perda de um ente querido ou pelo desejo de mantê-lo próximo. Como um discurso

laudatório, os epitáfios representam não só uma forma de consolo e ―esperança

escatológica‖ como uma preocupação moral de ―preservar as aparências‖, já que não se

observa nestes nada que denigra a imagem do defunto. Todos eles ―viveram para o

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bem‖, ―retamente‖, ―são modelos de conduta‖. A preocupação em manter as ―boas

aparências‖ não se restringe apenas à vida. Ela nos acompanha na morte. Assim, o

imaginário e as representações sociais de uma época se materializam e deixam para o

pesquisador indícios que podem levar à reconstituição de saberes e valores importantes

para a compreensão da vida em sociedade.

Em Bocaiuva/MG, os cemitérios, na concepção e forma convencional do

termo,34

foram erigidos e acabaram por se situarem no centro da cidade. Segundo

memorialistas da cidade, o primeiro foi o Cemitério da Saudade35

que se situava na

avenida de mesmo nome, no bairro Bonfim, não sendo possível encontrar documentos

oficiais que confirmassem a data. No entanto, há registro em livro já referido aqui e que

se encontra na Igreja do Senhor do Bonfim, onde se encontram os assentos de morte no

arraial do Bonfim no século XIX, entre os anos de 1861 a 1886, em que se contabilizam

1948 assentos, sendo apenas 9 (nove) destes informando como lugar de enterramento o

cemitério do arraial.

Segundo tal documento, o cemitério da Saudade já existia pelo menos desde

o ano de 1871. Contudo, sendo que a absoluta maioria dos enterramentos se fez na

Matriz e no adro desta (apresentaremos em outro capítulo dados complementares acerca

desse documento), podemos inferir a permanência de concepções sobre a ―boa morte‖ e

os lugares de enterramentos como de importância capital para a ―salvação da alma‖ e/ou

o lugar reservado a esta após o passamento. Mesmo a adro, destinado aos menos ―afortunados‖ materialmente, parece ser uma opção de lugar de enterramento que, dado

a sua proximidade com a Igreja e toda a representação salvífica que esta enseja, poderia

simbolizar a esperança escatológica que permeia o imaginário desde tempos remotos.

Aqui, não como um texto gráfico, mas como um discurso, o epitáfio toma

forma através da ―escolha‖ do lugar do enterramento. Talvez seja essa a razão de se

contarem poucos enterramentos no cemitério. Nada indica a razão destes terem sido

efetuados ali, uma vez que, mesmo após as datas dos referidos, registrou-se

enterramentos no adro e na Matriz do Senhor do Bonfim. A seguir, pela ordem

cronológica dos fatos, apresentamos dois registros de enterramentos realizados no

34

Aqui tomamos o cemitério no sentido do senso-comum, ou seja, campo a céu aberto e utilizado para sepultamentos. Adiante apresentaremos o conceito e etimologia do termo cemitério. 35

Não encontramos nenhum documento da época em que foi fundado e que ratifica o nome ―cemitério da

Saudade‖, no entanto, é por este nome que todos o conhecem e, apesar de equívoco em documentação recente – do plesbicito – até os dirigentes locais afirmam ser errônea a inversão dos nomes dos cemitérios. O cemitério da Saudade, o mais antigo se localizava na avenida de mesmo nome no bairro Bonfim, já o cemitério do Bonfim, datado da década de 30 do século XX, localizava-se no centro da cidade e foi o último a ser demolido, entre fins dos anos de 2011 e início de 2012.

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62

cemitério do arraial, o primeiro (Figura 6) datado de 1871 e o último (Figura 7) datado de 1883: Fig. 6. Foto: Livro de assentos de óbitos do arraial do Bonfim - século XIX.

Ao primeiro dia do mês de novembro de 1871 na Fazenda de olho d‘agua falleceo João Francisco com idade de dezesseis anos solteiro, amortalhado com hábito branco e sepultado no hadro da igreja, digo no Cemiterio d‘este arraial de que para constar mandei fazer este assento em que me assigno. Vigário Jose Maria Versiani

Fig. 7. Foto: Livro de assentos de óbitos do arraial do Bonfim – século XIX

Aos dezenove dias do mez de outubro de mil oitocentos e oitenta e três n‘este Arraial falleceo assassinado Pedro (?) com quarenta e cinco anos de idade, filho da cidade de são João de Minas Novas amortalhado em habito branco e sepultado no cemiterio d‘este Arraial de que para constar mandei fazer este assento em que me assigno. Vigário Jose Maria Versiani

O segundo cemitério denominado Cemitério do Bonfim, conforme relato

oral de memorialistas, já que não foi possível encontrar documentos, foi erigido nos

anos trinta do século XX, na administração do prefeito Dr. Tereziano Magalhães, que

governou a cidade de fins de 1931 a 1934. Localizava-se na área central da cidade. Esse

cemitério, em especial, como característico de uma época, trazia em seus túmulos as

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63

inscrições que se denominam epitáfios. Com diversidade de formas tumulares, com

clara percepção de estratificação social, os cemitérios centrais de Bocaiuva tombaram

literalmente ―à sanha‖ modernizante entre os anos de 2002 e 2012. Não foi possível

encontrar muitos registros fotográficos ou em outros meios que pudessem nos revelar a

tônica dos epitáfios que nestes foram inscritos.

A seguir algumas imagens permitem visualizar a situação em que se

encontrava o cemitério do Bonfim, demolido entre fins de 2011 e inicio de 2012, as

poucas lápides em que se percebe a inscrição de epitáfios e alguns elementos

característicos dos cemitérios convencionais, típicos do século XIX e início do século

XX. Vale ressaltar que as imagens não foram feitas com intuito de destacar os epitáfios,

portanto, em algumas destas não se pode visualizar e ler os textos epigráficos. No

entanto, é possível perceber que estavam presentes.

Também pode se notar o abandono do cemitério e, de certa forma, em meio

ao mato e descaso, perceber que algumas lápides se encontravam em bom estado de

conservação, o que nos faz pensar na ―resistência silenciosa‖ de algumas famílias

quanto à demolição do cemitério, uma vez que se pode constatar uma lápide com uma

pintura recente, aqui referimos à época da execução da fotografia (em fins de 2011),

como se vê nas imagens abaixo:

. Fig. 8 e 9 . Fotos: Túmulo no Cemiterio do Bonfim (2011) Fonte: Arquivo pessoal de Roberto Ribeiro de Andrade, 2011.

Na imagem que se segue, uma lápide que se manteve até os ―instantes

últimos‖ do cemitério do Bonfim. Percebe-se a presença da ―fotografia em porcelana‖,

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64

comuns nos cemitérios convencionais do século passado, o registro de datas de

nascimento e falecimento, bem como epitáfio que mescla um texto padrão de ―saudades

eternas‖ e trecho bíblico.

―Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei‖. MT 11-28.Texto presente na lápide destacada na figura 11. Figs 10 e 11 - Fotos no cemitério do Bonfim, em Bocaiuva/MG, fev. 2012. Acervo da autora.

Na imagem abaixo, notam-se lápides mais elaboradas para os padrões da

cidade, onde se percebe inscrições, elementos e formas tumulares característicos e o

mais importante que ―resistiram‖ à demolição até o ―minuto final‖, uma vez que se pode

ver o mato e a situação de abandono do cemitério. Vale dizer que as fotos são do início

de 2012 e que, desde o ano de 2009 já havia sido definido, em plebiscito, que o

cemitério seria demolido. Trataremos desse aspecto em outro capítulo.

Page 67: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

65

Fig. 12 . Foto: Túmulo no cemitério do Bonfim, em Bocaiuva/MG. Fotografia datada de fevereiro de 2012. Acervo da autora.

Page 68: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

66

Fig. 13. Foto: Túmulo no cemitério do Bonfim, em Bocaiuva/MG. Fotografia datada de fevereiro de 2012. Acervo da autora.

Page 69: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

67 Fig. 14. Foto: Túmulo no cemitério do Bonfim, em Bocaiuva/MG, fev. 2012. Acervo da autora.

Page 70: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

68 Fig. 15. Foto: Túmulo no cemitério do Bonfim, em Bocaiuva/MG. Fotografia datada de fevereiro de 2012. Acervo da autora.

Sem muitos registros desses cemitérios antigos, mas percebendo por meio

destes poucos que epitáfios e ornamentos tumulares, ainda que simples e sem apuro

artístico – como se vê em cemitérios oitocentistas e do início do século passado, em

várias cidades do Brasil – em Bocaiuva/MG, também eram elementos presentes,

passaremos a apresentar e analisar os epitáfios encontrados no atual cemitério da cidade,

denominado Parque Santa Lúcia. Mais uma vez, faz-se necessário um adendo nesse

ínterim, qual seja a observação de que o atual cemitério, inaugurado em dezembro de

1990 e tendo o primeiro registro de enterramento no ano de 1991, pretendia-se um

cemitério parque ou jardim36

, portanto, desprovido das características arquitetônicas e

das formas tumulares que até então eram presentes nos cemitérios antigos da cidade. A

proposta do cemitério parque se deveu, nas palavras do engenheiro que o projetou:

36

Segundo Elisiana Trilha de Castro ―os cemitérios jardins ou parques são caracterizados pela concepção

cemiterial com túmulos praticamente ocultos na paisagem, cercados de verde e flores, como em um jardim‖ (CASTRO, 2008 a,p. 52).Esses cemitérios jardins ―foram criados nos Estados Unidos, sendo que o primeiro cemitério parque do Brasil foi o cemitério da Paz em São Paulo, no bairro Morumbi em 1965, de origem protestante‖ (REZENDE, 2007, p.24-25).

Page 71: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

69

Nós tomamos a situação de parque porque nesse sentido, eu entendo que nós nascemos iguais e morremos iguais, então eu não gostaria e de certa forma o protocolo está sendo quebrado, porque eu não queria nenhuma

diferenciação das lápides das pessoas porque depois que morremos somos todos iguais...então a intenção era só a inscrição com nome , com o registro da pessoa que foi ali sepultado e todo gramado[...]a intenção é de

que todos ali fossem vistos da mesma forma...sem diferenciação de uma lápide mais arrojada, de granito preto , de qualidade, mas que todos fossem

nivelados ali, ao mesmo tempo.37

(grifo meu)38

.

Como se vê, apesar do objetivo dos idealizadores do parque Santa Lúcia em

transformar as formas tumulares e, assim, indiretamente, alterar as práticas e

manifestações acerca da morte e da memória do morto, prevaleceu e prevalece, no

cemitério em e forma bastante visível, as demonstrações da subjetividade, de uma

mentalidade arraigada nas tradições dos túmulos ornados, com estatuárias e inscrições.

Em se tratando dessas últimas, neste tópico analisaremos alguns dos epitáfios

encontrados nas lápides, forma e característica do conceito comum que se tem destes.

O cemitério parque Santa Lúcia está organizado em quadras, possuindo um

total de seis quadras, até o presente momento, uma vez que há um amplo espaço ainda

sem divisão e sem utilização. Dessas seis quadras, observa-se a quadra dois, a quatro e a

cinco como as que apresentam maior número de edificações tumulares e inscrições em

forma de epitáfios. A quadra um, três e seis se apresentam com menos alterações na

estrutura proposta pelo poder público, quando da idealização do parque. Muitos dos

túmulos não contam sequer com gramado, apresentam apenas a terra e uma pequena

placa de metal, muitas destas enferrujadas e de legibilidade comprometida, além de

algumas amontoadas, muito próximas às outras, o que poderá comprometer a

identificação correta do morto ali enterrado.

Por ora, selecionamos alguns epitáfios presentes nesse cemitério, separamo-

los,utilizando as categorias elaboradas por Marcelina das Graças de Almeida:

Analisando os textos epigráficos estabelecemos uma classificação destacando certas características enquadrando-os aos seguintes padrões: formal, religioso, emotivo, heroico e pedagógico, sendo que estes aspectos podem se apresentar isolados ou conjugados em um mesmo texto (ALMEIDA, 2007, p. 310).

37

Entrevista com Fernando Calixto - engenheiro responsável pelo projeto do cemitério parque de Bocaiuva/MG, setembro de 2013. 38

Chamamos a atenção ao sublinhado acima, ratificando que, apesar do propósito do poder público e seus

projetos modernizantes e de ―tentativa de equanimidade‖, a população se apropria do espaço e impõe ali seu imaginário, suas representações, suas tradições. Assistimos no referido cemitério, nos últimos anos, a uma progressiva onda de construções e edificações de lápides e assim de todos os equipamentos, adornos, estatuárias e inscrições, marcos de épocas passadas. Retomaremos a essa questão, aprofundando-a num outro capítulo.

Page 72: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

70

De modo geral, podemos enquadrá-los como pertencentes ao padrão formal,

quando se apresentam padronizados com texto curto, objetivo, recorrente e inalterado

em túmulos diversos. Exemplos ―saudades eternas‖ ou ―saudades eternas de seus

familiares‖

Fig. 16. Foto: Túmulo no cemitério Parque Santa Lúcia, em Bocaiuva/MG. Fotografia datada do ano de 2013. Quadra: 01 Túmulo: sem identificação do número. Acervo da autora.

Os epitáfios caracterizados como religiosos são aqueles que, nitidamente,

remontam a passagens dos textos bíblicos ou se apropriam destes, fazendo menção a

eles, invocando a presença e proteção Divina. Revelam o imaginário e as representações

sociais no campo da religiosidade e da ―esperança escatológica‖. Um indício de que as

concepções escatológicas ainda permeiam o imaginário no mundo ―pós-moderno‖ pode

ser verificado nos epitáfios presentes nas lápides do cemitério parque Santa Lúcia. Nos

exemplos destacados a seguir, as ideias de ―juízo final‖, de ―reino dos céus‖ e ―vida

eterna‖ são apontadas para aqueles que forem ―eleitos‖ por Deus, mediante uma vida

pautada pela obediência e cumprimento dos ensinamentos e da ―palavra‖. Nota-se que

todos trazem a identificação da passagem bíblica a que se referem, como podemos notar

na figura 17.

Page 73: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

71 Fig. 17. Foto: Túmulo no cemitério Parque Santa Lúcia, em Bocaiuva/MG. Fotografia datada do ano de 2013. Quadra: 2 Túmulo: sem identificação do número Acervo da autora.

Entendemos que o epitáfio a seguir, (fig. 18), que traz a inscrição ―Lembrai-

vos em suas orações de [...]‖ possa ser incluído no rol dos epitáfios de tipo religioso,

uma vez que interpela o passante a fazer orações em prol do falecido. Aqui se pode

considerar o pedido como uma demonstração de fé na necessidade e no poder da oração

para garantir a ―salvação‖ da alma do falecido, bem como uma expressão de humildade,

esta como um valor ou ensinamento religioso.

Fig.18. Foto: Túmulo no cemitério Parque Santa Lúcia, em Bocaiuva/MG. Fotografia datada do ano de 2013. Quadra: 04 Túmulo: sem identificação do número Acervo da autora.

No rastro desta tipologia, temos ainda os epitáfios emotivos que expressam

a dor pela perda, a luta e inconformismo diante da morte do ente querido. Remetem e se

fundem também às evocações religiosas e lamentações, invocando Deus ou os santos de

Page 74: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

72

devoção. Nas figuras 19 a 24 temos alguns exemplos encontrados no cemitério Parque Santa Lúcia, em Bocaiuva/MG.

Fig.19. Foto: Túmulo no cemitério Parque Santa Lúcia, em Bocaiuva/MG. Fotografia datada do ano de 2013. Quadra: 02 Túmulo: sem identificação do número. ―Resta em nós a esperança do reencontro e o nosso consolo de que neste momento você está nos braços do Pai. A distância permite a saudade, mas nunca o esquecimento. Por mais longe que esteja, sempre estará no nosso pensamento. Seu exemplo de vida nos deixou a firmeza na Fé, honestidade e união.‖ Acervo da autora.

O epitáfio em questão incluímos no rol do tipo emotivo, pois deixa entrever

a dor e a saudade. No entanto, mescla elementos religiosos, quando afirma a crença de

que o falecido está nos braços do Pai, o que também indica uma esperança escatológica,

somando-se a essa ideia a passagem que se refere ao ―reencontro‖, sugerindo a crença

na ―vida eterna‖.

Fig. 20. Foto: Túmulo no cemitério Parque Santa Lúcia, em Bocaiuva/MG. Fotografia datada do ano de 2013. Quadra: 05 Túmulo: sem identificação do número.

Page 75: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

73

―Tudo fizemos para que ficassem entre nós, mas Deus quis tê-los mais próximos de si. Agora suas luzes brilham junto ao senhor. Nosso conforto é a certeza de que estão em paz, ao lado do Pai, olhando por nós. Ficarão a saudade infinita e os exemplos de sabedoria, trabalho, honestidade, alegria e simplicidade no viver. Eternas saudades dos familiares.‖ Acervo da autora. .

Salientamos, nesse exemplo, o plural usado no texto que remete à ideia de ―homenagem‖ aos três falecidos e que, sendo os enterramentos datados de 1994, 2000 e 2009, reforça a hipótese de que assistimos, nos últimos anos, a uma progressiva onda de

edificação e inscrição tumulária no cemitério parque, em Bocaiuva/MG. Acreditamos

que a edificação e o epitáfio são posteriores ao último enterramento registrado, ou seja,

datado a partir de 2009. Observam-se também elementos que remetem a concepções

escatológicas na passagem ―sua luzes brilham junto ao senhor‖ ou ―estão em paz, ao

lado do Pai‖ e o caráter laudatório típico dos epitáfios quando se referem aos falecidos

como exemplos de virtudes e boa conduta.

Fig.21. Foto: Túmulo no cemitério Parque Santa Lúcia em Bocaiuva/MG. Fotografia datada do ano de 2013. Quadra: 04 Túmulo: sem identificação do número

Senhor, oferecemos a nossa dor, para que ele esteja na sua presença e para que o seu exemplo nos ajude a construir um mundo melhor. Acervo da autora.

O epitáfio da figura 21 é uma homenagem a um político dos mais

conhecidos na cidade. O primeiro a se tornar prefeito de Bocaiuva/MG, por três

mandatos, entre as décadas de 1960 e 1980. Nota-se um epitáfio ―simples‖ diante da

figura pública que foi o falecido e também certa esperança escatológica quando admite: ―Senhor, oferecemos a nossa dor, para que ele esteja na sua presença‖.

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74

Fig. 22. Foto: Túmulo no cemitério Parque Santa Lúcia, em Bocaiuva/MG. Fotografia datada do ano de 2013.Quadra: 05 Túmulo: sem identificação do número. Acervo da autora.

Na figura 22, o túmulo coletivo de quatro jovens amigos que, vitimados por

um acidente automobilístico, morreram e foram enterrados juntos. No túmulo, além de

uma placa com um texto conhecido atribuído a Santo Agostinho, há uma lápide com

fotografias e informações básicas sobre os falecidos e um texto epigráfico específico

para cada um e, ao fim, uma frase que claramente se inscreve na tipologia de epitáfio

emotivo. Abaixo, apresentamos a transcrição dos textos, numerados de acordo com a

ordem em que aparecem, relacionados a cada um dos jovens que aqui não nomearemos

e, ao fim, a frase que o caracteriza como emotivo.

1-―A sua partida não significa o fim de tudo aqui na terra, pois cá entre nós, a sua memória permanecerá para sempre‖. 2-―Morte nada mais é do que isso. O inicio de uma caminhada com Deus‖ 3-―Ninguém morre, enquanto permanece vivo nos corações dos que os amam‖ 4-―Na terra amamos a todos e por todos fomos amados, mas Deus traçou nossos destinos e por Ele fomos chamados‖ ―Vocês deixaram em nossos corações um grande vazio, que será preenchido com suas doces lembranças‖ Saudades de seus familiares.

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75

Fig. 23. Foto: Túmulo no cemitério Parque Santa Lúcia, em Bocaiuva/MG. Fotografia datada do ano de 2013. Quadra: 03 Túmulo: 282 Acervo da autora.

Na figura 23, registra-se o ―desejo‖ de perenizar a memória individual

quando, numa quadra pública, salienta-se a memória de um indivíduo, seja por meio da

edificação em granito que se destaca sobre a placa padrão no cemitério, seja por

apresentar um epitáfio nitidamente dirigido ao falecido nomeado.

Fig. 24. Foto: Túmulo no cemitério Parque Santa Lúcia, em Bocaiuva/MG. Fotografia datada do ano de 2013. Quadra: 03 Túmulo: sem identificação do número Acervo da autora.

Page 78: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

76

Nesse registro (fig.24) destacam-se os sentimentos e afetos familiares , bem

como crenças religiosas que remetem à concepção de paraíso celeste como lugar

destinado àqueles que julgamos terem sido ―recolhidos‖ por Deus, ou seja, há aqui uma

mensagem subliminar, mas que, concretamente, expressa uma concepção escatológica.

Os epitáfios heroicos são aqueles que se apresentam como exaltação do

indivíduo. Pode ter caráter oficial, dedicado às figuras públicas que se revelaram, de

algum modo, dignas da permanência na memória coletiva. Contudo, tal característica

pode ser percebida naqueles epitáfios dedicados às pessoas comuns, assumindo caráter

laudatório e de mitificação da memória heroica, supervalorizando a biografia do morto.

Sua vida é apresentada como um exemplo de conduta a ser imitado. No cemitério

parque Santa Lúcia não encontramos nenhum epitáfio nesses termos dedicados a figuras

públicas, como autoridades políticas ou lideranças religiosas, no entanto, foi possível

identificar esse ―tipo‖ de epitáfio dedicado a pessoas comuns, geralmente de filhos

exaltando pais falecidos. A seguir (Figura 25), apresentamos um exemplar que se

impõe, seja pela especificidade da forma tumular, seja pela versificação do epitáfio

produzido pelo filho da falecida homenageada39

.

Fig. 25. Foto: Túmulo no cemitério Parque Santa Lúcia, em Bocaiuva/MG. Fotografia datada do ano de 2013. Quadra: 02 Túmulo: sem identificação do número Mãe Sofreu profundos golpes e não se entregou ao lamento Lutou com força e bravura para nos trazer o sustento 39

A lápide e o epitáfio destacados foram especialmente ―pensados‖ por um dos filhos da senhora falecida

que nos relatou, numa entrevista, o processo de criação e construção da homenagem ―perenizada na pedra‖, que para ele perpetua a memória do que foi a figura de sua mãe para toda a família. Segundo nos relatou, toda a criação e construção da lápide transcorreram num prazo de cinco meses depois do falecimento da mãe, fato ocorrido no ano de 2012.

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77 Dos filhos não abriu mão apesar de muito sofrimento Tomou todos em seus braços num gesto de amor e acolhimento Nunca frequentou escola a condição não permitiu no momento Mas com muita sabedoria nos conduziu ao conhecimento A grandeza da sua fé foi na proporção do firmamento Refletida sempre em sua face na expressão de cada sentimento Foi recolhida por Deus sem dor nem padecimento Deixou nossos corações num triste e amargo tormento Sua obra será extendida(sic)através do nosso seguimento Seu nome será para sempre nosso grande monumento È justa essa homenagem faz jus ao seu merecimento Sabemos que não tem preço o seu comprometimento Estará sempre na memória e no centro do nosso pensamento De todo o coração nosso eterno agradecimento. Acervo da autora.

A lápide apresenta-se em granito e tem a forma da letra M, o que ,segundo o

idealizador, tem como objetivo reforçar o papel de mãe, tão exemplarmente

desempenhado pela homenageada. Apesar de decorrido há mais de dois anos, o nosso

entrevistado fez questão de rememorar e ―declamar‖ cada um dos nove versos e explicar

com veemência a razão ou, em suas palavras, ―o fundamento‖ de cada palavra que

compõe o epitáfio. Nesse aspecto, deixa entrever a imagem de ―heroína‖ pela qual

concebe e descreve a mãe.

O entrevistado se diz um ávido leitor de epitáfios quando em visitas a

cemitérios, confessando inclusive que havia já pensado não só num epitáfio, mas

também na forma tumular e ornamental que deseja para a sua lápide e que só havia

comentado e solicitado isso a sua esposa, não sendo até então do conhecimento de mais

ninguém esse seu ―desejo‖. O que nos leva a destacar aqui esse relato é a percepção da

manutenção de uma mentalidade que se impõe sobre as tentativas de alterar as práticas e

as concepções em relação aos ritos fúnebres e os lugares de enterramento. Insistimos na

reflexão de que, numa proposta de cemitério, em que se tentou homogeneizar a

memória dos mortos ou, em outras palavras, ―banir‖ a individualização e padronizar a

―última morada‖ dos cidadãos bocaiuvenses, a permanência e a expansão de

manifestações como essa a que nos reportamos apontam indícios de que concepções

sobre a morte e a importância dos lugares de enterramentos como lugar de memória e

também como ―lugar sagrado‖ não se diluíram na contemporaneidade.

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78

Fig.26. Foto: Túmulo no cemitério Parque Santa Lúcia em Bocaiuva. Fotografia datada do ano de 2013. Quadra: 01Túmulo: sem identificação do número. ―Voltaram para aquele que é o autor da vida. A ausência de vocês dói demais, mas o exemplo deixado por vocês é uma lição de vida que confortarão aqueles que os amam. Obrigado pelos exemplos de lutam, honestidade, amor e fé.‖ Acervo da autora.

O túmulo em destaque (Figura 26) encontra-se numa quadra pública.

Próximo está o túmulo do irmão do falecido, que doou um dos terrenos que já havia

reservado no cemitério. Trata-se de conhecido fazendeiro na cidade. Como sendo

família de boa condição financeira, causa estranhamento estarem sepultados em quadra

pública, inclusive porque, nessa quadra, durante algum tempo, só existiam três lápides

com inscrição de epitáfio, sendo esta um exemplar. Essa é uma realidade que tem sido

alterada nos últimos anos. Abordaremos esses aspectos em outro capítulo.

Em se tratando do epitáfio, relatou-nos uma das filhas do casal

homenageado40

, pai e mãe da entrevistada, que este foi idealizado por ela e por uma

irmã. Ele foi edificado após a morte da mãe, em 2008, afirmando que se inclinaram a

fazê-lo após essa data, devido ao fato de terem percebido a expansão da edificação de

lápides com epitáfios e outros elementos no cemitério parque Santa Lúcia. Essa

afirmação se deu em função de justificar que, durante um bom tempo, após a morte do

pai, ocorrida em 1996, o túmulo não contava com nenhuma edificação, contando apenas

com um gramado e placa padrão. Tal Informação reforça a nossa ideia de uma ―onda‖

40

Entrevistada F. A. V. entrevista concedida e em 20/05/2014

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79

de edificações no cemitério pesquisado, processo esse observado por nós, com mais

vigor, nos últimos oito anos.

Para conceituar o tipo epitáfio pedagógico, transcrevemos a abordagem

dada por Marcelina das Graças de Almeida,que assim o definiu:

Os epitáfios pedagógicos são aqueles que, justamente por conter elementos referentes à religiosidade, aos sentimentos e à veneração heroica da memória do morto, revelam-se como portadores de uma mensagem educativa. O objetivo é registrar um ensinamento. É um diálogo entre aquele que ali repousa e o passante-leitor para que reflita sobre questões acerca da morte, da vida e do destino comum a todos (ALMEIDA, 2007, p.315 ).

Segue abaixo exemplo de epitáfio (Figura 27) que traz mensagem

conhecida, atribuída a Santo Agostinho e que, a nosso ver, para além do caráter de

epitáfio religioso, insere-se no tipo pedagógico, por trazer uma reflexão sobre a morte e,

sobremaneira, carregar em si uma perspectiva escatológica, quando projeta a morte

como o ―outro lado‖ ou ―caminho‖ provido ainda de uma identidade, ou seja, o ―além

da vida‖ ainda é uma ―realidade palpável‖. Aqui, na perspectiva de uma crença que cria

e sustenta essa realidade, em que se precisaria, inclusive, das orações daqueles que estão

vivos no plano terreno, os laços ainda permanecem. Por fim, salienta-se o uso do plural

no texto epigráfico destacado por ser um dos epitáfios de um túmulo coletivo. Eis o

texto e, na sequência, a imagem da placa que traz a inscrição epigráfica.

O amor não desaparece jamais e a morte não é nada. Nós, somente passamos para o outro lado do Caminho. Nós somos nós, vocês são vocês. O que nós éramos para vocês, nós continuaremos sendo. Nos dêem(sic) os nomes que vocês sempre nos deram; falem conosco como vocês sempre fizeram. Vocês continuam vivendo no mundo das criaturas, e nós estamos vivendo no mundo do Criador. Não utilizem um tom solene ou triste, continuem a rir daquilo que nos fazia rir juntos. Rezem, sorriam, pensem em nós. Rezem por nós. Que nossos nomes sejam pronunciados como sempre foram, sem ênfase de nenhum tipo. Sem nenhum traço de sombra. A vida significa tudo o que ela sempre significou. O fio não foi cortado. Porque nós estaríamos fora de seus pensamentos agora que estamos apenas fora de suas vistas? Nós não estamos longe, apenas estamos do outro lado do Caminho‖.

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Fig.27. Foto: Túmulo no cemitério Parque Santa Lúcia, em Bocaiuva/MG. Fotografia datada do ano de 2013. Quadra: 05Túmulo: sem identificação do número Acerbo da autora.

O epitáfio a seguir (Figura 28) tem um sentido pedagógico quando faz um

alerta sobre a necessidade de agradecer o que a vida oferece. Por se tratar de um túmulo

de criança, podemos especular que, apesar da dor de tê-lo perdido prematuramente, os

familiares agradecem o fato de ter tido o convívio do falecido por um tempo. Também

incita questionamentos a expressão ―pedimos coisas para a vida‖. O que se pediu à

vida? Trata-se de algo anterior a vida do falecido? Ou seria uma cura para possível

doença ou estado de saúde? Por que a expressão vida e não Deus? Seria essa uma

expressão característica da contemporaneidade, supostamente marcada pela ―dessacralização‖ da vida e da morte?

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Fig.28. Foto: Túmulo no cemitério Parque Santa Lúcia, em Bocaiuva/MG. Fotografia datada do ano de 2013. Quadra: 0 3. Túmulo: sem identificação do número Às vezes pedimos coisas para vida e ela não tem como nos oferecer. Às vezes ela nos dá coisas que não sabemos como agradecer. Como o ter conhecido. Saudades. Acervo da autora.

Há, ainda, os epitáfios que trazem elementos gráficos, tanto textuais quanto

imagéticos, os quais reforçam a identidade do falecido e suas particularidades. No

registro a seguir, a estrela de Davi e a expressão judaica shalom são símbolos

identitários que se quer salientar.

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Fig.29. Foto: Túmulo no cemitério Parque Santa Lúcia, em Bocaiuva/MG. Fotografia datada do ano de 2013. Quadra: 04 Túmulo: sem identificação do número Acervo da autora.

Outro exemplo nesse sentido é de um túmulo de criança, onde se vê, como

forma ornamental, um carrinho de pedra (granito e ardósia) com jardinagem e placa

padrão com identificação do nome da criança e data de nascimento e morte bem como

epitáfio onde se lê:

Você sempre viverá em nossos corações.

Fig. 30. Foto: Túmulo no cemitério Parque Santa Lúcia, em Bocaiuva/MG. Fotografia datada do ano de 2013. Quadra: 06 Túmulo: sem identificação do número. Acervo da autora.

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Fig. 31. Foto: Túmulo no cemitério Parque Santa Lúcia, em Bocaiuva/MG. Fotografia datada do ano de 2013. Quadra: 04Túmulo: sem identificação do número. ―A historia não fala dos fracos, nem as mulheres" Acervo da autora

O epitáfio acima (Figura 31) nos chamou a atenção, tanto pela própria

textualidade quanto pelo fato de termos tido contato, como professora,com o jovem

falecido. Em busca de compreender a origem e a razão da escolha dessa frase para o

túmulo, contatamos com o irmão do falecido que assim nos explicou a origem e razão

da frase:

Eu [...] tinha um irmão chamado Roslvelt, em um determinado dia tivemos a ideia de fazermos uma tatuagem. Depois de pensarmos muito resolvemos fazer uma frase que começaria nas costas dele e terminaria nas minhas costas. Então começamos a procurar a frase em questão, durante a procura (na internet) encontramos uma frase que chamou bastante atenção dele ―A historia não fala dos fracos, nem as mulheres", e ele gostou tanto dela que até a colocou como a frase do seu perfil de uma rede social muito utilizada na época (podendo ser vista até hoje em seu perfil). Então em maio de 2010 ele veio a falecer e quando resolvi fazer a lápide para seu túmulo e me veio a ideia de

eternizar uma frase que ele gostou tanto.41

Com essa nossa exposição sobre o gênero epitáfio e sua manutenção no

cemitério de Bocaiuva/MG, acreditamos que se possa sustentar a tese de que estes

continuam na contemporaneidade, evidenciando valores, imaginários e representações

sociais em torno da morte e, por que não, principalmente em relação à vida. Quando

41

Entrevistado L. M. Entrevista concedida em 15/05/2014.

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84

padronizados ou sob encomenda, podem revelar aspectos das relações familiares e

sociais, crenças e descrenças frente à vida e a valorização ou não desses emblemas em

torno da morte. Quando expressão de uma homenagem daqueles que ficam, como no

caso da mãe que inspirou o filho a poetizar sua trajetória pela terra, são reveladores dos

valores familiares, éticos, morais, religiosos, que ainda se inscrevem na pós-

modernidade, apesar da ―pseudo-dessacralização‖ do mundo e das relações sociais.

Quando são ―marcas‖ da existência do falecido ou desejo pessoal de imprimir um rastro

seu, eternizado numa pedra, num texto escrito e/ou imagético, podemos conjecturar

como sendo mais uma busca e uma forma de alcançar a imortalidade – utopia humana,

desde sempre.

Finalizando essa análise, sendo recorrentes interpretações dos cemitérios

como ―lugar de memória‖, no entanto, salientamos o alerta do historiador francês Pierre

Nora quando afirma ―Os lugares de memória só vivem de sua aptidão para a

metamorfose, no incessante ressaltar de seus significados e no silvado imprevisível de

suas ramificações‖ (NORA, 1993, p. 22). Com isso, entendemos que os cemitérios, para

além de ―lugar de memória‖ são também ―lugares de história‖, ou melhor, da pesquisa

histórica, encerrando-se aí sua dimensão como elemento importante para a compreensão

de uma dada sociedade, num campo que permite uma história de ―longa duração‖ ou

ainda, uma história das mentalidades.

Nessa perspectiva, ainda que não alcançando a dimensão de trabalhos de

fôlego como os empreendidos por historiadores de renome da Escola dos Analles,

pioneiros nessa empreitada de uma história das mentalidades, apresentaremos, nos

capítulos seguintes, outros elementos que possibilitam delinear as concepções e práticas

em torno da morte e dos cemitérios, ou melhor, dos lugares de enterramentos em

Bocaiuva/MG , do século XIX à contemporaneidade, bem como analisar os embates,as

permanências e as transformações em torno das questões subjacentes.

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Capítulo 2

DO CAMPO SANTO AOS CEMITÉRIOS PARQUES: O sagrado, o profano e o lugar de memória

―É no tumulo que o misero vê o termo de sua desgraça: porquanto é ele o ocaso desta vida ilusoria, ao mesmo tempo que representa a aurora de um dia infinito – a eternidade.‖

(Trecho de crônica do jornal Correio do Norte de 1884)

INSCRIÇÃO PARA UM PORTÃO DE CEMITÉRIO Na mesma pedra se encontram, Conforme o povo traduz, Quando se nasce - uma estrela, Quando se morre - uma cruz. Mas quantos que aqui repousam Hão de emendar-nos assim: "Ponham-me a cruz no princípio... E a luz da estrela no fim!"

Mario Quintana

As epigrafes que abrem este capítulo dão a tônica do que se quer refletir nas

próximas páginas. Nestas, desvelam-se a relação túmulo-reflexão sobre a vida-morte,

imaginários e concepções escatológicas, inclusive, subliminarmente a ideia de

imortalidade, questões que marcaram a sociedade ocidental e, por consequência, a

sociedade do arraial do Bonfim – Bocaiuva/MG no passado e, como veremos, ainda

hoje.

Desde os tempos mais remotos, o lugar em que se oculta o corpo do morto é

marcado como um solo sagrado e /ou um lugar de memória. Esse lugar, seja por razão

de crenças religiosas ou ritos culturais, são demarcados e marcados, de alguma forma.

No paleolítico, já se demarcava esse espaço com pedras, partindo da crença de que a

alma não poderia dali sair a fim de não ―perturbar‖ a ordem e a vida dos vivos. Vários

povos da antiguidade, seja no Oriente ou no Ocidente ,desenvolveram rituais em torno

do morto e do lugar onde seria ocultado o corpo.

Page 88: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

86

Na Grécia Clássica, encontramos a prática de inscrições e epitáfios

laudatórios que registram não só a memória individual do morto, mas também aspectos

da memória coletiva e da ordem social com a diferenciação nas formas de se ocultar o

corpo morto e se delimitar o local dessa ocultação.

Em Roma, ainda que com a preocupação de enterramentos extra urbes,

também por questões ―sanitárias‖, a memória do morto e do local de ocultação do corpo

morto eram, de certa forma, perenizadas por meio de rituais e demarcações nesse ―solo

sagrado‖, aqui, no sentido de testemunho da passagem do morto sobre a terra. Philippe

Ariès indica que, na Roma Antiga, até mesmo os escravos tinham um local de sepultura (loculus) sinalizadas por uma inscrição. E ele assegura: ―Significam o desejo de

conservar a identidade do túmulo e a memória do desaparecido‖ (ARIÈS, 1989, p.39).

Com o advento do Cristianismo e institucionalização deste mediante a

organização e consolidação da Igreja Católica, o mundo e a cultura ocidentais

imprimiram algumas alterações nas concepções sobre a morte e as formas de ocultação

do corpo morto e, assim, alterações nas formas tumulares e nos lugares de enterramento.

Essas alterações serão, no entanto, fruto da simbiose e apropriação de elementos

culturais de culturas diversas no tempo e no espaço e, por vezes, necessárias à Igreja

como forma de adequar-se ao imaginário e representações sociais de cada período

histórico. Ou seja, não se pode falar de imposição por parte da instituição de ―modelos‖

de pensamento e práticas. Pelo menos não o tempo todo. A Igreja, como diz na máxima,

também ―é filha de seu tempo!‖

Nesse ínterim, importante destacar a prática da inumação como forma de

destinação do corpo morto defendida pela Igreja, baseando-se na concepção bíblica em

torno da máxima ―do pó tu vieste ao pó voltarás‖. Hodiernamente, vemos crescer, no

ocidente cristão, a cremação como forma de ocultação do corpo morto, até mesmo no

Brasil em que o primeiro crematório se institui em 1974, em São Paulo, conforme nos

informa Silva (2013).

Esta autora supracitada salienta que, mesmo a prática de cremação sendo

divulgada e até defendida por lideranças políticas como forma de barateamento dos

custos funerários e/ou solução para os problemas de espaço e ―questões sanitárias e de

saúde pública‖ nos grandes centros, em especial, todavia, a prática de constituição dos

cemitérios como lugar ―sagrado‖ ou de memória individual se perpetuam, haja vista a

situação referenciada pela autora do que ocorre no referido crematório de São Paulo, em

que as cinzas dos mortos são espargidas em locais delimitados e demarcados, como

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87

―canteiros‖ ornados com flores e ornamentos e até com registros em placas de

identificação nominal, ainda que estas sejam proibidas pela administração do

crematório.

No entanto, como relata a autora a ―vigilância frouxa‖ faz com que a

manifestação dessa ―mentalidade‖, marcada pelo desejo de individualização e memória

do morto, prevaleça. Tal situação se assemelha ao que assistimos no cemitério parque

Santa Lúcia, em Bocaiuva/MG em que, apesar da tentativa dos idealizadores de abolir

distinções e /ou formas de culto à memória, marcadas pela ostentação e/ou

individualização, a população imprime, aos poucos, suas concepções, seja com os

epitáfios, seja na edificação de lápides com estatuarias, ornamentos e signos que

sugerem a permanência de uma mentalidade específica. Esses aspectos reforçam a ideia

do lugar de enterramento com lugar de memória, conforme afirma Pierre Nora para

quem: ―Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento de que não há memória

espontânea, que é preciso criar arquivos, organizar celebrações, manter aniversários,

pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque estas operações não são naturais‖ (NORA, 1993 p. 13).

Partilhando dessa premissa, buscando aliar teoria e empiria em torno dos

imaginários e representações sociais, bem como das práticas e sensibilidades em relação

aos lugares de ocultação do corpo morto, utilizando dos conceitos de diacronia e

sincronia, na medida em que buscaremos delinear um histórico, ainda que panorâmico,

das práticas e rituais em torno da ocultação do corpo morto, no ocidente cristão,

destacando como tais práticas e rituais se fizeram presentes no Arraial do Bonfim (atual

Bocaiuva/MG).

Assim, apresentaremos alguns dados do século XVIII e mais amplamente do

século XIX, quando a ocultação do corpo morto se dava pela inumação e o lugar era,

em sua maioria , na Matriz do Senhor do Bonfim e no adro desta. Para melhor

compreendermos as concepções em torno da morte e como estas delineiam as práticas e

rituais fúnebres, segue-se um tópico teórico e, logo após, dados empíricos que revelam a

presença dessas concepções e práticas no arraial do Bonfim.

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88

2.1. Mors ultima ratio42

: por uma teoria das representações e do imaginário sobre a transcendência

A diversidade de novos campos na história traz novos objetos, até então

negligenciados nos estudos históricos. A loucura, o corpo, a alimentação, a morte, entre

outros, vem ocupando lugar de destaque, tornando-se reveladores dos valores, tradições,

modos de viver, conflitos e tensões, conjunto de relações sociais, culturais, econômicas

e políticas neles contidos. Nota-se o ―boom‖ da História Cultural, notadamente nas últimas décadas de século XX, que apresenta como tendências atuais o estudo do

simbólico, forma de trabalho ligada à antropologia, pautada na ―descrição densa‖,

grande contribuição de Clifford Geertz(1978), no que se refere a uma metodologia da

pesquisa histórica no campo da História Cultural. Outra tendência promissora é a

consideração da linguagem, ou seja, a busca do ―discurso‖ como documento, já que a

linguagem tem seu significado e significa.

Significativos também são os estudos a partir da ―história do imaginário‖.

Segundo Evelyne Patlagean [...] ―cada cultura, portanto cada sociedade, e até mesmo

cada nível de uma sociedade complexa, tem seu imaginário‖ (PATLAGEAN, 1998, p. 291). Fazem parte desse imaginário, tanto em seu aspecto coletivo quanto pessoal,

indagações e criações a respeito das origens dos homens, suas angústias, sonhos,

desejos e repressões, a inquietação em torno da incógnita da morte, dentre outros.

Segundo Baczo:

Os imaginários sociais constituem outros tantos pontos de referência ao vasto sistema simbólico que qualquer coletividade produz e através da qual, [...] ela se percepciona divide e elabora os seus próprios objetivos. É assim que, através dos seus imaginários sociais, uma coletividade designa a sua identidade, elabora uma certa representação de si, estabelece a distribuição dos papéis e das posições; exprime e impõe crenças comuns (BACZO, 1985, p.309).

Será em função de refletir sobre o imaginário criado em torno da morte, da

escatologia cristã-ocidental, dos lugares de enterramento que, neste tópico,

apresentamos um breve histórico desses ―fenômenos culturais‖ no ocidente, pelo qual

42

Mors ultima ratio, expressão latina que significa: Morte, razão final. A morte é o derradeiro argumento,

o mais poderoso. © 2007-2013 7graus - Dicionário de Latim Online: significados de palavras e expressões em latim. Também encontramos Mors ultima ratio. - Latim; ―A morte é a última razão de todas as coisas.‖ In CARLETTI, Amilcare. Dicionário de Latim Forense: primeira parte: noções de gramática latina: segunda parte: frases latinas de uso forense: terceira parte: máximas do Direito Romano: texto latino e tradução com indicação do artigo da lei brasileira quando a sentença romana na sua essência, o contém. 3ª ed., São Paulo, Leud, 1990. 543 p. 21

Page 91: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

89

lançaremos mão dos trabalhos de Philippe Ariès, Michel Vovelle, Jacques Le Goff, João

José Reis, dentre outros estudos.

2.1.1. O Imaginário como objeto de história

De acordo com Evelyne Patlagean, o imaginário como objeto de pesquisas

históricas é uma perspectiva recente na historiografia, sendo que, segundo ela, ―O

período fecundo de entre as duas guerras assinala o verdadeiro início das pesquisas em

curso. O imaginário nele encontra seu lugar na jovem história das mentalidades e

institui-se com os trabalhos dessa última‖ (PATLAGEAN, 1998, p. 293).

Abalada por críticas e falhas epistemológicas e metodológicas, a história das

mentalidades foi rechaçada até mesmo por autores que se debruçaram nesse campo.

Muitos destes refugiaram-se naquilo que se denomina, hoje, Nova História Cultural. É

na perspectiva da história cultural, considerando-se a produção dos imaginários

coletivos sobre a morte, os ritos fúnebres e os lugares de enterramento que se apresenta

um breve histórico dessas representações. Como fontes utilizadas nesse campo

destacam-se: a iconografia, o escrito, seja autoral seja como monumento, por exemplo,

os interrogatórios inquisitoriais, cláusulas de um testamento. No século XVIII epitáfios

e elogios fúnebres que vieram em substituição às exéquias na morte dos Grandes43

.

Também a tradição oral em seus discursos e as práticas atuais, representações artísticas

quer em esculturas, pinturas ou altares e retábulos como os inventariados por Gabrielle

e Michel Vovelle, na região da Provença, buscando traçar uma história do imaginário e

das representações sobre a morte e o Além da Idade Média à contemporaneidade.

Pensando na relação entre imaginários e representações em torno da morte e

do Além, poderíamos especular se não seria a certeza da morte e a incompreensão dessa

que faz do homem tão necessitado de uma experiência com o sagrado. Necessidade essa

que não se aplaca ao longo da história da humanidade, nem mesmo na

contemporaneidade, em que, em busca de superar a morte, dos avanços científicos em

prol de prolongar a vida, a sociedade transforma a temática da morte num tabu tão ―indizível‖ como o era o sexo em tempos remotos.

43

Morte dos Grandes refere-se à morte dos homens e mulheres ―distintos‖ numa sociedade. Faz alusão à ideia dos ―grandes da terra‖ verbete referido por Raphael Bluteau e utilizado por Jeaneth Xavier de Araújo na tese ―Os Artífices do Sagrado e a Arte nas Minas Setecentistas‖ que também referencia o uso da expressão em outros destacados autores. Para maior esclarecimento conferir ARAUJO, Jeaneth Xavier.―Os Artífices do Sagrado e a Arte nas Minas Setecentistas‖.

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90

Nas palavras de Ariès, na segunda metade do século XX, a morte torna-se

um ―objeto interdito‖, do qual se tenta esconder, ou melhor, tornar menos pública,

menos vivida, alterando, assim, os rituais fúnebres e as representações em torno dos

espaços de sepultamento – os cemitérios.

Considerando a cultura grega da antiguidade, que tantas influências exerceu

sobre a constituição da ―cultura ocidental‖ temos que, para estes, a morte representava

uma ―nova condição social de existência‖, daí a prática da cremação dos corpos, em que

as cinzas guardariam a memória dos mortos. Entretanto, distinguiam dois tipos de

mortos: os mortos comuns e anônimos e os heróis falecidos. Os primeiros eram

cremados coletivamente e depositados em valas comuns, vistos como simples mortais.

Aos segundos era reservada a pira crematória, destinada aos grandes heróis, na

cerimônia da bela morte,44

uma vez que, nas representações dos gregos, esse tipo de

ritual tornava ―imortal‖ o morto. Estes, pela prova da ―virtude da morte‖ tornava-se um

indivíduo cuja vida é digna de lembrança. Exemplo é Aquiles, imortalizado na Ilíada de

Homero, cuja morte heroica, perpetuada na declamação da epopeia, aparece como

―cimento da identidade social dos gregos‖ (GIACOIA, 2005).

Assim, para os gregos antigos, a imortalidade da alma, diferentemente dos

cristãos, que ainda hoje se apega à ideia de ressurreição, era ―a glória cantada de

geração a geração pelos poetas, que fazia fulgurar na memória a lembrança da grande

individualidade‖. (GIACOIA, 2005,s/p.). Numa perspectiva sincrônica, apresenta-se o

estudo de Gonçalves (2012) sobre a morte idílica de Ayrton Senna, bem com todo o ―ritual‖ produzido em torno do mito do herói, decantado pela mídia e apropriado, na

perspectiva de Roger Chartier (1990), pela sociedade contemporânea. Também aqui

presentifica a ideia de ―bela morte‖ e o ―breve rompimento‖ com a morte ―interdita‖,

característica dessa sociedade.

Na Europa cristianizada, segundo Ariès(1989), a morte torna-se ―clericalizada‖. No entanto, é possível detectar dois momentos distintos em relação às

atitudes e representações em torno da morte, durante o medievo. No período

denominado Alta Idade Média, comumente delimitada entre os séculos V e XI, a ―morte

domesticada‖ (ARIÈS), familiar, parte do cotidiano é ―publicizada‖. Os rituais fúnebres

44

Conceito que remete à Grécia Antiga e sua concepção de ―bela morte‖, ou seja, a morte gloriosa

daquele que em sua plenitude viril e num ato de coragem entrega-se à morte em batalha, o guerreiro devotado assim inscreve o seu nome e sua memória à glória de tempos vindouros. Para melhor entendimento cf. A Bela Morte e o Cadáver Ultrajado. JEAN PIERRE VERNANT, p.31. Artigo faz parte de Conferência realizada no Departamento de Filosofia da USP, em 1977.

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91

e os sentidos da morte apresentam-se como marcas de uma coletividade em que se

deveria demonstrar publicamente os sentimentos pela perda. Essa ideia é reforçada por

Huizinga que afirma

Os costumes primitivos exigindo que os mortos fossem pública e violentamente chorados ainda sobreviviam com força considerável no século XV. As ruidosas manifestações de pesar eram tidas por distintas e decentes. Todas as coisas relacionadas com uma pessoa morta tinham que testemunhar uma dor sem limites (HUIZINGA, 1996, p. 52).

Mas, se houve toda uma preparação para a ―travessia para outra vida‖, quando a

escatologia cristã-católica que, pregando o juízo final, nos fins dos tempos, ainda

permitia crer na ressurreição e, assim, na ―vitória sobre a morte‖, esta ainda era vivida

como uma morte domesticada. Ainda nesse período, Alta Idade Média, era comum

envolver o corpo do morto em mortalhas, não sendo prática o uso do caixão e estes

eram enterrados nas igrejas, dentro delas, se a condição social do morto figurasse entre

as ―classes dominantes‖, no entorno eram enterrados os ―de baixo‖. Vivos e mortos

conviviam em local comum, (ARIÈS) e, de certa form,a era uma garantia de que os

vivos não seriam atormentados pelos mortos, já que o ―espaço sagrado‖ da igreja e todo

o ritual fúnebre reservaria um ―lugar de descanso‖ para a alma do morto.

Nesse contexto, lembra Le Goff ―no século IX, sob o impulso de Cluny,

uma festa anual foi instituída em memória de todos os fiéis mortos, a comemoração dos

defuntos, a 2 de novembro‖ (LE GOFF, 2003, p. 453). Aterrorizava ao homem desse

período a morte súbita, considerada um ―castigo de Deus‖, já que esta impedia todo o

ritual da ―boa morte‖. Segundo João José Reis, muitas são as sociedades nas quais

prevalece a noção de que a realização de rituais funerários adequados é fundamental

para a segurança de mortos e vivos. O autor cita Van Gennep que resume as

dificuldades criadas quando o morto não consegue seguir seu destino da seguinte forma:

As pessoas que não observam os ritos funerários são condenadas a uma penosa existência, pois nunca podem entrar no mundo dos mortos ou se incorporar à sociedade lá estabelecida. Estes são os mais perigosos dos mortos. Eles desejam ser reincorporados ao mundo dos vivos e, porque não podem sê-lo, se comportam em relação a eles como forasteiros hostis. Eles carecem dos meios de subsistência que os outros mortos encontram em seu próprio mundo e consequentemente devem obtê-los à custa dos vivos. Ademais, estes mortos sem lugar ou casa às vezes possuem um desejo intenso de vingança. (VAN GENNEP In REIS, 1991, p. 89).

Ao contrário, explicita João José Reis, se houve todo o ritual da boa morte,

o morto passa a seu ―novo mundo‖ plenamente e poderá interceder pelos vivos junto

Page 94: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

92

aos deuses, fazendo uma ponte entre o mundo terreno e o Além – futura morada. Daí

terem as pessoas todo o interesse de cuidar bem de seus mortos, assim como da própria

morte (REIS, 1991). Em que medida essa ―mentalidade‖ pode ser relacionada à prática,

ainda hoje recorrente entre os católicos, dos ritos de unção dos enfermos, de ―encomenda‖ de missas às almas, inclusive às do purgatório? Estaria essa ligada à

percepção do que Ariès (1989) denominou a ―morte de si mesmo‖, em que o estudioso

aponta aspectos diacrônicos, ou seja, pequenas mudanças, sutis, que transformaram as

atitudes e os sentidos dados pelo homem em relação à morte? Analisando

representações artísticas do juízo final, a partir do século XII, Ariès (1989) percebe que

as tradicionais representações coletivas de ressurreição abrem espaço para novas

representações.

A Baixa Idade Média marca uma afirmação do poder da Igreja como

mediadora entre a terra – mundo dos vivos – e o ―paraíso‖- destinado não aos mortos,

mas a alguns destes:

O nascimento, no fim do século XII de um terceiro lugar do Além, entre o Inferno e o Paraíso, o Purgatório, de onde se podia, através de missas, de orações, de esmolas, fazer sair mais ou menos rapidamente os mortos pelos quais as pessoas se interessavam, intensificou o esforço dos vivos em favor da memória dos mortos. (LE GOFF, 2003, p. 443).

O juízo final não se dará mais nos ―fins dos tempos‖ e sim, logo após a

morte, cabendo à conduta do indivíduo em vida, reservar-lhe o paraíso, o inferno ou o

purgatório. Essa ―morte clericalizada‖ (ARIÈS) faz da instituição Igreja única capaz de

intermediar o acesso da alma ao paraíso. Pode-se perceber, aqui, um processo de

individualização em que se deu a aproximação entre três categorias de representações

mentais: as da morte, as do reconhecimento por parte de cada indivíduo de sua própria

biografia e as do apego apaixonado às coisas a e aos seres possuídos durante a vida.

Esse é um momento de transição, marcada por intensas e gradativas

transformações sócio-econômico-político-culturais, mas foi a morte que possibilitou ao

homem tomar consciência de si mesmo. Ariès (1989), argumenta que as representações

artísticas em que se observa crenças populares de preocupação com o risco de perder a

salvação, algo que só depende do indivíduo em não cair em tentação e em não pecar, e

as alusões ao cadáver em decomposição, tanto nas artes plásticas quanto na literatura,

atestam essa mudança de atitude e de representação frente à morte. Segundo Huizinga ―em nenhuma outra época como na do declínio da Idade Média se atribuiu tanto valor

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93

ao pensamento da morte. Um imperecível apelo ao memento mori ressoa através da

vida‖. (HUIZINGA, 1996, p. 145).

E descreve em sua obra O outono da Idade Média, as formas de inculcar o ―temível pensamento‖ em todos os espíritos, além dos sermões das ordens mendicantes,

em fins do século XV, expande-se a gravura em madeira. No entanto, a morte ainda era

representada de uma forma simples e óbvia notadamente o ―sentido da perecível

natureza de todas as coisas‖ (HUIZINGA, 1996). Citando poesias eruditas no século

XII: ―Onde está hoje a tua glória, Babilônia, onde está agora o terrível Nabucodonosor,

o forte Dario e o famoso Ciro? Onde está agora Régulo, ou onde está Rômulo e Remo? A rosa do passado é apenas um nome, simples nomes são legados‖ (MORLAY In HUIZINGA, 1996, p. 146).

Huizinga afirma a morte como sendo um gracioso e elegíaco lamento. No

entanto, argumenta que, de forma mais contundente, as representações materiais da

morte, nesse período, não contemplavam emoções de ternura e consolação, lamento e

dor pela perda. Antes expunha uma ―incapacidade de libertar-se do apego à matéria‖,

haja vista as representações da morte revestirem-se, especialmente a partir do século

XIV, na arte e na literatura, de uma forma espectral e fantástica – o Macabro,45

evidenciado em gravuras em madeira, pinturas e literatura. Nesta última um exemplo

largamente conhecido:

Não há um membro nem forma, que não cheire a putrefação, antes que a alma se liberte, o coração que quer rebentar no peito ergue-se e dilata o peito que quase fica junto da espinha dorsal. – A face é descorada e pálida. E os olhos cerrados, na cabeça. A fala perdeu-se, porque a língua está colada ao céu da boca. O pulso bate e ele anseia... Os ossos separam-se por as ligações; não há um só tendão que não se estique e estale (CHASTELLAIN In HUIZINGA, 1996, p. 154).

Retomando o histórico do período, baixa Idade Média, observam-se

transformações na forma de enterramento, com a prática e uso de caixões, evitando a

exposição do corpo, bem como as sepulturas coletivas nas igrejas vão sendo

gradativamente substituídas por túmulos individuais. Outra transformação significativa

nesta época diz respeito às demonstrações públicas do pesar diante da ―morte do outro‖. Não era de bom tom perder o controle. O luto deveria ser comedido.

45

Ao aludirmos à ideia de macabro referimo-nos à seguinte citação: ―Foi preciso a Idade Média chegar a

seu fim para que novas formas (negativas) de compreensão da morte tomassem conta dos espíritos, como, por exemplo, o conceito de macabro, a Dança da Morte Macabra, que tomou conta dos afrescos e das gravuras em madeira, e exprimia a profunda angústia dos tempos da Peste Negra e da Guerra dos Cem Anos (HUIZINGA, s/d: 145-157)‖. Cf. http://www.ricardocosta.com/artigo/morte-e-representacoes-do-alem-na-doutrina-para-criancas-c1275-de-ramon-llull#sthash.BZ5RmSTB.dpuf

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Poderíamos remeter essas mudanças ao que Norbert Elias chamou de ―Processo Civilizador‖, ou seja, ―uma mudança na conduta e sentimentos humanos

rumo a uma direção muito específica" (ELIAS, 1990, p. 193). Essa direção seria a da

racionalização, apesar do movimento não ser racional, da atividade humana, tida como

um conjunto de comportamentos – tanto introjetados quanto exteriorizados socialmente

pelos indivíduos – numa espécie de mútuo controle da hierarquia dos sistemas sociais.

As transformações nas estruturas político-sócio-econômicas que

caracterizaram o ―outono da Idade Média‖ (HUIZINGA, 1996) marcam as ―mudanças

na constituição psicológica‖ conhecida como ―civilização‖ (ELIAS, 1990). Essas se dão

a partir da dinâmica das classes sociais. Norbert Elias traça uma relação entre a

sociogênese e a psicogênese. Poder-se-á aventar sobre a combinação dessas estruturas

como determinantes nos processos de transformações das representações sociais em

torno da morte. Aponta o autor:

Tal como conduta em geral, a maneira de ver as coisas e as pessoas também se torna mais neutra na esfera afetiva, como processo civilizador. A 'imagem do mundo' vai se tornando menos diretamente determinada pelos desejos e receios humanos, e s orientando para o que chamamos de 'experiência' ou para o 'empírico', para sequências dotadas de regularidades imanentes (ELIAS, 1990, p. 228).

Pode se dizer que se desenvolveu uma ―visão psicológica‖ do homem, a

observação mais exata dos demais e de si mesmo, promovendo uma 'psicologização' das

regras de condutas e assim uma mudança na maneira como as pessoas se ligavam umas às outras. Segundo Elias, ―por isso mudou o comportamento, por isso também mudaram

a consciência e a economia das paixões, e a própria estrutura como um todo.

Circunstâncias que mudam não são algo que vem ter aos homens, de fora: são

relacionamentos, entre as próprias pessoas‖ (ELIAS, 1990, p. 230).

E assim reforça a necessidade daqueles, que se interessam pela história da

sociedade, realizarem um estudo psicogenético e sociogenético, a fim de compreender o

processo civilizador. Esse não diz respeito apenas às esferas das ideias ou pensamentos,

conteúdos de consciência, mas mudanças em toda a constituição humana: hábitos,

costumes, controle e autocontrole das pulsões e sentimentos. Na perspectiva desse

processo civilizador temos, da Idade Moderna até o século XVIII, a ―morte

romantizada‖, laicizada, vista como uma ruptura e não mais como uma passagem. Mas,

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de acordo com Philippe Ariès, da Idade Média a meados do século XVIII, a ―morte

domesticada‖ ainda prevalecia no ocidente católico e na França em especial.

Segundo João José Reis, cemitérios contíguos às igrejas estavam integrados

à vida da comunidade e, apesar de leis municipais e a decência religiosa condenarem,

estes se tornavam espaços de pastagens de animais, feiras, bailes, depósitos de lixo,

namoros clandestinos e morada de mendigos. Reis cita Michell Vovelle em comentário

ao trabalho de Philippe Ariès ―Uma sociedade em que coabitam os vivos e os mortos,

em que o cemitério se confunde com a igreja no coração da cidade‖ (VOVELLE In REIS, 1991, p.73).

João José Reis afirma que ―numa sociedade tradicional, não havia separação

entre a vida e a morte, o sagrado e o profano, entre a cidade dos vivos e o dos mortos‖ (REIS, 1991,p.74), apesar disso não significar que não havia o temor da morte. É que a

crença nos ―ritos de passagem‖, indicados pela religiosidade, garantiria o afastamento

de qualquer risco que os mortos pudessem significar aos vivos, numa perspectiva

transcendental, já que ainda não predominava uma preocupação médico-higienista com

a proximidade entre os espaços dos vivos e dos mortos.

A morte ainda era um espetáculo de ―profusão barroca‖ (VOVELLE) em

que os ritos e funerais apresentam pompa. Reis pontua semelhança com a descrição

abaixo, a ―visão da morte‖ no Brasil colonial e exemplifica com o ―funeral espetacular‖

do governador Afonso Furtado de Mendonça, em 1675, na Bahia

O luxo dos caixões, dos panos funerários, a quantidade de velas queimadas, o numero de participantes do cortejo – de padres, pobres, confrarias, músicos, autoridades, convidados a solenidade e o numero de missas de corpo presente, a decoração da igreja, o prestigio do local escolhido pela sepultura (REIS, 1991, p. 74).

Le Goff, em seus estudos sobre a memória, aponta como, na Idade Média, ―a memória cristã cristalizou-se, sobretudo nos cultos aos santos e mortos‖ (LE GOFF, 2003,p.441), surgindo em torno da recordação dos mártires os libres memoriales, ―nos

quais as igrejas inscreviam aqueles de que se conservava lembrança e que eram objetos

das suas orações‖, (LE GOFF, 2003). Seus túmulos receberam o significado de

memória. No entanto, essas práticas e representações sofreram ―abalos‖ quer seja pelo

processo de transformações socioeconômicas, quer seja pelas transformações na

mentalidade:

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96

Enquanto os vivos podem dispor de uma memória técnica, científica e intelectual cada vez mais, a memória parece afastar-se dos mortos. Do final de século XVII até o fim do século XVIII, assim como na França de Philippe Ariès e Michel Vovelle, a comemoração dos mortos entra em declínio. Os túmulos, incluindo os dos reis, tornam-se muito simples. As sepulturas são abandonadas à natureza e os cemitérios tornam-se desertos e mal cuidados

(LE GOFF, 2003, p. 456).46

Somente no imediato pós Revolução Francesa, na França e em outras partes

da Europa, assiste-se a um retorno da memória dos mortos, uma vez que ―a grande época dos cemitérios começa, com novos tipos de monumentos, inscrições funerárias e

rito de visita ao cemitério. O túmulo separado da igreja voltou a ser centro da

lembrança‖ (LE GOFF, 2003, p. 456). No século XIX, talvez dado a uma progressiva

percepção da efemeridade da vida e do tempo, o luto é ressignificado e exagerado. ―A

morte temida não é a morte de si mesmo, mas a morte do próximo, a morte do outro‖ (ARIÉS, 1989, p. 48). No entanto, ela continua domesticada e familiar e passa a se

compor como significativa manifestação da memória coletiva e constituição de

identidades, inclusive como elemento de coesão nacional. De acordo com Le Goff:

[...] no século XIX e no início do século XX {…}em seguida à Primeira Guerra Mundial, […] a comemoração funerária encontra aí em no desenvolvimento. Em numerosos países é exigido um Túmulo ao Soldado Morto Desconhecido, procurando ultrapassar os limites da memória, associada ao anonimato, proclamado sobre um cadáver sem nome a coesão da nação em torno da memória comum (LE GOFF, 2003, p. 460).

Inventariando as concepções do purgatório, ao longo do tempo, na obra As

Almas do Purgatório ou o Trabalho de Luto, Vovelle escreve: ―A primeira parte do

século XIX alimentava o imaginário do romantismo com a presença do além.

Proveniente em linha reta do romance Noir, o fantasma, imagem elaborada do morto,

representava um acessório inescapável da pequena literatura, assim como da grande‖ (VOVELLE, 2010, p. 265).

Na segunda metade do século XIX tem-se a descoberta ―científica‖ do

espiritismo ―[…] dando uma nova face, por diáfana que seja, aos mortos invocados para

restabelecer com eles um diálogo direto‖(VOVELLE, 2010,p. 265). E continua o autor:

as gravuras de aparições se multiplicam, e a fotografia traz uma canção que muitos julgam irrecusável. Surgem uma literatura e até uma imaginária: l' Echo de Merveilleux ( O Eco do Sobrenatural), crônica das novas

46

Segundo Le Goff, o francês Pierre Muret nas suas cerimônias fúnebres Toutes les nations (1675), achava particularmente chocante esquecimento dos mortos na Inglaterra e o atribuía ao protestantismo (LE GOFF, 2003, p.456).

Page 99: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

97

experiências de materialização, das casas assombradas e das reencarnações,

acompanha as evoluções no espaço cósmico intersideral de coortes das almas,

que têm para nós um aspecto familiar. (VOVELLE, 2010, p. 265-266).

Tal fenômeno foi condenado pela Igreja, ciente de que a ―moda espírita‖

desestabilizaria não só a escatologia cristã-católica, bem como diversos aspectos de sua

teologia, daí a necessidade de combatê-lo. No entanto, segundo Vovelle, esse combate

da Igreja acabou por envolver muito eclesiásticos nesse clima, o que acabou por

alimentar a credulidade em torno de uma escatologia ―sub-reptícias‖ própria do

espiritismo.

Nesse ponto, parafraseando, Mircea Eliade, podemos acreditar na profusão

do ―mito do eterno retorno‖, presente na mentalidade de diversas culturas no passado

mais remoto – egípcios e gregos da antiguidade ao momento presente. Talvez, essa

busca e essa crença tenham influências sobre ―as novas expressões dos relacionamentos

entre os vivos e os mortos, que acarreta uma consolidação do laço familiar‖ (VOVELLE, 2010, p. 268).

As inscrições nas lápides funerárias, as estatuárias dos cemitérios revelam a ―transferência do purgatório‖ da igreja para os cemitérios – um ―revival do purgatório‖ (VOVELLE,2010,p.270), na Europa, não como uma política deliberada da Igreja ou

qualquer outra instituição, mas como uma iniciativa da base. Importante destacar que ―a

nova visão‖ do purgatório não o coloca como ―lugar de danação‖, mas como ―o espaço

do expurgo dos pecados e de promessa de reencontro no Além‖.

Essa ideia se sustenta no imaginário popular e, para tal, Michel Vovelle cita

o Manuscrit do Purgatoire47

, divulgado pela Associação da Boa Morte, em

Tainchebray, e reeditado até 1966, que apresenta relatos de experiências espirituais, no

século XIX, de freiras visionárias que descrevem o ―encontro das almas‖, em que em

descrições detalhadas, expressam o purgatório como ―centro da terra, repartido em

função da gravidade das culpas, as almas recebem visita dos anjos e de São Miguel, e

oram para os vivos, da mesma forma que estes oram pelos mortos‖ (VOVELLE,2010,p.279).

Importante reafirmar aqui o ―presentismo‖ dessa mentalidade quando ainda

se percebe a ―devoção‖ por parte de alguns católicos às almas do purgatório,

47

No tocante ao Manuscrit do Purgatoire extraímos a referência da obra As almas do purgatório ou o trabalho de luto de MichellVovelle que, no entanto não faz menção da primeira edição do referido Manuscrit do Purgatoire.

Page 100: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

98

entendendo-as como protetoras. Vovelle revela cultos populares – e condenados pela

Igreja – nas catacumbas de Nápoles, realizados até a década de 70 e estudados por

antropólogos até 1980 ―quando um terremoto forneceu às autoridades eclesiásticas o

pretexto para impedir o acesso a esses lugares‖ (VOVELLE,2010,p.288). Tal

impedimento se fazia necessário uma vez que os estudos poderiam revelar práticas ―aberrantes, supersticiosas‖ e, portanto ―inadmissíveis‖, fora do controle eclesiástico.

Mas o que era o ―escândalo‖ a ser escondido? Vovelle revela:

O objeto do escândalo, da forma como os antropólogos o descreveram in extremis, é bem conhecido em suas manifestações exteriores: nas galerias das catacumbas, um público muito popular levava sua devoção às almas do purgatório representadas pelas caveiras que as povoam. […] Todo um lendário desenvolve-se em volta deles. Mas não são as lendas que importam, e sim o diálogo regular, instaurado com as frequentes visitas, especialmente na segunda-feira, dia dos mortos. […] As pessoas aos cuidados da alma particular fazem pedidos, […] um marido, um filho, trabalho e acima de tudo, o desejo de uma vida normal, muito mais do que inquietações sobre a morte e o além (VOVELLE, 2010, p. 288-289).

Vovelle aponta para uma ―mercantilização‖ da relação em que ―a alma, à

espera do paraíso mais feliz […], fica encarregada de levar até Deus os pedidos e

contar-lhe as desgraças, para receber em troca, com a presença dos vivos e suas orações,

o refresco do qual precisa‖ (VOVELLE, 2010, p. 289). Contudo, o autor adverte que

não se pode ―enquadrar, tais práticas numa atemporalidade ilusória, que as

transformaria na expressão de comportamentos arcaicos‖ (VOVELLE, 2010, p. 289).

Daí vem, portanto, a necessidade de ―recorrer à intervenção da História‖, insiste o autor.

Assim, o autor contextualiza essas práticas em movimentos advindos de

processos traumáticos ligados a tragédias: pestes, epidemias ou, como no caso do século XIX, ligado ―a crise do sistema de confrarias e montepios‖. Insistindo no exemplo de Nápoles, lembrando-o como não representativo de toda a Europa, Vovelle historiciza tal

fenômeno no contexto das crises sócio-políticas da região. Seria o que o autor

denominou de Curiosum, de especificidade, o caso napolitano? O autor é categórico: ―Nada disso: paralelamente a ocultação das catacumbas, a devoção às almas do

purgatório expressa-se abertamente no século XX, nas igrejas e oratórios do mundo

mediterrâneo‖ (VOVELLE, 2010, p. 291).

Percebemos com o exposto as marcas impressas pelas concepções sobre a

morte e os lugares de enterramentos no Ocidente cristão católico sobre os imaginários e

as representações sociais que se perpetuam e expandem por um período de longa

Page 101: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

99

duração e, tendo como berço a Europa medieval, se estendem ao Brasil e ao arraial do

Bonfim (atual Bocaiuva/MG). Este será o aspecto que pretendemos demonstrar no

tópico que se segue.

2.2 – Viver e morrer no Bonfim nos séculos XVIII e XIX

Recuperar, em documentos paroquiais, os assentos de morte ou obituários

dos séculos XVIII e XIX, permitiu a nós não apenas uma visão da morte e do morrer no

Bonfim (Bocaiuva/MG), mas, por extensão, compreendermos a vida no lugar, em todos

os seus aspectos. É possível descortinar aos olhos, todas as agruras do viver e do morrer

numa sociedade que trazia em seu bojo as marcas do Brasil colonial, ou seja, do

latifúndio, da escravidão, da mentalidade impregnada pela religiosidade incutida pela

Igreja Oficial, das distinções sociais e, apesar destas, do poder da morte que chega para

todos e, como veremos, muitas vezes sob o ―mesmo pretexto‖, ou seja, motivada pelas

doenças epidêmicas que não escolhiam idade, condição social, gênero, crenças ,enfim a

todos acometia, encerrando a trajetória na terra de cada um que nascia e que morria no

Bonfim.

Como já mencionamos no primeiro capítulo, os referidos documentos, ou

parte deles que aqui apresentaremos, encontram-se na Matriz do senhor do Bonfim em

condições precárias de arquivamento, colocando em risco, no futuro, a possibilidade de

acesso a tais documentos, em sua materialidade original. Uma ―luz no fim do túnel‖

dessa triste constatação é que parte destes documentos foi digitalizada e se encontra

disponibilizada por uma organização estadunidense que efetuou microfilmagens no

início dos anos de 1980, de diversos documentos paroquiais no Brasil e em Minas

Gerais. Trata-se da Sociedade Genealógica de Utah, entidade ligada à Igreja de Jesus

Cristo dos Santos dos Últimos Dias (mórmons). De acordo com Boschi & Botelho

(2008):

A maior parte da microfilmagem fora realizada há mais de 20 anos e, desde então, muitos dos originais se degradaram, pelo uso ou má conservação, outros se perderam. Vale dizer: a exploração e a digitalização exitosas desse material abrem um amplo filão a ser explorado nos próximos anos (BOSCHI & BOTELHO, 2008, p. 05).

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100

Também tivemos acesso a documentos que se referem aos moradores do

Bonfim quando este ainda não se configurava como paróquia.48

Esses documentos

fazem parte de arquivo digitalizado, por particular49

e inclui livros de óbitos da ―jurisdição‖ da Matriz de Santo Antônio de Itacambira no século XVIII. O referido

documento, a nós disponibilizado na forma digital, mas já revelando estado de

acentuada deteorização , permite visualizar registros de óbitos, aspectos e lugar do

sepultamento em toda a região que se integrava à paróquia referida, sendo citada a Capela do Senhor do Bonfim que é nominada como ―filial‖ da Paróquia de Santo Antônio de Itacambira.

Desse documento apresentaremos apenas alguns dados, primeiro por seu

precário estado de conservação, segundo pelo fato de, não sendo específico do arraial do

Bonfim, os dados estarem emaranhados aos de diversas localidades, inclusive aos do

arraial das Formigas (atual Montes Claros/MG), Brejo das Almas (atual Francisco

Sá/MG), dentre outros. Importante dizer que transcrevemos os documentos com a grafia

e pontuação como se apresentam.

Fig.32. Foto: Livro de assentos de óbitos da Matriz de santo Antônio De Itacambira-De 1779 a 1807. Fonte: Do arquivo pessoal de Pedro Pereira Pimenta

48

Em documentos do século XVIII aqui mencionado, consta que a capela do Bonfim era filial da matriz de Santo Antônio de Itacambira. Para melhor compreendermos essa estrutura recorremos ao trabalho Visualização Cartográfica dos mapas de Minas Gerais dos setecentos e oitocentos: em destaque as bases urbanas, desenvolvido por CASTRO et all que esclarece ―Paróquia: Esse termo corresponde à unidade de jurisdição de uma diocese, relacionada, portanto, a uma circunscrição territorial eclesiástica, com igreja destinada a culto público. Essa circunscrição também é designada por freguesia e ainda tem uma função na hierarquia territorial político-administrativa secular. Capela: Pequena igreja de um só altar, sem pároco próprio. Geralmente é erigida ou fundada por nobres ou senhores nas terras de suas propriedades.‖ 49

Por iniciativa de um bocaiuvense que busca recuperar a trajetória de sua família no Arraial do Bonfim e região, foram digitalizados diversos documentos referentes à região nos séculos XVIII e XIX. Esse arquivo nos foi disponibilizado e aqui agradecemos ao Sr. Pedro Pereira Pimenta a generosidade pela partilha de tão precioso documento.

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101

Aqui há assentos de dois falecimentos no Arraial do Bonfim. No primeiro se

lê: ‖Aos catorze dias do mez de abril de mil setecentos e oitenta no corpo da capella do

senhor do Bom fim, filial desta Matriz de Santo Antônio de Itacambira se deu sepultura

cadáver de Manoel Dias faleceo com o sacramento da penitencia e para constar mandei

fazer este assento que asiney‖.

No segundo lê-se: ―Aos dezessete dias do mez de abril de mil setecentos e

oi oitenta no corpo da capella do senhor do Bom fim, filial desta Matriz de Santo

Antônio de Itacambira se deu sepulturaa um anjinho filho de Antonio Bastos e para

constar mandei fazer este assento que asiney‖. No documento específico do arraial do Bonfim, já elevado à condição de paróquia e

denominado arraial, encontram-se os assentos de mortes entre janeiro de1861 e maio de

1884, sendo necessário registrar que há alguns revezes nesses registros, qual seja cerca

de duas páginas em branco, algumas ―voltas ao tempo‖ quando se percebe a interrupção

de uma sequência cronológica no registro para se observar falecimentos anteriores e não

registrados, seguindo depois a cronologia.

Também importante registrar que não podemos assegurar onde foram

registrados os assentamentos do período anterior e posterior ao que se visualiza no

referido documento, uma vez que nos livros de óbitos da freguesia de Itacambira, ao

qual tivemos acesso e já mencionamos, os assentos iniciam-se nos ano de 1779 e findam

no ano de 1807. Há ainda que se observar que, nesse livro, os assentos apresentam uma

maior riqueza de informações e uma forma específica de registro, não sabemos se

exclusivamente em função de novas orientações50

ou se um estilo próprio do vigário da

paróquia e que assina pelos registros.51

Vale dizer, no entanto que percebemos certa

50

Segundo Tarciso Rodrigues Botelho, em Minas Gerais está um dos maiores acervos de documentos

paroquiais do Brasil, inclusive menciona no artigo Família e demografia em Minas Gerais, séculos XVIII, XIX e XX os documentos paroquiais do Bonfim como alvo de pesquisa e arquivo digital pela Sociedade Genealógica de Utah, bem como por equipe de pesquisadores da UFMG ligados ao projeto de pesquisa "Família e demografia em Minas Gerais, séculos XVIII, XIX e XX", financiado pela Fapemig e pelo CNPq. Além disso, o autor nos informa no artigo Família escrava em Catas Altas do Mato Dentro (MG) no século XVIII, que no 2ª império, com vistas à organização do Estado nacional, em Minas Gerais foi promulgada a Lei Provincial Nº 46 , de 21 de março de 1836 que determinava ao clero a obrigatoriedade de enviar semestralmente ―ao governo provincial mapas-resumo de nascimentos( batismo) , matrimônios e óbitos havidos em sua paróquia (BOTELHO, S/D.) 51

Quanto a essa questão interessante observar o que diz Mirian Moura Lott, mestre em História

FAFICH/UFMG ―Em todas as igrejas paroquiais haveria um livro de assentos com o nome dos defuntos. As demais informações constantes neste documento padronizado pelas Constituições se tornaram fonte documental extremamente rica e são: a data do falecimento, nome de seu cônjuge e/ou de seus pais, freguesia de origem, idade, os sacramentos recebidos, local de sepultamento, se deixou testamento, seus legados pios ou se era pobre, etc. Como nos assentos de batismo e casamento nem sempre constavam todas essas informações ou às vezes constavam informações suplementares. A diferença devia-se ao cuidado e maior observação do pároco ou coadjutor e à época. Alguns dados, como a cor, condição de

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102

variação nesses registros que se tornam mais sucintos a partir de uma determinada

época.

Seria essa situação indicadora de uma pequena e sutil mudança de

mentalidade sobre os enterramentos e rituais fúnebres? Ou seria resultado de situações

socioeconômicas que restringiram as possibilidades de rituais e enterramentos ―barrocos‖ como designado por Michel Vovelle e descritos por João José Reis, em sua

obra A morte é uma festa, aqui já referida?

Talvez uma combinação desses dois fatores possa ser a resposta mais

acertada para indicar tais mudanças. Poderíamos mesmo dizer que é possível dividir o

livro em dois momentos: nos primeiros registros até aproximadamente primeira metade

do ano de 1871, temos maior incidência de enterramentos na Matriz (dentro desta), em

torno de 90% do total de assentos que registram ser este local de enterramentos, num

período de 23 anos abarcados pelo livro em questão, bem como do uso de caixões,

mortalhas com cores diferenciadas especialmente para as crianças, indicação de

sacramentos, de acompanhamentos do cortejo fúnebre por padres e detalhamentos sobre

o morto.

Quanto à indicação de sacramentos no momento da morte, percebemos que,

a partir de 1867, os registros destes se tornam mais escassos. Antes desta data,

encontrava-se como registros, além obviamente dos sacramentos que ocorriam, sendo

mais frequentes: a penitência, a extrema unção, mas também ocorrendo a eucaristia e a

absolvição (algumas vezes acrescida do termo vigorosa), os registros de ―sem

sacramentos por não procurarem a tempo‖ e com maior incidência o registro ―sem

sacramentos por não procurarem‖.

Esse dado nos permite refletir sobre a razão desse fato: seria a diminuição, e

especialmente a omissão do registro ―sem sacramentos por não procurarem‖ nos anos

posteriores a 1867, a representação de uma realidade em processo de mudança lenta,

mas gradual? Ou seria o não registro, a tentativa da igreja de ―esconder‖ o fato de que,

talvez, não tivesse mais tanto controle do ―mercado da salvação‖?

É certo que, especialmente a partir da institucionalização das Constituições

Primeiras Do Arcebispado da Bahia52

, a Igreja Católica buscou implementar e controlar

legitimidade ou idade eram recorrentes em algumas épocas e somem em outras‖ (LOTT, 2005). Também João José dos Reis salienta o aspecto das variações na forma de registro seja pelas ―questões‖ do tempo ou pelas características próprias do pároco. Cf Reis (1991). 52

Em 1707, reuniu-se em Salvador, Bahia, um sínodo com o objetivo de confirmar e adequar os preceitos do Concílio Tridentino às terras brasileiras. Deste Conclave surgiu as ―Constituições Primeiras do

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103

os cânones católicos no Brasil, mas é outra verdade que o Catolicismo, no Brasil, nunca

foi ―puro‖. Ou seja, não se pode negar que aqui se desenvolveu, seja pela distância em

relação às origens do Cristianismo europeu, tanto em se tratando das questões históricas

quanto em função das distâncias geográficas (seja do centro eclesiástico – Vaticano,

seja destas no próprio território), seja pela presença de outras culturas, leiam-se

indígenas e africanas que, apesar da condição de subjugados, fizeram-se sentir e influir

na produção de um catolicismo popular, característico do Brasil.

Num segundo momento de registros, que se pode dizer, inicia-se em meados

do ano de 1871, nota-se uma maior incidência de enterramentos no adro,53

em torno de

66% dos assentos que registram sepultamentos nesse local, além de se perceber

tendência a informações mais restritas. Apontaremos, no decorrer deste tópico, algumas

questões relacionadas a essa situação. Apresentaremos, no quadro a seguir, um

panorama da morte no arraial, nesse período do século XIX e, a seguir, faremos

apontamentos e análise dos aspectos que pretendemos deslindar neste trabalho, qual seja

o imaginário, as representações sociais, as práticas e rituais em torno do ―passamento‖ e

dos lugares de ocultação do corpo morto.

Na página inicial do documento não se pode ler a data do primeiro assento.

Salientamos o texto do segundo registro dessa página, onde se lê:

Aos quinze dias do mez de janeiro de mil oitocentos e cecenta e hum no lugar denominado São Lamberto d‘esta Freguesia do Senhor do Bonfim falleceo da vida prezente unidade de 30 annos,de parto sem sacramentos por não procurarem Beatriz Alves de Souza, parda, solteira. Foi amortalhada em habito branco sepultada n‘esta Matriz por mim encomendada de que para constar mandei fazer este apsento que apsignei Vigário Jose Maria Verciani (Virciani?)

Arcebispado da Bahia‖. Tal documento foi reimpresso em Lisboa em 1765 e em São Paulo em 1853. As Constituições são formadas por cinco livros e pretendem contemplar tanto as questões dogmáticas (da fé),como as atitudes frente às ―coisas sagradas‖, o comportamento dos fiéis no cotidiano, o procedimento desejável do clero e por último institui as sanções determinadas pelo descumprimento das orientações dadas. 53

No Glossário de Termos sobre a Religiosidade, elaborado por Nunes (s/d) e editado pelo Tribunal de

Justiça do estado de Sergipe, encontramos como definição para o termo adro ‖Lugar aberto na frente ou a redor das igrejas, de ordinário resguardo por muros baixos. Antigo cemitério quando os enterramentos eram feitos junto aos templos ―(p. 19)‖. Ainda, de acordo com Silveira (2010,s/p)― o espaço do adro foi normalmente considerado inferior às campas, sendo assim, acabou por ser muito desprestigiado, chegando a ser adquirido gratuitamente durante o século XVIII e início do XIX. Geralmente, os defuntos enterrados nesse local eram escravos e pessoas livres pobres. Estas sepulturas de adro encontravam-se normalmente espalhadas nos espaços laterais das igrejas, em alguns casos, encerradas por muros a fim de evitar a profanação desse espaço sagrado. Mas em outros casos, elas podiam manter uma contiguidade estritamente visual entre os túmulos sagrados e a vida profana das urbes, pela ausência de delimitação por muros ou cercas circundando o cemitério do adro‖.

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104

Abaixo, apresentamos consolidado que traz algumas informações aferidas a partir do documento:

Tabela ! Total dos assentos neste livro 1948 assentos

Total dos enterramentos no adro da igreja 1115 assentos

Total de enterramentos Na Matriz (os 817 assentos registros ora especificam N‘esta Matriz,

ora especificam Dentro da Matriz assim

deixa evidenciado que se tratava de

enterramentos nos moldes ―ad sanctus‖)

Total de enterramentos no cemitério do 09 assentos

Arraial do Bonfim

Total de enterramentos na Matriz e com 19 assentos

especificação de local: ―Grades asima‖

Entre os dois cruzeiros 01 assento

Arco do cruzeiro para cima 01 assento

Total de enterramentos sem especificação 01assento

do local

Total de enterramentos especificado como 03 assentos

―Fora‖ da Matriz

Total de enterramentos especificado em 03 assentos

outros lugares

Total de enterramentos utilizando caixões 147 assentos

Total de enterramentos com encomendas e 26 assentos

Acompanhamento

Total de enterramentos em que se 03 assentos (estes também traziam

registrou a ocorrência de ―estações na rua‖ indicação de quantas estações)

Algumas causa mortis citadas no Febre 480 assentos

Documento

Inflamação (registrado enflamação em 354 assentos

alguns momentos)

Mal de sete dias 45 assentos

Encalho 33 assentos

Também se morria de picada de cobra, afogamento, assassinato, por

erisipela, paralisia, por constipação, de ―congestã‖, de ―sarnas recolhidas‖, de

lombrigas, de ―dephuseira‖, de parto, repentinamente, ―logo que veio ao mundo‖ e de

―velhice‖. Enfim, a morte vinha e seria bom se, ao morrer, o defunto já tivesse recebido

os sacramentos que poderiam assegurar-lhe um ―bom lugar‖. Pelo menos num primeiro

momento dos registros se percebe essa preocupação como as práticas do ―bem

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105

morrer‖,54

como podemos ver nos exemplos que destacamos, reafirmando que os

transcrevemos como se apresentam. No catecismo católico, no parágrafo 1014, lemos:

A Igreja nos encoraja à preparação da hora de nossa morte (―Livra-nos, Senhor, de uma morte súbita e imprevista‖: antiga ladainha de todos os santos, a pedir à Mãe de Deus que interceda por nós "na hora de nossa morte" (oração da "Ave-Maria") e a entregar-nos a São José, padroeiro da boa morte: Em todas as tuas ações, em todos os teus pensamentos deverias comportar-te como se tivesses de morrer hoje. Se tua consciência estivesse tranquila, não terias muito medo da morte. Seria melhor evitar o pecado que fugir da morte. Se não estás preparado hoje, como o estarás amanhã? Louvado sejais, meu Senhor, por nossa irmã, a morte corporal, da qual homem algum pode escapar. Ai dos que morrerem em pecado mortal, felizes aqueles que ela encontrar conforme a vossa santíssima vontade, pois a segunda morte não lhes fará mal. (Catecismo Católico).

No passado, no contexto do ―bem morrer‖, a morte repentina era indesejada

porque impedia ao falecido receber os sacramentos, uma das condições para se garantir

um ―bom lugar no além‖. Era um direito do fiel e um dever do sacerdote,

regulamentado e detalhado pelas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Além da ―encomendação‖ do corpo pelo sacerdote, o que obviamente já se fazia em

função do falecimento, era importante para o moribundo proceder à confissão e

penitência, e assim garantir outros sacramentos se estes fossem possíveis a tempo.

O catecismo católico esclarece sobre essas questões na segunda parte,

intitulada ―A Celebração o Mistério Cristão‖. Em sua segunda seção, apresenta os sete

sacramentos da Igreja e, no capítulo 4 especifica-os, referindo-se ao sacramento da

penitência e da reconciliação, no parágrafo 1486. ―O perdão dos pecados cometidos

depois do Baptismo é concedido por meio dum sacramento próprio, chamado

sacramento da Conversão, da Confissão, da Penitência ou da Reconciliação‖. Em

decorrência destas viria a absolvição. Como se pode observar no parágrafo 1491. ―O

sacramento da Penitência é constituído pelo conjunto de três actos realizados pelo

54

Entendemos por práticas do ―bem morrer‖, os rituais e as práticas advindas das concepções e

preocupações com o além-túmulo introjetadas na mentalidade cristã, desde a Idade média europeia e que se estenderam pela idade moderna, alcançando o Brasil, evidentemente, e aqui sendo percebido até o século XIX. Essas concepções e preocupações marcadas pela ―pedagogia do medo‖ aplicada pela Igreja católica foram regulamentadas aqui pelas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia que orientava todo o reger eclesiástico no Brasil colonial e Imperial. Segundo o catolicismo, religião oficial do período, as pessoas deveriam se preparar para ter uma ―boa morte‖, ou seja, ter uma morte organizada segundo os rituais católicos. O preparo para a passagem para o além incluiria o recebimento dos últimos sacramentos no momento derradeiro, a feitura de testamento (para aqueles que tinham algo a deixar), contribuição a obras pias, o lugar do enterro, mortalhas específicas, missas em intenção das almas, o cortejo fúnebre, entre outros. Só assim seria possível garantir um bom encaminhamento da alma, ou pelo menos, amenizar o tempo de sofrimento no Purgatório. Tanto a população livre como a população escrava, uma vez batizados, tinham, pelo menos em princípio, o direito a essa ―boa morte‖. Nota-se, pelos registros destacados que a prática do ―bem morrer‖ também se inscreveu no imaginário dos moradores do arraial do Bonfim.

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106

penitente e pela absolvição do sacerdote. Os actos do penitente são: o arrependimento, a

confissão ou manifestação dos pecados ao sacerdote e o propósito de cumprir a

reparação e as obras de reparação‖. Com estes se esperava, como se lê no artigo 1496:

Os efeitos espirituais do sacramento da Penitência são: – a reconciliação com Deus, pela qual o penitente recupera a graça; – a reconciliação com a Igreja; – a remissão da pena eterna, em que incorreu pelos pecados mortais; – a remissão, ao menos em parte, das penas temporais, consequência do pecado; – a paz e a serenidade da consciência e a consolação espiritual; – o acréscimo das forças espirituais para o combate cristão (catecismo católico).

Se acometido de doença que indica a possibilidade de morte, ao fiel é

garantida a unção dos enfermos que, se fosse da vontade de Deus, restabeleceria sua

saúde, como se nota no inciso IV que especifica ―Os efeitos da celebração deste

sacramento‖ e no parágrafo 1520 esclarece ―Um dom particular do Espírito Santo‖.

A primeira graça deste sacramento é uma graça de reconforto, de paz e de coragem para vencer as dificuldades próprias do estado de doença grave ou da fragilidade da velhice. Esta graça é um dom do Espírito Santo, que renova a confiança e a fé em Deus, e dá força contra as tentações do Maligno, especialmente a tentação do desânimo e da angústia da morte (...). Esta assistência do Senhor pela força do seu Espírito visa levar o doente à cura da alma, mas também à do corpo, se tal for a vontade de Deus (131). Além disso, ‗se ele cometeu pecados, ser-lhe-ão perdoados‘ (Tg 5, 15)‖.

No entanto, se a morte já era iminente, dava-se a extrema-unção que viria na

forma do viático. Eis o que diz o catecismo católico no inciso V, que traz como

subtítulo: O Viático, último sacramento do cristão,

Àqueles que vão deixar esta vida, a Igreja oferece-lhes, além da Unção dos Enfermos, a Eucaristia como viático. Recebida neste momento de passagem para o Pai, a comunhão do corpo, e sangue de Cristo tem um significado e uma importância particulares. É semente de vida eterna e força de ressurreição, segundo as palavras do Senhor: ‗Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna: e Eu ressuscitá-lo-ei no último dia‘ (Jo 6, 54). Sacramento de Cristo morto e ressuscitado, a Eucaristia é aqui sacramento da passagem da morte para a vida, deste mundo para o Pai [...](parágrafo 1524, catecismo católico)

E finaliza no parágrafo 1525:

Assim, do mesmo modo que os sacramentos do Baptismo, da Confirmação e da Eucaristia constituem uma unidade chamada ‗os sacramentos da iniciação cristã‘, também pode dizer-se que a Penitência, a Santa Unção e a Eucaristia, como viático, constituem, quando a vida do cristão chega ao seu termo, ‗os sacramentos que preparam a entrada na Pátria‘ ou os sacramentos com que termina a peregrinação. (catecismo católico)

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107

Eis alguns destaques, a partir de nossa fonte, da permanência dessa

mentalidade no arraial do Bonfim já na segunda metade do século XIX, ainda que se

percebam, posteriormente, sinais de mudança.

Fig.33. Foto: Livro de assentos de óbitos da Paróquia do Senhor do Bonfim. Século XIX Fonte:Livro de assentos de óbitos da Paróquia do Senhor do Bonfim. Século XIX ―Aos dezessete dias do mez de janeiro de mil oitocentos e cecenta e hum, neste Arraial do senhor do Bonfim, falleceo da vida prezente, unidade de quarenta e nove anos de malina, munida com sacramentos da pinitencia e Extrema unção Emiliana perpetua de Lima, parda cazada com José de Oliveira Carvalho.foi amortalhada em habito preto, metida em hum caixão forrado da mesma cor, sepultada nesta Matriz e por mim encomendada.de que para constar mandei fazer este apsento que apsignei‖(grifo meu)

Vigário José Maria Virciani(Versiani)

Fig.34. Foto: Livro de assentos de óbitos da Paróquia do Senhor do Bonfim. Século XIX ―Aos vinte e hum dias do mez de janeiro de mil oitocentos e cecenta e hum, no lugar denominado Riacho do barro d‘esta Freguesia do Senhor do Bonfim falleceo da vida prezente, unidade de vinte quatro anos repentinamente, sem sacramentos pela cauza indicada, Manoel Gonsalves d‘Aquino, pardo cazado com Marianna Pereira Machado. foi amortalhado em habito preto, metido em hum caixão forrado da mesma cor. Encomendado e acompanhado por mim, sepultado n‘esta matriz: de que para constar mandei fazer este apsento que apsignei‖(grifo meu)

Vigário José Maria Virciani(Versiani)

Page 110: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

108

Fig.35. Foto: Livro de assentos de óbitos da Paróquia do Senhor do Bonfim. Século XIX ―Aos seis dias do mez de fevereiro de mil oitocentos e cecenta e hum, na fazenda de Santo Eloy, Território desta Freguesia do senhor do Bonfim, falleceo da vida prezente, unidade de setenta anos de

irisipella, munida com sacramento da Extrema unção, Miguel de Nação, Escravo do Reverendo

vigário Geral e Parocho desta freguesia José Maria Virciani :foi amortalhado em habito branco,

sepultado no Adro desta matriz e por mim encomendado: de que para constar mandei fazer este apsento

que apsignei‖(grifos meus)

Vigário José Maria Virciani(Versiani)

Fig.36. Foto: Livro de assentos de óbitos da Paróquia do Senhor do Bonfim. Século XIX ―Aos vinte sete dias do mez de fevereiro de mil oitocentos e cecenta e hum, no lugar denominado (?)

desta freguesia do senhor do Bonfim, falleceo da vida prezente ,unidade de cincoenta anos ,de febre ,sem

sacramentos por não procurarem Eugenia Rodrigues de Valença, crioulla cazada com Guilherme

Carlos Fontes: foi amortalhada em habito branco, sepultada n‘esta matriz e por mim encomendada: de

que para constar mandei fazer este apsento que apsignei‖(grifo meu)

Page 111: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

109

Vigário José Maria Virciani(Versiani) Fig.37. Foto: Livro de assentos de óbitos da Paróquia do Senhor do Bonfim. Século XIX ―Ao primeiro dia do mez de Março de mil oitocentos e cecenta e hum, no lugar denominado Pidrigulho desta freguesia do Senhor do Bonfim, falleceo da vida prezente, logo que veio ao mundo Manoel recem- nascido, filho ligitimo de Antonio Caetano de Araujo e dona Candida Caldeira Lima, brancos, sendo baptizado por Manoel Caldeira de Lima: foi amortalhado em habito de seda côr vermelha e metido em hum caixãozinho forrado de seda azul clara, ornado com palma e capella, sepultado n‘esta matriz, encomendado e acompanhado por mim de que para constar mandei fazer este apsento que

apsignei‖55

(grifo meu)

Vigário José Maria Virciani(Versiani) 55

De acordo com Castro (2009,s/p.) ―a palma, símbolo fartamente encontrado nos cemitérios possui um

significado geralmente associado à vitória, estando geralmente relacionado à passagem bíblica da entrada de Jesus em Jerusalém. A palma também pode representar o renascimento e a alegria dentro da concepção cristã‖. A morte nos detalhes: religiosidade e elementos da estética funerária dos cemitérios de imigrantes alemães na Grande Florianópolis. No caso em questão, fica como indagação se a palma estaria como pintura ou outra forma artística, ornando o caixão, ou como flores naturais ou mesmo artificiais a envolver o corpo do falecido. Quanto à capella não é possível dizer se uma alusão a algum tipo de ornamento ou se ao costume de missas encomendadas por alma do falecido. De acordo com o Glossário de Termos Sobre Religiosidades uma capela equivalia a 50 missas. No caso não fica claro ser esta a referência uma vez que se trata de enterro de ―anjinho‖, e, em tese, segundo as concepções da época,não necessitariam deste recurso como condição de salvação da alma. No entanto, como argumenta Luiz Lima Vailati em sua pesquisa sobre a ―morte menina‖ nos oitocentos, as práticas e rituais em torno da morte de crianças tinham, no Brasil, suas especificidades, o que chocou em alguns momentos viajantes estrangeiros que por aqui estavam à época e que, apesar da ―interpretação negativa‖ que deram a esses eventos, não deixam de ser importantes relatos e assim documentos que informam sobre tais costumes. Quanto a isso cf VAILAT, Luiz Lima. Representações da morte infantil durante o século XIX no Rio de Janeiro e na Inglaterra: um esboço comparativo preliminar. Revista de História, São Paulo, Nº 167, p. 261-294, Julho/dezembro 2012. Registra-se que no documento utilizado nessa dissertação somam apenas 12 assentos com tal descrição, sendo que deste total 09(nove) dizem respeito a enterros de crianças.

Page 112: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

110 Fig.38. Foto: Livro de assentos de óbitos da Paróquia do Senhor do Bonfim. Século XIX ―Aos treze dias do mez de Março de mil oitocentos e cecenta e hum, na Fazendado Pidrigulho d‘esta Freguesia do Senhor do Bonfim, falleceo da vida prezente, unidade de trinta anos, munida com o sacramento da pinitencia Henriqueta Caldeira de Lima, filha ligitima do fiando Innocencio Caldeira Brant e dona Joanna Jacinta de Lima, brancos: foi amortalhada em habito preto metida em hum caixão forrado da mesma cor, ornada com palmas e capella, sepultada n‘esta matriz de grades asima, encomendada e acompanhada por mim: de que para constar mandei fazer este apsento que apsignei‖ (grifo meu)

Vigário José Maria Virciani(Versiani)

Aqui cabe a reflexão sobre a importância do lugar de sepultamento no

imaginário oitocentista no Brasil. Conforme Silveira (2010,s/p)

Os templos estão mais perto de Deus, mais afastados das iniquidades terrenas e assim propiciando uma maior proximidade entre os fiéis e o céu. O recinto sagrado estabelece uma comunicação segura e constante com o plano extraterreno, guiando homem pela porta de entrada, passando pela nave até a capela-mor e altar. Assim concluímos que, receber sepultura sagrada significa para os católicos uma via para diminuir as penas que deverão cumprir; uma oportunidade de obter a salvação ou de garanti-la. Receber enterramento nas igrejas torna-se o caminho para a eternidade no paraíso celeste. (SILVEIRA, s/p. 2010).

Como já mencionamos, pelo menos até a primeira metade do ano de 1871,

os registros de óbitos do arraial do Bonfim, deixa ver uma maior incidência de

enterramentos na Matriz (dentro desta), permitindo que se estabeleça ao fato uma

relação intrínseca com a afirmação do autor acima referido.

Também o documento que destacamos reforça essa concepção quando se lê

o lugar de enterramento ―grades asima‖. Acreditamos se tratar de um lugar privilegiado,

no altar-mor ou bem próximo deste. Não encontramos verbete para essa referência

específica, mas postulamos a hipótese de se tratar do que se denominou ―grade de coro‖

que, conforme o Glossário ―Termos sobre a Religiosidade‖, editado pelo tribunal de Justiça do Estado de Sergipe, diz respeito a grade que separa a nave (corpo da capela,

Page 113: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

111

reservada ao público) da capela-mor. Também nesta obra se encontra a definição de

arco do cruzeiro como sendo ―parte transversal da igreja entre a capela-mor e a nave

central ―.

Fig. 39 e 40. Fotos: Livro de assentos de óbitos da Paróquia do Senhor do Bonfim. Século XIX ―Aos vinte dias do mez de janeiro de mil oitocentos e cecenta e quatro, neste Arraial do senhor do Bonfim, falleceo da vida prezente, unidade de vinte e quatro anos, de parto, repentinamente, sem sacramentos pela cauza indicada, Dona Carlota Vellozina Pereira de araujo, cazada com Luiz de Araujo Abreu: foi amortalhada em habito preto metida em hum caixão forrado da mesma cor .encomendada e acompanhada pelo reverendo Simão Alves (?)e por mim ,com duas estações na rua: de que para constar mandei fazer este apsento que apsignei, digo, sepultada n‘esta matriz do Arco do cruzeiro para

sima‖56

(grifos nossos)

Vigário José Maria Virciani(Versiani)

56

A referência ―estações na rua‖ sugere relação ao que se denomina via sacra ou via crucis que, segundo

o Glossário de Termos Sobre a Religiosidade, trata-se de ― série de quadros que ilustram paixão e morte de Jesus Cristo. Trata-se de um exercício piedoso que consiste em meditar o caminho da cruz por meio de leituras bíblicas e orações. Essa meditação é dividida em 14 ou 15 momentos ou estações‖. No documento por nós examinado há indicação do número de estações, geralmente duas (2) estações.

Page 114: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

112 Figura 41. Foto: Livro de assentos de óbitos da Paróquia do Senhor do Bonfim. Século XIX ―Aos vinte treis dias do mez de novembro de mil oitocentos e cecenta e cinco, neste Arraial do senhor do Bonfim, falleceo da vida prezente, unidade de hum anno Regina, filha ligitima de Pedro de Araujo Abreu e sua mulher dona Josephina (?) Caldeira, brancos: foi envolta em habito de seda gramizim, metida em hum caixãozinho forrado da mesma cor, ornada om palma e capella.sepultada n‘esta Matriz de grades asima, encomendada e acompanhada pelo Reverendo Simão Alves(?)de que para constar mandei fazer este apsento que apsignei,( grifos meus)

Vigário José Maria Virciani(Versiani)

Além destas informações, é possível saber onde vivia o falecido (se na ―sede‖ do Arraial ou em alguma fazenda ou adjacências), a idade, o ―estado civil‖ e/ou

a filiação (inclusive se legítimo ou natural), se branco, pardo, crioullo, a condição social

(escravo, forro, livre), como e onde foi sepultado. Nesse sentido, os documentos

destacados chamam a atenção ainda em outros aspectos, como o lugar do enterramento

como descrito nas figuras 34, 38,39/40,44 que informa também o acompanhamento pelo

padre, a 38 que indica local específico dentro da Matriz, bem como descreve uso de

ornamentos (palma e capella), a 39/40 que soma a informação de acompanhamento por

dois padres e o local de enterramento como o Arco do Cruzeiro. A 41 que indica ainda o

acompanhamento do cortejo e sepultamento de uma criança pelo reverendo. Nesse

ponto, levantamos uma questão: seria esse aparato necessário para a salvação da alma

da criança de apenas 1(um ) ano de vida? Teria ela já a marca do ―pecado original‖ e

assim, como pecadora, seria necessitada de uma redenção que só era possível com a

manutenção de certas práticas e rituais? E como se explica a concepção, comum à época, de que até os sete anos a criança morta era considerada um ―anjinho‖ e sem estar

na ―idade da razão‖, não poderia ser ―culpada‖ pelos seus pecados, ou mesmo nem os

teria?

Page 115: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

113

Para as questões que aqui levantamos, talvez não haja respostas, ou uma

resposta. Nossas indagações apenas permitem pensar que tal ―costume‖, oneroso, uma

vez que se pagava pelo ―serviço‖, não se vincula essencialmente a aspectos religiosos e

crenças de que tal ação poderia abrir caminhos para o ―reino dos céus‖ e da salvação,

mas a nosso ver, funciona como uma forma de ostentação, de demonstração de uma

origem e condição social privilegiada.

Essa abordagem pode se apreender dos estudos de Luiz Lima Vailati (2006)

sobre as representações da morte infantil no Brasil do século XIX, referência que se

encontra ao final desta dissertação. Ao destacarmos esses aspectos, queremos reafirmar

nossa tese de que o Arraial do Bonfim vivenciou, no século XIX, as concepções de

mundo, da vida e da morte que caracterizaram a cultura ocidental cristã-católica e que,

aqui, as transformações que se operavam na Europa e nos grandes centros brasileiros,

tardaram um pouco mais a promover mudanças nas atitudes e práticas em torno da

morte e dos locais de enterramento. Por fim, salientamos a figura 35 que destaca o

sepultamento de um escravo do pároco, que recebeu a extrema unção, no entanto, foi

sepultado no adro. Seria este sacramento uma necessidade do falecido ou imposição do

pároco e senhor?

Pudemos observar, como mencionamos, ao considerarmos os registros, uma

mudança sutil, mas, crescente, na forma como se dava os rituais em torno da morte e do

sepultamento no Bonfim. Vê-se, a partir dos assentos de 1867 que diminuem os

registros e /ou a ocorrência de sacramentos, bem como parece diminuir a preocupação

(ou a possibilidade?) de se ser enterrado dentro da Igreja.

No entanto, o cemitério, nesse período, ainda era preterido (contabilizam-se

apenas nove (9) enterramentos ali, num universo de 1948 assentos) e, funcionando o

adro como lugar mais próximo da Igreja, também seria este, em última análise, garantia

de ―salvação‖? É uma possibilidade, uma vez que não encontramos justificativa para o

fato do cemitério ser tão pouco utilizado num contexto em que já havia leis proibindo o

enterramento na Igreja57

e em várias cidades isso já deixava de ocorrer. De fato, temos

57

Sobre as proibições de enterramentos em igrejas no Brasil, de acordo com Fábio William de Souza ―No Brasil, a primeira tentativa de proibição de enterros nos templos foi através da Carta Régia nº 18, de 14 de janeiro de 1808. (REIS, 2004, p. 274; CYMBALISTA, 2002, p. 43) A ordem era clara, cidades populosas deveriam construir cemitérios extramuros. Esta lei foi esquecida, tornando-se letra morta. Nova tentativa de sua aplicação ocorreu em 1825, quando Dom Pedro I tratou pela decisão número 265, de 17 de novembro de 1825, da transferência do cemitério da matriz de Campos dos Goytacazes, na província do Rio de Janeiro, para fora da cidade conforme recomendava a Carta Régia‖. Esta era uma referência ao Decreto nº 265, de 17 de novembro de 1825 em que consta ―Manda remover o cemiterio da Matriz da villa de Campos dos Goytacazes para logar fora da mesma villa‖.No entanto o autor esclarece que de

Page 116: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

114

estudos que demonstram que, apesar das leis, em alguns lugares do Brasil,

especialmente nos mais recônditos, os sepultamentos nas Igrejas se prolongaram em

função da permanência das concepções e imaginários sobre o passamento e o além-

túmulo de épocas passadas. Estes não se desfizeram sob a imposição de leis. Esse

parece ser também o caso na paróquia do Senhor do Bonfim.

Todavia, vimos também diminuírem o uso de caixões e do investimento em

mortalhas diferenciadas, que era recorrente nos enterros de crianças, em cores diferentes

do branco que, ao que parece, pela incidência, era comum (pelo menos das crianças

filhos de pais de alguma condição financeira), também se rareiam acompanhamento

pelo padre (em alguns registros vê-se até por mais de um padre, como encontramos, o

que definitivamente significava dispor de recursos para custeá-lo).

Vimos também algumas referências a encomendações solenes ou ―sepultado

solennemente‖ o que indica ,segundo o Glossário de Termos sobre Religiosidade, tratar-

se de encomendação do corpo presente com ofício (conjunto das orações e das

cerimônias litúrgicas) e cantos gregorianos. Há ainda, apesar de apenas em (3) três

assentos, registros que denunciam a existência de ―solenne testamento‖ como se

observa no registro abaixo. Infelizmente não encontramos rastros que pudessem nos

levar a estes.

Figura 42. Foto: Livro de assentos de óbitos da Paróquia do Senhor do Bonfim. Século XIX

1828 a 1862 surgem leis que tentaram disciplinar os enterramentos fora das igrejas, ou seja, havia uma predisposição do ―Estado‖ para por fim a essa prática, uma vez que o discurso médico-higienista que já era forte na Europa , começava a se firmar no Brasil e aos poucos ganha espaço na instâncias do ―poder estatal‖, seja através de ações do governo central , seja através das câmaras municipais. Para maiores esclarecimentos.cf. Souza, Fabio William. Fronteiras póstumas: a morte e as distinções sociais no Cemitério Santo Antônio em Campo Grande.

Page 117: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

115

―Ao primeiro dia do mez de Abril de mil oitocentos e cecenta e cinco, neste Arraial do Senhor do

Bonfim, falleceo da vida presente repentinamente, unidade maior de cecenta anos, munida com

Absolvição vigorosa, Dona Jacintha de São José, branca viúva, falleceo com seu solenne testamento: foi

amortalhada em habito preto, metida em hum caixão forrado da mesma cor Encomendada e acompanhada

pelo reverendo Simão Alves (?) e por mim. sepultada n‘esta Matriz de que para constar mandei fazer este

apsento que apsignei (grifo meu)

Vigário Jose Maria Virciani(Versiani)

Portanto, ao finalizarmos este tópico, queremos ratificar duas proposições.

A primeira, diz respeito ao aspecto sincrônico, presente nas concepções e práticas em

torno da morte e dos lugares de enterramento, tanto na Europa, quanto no Brasil e, em

especial, no arraial do Bonfim, por um significativo período de tempo. Nesse sentido,

recuperamos Philippe Ariès (1989) que afirma que o tema ao qual ele denominou ―a

morte domesticada‖ abrangeu ―uma longa série de séculos, da ordem do milênio‖, com

isso queremos dizer que, apesar de nuances e especificidades, algumas concepções

sobre a morte e afins, oriundas do medievo europeu e que se prolongaram com alguma

variação até o século XIX, também se fizeram sentir no arraial do Bonfim.

Esse seria, portanto, o aspecto sincrônico que pretendemos apresentar. E,

por outro lado, vimos, sob o ângulo diacrônico, as alterações que se fizeram sentir a

partir da década de 70 do século XIX, nas práticas em torno das questões fúnebres no

arraial do Bonfim, como deixam ver alguns aspectos abordados.

Para finalizarmos este capítulo, ainda na perspectiva de compreender o

imaginário e representações sociais, em torno das questões fúnebres, apresentamos a

seguir a prática de produzir fotografias mortuárias, costume característico da ―Era

Vitoriana na Inglaterra‖ e que se fez concreta no Brasil e em Bocaiuva/MG.

2.3 Fotografar o morto: a imagem que apaga da memória a lembrança.

Remonta a meados do século XIX, em Paris, o anúncio oficial da invenção

da fotografia58

que vem, desde esse momento, perpassando e revelando os imaginários

58

A data oficial de invenção da fotografia é 19 de agosto de 1839, quando a inovação foi anunciada na Academia de Ciências da França. Contudo, estudos e experiências envolvendo a captura de imagem já

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116

das nossas sociedades, nas mais diversas épocas e nos mais diversos contextos

históricos, econômicos e sociais. Há quase duzentos anos, essa técnica prometeu

reproduzir e perpetuar o mundo de maneira fiel e análoga e se faz presente em

praticamente todos os campos do conhecimento e das relações humanas, das mais

específicas ciências até as situações mais banais da vida cotidiana.

Em seu texto sobre a memória, Jacques Le Goff (2003) registra como

manifestações importantes da memória coletiva, o advento da fotografia que, ao lado

dos monumentos aos mortos, depois da Primeira Guerra Mundial, marcam nossa

contemporaneidade. Para o autor, a fotografia revoluciona a memória, tornando-se uma

possibilidade de multiplicar e democratizar a memória, ao mesmo tempo em que deu

condições para melhor apreender aquilo que o tempo transformou ou suprimiu e a

"evolução cronológica" dessas mudanças. Segundo Luiz Lima Vailati:

É nesse duplo processo – de disseminação de um veículo de memória e do desenvolvimento de uma nova sensibilidade para com a passagem do tempo - que podemos compreender melhor os significados das coleções fotográficas que têm como objeto o universo familiar. [...] A escolha se orienta para os acontecimentos cujos registros melhor se prestam como "monumentos" da identidade familiar, tornando possível, por conseguinte, as visitações periódicas ao "menor denominador comum do passado (VAILATI, 2006,s/p).

Se assim compreendermos o papel da fotografia como suporte mnemônico

de uma identidade familiar, o álbum de família se constitui, segundo Mauro Guilherme Pinheiro Koury, em um ―instrumento privado em que se depositam as lembranças

iconográficas familiares, de amigos próximos e pessoas importantes que, de forma

direta ou indireta, estiveram presentes na vida e na organização familiar‖ (KOURY,

2004,s/p). Assim, estes figuram como a ―galeria dos antepassados" que permite a

visualização e, por conseguinte a permanência da ―linhagem‖. Geralmente organizados

de forma cronológica, esses registros permitem perceber o crescimento e

envelhecimento dos membros da família, atuando como aportes de uma sensibilidade

temporal própria.

Segundo Vailati(2006) ―é nesse sentido que Alain Corbin ressalta o seu

papel como registros visuais da inexorabilidade do tempo e da morte‖. Sendo assim,

vinham se desenvolvendo anos antes. A primeira fotografia reconhecida remonta ao ano de 1826 e é atribuída ao francês Joseph Nicéphor e Niépce. Em 1827, Louis Jacques Daguerre cria uma sociedade com Niépce e, após a morte deste, em 1833, continua seu trabalho. Em 1838, Daguerre declara que conseguiu fixar uma imagem através da técnica que ficou conhecida como daguerreótipo. O governo francês, então, compra a patente e anuncia que colocou a técnica em domínio público. Cf. www.museuimperial.gov.br/exposicoes-virtuais/3023.html.Acesso em 22/03/2013.

Page 119: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

117

também a fotografia assume um assento de memento mori. Vailati, referindo-se à sua

pesquisa em torno da prática de fotografar ―anjinhos‖ 59

no Brasil de fins do século XIX

e início do século XX, argumenta que tal perspectiva não se adéqua à fotografia de

crianças mortas, já que a tenra idade não permitiria associação tempo-morte, uma vez

que a morte não escolhe idade. Contudo, fazendo acepção a Corbin, Vailati afirma:

as fotografias familiares propiciam a representação dos membros do grupo familiar que a morte ou apenas a distância física se encarregariam de relegar à absoluta ignorância. A ‗posse simbólica‘ da fotografia, que faz dela um substituto ao retratado, além de reforçar as relações familiares (ainda que estas mudem de natureza, deixando de ‗ser orgânicas‘ para se tornarem ‗visuais‘), ao modificar ‗as condições psicológicas da ausência‘, revela-se um eficaz lenitivo à sensação de perda causada pela distância e, sobretudo, pela morte (VAILATI, 2006,s/p).

É na perspectiva da imagem e dos imaginários revelados pela fotografia

que, ainda que fruto de uma amostragem reduzida, procuramos analisar o costume de

fotografar o morto, presente também na cidade de Bocaiuva/MG, naquilo que TitusRiedl (2002) chamou de ―memento mori,a imagem da morte na fotografia‖. No

estudo que deu origem à obra – Últimas Lembranças. Retratos da morte, no Cariri,

região do Nordeste Brasileiro, o autor traça, a partir de sua trajetória de pesquisa,

importantes caminhos para um tema ainda pouco desvelado. Abordando não só a

problemática da morte como um assunto, por si só ―enigmático‖, este um adjetivo mais

generalizante pelo qual aqui referenciamos a morte, o autor aponta importantes

discussões e concepções sobre a fotografia e sua conotação enquanto suporte e técnica e

arte na produção/apropriação de imaginários. Nas palavras do autor:

a fotografia somente evoca emoções e sugere interpretações, segundo a predisposição do espectador. Neste sentido, o tema da percepção e da representação da morte parece elucidativo sob o ângulo da sublimação simbólica do luto, tanto coletiva como individual, e indica a criação, transformação e recepção de símbolos, imaginários e ritos em nossa cultura, compreensíveis através da análise das narrativas dos que permanecem e constituem a sociedade dos vivos (REIDL, 2002, p.12).

Nas páginas introdutórias do livro referenciado acima, Reidl apresenta

importantes reflexões e constatações sobre o estudo das fotografias mortuárias que,

59

Os pequenos seres, cuja alma não se apartava do corpo segundo se acreditava, eram glorificados e apelidados de "anjos, ―inocentes, livres da dúvida sobre a descida ao inferno, os pequenos aparecem glorificados, podem portar pedidos, interceder, são assim chamados ―anjos‖. Cf. http://obviousmag.org/archives/2008/01/fotografias_de_1.html#ixzz2ZGvu9HH0

Page 120: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

118

neste trabalho, compartilhamos e sintetizamos por entendê-las como representativas da

realidade de nossa pesquisa, embora seja essa de menor estatura, quais sejam primeiro,

o papel da fotografia como uma das principais fontes para a construção da identidade e

da cidadania, atuando como documentos preciosos que revelam a biografia de pessoas

comuns. De acordo com Reidl

A gaveta e o álbum familiar obtêm a importância de cofres de preciosidades, baús onde está acumulada a materialização da memória privada e que não raramente constituem o principal espólio para que gerações futuras se lembrem dos seus antepassados‖(REIDL,2002, p.15-16).

Uma segunda observação diz respeito a não espontaneidade nas fotografias

mortuárias e de agrupamentos em seu entorno em que, raras vezes se percebe gestos de

desespero, prantos ou exaltação. Há um arranjo que permite dizer de certa ―teatralização

visual‖, ―criando uma imagem favorável ou harmônica de um momento a princípio

dramático e conflituoso‖ (REIDL). Isso se nota especialmente nas fotos mais antigas

coletadas em Bocaiuva/MG, feitas por ―fotógrafos mais experientes‖.

Uma terceira constatação refere-se ao fato de que algumas fotografias

coletadas estão sob a guarda, em sua maioria, de pessoas que não as encomendaram. Ou

seja, algumas das fotos foram ―herdadas‖ como ―parte do espólio da família‖. Disso

decorre que as informações sobre o sentido dessa prática se conjectura a partir do ―olhar‖ de ―terceiros‖, no entanto, o fato de preservá-las pode ser revelador. Muitas

pessoas contatadas revelaram que sabiam da existência deste tipo de fotografias em

álbuns de família, mas que estas foram descartadas pelas gerações mais novas. Tal fato

nos reporta ao relato de Reidl (2002), quanto ao desaparecimento, por ele constatado, de

acervos dos mais antigos estúdios fotográficos e a documentação material do trabalho

de profissionais como os da foto-pintura, especialmente em se tratando de ―fotografias

da morte‖.60

60

As fotos "Post Mortem" aparentemente tiveram origem na Inglaterra, quando a Rainha Victoria pediu

que fotografassem um cadáver de uma pessoa conhecida, ou um parente, para que ela guardasse como recordação. A partir desse momento, o "costume" lentamente se espalhou por diversas partes do mundo, sendo que várias famílias passaram a fazer a mesma coisa, guardando para si uma mórbida recordação do ente querido que havia partido. Até os dias de hoje, por mais estranho que se possa parecer, em alguns lugares ainda se tem esse costume. Durante o século XIX, o ato de fotografar os falecidos era bem mais comum, parecendo nos dias de hoje algo "mórbido" e sem sentido, mas naquele tempo se tornou um costume natural. Criar álbuns com fotos dos familiares e amigos mortos era uma espécie de negação da morte, ao mesmo tempo em que as fotografias tornavam-se recordações guardadas pela família para se lembrar daqueles que se foram. Além disso, observa-se que "fotografias" naquela época era um grande luxo, devido ao elevado preço para produzi-las e também devido à pouca quantidade de câmeras fotográficas e profissionais disponíveis. A fotografia "Post Mortem" em si era algo bem caro, e funcionava como última homenagem aos falecidos. No ato de fotografar a pessoa que morreu à pouco tempo, estando o corpo em estado "fresco", eram criados verdadeiros cenários elaborados com

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119

Numa temática que causa a muitos um estranhamento, ao exemplo das

dificuldades de pesquisa relatadas por Reidl (2002) no que diz respeito à metodologia

de história oral, necessária tanto para a apreensão da narrativa dos ―guardadores‖ das

fotos em questão como para a construção da narrativa da pesquisa, soma-se a recusa de

muitos em permitir a publicação de suas fotos mortuárias.

Em nossa experiência, relatos de pessoas que afirmaram que, após

revisitarem seus ―baús‖ e coletarem as fotografias a fim de apresentar-lhes a nós, estas ―desapareceram misteriosamente‖, o que fez uma senhora de mais de oitenta anos

justificar com a seguinte expressão ―deixemos os mortos em paz‖. Outro argumento

para justificar a negativa foi a de que se tratava de ―fotos de família‖. Nesse caso,

destaca-se uma família que, em abril do ano de 2013, não só fotografou o corpo morto

do patriarca da família, como filmou o velório e o cortejo fúnebre, bem como o

sepultamento.

Interessante registrar que a amigos e visitantes da família convidam a

assistir e visualizar o referido material, mas não o permitem inscrever num registro

público. Talvez essa recusa se explique diante das observações e ―julgamentos‖ a que

foi submetida à atitude de registrar em fotografia e filmagem a presença derradeira do

ente querido da família. Quando questionamos se a prática de fotografia mortuária era

comum à família, as nossas interlocutoras, que durante as conversas se ―atropelavam‖

na ânsia em descrever minuciosamente todo o processo da doença e morte do pai,

salientando todos os cuidados e os registros fotográficos e documentais desse processo,

elas não deixaram entrever em seus discursos a recorrência dessa prática em família,

pelo menos na atualidade.

Ao contrário, revelaram certo ―culto‖ em torno da figura do pai, sendo

palavras de uma delas ―Tudo na história da doença e morte de nosso pai virou

pesquisa‖. E prossegue ―a doença dele não foi plenamente detectada pelos médicos, era

um câncer raro‖. A outra irmã arremata ―doamos todos os exames, relatórios médicos e

fotografias que ele tirava antes e depois de alguns procedimentos do tratamento (ele

fazia questão de posar para o registro fotográfico, segundo relatou) para que médicos de

diversas partes do país pudessem fazer seus estudos‖. E relembra ―ele gostava de

fotografar, fazia pose. Quando ia a um velório observava tudo e dizia o que queria e o

que não queria em seu próprio velório‖.

composições muitas vezes complexas de estúdio para fazer os álbuns dos mortos, e assim tornar a morte menos dolorosa.Cf.www.alemdaimaginacao.com/.../fotos_post_mortem.html.Acesso em 24/02/2013.

Page 122: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

120

Quando questionamos se ele pedira para ser fotografado como morto,

garante uma das filhas ―Não, mas poucos minutos depois que ele morreu, nesta casa e

nesta cama que se vê aqui (e mostra-me o quarto), o meu primeiro impulso foi

fotografá-lo. Fiz foto dele morto ainda na cama. Depois pedi a [...] que filmasse o

velório e enterro‖. A outra filha destacou ―nós cuidamos de todos os preparativos, até o

último banho foi dado por nós. Quando[. ..] da funerária chegou nos disse – vocês já

fizeram todo o meu trabalho‖.

Fazendo questão de destacar as especificidades das circunstâncias da morte

em casa, mesmo para um moribundo que esteve internado por muitas vezes em

hospitais, em função do tratamento contra um câncer raro, frisou a preservação de

muitos ritos fúnebres tradicionais do Catolicismo. Também relataram como ―na tradição

da morte de um militar à família coube cuidar do corpo e velório de nosso pai. Ao sair o

corpo de nossa casa, este foi confiado aos militares para a realização do cortejo. Neste

momento o corpo de um militar não mais pertence à família. O cortejo seguiu a tradição

militar. No cemitério a família recebeu de volta a responsabilidade pelo corpo‖.

Numa pretensão de revelar a manutenção em Bocaiuva/MG da prática de

fotografar o corpo morto, iniciamos por apresentar esse caso recente, abril de 2013,

sem, no entanto apresentar a materialidade da fotografia. Tal fato poderia, em princípio,

comprometer a análise, uma vez que a imagem não poderá ser vista, percebida e

apropriada enquanto suporte de análise das nuances que pudessem revelar um algo mais

sobre o imaginário em torno da morte e dos significados da fotografia mortuária como

materialidade desse imaginário.

No entanto, acreditamos que o discurso revela o imaginário, é uma forma de

materialidade do imaginário. Por fim, neste pequeno estudo de caso – se assim podemos

nomear – por meio dos discursos, pudemos captar elementos que revelam a atitude

dessa família em torno da morte do pai e da ação de registrar, em fotografia, mesmo

momentos ―sombrios‖ – a doença e a morte. Para elas, para além do dever cumprido,

em relação aos cuidados e carinho para com o pai, a perenização, através da imagem

fotográfica, de um ―guerreiro‖ que lutou com bravura contra a doença e encarou com

serenidade a morte, senão conscientemente, contudo sem ter vivenciado ou deixado

transparecer revolta contra sua condição de moribundo.

Para corroborar nossa argumentação, recorremos a Reidl que lembra o

sociólogo Pierre Bourdieu e sua ironia quanto à mania da invenção – fotografia – entre

os cidadãos modernos. Explicita Reidl

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121

Num comentário sarcástico, ele [Bourdieu] relembrou que o valor atribuído à fotografia se assemelha às vezes a uma ‗procura autista‘ dos cidadãos através de sentidos e ainda evoca a imagem mórbida do álbum de família, visto como monumento ou memorial funerário (REIDL, 2002, p. 27)(grifo nosso).

Isso posto, a partir daqui, apresentaremos alguns exemplares de fotografias

mortuárias, coletadas em Bocaiuva/MG, frisando que todas foram feitas no município.

Para melhor indicar o aspecto diacrônico dessa prática, apontaremos, numa sequência ―cronológica‖ os exemplares coletados, bem como informações sobre cada um, a partir

de entrevistas com os ―guardadores‖ dessas fotografias61

.

A primeira fotografia apresentada data de 1923, retrata a avó de uma

senhora de 87 anos que, apesar de não tê-la conhecido, guarda com zelo a fotografia.Em

seu discurso, percebe-se ter uma visão um tanto ―pejorativa‖ da morte e dos mortos

quando diz ter medo de defuntos, da possibilidade de visão de mortos, a ponto de nos

confidenciar não ter coragem de dormir sozinha. No entanto , quando perguntada sobre

o porquê de guardar a foto que ―herdou‖ da mãe (relatou-nos anteriormente que a foto

estava com a mãe-nora da morta fotografada),ela diz ―É uma lembrança da minha vó

que nem conheci. Era a mãe de meu pai, mas a foto estava com minha mãe e eu, depois

da morte de minha mãe, fiquei com essa foto‖.

Fig.43. Foto: Registro mortuário datado de 1923. Do arquivo pessoal de Maria da Glória Santos. 61

As entrevistas que se seguem neste trabalho foram registradas em gravações em áudio e ou áudio e vídeo.

Page 124: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

122

Fig.44.Foto: Verso da fotografia datada de 1923. Na inscrição se lê: Pertence esta a José Candido de Oliveira. Bocaiuva, 1º de outubro de 1923. Na parte posterior está escrito: ―sepultado a 1º de outubro do mesmo ano‖. Do arquivo pessoal de Maria da Glória Santos.

Também a entrevistada revelou ter sido feita a fotografia de um neto seu que

morrera na adolescência, nos idos dos anos 90 (não precisou a data) e que ela tinha essa

fotografia. Todavia afirmou não tê-la encontrado. Neste sentido uma questão se

vislumbra – que motivações explicam o zelo e a preservação de uma foto mais antiga (a

foto foi tirada há 89 anos), de um familiar que nem conheceu, enquanto uma foto mais

recente não fora encontrada?

Poderíamos aventar duas hipóteses que se complementam. A primeira é de

que guardar a fotografia da avó, que nem conhecera, num caixão, e que talvez não tenha

sido fotografada em outras circunstâncias, já que a entrevistada não possui outra foto da

avó, poderia ser explicada como uma homenagem à mãe que, enquanto viveu, guardou

a foto da sogra. A segunda hipótese é de que a foto do neto morto, se apresentada a nós,

poderia fazer reviver a dor da perda e, por isso, seria melhor ―esquecê-la‖ numa gaveta

ou no fundo de um baú que se evita visitar.

Como aponta Reidl(2002) em sua pesquisa, pude verificar que, entre

algumas famílias, as fotografias mortuárias não figuram nos álbuns de família ou porta-

retratos expostos ao alcance dos olhos. Para estas famílias, estas fotografias dizem

respeito a um momento íntimo e ―preferem-se outros lugares mais reclusos como

gavetas, caixas de sapatos, envelopes, etc., que não são tão facilmente mostradas para os

visitantes‖ (REIDL, 2002, p.17).

Quanto à fotografia, a mais antiga coletada por nós, revela, em sua

materialidade, alguns aspectos que se assemelham a relatos, em outros trabalhos nesta

perspectiva, no que tange à ideia da intencionalidade de registro da memória individual

e familiar. Consta, no verso da estrutura que dá suporte à fotografia, a inscrição feita à

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123

tinta da data de morte e sepultamento e ainda a quem pertencera a foto, no caso o filho

da morta fotografada, pai da senhora que guarda a referida fotografia.

Obviamente, essa senhora que ainda nem havia nascido à época da

fotografia que preserva não poderia nos informar sobre quem encomendara ou qual o

fotógrafo realizou o registro. Numa cidade interiorana como Bocaiuva/MG, não foram

tantos os fotógrafos que por aqui atuaram. Em princípio, isso facilitaria a identificação

de quem a fizera, bem como de outras que apresentaremos adiante.

No entanto, não nos foi possível identificá-lo(s) uma vez que alguns já

faleceram e seus familiares não puderam atestar a autoria da fotografia, e outros, apesar

de identificados por alguns interlocutores como tendo atuado nesse tipo de fotografia,

não confirmaram tal afirmação. Talvez por falha na memória já que estão em idade

avançada ou mais significativamente ainda, por não se dispor a rememorar algo que

possa soar, nos dias de hoje, como mórbido. Um destes fotógrafos, que já colaborara

conosco em outra pesquisa, e por alguns apontados como tendo feito algumas das fotos

mais antigas, afirmara que no passado fotografou mortos em acidentes ou outras

situações em função de investigações policiais e que não gostava desse tipo de

fotografia, não admitindo ter sido contratado para fazer fotografias desse tipo, sob

encomendas de familiares.

A segunda fotografia mais antiga aqui apresentada está sob os cuidados de

uma senhora de 80 anos. Trata-se da fotografia de sua sogra em um caixão, este ladeado

por dois filhos, sobrinhos e filhos de sobrinhos. Um dos senhores presentes na

fotografia era filho da morta fotografada e era o marido de dona Maria, este também já

falecido que, segundo ela nos informa, foi o responsável pela encomenda da fotografia.

Ela nos relata que a foto foi tirada para que uma cunhada que morava em

Ourinhos, São Paulo, e não pode vir ao velório e enterro pudesse ver a última imagem

de sua mãe. Questionada sobre a data em que foi tirada a fotografia, ela baseou-se em

outros fatos de sua vida para indicar a datação possível da fotografia. Segundo relata ―ela morreu três anos depois que nós casou. Nós casou quando eu tinha trinta e dois

anos, fiz 80 agora em fevereiro, então essa foto tem mais de trinta anos‖. Sendo esses os

dados corretos, a fotografia em questão tem quarenta e seis anos. E continua seu

depoimento dizendo que havia mais fotos, pequenas, que foram enviadas aos outros

irmãos do marido, e até os nomeia e busca fazê-los conhecidos de nós insistindo em

referências de nomes e parentescos. Conta que o marido mandou ampliar e emoldurar a

fotografia que ficava exposto em sua casa quando moravam na roça. Diz que

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124

presenciou, em alguns momentos, o marido chorar diante da foto ―ele gostava dessa

mãe dele demais!‖ Continua o relato argumentando que, quando se mudaram para Bocaiuva/MG, a estrutura da moldura se desprendeu e o quadro não mais figura na sala

da casa. Encontra-se guardado, mas garante ―eu vou mandar consertar‖.

Perguntada se possuía ou conhecia outras fotografias do gênero, dona Maria

disse que não, que sabia que era ―costume antigamente‖, embora afirme ―mas na minha

família não tinha isso não‖. Questionada se pensou em fazer fotografia do marido

morto, ela exclamou ―ah!‖... e completou: Eu não quis mandar tirar nem do santinho da

missa de sete dias‖. Justificou que muita gente joga fora ‖nem dá valor‖. Por fim,

quando perguntada sobre o futuro dessa fotografia garantiu ―enquanto viva eu tiver eu

seguro.‖ Vale aqui informar que dona Maria, viúva há cerca de dois anos e não tendo

filhos, mora sozinha, embora seja sempre visitada e acompanhada por irmãos e

sobrinhos.

Fig.45. Foto: Registro mortuário datado de 1960. Do arquivo pessoal de Maria Siqueira.

A terceira fotografia de nossa pequena amostra, embora feita em

Bocaiuva/MG e, tratando-se de imagem de bocaiuvenses, chegou até nós por meio da

rede social denominada facebook. Faz parte da coletânea e arquivo pessoal de uma

bocaiuvense que vive, há alguns anos, em Belo Horizonte e que, tendo recebido a

fotografia das mãos uma senhora que vive hoje em Goiânia e que à época era uma das

crianças que aparecem ao lado do caixão da criança morta, da mesma forma virtual, nos

repassou a referida fotografia.62

62

Como conhecemos familiares da senhora que possui a fotografia original, contatamo-la e esta autorizou a exibição, bem como enviou por meio eletrônico nova cópia, inclusive do verso da fotografia onde está

Page 127: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

125

No entanto, essa pessoa não respondeu aos nossos contatos para

pormenorizar informações sobre a foto. Por tal razão, em princípio, pretendíamos deixá-

la de fora dessa pequena série, contudo a ―estética‖ da fotografia, quase que como único

exemplar do gênero encontrado por nós, mais aproximado a um trabalho cuidadoso no

arranjo, não só técnico/artístico da fotografia, mas também da ―montagem do cenário‖

nos impeliu a continuar buscando informações de pessoas que pudessem descortinar

detalhes dessa emblemática fotografia.

No decorrer da pesquisa, conseguimos identificar parentes (tias) da menina

fotografada no caixão, que nos informaram que a mãe desta ainda se encontrava viva e

morando em Bocaiuva/MG, mas em viagem para São Paulo. Tivemos que esperar por

cerca de três meses pelo seu regresso e, finalmente, tivemos acesso à história dessa

fotografia, bem como a autorização para inscrevê-la neste trabalho.

Fig.46. Foto: Registro mortuário datado de1951. Fotografia originalmente cedida através de rede social por Maria Geralda Maia. Pertence à mesma que se encontra presente na fotografia quando criança em Bocaiuva. Posteriormente cedida e autorizada para publicação pela mãe da criança falecida.

Observa-se, apesar da aparência de uma residência simples e comum à

época, o que sugere a condição social da família da criança morta, há um zelo como o

aparato característico dos cuidados com os ―anjinhos‖, denominação comum às crianças

escrito o nome da criança morta e uma ―dedicatória‖ aqueles a quem fora endereçada a fotografia, no caso os pais da senhora que guarda a fotografia original.

Page 128: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

126

mortas até os sete anos. E o que se nota na toalha, aparentemente de renda, colocada sob

uma mesa que sustenta o caixão, bem como a presença do caixão e coroa de Flores.

Sobre esses aspectos selecionamos e transcrevemos análise de Vailati:

Num contexto de crescente valorização dos sentimentos familiares, no qual a fotografia é suporte privilegiado dessa manifestação, a explicação mais

imediata para esse estado de coisas está no fato de ser esta a derradeira e única ocasião para deixar registrada a imagem do membro que acabara de morrer [...] a enorme importância dada aos funerais de criança decorriam de uma crença não só na positividade da morte infantil - morrer criança era

garantia de salvação - como também nos poderes de intercessão das crianças mortas junto às autoridades celestes em favor dos seus. [...] A fotografia permitiria, assim, fixar a visão dos seus pequenos defuntos esmeradamente preparados, obrigação a que os pais não deviam furtar-se e cujo bom cumprimento, [...], parecia ser motivo de orgulho. [...] É nesse sentido que as

fotografias de crianças mortas nos permitem entrever a continuidade, sob um novo suporte, de uma outra característica importante dos rituais fúnebres infantis: a superexposição do morto (VAILATI,2006,s/p).

E prossegue o estudioso desse tema, a partir de uma análise detalhada de

fotografias de crianças mortas, datadas do século XIX, fotografias estas que se

encontram no acervo do Museu Paulista da USP, valendo-se também dos registros dos

viajantes estrangeiros que aqui estiveram e registraram suas impressões, informando-

nos da mentalidade característica da época quanto às práticas fúnebres em torno da

morte, especialmente infantil:

A primeira coisa que em nossas imagens nos chama a atenção é o cuidado com que as crianças estão preparadas.[...] esses primeiros cuidados diziam

respeito à preparação do corpo para que ele fosse velado, exposto e enterrado;

e esses cuidados não eram menos importantes que os outros que lhe seguiam no rol do gestual fúnebre.(...)no que diz respeito aos significados mais amplos

e mais resistentes que essa liturgia tradicionalmente atribuía ao branco, os compêndios de semiologia cristã nos informam ser este o símbolo da alegria

e, antes de tudo, da inocência e da pureza virginal.[...] Como a cor da alegria,

o branco do hábito mortuário infantil se opõe à mortalha do adulto, muitas vezes de cor preta ou roxa, as cores da penitência.[...] Além das mortalhas, é

notável, nas fotografias, a existência de outros elementos tradicionais que

compunham o aparato material da criança morta, como a presença de flores, em especial aquelas arranjadas em forma de coroa ou do ramalhete de

flores.[...] Quanto à coroa de flores, esta possui, nos escritos judaicos-cristãos, segundo Chevalier e Gheerbrant, mais de um significado possível,

alguns bastante sugestivos para o assunto estudado aqui. Num deles, a coroa

representa a salvação eterna que vem como recompensa a uma vida regida pela fidelidade à causa da fé. Com efeito, a ideia do ingresso na Corte Celeste

está bastante de acordo com uma conduta ritualística que associa a morte

infantil à "boa morte" (VAILATI, 2006,s/p).

Um aspecto que, em nossa amostra, chama a atenção, e que não consta das

amostras analisadas e apresentadas por Vailati, é a presença de outras crianças próximas

ao caixão. A impressão que temos é de que foram especialmente organizadas e

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127

instruídas a posar diante das lentes da câmara. Tal característica, presente em outras

amostras por nós coletadas, nos leva a conjecturar algumas hipóteses. Primeiro a de que,

como à época da fotografia era rara a possibilidade de se fotografar dado aos custos, daí

ser esta uma oportunidade de registro da imagem também de crianças vivas. A segunda

hipótese remete à ideia já exposta acima nas considerações de Vailati de que a morte de

um ―anjinho‖ era entendida de modo ―positivo‖ no sentido de ser este um ―ser sem

pecado‖. Participar do registro desse momento último e fúnebre poderia ser visto numa

perspectiva religiosa, como um ato do ―bom cristão‖.

Essas foram as impressões e argumentações que arrolamos, antes de

contatar a mãe da criança morta. Veremos que tais impressões não se desprezam e a

análises preliminares procedem de toda forma após identificá-la, mas o relato da mãe

acrescenta sentimentos e valores, lembranças e expressões que impregnam o artefato

(fotografia) de marcas, de histórias do vivido. Inclusive nos informou que teve duas

filhas mortas quando bebês e tem as fotografias das duas. Ei-lo em seus aspectos mais

significativos para o nosso propósito:

eu casei muito nova, não tinha ideia de nada... tive minha filha com dezesseis anos e uma vizinha minha me disse, quando eu amamentava minha filha e ela estava obrando verde[...] Ela perguntou sobre minhas regras e disse que eu tava grávida... eu desmamei minha filha e soquei mamadeira nela[...]mamadeira[...] coisa que eu sentia que tava gostoso pra mim[...] se tivesse gostoso pra mim eu dava pra ela ,aí ela começou a ter diarreia e vômito e morreu[ ...]isso foi em 1951[...]ela tinha uns nove meses...

Salientamos esse relato inicial por revelar o que é significativo ou o que a

memória dessa mãe resguardou ou exteriorizou. Pudemos perceber certo sentimento de

culpa dada a insistência em reafirmar a pouca idade, a falta de experiência ou

conhecimento nos cuidados com a criança, sua primeira filha. Segundo a psicologia,

esse é um sentimento um tanto comum às mães que sobrevivem aos filhos, pelo menos

na contemporaneidade, e que aqui registramos por ser aspecto do imaginário ou dos

valores que permeiam a cultura ocidental.

Pode parecer deslocada essa inferência, mas ela se faz em função de que se

vislumbra aqui uma razão, ou melhor mais uma razão, para que a mãe resguarde a

fotografia. Esta funciona, como afirma Mircea Eliade e a sua tese de cosmologia e

eterno retorno, como uma ―atualização de uma vida , de algo sagrado para uma família‖.

E a mãe continua seu relato, informando que foi preciso fazer um batizado às pressas,

que o pai e a madrasta que batizaram e que ela nunca deixava ―os filhos ficar velho sem

batizar‖. Perguntada sobre quem teve a ideia de fazer a fotografia, ela afirma

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128

Foi o pai dela! Ele era muito inteligente, ele era muito inteligente, foi ele que fez e deu para os parentes, tinha muitas, deu para os parentes, sabe... os parentes não sei se tem mais...e essas fotos carreguei elas pra muito lugar, carreguei pros lados de Mato verde, na fazenda de doutor Gil ,ne São Paulo[...] e nunca perdi minha foto, aonde eu tô ela ta comigo...‖

Perguntada se costuma olhar as fotos ela disse ―eu olho, eu olho... olho e

tem hora que eu choro... e choro mais ainda sabe por quem? pelo meu filho mais velho

que morreu, porque as outras morreu miudinho, a gente chora mais o que? né!? Se eu

tenho essa casa aqui foi meu filho que me deu, entendeu? se ele não tivesse dado essa

casa eu tava ai não sei...no mundo, na rua‖...e sobre o filho que morreu por último , se

tinha fotografia dele, morto ela disse: ―eles não fazem mais, né!‖. Meu marido é que

fazia, ele tinha fotos minhas com meu filho, este que morreu, quando era pequeno... ele

veio aqui e levou essa foto, e eu não sei o que aconteceu com a foto.

Relatando que o marido fez fotografia de outra filha que morreu de ―mal de

sete dias‖, que era caprichoso e se tivesse vivo teria feito a foto do filho morto já adulto,

tece muitos elogios ao marido falecido e atribui a ele zelo para com os filhos, inclusive ao

fazer a fotografia mortuária. Reafirma isso quando diz que nunca tinha visto isso na sua

família ou em outras. Diz que o marido chamava (o fotógrafo) pra fazer as fotos, não só dos

filhos mortos, mas de situações diversas, dela novinha, de um filho doente que ele levou na

Lapa e que ele costumava olhar as fotos de suas filhas no caixão. Segue relatando como se

deu a morte da filha que morreu de 7 dias ,que moravam na roça, ―fazenda de doutor Gil e ele olhou ,mas disse não tem jeito‖. Relata que a menina

chorou até parar de respirar e que disseram que era o ―mal de sete dias‖.

Fig.47. Foto: Registro mortuário datado de 1956. Do arquivo pessoal de dona Maria Olinda de Macedo Catone.

Page 131: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

129

Depois descreve a circunstância da morte do marido e que nem se lembrou

de tirar foto dele morto no caixão: ‖nem lembrei né, minha filha! A foto que tenho dele

é a do casamento‖. Prossegue falando sobre o lugar de enterramento das filhas e do

marido que teriam sido enterrados no Cemitério da Saudade e que ela não sabe o que

aconteceu como os restos mortais de seus familiares quando ―derrubaram‖ o cemitério.

Afirma que nem ficou sabendo da derrubada e que não gosta de cemitério ―não gosto

muito de cemitério não [...] depois que o meu filho morreu pior ainda. Sabe por quê?

não gosto nem de ver caixão [...] fazer cinco anos agora, morreu com 56 anos.‖ Voltou a

relatar o caso de sua segunda filha que foi batizada às pressas e cita o nome dos

padrinhos, falando que o padrinho ainda vive a madrinha não. Todo o discurso da nossa

entrevistada é entremeado por lembranças do passado mais distante que se mesclam a

observações e avaliações do presente. Um dos aspectos do qual fez menção foi sobre o

modelo atual do cemitério de Bocaiuva: ‖sabe outra coisa que não gosto: é esse de

enterrar numa laje, de primeiro era debaixo de chão, de terra, porque a terra que tem que

comer a gente, não é deixar a gente dentro de um caixão apodrecendo ali dentro não,

né? eu acho isso muito errado‖.

Questionamos sobre os cuidados dos enterros de suas filhas, e a

interlocutora relata que na época ―o caixão era todo enfeitadinho, a coroazinha na mão,

na cabeça, tudo enfeitadinho, bonitinho‖ e quem cuidou de tudo ―foi os parentes ou o

pai não sei, né‖ e segue descrevendo o momento da morte da filha que ela entregou à

irmã porque não queria vê-la morrer. Chega a rememorar o murmúrio da filha ―Ooo

mamãe, mamãe[...]‖ e sua aflição no momento. Volta a reafirmar que olha as fotos e

ainda chora mesmo passado tanto tempo e segue rememorando as datas de nascimento e

morte dos filhos e observa ―eu vejo e eu fico pensando na hora que eu morrer vai

consumir isso aí tudo, ne? Ninguém vai cuidar‖. Relata que não conheceu a mãe e que

tem sentimento porque a única foto que tinha dela, a cunhada jogou na ―privada‖ e ela

tem sentimento disso ‖ninguém lembra da coitadinha[. ..]é um sentimento, e tem anos

que ela fez isso‖. Conta que ninguém tinha mais foto da mãe e que ela não lembra nem

da feição dela. Em se tratando de relatos que foram provocados, mas não controlados,

ao adotarmos a história oral como metodologia para abordarmos a prática cultural e os

valores que carregam a fotografia mortuária, pudemos compreendê-la numa perspectiva

mais ampla. Pontuaremos ao final deste tópico outras considerações.

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130

A quarta fotografia de nossa série é também o registro de um ―anjinho‖. A

fotografia que data do ano de 1972 está guardada pela mãe da criança morta que

costuma, ainda hoje, visualizar constantemente a fotografia e quando o faz, não

consegue conter as lágrimas. Dada a idade avançada desta senhora e suas condições de

saúde, não pudemos ampliar diálogo com ela e as informações que apontamos nos

foram repassadas pela filha que cuida dessa senhora.

Fig.48. Foto: Registro mortuário datado de 1972. Do arquivo pessoal de Maria Helena Siqueira.

Segundo a relatora, a fotografia da irmã morta em decorrência de

pneumonia foi encomendada pelos pais e padrinhos da menina (estes últimos aparecem

na fotografia). Na fotografia podemos observar a tiara na cabeça da criança

(característico dessa época como se vê também na fotografia de anjinho já apresentada),

bem como a inscrição na coroa que além de citar pais, inclui os padrinhos. A inscrição

reforça a informação de que a decisão (e possivelmente os custos da fotografia) foi

partilhada entre pais e padrinhos, deixando entrever laços afetivos muito significativos

dessa relação de compadrio.

A quinta e sexta fotografias que apresentaremos agora vêm de uma mesma

família. Foram repassadas pela tia da criança retratada e que é também filha da senhora

retratada. Algumas especificidades nos levam a arrolar aqui essas amostras. A primeira

delas é de que os mortos retratados, neta e avó, respectivamente, foram enterradas num

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131

cemitério ―particular‖ na Fazenda Corguinho, município de Bocaiuva/MG, onde se

encontram os restos mortais de outros membros da família.

Segundo relatou nossa interlocutora, esse cemitério foi ―idealizado‖ por sua

mãe, muito religiosa e devota que o ―consagrou a São José‖. Esse cemitério é ladeado

por uma igrejinha onde a mãe enquanto vivia sempre rezava ali ladainhas e realizava

atividades culturais, como o teatro que ela gostava muito. Em seu relato, rico de

lembranças da mãe, ela observa ―minha mãe era muito feliz‖, e prossegue informando

que, quando de suas bodas de prata em 1975, a mãe recebeu a visita de padre Geraldo e

ali ergueram um cruzeiro, depois a Igreja e por fim o cemitério, onde a mãe queria ser

enterrada. Ali está enterrado o pai, que morreu há cerca de vinte anos, dois sobrinhos,

sendo uma a menina da fotografia que apresentamos abaixo, morta em 1992 e por

último a senhora sua mãe, morta em 2012.

Em seu discurso, nossa interlocutora frisa que era costume presente na

família fotografar um parente morto, que sua mãe gostava muito de fotografia e que ela

possui muitas fotografias da mãe. No entanto, afirma que, quando da morte da mãe,

nem havia pensado em fazer uma foto, mas que sua sobrinha estava fotografando e,

assim, ela pediu que tirasse uma fotografia para ela também.

O curioso nesse caso , no entanto, é que a nossa entrevistada ainda não

havia buscado a fotografia que estava com a sobrinha até o nosso contato (fomos

informada por um proprietário de funerária dessa fotografia recente e ao contatar a

família vimos tratar-se de pessoas conhecidas) e mais interessante ainda é que a

sobrinha não queria que a fotografia fosse inscrita nessa pesquisa, porém a nossa

entrevistada, filha da fotografada, de posse dela, não fez objeção, ao contrário, além da

boa vontade em participar desse trabalho, ofereceu a fotografia de uma sobrinha morta e

demonstrou em seu discurso uma ―leveza‖ e gosto ao falar da mãe, sugerindo sua

disposição para com nossa pesquisa como sendo uma forma de registro de memória da

mãe. Afirmando ‖minha mãe ficou bonita na fotografia‖, acrescenta ―nós vamos

registrar e conservar esse cemitério‖.

Page 134: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

132

Fig.49. Foto: Verso da fotografia datada de 1992. Lê-se: ‖Maria Juliana Santos Barroso, nasceu dia 26/11/1992 e faleceu no dia 30/11/1992. Foi sepultada no semitério(sic) São José na Fazenda do Corguinho. Do arquivo pessoal de Cleusa Leite. Fig.50. Foto:Registro mortuário datado de 1992. Do arquivo pessoal de Cleusa Leite.

Fig.51. Foto: Verso da fotografia datada de 2012. Lê-se: ‖Júlia Leite Barroso, nasceu em 10/01/1931 e faleceu no dia 6/03/2012. Foi sepultada no semitério(sic) São José na Fazenda do Corguinho as 13:40 mim(sic) do dia 7/03/2012. Do arquivo pessoal de Cleusa Leite

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133

Fig.52. Foto: Registro datado de 2012. Do arquivo pessoal de Cleusa Leite.

Quanto às fotografias em questão, em seus aspectos materiais e simbólicos,

podemos apontar permanências e mudanças, quais sejam, enquanto permanências, a

prática pela família da fotografia mortuária, nota-se que são fotografias recentes de

1992 e 2012, bem como, no caso da fotografia da criança o uso do branco quer seja nas

roupas (mortalhas) quer no caixão, e o uso de uma espécie de tiara (ou coroa) na cabeça

da criança, o que remete ao simbolismo destacado anteriormente, a partir das análises de

Vailati.

No que diz respeito às mudanças, nas fotografias mortuárias mais recentes

(pelo menos nas que foram coletadas por nós), não se vê a presença de outras pessoas.

Também dado relevante é que não se vê trabalho de fotógrafo profissional. Essas

fotografias são produzidas geralmente por pessoas da família ou amigo, são, portanto,

de modo geral, desprovidas de pretensões ou preocupações de conteúdo estético.

Ao finalizar este breve apanhado, uma descoberta curiosa para nós, que até

enveredarmos nessa pesquisa nada conhecíamos sobre esse costume que, segundo se

sabe, originário da Inglaterra Vitoriana no século XIX, espalhou-se por diversos países

ocidentais, atravessou o Atlântico, chegou aos rincões do sertão norte-mineiro e se fez

presente em Bocaiuva/MG, faz-se necessário apontar, primeiro, que os exemplares que

aqui apresentamos são apenas uma parte do material que coletamos o que evidencia que

a prática da fotografia mortuária em Bocaiuva/MG foi mais comum do que se imaginou,

inicialmente e que, apesar de ter sido mais intensa em outros tempos63

, faz-se presente

ainda nos dias de hoje.

63

Segundo KOURY, em citação de BORGES, ―O costume permaneceu com uma maior aceitação na sociedade brasileira até os anos 1950, ―quando a morte, os mortos e o registro da morte tendem a ser ocultados e tornam-se quase que um objeto proibido entre os homens urbanos brasileiros civilizados, sobretudo de classe média‖ (2001, p.77).

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134

Outro aspecto a salientar, nos remete ao estudo de Carlo Guinzburg (2001)

no texto-Representação: a palavra, a ideia, a coisa, inserido no livro Olhos de Madeira:

nove reflexões sobre a distância. Nesse texto, Guinzburg busca fazer estudo

transcultural entre práticas largamente separadas no espaço e no tempo, quais sejam a Consecratio e o Kolossói, romano e grego respectivamente, práticas essas inseridas nos

costumes e rituais fúnebres na Antiguidade Clássica e as representações dos funerais

reais na França e Inglaterra da Idade Média Tardia, em que uma das práticas durante

esses funerais consistia no uso de manequins de cera ou madeira representando os

monarcas mortos.

No intento de buscar similaridades entre as práticas, Guinzburg aponta um

questionamento: seriam as práticas mais recentes, referindo-se aos costumes ingleses e

franceses acima referidos, uma filiação ou redescoberta espontânea, em relação às

práticas greco-romanas mencionadas? Em resposta à sua questão, Guinzburg procurou

demonstrar que as semelhanças transculturais podem ajudar a compreender a

especificidade dos fenômenos de que partiram. Com efeito, o que queremos apontar é

que, enquanto a prática da fotografia mortuária em seus primórdios na Inglaterra e no

Brasil era possibilitada apenas a alguns poucos privilegiados64

, com o passar do tempo

e em função da revolução técnica e do barateamento dos serviços fotográficos, a

fotografia mortuária expande-se pelas regiões mais interioranas, mas perde seu espaço

como prática nos rituais fúnebres das sociedades mais urbanizadas e classes mais

abastadas. Isso se explica porque, para os valores introduzidos pelo modelo de família

burguesa, o registro imagético que se quer para um ―álbum de família‖ é o da vida

plena. Nessa confluência de situações e valores, a fotografia mortuária causa

estranhamento e onde hoje ainda se faz presente surge como ―tradição de família‖ ou

um modo ―próprio‖ de elaboração do luto. Não seriam essas as possibilidades de

explicação das representações apontadas no estudo de Guinzburg?

Como abordamos neste segundo capítulo, em relação às fotografias

mortuárias do século XIX e primeira metade do século XX que a nosso ver tanto podem

ser uma filiação dos kollosoi grego e do consecrátio romano ou das efigies de cera da

França e Inglaterra da Idade Média Tardia ou das pinturas do macabro ou dos retratos

da renascença em que a morte ou o morto se representa, ou ainda nas pinturas

64

Sobre o costume de se fotografar os membros mortos da família antes destes serem enterrados, Ana Maria Mauad observa que tais imagens têm notável presença nos álbuns de família da elite carioca durante o Império, fato que vale especialmente para as crianças. Cf VAILATI (2006,s./p).

Page 137: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

135

românticas do século XIX e por fim nesse amalgama, os clicks das máquinas digitais da

atualidade que também registram a morte ou os cemitérios. Registram para perpetuar na

memória, mas apagar da lembrança.

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136

Capítulo 3

A MORTE EM BOCAIUVA:

DO CAMPO SANTO AOS CEMITÉRIOS PARQUES -

O sagrado, o profano e a memória que resiste

3. A escatologia, a morte e a destinação do corpo morto

Tenho um pedido só Último talvez, antes de partir Quando eu morrer me enterre na Lapinha,

Quando eu morrer me enterre na Lapinha65

Dada a impossibilidade de inventariar, em diversas culturas, e num tempo de

longa duração, as possíveis relações entre concepções escatológicas, a morte e a

destinação do corpo morto, nosso recorte histórico e temporal será a cultura ocidental

cristã, na contemporaneidade aqui considerada entre os séc. XVIII, em que, num

primeiro momento, ainda prevalecia o ―monopólio‖ da Igreja Católica quanto às

concepções e representações da morte, as formas de tratamento ao morto e a destinação

dada ao corpo morto, às transformações neste processo ainda nos fins do séc. XVIII,

com a ―medicalização‖ da morte e a trajetória das questões apontadas até a atualidade. Importante demarcar a generalidade das considerações que se fará neste tópico,

reafirmando que, nos tópicos seguintes, algumas dessas questões serão aprofundadas.

Em sua obra À Flor da Pedra: formas tumulares e processos sociais nos

cemitérios brasileiros, Antônio Motta, expõe que

Uma das primeiras práticas socioculturais de que se tem noticia é a ocultação do cadáver como meio de preservar os vivos da decomposição de seus mortos. Inumado, queimado, canibalizado, embalsamado, exposto ao ar livre nos cumes das montanhas, depositados nas correntezas de rios, exposto para visitação em casa, em funeral home, no drive-up funeral home ou até mesmo em velório virtual, cadáver é o elemento decisivo e primordial que orienta e regula ritos e papéis funerários humanos, um dos primeiros registros e testemunhos de sua história (Motta, 2009, p. 15).

65

Canção interpretado por Elis Regina, com letra de Paulo César Pinheiro e Baden Powell.

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137

A opção por utilizar essa citação se explica a priori, como sendo esta

leitmotiv às ideias que se propõe explicitar. Primeiro a referência da morte como uma

ruptura que provoca uma desordem. Uma desordem que fratura a unidade e

continuidade de um grupo que, diante da tal situação, necessita e cria representações

mentais, bem como institui práticas e rituais que revelam, se analisadas com

profundidade, mais que as suas concepções sobre a morte – o fim, outrossim, sinalizam

sobre as concepções sobre a vida.

Numa vertente eliadiana, diríamos uma visão cosmogônica ou das origens

que se liga às concepções escatológicas. Os estudos etnológicos, em diversas culturas,

possibilitaram uma ampla literatura que revela uma profusão de rituais e papeis

funerários como elementos organizadores e integradores da vida social que permitem

perceber como cada cultura concebe e elabora suas representações escatológicas e suas

formas de apreensão do mundo.

No escopo das crenças cristãs ―do pó tu vieste, ao pó voltarás‖ revela-se a

preferência pela prática da inumação, que caracteriza o Cristianismo, ainda que se

perceba abertura recente a outras formas de ―ocultação‖ do cadáver. Buscando ampliar a

compreensão do discurso do autor supracitado, quando se refere à ocultação do cadáver

como forma de proteger os vivos da decomposição de seus mortos, especula-se se não

estaria necessariamente essa ideia circunscrita somente numa concepção higienista,

típica da segunda metade do séc. XVIII, quando da medicalização da morte e a

consequente proibição de enterramentos ―ad sanctus‖ e ―ad eclesiam‖ no mundo

católico.

O fato provocou o ―renascimento‖ dos cemitérios como locus da ocultação

do corpo morto, criando o que se costuma denominar a ―cidade dos mortos.‖ 66

Mais

ainda, a ideia sugere a ―ocultação da morte‖, fenômeno desagregador na medida em que

promove uma desordem e que, na contemporaneidade, tornou-se um objeto interdito.

66

É recorrente o uso dessa terminologia para se referir aos cemitérios. Advém do sentido de necrópole que significa a "cidade dos mortos". Segundo PERISSÉ (2013,s/p) escritor, tradutor, doutor em Filosofia da Educação (USP) há aí uma utilização popularizada, mas que foge à etimologia das palavras. Argumenta o autor ―necrópole que tem origem no grego e significa nekrós (―morto‖, "cadáver"), pólis ("cidade"). A Necrópole de Gizé, no Egito, é um dos maiores exemplos da antiga arquitetura a serviço de um projeto post-mortem. Já o cemitério possui uma outra conotação. O elemento "-tério" é um pospositivo do grego que se refere ao local onde se realiza o que é expresso pelo antepositivo. O monastério é o lugar onde ficam os monges. O presbitério é o lugar onde ficam os anciãos (os presbíteros). E o cemitério é o lugar onde as pessoas dormem, porque o antepositivo do grego koimétêrion ("lugar para dormir") é o verbo koiman ("dormir")‖ A palavra começou a ser usada pelos primeiros cristãos, que viam na morte um momento de descanso. Os mortos vão dormir, na esperança de saírem do túmulo. Preparam-se para acordar, tal como Jesus ressuscitado. O cemitério é lugar passageiro, silencioso, um dormitório para uma noite mais ou menos longa: o novo dia está por vir.

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138

Porém, retomemos a questão da prática de enterramentos ad sanctus e ad

eclesiam que caracterizaram a Europa católica durante a ―longa Idade Média‖ e, por

consequência, o Brasil que, de modo geral, instituíram os cemitérios separados da igreja

somente no decurso do séc. XIX. O que se quer abordar é que, durante todo período em

que prevaleceram os cemitérios ad sanctus, pode-se dizer que presente estava uma

concepção escatológica, permeada especialmente pelas ideias de ―boa morte‖ 67

e do

Além68

que pode reservar ao morto um lugar no céu, no inferno ou no purgatório.

A definição desse lugar dependeria, segundo a teologia cristã e católica, da Fé aliada às boas obras, o que incluía a ―preparação‖ para a boa morte, marcada por

ritos e práticas que davam à Igreja Católica, um grande controle sobre a vida e sobre a

morte. Sobre a vida, na medida em que, através da ―pedagogia do medo‖, a Igreja

atuava como instrumento de controle social. Sobre a morte, inclusive como forma de

garantir à Igreja o monopólio do ―mercado da salvação‖. No Brasil, é significativa a

promulgação das Constituições Primeiras do Acerbispado da Bahia que estabelecia:

E´ costume pio, antigo, e louvável na Igreja Catholica, enterrarem-se os corpos dos fieis Christãos defuntos nas Igrejas, e Cemitérios della: porque como são lugares, a que todos os fieis concorrem para ouvir, e assistir ás Missas, e Officios Divinos, e Orações, tendo á vista as sepulturas, se lembrarão de encommendar a Deos nosso Senhor as almas dos ditos defuntos, especialmente dos seus, para que mais cedo sejão livres das penas do Purgatório, e se não esquecerão da morte, antes lhes será aos vivos mui proveitoso ter memória della nas sepulturas.( Cf. Constituições do Arcebispado da Bahia - 1707 – Livros IV ,–Titulo LIII ,– Parágrafo 843).

67

A expressão ―boa morte‖ remete à ideia de preparação para a morte. Esta concepção marca o medievo

europeu e permaneceu ainda por muito tempo na cultura ocidental, incluindo o Brasil colonial e imperial, resultado da influência portuguesa que impôs o catolicismo. A seguir trecho do catecismo católico que nos dá a dimensão dessa concepção ―M.48.15 - Preparação para a morte 1014 A Igreja nos encoraja à preparação da hora de nossa morte: "Livra-nos, Senhor, de uma morte súbita e imprevista": antiga ladainha de todos os santos, a pedir à Mãe de Deus que interceda por nós "na hora de nossa morte" (oração da "Ave-Maria") e a entregar-nos a São José, padroeiro da boa morte: Em todas as tuas ações, em todos os teus pensamentos deverias comportar-te como se tivesses de morrer hoje. Se tua consciência estivesse tranqüila, não terias muito medo da morte. Seria melhor evitar o pecado que fugir da morte. Se não estás preparado hoje, como o estarás amanhã? Louvado sejais, meu Senhor, por nossa irmã, a morte corporal, da qual homem algum pode escapar. Ai dos que morrerem em pecado mortal, felizes aqueles que ela encontrar conforme a vossa santíssima vontade, pois a segunda morte não lhes fará mal.‖Cf. Catecismo Católico In catecismo-az.tripod.com/conteudo/a-z/m/morte.html. 68

A morte. Ela iguala a todos, ricos e pobres, homens e mulheres. Para além dela, o Além: ele é um

mistério, uma incerteza, um tabu (RODRIGUES, 1983: 17). Para além de delimitar um conceito tão abrangente e que remete a inúmeras questões teológicas e filosóficas, optamos por utilizar da síntese acima referida por RODRIGUES e citada por COSTA(2009,s/p), para explicitar a noção pela qual utilizamos o termo. Importante registrar que não desconhecemos a profundidade de estudos sobre o ―Além‖ e sua ―geografia‖ como os realizados por Jacques Le Goff.

Page 141: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

139

As concepções escatológicas marcadas pelas ideias de juízo final, parusia e

reino dos céus prometidos àqueles que, ao longo da vida e da morte, cumprissem o

―catecismo católico,‖69

promoveu a transformação das igrejas em toda sua área

construída e imediações, num espaço disputado para se esperar o fim dos tempos, ou

melhor, o fim do mundo, certos de que os que ali fossem sepultados e que tivessem

passado pelo ritual da boa morte, além de terem contado com a ―intercessão dos vivos‖,

na medida em que estes deveriam zelar pela realização de uma infinidade de missas em

sufrágio da alma do morto; assim estes últimos ―repousariam‖ com a esperança de

salvação e de alcançar o reino dos céus.

Essa mentalidade e realidade vêm sendo transformadas lentamente. O marco

inaugural dessas transformações é o séc. XIX, na Europa e no Brasil, em que o

cemitério, separado da igreja, aos poucos, se impõe. Esse processo se explica por

inúmeras razões que vão das transformações politico-econômico-sociais, com o advento

da sociedade industrial e urbana, às transformações na mentalidade e, por conseguinte,

nas representações, simbolismos e atitudes do homem perante a morte e aos ―campos

santos‖. Todavia, os cemitérios possuem uma função específica e um significado

inerente: o local de descanso, a última morada. Reportando-nos à etimologia da palavra,

entre tantos, encontramos:

Vinda através do latim coemiterium ou cemeterium (este já no latim medieval), a palavra tem origem no grego koimetérion que era simplesmente ‗dormitório, quarto de dormir‘. Os cristãos consideram que os mortos na graça de Deus não estão mortos, mas sim adormecidos até à ressureição (Apocalipse, 14; 13). Preferiram, por isso, "cemitério" como lugar do seu repouso, em vez de outras palavras latinas que expressavam a ideia de enterramento eterno (NEVES, 2012,s/p).

Tanto quando estes se configuravam dentro das igrejas, quanto após

voltarem a serem extra urbes, os cemitérios são reveladores de um imaginário e este

constituído de valores que envolvem crenças – religiosas ou não – condições

socioeconômicas, relações de poder. Embora transformados em ―espaços laicos‖, no

69

Para explicitar a ideia de Catecismo Católico reportamo-nos ao lexicógrafo Raphael Bluteau que

menciona o catecismo como explicação dos princípios da fé católica e aponta a ideia de um ―livrinho que contém toda a doutrina cristã‖ (embora ao mencionar o termo catequese indique que essa era feita a ―viva voz‖ nos primeiros tempos e não em livro para que não chegasse aos gentios que por não entenderem os mistérios das sagradas escrituras, fizessem zombaria deles). Resta salientar que ,uma vez ―solidificada‖ a Igreja Católica ,surgem os ―documentos diversos‖(bulas, encíclicas, etc) da instituição e que estabelecendo a doutrina a propaga e até impõe por assim dizer. É nessa perspectiva que utilizamos esta expressão Cf. BLUTEAU (2013).

Page 142: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

140

Brasil, a partir da instituição da República,70

os cemitérios, contudo, não foram

descristianizados. A ideia de que o cemitério é o lugar de repouso e de os que ali estão

apenas dormem permeia o imaginário dos cristãos desde tempos remotos e ainda se dá a

ler nos epitáfios e em vários símbolos que se encontram nos cemitérios.

O imaginário cristão se comprova nitidamente com a presença da cruz e dos

cruzeiros nesses locais. É sabido que a cruz é um símbolo encontrado desde a

antiguidade, presente em diversas culturas como a egípcia, chinesa e a cretense. Em

Cnossos foi encontrada uma cruz de mármore que remonta ao século XV a.C. A cruz

tem uma função de síntese e de medida. Nela se juntam o céu e a terra. Nela se

confundem o tempo e o espaço. De todos os símbolos, ela é o mais universal, o mais

totalizante. No entanto, foi absorvido pelo Cristianismo que lhe impregnou de um

sentido próprio.

A tradição cristã enriqueceu prodigiosamente o simbolismo da cruz, condensando nessa imagem a história da salvação e a paixão do Salvador. A cruz simboliza o Crucificado, o Cristo, o Salvador, o Verbo, a segunda pessoa da Santíssima Trindade. Ela é mais do que uma figura de Jesus, ela se identifica com sua história humana, com a sua pessoa (CHEVALIER, J. e GHEERBRANT, A. 1998, p. 309-315).

Como já se afirmara anteriormente, segundo a concepção cristã de ―escatologia realizada‖ a partir da vinda de Jesus Cristo (a primeira vinda), que morreu

na Cruz pela promessa de salvação do homem, pode-se aventar que a permanência da

Cruz como símbolo nos cemitérios atuais, ou mesmo nos escassos exemplos de imagens

nos cemitérios parques, parece explicitar que as concepções escatológicas do passado,

em maior ou menor grau, permeiam o imaginário e a mentalidade contemporânea. A

Cruz é o símbolo do Salvador e da promessa de salvação e essa pode ser ainda a ―espera‖ escatológica que anima o homem contemporâneo. A salvação e a vida eterna

parece ser, no imaginário coletivo, uma representação da vida terrena. Criam-se

imagens que não nos desvinculam de um corpo, de nossos familiares. Quanto não se

ouve as pessoas dizerem de reencontro no céu, do outro lado, numa outra dimensão?

No passado, a vivência da morte e as formas de ocultação do corpo morto

revelavam, de forma mais explícita, as concepções do homem acerca da vida e da

70

A primeira Constituição da República foi publicada através do decreto número 510 do governo provisório, de 1890, e tem como data de promulgação o dia 24 de fevereiro de 1891. A Seção II, Artigo 72, parágrafo 5º instituía: ―Os cemitérios de caráter secular, com administração da autoridade municipal. A liberdade a todos os cultos religiosos e as suas práticas foram garantidas, desde que não ofendessem a moral pública e as leis‘‘.

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141

morte, do fim do mundo e da possibilidade ou não de um ―novo mundo‖. Ou seja,

buscava-se, por meio das práticas, rituais, símbolos e representações a garantia de uma ―vida além da morte‖. As concepções escatológicas, de modo especial a cristã-católica,

que vislumbrava a ―salvação‖ e o reino dos céus a partir da Fé e das boas obras,

promoveu reviravoltas nas formas de destinação do corpo morto e nas formas tumulares ―ad sanctus‖ e, mais tarde, nos cemitérios extra urbes.

Mesmo com as transformações oriundas de uma sociedade cada vez mais

dessacralizada71

e laicizada nos fins do séc. XIX e início do séc. XX, resultado de todas

as transformações do período e que produziram os ―cemitérios oitocentistas‖ na Europa

e no Brasil, marcados pelo individualismo e ostentação burgueses ,bem como uma nova

visão de mundo, não baniram desses espaços as concepções escatológicas. De acordo

com Antônio Motta, ―Além do repertório escatológico e macabro, repletos de memento

mori sobre os túmulos, o sagrado e o religioso ainda eram presenças dominantes na

cenografia cemiterial brasileira‖ (MOTTA, 2009, p. 85).

Conforme aponta Antônio Motta, as alegorias presentes nos cemitérios

brasileiros de importantes centros urbanos, no sudeste e nordeste, no início do século

XX, desvelam o processo de laicização verificado na morfologia tumular, com ênfase

em figuras femininas que, ainda que ganhassem formas e ares mais humanos (e

profanos), representavam anjos que intermediavam o céu e a terra e, pela fisionomia,

ora sugeriam crença na libertação da alma, esperança e

serenidade de quem deposita na morte a convicção de uma espera ou Passagem [...] a alegoria da Esperança[...] sustentando uma âncora, símbolo cristão da esperança [...] a Ressureição é representada também por figura feminina, geralmente em forma de anjo, com uma estrela presa à fronte e a mão direita estendida em direção ao infinito, como símbolo da vida eterna[...] (MOTTA, 2009, p. 86-88).

Na segunda metade do século XX, uma mudança brusca: a morte torna-se

um ―objetivo interdito‖ (Ariès). A morte não é mais um ―espetáculo‖ ou ―passagem‖

característicos de outras épocas, e nem somente a ―morte selvagem‖ (Ariès), ela se

transformara num tabu, algo indizível, do qual se buscava fugir. Tal ideia se sustenta

quando nos deparamos com algumas situações, dentre elas, o tratamento da morte para

com as crianças. Em muitas sociedades contemporâneas, os adultos buscam afastar a 71

Segundo Houaiss (2001, p.1015) ―dessacralização é desmistificação‖. Segundo Eliade (1992, p. 14), ―caracteriza-se como experiência total do homem não religioso das sociedades modernas, o qual por essa razão sente uma dificuldade cada vez maior em reencontrar as dimensões existenciais do homem religioso das sociedades arcaicas‖.

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142

criança da experiência da morte, seja evitando que estas participem de funerais, seja

utilizando expressões como ―viagem‖ ou ―descanso‖ para dizer da morte de um familiar

ou pessoa próxima. Também o distanciamento dos cemitérios dos centros urbanos.

Além dos argumentos médico-higienistas definidos desde o século XVIII,

na Europa, especialmente na França pós-revolução, e que se propagaram no Brasil do

século XIX e XX, não se pode desprezar a ideia de que os afastando ―dos olhos‖, do

cotidiano, o homem contemporâneo não precisa enfrentar, em meio a todas as angústias

típicas da sociedade de consumo, a angústia maior – a certeza da finitude humana.

Mudanças se observam por extensão na relação com os moribundos. Parafraseando Reis, assistimos a um ―Civilizar os Costumes‖, termo como ele sintetizou a

medicalização da morte e a morte legislada. Iniciado no século XVIII e ampliado nos

dias atuais, o discurso médico que recomenda o afastamento dos cemitérios dos centros

da cidade bem como certos cuidados diante dos moribundos, a fim de evitar-se ―contágios‖ e danos à saúde pública, reforça as transformações nas atitudes e

representações do homem contemporâneo em torno da morte e dos ritos fúnebres.

A cultura ocidental deixa de vivenciar a morte em função de priorizar a

preservação da felicidade – daí a necessidade de desenvolver tecnologias para evitar a

morte. Hoje, moribundos morrem em hospitais, muitas vezes sem saber da gravidade de

seu estado, já que falar de tal estado seria vivenciar a morte presumível, o que não faz

parte da mentalidade atual. Essa negação da morte revela-se característica das

sociedades marcadas pelo individualismo. A morte e o luto são assuntos privados,

tolerados na intimidade, afetando-se os ritos fúnebres, tornando-os cada vez mais

discretos e os funerais mais econômicos. Eis o processo civilizador que impõe o

autocontrole, a ―economia das paixões‖. Também nos cemitérios típicos dos tempos

atuais, caracterizados por jardins arborizados, pouco espaço para as representações

artísticas em torno da morte. Não se vê mais jazigos e túmulos ornados com imaginárias

e esculturas típicas de uma época em que a morte era vista como ―o outro lado da vida‖. Como apreender, nesse contexto, as representações e os imaginários coletivos acerca da

morte?

Assistimos a um processo contínuo de dessacralização e laicização do

mundo. A morte e o morrer, as atitudes do homem diante da morte, os ritos, os

símbolos, as práticas, inclusive as formas de ocultação do corpo morto se alteram,

decerto. No entanto, os novos espaços cemiteriais, caracterizados por superfícies

gramadas, estilizados e denominados de parques ou jardins, a partir de um ―olhar‖

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143

atento é possível apreender dali concepções escatológicas que marcam a teologia e

escatologia cristãs. Eles se assemelham à imagem do Éden e sua eterna primavera: o

Paraíso.

Como já explicitamos, a historiografia contemporânea e os novos campos

dos estudos históricos possibilitam abordagens e temáticas ainda pouco desveladas.

Insere-se entre tais a morte, as atitudes do homem diante desta, as representações sociais

em torno desse fenômeno, ao mesmo tempo natural e cultural. Natural na medida em

que, por mais que isto angustie, o homem tem consciência de sua finitude inevitável.

Aliás, sendo o único ser vivo a ter essa consciência72

, o homem transforma a morte num

fenômeno cultural, uma vez que esta, segundo Giacoia (2005) ―dá luz‖ à filosofia e

incita o homem à religiosidade.

Ambas, filosofia e religião podem ser percebidas como busca de explicação

para a ―transcendência da vida e da morte‖. Embora na sociedade contemporânea tenha-

se verificado uma ―crise do sagrado‖ e, assim, das representações míticas e religiosas

em torno da morte (e da vida), é preciso atentar para a sincronia de uma mentalidade

que se apresenta sob novo viés. Como constatou Vovelle (2010), se hoje as imagens e

representações da morte e de todos os aspectos imbricados nessa temática, seja em

retábulos, esculturas, pinturas desapareceram ou minimizaram, isso ser visto como o

reflexo de uma nova atitude do homem em relação à morte, sendo necessário ao

historiador uma carga de subjetividade73

de seu ofício.

Isso permitirá ao historiador a percepção de que a morte e seus mistérios, os

ritos (ou novos ritos) fúnebres, os lugares de sepultamentos e as formas destes,

permanecem em parte da experiência, da sensibilidade, dos sentimentos e do imaginário

coletivo. Atesta tal argumento, a profusão de filmes, livros e até mesmo história em

quadrinhos que, sutil ou decisivamente, ―exploram‖ a ideia dos mortos-vivos, dos

72

Sobre a controversa afirmação de que o homem é o único ser a ter consciência de sua finitude,

afirmação presente em nosso texto, utilizaremos da citação abaixo apresentada em tese de doutoramento por Marcelina das Graças Almeida, da qual lançamos mão na íntegra: ―Michel Ragon sustenta a tese de que a consciência da morte não é um privilégio humano e se manifesta em alguns primatas e, além disto, há certas culturas em que há indiferença em relação aos cadáveres. Afirma Ragon: ―[...]l‘horreur du cadavre em décomposition est une constante dans toutes lês civilisations qui conduis itaurite du deuil dês survivants donladurée était égale à celle de La décomposition du corps, Mais, contrairement à cequi est affirmé par laplupart dês historiens de La mort tous lês peuples n‘ont pas eu la vénération dês morts et certain sont même pendant long temps abandonné tout simplement leurs cadavres.‖ (RAGON, s/d. p.13-14). Por outro lado Edgar Morin sustenta a tese de que ―[...]a espécie humana é a única para a qual a morte está presente durante a vida, a única que faz acompanhar a morte de ritos fúnebres que crê na sobrevivência ou no renascimento dos mortos‖ (MORIN In ALMEIDA, 2007, p.09). 73

Baseamo-nos no pensamento de Paul Ricouer para quem a história é uma recomposição do vivido e esta se faz a partir da subjetividade do historiador ,da qualidade da formação e do conhecimento deste .

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144

mistérios do Além, da morte, enfim. É um campo aberto àqueles que aceitarem o

desafio de compreender o processo de formação das identidades coletivas, a partir de

um tema que agrega Eros e Tanatos.74

A seguir, apresentaremos questões que permitem discutir a permanência, na

atualidade, de alguns aspectos relacionados ao imaginário e às representações sociais de

outros tempos no que diz respeito à morte e aos cemitérios, na cidade de Bocaiuva/MG.

Nessa perspectiva, como explicita a epígrafe que abre este capítulo, o lugar onde se

oculta o corpo morto ainda tem, para o homem contemporâneo, o importante

significado de ―solo sagrado‖.

3.1-A MORTE DANDO LUGAR À VIDA – Imaginários e discursos acerca da

demolição do cemitério do Bonfim de Bocaiuva-MG

A vida do homem em sociedade está marcada por imagens e estas

percebidas como realidades palpáveis, que não se limitam às produções artísticas e

iconográficas, pois agregam também o universo das imagens mentais. Pensamento –

imagem – imaginário, conexão que produz os objetos que interessam ao historiador do

imaginário; imagens coletivas, datadas, mas que se modificam e se transformam pelo e

com o movimento da história e, assim, produzindo discursos. É na interseção de

categorias de análise, como o imaginário e a análise de discurso, que se pretende

desenvolver o tópico que se apresenta.

Esses discursos estão inseridos em um contexto de formação de uma

memória coletiva, um ―conjunto de lembranças construídas socialmente e referenciadas

a um conjunto que transcende o indivíduo‖ (HALBWACHS, 2003,p.53). Mas essas

74

Eros (gr. desejo. amor) I. Na Antiguidade grega, Eros designa o *amor e o deus do amor. *Platão (O

*banquete) enfatiza a ambiguidade do termo: Eros, na mitologia grega, é filho de Poros (riqueza) e de Pênia (pobreza); pobreza, porque o desejo amoroso exprime a ausência: riqueza pelo sentimento de plenitude que acompanha o amor .Outra ambiguidade: o Eros inferior, o amor carnal, é distinto do Eros que conduz ao amor divino: os homens passam de um a outro por degraus, em virtude da *dialética ascendente.2. Para *Freud. que se refere ao deus grego do Amor, Eros designa as pulsõcs de vida e de auto conservação cuja energia potencial_ essencialmente de caráter sexual (não genital) é constituída pela libido, regida pelo princípio do prazer. Por oposição a Eros, Thánatos designa as pulsões de morte que se traduzem, tanto por uma tendência à autodestruição quanto por uma agressividade dirigida para o exterior. Cf. JAPIASSU & MARCONDES, Dicionário Básico de Filosofia, 1990.

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145

lembranças, partilhadas em grupo, não são homogêneas, tampouco denotam

estabilidade. Mais do que isso, a memória coletiva, buscando a coesão entre os pares,

legitima, cria, seleciona e, por que não, oblitera. Para Nora (1993, p.9) memória ―é a

vida [...] em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do

esquecimento,[...] vulnerável a todos os usos e manipulações, susceptível de longas

latências e de repentinas revitalizações‖.

Nesse sentido, procuraremos evidenciar os discursos e representações

construídos pelos moradores da cidade de Bocaiúva-MG frente à demolição do

Cemitério do Bonfim (2011-2012) e que configuram a memória social daquele grupo. O

que despertou a presente abordagem foi o fato de que, mesmo não havendo ruidosa

manifestação popular diante da demolição, muitos moradores ainda demonstram

identificação com o antigo espaço. Além da permanência da cruz no espaço do antigo

cemitério, definida pelo poder público, pudemos experienciar um ato simbólico de um

cidadão bocaiuvense que, no dia de finados (02/11/2012), depositou um arranjo de

flores e velas no espaço onde teria sido o túmulo de sua mãe.

Fig.53. Foto: Flores depositadas junto ao cruzeiro no antigo cemitério do Bonfim em 02 de novembro de2012. Acervo da autora.

Tais fatos nos incitam a questionar o porquê dessas atitudes. Que sentidos o

poder público buscou criar ou perpetuar, ao manter o cruzeiro? E o cidadão, ao

depositar flores e velas naquele espaço que outrora fora o túmulo de sua mãe, pretendia

manifestar uma homenagem, devoção, crença ou ato religioso, ou ir além e manifestar

seu posicionamento quanto à demolição?

Page 148: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

146

Ainda ressaltamos como objeto de análise o uso, pelo poder público

municipal, de peça publicitária de divulgação da nova utilização do espaço do cemitério

demolido, a saber, uma Unidade Básica de Saúde – UBS, peça cujo lema foi: ―a morte

dando lugar à vida‖. Nesse ponto, buscamos fazer uso da manutenção do cruzeiro,

aliada à peça publicitária como objetos de análise, na perspectiva da análise do discurso,

uma vez que a imagem também é discurso. Segundo Eni Orlandi ―o discurso é assim

palavra em movimento, prática de linguagem: com o estudo do discurso observa-se o

homem falando‖ (ORLANDI, 1999 p.15).

Pretende-se perceber a construção de sentidos aqui impregnados, bem como

vislumbrar alguns aspectos da recepção desse discurso, e a produção de ―novos‖

sentidos que esse discurso propicia. Para apreendermos os discursos dos sujeitos desta

pesquisa, foram enviadas, via e-mail, fotografias do cruzeiro que permaneceu erguido

mesmo com a demolição do cemitério, solicitando-se que os entrevistados descrevessem

suas impressões. O grupo, num total de nove (9) pesquisados, constitui-se de 4 homens

e 5 mulheres, entre 18 e 70 anos de idade.

3.1.2 Notas sobre o Sagrado e o Profano

Mircea Eliade, em sua obra ―O Sagrado e o Profano‖, cuja primeira edição

data do ano de 1992, apresentou vários argumentos, de diferentes ―vertentes‖ teóricas,

desde a era pagã até os doutores da Igreja da Idade Média – ―longa idade média‖,

considerando-se a perspectiva de Le Goff (1994), até estudos sociológicos como o de

Durkheim ou psicológicos como o de Sigmund Freud, acerca da religião e dos

significados do ―sagrado‖ para o homem ―religioso‖ em diferentes espaços e tempos

históricos.

Apontando que ―a primeira definição que se pode dar ao sagrado é que ele

se opõe ao profano‖ (ELIADE, 1992, p. 17). Cercando-se de inúmeros estudos, em

diferentes áreas das ciências humanas, o estudioso apresenta o fenômeno do sagrado em

toda a sua complexidade e totalidade, extrapolando as concepções que ligam o sagrado

ao irracional. Ele Utilizou do termo Hierofania para indicar o ato da manifestação do

sagrado e, para este autor, a manifestação do sagrado se revela como absolutamente

diferente do profano.

Page 149: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

147

Desde a mais elementar hierofania – ―a manifestação do sagrado num objeto

qualquer, uma pedra ou uma árvore – e até a hierofania suprema, que é, para um cristão,

a encarnação de Deus em Jesus Cristo, não existe solução de continuidade‖ (ELIADE,

1992, p, 17), ou seja, o sagrado se revela e ―cria‖ uma ordem diferente, uma realidade

que não pertence ao nosso mundo profano, ainda que até tal manifestação, um

elemento-objeto como uma ―pedra sagrada‖, nada mais é que uma pedra, porém, a partir

da manifestação do sagrado, aquele objeto torna-se outra coisa, ainda que seja ele

mesmo – parte do meio cósmico envolvente. ―Essa é a concepção do homem das

sociedades ‗arcaicas‘ ou do ‗homem religioso‘ que busca viver o mais perto dos objetos

consagrados, ou do sagrado já que ‗o sagrado equivale ao poder‘ e, em última análise, à

realidade por excelência‖. O sagrado está saturado de ser. Potência sagrada quer dizer

ao mesmo tempo realidade, perenidade e eficácia (ELIADE, 1992 p.18).

A manifestação do sagrado tem um sentido ontológico, cria um ―centro do

mundo‖, e, nesse sentido, promove a ―fundação do mundo‖. A revelação desse espaço

sagrado tem um valor existencial para o homem religioso que se esforça para estar no ―centro do mundo‖. Ou seja, o homem cria e recria o espaço sagrado, sendo este

comumente revestido ou representado mediante um símbolo. Partilhamos o conceito

dado por Gilbert Durand , que o define como: ―um signo que remete para um indizível e

invisível significado e, deste modo, sendo obrigado a encarnar concretamente esta

adequação que lhe escapa, e isto através do jogo das redundâncias míticas, rituais,

iconográficas, que corrigem e completam inesgotavelmente a inadequação‖ (DURAND, 2000, p.16).

Podemos afirmar que, toda sociedade humana, em diferentes tempos

históricos e espaços, cria seus símbolos. O pensamento simbólico antecede à linguagem

e à razão discursiva. Os símbolos não são produzidos ao acaso, ligam-se a necessidades

e funções específicas e revelam o inconsciente, o imaginário, a ―aura‖. Nas palavras de

Michel Maffesoli (2001),―Não vemos a aura, mas podemos senti-la. O imaginário, para

mim, é essa aura, é da ordem da aura: uma atmosfera. Algo que envolve e ultrapassa a

obra‖.

Outro autor que problematiza o conceito de símbolo é o antropólogo

Clifford Geertz (1978), afirmando que não se trata de uma definição fácil, devido aos

diversos sentidos com que este vem sendo tratado e aponta a ideia de ―símbolos

Page 150: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

148

sagrados‖ e estes como importantes para a síntese do ethos75

de um povo e sua visão de

mundo, revelando aspectos de interesses para estudiosos de todos os campos. Estão

esses símbolos presentes também na arte funerária e nos espaços fúnebres,

especialmente os cemitérios.

Como já mencionamos, um dos símbolos característicos dos cemitérios

cristãos é o cruzeiro. A cruz, em forma de cruzeiro, aparece no glossário de Termos

sobre Religiosidade (p.44) como sendo: ―Grande cruz de pedra ou de madeira que se

ergue nos adros das igrejas, nas praças, nos cemitérios etc‖. Os cruzeiros, colocados nos

cemitérios, têm a determinante função de santificar o local que recebe os restos mortais

daqueles que, em vida, acreditaram na vida após a morte, ergue-se o cruzeiro a lembrar

aos vivos a piedade pelos mortos.

A cruz serve, portanto, para alicerçar a ideia de que, depois da morte, haverá

ressurreição, a vida, tal como aconteceu com Jesus Cristo. É nessa perspectiva cristã que

o cruzeiro foi presença no Cemitério do Bonfim, localizado na área central da cidade de

Bocaiuva/MG, ali erigido na década de 30 do século XX, ainda que à época – Brasil

republicano, já fosse o cemitério um espaço laico, de responsabilidade do poder público

e não mais da Igreja Católica ou das irmandades, como foram os ―campos santos‖ de

outrora.

Esse mesmo cruzeiro sobrevive ao processo de demolição do cemitério e se

encontra no mesmo ponto central onde fora colocado como delimitação do ―território‖ e

era utilizado como lugar de manifestação da devoção e homenagens às almas. Assim

sendo, podemos inferir que o símbolo do cruzeiro e as representações que este implica

permitem a manifestação e percepção de um imaginário coletivo, ainda que o

imaginário seja uma construção grupal e não homogênea. Nesse sentido, buscou-se, a

partir dos discursos do poder público e de cidadãos bocaiuvenses, perceber esses

imaginários, uma vez que o discurso revela o imaginário, sendo uma forma de

materialidade deste. Importante registrar que, na vertente do pensamento de Mircea

Eliade, a experiência profana, do homem não religioso, característico das sociedades

contemporâneas, o espaço é visto como homogêneo e neutro; não há ponto fixo e,

assim, aparece e desaparece, segundo as necessidades diárias. No entanto, afirma

Eliade:

nessa experiência do espaço profano ainda intervêm valores que, de algum modo, lembram a não-homogeineidade específica da experiência religiosa do

75

O tom, o caráter, a qualidade da sua vida, seu estilo e disposições morais e estéticas. In GEERTZ, 1978, p. 103.

Page 151: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

149

espaço. [...] esses locais guardam, mesmo para o homem mais francamente não- religioso, uma qualidade excepcional, ‗única‘; são ‗lugares sagrados‘ do seu universo privado. Como se neles um ser não- religioso tivesse tido a revelação de outra realidade, diferente daquela de que participa em sua existência cotidiana (ELIADE, 1992,p. 28).

Seria essa a explicação para a permanência do cruzeiro num espaço agora

profano? No tópico a seguir, apresentar-se-ão os discursos em questão e algumas

inferências acerca destes.

3.1.3 -O processo, uma narrativa

Para uma vertente historiográfica, a História é uma elaboração discursiva do

presente, uma construção de uma interpretação a partir dos sinais, vestígios do passado.

Na perspectiva de Hayden White (1992), a história se aproxima da literatura, ou seja, é

uma narrativa. Polêmicas à parte, essa observação visa a apenas pontuar dois aspectos

que se consideram importantes para a análise das questões que se impõem neste tópico,

quais sejam: a necessidade de uma narrativa do processo de demolição dos cemitérios

centrais da cidade de Bocaiuva/MG; a observação de que esta pesquisa não tem

pretensão de constituir-se numa ―verdade‖, portanto, as considerações aqui são

pontuais.

Entre fins do século XX e o início do século XXI ―Bocaiuva parece ter

despertado para a modernidade‖. Era preciso mudar as ―feições da cidade‖. O discurso

do progresso e da modernidade passa a ser uma constante, especialmente por parte dos ―homens públicos‖, sequiosos do poder político e de se apresentarem como a renovação

e promotores da melhoria da cidade. Aqui e ali, impregnam a paisagem urbana com ―suas marcas‖, alterando ora sutil, ora drasticamente, o cenário urbano. Data do ano de

2002, a primeira investida contra os cemitérios centrais da cidade. Em documento

encaminhado à Câmara Municipal de Bocaiuva/MG, a 25 de outubro de 2002, o prefeito

à época, apresentou projeto de lei que dispunha sobre a realização de plebiscito para

discussão da demolição dos cemitérios da Saudade e do Bonfim.

Ainda segundo o documento, a previsão legal para destinação dos referidos

cemitérios já constava, ―em caráter de generalidade‖ na Lei Orgânica Municipal –

LOM, ―conforme dispõe art. 12 das disposições Transitórias desse diploma‖. Salientando que o referido exigia regulamentação, solicitava regime de urgência na

Page 152: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

150

discussão, análise e proposição do referido projeto. Em 18 de novembro de 2002, a

Câmara aprovou por unanimidade o projeto de lei, sob nº54/2002, que entre outros

pontos, destacou:

art. 2º - caberá ao chefe do poder executivo, mediante decreto, estabelecer data e critérios para a realização do plebiscito autorizado por esta lei.‖ No parágrafo único deste, definem: ―a consulta popular será realizada de forma separada para cada um dos cemitérios, sendo que a primeira consulta a ser realizada será sobre a destinação do cemitério do Bom Fim e a segunda será

sobre a destinação do cemitério da Saudade.76

Esse parágrafo alterava a proposta do chefe do poder executivo, ao propor

consultas em separado. Observa-se ainda que, conforme o projeto, o primeiro plebiscito

referir-se-ia ao cemitério do Bonfim, no entanto, tal fato não se concretizou. A primeira

consulta popular e consequente deliberação pela demolição ocorreram quanto ao

cemitério da Saudade.

A razão que explica tal fato pode ser entendida como um ―equívoco‖ dos

legisladores, uma vez que, ainda hoje, é possível perceber em documentos públicos

recentes, o erro quanto à identificação dos nomes dos cemitérios. O objeto do primeiro

plebiscito e consequente demolição foi o cemitério da Saudade, localizado na avenida

de mesmo nome, no bairro Bonfim, próximo à igreja do padroeiro da cidade, área

central e marco inicial do agrupamento social desde os primórdios do arraial, elevado à

vila e, por fim, cidade de Bocaiuva/MG.

O cemitério, edificado em fins do século XIX, como condição de

emancipação política do arraial do Bonfim, foi espaço de culto aos mortos, brincadeiras

de crianças que se escondiam uns dos outros atrás de arbustos que delimitavam os

túmulos, segundo relato de memorialistas, nos idos de 1950/1960, e permaneceu parte

da paisagem urbana, sendo utilizado para enterramentos até o início dos anos 90 do

século XX.

Apesar do cemitério da Saudade, pelo fato de ter sido o primeiro a abrigar

os restos mortais de muitos bocaiuvenses ―ilustres‖ e personalidades religiosas de um

passado mais distante, ele era um cemitério de todos, não havia venda de terrenos

quando de sua fundação. Tanto que não há nos livros de sepultamentos localizados na

prefeitura,77

registros de quadras ou sepulturas em que foi sepultada a pessoa. Demarcar

76

CAMARA MUNICIPAL DE BOCAIUVA. Projeto de Lei nº54/2002. Dispõe sobre a realização de plebiscito para discussão da demolição dos cemitérios da Saudade e do Bonfim .Bocaiuva, 18 nov. 2002. 77

Para se dimensionar a fragilidade de arquivamento e conservação destes documentos, os livros de registros de sepultamento que nos foram apresentados se revelam cheios de lacunas quanto aos dados. Consultamos seis livros que nesse arquivo estão disponibilizados. Para citar um exemplo o livro de

Page 153: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

151

o lugar onde ―repousava‖ cada falecido parecia ser apenas interesse e tarefa dos

familiares. Quase não havia edificações, entretanto, uma cruz de madeira, na maioria

dos casos, fincada no solo, e nesta uma inscrição com o nome, data de nascimento e

morte do falecido era o marco comum. Alguns arbustos ali plantados, possivelmente

pelos parentes do sepultado, também serviam como demarcação da sepultura.

Destacavam-se os túmulos dos padres ali enterrados, porque se concentravam num

mesmo espaço e tinham um gradil de ferro e cruz, mas nada que ostentasse luxo ou

maior reverência. Era um cemitério simples e, enquanto existiu, era conhecido como Cemitério velho e, para alguns, ―cemitério dos pobres‖.

O segundo cemitério edificado, denominado cemitério do Bonfim, o foi na

década de 30 do século XX, o que nos impele a questionar o porquê da edificação de

um segundo cemitério, relativamente próximo do primeiro – área central da cidade – se

o Cemitério da Saudade à época ainda era dotado de espaço para novos enterramentos.

Acreditamos que a resposta a essa questão passa pela ideia de distinção social que se

queria eternizar na última morada.

No cemitério do Bonfim, houve venda de terrenos e famílias puderam

comprar o lugar de sua última morada. Apesar dos livros de registros que acessamos

demonstrarem ainda uma desorganização na identificação das sepulturas, nesse novo

cemitério havia edificações e túmulos mais ―suntuosos‖ para o porte da cidade. Nada

que se possa comparar aos cemitérios construídos nos grandes centros ou regiões ricas

do Brasil, porém, era visível a diferença, em relação ao cemitério da Saudade, talvez por

isso, além de ser conhecido por todos como Cemitério Novo, para os pobres era

denominado de cemitério dos ricos.

Do cemitério da Saudade, demolido entre os anos de 2003 e 2004, não

conseguimos nenhuma imagem que possa dimensionar suas características. Do

cemitério do Bonfim, neste tópico evidenciado, conseguimos alguns poucos registros, já

no momento em que ―agonizava‖. Alguns desses registros apresentamos no primeiro

capítulo. Abaixo, registros de suas ―colunas‖ ou ―obeliscos‖ ao longo da entrada e que

terminava no Cruzeiro, este último ainda sobrevive como um epitáfio do que foi o

cemitério do Bonfim.

número 01, o mais antigo a nós apresentado tem termo de abertura datado de 1953, no entanto, os primeiros registros de sepultamento nesse livro são de 1959. Fomos informados de que estão promovendo restauração de documentos antigos, iniciada no mês de junho de 2014. Portanto muitos destes poderão no futuro trazer novos dados sobre a história da cidade e quem sabe sobre os cemitérios.

Page 154: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

152

Fig.54. Foto: Imagem do antigo Cemitério do Bonfim já em processo de demolição. Datada de 2012. Fonte: Arquivo pessoal de Roberto Ribeiro de Andrade.

Fig.55. Foto: Detalhe adorno no muro do cemitério do Bonfim. Este pedaço do muro e adorno também se pode dizer funciona como epitáfio do cemitério. Essa foto é de 2012, mas segundo verificamos, continua ali em 2014. Acervo da autora

Há que se afirmar, inicialmente, que os referidos cemitérios encontravam-

se, antes dos plebiscitos e demolição, em situação de total abandono por parte do poder

público municipal, sem a devida limpeza nas áreas de acesso aos túmulos (a limpeza

desse cemitério era de responsabilidade dos familiares, uma vez que se tratava de

propriedade particular), bem como os muros e portões danificados, o que favorecia a

presença de vândalos e praticantes de atividades diversas e, segundo a concepção e

discurso dos moradores do entorno, nada condizentes e apropriadas àquele espaço.

Nesse ponto, forçoso destacar que essa situação foi utilizada como principal foco do

discurso pró-demolição daqueles que se posicionaram pública e veementemente em

favor da demolição, muitos destes, moradores do entorno dos cemitérios.

Também, como parte do tratamento dado aos cemitérios, estes não

contavam com serviço de vigilância, nem mesmo com a presença de funcionário que

pudesse dar assistência aos visitantes ou parentes que desejassem visitar os seus mortos.

Tal situação nos leva a enumerar os seguintes questionamentos: seria a atitude de

descuido do poder público, em relação aos cemitérios, uma ação deliberada no intuito

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153

de induzir a população a se posicionar favoravelmente à demolição? A omissão dos

familiares e da população em geral, quer seja nos cuidados com os túmulos de seus

antepassados, quer seja na cobrança junto ao poder público quanto à resolução dos

problemas acima referidos, poderia revelar novas concepções e atitudes diante da

morte?

3.1.4. O discurso do poder público

A discussão que levou ao plebiscito e que se decidiu pela demolição do

cemitério do Bonfim iniciou-se no ano de 2009. Foi marcada pela polêmica entre os

membros do Conselho do Patrimônio Histórico de Bocaiuva/MG (criado na

administração do prefeito Ricardo Afonso Veloso, em seu primeiro mandato

1997/2000) e o referido prefeito que, em seu segundo mandato, num evento em que o

Conselho apresentaria proposta de mobilização popular quanto à discussão, inventário e

preservação do patrimônio histórico da cidade, a partir de um concurso literário,

anuncia que apresentaria à Câmara Municipal projeto de lei que modificaria o plebiscito

acerca da demolição do cemitério do Bonfim, reduzindo de 10% para 5% o percentual

do eleitorado necessário para legitimar a consulta popular. Esse dado se apresenta como

relevante, pois permite aventar a seguinte hipótese: haveria nessa proposta intenção de

não ampliar o debate e a participação popular na questão? A hipótese se reforça, uma

vez que o primeiro plebiscito e demolição ocorridos na gestão de outro prefeito, de

outro grupo político, foram marcados por polêmicas.

A bem da verdade, ou daquilo que se pode perceber como, a polêmica se

deu mais em função de como foi feito o traslado dos restos mortais daqueles que as

famílias não o fizeram, mesmo porque, segundo projeto de lei nº 54/2002, o traslado

seria custeado e efetivado pelo poder público, conforme o art. 3º e que, em seu

parágrafo único, expressa: ―as famílias dos entes sepultados nos dois cemitérios poderão

assistir e auxiliar , no que for possível, nos traslados, sendo que, quando a família não

for identificada, ainda assim a prefeitura realizará o traslado‖. Fato é que denúncias

veiculadas em diversos meios de comunicação locais revelaram restos mortais em meio à terra revolvida por trator (no antigo ―campo santo‖) muitos depositados em sacos

plásticos, de forma aleatória, bem como depositados em lagoa sanitária da cidade.

Obtendo apoio da Câmara, ainda que não contasse com a maioria no

legislativo, o prefeito conseguiu a redução do percentual pretendido. A participação do

Page 156: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

154

bocaiuvense no plebiscito foi de cerca de 6% da população78

e esse dado servirá para

algumas reflexões que faremos oportunamente. Aqui chamamos a atenção para o fato

do prefeito se ‖antecipar‖ na solicitação de alteração da lei e redução do percentual

necessário para legitimar e legalizar a consulta popular.

Esse é um dado relevante. Contudo, ainda que a parcela da população

participante do plebiscito fosse pequena, uma vez que 94% da população não se

posicionassem (ou seria a não participação no plebiscito um posicionamento?), o

veredicto foi pela demolição do cemitério do Bonfim. O traslado dos restos mortais e

outras ações no sentido da demolição se encerraram entre fins do ano de 2011 e início

de 2012. Também data do início de 2012 as obras de edificação nesse espaço que,

conforme definição do chefe do poder público municipal, o que lhe faculta a lei

nº54/2002, abrigaria um Centro de Saúde, que contaria entre outros com uma UBS –

Unidade Básica de Saúde – denominada Esperança.79

A campanha publicitária

veiculada em rádios locais anunciando tais obras teve como lema: ―A morte dando lugar

à vida‖.

Além dessa emblemática peça publicitária, instiga reflexão e análise a

decisão pela permanência do cruzeiro nesse espaço, conforme apontamos anteriormente.

Em busca de entender o porquê dessa ação, procuramos conhecer o projeto

arquitetônico proposto, entrevistando os idealizadores desse projeto, bem como os

idealizadores da peça publicitária.

Em 2012, em conversa com o chefe de gabinete80

que também respondia

pelo setor de comunicação da prefeitura municipal, este revelou que a ideia de preservar 78

O total de eleitores que participaram do plebiscito referente à demolição do cemitério do Bonfim de

Bocaiuva ocorrido entre os dias 22 e 24/11/09 foram de 6,5% da população. Isso equivale a 2.242 eleitores. Destes contabilizou-se 2120 votos a favor da demolição, 102 contrários e 03 votos nulos. Fonte: Prefeitura Municipal de Bocaiuva. Vale ressalvar que em relação ao plebiscito referente à demolição do cemitério da saudade não foram encontrados nenhum dado na prefeitura municipal ou na câmara municipal. 79

Como parte das obras do que a administração municipal denominou de ―centro viva a vida‖ foi inaugurada no dia 18/06/14, no antigo espaço do cemitério do Bonfim, uma unidade básica de saúde – UBS. O cruzeiro ali permanece, bem como preservaram o muro lateral e nele o ornamento que destacamos na figura. 80

Tentamos, durante todo esse período, falar diretamente com o prefeito que nunca se negou a conceder-

nos entrevista, no entanto, esta não se concretizou por imprevistos de agenda. Por fim, ressaltamos aqui dois esclarecimentos. O primeiro dele é que o responsável pelas informações que destacamos atualmente ocupa o cargo de assessor de comunicação da prefeitura municipal. O segundo esclarecimento diz respeito ao discurso do prefeito por ocasião da inauguração da UBS a que referimos no dia 18/06/2014, em que ele reforça a informação, enfatizando as expressões ―centro viva a vida‖, e ―a morte dando lugar à vida‖. Nesse discurso que presenciamos, historia o processo de demolição do cemitério como sendo um acolhimento da solicitação dos moradores do entorno e resultado de uma consulta popular, finalizando com a afirmação de que a retirada e traslado dos restos mortais ali sepultados foram feitos de modo

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155

o cruzeiro partiu do prefeito municipal Ricardo Afonso Veloso, que pretendia ali

construir uma capela. Ressalta o interlocutor que a ideia é preservar a memória daquele

espaço como tendo sido um ―campo santo‖. Ou seja, preservar a memória de um espaço

simbólico – o cemitério, por meio de um símbolo: o cruzeiro. Quanto ao lema da

campanha publicitária ―a morte dando lugar à vida‖, também seria criação do referido

prefeito e acrescenta que ―já que o lema da administração é ―Trabalho pela vida‖, nada

mais oportuno que a ideia ‗A morte dando lugar à vida‘. Foi essa a associação pensada

pelo prefeito‖, afirma.

Frente a essas ponderações, questionamos: a manutenção do cruzeiro e a

ideia de ali se monumentalizar a memória do que fora o cemitério poderiam ser

entendidos como revelação de um ―conflito de imaginários‖? Para tal inferência

recorremos a Maffesoli (2001, p. 110) que diz: ―o imaginário é uma força social de

ordem espiritual, uma construção mental que se mantém ambígua, perceptível, mas não

quantificável‖.

Esse conflito se daria, como imaginário, entre aqueles que se posicionaram

em favor da demolição e os que estiveram contrários ou ainda entre a ―racionalidade‖

representada pelo poder público, em nome do progresso, dos interesses econômicos ou

do jogo de poder e a ―ordem espiritual‖ de que se constitui o imaginário dos homens

que estão à frente do poder, notadamente da pessoa do prefeito? A peça publicitária

seria um ―discurso instrumental‖ a fim de reforçar a demolição como a melhor opção ou

ação acertada da administração que ―livrou a população de um espaço perigoso já que

abrigava vândalos, malfeitores, praticantes de desvios morais e religiosos‖ e oferta

melhorias nas condições de saúde e, assim, de possibilidade de vida? Ou seria a

tentativa de ―apaziguar um imaginário em conflito‖? Estaria em questão o que Michel

Maffesoli (2001) chama de ―tecnologias do imaginário‖?

Referindo-se à capacidade dos meios de comunicação e mídias em geral de

criar e perpetuar ou transformar imaginários, o autor é categórico:

O criador, mesmo na publicidade, só é criador na medida em que consegue captar o que circula na sociedade. Ele precisa corresponder a uma atmosfera. O criador dá forma ao que existe de maneira informal ou disforme [...] Portanto, as tecnologias do imaginário bebem em fontes imaginárias para alimentar o imaginário (MAFFESOLI, 2001, p. 81).

criterioso e respeitoso quanto à memória dos mortos. Entendemos essa ênfase, também, como um reflexo do ―conflito de imaginários‖ que postulamos no texto.

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156

Talvez não seja possível alcançar uma resposta objetiva para o

questionamento acima, já que, em se tratando de uma ―aura‖, como aponta Mafessoli, o

que resta, por fim, é identificar os discursos e imaginários que envolvem a temática. No

tópico a seguir, apresentaremos os discursos de bocaiuvenses acerca da presença do

cruzeiro no ―novo espaço‖ criado e do ato simbólico ali efetivado em 02/11/12, dia de

finados.

Acreditamos que tais discursos, além de revelar o imaginário em torno da

morte, dos cemitérios e do processo de demolição, possam revelar também razões

conscientes e inconscientes, do chefe do poder público municipal, em sua dimensão

institucional e pessoal, para a manutenção do cruzeiro e veiculação da peça publicitária

já mencionada. Afinal, ―não apenas a imposição de algo que vem de cima, um impacto,

mas uma relação‖ (MAFFESOLI, 2000, p. 81).

3.1.5 Discursos como materialidade do imaginário: o que pensam os moradores

Na esteira daquilo que Maffesoli chama de tecnologias do imaginário,

optamos por fazer uso de tal recurso a fim de obter, ainda que a partir de uma amostra

pequena, nuances do imaginário coletivo em torno das questões já apontadas. Como já

reportamos, criamos um grupo de contatos em rede social (facebook) e enviamos por e-

mail a imagem destacada na página 133, e cada um deveria escrever suas impressões

sobre a imagem. As respostas nos foram enviadas também via e-mails.

Intitulando o texto que produziu de ―Aqui jaz um cemitério‖, o professor de

filosofia, W.C., de 25 anos de idade, revelou em seu discurso mais que uma crítica à

destruição do cemitério enquanto patrimônio, apontando sa visão de como tal fato

descortina uma realidade e sua preocupação com a forma como temos convivido com as

questões em relação à morte e, por consequência, com a vida. Acrescenta:

Qual o valor que um cemitério tem nessa tal modernidade que vivemos? Valor financeiro nenhum, pois quando falamos em valores, em nossas mentes já aparecem cifrões. Em nome da funcionalidade, da utilidade, do financeiro já não temos argumentos e fica até démodé falar em lembranças, patrimônio histórico, sentimento, amor, ainda mais quando se tem que argumentar em favor da lembrança daqueles que já não estão mais aqui entre nós, pois para a modernidade só é interessante o que funciona, o que é utilitário, aquilo que pode trazer algum bem para a sociedade, e os ―futuros mortos‖ pensam nos já mortos, com medo, como assombração, com nojo dos ossos e dos vermes que

comem os restos mortais, infelizmente, isso é inevitável81

. 81

Entrevistado W.C. Entrevista concedida em 10 de nov. 2012.

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157

E, revelando ser plausível a hipótese levantada neste trabalho de que a

manutenção do cruzeiro tem, para o imaginário coletivo, além de um caráter de

evocação da memória, uma ―tecnologia do imaginário‖ utilizada pelo poder público, o

interlocutor afirma:

A cruz é uma forma de epitáfio do cemitério que os homens encontraram uma espécie de consolo para aqueles que ainda acham um absurdo destruírem um espaço sagrado, histórico, que sempre que era visto servia para lembrarmos que somos seres finitos e que a consciência da própria finitude nos faz sentir mais humanos e solidários com o próximo, mas esses ―valores‖ estão sendo esquecidos

82.

Essa ideia aparece ainda em outros discursos: ―No lugar que foi sepultado

muitas famílias bocaiuvenses, há ainda o apego daqueles que sempre prestaram

homenagens aos que se foram‖83

, ou:

Expostos, mais uma vez, diante do apagamento da memória coletiva dos mortos, agora com o Cemitério do Bonfim. Uma nova obra avança sobre a Cruz, testemunha muda de tantas dores. Dessa forma, ficamos frente a frente com uma nova dor, a dor da destruição, como se nada ali houvesse a ser cultuado no futuro. Para quem vive hoje sabe do significado que o Cemitério tinha na história de Bocaiuva. Querem construir algo de nosso tempo no lugar de outro tempo, como se esse novo pudesse aniquilar o passado em definitivo. Ações como essas são mais fáceis do que modernizar as consciências dos

cidadãos!84

Metaforicamente, o psicólogo R.R.A., 71 anos de idade, autor da

manifestação simbólica no dia de finados, assim respondeu à nossa solicitação,

intitulando o seu discurso de ―A tocha‖:

Como se não fossem paralelos o Céu e a Terra neste local foram enterrados os corpos vestidos pela minha mãe, uma irmã e dois sobrinhos, que não sofreram a profanação proposital da família. Trinta e três paralelepípedos em frente, quatro metros à direita, no Campo Santo do Senhor do Bonfim. No Dia de Finados, uma vela fez um pequeno ponto de luz, por algum tempo, como um pirilampo de pequena. Uma tocha, conduzida da casa dos festeiros, Família Andrade, na procissão do Mastro do Senhor do Bom Fim, do ano passado, ali foi plantada neste Grande Presente de agora. O eterno não tem

começo e não tem fim, para os que creem e não negociam a sua crença‖85

. 82

Idem. 83

Entrevistado J.M. Entrevista concedida em 12 de nov. 2012. 84

Entrevistado A.G. Entrevista concedida em 13 de nov. 2012. 85

Registramos que ainda que em rede social, portanto aberto ao público, buscamos e fomos autorizados pelo autor a incluir nesta pesquisa as informações e as imagens.

Page 160: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

158

Seu texto confirma sua ação e ambos materializam seu discurso e a hipótese

aqui apresentada de que, para além de interesses e conjecturas ―racionais‖, há o

imaginário. Importante destacar que o nosso interlocutor continuou a efetivar atos

simbólicos no referido espaço. No ano de 2013, no dia de finados, voltou a depositar

flores e velas no espaço do antigo cemitério, fotografou esse ato e divulgou em sua

página na rede social facebook de onde extraímos a fotografia abaixo.86

Na fotografia

imprimiu a seguinte legenda:

Fig.56. Foto: Imagem do espaço do antigo cemitério do Bonfim. Datada de 2013. Do arquivo pessoal de Roberto Ribeiro de Andrade. ―Dia de Finados – Cemitério Bom Fim – Bocaiuva/MG – Maria Augusta Ribeiro de Andrade (Dona Mariinha) Faleceu aos 33 anos. Gerou 14 filhos ―

Veem-se, em meio ao amontoado de resíduos de construção, ao fundo,

flores e uma vela envolta num recipiente descartável de refrigerante. Em primeiro plano

um arbusto, conhecido como espirradeira que o autor da ação afirma ter plantado ali em

2012 para demarcar o lugar que teria abrigado o túmulo de sua mãe.

Também nosso interlocutor é autor de vídeos que compartilha no youtube (Profanação com hora marcada.wmv em 17/02/2011

https://www.youtube.com/watch?v=nON6qfimQBo, e Finados em Bocaiuva.wmv em

02/11/2011 https://www.youtube.com/watch?v=Z3rQl_3-IQ8, ) em que, usando de

texto e imagens, eterniza a memória do que foi aquele espaço. Antes do plebiscito, que

definiu pela desativação (ainda que este já estivesse desativado, é esse o termo usado

86

Entrevistado R.R.A. Entrevista concedida em 12 de nov. 2012.

Page 161: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

159

pelo poder público para referir-se à demolição e nova utilização do espaço que foi o

cemitério) utilizou-se de um jornal que editava e circulava na cidade para provocar a

reflexão e discussão do processo, obviamente que deixando entrever seu

posicionamento.

Transcrevemos alguns trechos que acreditamos consolidar o discurso desse

bocaiuvense em defesa assumida da preservação do cemitério. No ―O Jornal de Bolso‖

do dia 09 de setembro de 2009, publicou como manchete ―Conselho busca salvar a

memória da cidade‖ e chama de inusitado o convite ao conselho, feito pelo prefeito,

para apresentar numa reunião que pretendia destruir um patrimônio, um projeto de

valorização do patrimônio87

. No referido jornal, na data de 25 de setembro de 2009, usa

a imagem dos portões do cemitério e no editorial intitulado ―O passageiro do Infinito‖,

em que, citando nomes da psicologia e referindo-se à memoria como parte do humano,

sugere reflexão sobre a preservação do cemitério.

No jornal de 20 de dezembro noticia ―6,5% dos eleitores autorizaram o

desmanche do cemitério‖. Foi uma das poucas vozes, além dos membros do conselho, a

se posicionar publicamente contra a demolição, utilizando-se de mídia nas redes sociais

(facebook, youtube) e do referido jornal que editava, no intuito de arrebanhar aliados e,

quem sabe, mudar o destino do cemitério do Bonfim. Mais eficiente, no entanto, foi a

campanha encetada por alguns moradores do entorno do cemitério que, contando com o

apoio do poder público, como já dissemos, desejosos de implementar ―projetos de

modernização e progresso‖ na cidade, bem como contribui também a omissão da grande

maioria da população quanto ao plebiscito, vaticinou-se, literalmente, o ―tombamento‖

do cemitério do Bonfim.

Tão instigante quanto buscar compreender o(s) porquê(s) da decisão do

prefeito municipal de preservar o cruzeiro no espaço do antigo cemitério, revela-se o ato

e o texto acima do entrevistado R.R.A. No dia de Finados de 2012, para além do gesto

de ―devoção‖ às almas de parentes ali enterrados, este se posiciona em relação à

demolição do cemitério.

87

O projeto tratava-se de um concurso literário promovido pelo Conselho Deliberativo do Patrimônio

Artístico Cultural de Bocaiuva – CODEPAC – em que se objetivava inventariar o patrimônio da cidade a partir das concepções da própria população do que seria o patrimônio da cidade. O conselho preparou cartilhas e dvds que, além de informar, pretendia sensibilizar os bocaiuvenses a refletirem sobre a cidade e seu patrimônio e, obviamente, também sensibilizá-los a participarem do concurso. Na reunião houve embates entre os membros do conselho e os representantes do poder público e dos moradores que defendiam a demolição. O jornal referido detalha esse acontecimento.

Page 162: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

160

A museóloga G.S, 30 anos, em seu discurso, reafirmou a ideia de Maffesoli

de que, em relação ao imaginário, não há uma imposição, mas uma relação, quando

arremata:

A imagem me remete ao pensamento de que estamos sempre em construção

ou reconstrução, seja de nossos valores, nossos ideais, nossos sonhos e mesmo de nossas memórias. Com o tempo, a memória do que foi aquele espaço vai sendo esquecida uma vez que o novo sempre remete à ideia de que o progresso está próximo ou chegando. No entanto, não creio que apagar os vestígios de um tempo, de um local, de uma população seja sinônimo de

avanço e progresso, uma vez que a comunidade ao redor possa se tornar um não visitante ou um não ocupante desse novo lugar que se cria como forma de resistência à perda de suas memórias afetivas. A imagem me faz pensar sobre o que representa as memórias afetivas e de como elas estão ligadas aos

espaços, às pessoas e ao tempo. Esta imagem deixa claro para mim, que apesar das mudanças ocorridas naquele entorno, a simbologia do que representou em determinado momento aquele espaço, fala mais alto para o

agente que deixou naquele lugar uma referência de memória88

.

A partir deste depoimento podemos perceber que, mesmo aquele espaço

perdendo sua função social, de cemitério, ele não perde a função afetiva, lugar onde foi

enterrado um ente querido. A questão de significar, de valorizar, de esquecer, está

inteiramente ligada ao consciente e inconsciente de quem preserva ou esquece suas

memórias e de suas experiências e vivências cotidianas. Ou seja, é o imaginário sendo

revelado pelo discurso e, aqui, tanto do agente /autor do ato simbólico quanto da

entrevistada.

Pesquisadora da temática sobre cemitérios, M.G.A. foi uma de nossas

entrevistadas, mesmo que não seja uma bocaiuvense, suas impressões sobre a imagem

contribuíram para a nossa análise.

Em meio a um canteiro de obras, ergue-se um cruzeiro. O cruzeiro é um símbolo de proteção. Não se sabe, entretanto, se está ali para proteger o que se constrói ou o que foi destruído. É um elemento de interseção entre o futuro e o passado. Elemento de interrogação, pois encontra-se deslocado do cenário. Cenário que revela uma certa desolação. As flores e o suporte para vela fincadas no chão representam uma última homenagem a uma memória

desconhecida. Memória, lembranças, esquecimento, fragmentos.89

Destoando dos discursos aqui analisados, instiga o ponto de vista de M.L. C,

64 anos. Para a professora, a materialidade do cemitério em nada interferiria no modo

como as pessoas lidam com a morte, com a memória daqueles que ali teriam sido

sepultados. No entanto, como aponta Juremir Machado da Silva (2003) ―o imaginário,

88 Entrevistado G.K.S. Entrevista concedida em 14 de nov. 2012.

89 Entrevistado M.G.A. Entrevista concedida em 14 de nov. 2012.

Page 163: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

161

tribal, retira o indivíduo da solidão para inseri-lo numa atmosfera de partilha.[...] A

autonomia individual, porém, não desaparece, pois o imaginário não é um

determinismo‖. Eis o discurso da professora:

A cruz representa o Cristo que se espalha por toda a parte com ou sem símbolo. Para mim o cemitério ser demolido ou não nada representa. Nele nada se encontra nem corpo nem espirito, Deus já disse Vieste do pó e ao pó voltarás, portanto o corpo faz parte do universo e o espirito, a alma, essa se encontra no infinito povoado por Deus. Devemos sim respeitar e honrar os mortos com nossas orações e atos, mas para isso não precisa haver um local e uma data específica. Para mim os mortos vivem dentro do meu pensamento e

minhas atitudes devem respeitar e honrar sua presença.90

Por fim, revelam a inquietação quanto à demolição dos cemitérios, os

discursos das jovens estudantes: ―vejo um lugar estranho, um amontoado de materiais

de construção, que logo se transformará em uma obra pública, aonde as pessoas aos

poucos irá esquecendo a dar valor as coisas antigas‖ 91

, ou ―para mim é triste, ver que

uma parte com tamanha importância da nossa cidade tenha se perdido, que a cada dia

que passa, a gente perca um pouco mais da nossa história, da nossa cultura, da nossa

identidade‖. 92

Já dissemos que a pesquisa apenas aponta questões a serem refletidas e,

portanto, as considerações aqui são parciais. Contudo, diante dos fatos expostos e

analisados, podemos inferir que, como afirma Mafessoli, deve se reconhecer o ―aspecto

impalpável dessa aura que é o imaginário. Este encarna uma complexidade transversal. Atravessa todos os domínios da vida e concilia o que aparentemente é inconciliável‖ (MAFESSOLI apud SILVA, 2001, p.78). Nessa perspectiva, talvez se inclua a ação do

prefeito municipal, ao definir pela preservação de um símbolo – o cruzeiro, apesar de

atuar firmemente em prol da demolição do cemitério que abrigava esse símbolo

religioso.

O mesmo se pode dizer dos discursos dos sujeitos da pesquisa, uma amostra

pequena, mas que, em se tratando de pessoas de diferentes idades e níveis de

escolaridade, permite perceber certo pesar diante da demolição do cemitério, tanto o

considerando como campo santo93

, espaço sagrado, quanto como um patrimônio que

refletia, de certo modo, uma memória coletiva.

90

Entrevistado M.L.C. Entrevista concedida em 17 de nov. 2012. 91

Entrevistado R.A.S.Entrevista concedida em 17 de nov. 2012. 92

Entrevistado I.N.Entrevista concedida em 17 de nov. 2012. 93

A expressão campos santos podem ser interpretadas em diferentes sentidos. Como exemplo pode ser um

termo da Igreja Medieval para os cemitérios, considerando que naqueles lugares somente eram enterradas pessoas consideradas de conduta verdadeiramente boa e de fé para os conceitos religiosos da época. (Cf. SANTO AGOSTINHO. A verdadeira religião. O cuidado devido aos mortos. São Paulo: Paulus, 2004).

Page 164: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

162

Nos tópicos seguintes, apontaremos como o lugar da sepultura, da ―última

morada‖ ainda tem importância para os imaginários e as representações sociais do

bocaiuvense e como estes reproduzem valores, crenças, sensibilidades e por que não

dizer, ora desejo de imortalidade ora ―necessidade de distinção social‖.

3.2 Cemitérios: o solo sagrado da existência

Muito já se disse sobre a origem dos cemitérios e como estes carregam em

si as marcas da cultura de cada povo, em diferentes momentos históricos. Estes

estiveram e estão presentes em todo o lugar por onde o homem tenha passado. É objeto

de estudo nas mais diversas áreas do conhecimento e se podemos chamá-lo de ―museu a

céu aberto‖, acreditamos que não apenas em referência à ―arte e à culturas consagradas‖

que se abrigam em cemitérios imponentes dos oitocentos, na Europa, no Brasil ou em

outra parte do mundo.

Talvez se possa estender esta adjetivação a todo e qualquer ―sítio

necrólogo‖, uma vez que traduzem as sensibilidades, a engenhosidade e a criação do

homem que, seja na pedra de mármore ou granitos nobres, ou nos artefatos de alvenaria

comuns, no bronze e outros materiais de excelência das estatuarias, fotografias, bustos e

demais ornamentos, ou nas flores singelas que ali se cultiva e talvez até naqueles

túmulos em que nada disso se verifica, presentes estão as marcas da cultura, a

materialidade desta. Não é essa uma possível definição de museu: lugar que expressa,

resguarda e pereniza a memória, a cultura e assim a história?

É comum entre os estudiosos sobre morte e cemitérios a ideia de que a ―cidade dos mortos‖ é uma representação da cidade dos vivos, dos desejos e valores que

estes buscam perpetuar. Não por acaso o pesquisador Renato Cymbalista intitulou o seu

livro, resultado de pesquisa de mestrado sobre cemitérios paulistas, com o sugestivo ―Cidade dos vivos: arquitetura e atitudes perante a morte nos cemitérios do estado de Temos ainda ―O termo Campo Santo foi adotado no Brasil para designar o local de sepultamento dos mortos em alusão a forma de sepultamento utilizada na Itália, campos localizados além da fronteira urbana, onde os mortos habitavam longe dos vivos. Assim, como recorda João José Reis (2004, p. 295), este deveria ser o local defendido pelos médicos sanitaristas para o enterro dos mortos ao invés dos templos católicos. O termo não tem a conotação religiosa ou mesmo católica, que muita vezes pode soar na pronúncia. Campo Santo, no Brasil é apenas um sinônimo de cemitério e não uma designação de local religioso‖. SOUZA (2010,p.16). Fronteiras póstumas: a morte e as distinções sociais no Cemitério Santo Antônio em Campo Grande. / Fabio William de Souza. – Dourados, MS: UFGD, 2010. 141f.

Page 165: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

163

São Paulo‖. Assim, como um museu ou como representação da cidade dos vivos, o

cemitério é espaço que se altera, manipula-se e, por ser assim, é também espaço de

resistência.

A primeira resistência que se detecta no cemitério é em relação à própria

finitude. Já nos referimos, nos capítulos anteriores, à esperança escatológica que se

manifesta em diferentes tempos e sob diferentes formas. Ou seja, tanto quando no

ocidente cristão se entendia serem os sepultamentos ad sanctus uma ―garantia‖ para a

vida eterna, no paraíso celestial e, para isso, tanto se investia material e espiritualmente,

quanto quando se busca, posteriormente, nos cemitérios convencionais ou a céu aberto,

por meio das inscrições tumulárias, exprimir a crença na imortalidade. Partindo da ideia

de Norbert Elias, que defendeu como importante é o estudo sobre como o homem

ritualizou a morte durante sua história, afirmando ser assim, por meio deles, possível

compreender o próprio processo da civilização, o pesquisador Fábio Wiliam de Souza,

constata:

A busca de uma solução para o problema da morte foi efetuada na História e não surgiu do dia para a noite. A própria concepção do Além tem a função social de dar esperanças aos vivos para um mistério que nem os séculos da luzes conseguiram explicar: o que acontece quando a vida cessar em nós?(SOUZA, 2010. p135).

Se uma resposta objetiva a essa angústia e indagação ―eterna‖ não é

possível, o homem resiste à ideia da finitude, acreditando e expressando, inclusive nos

cemitérios, a crença na ―existência eterna‖. Ou seja, mediante a materialidade que se

encontra nesses espaços, alimenta-se a crença de que o ―fim‖ é uma ilusão. Quem morre

apenas passa a outra dimensão. Não raro essa palavra ―dimensão‖ é empregada como

referência a uma ―outra vida‖. Podemos avaliar essa proposição a partir dos epitáfios

encontrados nos túmulos do cemitério Parque Santa Lúcia, em Bocaiuva/MG,

analisados no primeiro capítulo.

Vale lembrar que, originalmente, o projeto de cemitério parque pretendia

impedir edificações e outras formas de monumentalização da vida/memória do

individuo que já não mais vive. Contudo, nestes, além do conteúdo escatológico que

promete a ressurreição dos justos – a parusia, vê-se a promessa da eternidade do morto,

enquanto indivíduo, na memória daqueles que ficam. É o que podemos interpretar nas

intervenções e, especialmente, nas inscrições presentes no cemitério Parque Santa

Lúcia. Para vislumbrar uma análise, entretanto, é preciso conhecer um pouco da história

do ―repositório de lembranças‖ que é o Santa Lúcia.

Page 166: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

164 3.2.1 Cemitério Parque Santa Lúcia em Bocaiuva/MG – transformações e permanências

Inicialmente, o cemitério Parque Santa Lúcia não figurava como fonte de

maior relevância na nossa proposta de pesquisa. Como salientamos no primeiro

capítulo, imperava a ideia de buscar interpretar e, pretensamente, entender a posição dos

moradores de Bocaiuva/MG sobre a demolição dos cemitérios antigos da cidade.

As leituras de referência, as fontes documentais de épocas tão ―distantes‖,

os desdobramentos da história oral e o próprio cemitério em sua materialidade e as

histórias que revelou, para citar alguns motivos, nos fizeram ampliar a visão sobre um

estudo que considerasse imaginários e representações sobre os cemitérios e, fatalmente,

sobre a morte. Daí a reconsideração desse espaço e a importância que este passou a

ocupar nessa pesquisa.

Foi possível perceber que, independente do modelo arquitetônico/material

que quiseram impor os seus idealizadores, este acabou por ganhar a ―feição‖ que é

construída pelo imaginário/desejo coletivo. Este último, como já dissemos, impõe-se

como um ―poder invisível‖ e ―incontrolável‖ porque não é só expressão da razão. Para

explicitarmos tal inferência, resta traçar, ainda que em linhas gerais, um pouco da

história desse cemitério.

Para essa tarefa, não nos fixamos em dados cartoriais ou da administração

pública, responsável pela criação, manutenção e administração do cemitério, até porque

os arquivos municipais se revelaram incompletos e desorganizados*. Entendemos, por

outro lado, que essas fontes não responderiam a contento as nossas indagações, que não

se enquadram num levantamento objetivo e estatístico pura e simplesmente, mas,

parafraseando Michel Mafessoli (2001), na ―captura da ―aura‖ que envolve o cemitério

e os imaginários que este produz e reproduz.

Por isso, nosso interesse em entrevistar o engenheiro responsável pelo

projeto e execução das obras do cemitério, uma vez que o prefeito que iniciou os

trabalhos já é falecido. Interessa aqui registrar que o engenheiro, à época contratado

pela prefeitura municipal, pouco tempo depois veio a ser prefeito da cidade, portanto, de

modo indireto, ―gestor‖ do cemitério. Atualmente, é funcionário dos quadros da

Page 167: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

165

administração municipal, responsável pelo setor de projetos urbanísticos, fiscalização

das obras de infraestrutura e afins. Nossa primeira indagação foi quanto à razão da

construção do cemitério e, em especial, a razão da escolha do local. O interlocutor assim

explica:

Nós já vínhamos numa situação de dois cemitérios com superlotação. Era uma situação bem degradante, principalmente no momento de sepultar os entes queridos das pessoas, uma vez que por diversas vezes ao abrir a sepultura você acabava encontrando os restos mortais de outras pessoas, então tomou-se a decisão, pelo ex- prefeito Wandick Dumont, da construção de um novo cemitério na cidade de Bocaiuva, isso por volta de 1988.Ele entregou esse local que seria o parque santa Lucia nas proximidades do bairro cariúna, acima do parque municipal, onde hoje funciona o parque de exposição.

E prossegue sua explanação, apontando dados alusivos ao processo de

construção do cemitério que, como se pode perceber nas entrelinhas do discurso do

entrevistado, foi marcado por interesses políticos e imobiliários. Eis o que revela:

Na mudança da administração , quando tomou posse o ex- prefeito Alberto Caldeira, um grupo bastante jovem o qual eu também fui convidado a permanecer como engenheiro contratado pelo município para execução de projetos e estudos da cidade, nós chegamos a conclusão de que o local onde se construiria o cemitério era uma região nobre da cidade, onde nós temos o parque municipal hoje, onde nós temos vários mananciais de água que atende

a cidade, o SAAE94

... naquela parte baixa nós temos poços artesianos no

parque municipal, nas proximidades do matadouro, do outro lado da BR nos terrenos de Seu Neco, e por ficar essa área numa parte mais alta tomou-se a decisão por uma precaução até de proteção do lençol freático e dos mananciais de agua potável da cidade. Nós então tomamos a decisão de levar para uma áreamenos nobre da cidade, menos nobre no sentido,menos residencial, levamos para as proximidades do distrito industrial, tomamos também a decisão de construir os túmulos no modelo de túmulos perpétuos que é quando você tem a concretagem do fundo da lápide e com aproveitamento maior com até quatro corpos para serem sepultados ali. Na aquisição podendo ser adquirido pela família do morto,ou como nós temos muitos problemas sociais na cidade ainda, muitas famílias não tem condição,mas essas famílias recebem de graça só que numa lápide comum, vão sendo aproveitados em todos os níveis. E também lá nos estávamos mais distantes, dessa situação porque já é uma área mais industrial, menos residencial, de cometer alguns erros de agressões ao meio ambiente.

Aqui é preciso destacar, além de juízo de valor sobre o grupo que governava

a cidade, no momento da construção do cemitério, a aparente necessidade de justificar a

transferência do local em que seria construído o cemitério como sendo por razões

puramente técnicas. Não entraremos no mérito das questões relativas a fatores

ambientais por não dispormos de estudos e dados que atestem tal argumento, nem é esse

94

Trata-se de uma autarquia municipal que cuida do serviço de água e esgoto. A sigla significa Serviço Autônomo de Água e Esgoto.

Page 168: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

166

o nosso foco, mas não podemos deixar de pontuar que a escolha do local do cemitério se

insere numa concepção sobre a morte e o destino do corpo morto.

Já nos reportamos, no início deste capítulo, a duas premissas que aqui

devemos retomar. A primeira diz respeito a uma mentalidade típica do ocidente cristão

do fim do século XX, acentuadamente, como afirma Ariès, em que se busca banir a

morte do cotidiano, quando se quer fugir dessa realidade que assombra a todos.

Resultado da medicalização da morte e do discurso higienista típico do

desenvolvimento das sociedades industriais, marcadas pelo individualismo e crença

desmedida no progresso, o banimento da morte significou o afastamento dos cemitérios

do perímetro urbano, ainda mais das áreas centrais ou consideradas ―nobres‖ das

cidades.

Bocaiuva, pequena cidade do norte de Minas, não foge à regra. Tanto a

proposta inicial quanto o lugar definitivo em que foi o cemitério construído ficava

afastado da cidade95

e, assim, dos ―olhos‖ de todos. A outra ponderação se faz em

relação ao conceito de área nobre em relação aos mananciais de água.

O atual cemitério fica pouco acima e bem próximo a dois córregos que

passam dentro da cidade, denominados Macaúba e Angicos96

e que são afluentes do rio

Jequitaí. A distância do cemitério em relação a estes mananciais é de cerca de 600 m,

conforme nos informou um membro do CODEMA. Este fato nos faz questionar o

discurso de definição técnica. É senso comum na cidade que a mudança se deveu a

pressões de proprietários de terrenos na área inicialmente pretendida para edificação do

cemitério que não o queriam por perto, uma vez que poderia significar desvalorização

das propriedades. Não encontramos nenhum documento que indique uma ação formal

ou movimento mais organizado desses proprietários nesse sentido, talvez porque, em Bocaiuva, os ―arranjos políticos‖ de bastidores sejam suficientes para se garantir os

interesses de quem dispõe de prestígio social, além do poder econômico.

95

Utilizamos o verbo no pretérito – ficavam – porque tanto na área em que se pensou construir como na área em que construíram o cemitério, nos dias atuais, já se vê a expansão da urbanização e inclusive de casas residenciais. 96

Estes dois córregos estão bem próximos um do outro, cerca de 80 m um do outro. Ambos eram em fins

da década de 70, lugar de divertimento da garotada. Hoje recebem o esgoto da cidade e estão em situação caótica do ponto de vista ambiental. Há mais de quatro anos elaborados projetos com financiamento federal e gerenciamento da Codevasf para recuperação dos córregos. As obras foram iniciadas no sentido de despoluí-los, mas estas se encontram paralisadas. Ainda que o cemitério seja caracterizado por enterramento em gavetas, fica o questionamento se não haveria novo risco de contaminação destes córregos caso venham a ser despoluídos?

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167

De qualquer modo, próximo ao distrito industrial, como pretende o discurso

do engenheiro que projetou o cemitério97

, o cemitério foi e continua ao alcance dos

olhos de muitos bocaiuvenses, dos diversos bairros da cidade, que por ali passam,

diariamente, em direção ao local de trabalho. Também é crescente o número de

empresas de pequeno porte como de pré-moldados, oficinas mecânicas, serralherias que

por ali se instalaram nos últimos 10 anos.

Como se vê, a cidade dos vivos não se desvincula totalmente das cidades

dos mortos e a própria expansão e, por que não, o progresso, empurra a cidade dos vivos

para a cidade dos mortos. E isso não é novidade, nem privilégio de Bocaiuva/MG, onde

vemos a expansão, inclusive de casas residenciais, nas proximidades do cemitério

Parque Santa Lúcia. Basta nos reportarmos ao processo de urbanização e

desenvolvimento da ―racionalização da morte‖ na Europa e, na França em especial, com

as ações de ―saneamento e modernização‖ iniciada, ainda no século XVIII, quando o Parlamento de Paris determina, em 1737, a avaliação científica dos problemas de

salubridade e dos enterramentos na cidade. Essas concepções e ações reguladoras se

ampliam e, como nos informa Almeida:

no governo de Napoleão Bonaparte se regulamentou a questão dos cemitérios e normalizou o culto aos mortos. A Lei de 12 de junho de 1804 (Decreto do dia 23 Prairial Ano XII) proibia os sepultamentos em qualquer edifício religioso, independentemente de credo; em qualquer ambiente fechado ou que estivesse no espaço urbano. As normas de higiene eram claras e rígidas e seriam fiscalizadas pelas autoridades civis. Este decreto deu origem ao Cemitério PèreLachaise, o mais famoso e referência para maioria dos cemitérios que surgem no século XIX (ALMEIDA,s/d e s/p.).

É sabido que o Cemitério Père Lachaise é considerado um museu a céu

aberto e se tornou um ponto de visitação de turistas que visitam a França e até mesmo

de franceses que buscam ali lazer, sossego ou reafirmar laços como o passado, como

sugere o trabalho etnográfico de Colette Pétonnet (2008). Neste, a autora descreve o seu

método de pesquisa denominado de observação flutuante, aplicado no Père Lachaise.

Eis o que diz:

O método da ―observação flutuante‖ consiste em permanecer disponível, em não mobilizar a atenção sobre um objeto preciso. Colocado à prova no cemitério do Père-Lachaise, ele nos permitiu descobrir, em alguns dias, um uso insuspeitado do cemitério parisiense e a existência de verdadeiros

97

Reafirmamos o crescimento de moradias nessa área. Daí acreditarmos que a definição como distrito industrial pode não ser mais adequada. A população se refere à região como ―perto da Rima‖ ou ―perto do cemitério.‖

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168

profissionais da lembrança. Mas estes só oferecem o seu saber ao acaso do encontro (PETONNET, 2008 p. 110).

Com isso, queremos recuperar ou reafirmar que o cemitério, como lugar de

memória, é um patrimônio que mereceria mais atenção por parte da sociedade, afinal,

nele se pode visualizar e interpretar a humanidade em seu movimento. É vida que pulsa

nos cemitérios. Tanto é possível tal afirmação quando descobrimos qual a razão do

nome do cemitério98

–―Santa Lúcia‖ uma vez que não se trata de santa tão cultuada e

popular na cidade.

Nem de longe imaginávamos tratar-se de uma homenagem à falecida esposa

do prefeito que iniciou os trabalhos no sentido de dar a Bocaiuva/MG um novo

cemitério. Acreditamos que poucos bocaiuvenses o saibam. Eis aí a vida ou a lembrança

de uma vida que pisou no ―solo sagrado da terra do senhor do Bonfim‖99

. Não foi a

uma santa de origem europeia que pretenderam fazer memória.

As considerações que tecemos, nesse sentido, se devem a alguns fatores. O

primeiro é que, como pretendemos evidenciar ao longo desse trabalho, o cemitério

Parque Santa Lúcia, assim como o crematório Municipal em São Paulo, referenciado no

primeiro capítulo, para ficarmos nesses dois exemplos, são testemunhos de que os

cemitérios são, além de lugares de memória, construções do/pelo imaginário coletivo.

Mesmo as imposições de modelos e intenções de se conduzir as práticas e rituais em

torno dos cemitérios e da morte esbarram naquilo que é força intrínseca da mentalidade

que se altera, mas não se destitui plenamente de valores, algo que espirituais.

Nas diversas incursões que fizemos pelo cemitério, fotografando túmulos,

quantificando-os, registrando informações que julgamos sugestivas para refletir nessa

pesquisa, encontramos com pessoas, presenciamos atos de devoção aos entes ali

sepultados, cuidados com a materialidade do túmulo, orações junto a estes e ouvimos

muitas histórias. Não foram entrevistas100

, mas conversas casuais que, no entanto,

mostraram-se tão ricas e uma fonte ímpar para análise que aqui sintetizaremos, num

exercício de memória, afinal, essa é, também uma perspectiva desta pesquisa.

98 Vale lembrar que os dois cemitérios antigos da cidade tinham nomes mais expressivos da religiosidade e das crenças em relação à morte: Cemitério da Saudade e Cemitério do Bonfim.

99 Utilizamos dessa expressão usada por muitos bocaiuvenses para referirem-se a sua cidade, apenas para reforçar a mentalidade predominante.

100

Não as consideramos entrevistas no sentido de que não foram buscadas, agendadas, gravadas. Preferimos vinculá-las ao que Colette Pétonne denominou de ―Observação flutuante‖.

Page 171: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

169

Mencionamos, no primeiro capítulo, que o cemitério Parque Santa Lúcia é

organizado em quadras. Até o presente momento são seis, no total. A quadra de número

1101

foi a primeira a ser utilizada no início de 1991, quando ocorreram os primeiros

sepultamentos no recém ―inaugurado‖ cemitério. Fica obviamente na ―entrada‖ do

cemitério. Estabeleceu-se que seria uma quadra pública, ou seja, não haveria venda de

terrenos nessa quadra e ali seriam sepultados os ―menos favorecidos.‖

Chamou-nos atenção, no entanto, o sepultamento de conhecido fazendeiro

da cidade nessa quadra, logo na primeira ―rua‖. A razão desse fato nos foi explicada por

um funcionário municipal que à época da fundação foi destacado para ―administrar‖ as

questões do cemitério na cidade. Segundo nos informou, o fazendeiro reservou um lugar

para sua última morada e sem pretextos, logo definiu que queria na entrada do

cemitério, em suas palavras ―pra que todos que ali passassem, lembrassem dele‖.

Esse fato nos permite aventar as seguintes hipóteses: por um lado, pode ser

que o fazendeiro quisesse que os passantes pelo túmulo se lembrassem dele em suas

orações, quando da visita ao cemitério, algo que remeta aos enterramentos no solo

sagrado da igreja em que os vivos, ali em comunhão com os seus, estariam a lembrar os

seus mortos e em oração pela suas almas ,colaborando para o alcance de um bom lugar

no Além. Por outro lado, pode ter sido por uma razão bem mais ―terrena‖ – a

necessidade de ser lembrado por todos como alguém que, em vida, teve poder e

prestígio.

A resposta não saberemos, mas é certo que o túmulo desse fazendeiro, além

de estar logo na entrada, chama a atenção também por ser um dos poucos túmulos com

edificação, epitáfio e clara materialização de cuidados em sua estrutura, embora não

seja suntuoso. Há ajardinamento, uma placa com epitáfio e fotografia típica (em

porcelana?) dele e da esposa também falecida. Talvez isso também, ainda que

inconsciente, justificasse a escolha do fazendeiro – numa quadra pública, o seu túmulo

seria ímpar e, como o foi na vida, em seu túmulo ostentaria seu outrora poder

econômico.

No quadro abaixo, alguns dados e foto panorâmica nos dão uma visão atual

da quadra 1. Montamos esse quadro e inserimos as fotografias não simplesmente com o

101

Para se ter ideia da irregularidade dos registros nestes livros, que estão no próprio cemitério, eles são identificados por numeração feita na capa, alguns utilizando ―corretivo‖- produto que se utiliza para ―corrigir‖ erro à tinta. São registros feitos sem muito rigor por funcionários que acumulam diferentes tarefas.

Page 172: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

170

intuito de apresentar um recurso de pesquisa quantitativa ou ilustrar o nosso trabalho,

mas com vistas a utilizar de tais recursos para estabelecer comparações no futuro. De

certo modo, pretendemos produzir um ―documento‖ para que, em futuras pesquisas

nesse campo, em Bocaiuva/MG, identifiquem-se mudanças e permanências da

mentalidade e do imaginário coletivo sobre a morte e sobre a vida que se materializam

no cemitério. Estes são, sem dúvida, um suporte de memória coletiva e representam uma

importante fonte de pesquisa.

Tabela2 Quadra 1 Pública Total de túmulos (denominação encontrada nas 289 placas de identificação, significando cada

sepultura)

Total de edificações (leia-se com estrutura de 05 identificação em outro material e epitáfios)

Total de túmulos ajardinados e com placa de 36 identificação padrão

Total de túmulo com edificação sem 01 ajardinamento

Total de túmulos com placa padrão e ornamento 02 artificial sem outros elementos

Total de túmulos sem ajardinamento e apenas 245 com placas de identificação padrão

Vimos que cerca de 85% das sepulturas não apresentam nenhum tipo de ―investimento‖ da família na individualização ou na perenização da memória individual

dos sepultados. A partir desses dados, alguns questionamentos se impõem: seria a

condição social das famílias dos que ali se encontram sepultados impedimento para um

―cuidado‖102

para como o túmulo? Ou sendo pública, portanto coletiva, não familiar,

não haveria identidade e memória a se preservar? Seria possível dizer que, porque

ninguém se sente dono e, portanto responsável pelo espaço, este estaria em clara

diferenciação dos túmulos em quadras privadas?

Essa hipótese parece ser plausível. Encontramos uma senhora a cuidar do

túmulo do marido e da mãe (dois túmulos distintos, um na quadra 4 e outro na quadra

5). Ambos ajardinados e bem cuidados, apesar de não conterem edificação e epitáfio.

Mas essa mesma senhora nos relatou que o pai e um irmão falecidos há mais de 15 anos

foram sepultados na quadra 1, já que, na época, a família não dispunha de condição

financeira para adquirir o terreno. Disse que não se lembrava em quais túmulos estavam

102 Utilizamos esse termo por ser recorrente no discurso dos familiares que entrevistamos.

Page 173: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

171

e que até pensou em retirá-los dessa quadra e colocar junto do túmulo da mãe, falecida

em 2012, mas que isso demandaria ter que procurar os familiares de outros sepultados

no mesmo túmulo a fim de obter autorização para a exumação, ―então é trabalhoso

demais‖ justifica-se.

Fig.57.Foto: Vista panorâmica da quadra 1.Nota-se contar com poucas edificações e ajardinamento. Acervo da autora

Fig58. Foto: Quadra 1 Túmulo. Destacamos o terço como uma demonstração de crença religiosa ligada ao catolicismo e à prática de orações pelos mortos. Acervo da autora.

Page 174: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

172 Fig 59. Foto: Quadra 1Túmulo : sem identificação do número Acervo da autora.

A observância dos elementos presentes na imagem (Figura 59) permite

entendê-la como demonstração da necessidade de individualização e perpetuação da

identidade do morto quando se vê vestígios de que ali se inscreveu dados da biografia

do falecido como data de nascimento e falecimento. Esses dados não constam na placa

padrão instituída no cemitério. Também chama a atenção a forma indicada na edificação

que sugere uma capela, já que há uma cruz incrustada, como símbolo de uma crença ou

filiação religiosa. Revela também a origem social do sepultado já que se percebe o uso

de materiais de baixo custo e que se pretende duradouro como são as flores artificiais

utilizadas como adorno, além de decididamente deixar ver ser um artefato produzido

por um amador. Seria um parente do falecido?

A quadra 2 foi a primeira quadra destinada à venda de terrenos a

particulares. Hoje se encontra totalmente ocupada, ou melhor, vendida, pois

contabilizamos duas sepulturas reservadas, ou seja, alguns bocaiuvenses têm como

prática antecipar-se à morte e escolher a sua última morada. Durante um tempo os que

morriam e podiam pagar para serem enterrados no que seria um ―jazigo de família‖,

aliás, este termo aparece em algumas placas construídas pelos familiares do morto, eram

sepultados na quadra 2.

Os números que apresentaremos abaixo já indicam alguma diferença em

relação aos números da quadra 1. Posteriormente, veremos que há diferenças

Page 175: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

173

significativas também entre as quadras particulares no que tange ao percentual de edificações.

Tabela 3

Quadra 2 Particular Total de túmulos (denominação encontrada nas 501 placas de identificação, significando cada

sepultura)

Total de edificações (leia-se com estrutura de 165 identificação em outro material e epitáfios):

Total de túmulos sem ajardinamento e apenas 155 com placas de identificação padrão

Total de túmulo com edificação sem 42 ajardinamento e com apenas placa padrão:

Total de túmulos com placa padrão e ornamento 00 artificial sem outros elementos

Vimos que cerca de 33% das sepulturas contam com investimento em

estruturas de pedras com predomínio do granito, placas, epitáfios, adornos, jardim. Em

torno de 28% investem em ajardinamento, 8% edificaram, mas não investem ou não

mais investem em ajardinamento, enquanto 31% não fizeram nenhum investimento nos

túmulos. Importante frisar que, aqui, não fazemos referência a investimento monetário

ao utilizarmos o termo ―investimento‖. Aqui, a palavra tem sentido de ação que possa

indicar, em nossas ponderações, uma expressão das sensibilidades, das práticas e rituais

em torno da morte e do lugar de sepultamento, foco de nossa pesquisa.

No entanto, é possível, não só pelos números, mas pela materialidade das

edificações, ou seja, o que estas trazem em suas formas, materiais utilizados, epitáfios à

mentalidade, perceber os imaginários aqui representados. Talvez o não investimento

também possa indicar um imaginário, no entanto se compararmos a outras quadras,

especialmente em relação às que são particulares, veremos que o não investimento, de

modo geral, não se configura como resultado de novas concepções sobre a morte e o

cemitérios. Selecionamos alguns túmulos para uma breve análise.

Page 176: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

174 Fig. 60. Foto: Quadra 2 Túmulo :Sem identificação do número. Acervo da autora.

Escolhemos essa imagem (fig.60) como exemplar para a quadra 2, por ela

trazer um dado que não se viu em outras lápides: a reprodução da assinatura do falecido.

Qual o significado dessa presença? Teria sido um desejo do falecido? Não temos as

respostas, pois não conseguimos contatar os parentes do falecido. Se aqui o feito parece

inédito, no entanto, não o é em Bocaiuva/MG.

Segundo nos relatou um pároco da cidade, em conversa informal, no

cemitério do Bonfim, na lápide de um ex-prefeito da cidade, morto na década de 30, foi

reproduzida em bronze a sua assinatura, sendo a arte um trabalho de sua cunhada que

ainda vive, mas que se encontra com a saúde bastante debilitada e, portanto, não foi

possível entrevistá-la.

Buscamos o túmulo desse ex-prefeito no cemitério Parque Santa Lucia a fim

de, encontrando tal inscrição, apresentarmos nesta pesquisa. Entretanto, se esse artefato

se manteve no cemitério do Bonfim, onde originalmente foi sepultado o ex-prefeito, no

atual cemitério, no momento em que desenvolvemos nossa pesquisa, constatamos a

lápide com placa de ferro como ocorre na maioria das lápides em que há edificações,

mas apenas constando o nome e datas de nascimento e morte.

No túmulo da imagem analisada, também chama a atenção o epitáfio que

traz trecho de música originalmente gravada pela dupla Tonico e Tinoco.

Possivelmente, uma preferência do falecido, mas teria ele definido essa inscrição?

Page 177: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

175

Passemos à quadra 3 que, como a quadra 1, é também pública. Essa quadra

é a mais irregular de todo o cemitério. Há um grande espaço intermediário entre a 3ª ‖rua‖ e a demais subsequentes. Segundo nos informou o responsável pelo cemitério, o

fato se deve a um desmoronamento que ocorreu quando faziam a preparação do terreno

para novas sepulturas. Isso se deveu às características próprias do terreno, somadas às

chuvas que caíam no período desse preparo. Talvez isso explique por que já estão

utilizando outra quadra pública, que é a de número 6.

Importante ressaltar que, nessa quadra, estão os restos mortais trasladados

do cemitério da saudade e na quadra 6 estão os do cemitério do Bonfim, segundo

cemitério a ser demolido. O coordenador do cemitério, que está há pouco tempo

trabalhando na função (e no cemitério), não soube confirmar ser essa motivação de se

ter iniciado uma nova quadra pública, tendo ainda espaço em outra. Eis os números da

quadra 3, sendo necessário informar que estão contabilizados aqui placas identificadas

como quadra 3 e especificados os túmulos, embora algumas destas estejam

aleatoriamente depositadas ao fundo da quadra ,como se pode ver numa imagem que

apresentaremos adiante. Tabela 4

Quadra 3 Pública Total de túmulos (denominação encontrada nas 424 placas de identificação, significando cada

sepultura)

Total de edificações (leia-se com estrutura de 22 identificação em outro material e epitáfios)

Total de túmulos ajardinados e com placa de 34 identificação padrão

Total de túmulos sem ajardinamento e apenas 351 com placas de identificação padrão

Total de túmulo com edificação sem 10 ajardinamento

Total de túmulos com placa padrão e ornamento 07 artificial sem outros elementos

Em termos percentuais, em torno de 5% dos túmulos contam com

edificação, 8% apresentam ajardinamento, 2,3% tem alguma edificação, geralmente

placa com inscrição, mas não foram ou não estão ajardinados no momento. 1,65%

apresentam algum elemento artificial ali depositado, pequenos arranjos de flores

artificiais e vasos sem flores. No entanto, mais de 82% dos túmulos da quadra 3 não

Page 178: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

176

contam com nenhum investimento. Apresentaremos a seguir alguns aspectos que

encontramos nessa quadra.

Fig.61.Foto: Quadra 03 Túmulo 378 Acervo da autora.

Aqui se repete situação analisada na figura 66. A cruz, como símbolo

cristão, está presente na maioria dos túmulos que apresentam alguma edificação.

Registramos que, em nosso levantamento e análise, consideramos como edificação

também as cruzes em madeira, capelas – como a demostrada na imagem da quadra 1 –

ou qualquer elemento que tenha sido ―construído‖ na sepultura. Encontrando vasos ou

flores artificiais ou o terço, como já demonstramos, consideramos como ―elemento

artificial‖, sabendo-se ser este critério um registro próprio para o levantamento, apenas

um recurso metodológico que utilizamos.

Nas imagens a seguir, registra-se uma situação que tem sido crescente no

cemitério parque Santa Lúcia, em Bocaiuva/MG: a edificação de uma lápide com

epitáfio e/ou outros elementos. Nesses túmulos, numa quadra pública, ou seja, em que

não há túmulo privado ou específico a uma família, junto à placa padrão do cemitério

Page 179: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

177

em que se identifica apenas o nome do falecido e a gaveta em que se encontra sepultado

seus restos mortais, ―nasce‖ a lápide individual, ou melhor, a individualização da

memória, com inscrição de epitáfios e inserção de elementos como adornos ou a

fotografia do falecido.

Também entendemos relevante mencionar que, numa de nossas visitas,

encontramos um casal a restaurar a placa de identificação dos seus parentes falecidos,

enterrados em sepultura coletiva, com outras pessoas que talvez nem conhecessem o

falecido e nem o casal ali a cuidar do túmulo, mas estes mandaram inscrever numa

placa de ferro única o nome de todos os que ali se encontravam sepultados. Essa ação

nos chamou atenção porque, embora desejosos de dar uma ―feição‖ diferente daquilo

que os idealizadores do cemitério quiseram padronizar, no entanto, não pretendiam

diferenciação em relação aos sepultados naquele túmulo em comum. Talvez, isso

permita concluir que o investimento no túmulo nem sempre signifique tentativa de

individualização ou distinção social. Pode ser apenas uma demonstração de cuidado

para com a última morada de um parente querido.

Fig. 62.Foto: Quadra 03(pública). Túmulo 369 Acervo da autora.

Chamamos a atenção para duas situações que observamos nesse túmulo. A

primeira é que, numa mureta de alvenaria, que se apresenta sem muito rigor estético e

zelo na construção, nota-se investimento em placa de ferro, que parece pretender

individualizar a memória e dar relevo aos falecidos identificados pelo nome, dados de

nascimento e morte, além de fotografia (em porcelana?) que, aliás, segue um padrão

Page 180: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

178

comum em outros cemitérios antigos, não só em Bocaiuva/MG, mas em todo o Brasil.

Parece se tratar de duas pessoas da mesma família a julgar pelo sobrenome. Há que se

registrar o ajardinamento mesclado à presença de flores artificiais. Instiga também a

fotografia colocada num porta-retrato. Seria de uma falecida? Ou alguém ligado a

algum dos sepultados e que depositou um retrato seu como a querer manter-se próximo?

Fig. 63. Foto: Quadra 03 túmulo 361 Acervo da autora.

Com essa imagem, (Figura 63) pretendemos demonstrar o contraste que se

instaura com o processo de edificações que, como já mencionamos, teve um ―boom‖

nos últimos oito anos. Nota-se, ao fundo, que muitos túmulos, nessa quadra que é

pública, não possuem edificações e nem mesmo ajardinamento. Não estamos a fazer

julgamento dessa situação como um problema ou crítica a famílias, nem àquelas que

investem, nem àquelas que não investem, mas reiteramos que a situação demonstra a

permanência de uma mentalidade que remete aos cemitérios de fins do século XIX ao

Page 181: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

179

século XX e que era presente no cemitério do Bonfim, especialmente. Ou seja, a

individualização da memória e a expressão de distinção social.

Fig. 64. Foto: Quadra 03-Acervo da autora.

Dispostas aleatoriamente ao fundo da quadra três (03), encontra-se o

ossuário dos traslados do Cemitério da Saudade.103

Ou seja, dos restos mortais de

pessoas que não foram identificadas ou reivindicadas pelos familiares. A situação de

identificação nos túmulos é precária com muitas placas enferrujadas e encostadas umas

sobre as outras. Há ainda muito espaço não delimitado nessa quadra, inclusive boa parte

tomada pelo mato.

Tabela 5

Quadra 4 (A quadra 4 esta com quase a totalidade Particular de sua área já ocupada)

Total de túmulos (denominação encontrada nas 476 placas de identificação, significando cada

sepultura)

Total de edificações (leia-se com estrutura de 236 identificação em outro material e jardinagem)

Total de túmulos ajardinados e com placa de 98 identificação padrão

103Este cemitério foi demolido entre 2003 e 2004. O plebiscito foi basicamente uma consulta aos

moradores do entorno e se realizou na escola próxima ao cemitério. O processo de traslado foi marcado por denuncias de profanação, ou seja, sem os devidos cuidados na identificação dos corpos e até de não ter sido efetivado a contento a retirada das ossadas. No momento de terraplanagem do terreno foram encontradas ossadas e estas ―soterradas‖ pelos tratores. Foram feitas denúncias de ossadas jogadas na lagoa sanitária da cidade. Talvez por ter sido tão controvertido não encontramos nenhum documento na prefeitura, câmara municipal e na escola onde se realizou o plebiscito. Procuramos um ex funcionário contratado da prefeitura e que soubemos ter presidido o processo ,mas ele não se dispôs a falar. Como já dissemos anteriormente esse cemitério caracterizava-se por ter em sua maioria sepulturas comuns, ou seja, havia poucos jazigos de família. Pode ser essa uma razão para a situação descrita.

Page 182: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

180

Total de túmulo com edificação sem 40 ajardinamento

Total de túmulos com placa padrão e ornamento 00 artificial sem outros elementos

Total de túmulos sem jardinagem e apenas com 102 placas de identificação padrão

Em termos percentuais, temos cerca de 50% de edificações, 20% com

ajardinamento, 8% com edificação, mas sem ajardinamento (pelo menos no momento

da pesquisa) e em torno de 21% não apresentam nenhum investimento. Nenhum registro

de túmulo com ornamentos artificiais. Nessa quadra, observa-se significativo número de

edificações, porém, estas não trazem o número do túmulo o que poderá, no futuro, se a

tendência permanecer, dificultar a identificação do túmulo, a partir da numeração.

Seria necessária uma instrução aos familiares que trocam a placa padrão por

outras formas de identificação dos sepultados, quanto a esse que poderá ser um

problema futuro para os familiares localizarem os túmulos de seus falecidos.

Destacamos o túmulo a seguir (Figura 65) como referência da quadra 4, por duas

razões: primeiro, por serem maioria, na quadra 4, epitáfios que fazem referências à

religiosidade, à esperança escatológica. Segundo, por mostrar a permanência da

concepção da morte como um sono, repouso.

Fig. 65. Foto: Quadra 4 Túmulo :Sem identificação do número. Selecionamos esse epitáfio onde se lê: ―Deus concede o tempo certo no momento certo. Agora é tempo para voltar ao Pai e adormecer em paz‖ Acervo da autora. Tabela 6

Quadra 5 Particular Total de túmulos (denominação encontrada nas 207 placas de identificação, significando cada

sepultura)

Total de edificações (leia-se com estrutura de 103 identificação em outro material e epitáfios)

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Total de túmulos ajardinados e com placa de 42 identificação padrão

Total de túmulos sem jardinagem e apenas com 52 placas de identificação padrão

Total de túmulo com edificação sem 10 ajardinamento

Total de túmulos com placa padrão e ornamento 00 artificial sem outros elementos

É a quadra particular mais recente, com ainda significativo espaço a ser

ocupado, no entanto, apresenta-se com quase 50% de edificações, o que demonstra a

emergência da onda de edificações que postulamos ser um processo dos últimos 8 anos,

em decorrência do abandono e da demolição do cemitério do Bonfim que se

assemelhava aos moldes convencionais do século XIX e inicio do século XX,

caracterizados por edificações e epitáfios.

Defendemos a hipótese de ser essa uma possível manifestação do

imaginário e representações sociais da população quanto às formas tumulares ―tradicionais‖ e do significado do cemitério como ―lugar de memória‖. Nesse aspecto,

reportamo-nos a concepção de ―lugar de memória‖ de Pierre Nora (1993) que reflete o

―conflito‖ entre os ―lugares de memória‖, uma vez que a proposta do poder público de

alterar as formas tumulares fora, dessa forma, lenta e ―silenciosamente‖ rechaçadas pela

população.

Fig. 66. Foto: Quadra 5 – Vista ampliada- Acervo da autora.

Page 184: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

182

Percebem-se muitas edificações, além do uso do granito que é

predominante. Nota-se a reprodução da capela,104

nicho para se depositarem vasos de

flores e velas, além da placa de ferro incrustada em estrutura de granito e, muito

recorrentes, a fotografia em porcelana (ou reprodução do que seria uma fotografia em

porcelana). Outro dado interessante é que, tanto nessa quadra 5 quanto nas outras, onde

há edificações, grande parte dos epitáfios se apresentam como inscritos em um ―livro‖,

especialmente os epitáfios que remontam a trechos bíblicos. Esse livro, a nosso ver,

tanto sugere uma referência à bíblia (e assim à religiosidade) quanto á própria vida que

se inscreve como uma história que pode ser lida ou ainda à ideia de sabedoria que os

livros sugerem serem depositários.

A quadra seis também é recente e com amplo espaço a ser ocupado. Parece

estar dividida em duas partes. Apresentamos na tabela abaixo os números gerais e, a

seguir, detalhamento dessa partes.

Tabela 7

Quadra 6 Pública Total de túmulos (denominação encontrada nas 98 placas de identificação, significando cada

sepultura)

Total de edificações (leia-se com estrutura de 05 identificação em outro material e epitáfios)

Total de túmulos jardinados e com placa de 04 identificação padrão

Total de túmulos sem jardinagem e apenas com 87 placas de identificação padrão

Total de túmulo com edificação sem 02 ajardinamento

Total de túmulos com placa padrão e ornamento 00 artificial sem outros elementos

A primeira parte da quadra, até o momento, é composta por 87 sepulturas.

Possui até agora (abril de 2014) apenas duas (2) edificações com epitáfios do tipo

formal ―saudades eternas‖ (túmulo 23 este com identificação de uma pessoa e pela data

de morte trata-se de um traslado do cemitério do Bonfim) e ―saudades eternas de seus

familiares‖ (túmulo 33, este com identificação de duas pessoas e pelas datas de morte

tratam-se de traslados do cemitério do Bonfim). Estes representam cerca de 2% do total

(87 túmulos).

104

Nos cemitérios de fins do século XIX e primeira metade do século XX, era comum entre a elite construir mausoléus em que reproduziam ora a casa ora a capela, de acordo com a mentalidade e o poder econômico dessas famílias. Guardadas as devidas proporções vemos essa representação nos túmulos do cemitério parque Santa Lúcia. cf. as imagens neste capítulo.

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183 Fig67. Foto: Vista geral da quadra 6 parte 1 de frente. Acervo da autora.

A segunda parte, de acordo com a numeração passível de ser lida, conta com 11 túmulos. Estes são identificados com a expressão ―caixa nº‖ deixando claro se tratar

de restos mortais trasladados do cemitério do Bonfim, que não foram identificados ou

reivindicados pelas famílias. Há também túmulos identificados com a expressão

natimorto e muitas demarcações com ―estacas improvisadas‖ e, segundo funcionário do

cemitério, há ainda muitos corpos enterrados em área que não se vê demarcação

alguma, mas encontram-se registrados nos livros do cemitério, afirma. Segundo ele,

ainda não houve tempo de demarcá-los e identificá-los, mas isso será feito.

Nessa parte, que parece ser destinada a enterramentos de crianças, há três (3) túmulos com edificações e/ou jardinagem (significando cerca de 27% do total de 11

túmulos), sendo que um deles traz como forma ornamental um carrinho de pedra

(granito e ardósia) com jardinagem e placa padrão com identificação do nome da

criança e data de nascimento e morte, bem como epitáfio onde se lê ―você sempre

viverá em nossos corações‖(conferir imagem no capítulo 1). Os outros dois (2) túmulos

(18% do total de 11) trazem jardinagem e epitáfios em placa padrão, sendo num deles

destacado o nome dos pais da criança e o epitáfio ―a maior perda na vida é o que morre

dentro de nós enquanto vivemos. Saudade sim, tristeza não‖. No outro, em placa padrão

lê-se ―um anjo eternamente em nossas vidas‖. Nessa segunda parte, temos 6 túmulos

identificados por placa padrão quase ilegível e/ou estacas de pau.

Page 186: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

184

Para finalizar essa análise descritiva sobre o cemitério parque Santa Lúcia,

em Bocaiuva/MG, reafirmamos nossa tese de que as mudanças operadas nesse

cemitério, especialmente nos últimos 8 anos, têm se mostrado uma tendência.

Reportando-nos à indagação de Guinzburg (2001) em relação às

representações do Consecratio e o Kolossói da antiguidade clássica e as efígies de cera

em celebração da morte dos reis de Inglaterra e França da Idade Média, se seria a

segunda uma filiação ou redescoberta espontânea das primeiras, também lançamos a

pergunta: como explicar as edificações tumulárias em ascensão no cemitério Parque

santa Lúcia? Filiação ou redescoberta espontânea?

3.3 Os cemitérios particulares

Mas, embora morto, desejava retornar à Grécia. Apareceu, portanto, a Pélias, e lhe ordenou que fosse à Cólquida para de lá trazer sua alma. Sem dúvida essa alma sentia a nostalgia do solo pátrio, do túmulo da família. Fustell de Coullanges

Em Bocaiuva/MG, a morte ainda se anuncia.105

Seja de boca em boca, seja

pelos rádios locais e ainda em carros de som a circular pela cidade, a notícia da morte de

um bocaiuvense é compartilhada. Também hoje as redes sociais estão sendo utilizadas

como meio de anunciar a morte e, assim, indagamo-nos que, se atualmente, a morte

pode ser um tabu, um interdito como afirmou Ariès (1989), o é enquanto um assunto do

qual não se procura refletir, especialmente quer se evitar, porque seria, para muitos, uma

aporia.

Para estes, o importante é viver e a vida não se vive pensando na morte. No

entanto, enquanto ―tragédia‖ ou dor que assola a outrem, a morte é anunciada,

comentada e, para alguns, até oportunidade de satisfazer curiosidades em torno da vida

do falecido. Neste tópico, apresentaremos alguns aspectos que desvelamos ao

desenvolvermos nossa pesquisa. Salientaremos ―descobertas‖ que foram possíveis ao

conversarmos com donos de funerárias da cidade. A princípio, a razão de buscar as

105

Enfatizamos aqui o sentido de que, por meio dos veículos mencionados no texto, fica-se informado do falecimento e o lugar de enterramento. Não é incomum ouvir-se dizer de enterramentos em comunidades rurais. Detalhamento ao longo do capítulo.

Page 187: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

185

funerárias seria conhecer dados sobre o processo de demolição dos cemitérios,

especialmente o do Bonfim, mais recente. Objetivávamos obter fotografias, informações

sobre os traslados e se, de modo geral, quais as famílias acompanharam o processo,

entre outros.

Não obtivemos muito sucesso nessa empreitada. Nenhuma fotografia,

nenhuma informação mais contundente nesse assunto, talvez por desconfiança de que

este seja um assunto ―delicado‖ e pudesse comprometer os empresários. Entretanto, as

conversas se tornaram reveladoras de um rico imaginário sobre o morrer em

Bocaiuva/MG. Entendemos ser oportuno inscrever esses relatos nesta pesquisa.

Com os proprietários da primeira funerária106

consultada, conseguimos

descobrir que a prática de fotografia mortuária ainda é presente em Bocaiuva/MG, pelo

menos para uma família para quem tinham prestado serviços e destacaram o ―curioso

fato‖, para eles, de que a falecida havia estabelecido algumas ―exigências‖ em relação a

como e onde queria ser enterrada. Indicaram-nos parentes da falecida em questão que

colaboraram enormemente para o enriquecimento dessa pesquisa.

Quanto à prática, por essa família, de fotografar o morto, já abordamos no

capítulo 2. Porém, a investigação mostrou singularidades das práticas fúnebres que

ainda se mantêm entre algumas pessoas da família. Nossa entrevistada107

nessa pesquisa

demonstrou certa satisfação em que a história da família fosse reconhecida, até como

algo singular da família, iniciada pela matriarca que, como se pode conferir no capítulo 2, foi descrita como pessoa dinâmica, ―religiosa e feliz‖.

Essa senhora que, até a sua morte, em 2012, vivia em sua propriedade rural,

a cerca de 20 km da sede do município, ergueu ali, nos idos dos anos 70, um cruzeiro e

depois uma pequena capela, pela família denominada igrejinha. Essa igrejinha recebeu,

em outros tempos, inclusive padres da cidade que ali celebraram.

Conforme a nossa colaboradora, filha dessa senhora, o pai, que morreu em

1992 foi ali enterrado, por vontade da esposa, mãe de nossa entrevistada. Além dele,

dois netinhos foram ali enterrados, a pedido dela. Ela também havia pedido que, quando

morresse, gostaria de ser enterrada na fazenda, ali próximo do cruzeiro e da igrejinha. ‖Ela tinha um apreço muito grande por aquele lugarzinho onde celebrou aniversário de

25 anos de casamento‖, destaca. O marido ali foi enterrado e permanece sob um túmulo

106

Entrevista com proprietário da funerária Rosa de Bocaiúva-MG 107

Entrevista com C.L. Entrevista concedida em 19 de nov. 2013.

Page 188: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

186

erguido em alvenaria e cimento, marcado com uma cruz. A pequena capela era palco de

constantes encontros de família para práticas diversas, algumas felizes, como missas em

celebração de aniversários, rezas de terços e outros encontros nada felizes como o

sepultamento de dois netos recém-nascidos, sendo um, a menina referenciada no

capítulo 2. ―Isso tudo a pedido dela‖ que também, por gostar de foto e ser costume de

família fazer foto dos mortos, pediu que tirasse fotos dos netos falecidos. A entrevistada afirma também, com relação à foto da sobrinha ―o pai, era de família, também pediu, ele queria guardar a foto, ele pediu pra tirar a foto‖.

Perguntada se costumam olhar as fotos, ela afirma que sim, pois ‖ tem muitas fotos e a gente olha os álbuns, vê quem já foi, quem ficou, quem tá longe, quem tá perto, então tem muita foto antiga‖. Relata então que, por último, a mãe foi ali

sepultada como era seu desejo. De acordo com nossa entrevistada ―ela achava assim, ela

queria que enterrasse lá perto porque ficava mais perto pra gente todo dia tá lá olhando,

arrumando ,né e a gente achou até bom porque lá a gente vai querer tá lá sempre, pra

visitar, ta lá perto , os irmãos que moram lá que cuidam então fica bem mais incondo

(sic)‖. Afirma que ―no túmulo não é uma construção bonita , mas fez os dois túmulos né

e a igrejinha do lado e a cruz , e assim sempre a gente reza lá.‖

Quanto às vestes, adereços e caixão bem como o lugar de velório e

enterramento da mãe, diz ―foi tudo planejado por ela mesma‖. E nos conta que, durante 15 anos, a mãe guardou seu próprio caixão, feito com madeira da fazenda, a princípio

na sala de sua casa, na fazenda, depois, incomodada pela visão, o colocou na pequena

capela que mandara construir. Nesse aspecto seu desejo foi garantido.

Quando de sua morte, ocorrida na cidade, os familiares foram até a fazenda

para buscar o caixão que abrigaria seu corpo morto. Não puderam garantir, no entanto, o

desejo de vesti-la o vestido que fizera e dissera querer como sua última vestimenta.

Segundo nos conta sua filha, não houve tempo para isso, a roupa também estava na

fazenda. Conta que a mãe gostava de viajar até a Lapa de Bom Jesus todo ano, ia e

trazia de lá o cordão de São Francisco, abençoado, para ser sepultada com ele, mas

sempre que morria alguém próximo ela doava para a família do falecido o cordão de São Francisco. Por isso, afirma ―durante uns 20 anos ela trouxe o cordão e quando ela

morreu ainda sobrou um‖.

Foi velada na igrejinha e enterrada na fazenda, ao lado do túmulo do esposo,

próximo do túmulo de dois netos. Quanto ao cruzeiro que deu origem a esse lugar

sagrado para a falecida, hoje se resume a duas estruturas entrelaçadas e danificadas

Page 189: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

187

encostadas num canto. Não há outros enterramentos ali e a nossa interlocutora revelou

não ter conhecimento de outros familiares que externaram o desejo de ali serem

sepultados e que, hoje, após o inventário, a propriedade foi dividida e aquela parte onde

se encontra o cemitério ficou para sua irmã caçula108

.

Por nós procurada, a herdeira da parte em que se encontra o cemitério nos

revelou que tem um filho seu ali enterrado. Seu primeiro filho, nascido prematuro de 7

meses e que sobreviveu por poucos dias. Relatou ainda que também fotografou o filho

morto, mas não num caixão, não queria ter essa lembrança do filho num caixão. Tirou

foto dele morto sobre a cama. Prontificou-se a nos levar até o cemitério para que

pudéssemos inclusive fotografar o cemitério. Como a irmã já tinha relatado disse ter

plano de ―urbanizar‖ o cemitério, que não tem muros e que, pretende legalizá-lo.

Perguntamos se pretende ali ser enterrada e esta, como a outra irmã por nós entrevistada

disse não ter ainda pensado muito nisso.

Fig68.Foto: Túmulo de Júlia Leite, morta em 2012 e enterrada na Fazenda Corguinho – município de Bocaiuva/MG. Trata-se de cova simples adornada por flores artificiais. Acervo da autora.

108

Entrevista com M.L. Entrevista concedida em 19 de nov. 2013..

Page 190: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

188 Fig69. Foto: Túmulos de dois recém-nascidos enterrados na Fazenda Corguinho – município de Bocaiuva/MG, mortos em 1992. À esquerda vê-se parte do túmulo do avô das crianças, morto em 1992. Ele foi o primeiro sepultado nesse cemitério da família. Nota-se uma edificação de alvenaria e cimento. Nos demais não há edificação o que nos faz pensar que essa diferenciação se deveu à ação da viúva que enquanto viveu ―cuidou‖ do túmulo do marido. Acervo da autora.

Como nos afirmou a entrevistada, parece que esse costume é mesmo ―tradição de família‖, ou pelo menos de parte dela. Fomos informados de que um irmão

de dona Júlia, o senhor Antônio Leite também desejou ser enterrado em sua propriedade

rural. Em contato com um filho deste, ele assim nos relatou:

Essa fazenda é aqui no município de Bocaiuva mesmo a 16 km e lá foi assim: meu pai, ele construiu uma casa ao lado de onde é hoje, onde ele ta sepultado. e aonde ele está sepultado tinha uma casinha

onde ele trabalhava de carpinteiro ai ele pediu para que quando ele fosse morrer que ele fosse sepultado lá. Assim aconteceu morreu e minha mãe propôs da gente sepultar ele lá e sepultou ele lá e dele a gente cercou ,fez ,construiu uma capelinha e para ficar assim para a

família para pessoas da família e inclusive ta sepultado lá meu pai, minha mãe, meu sobrinho e depois meu irmão. ta um ao lado do outro meu irmão ao lado do meu sobrinho e minha mãe ao lado do meu pai e tem uma outra pessoa que ta sepultada lá também uma que ela não tinha parente nenhum não tinha ninguém por ela então ela tava na

região lá morreu lá ai sepultou lá, mas lá é a família, da família

mesmo ,só para sepultar pessoas da família109

.

E detalha ―foi de 1975 de lá para cá que começou a sepultar pessoas da

família lá. A última pessoa que foi sepultada foi meu irmão, agora em novembro fez 2

anos‖ ( a entrevista foi concedida em 2013) . Perguntado se essas pessoas manifestaram

esse desejo ele informa: ―manifestou, meu sobrinho mesmo exigiu que fosse lá, ele

queria lá. morreu de acidente. agora meu irmão morreu doente.‖ Disse também que o

sobrinho era jovem e ―ele parece que ele pressentia que ia morrer, ele morava em são

109

Entrevistado J.L. Entrevista concedida em 23 de nov. 2013.

Page 191: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

189

Paulo, ai mudou pra cá e falou: não, eu quero ficar perto da minha avó‖. Indagado se

outras pessoas da família já manifestaram esse desejo ele comenta: ―sim. já, todos. A

maioria quer que seja lá. Eu tenho uma irmã que mora em São Paulo ela já pediu que

quando ela morresse que era para trazer para cá para enterrar‖.

Questionado se, pessoalmente, tinha esse desejo e o manifestara ele

asseverou: ―já... (riso) tenho lugar marcado já (riso)‖ e completou ―exatamente eu quero

ser enterrado lá e é pra ser mesmo. Não pode ser fora não se não eu saio (riso)‖. E

frisou: ―lá é comunidade do cedro, a região toda é fazenda Corguinho, mas a

comunidade lá é Cedro. E só tirando esse moço que não tinha família, é só para a

família, eu mesmo não aceito outras pessoas de fora não. Que tem lá, próximo lá tem o

cemitério da localidade. É o da oncinha ,ele é comunitário, é para todos, inclusive

pessoas até de fora pede pra ser sepultado lá e já foram sepultados lá, de outras

comunidade‖ (aqui refere-se ao cemitério da comunidade denominada Oncinha).

Comenta, com certa reverência, que há lá uma capelinha e esta ―foi ideia da

minha mãe ne, e ai então ela colocou... o meu pai chamava Antônio ...ai colocou

capelinha de santo Antônio‖. Conta que ―depois que foi sepultado (refere-se ao pai) ai

em dois anos a gente construiu essa capelinha‖. Perguntado se costumam visitar essa

capelinha ele diz: ―costuma sim, inclusive em vida de minha mãe celebrava missa lá ,todo ano celebrava missa...depois que ela faleceu a gente relaxou um pouco...aí

celebrou acho que uma vez só‖ confessa meio sem jeito. Também fez questão de

esclarecer que eles não chamam de cemitério: ―lá é a igrejinha. Todos chamam de

igrejinha.‖

Questionamos se esse cemitério é legalizado, se houve alguma ação junto à

prefeitura para garantir o enterramento na fazenda, ele garante: ―Não, não teve essa

manifestação não... teve não... lá não tem nada registrado, é assim por nós mesmos‖. Diz que não houve nenhum questionamento (refere-se ao poder público): ―Não, nunca

questionou nada, não teve problemas não‖. Num outro momento da conversa, confessou

que nos enterramentos recentes, ao providenciar a guia de sepultamento, informaram na

prefeitura que iriam enterrar no cemitério comunitário da Oncinha, sendo que na

verdade enterrariam no cemitério da fazenda.

Perguntamos se costumam visitar esse cemitério e nosso entrevistado relata: ―Sempre vai. vai um, não vai todos, mas vai alguns ,alguns vai, todo finado vai, sempre

vai um. Acontece sim, acontece. Sempre tem um lá, mesmo fora de dia de finados, de

vez em quando vai um lá: acende uma vela, faz uma oração...sempre frequenta lá‖.

Page 192: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

190

Perguntamos se ele sabia de outros cemitérios nas proximidades nesse sentido, familiar. Ele confirmou: ―Não, lá que eu sei mesmo é só esse lá, o da Cleusa, da mãe dela e esse

da oncinha que é comunitário e teve um outro parente meu, um outro tio meu também

que pediu pra ser sepultado no terreno dele mas foi só ele só. Lá eles não fizeram nada,

lá hoje é manga ,é pasto. Ele tá sepultado lá, tá lá nesse lugar também, a manga tá no

terreno dele.‖ Ao perguntarmos se havia nesse lugar de sepultura do tio alguma

demarcação ele arrematou :―Eu acho que não, eu nem nunca nem ouvi falar que meus

primos fizessem alguma coisa lá, fizesse uma visita, assim não sei não, parece que nem

visitam. Eu não tenho certeza não , de como tá lá não‖ .

Fig 70. Foto: Detalhe em que se observa uma imagem sacra (danificada) e flores, tendo ao fundo a capelinha consagrada a Santo Antônio. Nota-se o túmulo revestido por cerâmica e com uma espécie de cabeceira. Fazenda Cedro Túmulo do Sr Antônio Leite. Fazenda Cedro – Município de Bocaiuva/MG Acervo da autora.

Page 193: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

191 Fig. 71.Foto: sepultura de filho do Sr. Antônio Leite. Observa-se uma cruz de madeira ornada com uma flor artificial. Acervo da autora.

Ao relatarmos com minúcias esses dois casos, ressaltamos que os

entendemos como demonstração de uma valorização do lugar de sepultamento,

valorização essa comum em outras épocas da história do ocidente e do Brasil. Esse

lugar tem o importante significado de uma volta às origens, ou melhor, fixar-se no chão

em que estão suas raízes, onde estão suas origens.

Partindo do trabalho de Fustell de Coullanges (2002) que, referindo-se aos

costumes fúnebres dos gregos em A cidade antiga, propiciou-nos a epígrafe deste

tópico, é a ele mesmo que recorremos para deixar aqui uma reflexão sobre tudo que foi

exposto. Assevera-nos o autor ―se é necessário muito tempo para que as crenças

humanas se transformem, é necessário mais tempo ainda para que as práticas exteriores

e as leis se modifiquem‖ (COULLANGES, 2002,p.29) Se vão e como vão se modificar,

o tempo e a história dirão.

3.4 - A oração que abranda o purgatório e abre as portas do céu

Celebrar os mortos não é uma ação recente. Nas culturas pagãs já se

praticava o culto aos mortos. Conforme Fustell de Coullanges (2002)

Page 194: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

192

Antes de conceber ou adorar Indra ou Zeus, o homem adorou os mortos; teve medo deles, dirigiu-lhes preces. Parece que é essa a origem do sentimento religioso. Foi, talvez, à vista da morte que o homem teve pela primeira vez a ideia do sobrenatural, e quis confiar em coisas que ultrapassavam a visão dos olhos. A morte foi o primeiro mistério; ela colocou o homem no caminho de outros mistérios. Elevou seu pensamento do visível para o invisível, do passageiro para o eterno, do humano para o divino(COULLANGES, 2002,p.32-33)(Grifos nossos).

Assim, não é errôneo dizer que, desde tempos imemoriais, os vivos apelam

aos mortos proteção e auxílio em todos os aspectos, em todas as suas necessidades.

Porém, essa relação não é unilateral. Assim como os mortos, ou melhor, as almas

podem interceder pelos vivos, estes muito podem fazer pelos mortos – mediante suas

orações, principalmente. O Cristianismo, melhor dizendo, a Igreja Católica apropria-se

e incorpora desse imaginário e o sustenta desde os seus primórdios. O catecismo

católico, em sua seção 3, no parágrafo 958, reforça essa ideia:

A comunhão com os falecidos. "Reconhecendo cabalmente esta comunhão de todo o corpo místico de Jesus Cristo, a Igreja terrestre, desde os tempos primeiros da religião cristã, venerou com grande piedade a memória dos defuntos (...) e, `já que é um pensamento santo e salutar rezar pelos defuntos para que sejam perdoados de seus pecados' (2Mc 12,46), também ofereceu sufrágios em favor deles." Nossa oração por eles pode não somente ajudá-los, mas também tornar eficaz sua intercessão por nos. (§958, seção3)

Esse preceito é tão antigo quanto ainda muito considerado pelos católicos. É

o que pretendemos refletir a partir da investigação dessa prática em Bocaiuva/MG.

Inicialmente, é preciso, porém, justificar a limitação temporal dos dados que vamos

apresentar. No passado, os cânones católicos determinavam o registro e controle de todo

o movimento em torno da vida em sociedade, em especial da vida religiosa e do

cumprimento do catecismo católico, advindo daí os livros de assentos pormenorizados

como o que destacamos no segundo capítulo, e isso tanto para controlar a fé e as

práticas dos fieis quanto para controlar os dividendos que a manutenção dos rituais

renderia.

Atualmente, parece que não se adota política de registro tão rigorosa, ou

pelo menos não se resguardam, de forma perene, determinados registros. É o que se

observa quanto ao registro de pedido de missas em intenções, seja aos mortos, seja em

ação de graças e afins. Nas paróquias do Senhor do Bonfim e do Sagrado Coração de

Jesus, em Bocaiuva/MG, constatamos que esses registros são feitos de modo a serem

Page 195: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

193

pouco tempo depois descartados. Na paróquia do sagrado Coração, conseguimos

entrevista com a funcionária da secretaria que nos relatou:

O processo funciona da seguinte forma: A pessoa pode procurar a secretaria da paróquia e registrar o pedido de missas e indicar as intenções. Também podem pedir ao comentarista do dia, quinze minutos antes de começar a missa. Ele registra a caneta. Estas solicitações são registradas e produzem uma lista diária que é lida no inicio da missa de cada dia e ficam resguardadas por uma semana, quando a equipe de finanças da paróquia faz a contabilidade das receitas deste serviço e após isso , as listas são

descartadas.110

Com base nessas informações, percebemos que, para conseguirmos fazer

algum levantamento nesse sentido precisávamos que esses documentos nos fossem

repassados e não descartados. Na paróquia do Sagrado Coração, conseguimos de modo

mais fácil contatar a equipe de finanças que, durante os meses de novembro e dezembro

repassou, semanalmente, a nós, as referidas listas. Na paróquia do senhor do Bonfim,

antes, precisamos da autorização do pároco. Uma vez autorizados, também acessamos

os registros dos meses de novembro e dezembro de 2013. Os resultados foram

condensados numa tabela que apresentamos adiante.

Tabela 8

Resumo de missas por intenções - Paróquia Senhor do Bonfim - Bocaiuva/MG

Período : Novembro / 2013

Descrição Total de pedidos

Missas por ação de graças 617

(Pedidos e agradecimentos)

Missas pelo anjo 76

da guarda

Missas por aniversário natalício 93

Missas por bodas 04

(prata, ouro e diamante)

110

Entrevistado E. P. Entrevista concedida em 28 de nov. 2013.

Page 196: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

194 Missas por intenções 2682

nominais almas

Missas por dia de finados 545

Total de pedidos

7º dia 15

1 mês 01

Aniversário de morte

1 ano 07

Outros (variando entre o 14º dia a 30º ano) 20

Total em dias

Almas do purgatório 26

Almas mais abandonadas 02

13 almas benditas 02

Outros ( Dos consagrados coração de Jesus e 01

Total de missas por Maria)

almas específicas

Frei Damião 01

Irmã Dulce 01

Dez famílias que mais aparecem em pedidos de intenções por almas

Total em dias

Família Ávila Alkmin 26

Família Siqueira Almeida 26

Família Soares, Souza, Batista, Pereira, Duarte 26

Antepassados de Lino Pereira e Maria Edith 19

Família Marques Barbosa e Mazala Rufino 14

Família Pereira Rosa 08

Família Maia Fernandes 05

Família Souza Carvalho, Lopes eSilva 05

Família PereiraAzevedo, Jesus 04

Família Soares de Souza e Pessoa ( até a 4ª geração ) 04

Dias em que houve missas

Page 197: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

195

Total de dias 26

Total de missas 37

Fonte: Dados organizados pela autora.

Tabela 9

Resumo de missas por intenções – Paróquia Senhor do Bonfim – Bocaiuva/MG

Período: Dezembro / 2013

Descrição Total de pedidos

Missas por ação de graças 529

(Pedidos e agradecimentos)

Missas pelo anjo 71

da guarda

Missas por aniversário natalício 115

Missas por bodas 09

(prata, ouro e diamante)

Missas por intenções 2444

nominais almas

7º dia 19

1 mês 01

Aniversário de morte

1 ano 12

Outros (variando 34

entre o 8º dia a 36º

ano)

Total em dias

Almas do purgatório 26

Almas mais 25

abandonadas

13 almas benditas 00

Total de missas por almas específicas

Outros ( Dos 01

Page 198: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

196 consagrados do

imaculado coração de

Jesus e Maria) Escravos 01

Movimento Mãe 01

Rainha

Dez famílias que mais aparecem em pedidos de intenções por almas

Total em dias

Família Ávila Alkmin 28

Família Siqueira Almeida 28

Família Soares, Souza, Batista, Pereira, Duarte 24

Antepassados de Lino Pereira e Maria Edith 19

Família Marques Barbosa e Mazala Rufino 16

Falecidos das comunidades de Extrema, 16

Vaquejada, São Gregório e Fazendas São Marcos e Bahia

Família Pereira Rosa 08

Família Maia Fernandes 09

Família Souza Carvalho, Lopes e Silva 04

Família PereiraAzevedo, Jesus 05

Dias em que houve missas

Total de dias 28

Total de missas 36

Fonte: Dados organizados pela autora.

Tabela 10

Resumo de missas por intenções – Paróquia Sagrado Coração de Jesus – Bocaiuva/MG

Período: Novembro / 2013

Descrição Total de pedidos

Page 199: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

197 Missas por ação de graças 381

(Pedidos e agradecimentos)

Missas pelo anjo 22

da guarda

Missas por aniversário natalício 53

Missas por bodas 02

(prata, ouro e diamante)

Missas por intenções 2011

nominais almas

Missas por dia de finados 381

7º dia 08

1 mês 05

Aniversário de morte

1 ano 05

Outros (variando entre o 5º dia a 17º ano) 11

Total em dias

Almas do purgatório 26

Almas mais abandonadas 26

13 almas benditas 08

Total de missas por

Outros ( Todas as almas ) 02

almas específicas

Todos os Santos 01

Pelas almas dos Legionários 01

João Paulo II 01

Dez famílias que mais aparecem em pedidos de intenções por almas

Total em dias

Família Terezinha Lopes 26

Antepassados de Lino Pereira e Maria Edith 26

Falecidos das comunidades de Extrema, Vaquejada, São Gregório e Fazendas São 26

Marcos e Bahia-26

Page 200: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

198

Família Domingos Pereira, Gonçalves Rocha, 23

Ferreira Silva e Pereira Azevedo

Família Soares de Souza e Pessoa 10

(até a 4ª geração)

Família Valle Abreu e Caldeira Figueiredo 08

Família Teixeira 05

Família Nery, Cruz eJesus 04

Família Veloso, Cunha, Silva, 04

Correia Barbosa, Neves eSouto

Família Assis Freire 03

Dias em que houve missas

Total de dias 26

Totalde missas 34

Fonte: Dados organizados pela autora.

Tabela 11

Resumo de missas por intenções – Paróquia Sagrado Coração de Jesus – Bocaiuva/MG

Período: Dezembro / 2013

Descrição Total de pedidos

Missas por ação de graças 412

(Pedidos e agradecimentos)

Missas pelo anjo 20

da guarda

Missas por aniversário natalício 61

Missas por bodas 05

Page 201: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

199 (prata, ouro e diamante)

Missas por intenções 2211

nominais almas

7º dia 10

1 mês 01

Aniversário de morte

1 ano 03

Outros (variando entre o 9º dia a 11º ano) 10

Total em dias

Almas do purgatório 26

Almas mais abandonadas 26

13 almas benditas 08

Total de missas por almas

Outros ( Todas as almas ) 02

específicas

Todos os Santos 01

Pelas almas dos Legionários 01

João Paulo II 01

Dez famílias que mais aparecem em pedidos de intenções por almas

Total em dias

Família de Terezinha Lopes 28

Antepassados de Lino Pereira e Maria Edith 28

Falecidos das comunidades de Extrema, Vaquejada, São Gregório e Fazendas São 28

Marcos e Bahia

Família Domingos Pereira, Gonçalves Rocha, Ferreira Silva e Pereira Azevedo 23

Família Valle Abreu e Caldeira Figueiredo 16

Família Nery, Cruz e Jesus 09

Família Souza Teixeira, Soares Silva 08

Família Veloso, Cunha, Silva, Correia Barbosa, Neves e Souto 05

Família Cruz, Alkmim, Gonçalves, Rocha Santos e Silva 05

Família de Maria Helena 03

Dias em que houve missas

Page 202: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

200

Total de dias 28

Total de missas 36

Fonte: Dados organizados pela autora.

Tomaremos o mês de dezembro como referência para a análise, visto que

novembro é o mês em que se celebram finados, tradicionalmente, momento de se

encomendarem missas para os falecidos e isso poderia impedir uma visão mais clara

sobre essa prática. Neste mês, na Paróquia do senhor do Bonfim, tivemos um total de

3292 pedidos de missas por intenções. 76% destes foram em intenções pelas almas. Na

paróquia do Sagrado Coração, tivemos um total de 2736 pedidos de missas por

intenções. Em torno de 82%, foram em intenções das almas. A primeira constatação que

os números apresentados nos possibilitam pode ser traduzida pelo comentário da

secretária da Paróquia do Sagrado Coração. Ao expor sua percepção como fiel da igreja

e como funcionária, que há mais de dois anos acompanha essa prática, nos relatou:

Nós, fieis da Igreja Católica, eu, particularmente falando da Paróquia do Sagrado Coração de Jesus, eu percebo que o pessoal ainda acredita muito, ainda tem muita crença de poder rezar por aquelas pessoas que partiram, que não estão aqui mais, e a gente acredita que a gente a Igreja Católica acredita que só isso que a gente pode fazer para aqueles que já partiram, e o pessoal ainda tem muita crença, muita fé, por mais que o tempo vai mudando, vai passando, mas ainda com isso, com minha experiência aqui eu vejo que o pessoal pede muito, acredita muito em tá rezando pelos entes que já passaram

né111

.

Essa afirmação pode ser comparada ao que diz o teólogo Leomar Antônio Brustolin (2013) ―Diariamente as nossas igrejas celebram missas em memória de

pessoas que morreram. [...] O ser humano sente essa necessidade: rezar ou manter elos

com aqueles que já passaram para a outra vida‖. E frisa:

Ora, se há uma comunhão entre céu e terra, rezar pelos mortos significa o gesto de maior amor por quem já não está mais conosco. Exteriormente podemos queimar velas, colocar flores nas tumbas, mas realmente somente a oração dirigida a Deus é que estabelece total comunhão. Deus é o mesmo, tanto dos vivos, quanto dos mortos. Rezar é manter-se unido ao Pai que reúne

em seu coração, ao mesmo tempo, os mortos e os vivos112

.

Outro dado a ressaltar é o fato de que tanto numa como na outra paróquia

pode se verificar que os mortos de algumas famílias são lembrados em todas as missas,

111

Entrevistado E.P. Entrevista concedida em 19 de nov. 2013. 112

Entrevista especial ao jornal IHU On-Line com Leomar Antônio Brustolin(BRUSTOLIN, 2013).

Page 203: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

201

todos os dias em que ocorrem. No quadro acima, relacionamos as 10 famílias mais

lembradas nas duas paróquias e estabelecemos como meta entrevistar pelo menos um

dos ―encomendantes‖ de cada paróquia.

Na paróquia do sagrado Coração, entrevistamos uma senhora, já de certa

idade, mas, conforme ela mesma, ―desde jovem muito religiosa e seguidora dos

preceitos católicos‖. Relata-nos que é assídua nass missas e sempre encomendou missas

para seus entes queridos falecidos. No entanto, explica que foi a partir da morte de um

filho que passou a encomendar missas diárias. Emocionada, diz que, depois disso,

perdeu outro filho, que sofre muito e que só a fé a mantém de pé e completa: ―o que

mais posso fazer pelos meus filhos é rezar. Sei que Deus destinou a eles um bom lugar‖. Fez questão de frisar que assiste às missas sempre, a menos que esteja doente. E que

assim será até a sua morte.

Em se tratando da paróquia do Senhor do Bonfim entrevistamos a

responsável pelas encomendas em nome da família Ávila Alkmin. Dela ouvimos a

seguinte explicação do porquê encomenda missas diárias

Eu assim, várias vezes eu mando celebrar missas pra almas, porque são pessoas que, tem muita alma abandonada, porque as famílias acha que morreu acabou. E não acabou, né? Então essa prática veio assim todos os dias, em todos os horários depois do falecimento do meu pai que foi no dia

04 de abril, dessa data pra cá, eu faço com carinho, todos os horários, todos os dias pela alma dele e da minha família Ávila Alkmin porque eu não sei, até que geração, o que aconteceu com eles e eu penso que é o mínimo que eu posso fazer por eles que fizeram muito por mim. Porque lá agora eles não

podem fazer mais nada a não ser receber essas orações então, não só por eles, eu lembro dos amigos que já faleceram, pessoas que eu convivi...então sempre eu mando rezar missa. Agora esse carinho, foi depois do falecimento do meu pai, mandava... Antes eu mandava celebrar finados, o aniversário de morte, outras coisas, mas não assim...igual eu fiz. Então essa prática que eu adotei na minha vida foi a partir do dia 04 de abril de 2013 e falei que com a

graça de Deus eu quero ir até enquanto ele me der vida113

. Perguntada se acredita no poder da intercessão dos mortos pelos vivos ela argumentou:

eu acredito por isso que eu mando celebrar... tenho fé em Deus... e acredito nas almas porque já aconteceu fatos comigo. Porque eu viajo muito e de eu pedi alguma alma de um parente meu pra me acompanhar...senti alguma coisa assim, medo , alguma coisa e pedi uma alma, uma alma de um tio ou de uma tia pra ficar perto de mim ...então sempre quando eu vejo...eu já passei por várias situações de tá na estrada e acontecer algo que eu chamar um tio meu, um tio que faleceu...me ajuda , me desvia desse caminho, alguma coisa

assim114

. 113 Entrevistado M.A.A. Entrevista concedida em 22 de dez. 2013.

114 Idem.

Page 204: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

202

E segue seu relato deixando ver sua forte ligação como a doutrina católica e

a permanência de uma mentalidade fortemente influenciada pela religiosidade que ela

afirma ser ―tradição de família‖. Em seu discurso, rememorou episódios de luto e sua

força para ajudar a famílias que perderam os entes queridos, mas que, após a perda de

seu pai, sofreu muito e hoje vê a vida de forma diferente ―já tem 9 meses, ainda é difícil

falar sobre isso, sobre a morte porque nós não estamos preparado pra ela... mas depois

desse fato que eu perdi meu pai, então eu to encarando a vida de outra forma , eu sei que

a ajuda vem é do alto mesmo como dizia o nosso saudoso padre Leo‖. Deixa ver

também a crença no que Vovellle definiu como mercantilização da salvação em que em

troca de orações dos vivos, os mortos poderiam interceder por estes.

Destaca que manda celebrar as missas, avisa aos parentes e procura estar em

todas, porque sente ser sua obrigação

eu penso o seguinte, na minha concepção, eu mandei celebrar a missa então a obrigação é minha em assistir a missa. sabe, eu convido ,mas não sou aquela católica chata que tem que falar :você tem que procurar a igreja , você tem que rezar...você tem fazer isso, você tem que fazer aquilo. eu estou fazendo pra Deus. depois que eu perdi meu pai tudo que eu estou fazendo aqui na terra é aos olhos de Deus. não me interessa, não me interessa o que as pessoas pensam , o que o ser humano pensa a meu respeito. O que eu faço agora, dessa época pra frente é aos olhos de Deus porque eu sei que Ele vai me julgar. E Ele não vai julgar de bolinho, como eu falo com as pessoas...que a salvação é única. cada um procura a sua. Enquanto Deus deixa, porque eu tenho muito temor a Deus...eu não tenho medo de Deus, eu tenho temor a Deus porque a mão dele é pesada.

Podemos perceber a prevalência de uma concepção escatológica marcada

pela crença no juízo final e este como um juízo individual. Ao longo da entrevista,

deixou claro sua visão fortemente marcada pelas concepções escatológicas mais

arraigadas do Catolicismo. Conta que já havia reservado um túmulo no cemitério desde

2008 e que ele estava pronto, até com epitáfio que afirma ser composto pela frase que

acompanha a sua vida, cita: ‖O senhor é meu pastor e nada me faltará‖.

Relata que já teve até que repassar esse túmulo para uma família que teve

dificuldade quando num período chuvoso perdeu um parente e não tinha túmulo pronto.

Ela cedera o túmulo que já tinha reservado, retirou as placas e estruturas que já estavam

prontas. Depois a família comprou um novo terreno e a ―devolveu‖. Revela ainda que

escolheu o lugar, este deveria ser bem perto da via que dá acesso à quadra, pois assim os

visitantes de ―seu‖ túmulo não iriam sujar o pé na lama, já que em novembro é comum

as chuvas no dia de finados. Chama atenção o seu discurso

Page 205: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

203

aquilo ali eu comprei há cinco anos atrás. eu comprei pensando exclusivamente em meu pai e minha mãe, porque na realidade eu sempre falo: gente o que eu tenho eu quero deixar pra uma pessoa porque eu não

pretendo...eu não quero ser enterrada...eu quero ser cremada, entendeu. então eu não quero. isso é um desejo meu e eu já pedi pro pessoal, ou então me leva e me enterra em Dolabela onde eu nasci, porque eu não quero ser enterrada no cimento, porque eu vim do pó e...do pó...sabe ,e aqui não enterra na terra,

né! eu não sei se você viu lá ,tirou foto ,alguma coisa. É um cimento aquilo ali, então a vontade minha era isso, mas realmente quando eu comprei aquilo a cinco anos atrás ali eu comprei pensando nas pessoas, em mim não porque[...] sempre pensava :oh! pai mais mãe precisa de um cantinho e o que

eu posso fazer por eles? eles fizeram tudo por mim. Eu vou comprar e vou deixar reservado. eu posso ir até primeiro do que eles, mais ter um canto pra repousar os restos mortais[...]eu comprei nessa intenção[...]cinco anos atrás[...]o meu pai teve lá[...]os dizeres que é o salmo que eu[...]que me acompanha a vida inteira né[...]‖o senhor é meu pastor‖

então ele viu[...]115

.

Vale ressaltar que essa foi uma tônica geral nas entrevistas que fizemos com

muitos destes, deixando ver ressalvas quanto ao cemitério parque e sua proposta de

modernidade no que tange também ao enterramento em gavetas, ―na laje‖ como se

referiram116

. Com relação à forma tumular, apenas gramados e placa padrão, já

assistimos à ―resistência silenciosa‖, a nosso ver, impor túmulos edificados e, em

alguns, a recuperação da tradição de ornamentos e formas do passado, como as

reproduções de capelas.

Quanto ao aspecto das sepulturas em gavetas, talvez a resistência se

explique quando, nos últimos tempos, alguns bocaiuvenses tenham investido na

cremação (muito dispendiosa, inclusive pela distância do mais próximo centro de

cremação procurado pelos bocaiuvenses).117

Mas esse desejo ainda custa muito caro

para a maioria dos bocaiuvenses e, portanto, não se constitui como argumento possível

de se investigar como elemento indicativo de uma resistência.118

Se não o fosse,

poderíamos perceber a expressão de uma resistência maior quanto à forma de

enterramento em gavetas, como foi implantado no cemitério parque. Fica a pergunta: se

essa contraposição é mais comum do que se imagina, por que os bocaiuvenses não se

posicionaram contrários a esse modelo e, em especial, à demolição dos cemitérios

antigos?

115

Entrevistado M.A.A. Entrevista concedida em 22 de dez. 2013. 116

Para citar um exemplo, esse discurso aparece claramente na fala de uma entrevistada que apresentamos no capítulo dois. 117

Curioso destacar que um bocaiuvense cremado teve suas cinzas depositadas em uma urna e esta foi enterrada no cemitério, junto a demais parentes. 118

Talvez o seja a prática de enterramentos em cemitérios de comunidades rurais como os de Oncinha, Alto Belo, Morro Alto e outras comunidades rurais próximas a sede do município, mas isso demandaria outra investigação, outra pesquisa.

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204

As explicações são várias e podem mesmo ser analisadas como imbricadas

umas às outras. Eis o que postulamos. Primeiro, os cemitérios antigos já não tinham

mesmo capacidade para novos enterramentos e insistir em usá-los incorreria no ―pecado

da profanação‖119

que, como dito, pelo engenheiro que entrevistamos, ocorria

involuntariamente quando por falta de espaço. Ao se cavarem novas sepulturas,

deparavam com restos mortais antigos. Também conta a manipulação do imaginário

coletivo pelo discurso de modernidade e progresso só compatível com um novo modelo,

uma nova racionalidade, inclusive para a morte e para os cemitérios120

. Esse discurso

também explica a não participação no plebiscito, que, como vimos, foi pequena e, pelos

relatos de oposição à ―cova de cimento‖, esperava-se mesmo e não vimos oposição

ruidosa ao processo.

Não expusemos todos os depoimentos de todos os nossos entrevistados

nesse sentido, aqui não caberia, mas, mesmo quando a razão de entrevistá-los era a

posse de uma foto mortuária, ou aqueles que ergueram monumentos e epitáfios aos seus

mortos, ou ainda às famílias que revelaram sobre os cemitérios particulares (nas

fazendas), de todos eles, foi possível ouvir críticas à demolição do cemitério e a

afirmação de que não participaram dos plebiscitos121

.

Essa postura é recorrente na história da cidade. Em 1979, demoliram a

Igreja centenária do arraial do Bonfim e, ao que consta, não houve mobilização da

população no sentido de evitar tal ato. Hoje, o sentimento que se percebe na cidade,

especialmente entre os bocaiuvenses de uma determinada geração, é de pesar pela

destruição de um marco da origem do lugar. Isso se verifica na forma como alguns têm

se utilizado dessa necessidade de memória, ao criarem réplicas dos edifícios que

estiveram presentes no passado da cidade.

É o que podemos concluir da réplica da Igreja Matriz do Senhor do Bonfim,

construída no pátio do hospital municipal, no ano de 2008. Esta mesma réplica, em

forma de fotografia, estampa a capa de um guia telefônico da cidade e microrregião.

Também um supermercado da cidade estampa a cidade antiga e seus marcos materiais

em banners que adornam a estrutura de seus caixas. Insistimos nessa descrição para 119

Alguns assim entenderam e se referiram à demolição dos cemitérios. 120

Na entrevista que nos concedeu, o engenheiro que projetou o cemitério parque admitiu que à época ―muitos resistiram ao cemitério‖. Entretanto para ele se deveu, apenas, à distância da cidade. 121

Cinco de nossos entrevistados moram bem próximos dos cemitérios demolidos, embora não seja no entorno. Causa estranhamento a afirmação de que não ficaram sabendo, uma vez que pelo menos do cemitério do Bonfim, o plebiscito foi divulgado. Nenhum dos nossos entrevistados afirmou ter participado de qualquer um dos plebiscitos.

Page 207: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

205

reforçar nosso postulado de que os imaginários, as práticas e a memória de um povo

podem resistir, de formas inusitadas às imposições e à dinâmica do processo civilizador.

Será possível ver, no futuro, a pressão do imaginário coletivo incitar algum governante

ou um comerciante a criar réplicas dos cemitérios antigos? Não cremos! Contudo, talvez

possamos afirmar que o crescente processo de edificação no Cemitério Parque Santa

Lucia já funcione como uma recriação dos cemitérios antigos. É a força do imaginário

que se materializa nas representações sociais percebidas na cidade e no seu cemitério.

Page 208: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

206 Considerações Finais

“Mas, em História, o livro perfeito, o livro que jamais será escrito, não existe”.

Fernand Braudel

Ainda que não exista a ―verdade histórica‖, com a reflexão acima hão de

concordar os pesquisadores de diferentes ―escolas e matizes‖, pois exprime, talvez, a

―única verdade‖ da qual os historiadores não podem duvidar. Portanto, permite-nos

admitir os limites e a incompletude deste trabalho.

No entanto, ao chegarmos às páginas finais deste incipiente e singelo

trabalho, é preciso dizer do quanto ele é resultado de uma busca por compreender dois

fenômenos, que se pode dizer, são por demais desafiadores. Primeiro, um fenômeno de

caráter universal, que mobiliza os homens de todos os tempos e lugares da terra, na

busca por refletir o mistério maior que é a morte e que, de tão insondável, ou melhor,

insolúvel, no sentido de que não se chegará, acreditamos, nunca a decifrá-lo, permite ao

homem se contentar em produzir especulações filosóficas e buscar, no sentimento

religioso, algumas possibilidades de conformação.

A partir destas, ao longo de sua trajetória pela história, o homem, e aí

obviamente o historiador que se ocupa de tarefa tão instigante, só pode inferir sobre as

criações humanas e essas, por sua vez, materializam-se na cultura, tanto material quanto

imaterial. Ou seja, as criações do espírito humano se expressam tanto naquilo que este

ritualiza, como naquilo que estes ritos materializam e, assim, permanecem como legado

às futuras gerações.

Neste ponto, para nos fazermos entender, estamos a pensar no patrimônio

que uma dada sociedade cria, significa e ressignifica, resguarda ou descarta, lembra e

esquece, reconstrói, desconstrói e constrói num ir e vir dialético, permanente, vivo. Esse

é o segundo fenômeno que tentamos compreender: como uma sociedade se relaciona

com o que ela própria produz/reproduz. Ou seja, o que e como ela entende o seu

patrimônio cultural, especialmente em se tratando do patrimônio cultural, em relação às

questões fúnebres. Aliás, eis uma indagação geradora: a sociedade pensa e entende as

criações em torno da morte como um patrimônio?

Foram esses os desafios que nos mobilizaram: refletir sobre a história da

morte e o morrer no Ocidente cristão, sobre as suas formas de enterramento e os ritos e

práticas fúnebres e, as ―ressonâncias mentais‖ que estes processos impuseram e impõem

Page 209: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

207

sobre uma ―pequena – grande cidade‖ de Minas Gerais, parafraseando o bocaiuvense Herbert de Souza – Betinho.

Embora não tenhamos nos detido numa discussão conceitual e teórico-

filosófica sobre o patrimônio cultural,e admitindo antes que nosso trabalho se insere

muito mais na perspectiva das mentalidades, do imaginário coletivo e das

representações sociais, entendemos, entretanto, que aí estão presentes dois aspectos que

esperamos terem sido, ainda que minimamente, contemplados: a memória coletiva e o

patrimônio cultural dos bocaiuvenses em torno da morte, das práticas e rituais fúnebres

e do lugar de ocultação da morte.

Isso posto, pretendemos justificar o título desse trabalho – Cemitério – entre

tumbas e esquecimento, um patrimônio à sombra da memória. Afirmamos acima que o

cemitério é também o lugar de ocultação da morte. E, a nosso ver, não há nenhum

paradoxo nessa assertiva. Sim, o cemitério é, não só o lugar de ocultação do corpo

inerte, morto, é também a ocultação da morte! Afinal neste, por meio dos epitáfios,

expressão de esperanças escatológicas de um reencontro num reino celestial ou num

outro lugar no ―além‖, ou de celebração da memória do vivente que passou à outra

dimensão, das promessas de saudades eternas e amor infinito que estes ensejam, bem

como mediante as representações sociais que se materializam nas formas tumulares, nos ―investimentos‖ que se fazem em relação aos nossos mortos, seja na visitação ao

cemitério e aos túmulos, seja nas orações e solicitações de missas pelos que se foram, o

que se busca é a elaboração do luto e, assim, a condição de continuar o caminhar da

vida pela terra.

E tudo isso se constitui no patrimônio cultural de uma sociedade. Até

mesmo o abandono dos túmulos e dos cemitérios e talvez até da memória dos mortos,

funciona como expressão do patrimônio cultural de uma sociedade, pois revela, como

dissemos, a mentalidade, o imaginário e as representações dessa mesma sociedade.

Estes são, como nos aponta Marcelina das Graças Almeida, ―testemunhos, registros

derradeiros legados por nossos antepassados‖ e se constituem como nosso patrimônio

cultural. E se assim, como afirma a autora ―O cemitério reflete, traduzindo, a cidade que

nele se espelha‖ (ALMEIDA, 2007,328), podemos dizer que, em Bocaiuva/MG, os

imaginários coletivos, as representações sociais e a mentalidade construída no passado,

também sobre os cemitérios e a morte não se desvanecem no presente. Elas se

ressignificam, se reinventam.

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208

Num primeiro momento, pretendíamos entender por que a população da

cidade não atuou mais explicitamente em relação à demolição dos cemitérios centrais da

cidade, seja defendendo-a ou não. Obviamente, podia se especular que o silêncio

poderia ser resultado, ou de uma acomodação /conformação com as deliberações

empreendidas pelo poder público, em sintonia com os interesses de alguns, ou reflexo

de uma mentalidade completamente avessa e alheia à morte e tudo que dela deriva.

Talvez seja prematuro dizer, pelos limites que reconhecemos neste trabalho, contudo,

acreditamos que, em boa medida ele deixa ver que, nem um nem outro.

Page 211: cemitérios entre tumbas e esquecimento um patrimônio à sombra

209

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214 Isabela Nunes José Alderico Silva José Fernandes Leite Vieira Leandro Macedo Lucimara Aparecida Ávila Alkmim Marcelina das Graças Almeida Maria Cleuza Barroso de Souza Maria da Glória Santos Maria Helena Siqueira Santos Maria Luisa Chaves Maria Marlene Barroso Guimarães Maria Olinda de MacedoCatone Maria Siqueira Marlene Pereira dos Santos Michael Jeffersson Rayara de Araujo Siqueira Roberto Ribeiro de Andrade Terezinha Lopes Wanderley Cardoso Graciele Karine Siqueira

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Anexos

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Termo de Cessão de Direito de Publicação de Imagem e Entrevista

Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES Programa de Pós Graduação em História Social –PPGH Projeto de Mestrado em História Social Título: Cemitérios: entre tumbas e esquecimento – um patrimônio à sombra da memória Pesquisadora: Renata Mirian Alves Orientadora: Drª Jeaneth Xavier de Araújo Parecer autorização do CEP-Comitê de Ética em Pesquisa Nº 435.892

Eu,____________________________________________________,RG___________,residente

e domiciliado na cidade de Bocaiuva-MG, declaro que concedi , por livre e espontânea

vontade, entrevista e /ou imagens à pesquisadora Renata Mirian Alves, RG M-5.175.498, bem

como autorizo a publicação dos mesmos para fins da dissertação acima identificada, tendo

sido a mim esclarecidos os objetivos da referida pesquisa.

Por ser verdade, firmo o presente.

Bocaiuva, _____de_____________________de 2013.

___________________________________________________________ Assinatura do entrevistado /cedente

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