entre safras e sonhos
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP
MARIA ANDRÉA ANGELOTTI CARMO
EEnnttrree ssaaffrraass ee ssoonnhhooss:: Trabalhadores rurais do sertão da Bahia à lavoura cafeeira do cerrado mineiro
1990-2008.
DOUTORADO EM HISTÓRIA
SÃO PAULO 2009
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
MARIA ANDRÉA ANGELOTTI CARMO
EEnnttrree ssaaffrraass ee ssoonnhhooss:: Trabalhadores rurais do sertão da Bahia à lavoura cafeeira do cerrado mineiro
1990-2008.
DOUTORADO EM HISTÓRIA Tese apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para obtenção do título de Doutora em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob orientação da Profa. Doutora Heloisa de Faria Cruz.
SÃO PAULO 2009
BANCA EXAMINADORA
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Ao Luiz Carlos, com amor.
À Ana Luiza Regia,
Pelo partilhar da experiência de ser/estar “de fora”; o
desafio da partida e a alegria do retorno.
AGRADECIMENTOS
Ao finalizar o trabalho muitas pessoas são lembradas pela sua participação
efetiva ou pela simples torcida no processo de desenvolvimento do trabalho. Faço meus
sinceros agradecimentos às pessoas abaixo mencionadas e a todos aqueles que
contribuíram para que pudesse encerrar mais esta etapa de minha formação.
À professosa Heloisa de Faria Cruz, orientadora e amiga, agradeço a confiança
depositada de longa data, o respeito às minhas limitações e a cobrança, a oportunidade
do contato com a profissional engajada e envolvida com as questões sociais que me
ensinou a observar a sociedade, analisá-la mas também agir.
Ao Professor Afrânio Garcia agradeço a acolhida no Estágio Sanduíche junto ao
Centre de Recherches sur le Brésil Contemporaine, na Ècole des Hautes Études en
Sciences Sociales em Paris, bem como suas valiosas contribuições, indicações de
leituras e possibilidades de abordagem neste trabalho, que, certamente, lhe deve muito,
sem responsabilizá-lo pelas questões que não foram suficientemente exploradas ou
tratadas.
Às professoras Yara Khoury e Maria do Rosário do Programa de Estudos Pós-
graduados em História pela PUC/SP agradeço o comprometimento e o cuidado no
exame de qualificação sem, com isso, serem responsáveis pelos problemas que possam
existir no trabalho. Aos demais professores do Programa de Estudos Pós-graduados em
História da PUC/SP as discussões calorosas e indicações durante este período de
formação.
Aos profissionais e colegas de trabalho cujo contato contribuiu para o meu
aperfeiçoamento profissional.
Aos meus pais, Vitório e Conceição, camponeses-migrantes, o amor, o carinho,
o apoio e a formação que me permitiu olhar para as pessoas com alguma sensibilidade.
Ao senhor João e senhora Benedita, os muitos ensinamentos dados com seu
exemplo, o apoio e o carinho.
Ao Florisvaldo agradeço suas contribuições, leituras e indicações que muito
auxiliaram a pensar as problemáticas deste trabalho. À Vilma pela torcida e carinho.
Ao Amailton e à Egle, presentes desde há muito, pela acolhida despojada, pela
amizade e torcida, pela solidariedade em momentos difíceis, por tornarem as passagens
pos São Paulo mais prazerosas, calorosas e alegres.
Ao José Campaner e à Ana Paula, a amizade, o apoio, o companheirismo ao
longo desta jornada, pela presença constante e o compartilhar de grandes alegrias e
também dos desafios sempre com muito carinho.
Toda minha gratidão ao Adriano e à Fernanda, Fabiano, Luciane, Abes, Lúcia,
Nayara, Lourdinha, Wendel e Luciene, Reinaldo e Nilza, Diarone e Rosyane, pelo
encorajamento, pela presença muitas vezes à distância, manifestada através do apoio e
da afeição. Às crianças que me ensinam a ter esperança a cada dia e, o quanto é bom vê-
los crescer: Inaê, Gabriel, Andressa, João Vitor, Eliza, Bárbara, Tiago, Vitória, Izadora,
Carla Gabriela, Diego e Mariana.
Ao Luiz Carlos a paciência, o companheirismo e a dedicação em se esforçar para
compreender as problemáticas do trabalho de pesquisa e minha ansiedade em buscar
novas possibilidades para pensar algumas questões que nos mantiveram distantes por
um semestre; as contribuições que ofereceu como historiador envolvendo-se com a
mulher-pesquisadora que muitas vezes fez do almoço ou jantar conferências e
momentos de socialização de experiências de pesquisa. À Ana Luiza Regia, sua alegria
e seu entusiasmo que tornaram o processo de pesquisa e de escrita muito mais prazeroso
com a sua presença e vibração, pela sua forma doce de enfrentar grandes desafios e
dificuldades tornando-os alegres lembranças.
À família de Carminha, Nicolau e Fabrícia agradeço a acolhida e o compartilhar
não somente de um teto mas de um modo de vida que muito contribuiu para este
trabalho e a todos os demais entrevistados no Povoado de Horizonte Novo e região,
cujas experiências de vida foram relatadas com grande entusiasmo a uma desconhecida.
À Noemi Campos Freitas Vieira, agradeço a paciência e dedicação na correção e
formatação final do texto. Ao Antônio Santiago agradeço as contribuições nas
adaptações dos mapas.
Ao CNPq agradeço o suporte financeiro através do qual foi possível a realização
da pesquisa e desenvolvimento do trabalho. À CAPES a oportunidade de intensificar
algumas problemáticas e discussões no Estágio-Sanduíche desenvolvido junto à École
des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, França.
Entre safras e sonhos: Trabalhadores rurais do sertão da Bahia à lavoura cafeeira do Cerrado Mineiro
1990-2008.
Maria Andréa Angelotti Carmo
RESUMO
Este trabalho problematiza as experiências de um amplo grupo de trabalhadores
e as múltiplas relações que estabelecem, a partir da inserção no universo do trabalho nas
lavouras de café das regiões do Triângulo Mineiro e do Alto Paranaíba. Articula-se a
reflexão acerca das novas formas de relações de trabalho emergentes no campo
brasileiro nas três últimas décadas, e que são tributárias das transformações sociais em
geral, que impactam os modos de trabalhar e de viver de enormes contingentes de
homens e mulheres na vida rural deste país. O estudo teve como foco a história de
grupos de homens e mulheres residentes na região de Monte Santo-BA que se
deslocam, há pelo menos quinze anos, para os trabalhos na safra de café na região do
cerrado mineiro entre os meses de maio e setembro. A pesquisa levou a desvendar as
formas como são recrutados, como se organizam em grupos, como vivem nos precários
alojamentos, quais redes estabelecem no sentido de comporem os grupos observados.
Compreendeu-se elementos da região produtora de café, as estratégias elaboradas pelos
produtores/empregadores para recrutarem esta mão-de-obra, dentre outros.
Metodologicamente, a partir da análise das narrativas e depoimentos dos trabalhadores,
para além da relação trabalhista nas lavouras, inúmeras outras questões referentes aos
valores e aos modos de viver dos indivíduos em sua região de origem surgiram. Fez-se
então necessário empreender o movimento de conhecer o local de onde partiam os
sujeitos entrevistados. Entrevistar parentes, amigos, e os próprios trabalhadores já
conhecidos nas lavouras de café e analisar suas narrativas exigiu novo esforço de
compreensão da lógica que regia a vida daqueles sujeitos, de suas opções, de seus
diálogos, de suas motivações e de sua inserção nestas realidades. Aos poucos deparei-
me com um conjunto cultural, com aspectos de suas histórias que não se iniciam com o
deslocamento, mas que permeiam as suas estratégias e compreensões de mundo, no qual
o movimento de deslocar-se de um lugar para outro é apenas mais um de seus
momentos e de suas lutas. Esta trajetória da pesquisa permitiu problematizar algumas
noções de migração ou movimentos de deslocamento populacional. Conhecendo a
região de Monte Santo, na Bahia, compreendi parte desta história e das disputas nas
quais se inserem como homens e mulheres, pequenos agricultores, moradores dos sítios
e povoados, que avaliam, analisam possibilidades em busca de melhores condições de
vida sem ter que partir em definitivo de seu local de origem.
Palavras-chave: Assalariados rurais. Lavoura cafeeira. Pequenos agricultores.
ABSTRACT
This work problematizes the experiences of a large number of workers, and the
multiple relations they establish when inserted in coffee farm work in the region of
Triângulo Mineiro and Alto Paranaíba. Furthermore, the work seeks reflective thinking
about the new work relations which have been emerging from the Brazilian rural area in
the last three decades, and which are due to general social transformations which impact
the ways of working and living of a huge number of men and women from the rural
areas of this country. This study focused on the history of groups of men and women
who dwell in the region of Monte Santo – Bahia – and who have been traveling to work
on the coffee farms in the region of Cerrado Mineiro for at least fifteen years between
the months of May and September. The research has led us to reveal how they are
recruited, how they organize themselves in groups, how they live in precarious housing,
as well as which networks they establish in order to compose their groups. The study
has allowed a better understanding of the region which grows coffee, the strategies
elaborated by the producers/employers in order to recruit the workers, among others.
Methodologically, several other questions regarding the values and the ways of living of
the individuals have aroused not only in their work relations in the farms, but also in
their region of origin. This was possible due to the analysis of workers’ narratives, and
their statements. Hence, it was necessary to understand the area where the subjects
originally came from. When interviewing the relatives, friends and the coffee farm
workers themselves, as well analyzing their narratives, demanded new effort in order to
understand the logic which guides the lives of these subjects, their options, their
dialogues, their motivation, and their insertion in this reality. In time, I came to observe
a culture set with aspects of their histories which do not start with their moving, but
permeate their strategies and understandings of the world, in which the movement of
going from one place to another is only another of their moments and struggles. This
line of research has allowed us to problematize some notions of migration, or the
movement of groups of individuals from one place to another. When I visited the region
of Monte Santo, in Bahia, I understood part of this history and the dispute among men,
women, small farmers, dwellers from small properties in the country and small towns in
the countryside, who evaluate and analyze possibilities in the search for a better life
which does not mean leaving their hometowns.
Keywords: Rural salary workers. Coffee farms. Small farmers.
LISTAS DE ILUSTRAÇÕES
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Mapa dos municípios do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, Minas Gerais.......................................................................................................... 43
Figura 2 - Percurso dos trabalhadores da Bahia para a região cafeeira no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, Minas Gerais.................................................... 65
Figura 3 - Mapa do município de Monte Santo-BA................................................... 165
Figura 4 - Mapa da distribuição e número das Associações de Fundo e Fecho de Pasto identificadas no estado da Bahia, 2005....................................................... 213
Figura 5 - Carta da ACARPA aos cafeicultores.......................................................... 242
Figura 6 - Mapa: Região demarcada do Café do Cerrado........................................... 248
LISTA DE FOTOS
Foto 1 - Ensacamento da medida de grãos de café.................................................. 84
Foto 2 - Derriça do cafeeiro com utilização de escada............................................ 86
Foto 3 - Abanação do café………………………………………………………... 88
Foto 4 - Relações comerciais e sociais na feira em Monte Santo-BA..................... 192
Foto 5 Vista aérea da Praça Monsenhor Berenguer onde são realizadas as feiras em Monte Santo-BA 193
Foto 6 Mulheres aguardam para retirar água......................................................... 203
Foto 7 Açude que serve como reserva de água para a família do Sr. Valdir e os vizinhos da comunidade do Sítio do Geraldo 206
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 - Implementação das principais obras públicas em Horizonte Novo-BA..... 169
Quadro 2 - Produção Agrícola do município de Monte Santo no ano de 2007............ 188
Quadro 3 - Efetivo de animais – Monte Santo, no ano de 2007................................... 190
Quadro 4 - Número de estabelecimentos educacionais municipais e estaduais no município de Monte Santo......................................................................... 196
Quadro 5 - Área de terras devolutas no Brasil por Unidade da Federação................... 210
Quadro 6 - Municípios baianos e os respectivos números de Associações de Fundo de Pasto............................................................................................................. 214
Quadro 7 - Associações e Comunidades de Fundos de Pastos no município de Monte Santo-BA..................................................................................................... 215
Quadro 8 - Crescimento da área cultivada (ha) – Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba... 224
Quadro 9 - Crescimento da mão-de-obra temporária em alguns municípios do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba............................................................................. 229
Quadro 10 - Produção de café no Brasil.......................................................................... 247
Quadro 11 - Distribuição geográfica de “Prêmios Brasil de qualidade do café expresso Illy” - 1991-2007.......................................................................................... 249
Quadro 12 - Número de casos atendidos no NINTER – 1994-2006….…………..…….. 263
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 - Valores e encargos a serem pagos aos trabalhadores nas lavouras de café, segundo a CLT............................................................................................... 243
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ABAG - Associação Brasileira do Agribusiness
ACA - Associação dos Cafeicultores de Araguari
ACARPA - Associação dos Cafeicultores da Região de Patrocínio
AMOCA - Associação dos Cafeicultores de Monte Carmelo
CACCER - Conselho das Cooperativas de Cafeicultores do Cerrado
CLT - Consolidação das Leis do Trabalho
COOCACERS - Cooperativas dos Cafeicultores do Cerrado
COOPERSETRA - Cooperativa de Serviços dos Trabalhadores Rurais e Urbanos Autônomos Ltda.
CPR - Cédula do Produtor Rural
ET - Estatuto da Terra
ETR - Estatuto do Trabalhador Rural
FENICAFÉ - Feira Nacional de Café
FUNDACCER - Fundação de Desenvolvimento do Café do Cerrado
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IGAM - Instituto Mineiro de Gestão de Águas
NINTER - Núcleo Intersindical de Conciliação Trabalhista Rural
PADAP - Programa de Assentamento Dirigido do Alto Paranaíba
POLOCENTRO - Programa de Desenvolvimento do Cerrado
PRODECER - Programa de Cooperação Nipo-brasileira para o Desenvolvimento dos Cerrados
STRA - Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Araguari
STRP - Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Patrocínio
SUMÁRIO
Considerações iniciais.................................................................................................... 13
PRIMEIRA PARTE
CAPÍTULO 1 Trabalhadores rurais: ser/estar “de fora”.................................. 40
1.1 Perspectivas sobre os trabalhadores.......................................... 41
1.2 Significados do trabalho na lavoura de café.............................. 62
CAPÍTULO 2 Colher café: espaços do trabalho e da sociabilidade................. 75
2.1 Experiências cotidianas: construindo saberes........................... 76
2.2 As relações sociais e os alojamentos......................................... 99
2.3 As relações sociais e a venda.................................................... 118
SEGUNDA PARTE
CAPÍTULO 3 As viagens para Minas: percepções sobre o processo............... 129
3.1 Depois de Minas........................................................................ 130
3.2 Representações de Minas e das viagens.................................... 146
CAPÍTULO 4 Horizonte Novo: perspectivas e horizontes de seus moradores.................................................................................. 162
4.1 Ser da terra, do lugar ................................................................ 163
4.2 A pequena produção.................................................................. 181
4.3 A Escola ................................................................................... 194
4.4 As comunidades rurais ............................................................. 203
TERCEIRA PARTE
CAPÍTULO 5 Ser trabalhador na lavoura de café: enfrentamentos e organizações.............................................................................. 220
5.1 A cultura do café no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba........ 221
5.2 Organizações e mediações das relações de trabalho................. 231
5.3 Enfrentamentos das relações de trabalho: a organização dos produtores.................................................................................. 241
5.4 “Conciliações” das relações de trabalho.................................... 259
CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................... 267
FONTES.......................................................................................................................... 274
REFERÊNCIAS............................................................................................................... 289
Considerações iniciais
Esta pesquisa é o estudo de um amplo grupo de homens e algumas mulheres e as
múltiplas relações que estabelecem, a partir da inserção como trabalhadores temporários no
universo do trabalho nas lavouras de café no Cerrado Mineiro. Interessa a esta análise alguns
dos elementos que compõem a discussão acerca das novas formas de relações de trabalho
emergentes no campo brasileiro nas três últimas décadas, e que são tributárias das
transformações sociais em geral, que impactam os modos de trabalhar e de viver de enormes
contingentes de homens e mulheres na vida rural deste país. Importa ainda, analisar a
experiência social de homens e mulheres das regiões do norte da Bahia que se deslocam para
as regiões do Triângulo Mineiro e partes do Alto Paranaíba em Minas Gerais em busca de
trabalho nas lavouras de café a partir dos anos de 1990.
A presença de grupos de pessoas que se deslocam de algumas regiões brasileiras para
as lavouras de cana de açúcar, a colheita da batata, para o desenvolvimento de alguns tratos
culturais de diversos gêneros alimentícios e de matéria prima para a indústria tem sido uma
constante na história brasileira. Respeitando as peculiaridades de cada momento histórico
pode-se pensar nos processos de produção de gêneros agrícolas que, a partir da utilização de
grande mão-de-obra, foi responsável por intensos movimentos migratórios e de deslocamento
da população, entre estes pode se listar a presença dos soldados da borracha, em que o
deslocamento de populações de trabalhadores recebera conotações de patriotismo, dentre
outras. Ainda, de maneira indireta, a construção de um grande número de cidades brasileiras,
das regiões sudeste e sul, que contaram com deslocamentos de grupos distintos, e também
com o deslocamento de um grande percentual de pessoas, num processo que, longe de ser
linear, possui peculiaridades singulares a cada momento histórico, mas que em alguns, parece
invisível à medida que grandes grupos encontram-se em movimentos contínuos de uma região
para outra em constantes idas e vindas.
Diante desse quadro, tem-se que na recente história social do Brasil, o deslocamento
de populações tem sido elemento constitutivo do processo produtivo de setores diversos, não
apenas dos relacionados à agricultura, mas também à indústria, à construção civil e ao setor de
serviços.
A compreensão destas questões leva a observar que em outros locais do país, onde a
produção agrícola também assume características de atendimento rápido de mercados, a mão-
de-obra sazonal é ocupada em diferentes momentos e é mais comum do que parece. Enquanto
14
nos estudos sobre a agricultura brasileira estes movimentos aparecem muito ligados aos
trabalhos no corte da cana-de-açúcar, na colheita da laranja, na colheita do café – mais
recentemente em países da América Latina como o México, Argentina e Chile, e também em
alguns países europeus como a França e a Bélgica –, este tipo de trabalho temporário e
sazonal é muito freqüente e marca, entre outras possibilidades, algumas formas de pensar a
presença de alguns grupos na sociedade e determinadas formas de se produzir que passam
pelo processo da agricultura intensiva, assim como pela produção destinada aos grandes
mercados.
No caso do México tem-se um grande número de trabalhadores em constante
movimento nas atividades temporárias da produção do tabaco e na horticultura,
principalmente a partir dos anos 1980. Na Argentina observam-se estes movimentos de
trabalhadores especialmente nas colheitas de frutas e legumes desde a década de 19901, assim
como no trabalho de embalagem destes produtos, cujas indústrias se localizam nas periferias
das grandes cidades com o objetivo de empregar não somente os trabalhadores temporários do
campo, mas também do meio urbano. Em geral, o que se observa nestas regiões de agricultura
intensiva é o aumento dos empregos temporários e sazonais, a urbanização dos trabalhadores
rurais, o aumento da pluriatividade entre os trabalhos agrícolas e a precarização do trabalho
rural, significando, em muitos casos, o cruzamento de circuitos de migrações interna e
também internacional2.
Na França, intensas discussões são travadas acerca da presença dos trabalhadores
sazonais nas lavouras de frutas e legumes, as suas condições salariais e de trabalho, assim
como a própria condição de temporário que é, de algum modo, condicionada pela natureza na
maturação dos frutos, observando-se que este tipo de trabalho é tido como a última opção do
trabalhador que o faz após ter explorado todas as demais possibilidades de inserção no
mercado de trabalho3.
Nesta direção, é crescente a importância dos estudos sobre os movimentos de
migração e de constante movimentação dos grupos sociais de um lugar para outro, de lugares
os mais variados para regiões que sugerem maiores possibilidades de emprego e de
manutenção da vida. Estes, no entanto, não são movimentos novos na sociedade brasileira e 1 Para melhor compreender estes movimentos, ver: Migrations Société: agriculture et migrations en Amérique Latine. Paris, CIEMI, v. 20, n. 115, janv./févr. 2008. 2 Conforme apresenta FLORES, Sara María Lara. Le mouvement migratoire et les enclaves de l’agriculture intensive en Amérique Latine. Migrations Société. Paris, CIEMI, v. 20, n. 115, p. 39-56, janv./févr. 2008. 3 O Ministério da Agricultura e da Pesca francês publicou em 2001 um estudo sobre os trabalhadores sazonais apontando para os problemas enfrentados por estes trabalhadores e o nível de exploração a que estão submetidos (cf. Étude sur le travail saisonnier et ses salariés dans les secterus des fruits et legumes. Publication de le Ministère de l’agriculture et de la pêche, Paris, 2001).
15
compõem o cenário produtivo no país, que somam e perfazem um conjunto importante de
relações sociais.
Desse amplo quadro de movimentação de grupos da população e do conjunto de
relações que estabelecem em cada região, em cada inserção de trabalho, interessa neste
trabalho, a construção histórica que marca a forma como um grupo de pessoas advindas do
interior do estado da Bahia tem, de forma continuada, construído vínculos, disputado
possibilidades, encaminhado demandas, imprimido marcas e significados, dentre outros
pontos da relação construída por meio dos anos consecutivos de trabalho nas colheitas de café
nas fazendas da região denominada Cerrado Mineiro.
Esse conjunto de relações insere-se num universo mais amplo, que dentre outras
formas de se concebê-los, têm sido compreendidos como sujeitos integrantes dos fluxos dos
movimentos populacionais nos quais os sujeitos passaram a ser denominados trabalhadores
temporários interregionais. Em linhas gerais, pode-se afirmar que aproxima-se desta noção
por possuírem um conjunto de elementos característicos, como o fato de que se afastam de
sua região de origem por alguns meses para a busca de recursos e outros meios de
manutenção de suas vidas, retornando ao final dos trabalhos em algumas atividades agrícolas
sazonais.
No tocante à produção acadêmica, tais movimentos aparecem tratados em diferentes
momentos da história do país, assim como aparecem diferenciados em sua forma podendo se
apresentar como definitivos ou temporários para aqueles que se deslocam. Nesse sentido, o
enfoque de análise parece apontar para o movimento da saída de um lugar rumo a outro, para
ali se estabelecer definitivamente e iniciar uma nova dinâmica de vida; e também, para a saída
temporária de uma região para outra, com o retorno já previsto em função de um aspecto da
relação de trabalho; há ainda o grupo das mobilidades mais imediatas, com o deslocamento do
local de moradia para o local de trabalho, como é o caso dos trabalhadores rurais bóias-frias,
que se deslocam diariamente da cidade para o campo. Dessa forma, a mobilidade assume o
lugar privilegiado e/ou da entrada da investigação proposta pelas análises, na busca por
compreender as relações, o diálogo com a condição e a situação desses trabalhadores, num
processo em que as pessoas ponderam suas escolhas, tecem estratégias e avaliações diversas;
externam e/ou silenciam compreensões sociais elaboradas após anos de experiências vividas.
É difícil negar que a mobilidade espacial, que compõe a sociedade atual, aparecendo
em diferentes países e apresentando-se com características cada vez mais peculiares como,
por exemplo, a intensa migração vivenciada pelos argelinos em direção à França nas duas
últimas décadas, pelos mexicanos em direção aos Estados Unidos ao longo dos últimos anos,
16
e outros tantos que buscam outras regiões, países e continentes, não somente com a
perspectiva de melhorar sua condição de vida, mas também à procura de asilo e de refúgio4.
No tocante às lavouras de café, em que as pessoas ali encontradas como
“trabalhadores” vindos do norte da Bahia inserem-se nas últimas três décadas, as fazendas
cafeicultoras da região do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, no estado de Minas Gerais,
despontam no cenário agrícola brasileiro e também internacional como produtoras de um café
de excelente qualidade, algumas agraciadas com o reconhecimento na forma de prêmios de
excelência, normalmente disputados com os demais produtores das diversas regiões em nível
nacional5. Há que se considerar que estes prêmios vêm normalmente, associados às
qualidades técnicas da produção local e às características produtivas da região do cerrado6.
Em contraste a toda a propaganda do produto colhido na região, dos holofotes das
premiações, feiras, mostras de produtos, dentre outros espaços midiáticos onde são lançados;
aos louros do empreendedorismo, os seus produtores, em que destacam parcelas dos
processos de mecanização de diversas etapas dos tratos culturais; das últimas gerações de
equipamentos que imprimem um aspecto de modernização disponível para esse tipo de
produção; pouco se menciona sobre aqueles que efetivamente trabalham nas lavouras, pouco
se tem acerca do grande número de trabalhadores recrutados em outras regiões do país para os
trabalhos da safra, quase nada se diz sobre as relações de trabalho que são articuladas nas
presentes formas de produção na região.
Parte deste panorama é vivenciado por um grande número de pessoas em uma
movimentação diária da cidade para as lavouras de café como os da região de Araguari, no
Triângulo Mineiro, e que se tornaram objeto de estudo em minhas pesquisas de mestrado do
Programa de Pós-Graduação em História da PUC/SP, publicada sob o título Lavradores de
Sonhos: Saberes e (Des)caminhos de trabalhadores volantes, 1980-20007. Nesse estudo,
busquei compreender o cotidiano de homens e mulheres expropriados de uma condição de
trabalhador assalariado no campo – pequeno produtor, arrendatário ou parceiro, entre outras
relações estabelecidas naquele espaço –, que haviam sido impelidos a sair da zona rural em
direção às cidades, onde passaram a morar nas periferias e a ocupar postos de trabalhos na
4 Entre os diversos estudos que tratam esta temática ver: SAYAD, Abdemalk. La double absence. Paris: Seuil, 1999. 5 Ao longo da década de 1990 a região recebeu a maior parte dos prêmios Brasil de Qualidade de Café Expresso, patrocinados pela empresa italiana Illy Caffè. 6 Nesse sentido ver: Revista Época, 20/07/1998, com matéria intitulada “A Nobreza do Cerrado”, em que se destaca o sucesso de alguns produtores na região de Patrocínio e de Monte Carmelo, bem como se enaltece a qualidade do café colhido na região. 7 A dissertação foi defendida em 2001 sob o título “Trabalhadores bóias-frias”: experiências rurais e urbanas em Araguari-MG, 1980-2000 e publicada no ano de 2006 pela EDUC, editora da PUC/SP.
17
construção civil, em empregos domésticos, de faxina, entre outras e, voltaram ao campo na
condição de trabalhador rural volante e temporário. A pesquisa, com base nos relatos e
depoimentos dos trabalhadores, possibilitou conhecer as formas como estes indivíduos e suas
famílias, expropriados da condição de morador e trabalhador do campo, passaram a residir nas
periferias das cidades da região e voltaram ao trabalho no campo, assim como conviviam com
essa nova relação.
A pouca ou quase nenhuma visibilidade desses sujeitos presentes nas lavouras de café,
a ausência de informações, seja sobre a grande movimentação destes trabalhadores e o que
eles enfrentavam em seu cotidiano para trabalhar, seja sobre a natureza de sua inserção
naqueles processos produtivos, ou ainda, sobre possíveis disputas e resistências ali
emergentes, era algo instigante. As referências dos diversos documentos relacionavam-se
basicamente à qualidade da produção do Cerrado, ao avanço da mecanização e ao aumento da
produtividade. Nos poucos registros públicos, como os da imprensa local, os trabalhadores
apareciam meramente como um fator de produção, subsumido ou derivado das
transformações da agricultura na região, o que pode ser exemplificado no trecho da matéria
que aponta que, nessa área, a “intensa mecanização libera muita mão-de-obra. Mas o
desemprego não é problema sério porque ela [a lavoura de café] é importadora de
trabalhadores na época da colheita”8.
A presença da expressiva produção cafeeira em algumas cidades do Triângulo Mineiro
e Alto Paranaíba, sua importância para a economia local e a ausência de valorização dos
homens e mulheres trabalhadores nessas mesmas lavouras tornava-se foco para o olhar de
quem, de alguma forma, havia se envolvido com o conhecimento da região e da atividade
agrícola ali praticada. Este conhecimento se ampliou com as pesquisas desenvolvidas no
mestrado, no qual foi possível conhecer os grupos de trabalhadores que se empenhavam na
atividade temporária como trabalhador bóia-fria e a partir dos quais tive as primeiras
impressões sobre os trabalhadores “de fora” que pareciam ocupar os postos de trabalho locais.
Na ocasião, investiguei a natureza e os significados sociais da presença desses trabalhadores
volantes nas lavouras de café e seu cotidiano, assim como compreendi a dinâmica na qual se
encontravam inseridos e apontavam para as disputas com os trabalhadores “de fora”.
Foi a partir desta pesquisa sobre o cotidiano e sobre os modos de viver de homens e
mulheres, trabalhadores rurais volantes residentes na região, que deparei com outros grupos
de trabalhadores, em sua grande maioria homens – adolescentes, jovens, casados, solteiros –
8 A NOBREZA do Cerrado. Revista Época, 20 jul. 1998.
18
muitos dos quais provenientes da região nordeste da Bahia, bem como de outras regiões do
país como Ceará, Paraná e São Paulo para também trabalhar nas lavouras de café nos períodos
de colheita. Os grupos de trabalhadores sazonais com os quais iniciei um processo de
conhecimento são os da região rural do município de Monte Santo-BA, situado na porção
nordeste do estado da Bahia, e que se localiza a 352km de Salvador, estando a 170km de
Juazeiro e 100km de Canudos. Pensar como esses grupos acabaram conhecendo a região em
Minas Gerais, onde se produzia café e onde era possível realizar a atividade temporária, era
algo que instigava. Este tipo de movimento de alguns grupos da população aparece em
diferentes estudos e sob categorias também diferentes.
Ao procurar tratar sobre este trabalhador que aparece em momentos específicos em
determinadas áreas produtivas, observei que estes sujeitos estavam sempre associados ou
retratados como trabalhador volante cujo salário está diretamente vinculado à sua produção e
à forma como são contratados: o contrato de trabalho quase sempre é verbal e por tempo
limitado, podendo durar dias, semanas ou meses, mas nunca o ano inteiro. Os vínculos
empregatícios são instáveis e ele pode ser substituído a qualquer momento, caso não realize o
trabalho a contento. E esta instabilidade, de acordo com Ianni, “instaura-se no seu espírito, no
seu modo de ser, na sua maneira de dedicar-se ao trabalho, induzindo-o a trabalhar bastante,
intensamente, para realizar o máximo de tarefas e não perder o lugar”9. A presença destes
trabalhadores na agricultura brasileira quase sempre é relacionada às questões da legislação
do trabalho rural principalmente com o Estatuto da Terra e o Estatuto do Trabalhador Rural
durante a década de 1960, a partir dos quais as relações de trabalho no campo teriam se
modificado.
De acordo com o Estatuto do Trabalhador Rural (ETR), promulgado pela Lei n.
4.214/63 e revogado na década seguinte, entende-se como trabalhador rural toda pessoa física
que presta serviço de caráter não eventual em propriedade rural ou prédio rústico sob a
dependência e mediante salário. Essa compreensão excluía da categoria os parceiros, meeiros,
arrendatários, empreiteiros, entre outros, que recebiam seus salários em espécie, assim como
aqueles que realizavam atividades eventuais, como os volantes/bóias-frias.
A observação de que o conceito de trabalhador rural, como entendido pelo Estatuto do
Trabalhador Rural, deixava fora de sua abrangência os trabalhadores rurais volantes levou à
compreensão do processo de marginalização e discriminação em que estes trabalhadores
estavam inseridos. Sua presença na agricultura brasileira data da década de 1960,
9 IANNI, Otávio. “Notas Sobre o Bóia-fria”, Escrita Ensaio, Ano I, nº 02, 1976, p. 41.
19
concomitante à intensa corrente de êxodo rural que marcou a sociedade brasileira nesse
período. De acordo com Rezende, o ETR pode ser considerado um dos principais fatores que
alteraram as relações de trabalho no campo:
[...] os proprietários rurais, assustados com as obrigações que o Estatuto do Trabalhador Rural lhes impusera, foram levados a dispensar empregados, que passaram – mão-de-obra desqualificada – uns a engrossar o número de favelados dos grandes centros urbanos e outros a gravitar em torno das próprias fazendas, residindo em cidades ou vilarejos próximos.10
O ETR tinha como objetivo regulamentar as relações trabalhistas no campo,
oferecendo ao trabalhador rural, que era fixo nas fazendas e atuava como assalariado, algumas
normas que já haviam sido implementadas e adotadas para os trabalhadores urbanos desde
1943, como o direito a salário mínimo, a férias anuais remuneradas e a aviso prévio, entre
outros. Contudo, um grande número de fazendeiros, por acreditar não ser possível manter os
trabalhadores fixos no campo e pagar pelos direitos conquistados, preferiu desfazer-se deste
tipo de mão-de-obra. Essa quebra de vínculos modificou, nas regiões onde ele ocorreu em
grande número, as relações de dominação que até então se impusera, com os fazendeiros
possuindo grande controle sobre a vida dos trabalhadores, relações estas que extrapolavam as
relações de trabalho, chegando até mesmo ao interior das famílias destes trabalhadores.
Assim, de acordo com Garcia e Palmério pode-se entender que
A instauração do direito do trabalho modificou radicalmente as formas de construção da dominação pessoalizada até então prevalecente, já que ela introduziu um sistema de equivalências monetárias para tudo o que antes era objeto de trocas mediante contradons.11
O Estatuto do Trabalhador Rural, portanto, é apontado em estudos como de Bassani
(1999), Gonzales e Bastos (1982), Silva (1999) e Garcia (2001) como um forte elemento no
processo de expulsão do trabalhador rural do campo na medida em que dificultava a
permanência daquela população no campo, uma vez que estabelecia novas regras as quais os
empregadores não estavam dispostos a cumprir. Associado ao Estatuto do Trabalhador Rural,
o Estatuto da Terra, promulgado em 1964, restringiu ainda mais as possibilidades a pequenos
produtores, arrendatários, meeiros entre outros trabalhadores, uma vez que o acesso à terra,
10REZENDE, Nilza Perez de. Obrigações trabalhistas do empregador rural: previdência social rural. São Paulo: LTr, 1982, p. 13. 11 GARCIA, Afrânio; PALMÉRIO, Moacir. Rastros de Casas-Grandes e de Senzalas: transformações sociais no mundo rural brasileiro. In: SACHS, Ignacy; WILHEIM, Jorge; PINHEIRO, Sérgio Paulo (Org.). Brasil: um século de transformações. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 63.
20
tornou-se mais difícil, pois a propriedade rural passou a ser compreendida como uma empresa
rural que deveria responder ao processo de desenvolvimento econômico e de crescimento
industrial para o qual a agricultura, da forma como se organizava até então, era considerada
um entrave12. Nesse aspecto, Coletti aponta que o Estatuto da Terra estava
[...] subordinado ao projeto de desenvolvimento econômico do regime ditatorial militar, que privilegiava a constituição de grandes empresas rurais e favorecia, de um lado, a concentração de terras e de capital, de outro, a expropriação e expulsão dos trabalhadores do campo.13
Tem-se estabelecida uma forte relação entre a legislação da década de 1960 acerca do
trabalho rural e do acesso a terra e o aparecimento dos trabalhadores volantes na agricultura
brasileira. De acordo com Coletti, o assalariamento temporário na agricultura pode ser
atribuído a fatores que podem ser particulares, uma vez que variam de acordo com a
conjuntura de uma ou outra região num certo momento histórico. Pode, ainda, ser aliado a
fatores gerais como aqueles de ordem política e/ou econômica e também a fatores específicos
como aqueles relacionados à mecanização do processo produtivo em uma região mais que em
outras, à expansão da pecuária, à queda ou ao fim de atividades como a produção de algumas
lavouras como a do café, e pode ainda estar ligado a elementos relacionados à legislação
trabalhista marcante em algumas regiões14. A presença e a atuação do trabalhador assalariado
rural temporário estão vinculadas, portanto, a uma série de variáveis e condições, mas o que é
comum, em qualquer destas situações, é a precariedade das relações de trabalho, sua condição
de pobreza e superexploração, suas resistências e lutas por melhores dias.
De acordo com Bassani estes trabalhadores são chamados de assalariado rural
temporário que:
[...] em muitas épocas do ano, parte em busca de trabalho, sujeita-se a viajar para municípios, estados e regiões distantes, permanecendo lá por alguns meses, vivendo em condições precárias e recebendo baixos ganhos, geralmente próximos ao salário mínimo. Nessa condição, a família continua morando no local onde possui sua habitação,
12 De acordo com o estudo de Gonçalves Neto, havia o argumento de que alguns aspectos da agricultura brasileira naquele período prejudicavam o desenvolvimento econômico, uma vez que a estrutura agrária estava centrada no latifúndio, as formas de produção centradas na parceria, meação, afastavam a população rural do mercado, prendiam grande contingente de mão-de-obra no campo e, ainda, a manutenção dessas formas de produção não tornava viável o desenvolvimento do setor industrial voltado para a produção de máquinas e equipamentos agrícolas (GONÇALVES NETO, Wenceslau. Estado e agricultura no Brasil: política agrícola e modernização econômica brasileira – 1960-1980. São Paulo: Hucitec, 1997, p. 53-54). 13 COLETTI, Claudinei. A estrutura sindical no campo: a propósito da organização dos assalariados rurais na região de Ribeirão Preto. Campinas: Ed. UNICAMP, 1998. p. 62. 14 Idem.
21
normalmente um pequeno barraco, sem nenhum conforto, apenas com o pouco dinheiro que consegue enviar.15
Compreende-se que os sujeitos que se inserem neste processo são pessoas que vivem
em precárias condições, tanto no local de origem quanto na região onde trabalham
temporariamente e os recursos ganhos são destinados à manutenção da vida. Esta condição,
contudo, pode não ser uma regra para os grupos que se colocam em movimento,
principalmente, no deslocamento temporário para o trabalho sazonal.
Nos estudos de Silva, estes sujeitos são denominados migrantes sazonais, pois
constituem grupos de homens, “mulheres e crianças que se deslocam todos os anos de várias
regiões do país para outras em busca de trabalho no corte da cana, colheita do café, do
algodão, da laranja e do amendoim”16. Assim, há grandes grupos de trabalhadores em
constante movimento de uma região para outra, ora em direção à cana-de-açúcar, ora
apostando em outras atividades, como forma de garantir o acesso a uma condição de vida
melhor, mas também como possibilidade de aumentar sua renda e adquirir bens para a família
na perspectiva de se alcançar um grau maior de conforto em sua região de moradia.
O processo de deslocamento para a região produtora de café tornou-se alvo de atenção,
diferenciando-se do movimento populacional ocorrido na região na década de 1980 quando da
chegada de grandes grupos populacionais advindos do sul do país para ocupar as áreas
destinadas à produção de café e nas quais estava inserida a grande maioria dos trabalhadores
volantes bóias-frias estudados anteriormente. Parte destes homens e mulheres era advinda dos
estados do Paraná, de São Paulo, de outras regiões de Minas Gerais e tinha sido atraída para
se fixar na região. No entanto, nesse novo movimento agora pesquisado, a busca pela região
ocorre em momentos específicos e temporalmente marcados, ocorrendo apenas durante os
meses do ano em que se realiza o trabalho da safra, tal como ocorre em outras áreas agrícolas,
em que se tem a sazonalidade de algumas atividades, como no caso da cana-de-açúcar, da
laranja, do amendoim, dentre outras em que a presença dos inúmeros grupos de homens e
mulheres acompanha o ritmo determinado pela atividade com que se relaciona.
No plano da produção acadêmica, na aproximação com alguns elementos da história
social do trabalho, esta pesquisa busca contribuir para o alargamento da compreensão sobre os
processos que delineiam o deslocamento de grande número de pessoas e que marcam
fortemente a dinâmica rural brasileira na atualidade, notadamente dos que se relacionam com
15 BASSANI, Paulo. Núcleos de assalariados rurais temporários – Lugar de resistência e descoberta. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, PUC/SP, São Paulo, 1999, p. 29. 16 SILVA, Maria Aparecida de Moraes. Errantes do fim do século. São Paulo: Ed. UNESP, 1999. p. 70-71.
22
as produções do café da região do cerrado em Minas Gerais. O estudo privilegia a experiência
social dos grupos originários do município de Monte Santo e região próxima no estado da
Bahia17 e de suas relações sociais com a atividade da colheita de café nas fazendas do
Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba. A inicial intenção de se compreender as razões do
deslocamento desse grupo de sujeitos extrapola-se, ao perceber que as pessoas não se
deslocam do nada; assim, os possíveis fatores do deslocamento cedem lugar para se pensar as
experiências sociais desses sujeitos, para compreendê-los enquanto agentes do processo, que
constroem suas opções, que planejam, que avaliam e se inserem nesta ou naquela atividade.
Desse modo, pensar o movimento de deslocamento é pensar o sujeito em seu movimento de
ida e volta de um local para o outro, considerando-se que a sua experiência dialoga com
outros contextos e com as suas necessidades, sejam elas econômicas ou não.
A princípio, imaginava-se grupos de trabalhadores cuja opção pelo deslocamento
estava diretamente relacionada a fatores que os pressionavam ou que eram eleitos como
importantes e decisivos para o deslocamento; assim, buscava-se entendê-los nas lavouras de
café, mas a preocupação em compreender como estes trabalhadores constroem e
experimentam sua vida cotidiana levou a deslocar também o olhar para pensar um sujeito
inserido em um processo social mais amplo, onde a lavoura de café se constitui em apenas um
momento dentre os muitos da sua experiência. Então, tornou-se importante analisar a maneira
como viviam em suas localidades de origem e compreender os valores e os sentidos que os
organizavam nos meses em que não estavam inseridos nas lavouras cafeeiras.
De alguma forma, com os passos iniciais da pesquisa, ficava cada vez mais
convencida que havia nas relações de trabalho nas lavouras de café, nos momentos em que
esses trabalhadores aportavam nas atividades da safra, elementos que somente poderiam ser
mais bem compreendidos se analisados alguns aspectos de sua vivência nos locais com os
quais se identificam e consideram sua origem. A expressão local ou região de origem é
utilizada, neste trabalho, para tratar do lugar eleito pelos sujeitos desta pesquisa para partir e
retornar. Alguns deles ou suas famílias não são originários daquela localidade, mas ali
escolheram para se estabelecer, consideram-na como seu local de pertencimento, com ela se
identificam e é para ela que retornam ao final dos trabalhos na lavoura de café. Nesse sentido,
pode-se pensar que o lugar de nascimento e a nacionalidade são informações recorrentes em
pesquisas, mas insuficientes para descrever a complexidade que determina a relação de um
17 Vale mencionar que Monte Santo é um município composto por dezesseis povoados que se dispersam por sua região rural e, o povoado visitado durante a pesquisa, Horizonte Novo, faz divisa com o município vizinho de Andorinha e, alguns trabalhadores deste município, assim como de outros da região, também foram encontrados nos trabalhos nas lavouras de café.
23
indivíduo e o seu pertencimento ao território. Pode-se ainda mencionar que um dos elementos
essenciais de compreensão do sentimento de pertencimento e do comportamento individual se
dá através dos sentidos dados aos lugares, passados ou presentes, vividos, praticados ou
mesmo imaginários, de cada sujeito ao longo das suas decisões nos seus variados percursos
geográficos18.
As pesquisas realizadas a partir das viagens às cidades de Monte Santo, Andorinha,
Senhor do Bonfim e pequenos povoados próximos permitiu aproximar-me das lógicas e dos
valores do grupo de trabalhadores das lavouras de café no Triângulo Mineiro e em seus locais
de origem; a intenção era refletir sobre estas relações de trabalho sob a ótica dos
trabalhadores. Dessa forma pude compreendê-los como pequenos produtores, jornaleiros,
diaristas, músicos, maridos, namorados, avós, descasados, com problemas com a polícia,
entusiasmados com as festas de São João, com medo da seca, dentre outros. Tratava-se de um
esforço de procurar conhecer elementos dos modos de viver, das opções, das escolhas feitas e
ações desses sujeitos no movimento de relacionamentos diversos em que se encontra o
deslocamento para o trabalho nas lavouras cafeeiras que se dá desde meados dos anos de
1990. Enfim, foi um esforço de compreender como esse movimento também é pensado e se
reflete ou não em sua região de origem.
Um dos objetivos, com isso, foi propor uma estratégia de pesquisa e problematização
que coloque ênfase na experiência social destes sujeitos de forma mais abrangente, indagando
sobre suas vivências como trabalhador temporário nas lavouras de café do Triângulo Mineiro
e do Alto Paranaíba, mas também como moradores, pessoas que integram um conjunto de
outras comunidades rurais nos lugares onde habitam. Buscou-se ainda perceber, a partir
também da presença destes trabalhadores nas lavouras de café, os seus modos de viver, nos
quais parecem inserir o trabalho temporário, mas que não se resume a tal. Objetiva-se
compreender a atuação destes trabalhadores numa dupla dinâmica, em dois momentos e
lugares diferentes, em seu universo na Bahia e nas lavouras de café do Cerrado Mineiro.
A perspectiva de observar e compreender estes grupos de cidadãos que experimentam
tal movimento não implica em dizer exatamente que se constituem em grupos de
trabalhadores migrantes, trabalhadores sazonais ou dar-lhes uma outra nomenclatura ou
aplicar-lhes uma outra categoria, mas implica em pensar em sujeitos que se constituem no
decorrer do processo, ora como “os do lugar”, ora como “os de fora”, ora como trabalhadores
18 Sobre uma noção de pertencimento determinada pela experiência da espacialidade, dos lugares vividos, da mudanças de lugares geográficos ver: GUÉRIN-PACE, France. “Sentiment d’appartenance et territoires identitaires». L’Espace Géographique. Paris: Belin-Reclus, nº 4, 2006.
24
assalariados ora como pequenos agricultores, mas cujas diferenciações que lhes são impostas,
e mesmo aquelas que são incorporadas ou pensadas por eles, possibilitam pensar apenas uma
parte do processo. Assim, é possível refletir que estas pessoas são portadoras de experiências
múltiplas cujas categorias ou conceitos estão impossibilitados de garantir o conhecimento ou
a compreensão dos modos de viver destes grupos, embora auxiliem nesse processo, mas
talvez mais ocultem do que revelam.
Dizer que são trabalhadores migrantes, por exemplo, pode indicar que estão em
movimento, mas não estão em um processo de migração onde há a expectativa da
permanência definitiva. Denominá-los migrantes temporários parece não considerar as suas
experiências e mesmo expectativas em seus locais de origem, como se o local para o qual se
dirigem ocupasse papel de tamanha importância que desconsiderasse a região da saída.
Trabalhadores migrantes temporários ou trabalhadores sazonais, uma vez mais, em algumas
formulações, são categorias que parecem ater-se à condição encontrada no local para o qual se
dirigem, pois na região de origem destes sujeitos nem um, nem outro conceito é capaz de
atender ou de explicar o processo no qual estão inseridos19. Nesse sentido, pode-se dizer que
estes sujeitos encontram-se em um processo no qual as suas “experiências comuns (herdadas
ou partilhadas)” lhes permite um sentimento e articulação de seus interesses em detrimento e
contra interesses de outros homens e outros grupos. Constituem-se em sujeitos em um
constante fazer-se, cujas reações ou experiências, ainda que parecidas com as de outros
grupos humanos, não permite que se estabeleça uma lei sobre eles20.
A utilização de conceitos como experiência, cultura e cotidiano exprimem um modo
de pensar os sujeitos históricos inseridos no processo de deslocamento de modo que, como
afirma Almeida, permita pensar uma noção de classe, ou grupos identitários
[...] como uma instância constitutiva do sujeito social que engloba componentes presentes simultaneamente no plano da materialidade e no plano simbólico. Isto é, as experiências vivenciadas social e historicamente pelos homens, são sempre permeadas por relações de
19 A expressão migrante, de acordo com a perspectiva dos estudos de Ely Souza Estrela, não é “expressão com a qual os sujeitos envolvidos no processo de deslocamento se identificam por não fazerem parte do seu vocabulário. Ou porque essas pessoas vislumbram as implicações sociais do termo e, sabiamente, não usam o epíteto com o intuito de se preservarem dos sofrimentos e das humilhações sofridas quando do seu deslocamento.” (ESTRELA, Ely Souza. Os sampauleiros: cotidiano e representações. São Paulo: Humanitas FFLCH/USP: FAPESP: EDUC, 2003). Essa revisão acerca de categorias utilizadas leva a pensar, nesse caso, em uma história em que os sujeitos elaboram suas práticas, suas opções, fazem suas escolhas e se vêem enquanto atuantes em sua própria história. Daí a perspectiva de discutir os deslocamentos a partir dos olhares daqueles que o experimentam, buscando não “enquadrá-los” em categorias ou nomenclaturas, mas a partir deles pensar outras noções e contextos. 20 THOMPSON, E. P. A Formação da classe operária inglesa . Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 10. v. 1.
25
exploração e resistência e se expressam nos conflitos, nas lutas e também nas acomodações.21
Pensar a dinâmica de vida destes grupos a partir das experiências e do cotidiano dos
próprios indivíduos possibilita, então, analisar quais são as referências destes trabalhadores no
sentido da construção de sua identidade coletiva, na compreensão de suas escolhas e decisões.
A discussão da temática proposta não é recente e marca alguns grupos da população
em diferentes momentos da história. Nesse sentido, os trabalhos de Silva22 em muito
contribuíram para compreender os processos de deslocamento de grupos populacionais para
os trabalhos no corte da cana na região de Ribeirão Preto, onde se acentua a cada ano a
presença de trabalhadores dos estados nordestinos, bem como de regiões empobrecidas como
o norte de Minas Gerais, entre outras. Estes trabalhos possibilitaram acompanhar não somente
a experiência da mobilidade, mas também as questões referentes às relações de trabalho, a
crescente precarização e exploração da mão-de-obra, os enfrentamentos e lutas destes grupos
nas cidades e região receptora, bem como as suas condições de vida durante o período em que
permanecem no trabalho temporário.
Ainda nesta perspectiva, o estudo de Menezes23 apresenta as experiências de famílias
camponesas no estado de Pernambuco que nas últimas décadas do século XX passaram por
diferentes movimentos migratórios, indo viver por algum tempo na cidade do Rio de Janeiro,
ou temporariamente dos trabalhos na lavoura de cana-de-açúcar em Pernambuco, enfrentando
todos os tipos de problemas quanto ao recrutamento, aos salários, alojamentos, as redes de
sociabilidade entre outras questões, como a atuação sindical.
Ainda entre os estudos que discutem a problemática da migração e possibilitaram novo
olhar sobre a temática está o de Green ao propor que a migração não pode ser apreendida
apenas do ponto de chegada, após o movimento que a definiu, mas sim, que se deve recuar do
ponto de chegada ao ponto de partida, para em seguida, avançar com o migrante, da região de
origem em direção ao local adotado para, a partir daí, compreender as escolhas do sentido
migratório. Esta perspectiva esteve proposta neste trabalho e tal possibilidade de investigação
é tratada pela autora principalmente no que se refere aos processos migratórios em direção aos
21 ALMEIDA, Antônio de. Os trabalhadores e seus espaços: cultura, experiência e cotidiano nos estudos históricos sobre identidade coletiva. In: MACHADO, Maria Clara Tomaz; PATRIOTA, Rosângela (Org.). Política, cultura e movimentos sociais: contemporaneidades historiográficas. Uberlândia: EDUFU, 2001. p. 34-35. 22 SILVA, Maria Aparecida de Moraes. Errantes do fim do século. São Paulo: Ed. UNESP, 1999; Idem.Migrants temporaires dans les usines de canne à sucre de l’état brésilien de São Paulo. Migrations Société. Paris, CIEMI, n. 115, jan./fev. 2008. 23 MENEZES, Maria Aparecida. Redes e enredos na trilha dos migrantes: um estudo de famílias de camponeses-migrantes. Rio de Janeiro: Relumé Dumará; João Pessoa, PB: EDUFPB, 2002.
26
Estados Unidos da América, mas possibilitam pensar outros movimentos em outras realidades
históricas24. Um novo olhar sobre a questão das migrações também pode ser observado nos
estudos de Noiriel, nos quais avança na forma como se percebe e se pensa o sujeito
(i)migrante, especialmente na sociedade francesa, não apenas como categoria jurídica ou
administrativa, mas como aquele que participa de um intenso processo que muitas vezes, ao
se prolongar por anos ou décadas, como os observados na França, é entendido como
“integração” à sociedade e não um simples “problema da imigração que inquieta a opinião
pública25.
De acordo com Sayad, outra referência para este trabalho, todo estudo dos fenômenos
migratórios que negligencia as condições de origem dos migrantes se condena a dar apenas
uma visão parcial e etnocêntrica sobre o processo, como se sua existência tivesse início no
momento da chegada26. Em seus estudos tem-se ainda as análises de parte das implicações
que sofrem tanto aqueles que partem quanto aqueles que ficam, buscando adaptar-se cada um
a seu local, seja sofrendo a ausência do ente querido, seja enfrentando todos os limites
impostos pela sociedade de “recepção” especialmente nos processos que se iniciam de forma
provisória mas que se estendem por longos períodos27.
Estes estudos possibilitaram refletir sobre as experiências dos indivíduos pesquisados
procurando compreendê-los inseridos em um processo e no qual fazem suas leituras,
interpretações e decidem sobre como devem e podem agir, numa dinâmica que vai além das
forças de expulsão ou de atração de grupos populacionais.
Os trabalhadores pesquisados não são visíveis nas cidades da região28, mas sua
constância é notória em locais estratégicos da zona rural, como em pequenas vendas, onde se
reúnem e onde adquirem os mantimentos necessários para a semana e, geralmente, restritos à
alimentação; bem como nas áreas afastadas das sedes das fazendas, onde estão localizados os
alojamentos. É possível, mas não é comum, encontrar esses sujeitos em alguns eventos
religiosos e/ou festivos nos arredores de centros comunitários rurais, igrejas e escolas, onde se
24 GREEN, Nancy L. Repenser les migrations. Paris: Presses Universitaires de France, 2002. p. 3. 25 NOIRIEL, Gérard. Le creusete français: histoire de l’immigration XIXe - XXe siècle. Paris: Éditions du Seil, 1988. 26 SAYAD, Abdelmalek La double absence: des illusions de l’émigré aux souffrances de l’immigré. Paris: Seuil, 1999, p. 56. 27 SAYAD, Abdelmalek. L’immigration ou les paradoxes de l’alterité: l’illusion du provisoire. Paris: Éditions Raisons d’Agir, 2006. 28 A invisibilidade destes grupos presentes na região nos remete, conforme aponta Bauman, à questão de tornar invisível ao olhar público a imagem daqueles que parecem incorporar os valores e o credo do liberalismo e da economia capitalista, ao se buscar o progresso e a prosperidade, assumindo-se os riscos e assumindo individualmente a responsabilidade por tal situação (BAUMAN, Zigmunt. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2005. p. 74).
27
realizam diversas atividades festivas, como comemorações juninas, homenagens a santos e
outras devoções presentes na região, durante os meses da colheita de café; ou ainda, pode-se
encontrá-los esporadicamente nas cidades aos finais de semana, especialmente, próximo do
final da colheita, em que buscam por produtos como aparelhos de som, aparelho televisor ou
roupas e calçados ou mesmo motocicletas que são adquiridos e levados nos ônibus para a
região de origem.
De modo geral, esses grupos de trabalhadores não compõem os dados populacionais
da região produtora de café, a movimentação desses grupos, na verdade, não impacta a rede
de ensino, a hospitalar, dentre outras que poderiam servir de pano de fundo para a composição
de um quadro de sua percepção nos diversos municípios em que se instalam. Por sua vez,
pode-se obter algumas poucas referências sobre a presença desses grupos de trabalhadores à
medida que se analisam os poucos números relacionados aos trabalhadores bóias-frias locais,
que de tempos em tempos são veiculados na imprensa, na forma de estimativas, como no caso
da cidade de Araguari que “possui mais de 2000 (dois mil) bóias-frias, permanentemente, nas
fazendas colhendo, plantando, somados a outros, mais de 15 mil, que, na época da colheita se
associam a eles”29. De acordo com esses dados, a presença e o fluxo desses trabalhadores, já
no ano de 1988, faziam-se expressivos apontando para o grande contingente presente na
região, embora não seja possível precisar o número que representam30.
De outra maneira, a questão referente ao que representam os números de
trabalhadores, pode-se pensar, a partir do artigo de Xico Graziano31, quando menciona que
alguns números relativos à quantidade de pessoas que vivem ou dependem da produção do
café:
Minas Gerais produz, hoje, metade do café nacional. Nesta região tradicional, cerca de 28 mil produtores dedicam-se à cafeicultura. [...] Apenas no Sul de Minas, estima-se que 1,5 milhão de pessoas dependam do café para viver. Os empregos fixos somam 150 mil trabalhadores; na época da colheita, 230 mil postos temporários são gerados.32
A partir dos números dispostos acima, tem-se a compreensão do grande fluxo de
trabalhadores que se deslocam em duas situações distintas: da cidade para o campo, nos
períodos de colheita, como trabalhadores volantes ou bóias-frias e/ou de regiões mais
29 ARAGUARI: cem anos de dados e fatos. Prefeitura Municipal, Araguari, 1988, p. 127. A seção de atendimento ao migrante seria uma outra possibilidade de acesso ao número de pessoas que vieram tentar a sorte e não obtiveram êxito. Entretanto, esta repartição, em praticamente todas as cidades observadas, não conta com dados a respeito do auxílio disponibilizado aos migrantes. 30 Parte da falta de registro sobre esses trabalhadores também está vinculada às formas precárias de como se dão as relações de trabalho: sem registros de contrato de trabalho, sem terem acesso aos direitos trabalhistas. 31 Engenheiro Agrônomo e ex-secretário da Agricultura de São Paulo entre os anos de 1996-1998. 32 GRAZIANO, Xico. Jornal O Estado de São Paulo, 17 de agosto de 2004, p. A2.
28
distantes para as regiões produtoras de café. Ambos os movimentos estão marcados pelo
deslocamento das pessoas em uma busca constante de condição de manutenção da vida. Os
números apontados remetem ainda, de algum modo, a quão invisível parecem ser esses
processos em que um grande contingente de trabalhadores se vê envolvido, que gera
empregos temporários e, onde os trabalhadores são mencionados somente nos períodos da
oferta do trabalho. O que fazem depois? Onde estão esses trabalhadores? Onde se empregam
em outros momentos? Como vivem essas pessoas?
A constatação da presença de diversos grupos de diferentes origens na região, a pouca
expressividade dada a esses trabalhadores em várias instâncias, nas instituições ligadas aos
trabalhadores rurais como os sindicatos, nos organismos a que se vinculam os produtores de
café, além disso, a pouca expressividade de estudos sobre a temática na região, assim como a
não abordagem acerca destes grupos de trabalhadores em matérias de jornais e revistas
da/sobre a região impulsionaram a busca por conhecer esses sujeitos, por que e como vêm
para a região produtora de café.
As complexas relações que os materiais e os depoimentos colhidos nas pesquisas
anteriores sobre os trabalhadores locais apresentavam, desafiavam e impulsionavam a
investigação acerca da presença dos demais grupos de trabalhadores nas lavouras cafeeiras da
região, uma vez que estes eram quase sempre mencionados como concorrentes, como ameaça
aos trabalhadores locais. Nesse sentido, a princípio, o que se tinha sobre esses grupos de
trabalhadores eram as formulações dos trabalhadores locais, suas impressões, suas percepções
acerca da presença destes grupos, assim como, as idéias veiculadas pelos Sindicatos dos
Trabalhadores Rurais em diferentes cidades. A perspectiva que se tinha, no início da pesquisa
acerca da contratação destes grupos de trabalhadores na região, apresentava uma série de
questionamentos que impulsionavam a indagar sobre quem eram esses sujeitos e a pensá-los a
partir de sua própria formulação e entendimento. Assim, constituiu-se em objetivo focar a
rearticulação dos modos de vida e de trabalho, tanto em seu local de origem como nas
lavouras de café, indagar sobre os movimentos que articulam suas experiências enquanto
sujeitos atuantes e participantes em seu universo na Bahia e nos trabalhos no Cerrado
Mineiro, sem com isso deixar de analisar o grupo e também suas representações para os
trabalhadores locais.
Ao mesmo tempo em que as problemáticas se apresentavam numerosas em relação ao
grupo estudado, a delimitação da região onde se inserem esses trabalhadores parecia ampliar-
se ao ritmo da pesquisa. Nesse aspecto, a região delimitada para a pesquisa não é, de forma
alguma, homogênea, trata-se de uma parte do Triângulo Mineiro e do Alto Paranaíba, que é
29
composta por diferentes e distintos municípios possuidores de especificidades culturais e
sociais: no trato da terra, nas formas e relações de trabalho, no tipo de mão-de-obra que se
emprega, e, ainda, nas marcas culturais que lhes são próprias. Contudo, ainda que seja uma
área extensa, esta será tratada não como apenas o local onde se desenvolve a lavoura cafeeira,
mas a partir, principalmente, da compreensão da movimentação dos trabalhadores e,
especialmente, nos municípios de Araguari, Estrela do Sul, Monte Carmelo, Iraí de Minas,
Indianópolis, Patrocínio, nos quais parte dos trabalhadores entrevistados manifestou compor
suas experiências no trabalho da safra, formando-se, assim, um certo percurso por onde
passaram e passam estes grupos. Se para estes o espaço compõe suas diferentes experiências
nas atividades da safra, para as entidades ligadas aos produtores de café, essa área integra uma
região maior denominada Cerrado Mineiro, conforme se discutirá.
Na perspectiva de conhecer estas experiências, compreender o universo de trabalho no
qual estavam envolvidos, um elemento determinante foi o contato e conhecimento de
entidades ligadas aos trabalhadores, como os Sindicatos de Trabalhadores Rurais, em especial
os das cidades de Araguari, Monte Carmelo e Patrocínio, na medida em que se voltam para o
pequeno produtor, remetendo-se poucas vezes ao trabalhador rural bóia-fria da cidade e,
apenas mencionando a presença dos trabalhadores “de fora” nas lavouras da região sem
demonstrar conhecer de fato a realidade desses grupos específicos e oferecendo uma certa
resistência à presença deles nas atividades da região. Além destas, outra instituição que chama
a atenção é o Núcleo Intersindical de Conciliação Trabalhista33 (NINTER), uma entidade
pioneira no país, a partir da qual outras foram criadas, como a de Contagem e a de Araguari.
Como será discutido nos capítulos que se seguem, há uma estruturação recente da agricultura
e formas de organização dos produtores nessa região que giram em torno da produção cafeeira
e que se dá de maneira aprimorada na medida em que parecem disputar espaço político e
econômico com os Sindicatos Rurais.
Diante desse quadro, quais são as perspectivas dos trabalhadores em questão? Como
compreendem a atividade que realizam nesse movimento de transformação? Quais são as
percepções sobre o trabalho desde o período em que iniciaram, nos anos 1990, as viagens para
a colheita de café até os dias atuais? Quais motivações os levam a permanecer um período
fora de casa? Quais valores trazem consigo, quais as condições e conflitos que experimentam
na situação de trabalhador que se destaca temporariamente na lavoura do café e o retorno para
33 Esta entidade sediada na cidade de Patrocínio iniciou suas atividades em 1998, conforme dados da própria instituição.
30
casa. Como articulam estas experiências de deslocamento em seus modos de vida, em sua
cultura e em suas heranças sociais, nas trajetórias de vida de seu grupo?
Pode-se observar que o grupo aqui tratado vive um movimento pendular: ora na região
mineira, ora na região baiana de origem (onde passam a maior parte do tempo). O diálogo que
estabelecem de um local para o outro talvez possibilite pensar que um local não existe em
suas experiências sem o outro ou que um possibilite, ou seja possível, existir na sua
experiência a partir do outro.
Pensar, discutir e analisar parte das questões aqui tratadas foi possível a partir da
utilização da fonte oral, na busca por dialogar com a experiência dos sujeitos desse processo,
pela necessidade de conhecer suas experiências de vida, de deixar que apresentem suas
concepções de mundo. Contudo, essas experiências, seus relatos e os questionamentos
propostos, estão em grande parte relacionados às questões do mundo do trabalho34. Essa
perspectiva aponta para, como propõe Almeida, pensar
[...] os espaços do trabalhador pluridimensionais que, tanto apresentam traços visualmente identificáveis, [...] todos eles carregados de significados, bem como transcendendo o plano da materialidade, podem-se expressar também como campo das subjetividades, da elaboração e reelaboração da cultura.35
Essa perspectiva de investigação considera os elementos presentes no cotidiano desses
trabalhadores como essenciais para a compreensão de seu universo e do diálogo que
desenvolvem nos diferentes momentos de sua vida e nos diferentes lugares onde se
encontram. Vale mencionar que minha formação possibilitava pensar uma série de questões a
partir da temática do trabalho, mas o trabalho não poderia mais continuar a explicar os
porquês e as razões pelas quais alguns grupos de pessoas se deslocavam ou se inseriam em
determinados processos como no caso dos indivíduos pesquisados. A partir de então, a
perspectiva do cotidiano apresenta-se, como postula Dias, “como área de improvisação de
papéis informais, novos e de potencialidade de conflitos e confrontos, em que se multiplicam
formas peculiares de resistência e luta”36. E, nesse cotidiano, é possível encontrar as formas
como os homens fazem suas opções, pensam a sociedade, constroem, cultivam e transmitem
seus valores e no qual os “trabalhadores” devem ser entendidos como “pessoas que
34 Talvez possa-se pensar que o homem através do trabalho supera sua condição de ser apenas natural e cria uma nova realidade, a vida social. 35 ALMEIDA, Antônio de. Os trabalhadores e seus espaços: cultura, experiência e cotidiano nos estudos históricos sobre identidade coletiva. In: MACHADO, Maria Clara Tomaz; PATRIOTA, Rosângela (Org.). Política, cultura e movimentos sociais: contemporaneidades historiográficas. Uberlândia: EDUFU, 2001. p. 31. 36 DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1995. p. 14.
31
sobrevivem de seu próprio esforço e que, no confronto entre capital e trabalho, identificam-se
enquanto sujeitos coletivos com valores e interesses comuns”37.
De encontro a esta perspectiva está o trabalho com as fontes orais por se pensar que os
depoimentos dos trabalhadores podem revelar elementos não encontrados em nenhum outro
material38, pois eles, ao relatarem suas experiências, com os seus valores e conhecimentos, e
ao formularem suas próprias interpretações a respeito das mais diversas situações vivenciadas
individual ou coletivamente, apresentam indícios para melhor compreendermos o processo de
deslocamento no qual se envolvem. Como nos mostra Lucena, ao narrar sua história, o sujeito
“utiliza suas lembranças, recorre ao passado, constrói representações e transforma idéias e
imagens em realidade, mesclando as várias grandezas do tempo”39. Assim, constitui-se em
prioridade as narrativas e depoimentos orais daqueles que experimentam o processo de
deslocamento e fazem suas opções, bem como daqueles que, de algum modo, estão
envolvidos nesse processo, como familiares e amigos. Com essa fonte, acredita-se poder
chegar mais próximo do que pensam esses trabalhadores, de suas perspectivas, sonhos,
realizações e desejos.
Acredita-se ainda que, a história oral é “cuidadosa na distinção entre acontecimentos e
narrativas, entre história e memória, justamente porque defende que as narrações e a memória
são elas próprias, fatos históricos”40. Assim, crê-se que mesmo quando as fontes orais não
correspondem aos fatos em si, estes erros se constituem em eventos passíveis de serem
questionados sobre como e porque se constituíram enquanto tal.
Ainda no tocante a construção desta fonte, as histórias narradas, assim como as
identificações, embora “sejam pessoais, se fazem na experiência social, são constitutivas dela
e são reconhecidas como tal segundo padrões de significação”41. Por isso, permitem-nos
conhecer o coletivo, o grupo do qual fazem parte esses trabalhadores, com suas
37 ALMEIDA, Antônio de. Op. cit., p. 35-36. 38 O uso das fontes orais na pesquisa histórica não é um recurso novo, mas apresenta possibilidades novas a partir das abordagens e da compreensão de fonte oral como recurso para a pesquisa em história política, administrativa, econômica, social, das mulheres, entre outras como se tem debatido e apresentado na obra: DESCAMPS, Florence (Dir.). Les sources orales et l’histoire: récits de vie, entretiens, témoignages oraux. Rosny-sous-Bois: Éditions du Bréal, 2006. 39 LUCENA, Célia Toledo. Artes de lembrar e de inventar. São Paulo: Arte & Ciência, 1999. p. 25. 40 PORTELLI, Alessandro. História, memória e significado de um massacre nazista em Roma. Oralidades: revista de História Oral. São Paulo, n. 3, p. 153-175, jan./jun. 2007. 41 KHOURY, Yara Aun. Muitas memórias, outras histórias: cultura e o sujeito na História. In: FENELON, Déa Ribeiro; KHOURY, Yara Aun (Org.). Muitas memórias, outras Histórias. São Paulo: Olho D’Água, 2004. p. 123.
32
individualidades, mas com experiências aproximadas entre si por uma trajetória de vida, por
anseios, desejos, significações materiais, sociais e culturais42.
A utilização da fonte oral é também – com a intermediação do entrevistador, suas
questões e intervenções – uma possibilidade única de se obter diversas ou até divergentes
opiniões e reflexões sobre situações e experiências tão semelhantes e, ao mesmo tempo, tão
diferentes. Tem-se uma relação de troca entre pesquisador e entrevistado que dividem
experiências sociais diferentes; é um diálogo entre fronteiras, em que se dividem vivências e
sentimentos de natureza política, social, afetiva, entre outras43. Tal dimensão da fonte oral e
do contato que estabelece pesquisador/pesquisado remete a pensar como Merleau-Ponty que,
“meu corpo é ao mesmo tempo vidente e visível. Ele, que olha todas as coisas, também pode
olhar para si e reconhecer no que está vendo então o “outro lado” do seu poder vidente”44 em
uma relação onde o resultado do que é visto, pode ser a sinergia das experiências narradas e
ouvidas.
As narrativas e os depoimentos orais dos sujeitos desta pesquisa, de acordo com os
dados coletados, suscitam e apontam para a relação memória-história, enquanto valor
constituído e construído pelo grupo em suas vivências e atuações nos diferentes lugares, ou
mesmo por aqueles que participam indiretamente desse movimento, torcendo pelos parentes
que viajam, aguardando a chegada dos entes queridos. Apontam, assim, os significados entre
o que foi e o que é o seu lugar de origem em termos de manutenção da vida e das relações
sociais45.
A memória, a partir destes grupos, é constituída também na relação com a cultura
herdada, com os costumes de um determinado grupo, que imputam a determinado ambiente as
práticas, as expectativas herdadas, as regras estabelecidas que perpassam o uso em comum e
também o tempo46. Assim, a memória dos trabalhadores aqui tratados, bem como a de seus
familiares, conforme se observou em algumas das narrativas colhidas, contribui para a
compreensão de suas experiências individuais e coletivas, experimentadas por aqueles que se
42 Uma ampla discussão sobre o uso da fonte oral a partir da temática das migrações é apresentada nos vários artigos da obra: ROCHA-TRINDADE, Maria Beatriz; CAMPOS, Maria Christina Siqueira de Souza (Org.). História, memória e imagens nas migrações: abordagens metodológicas. Oeiras, Portugal: Celta Editora, 2005. 43. KHOURY, Yara Aun. “Muitas memórias, outras histórias: cultura e o sujeito na História. In: FENELON, Déa Ribeiro; KHOURY, Yara Aun (Org.). Muitas memórias, outras Histórias. São Paulo: Olho D’Água, 2004. p. 123. 44 MERLEAU-PONTY, Maurice. Textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1980. p. 88. 45 Estas questões aparecem com freqüência nas narrativas de moradores mais velhos do povoado que fazem o movimento de recordar e comparar as condições de vida do lugarejo, a partir do início das viagens para Minas Gerais na década de 1990. 46 THOMPSON, E. P. Costumes em comum; estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
33
deslocam temporariamente e por aqueles que não o fazem. Colaboram para a percepção da
“identidade” desse grupo, nas formas de resistência que elaboram para conviver com as novas
experiências sociais, culturais e de trabalho nos locais para onde se deslocam47, bem como
para a compreensão sobre seu local de origem, com suas formas de condução da vida, com
seu ritmo próprio e com suas peculiaridades. O tempo, a cronologia dos fatos, para esses
trabalhadores, não parece atender a um tempo histórico marcado pelo cronômetro, mas a um
conjunto de importâncias e significações desses fatos para os indivíduos e para o grupo. De
que modo este grupo se constrói como sujeito histórico, reconhecendo suas referências
identitárias.
Talvez, a fonte oral, como se pensa nesta pesquisa, possibilite o registro escrito de
lembranças e memórias que, sob o crivo do pesquisador, são transcritas, analisadas e
oferecidas ao conhecimento dos leitores48, lembranças e experiências que não serão
esquecidas. Serão lembradas também pelos seus, ao ouvirem-nas ou lerem-nas e, assim, quem
fala o que será escrito pode esquecer, tendo a escrita a possibilidade de manter viva a
lembrança49.
As experiências vividas e as formulações que sobre elas elaboraram, ora em Horizonte
Novo, ora nas lavouras cafeeiras, puderam fazer parte deste trabalho compondo as reflexões e
direcionando o olhar para outras, através das narrativas de trabalhadores como os senhores
Lino Moraes, Manoel José, José Ramon, Laurêncio, Gilson, Eugênio, Genivaldo, Lúcio, Tito
de Jesus, Simeão, Rufino, Jailson, e as senhoras Carminha e Simone, aos quais agradeço
imensamente a confiança ao narrarem momentos de suas vidas que ora apareciam repletos de
sucessos, ora de incertezas, medos e insatisfações, mas que não se furtaram em relatar o que
pensavam ou sentiam a uma estranha, possibilitando conhecer as suas compreensões sobre o
movimento no qual se inserem. As reflexões sobre a região de partida, ou o local de origem,
foi possível graças às narrativas dos senhores José Barbosa, Fernando Araújo, Jorge da Mota,
Jorge Amador, Valdir, Basílio, Marino e as senhoras Valdina, Inês, Maria Gomes, Maria da
Mota e Elisângela, aos quais expresso minha gratidão pela disponibilidade em dividirem suas
47 Vale mencionar que essa identidade dos grupos de trabalhadores pode não ser algo fixo, mas que apresenta uma certa ambigüidade, em que se torna possível observar em um mesmo indivíduo identidades que se alternam (Ibidem, p. 20). 48 O historiador ‘oral’, conforme menciona Portelli, tem como função “transformar o oral em palavra escrita, congelar material fluido em um momento arbitrário do tempo”. 49 “Escreve-se para esquecer, e o efeito da escritura é fazer com que os outros não esqueçam. Escreve-se para lembrar e amanhã outros vão ler essa lembrança. Esquecimento e lembrança, essa oscilação permanentemente produzida por impulsos contrários: escrever para que se fique sabendo, apagar marcas, sinais, rastros, disfarçar o presente, a pessoa, os sentimentos.” (SARLO, Beatriz. Os militares e a história: contra os cães do esquecimento. In: Paisagens imaginárias: intelectuais, artes e meios de comunicação. São Paulo: EDUSP, 1997. p. 26.
34
impressões e me fazerem perceber mais que a sua própria narrativa, conduzindo-me a
possibilidades até então não imaginadas para o trabalho de pesquisa , possibilitando além de
conhecer parte de suas histórias de vida, parte da história do local com o qual se identificam,
oferecendo, muitas vezes, apenas pistas desta história que conduziram a verdadeiras
descobertas ao longo da pesquisa50.
Ao se estudar os movimentos de deslocamento populacional, a forte e intensa
mobilidade de alguns grupos humanos, tem-se sobre eles informações que podem ser
chamadas de padrão: números de pessoas que vão e que ficam, informações sobre os locais de
recepção, etc. Mas, muito pouco se sabe sobre o porquê dessa mobilidade, das razões
daqueles que se deslocam. Contudo, as narrativas dos sujeitos que possuem a experiência do
deslocamento, seja participando ativamente ou não, contribui para pensar a prática social dos
grupos aos quais pertencem em sua região de origem ou na região para a qual se dirigem para
os trabalhos nas lavouras de café.
Foram as narrativas coletadas, as entrevistas realizadas, as experiências de vida,
contadas e divididas que possibilitaram enxergar os sujeitos em sua prática social, além das
categorias que parecem enrijecer as ações e as opções dos sujeitos que dialogam com o seu
passado e seu presente e nele decidem como e porque partirão ou não para outras regiões.
Assim, as narrativas orais constituem importantes instrumentos de compreensão dos
processos de migrações e deslocamentos vivenciados pelos mais diferentes grupos da
população porque são formuladas a partir daqueles que experimentam esses processos, numa
tentativa de construir explicações que não se encontram em documentos, ou que apresentam
lacunas, se não consideram as narrativas dos sujeitos envolvidos, uma vez que as suas
narrativas, repletas de vida, sentimentos, projeções, análises e compreensões encontram-se
articuladas com a realidade.
A busca pelas fontes documentais não foi descartada e se constituiu também em um
processo importante à medida que permitia realizar as leituras sobre o não dito. Pesquisou-se
dados e referências aos trabalhadores sazonais na região do Triângulo Mineiro e do Alto
Paranaíba, em jornais e periódicos que circulam pela região estudada, embora não sejam
“notícia” nos veículos de informações pesquisados nas cidades de Araguari, Patrocínio,
Monte Carmelo e Uberlândia51. Esses jornais circulam também por pequenos distritos e
50 Outras informações sobre este conjunto de entrevistados, e outros citados ao longo do texto, assim como as principais temáticas tratadas em cada uma das entrevistas constam do item Fontes Orais, ao final deste trabalho. 51 Entre os jornais pesquisados, destacam-se em Araguari: Gazeta do Triângulo, Diário de Araguari, Jornal de Araguari, Jornal de Domingo e Botija Parda. Na cidade de Patrocínio, destaca-se o jornal Patrocínio Hoje; em Uberlândia, destacam-se matérias relacionadas à produção cafeeira no jornal Correio de Uberlândia.
35
cidades menores, possibilitando com isso uma melhor compreensão de como a região enfrenta
a questão da presença temporária destes grupos de trabalhadores. Alguns dos jornais
pesquisados são publicações recentes, como os da cidade de Patrocínio, mas possibilitam
observar a “invisibilidade” dos grupos pesquisados nesses veículos de informação52,
apontando para a possibilidade de se analisar a inserção histórica da imprensa enquanto “força
ativa da vida moderna, muito mais ingrediente do processo do que registro dos
acontecimentos, atuando na constituição de nossos modos de vida, perspectivas e consciência
histórica”53.
Revisitar os jornais e periódicos da região, transformá-los em fonte histórica, ainda
que não abordem de forma específica, ou não tratem com freqüência, a questão dos
trabalhadores temporários na região, é uma operação que envolve escolhas e que levam a
pensar a imprensa como
Linguagem constitutiva do social, detém uma historicidade e peculiaridades próprias, e requer ser trabalhada e compreendida como tal, desvendando, a cada momento, as relações imprensa/sociedade, e os movimentos de constituição e instituição do social que esta relação propõe.54
Desse modo, há que se pensar e discutir essas fontes como “códigos letrados” e como
esse veículo penetra nos meios populares, muitas vezes articulando argumentos
preconceituosos e desqualificadores55, imputando a determinados grupos, no caso, aos
trabalhadores pesquisados, a pecha de serem malquistos, de estarem relegados à
marginalidade social. Para estes grupos da população, muitas vezes, as informações dos
jornais não chegam de forma direta, sob a forma escrita, o que não significa que seus efeitos
não alcancem também esses grupos, pois seus ideários acabam difundidos de outra forma,
mas também com a sua contribuição.
Focando ainda a presença dos trabalhadores na região produtora de café, investiguei
nas principais cidades em estudo as Associações de Cafeicultores presentes em Patrocínio56,
52 Invisibilidade esta que pode remeter ao fato de serem “migrantes econômicos” que desaparecem aos olhos do público por se constituírem um produto colateral da modernização, conforme aponta BAUMAN, Zigmunt. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2005. p. 75. 53 CRUZ, Heloisa de Faria; PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha. Na oficina do Historiador: conversas sobre história e imprensa. Projeto História, São Paulo, PUC-SP, v. 1, p. 22-38, 2008. 54 CRUZ, Heloisa de Faria; PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha. Na oficina do Historiador: conversas sobre história e imprensa. Projeto História, São Paulo, PUC-SP, v. 1, p. 22-38, 2008. 55 Em relação a essa discussão e a relação entre imprensa, cultura letrada e vida urbana consultar: CRUZ, Heloisa de Faria. São Paulo em papel e tinta: periodismo e vida urbana – 1890-1915. São Paulo: EDUC; FAPESP; Arquivo do Estado de São Paulo; Imprensa Oficial-SP, 2000. 56 A ACARPA (Associação de Cafeicultores de Patrocínio e Região) atende as cidades de Guimarânia, Serra do Salitre, Cruzeiro da Fortaleza e Perdizes.
36
Monte Carmelo57 e Araguari58, para onde se dirigem também grandes grupos de trabalhadores
temporários e, onde se instalam as principais organizações de proprietários, e talvez também
de trabalhadores, através dos sindicatos de trabalhadores rurais59.
O conteúdo da documentação60 encontrada nessas associações, embora esteja mais
voltado para os números da produção e para a qualidade do café comercializado, menciona
em seus registros dados dos trabalhadores nas lavouras como estimativas da mão-de-obra
empregada na região, valores a serem pagos pelo trabalho através de carta aos associados,
bem como artigos em jornais e informativos para os associados, que procuram orientar os
produtores sobre as formas e relações contratuais de trabalho que se deve procurar seguir a
fim de evitar prejuízos com possíveis processos trabalhistas, entre outros dados mais
relacionados à produção e à qualidade do café da região.
Ao investigar os arquivos e documentos dos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais que,
conforme constatado em entrevistas, são acionados por alguns produtores da região para fazer
o registro do contrato de trabalho e também a rescisão contratual (o “acerto de contas”, como
se diz entre os trabalhadores), não obtive muitos dados. Mas, o que se tem são panfletos e
cartilhas de orientação, entre outros documentos, que pouco ou nada mencionam sobre o
trabalhador temporário na localidade, pois ele é entendido como passageiro pela região,
portanto, não se tornará um filiado ao sindicato e, por isso, pouca atenção é dada a esse
trabalhador.
Os documentados coletados, bem como as entrevistas e conversas com membros de
sindicatos do Núcleo de Conciliação Trabalhista e das associações de produtores, permitiram
conhecer dados não apenas sobre a produção, que parece ser a maior preocupação entre os
produtores, mas, principalmente, sobre como se pensa o trabalho e os trabalhadores, uma vez
que estes aparecem apenas como estatísticas referentes a gastos da produção e, ainda, como
sujeitos que são beneficiados com a lavoura cafeeira, uma vez que são empregados sem ter
maiores qualificações para essa atividade (de acordo com entrevistas e outros documentos).
Também se deparou com o “mundo” do produtor/cafeicultor, seus anseios, queixas,
57 Nesta cidade instala-se a AMOCA, Associação dos Cafeicultores de Monte Carmelo e região, que atende aos produtores dos municípios de Estrela do Sul, Grupiara, Douradoquara, Romaria, Irai de Minas, Abadia dos Dourados e Nova Ponte. 58 Em Araguari está sediada a Associação dos Cafeicultores de Araguari (ACA) que compreende associados dos municípios de Cascalho Rico, Tupaciguara, Indianópolis, Monte Alegre de Minas, Uberaba, Uberlândia e Canápolis. 59 Os Sindicatos de Trabalhadores Rurais visitados nestas cidades também concentram o atendimento aos trabalhadores das cidades vizinhas, tal qual as associações de produtores de café. 60 Foram coletados junto às associações: cartilhas de orientação aos produtores; cartilhas orientando o trabalhador rural; folders; folhetos informativos; periódicos das instituições.
37
reivindicações, sua percepção e até mesmo seu engajamento político nas questões
relacionadas a políticas de crédito agrícola. Contudo, os trabalhadores, que são o
objeto/sujeito nesta pesquisa, pouco apareceram como sujeitos atuantes nessa atividade
econômica.
Embora diante desse leque de perspectivas e de fontes, parte delas não possibilitou
responder ou analisar as questões aqui levantadas sobre processos de deslocamentos, ou
conseguiram apontar possíveis argumentos para a melhor compreender o porquê da opção
desses sujeitos de partir e de voltar, bem como as conexões que fazem, em seu cotidiano, dos
mundos com os quais aprendem a lidar. Nesse sentido, compartilha-se do pensamento de
Thompson ao apontar que:
[...] em termos de migração, enquanto pode haver informação abundante sobre o contexto original e o novo, somente uma história de vida pode conectar os dois numa explicação narrativa que faz sentido para as duas extremidades do processo: que tipo de pessoas escolhe partir e por que, o que elas conseguem e o que isso significa para elas, por que decidem ficar ou voltar.61
Por esta razão, a prioridade é dada às entrevistas com os trabalhadores, moradores de
Horizonte Novo, moradores da região pesquisada em Minas Gerais, funcionários e membros
das Associações de Cafeicultores, Sindicatos de Trabalhadores Rurais e outras pessoas que
tenham algum vínculo com os trabalhos e trabalhadores da lavoura de café e que possam
contribuir para a compreensão desse fluxo de deslocamento e do cotidiano das pessoas que
participam desse movimento.
As análises referentes a estes grupos de trabalhadores foram divididas em três partes e
subdivididas em cinco capítulos a fim que melhor desenvolver e analisar algumas temáticas
que surgiram a partir das entrevistas e do processo de pesquisa.
No primeiro capítulo são analisados alguns elementos relacionados à presença dos
trabalhadores denominados migrantes na região produtora de café no Cerrado Mineiro. A
aproximação com estes grupos é discutida neste momento com a perspectiva de fazer
conhecer quem são e quais enfrentamentos de pesquisa surgiram no processo de
conhecimento e aproximação, procurando compreender as motivações para a inserção destes
sujeitos na região.
No segundo capítulo, a dinâmica do trabalho no qual se inserem é apresentada e
analisada, procurando-se conhecer as relações de trabalho, o espaço dos alojamentos e as
61 THOMPSON, Paul. “História oral e contemporaneidade”. História Oral. Revista da Associação Brasileira de História Oral, nº 5, São Paulo: ABHO, v. 5, jun. 2002, p. 20.
38
sociabilidades destes indivíduos na região produtora de café. Busquei discutir as formulações
dos trabalhadores acerca de suas experiências, acerca da atividade, dos saberes que
construíram com as constantes viagens. A partir de suas narrativas desnudam-se seus
principais objetivos, desejos e sonhos e com eles as dificuldades que se iniciam com a própria
viagem, as relações intra-grupos de trabalhadores, as suas formas de organização, a instalação
nas lavouras de café, as relações com os fazendeiros da região, com os moradores e outros
trabalhadores, enfim.
O terceiro capítulo trata as temáticas relacionadas à viagem. Como os trabalhadores e
seus familiares pensam as viagens e as associa a determinadas mudanças na região de origem.
Trata as formas como os trabalhadores se organizam e interpretam as viagens, assim como a
região de origem no período em que estão ausentes. Parte da história da localidade é contada
pelos entrevistados que apresentam e tecem suas próprias análises.
As experiências destes trabalhadores em sua região de origem ganha destaque e são
analisadas no quarto capítulo. O leitor é levado a conhecer o lugar de partida dos sujeitos em
questão. Questões relacionadas às experiências que estes trabalhadores possuem no campo, os
enfrentamentos cotidianos em busca de recursos e melhorias para a região, os significados da
educação escolar, as organizações das comunidades e bairros rurais, suas e reivindicações,
atuações, bem como as mudanças percebidas ao longo do tempo, são discutidas e analisadas a
partir das entrevistas de moradores. Tem-se assim, a perspectiva de fazer conhecer as relações
que estabelecem a partir da terra, como observam e entendem o seu próprio contato com ela.
No quinto capítulo o leitor será conduzido a conhecer um panorama da região
produtora de café a fim de compreender o contexto em que se inserem os trabalhadores. Nesse
sentido, são analisadas as organizações e as formas como atuam os produtores de café em
diferentes instâncias, a fim de se entender as disputas, as articulações e toda a dinâmica em
que se envolve o trabalhador ao deixar sua região para trabalhar na safra do café. Assim como
o modo como as relações de trabalho parecem se precarizar a cada dia na região pesquisada.
PRIMEIRA PARTE
40
CAPÍTULO 1
Trabalhadores rurais: ser “de fora” e do lugar
41
1.1 Perspectivas sobre os trabalhadores
A tradicional lavoura cafeeira presente nos estados do Paraná e de São Paulo,
especialmente até o início dos anos de 1970 ocupava grande mão-de-obra. A maioria do
contingente de trabalhadores residia na propriedade rural: famílias inteiras viviam sob o
contrato de meia, parceria, arrendamento ou outras formas, pelo qual o chefe da família,
geralmente o pai ou o homem mais velho do grupo familiar, se responsabilizava e respondia
pelo contrato que, na maioria das vezes, era apenas verbal. De acordo com Martins, a lavoura
cafeeira no Brasil ganhou forte impulso a partir do final da escravidão no Brasil e com a
chegada das grandes levas de imigrantes sob o sistema de colonato, no qual toda a família era
empregada e o “acerto com a família trabalhadora era feito ao final da colheita”, assim, “o
colono não era um trabalhador individual, mas um trabalhador que combinava as forças de
todos os membros da família: o marido, a mulher, os filhos com mais de sete anos”1.
Nesta lavoura, se empregavam todos: mulher, filhos e/ou agregados, que trabalhavam
durante todo o ano realizando as mais diversas atividades exigidas desde o plantio à limpeza
da plantação, adubação, a preparação para a colheita e a própria colheita de café. Estas
atividades eram combinadas a outras realizadas nas plantações temporárias destinadas ao
consumo próprio e que, normalmente, eram cultivadas entre os vãos da lavoura cafeeira2,
prática registrada desde o regime de colonato quando “ao mesmo tempo em que procedia à
limpa do cafezal podia cultivar o milho ou feijão, ou outra planta que tolerasse a
consorciação”3. Assim, ao mesmo tempo em que desempenhava as suas tarefas na lavoura de
café, cuidava também de diferentes plantações, em geral, voltadas para a própria subsistência,
ocupando-se a mão-de-obra de toda a família. Nesse aspecto, vale mencionar que o meio rural
brasileiro é considerado em estudos como de Durhan como um espaço onde o “trabalho
agrícola foi e é, essencialmente, uma atividade familial, com exceção do período colonial com
o trabalho escravo e, recentemente, com a reduzida presença de proletários agrícolas nas
empresas capitalistas como algumas usinas de açúcar” 4. Contudo, observou-se nas últimas
décadas do século XX e na primeira do século XXI o crescente número de trabalhadores
rurais volantes que passaram a ocupar postos temporários de trabalho, constituindo e dando
1 MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. 4. ed. São Paulo: Hucitec, 1990. p. 81-82. 2 Nesse sentido ver: SILVA, Maria Aparecida de Moraes. De colona a bóia-fria. In: DEL PRIORE, Mary (Org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004. 3 MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. 4. ed. São Paulo: Hucitec, 1990. p. 83. 4 DURHAN, Eunice. A caminho da cidade. São Paulo: Perspectiva, 1978. p. 60.
42
formas a outras relações de trabalho no campo para além das de arrendamento, parceria, meia
ou outras que eram essencialmente marcadas pela utilização da mão-de-obra familiar no
desenvolvimento das atividades5.
Ao observar o processo de produção do café nas regiões do Triângulo Mineiro e do
Alto Paranaíba, no entanto, constatei que os vínculos de trabalho ali predominantes estão
embasados nas relações capitalistas, com grande utilização de mão-de-obra temporária,
contratada em períodos específicos e marcada pelo processo de mecanização da produção na
propalada modernização6 agrícola brasileira. Produzir na região do cerrado no final dos anos
de 1970 e início da década de 1980, para aqueles que se empenhavam em tal atividade,
implicava altos investimentos em máquinas e implementos agrícolas, em fertilizantes e
pesticidas, em sementes selecionadas e melhoradas que viesse a tornar possível a grande
produção especialmente a de grãos. A propriedade rural adquiria outra forma de gestão,
passaria a ser tratada como uma empresa, tendo como referência, principalmente, a mudança
na base técnica da produção rural, operacionalizada pela intervenção do Estado, através de
financiamentos de projetos que visavam o desenvolvimento agrário com uma maior
participação dos produtores rurais no mercado interno e externo, de forma mais ampla e
competitiva7. Daí, as especificidades da produção do café nessa região, que desde o seu início
esteve marcada pela pouca utilização de mão-de-obra fixa no campo: geralmente empregava-
se apenas uma família para gerenciar a propriedade, utilizando-se trabalhadores volantes
temporários para realizarem as mais variadas e específicas tarefas de curta duração e em
intervalos de tempo relativamente curtos do ciclo produtivo.
A região de que trata este estudo, conforme mencionado anteriormente, é uma parte do
Triângulo Mineiro e parte do Alto Paranaíba onde se concentram os trabalhadores estudados,
especialmente nos municípios de Araguari, Indianópolis, Estrela do Sul, Monte Carmelo e
Patrocínio, conforme se tem no mapa abaixo.
5 O acesso a terra nestas relações não se dava pela aquisição da propriedade por parte do arrendatário, meeiro ou parceiro, mas pelos serviços prestados na propriedade e pela forma como seriam divididos custos e os resultados da produção com o proprietário da terra. 6 Por modernização da produção agrícola pode-se entender o uso intensivo de equipamentos e técnicas, mas também, o processo de modificações ocorridas nas relações sociais de produção. Ver: GRAZIANO NETO, Francisco. Questão agrária e ecologia: crítica da agricultura moderna. São Paulo: Brasiliense, 1985; TEIXEIRA, Jodenir Calixto. Modernização da agricultura no Brasil: impactos econômicos, sociais e ambientais. Revista Eletrônica da Associação dos Geógrafos Brasileiros, Três Lagoas-MS, ano 2, v. 2, n. 2, p. 21-42, set. 2005. 7 Esta questão será mais bem apresentada e discutida em capítulo posterior.
43
Equador
Capricórnio Trópico de
50° O
70°O
20°S
Brasil
670 1.340km
Escala gráfica
0
50° O
70°
O
20°S
MG
Brasília
Fonte:
Org.:
Adaptação:
Base cartográfica, .
; Antonio Santiago da Silva.
Antonio Santiago da Silva - 2009.
IGAM
Maria Andréa Angelotti Carmo
N
18°0'S
SP
GO
46°0'W
20°0'S
50°0'W
0 150 300km75
Municípios do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba - MG
Prata
Araguari
Uberlândia
Uberaba
Tupaciguara
Monte Alegre de Minas
Veríssimo
Conceição das Alagoas
Água Comprida
Planura
Fronteira
Frutal
Comendador
Gomes Itapajipe
Campina Verde
São Francisco de Sales
IturamaCarneirinho
Limeira do Oeste
União de Minas
Santa Vitória
Gurinhatã
Ipiaçu
Ituiutaba
Capinópolis
Cachoeira Dourada
Canápolis
Centralina
Araporã
Indianópolis
Estrela do Sul
Cascalho Rico
Grupiara
Nova Ponte
Pedrinópolis
Romaria
Iraí de Minas
Santa Juliana
Delta
Conquista Sacramento Tapira
Araxá
Perdizes
Patrocínio
Coromandel
Abadia dos Dourados
Douradoquara
Monte Carmelo
Patos de Minas
Guimarânia Cruzeiro
da Fortaleza
Serra do Salitre
Ibiá
Pratinha Campos Altos
Rio
Paranaíba
Santa Rosa da Serra
São Gotardo
Matutina
Arapuá
Tiros
Lagoa Formosa
Carmo do Paranaíba
Cidades
Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba
Limites de municípios
Figura 1: Mapa dos municípios do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, Minas Gerais. Fonte: Base Cartográfica IGAM.
Organização: Maria Andréa Angelotti Carmo; Antonio Santiago da Silva. Adaptação: Antonio Santiago da Silva.
A partir das pesquisas efetuadas, observou-se que a presença dos grupos de diferentes
origens nas lavouras de café do Triângulo e do Alto Paranaíba teve um aumento significativo
entre os anos de 1990 e 2000. A freqüência dos grupos de trabalhadores de outras regiões
brasileiras, nas fazendas produtoras de Café do Cerrado, possibilita pensar questões referentes
a uma condição de permanência de determinadas experiências de trabalho8, uma vez que, à
primeira vista, parecia tratar-se de uma situação trabalhista, mas o que se almejava saber era
qual a razão de sua presença anual. E na mesma direção, interessava pensar a questão da
propagada lógica capitalista de produção moderna do Café do Cerrado, sua estratégia que
8 A presença de grupos de origem diversa na lavoura de café não é característica apenas das lavouras do Cerrado, mas aparece também em outras áreas do estado, conforme se observa no artigo “Prefeitura encaminha trabalhadores a Minas Gerais para a colheita do café”, em que o autor, Sidney Bispo Xavier, trata a forma como a Prefeitura Municipal de Terra Roxa-PR dispõe de auxílio financeiro e transporte para os munícipes de seu território buscarem nas lavouras cafeeiras o sustento de suas famílias. Para chegar à cidade de Conceição de Aparecida-MG, percorrem cerca de 1100km em torno de dezesseis horas de viagem. O texto data de junho de 2008 e está disponível em: <www.terraroxa.pr.gov.br>. Acesso em: dez. 2008.
44
parecia combinar a existência do diálogo que valorizava os aspectos técnicos, de última
geração, afirmando-se os significados do grande negócio capitalista na agricultura,
principalmente na região Sudeste do país9, mas que convive com a presença de trabalhadores
locais e de outras cidades brasileiras.
No tocante a questão do deslocamento dos trabalhadores, a reflexão de Silva apresenta
dados que demonstram os efeitos práticos da mobilidade espacial de “milhares de homens,
mulheres e crianças do Vale do Jequitinhonha e outras áreas do país para o corte da cana,
colheita do café, do algodão, da laranja e do amendoim”, que se dirigem para a região de
Ribeirão Preto, impactam e impulsionam parte considerável do processo produtivo, fenômeno
social denominado por ela de “migração sazonal”10. Ao que tudo indica, o deslocamento dos
trabalhadores, formas de migração sazonal, como o estudado por Silva, relativo a outras áreas
agrícolas, também é observado nas lavouras de café do Triângulo Mineiro e do Alto
Paranaíba. Eles parecem compor, atualmente, uma lógica da produção capitalista que coloca
em movimento grandes contingentes populacionais que, em busca de recursos para retornar e
reorganizar suas vidas em seus locais de origem, organizam também uma lógica de produção
nas fronteiras agrícolas ou em regiões onde determinados tipos de produção ou a monocultura
se encontram sedimentados.
Os trabalhadores chamados migrantes por toda a região formam grupos distintos e
específicos no contexto da produção agrícola no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba. A
distinção se inicia pela própria constituição física, marcada por especificidades relacionadas
ao tom da pele, estatura, características dos cabelos, entre outras marcas como as culturais:
sotaques, pronúncias, linguagens e formas de expressão diferenciadas que os distinguem dos
moradores locais11. Estas marcas, quase sempre, são mencionadas com uma dose de pouca
aceitação, zombarias, brincadeiras e reprodução de algumas expressões mais corriqueiras
destes grupos que remetem às disputas que ocorrem entre as diferentes populações vivendo
em um determinado espaço, delimitando suas marcas, ou ainda, explicitando suas identidades,
uma vez que os sujeitos “de fora” não buscam esconder de onde vêm, apoiando-se na
presença de outros da mesma origem. Parece que a “intolerância” daqueles “do lugar” é uma
forma de autodefesa, de procurar deixar o outro à distância para que este não venha lhe ocupar 9 Conforme discute e apresenta SILVA, Maria Aparecida de Moraes. Trabalho e trabalhadores na região do “mar de cana e do rio de álcool”. Revista Agrária, São Paulo, n. 2, p. 2-39, 2005. p. 17. 10 Idem. Errantes do fim do século. São Paulo: Ed. UNESP, 1999. p. 70-71. 11 De acordo com Albuquerque, “o sotaque permite identificar o migrante como um estranho por este estar associado, quase sempre, a um conhecimento prévio que permite enquadrar o falante em conceitos morais, em valores, num regime de escuta, em que não são as pessoas que falam, mas a fala que diz a pessoa”. (ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2001, p. 155-156).
45
o espaço. Da outra parte, ser diferente também o distingue enquanto conjunto, estabelece e
cria laços de solidariedade que se solidificam naquele ambiente.
Acerca dos trabalhadores presentes na região produtora de cana-de-açúcar no interior
do estado de São Paulo, Silva destaca que os estigmas estão presentes e formam opiniões
acerca desse contingente de trabalhadores que parece formar uma “massa heterogênea, do
ponto de vista cultural, mas considerada homogênea pelos habitantes destas cidades. Em suas
percepções, trata-se de um bando de invasores, gente suja, portadora de maus costumes, gente
violenta”12. Assim, tem-se que a defesa de seu grupo, de seu espaço, de sua identidade se
constitui em detrimento do outro, do “de fora”. A coexistência de culturas distintas parece ser
marcada por estas disputas e “desqualificação” do outro, como uma ação que pode tanto
separar os grupos diferentes quanto “unificar” aqueles que, em algum aspecto, se identificam,
se consideram como iguais. Esta discussão acerca das noções de diferença e de identidade em
uma perspectiva de pensar as disputas no campo político e jurídico, com efeitos sobre campos
diversos, como o do trabalho, pode ser encontrada nos estudos de Koubi, como uma
possibilidade para se pensar o “direito à diferença”, em que a noção de distinção “comanda os
processos de socialização e estrutura das relações sociais e supõe uma conexão entre diversas
formas de enfoque da diferenciação nos campos político, econômico, social e jurídico”13.
Diante disso, pergunta-se: quais são os efeitos das utilizações do conjunto de marcas
da diferenciação, para os trabalhadores presentes nas colheitas de café da região do Triângulo
Mineiro e do Alto Paranaíba? Como são pensadas as relações entre os grupos de
trabalhadores, locais e de fora? Onde é que se instalam os trabalhadores vindos de outras
localidades? Para analisar algumas dessas questões é possível observar em documentos
variados algumas nuances da relação, formas de posicionar que refletem pensamento ou
proposições de interferência na dinâmica local. Nesse sentido, vale a pena observar o
apontamento abaixo, que é uma forma de diagnóstico da cidade de Araguari, com a chegada
dos trabalhadores de fora, denominados migrantes:
Chegam a significar, segundo estimativas, entre 60 e 90% da mão de obra empregada. Além de retirar trabalho dos araguarinos, entre outras questões, registra-se que as condições de trabalho, transporte e alojamento dos migrantes são precárias.14
12 SILVA, Maria Aparecida de Moraes. Errantes do fim do século. São Paulo: Ed. UNESP, 1999. p. 229-230. 13 KOUBI, Geneviève. O direito à in-diferença: sentimento de injustiça e aspiração à igualdade (fronteira entre História e Direito). História e Perspectiva, Uberlândia, n. 27/28, p. 11-35, jul./dez. 2002; jan./jun. 2003. p. 13. 14 SEBRAE-MG. Programa de Emprego e Renda – PRODER, Araguari. Diagnóstico Municipal, 1998. p. 57
46
Este discurso, um tanto marcado pela pouca aceitação dos trabalhadores “de fora”,
procura estabelecer alguns limites “culpando” os migrantes15 pelas dificuldades e pouca oferta
de trabalho encontrada pelos trabalhadores da região, como também denuncia as dificuldades
enfrentadas por estes sujeitos em várias dimensões do seu dia-a-dia. Ainda que aponte
possíveis problemas experimentados por esses grupos em seus alojamentos e condições de
trabalho, entre outros, o diagnóstico do SEBRAE não se refere à presença desses sujeitos
como homens em busca de trabalho como pessoas que integram uma das principais atividades
econômicas do município araguarino, mas como aqueles que dificultam o acesso aos postos
de trabalho.
Nas entrevistas dos trabalhadores locais que se lançam nas atividades da lavoura
cafeeira, aparecem opiniões diversas sobre o fato de se empregarem “os que vêm de fora”,
como relata o senhor Cirso, um trabalhador rural local que, assumiu a posição de mediador da
relação trabalhador/produtor (“gato”) ao longo da década de 1990 e que se via ameaçado pela
“gente de fora”. Quando perguntei sobre a presença dos trabalhadores rurais vindos de outras
localidades, ele afirmou que:
Gente de fora é que trabalha, porque aí eles vêm, e fica ruim pra cidade também, porque os cara vem de fora, fica na fazenda alojado, ganha aí, mil, mil e quinhentos reais, ele vai embora e vai gastar o dinheiro na cidade dele. Eu não tenho nada a ver com isso, mais aumenta muito roubo na nossa cidade por causa disso. Que o povo daqui não trabalha, entendeu? O povo que vem de fora leva o dinheiro daqui e vai..., tá certo que eles vai administrar a vida deles pra lá, mas aqui na nossa cidade fica difícil, entendeu?16
Há, nessa narrativa, uma reação de morador da cidade, de alguém que se sente parte da
região, embora ele também seja um migrante, que no Triângulo Mineiro fixou-se há muitos
anos. Com essas observações, o senhor Cirso Batista quer levar a crer na possibilidade de
disputas que ocorrem no mundo do trabalho, mas, ao que parece, não se resumem apenas a
esta dimensão, e espraia-se também a outros setores. Assim, “a complexidade de uma cultura
se encontra não apenas em seus processos variáveis e suas definições sociais – tradições,
instituições e formações – mas também nas inter-relações dinâmicas, em todos os pontos do
processo, de elementos historicamente variados e variáveis”17. Nestas inter-relações
15 A expressão migrante será aqui utilizada por tratar-se da forma como alguns grupos da população local se referem aos trabalhadores vindos de outras regiões do país, mas não se trata de um conceito utilizado nesta pesquisa para tentar definir os sujeitos que participam dos processos de deslocamentos temporários. 16 Depoimento do senhor Cirso Batista, 40 anos, em entrevista realizada na residência de seu amigo em Araguari, em 13 de fevereiro de 2000. 17 WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1979, p. 124.
47
dinâmicas estão dispostas partes das disputas que ocorrem entre os diferentes grupos que
ocupam uma mesma região com objetivos supostamente distintos, mas com interesses
próximos: ter acesso a uma fonte de renda com o trabalho temporário. O senhor Cirso afirma,
aparentemente se desculpando, “que o povo daqui não trabalha, entendeu?”, e que os
trabalhadores de fora vêm e levam o dinheiro para as suas localidades, de maneira honrada e
séria, enquanto os possíveis trabalhadores locais que poderiam ocupar os postos, ao que
parece, se comportam como descrevera o entrevistado.
Os apontamentos do senhor Cirso permitem pensar, ainda, acerca de alguns elementos
de sua condição de morador permanente da cidade de Araguari, que, um dia, também lhe foi
provisória, quando chegou à região nos anos 1980, muito distante do momento presente. A
meu ver, o depoente sente-se parte da região e prejudicado pelos migrantes. Além disso, como
outros trabalhadores, ele associa a sua insatisfação e a ameaça do desemprego à chegada
destes grupos que, sob sua ótica, trazem uma avalanche de desassossegos, como uma maior
incidência de assaltos, de roubos, entre outros acontecimentos, o que parece perturbar o
entrevistado. A questão do roubo às residências e às pessoas, segundo o senhor Cirso, é
provocada pela disputa dos postos de trabalho, dentre eles, os da lavoura de café na zona rural
da cidade de Araguari, que ocupados pelos trabalhadores vindos de outras localidades, faz
com que as pessoas com pouca disposição para a disputa, no âmbito do trabalho, recorram ao
furto.
Essa compreensão acerca dos trabalhadores migrantes apareceu em outros
depoimentos de trabalhadores rurais, que são também originários de outras partes do país mas,
por estarem na região há muitos anos, consideram-se parte dela, pois nela moram e trabalham,
ao passo que aqueles que são de fora ficam na região em períodos bastante específicos, apenas
enquanto duram os trabalhos, o que parece torná-los sujeitos que retiram emprego dos
habitantes da região.
Para explicar a presença dos trabalhadores de fora nas atividades da lavoura cafeeira, o
argumento mais recorrente entre os trabalhadores locais é o da “preferência” dos produtores
por essa mão-de-obra, como explica o senhor Francisco em seu depoimento.
Porque os daqui [os trabalhadores bóias-frias] levava na lei. Então como na Bahia eu já conversei com vários baianos, lá tem vez que eles não ganha nem quatro, cinco reais por dia lá. Então, numa parte os fazendeiro aproveita, porque lá não tem emprego, não tem serviço também. Então aqui, nada, nada, eles ganhando oito reais por dia, às vezes livre, eles
48
ficam aqui três, quatro mês, eles vão leva um dinheiro bom, porque lá às vez num ganha nem isso.18
O depoente faz vários comentários sobre a presença dos “baianos”, que se deve,
também, como forma de represália às atitudes dos trabalhadores rurais locais, em sempre
reivindicar melhorias e garantias trabalhistas, buscando inclusive, legalmente, seus direitos.
Segundo as entrevistas possibilitam pensar, os fazendeiros da região parecem conseguir uma
associação importante entre a possibilidade de pagar pouco, de ter uma mão-de-obra barata,
vinda de outra região, na maioria das vezes bastante pobre, e de evitar litígios trabalhistas
como aqueles perpetrados pelos trabalhadores locais. Denominar os trabalhadores de fora de
“baianos”, não significa que são, de fato, do estado da Bahia. De certa forma, há o estigma
que qualifica ou homogeneíza, para os trabalhadores locais, todos os trabalhadores
paranaenses, cearenses, pernambucanos, alagoanos, como simplesmente “baianos”19,
diferenciando-os dos trabalhadores do lugar. Assim, os homens e mulheres da região sentem-
se prejudicados, pois em algumas situações reivindicar algum direito, entrar com uma ação
contra o fazendeiro pode significar um ganho momentâneo, mas também um prejuízo a longo
prazo, visto que, quase sempre, os trabalhadores conseguem obter parte de suas reivindicações
por meio dos processos trabalhistas. No entanto, podem perder a oportunidade de um emprego
futuramente, pois há indícios de que ficam “marcados” pelos fazendeiros durante algum
tempo, impossibilitando-os de se empregarem, ainda que temporariamente nos momentos de
pico das demandas da dinâmica produtiva, da nova lógica agropecuarista que se instaura na
região. Nesse sentido, aponta o senhor Francisco em seu depoimento:
Se levar na lei, eles não dá serviço mais pra nós. Então, tudo isso é devido a isso aí [se referindo à forma como os trabalhadores rurais de outras cidades da região, que se empregam nas fazendas cafeeiras locais]. ... Então os fazendeiro trouxe esse povo mais por causa desse negócio de lei, ele não tem esse problema de levar na lei20.
Os trabalhadores locais, ao que se observa, enfrentam problemas com os fazendeiros e
sofrem sérias conseqüências por lutarem judicialmente por seus direitos, entre elas, não
conseguir emprego nas lavouras por algum tempo. É possível pensar que, dentre os muitos
elementos apontados pelos entrevistados, trabalhadores rurais locais, recuar diante de embates
18 Depoimento do senhor Francisco Alvarenga, 43 anos, em sua residência na cidade de Araguari no dia 13 de fevereiro de 2000. 19 Em referência a essa discussão, ver também: SILVA, Maria Aparecida de Moraes. Errantes do fim do século, São Paulo: Ed. UNESP, 1999. p. 229-230. 20 Depoimento senhor Francisco Alvarenga, 43 anos, em sua residência na cidade de Araguari no dia 13 de fevereiro de 2000.
49
e de negociações, desistir de reivindicações salariais por meio de greves ou outras
manifestações históricas dos trabalhadores, são ações justificadas pela presença da disposição
dos proprietários locais de retaliar e não mais empregar as pessoas. Há que se considerar
ainda que grande parte dos proprietários locais, embora pequenos e médios proprietários,
mantém relações viscerais com os comandantes da política local, o que implica em sérios
problemas para os trabalhadores, caso entrem em desacordo com estes sujeitos. Diante desse
quadro, é compreensível que se eleja os trabalhadores “de fora” como os culpados pelo
aumento da criminalidade, pelo desemprego, e pela opção dos proprietários rurais na
realização de trabalhos nos momentos de pique, por estarem mais disponíveis, por
“aceitarem” as mais precárias condições de trabalho e os piores ganhos. Pode-se pensar, com
isso, a pecha que sofrem os trabalhadores migrantes sob essas marcas e associações.
Conforme a pesquisa relativa aos trabalhadores rurais nas lavouras de café na região
do Cerrado, observou-se a existência de diversas disputas e tensões entre estes trabalhadores
residentes na cidade de Araguari e os migrantes. A princípio, os trabalhadores vindos da
região oeste do Paraná, em comparação com aqueles advindos da Região Nordeste do país,
eram considerados melhores trabalhadores21 por parte dos produtores, em detrimento dos
nordestinos que eram tratados como leigos na execução das tarefas solicitadas, especialmente
daquelas que exigiam maior habilidade com determinados instrumentos de trabalho como
peneiras e rastelos.
Nesse desenrolar de diferenças e de divergentes posições há, também, uma “oportuna”
posição diferenciadora, por parte dos produtores rurais, em relação aos trabalhadores locais
que parecem ser preteridos em favor dos que se deslocam anualmente para a colheita das
lavouras de café, alegando-se, para isso, o menor risco de, dentre outros, um processo
trabalhista. Pode-se inferir que há, com essa atitude, uma oportuna utilização dos “migrantes”
para ameaçar os trabalhadores locais com o não recrutamento em safras posteriores, caso
venha requerer, de algum modo, os seus direitos ou melhorias de condições salariais e de
trabalho. O trabalhador rural “de fora”, também, enfrenta as dificuldades em relação aos
vínculos de trabalho e seus direitos trabalhistas por não estar vinculado à região, por precisar
retornar para casa, por estar longe de sua família e, de algum modo, acabar “aceitando”
determinadas situações para não voltar para casa de “mãos vazias”.
Aparentemente, compreendia-se de forma favorável, o comportamento dos
trabalhadores migrantes para com os produtores, pois, raramente, apresentavam suas
21 As divisões que se fazem entre esses grupos demarcando suas fronteiras de ordem étnico-racial ocorrem em grande parte dos movimentos de migração, e não são características apenas do Brasil.
50
reivindicações e, embora a qualidade do trabalho rural seja considerada inferior pelos
produtores, o número desses trabalhadores na região aumenta a cada ano e, com eles, crescem
também os vários discursos proferidos sobre sua presença. O fato de o seu desempenho ser
considerado inferior ao de trabalhadores oriundos do Sul do país obriga a refletir uma vez
mais sobre a questão da qualificação para o trabalho rural, a partir de uma suposta tradição no
cultivo do café e, portanto, na habilidade histórica em desempenhar as atividades.
A presença dos trabalhadores de fora nas lavouras cafeeiras parece ser um consenso e,
a justificativa para esta presença aparece também em discursos e depoimentos dos grupos de
cafeicultores, como narra o presidente da Associação de Cafeicultores de Carmo do
Paranaíba:
A questão do migrante começou pela necessidade de mão-de-obra que a cidade não conseguia suprir, né. Aí, eles viam como era mão-de-obra mais fácil de lidar, com menos exigência, eles estavam mais disposto a trabalhar, né? Porque o pessoal que vinha de longe, então, tava ali com aquele objetivo de trabalhar mesmo e não, às vezes, como, mesmo a gente respeitando tudo...[referindo-se às leis trabalhistas] que nem esse cuidado porque é uma região bastante fiscalizada, pelo ministério e tudo. Então, mesmo a gente seguindo todas as norma, ainda tinha problema. O cara, como o cara estava amparado na lei ele começava a criar situações pra ser demitido [o entrevistado refere-se aos trabalhadores locais]; vários problemas assim, é problema de greve. Então, essa questão do migrante ajudou nesse ponto. Até então, sem os migrante, a gente não consegue fazer a colheita.22
Além de constituir-se em mais uma opção de mão-de-obra aos produtores de café, os
trabalhadores migrantes parecem ser vistos como opção de barateamento dos custos, assim
como possibilidade de menores problemas trabalhistas em detrimento dos trabalhadores
locais. Tudo indica que se conta com o fato de o “migrante” estar fora de casa e “aceitar”
determinadas situações que um trabalhador rural local não aceitaria: “pessoal que vinha de
longe, então, estava ali com aquele objetivo de trabalhar mesmo”, independente da condição a
que estivesse submetido. Até mesmo porque ou “aceita” uma determinada situação ou não
consegue sequer o dinheiro para a viagem de volta para casa.
A questão da presença desta mão-de-obra nas lavouras cafeeiras do cerrado e as
justificativas para tal vem acompanhada por uma idéia que coloca esse trabalhador rural,
vindo de outras localidades brasileiras, na condição de um desconhecido, mas também de
22 Depoimento do senhor José Eduardo Menezes, presidente da Associação de Cafeicultores de Carmo do Paranaíba, em entrevista realizada no dia 28 de março de 2007 durante evento da FENICAFÉ (XII Encontro Nacional de Irrigação da Cafeicultura no Cerrado, X Feira de Irrigação em Café do Brasil, IX Simpósio Brasileiro de Pesquisa em Cafeicultura Irrigada) na cidade de Araguari-MG.
51
alguém que está à mercê de seus empregadores, sem condições plenas de negociar ou de,
aparentemente, resistir às pressões trabalhistas ou requerer seus direitos conforme apareceu
em diferentes entrevistas de trabalhadores locais. Nesta direção, o trecho do depoimento que
segue apresenta elementos que merecem ser analisados. Quando perguntei ao senhor
Francisco por que ele acreditava que os trabalhadores de fora não levavam os empregadores
na justiça, respondeu:
Põe ele dentro do ônibus aqui e vai embora. Eles [os trabalhadores rurais de outras localidades] não vai querer gastar e nem um advogado não vai querer pegar porque é longe, né? Eles não vão querer gastar também, porque o que eles ganhou é pra comer também, né?23
Para o trabalhador local há entre os trabalhadores que vêm de outras regiões uma certa
resignação, uma vez que estes não “levam na lei”, e o proprietário, nos depoimentos de alguns
entrevistados, parece ter maior margem de controle sobre as disposições desses trabalhadores,
evitando que permaneçam na região por mais tempo, apoiando-se, assim, nesta condição para
promover um número maior de obstáculos que acabam impedindo-os de estabelecer algum
contato com advogados ou trabalhadores locais que os incentivem a requerer seus direitos.
Talvez esta resignação percebida pelos trabalhadores locais possa ser compreendida como
uma outra perspectiva de vida entre os trabalhadores de fora, como fato decorrente de uma
condição de vida, na qual suas ações dialogam com aquela que eles têm em seu local de
origem e não exatamente com a condição de trabalho “desfavorável” na lavoura de café.
Conforme apresentado nos dois depoimentos anteriores, penso que, em algum
momento, os trabalhadores de fora podem não ter reivindicado seus direitos, marcando de
algum modo as relações de trabalho a que se vinculavam. Mas, há que se pensar que com as
vindas sucessivas para o trabalho na lavoura de café estabeleceu-se e construiu-se um
determinado conhecimento sobre a região, das atividades desempenhadas, dos empregadores
e de suas formas de se relacionar com estes trabalhadores, tendo em vista a sua própria
condição na região de origem, que nem sempre é tão desfavorável conforme aparece nas
discussões acerca dos processos migratórios.
Conforme se observou na documentação pesquisada, os trabalhadores da safra do café
aparecem apenas como um dado de custo de produção ou em referência ao chamado “efeito
social” do café24, sinalizando para o emprego de milhares de pessoas que, para os produtores,
23 Depoimento do senhor Francisco Alvarenga, 43 anos, em sua residência na cidade de Araguari no dia 13 de fevereiro de 2000. 24 Conforme se tem em alguns documentos das Associações de Cafeicultores de diferentes cidades.
52
constituem uma mão-de-obra não qualificada com possíveis salários superiores àqueles pagos
em outros setores da economia, como se pode ler na matéria abaixo:
Este ano, segundo o presidente da Caccer, a expectativa é de colher mais de 4 milhões de sacas só na região, volume 33% maior que no ano passado, sendo que 70% desta produção será exportada. E mais de 500 mil pessoas foram empregadas para trabalharem nos 150 mil hectares plantados de café no cerrado. ‘No Brasil, a cafeicultura emprega 8 milhões de trabalhadores como mão de obra não qualificada. É uma das atividades que mais emprega no país. E com remuneração bem acima de outros setores’, explica Francisco Assis.25
Embora o discurso dos produtores seja recorrente em relação às dívidas do setor, os
apontamentos apresentados em seu interior são no mínimo instigantes. Como apresenta o
trecho da matéria, se há, por um lado, toda a relação produção/custos/prejuízos, por outro,
aparece a superação das expectativas na produção dos grãos, o percentual que será exportado.
Tem-se, assim, uma defesa do setor na medida em que emprega um número considerável de
mão-de-obra não qualificada. Esta retórica pode ser observada como um elemento que
compõe as negociações do setor e as suas reivindicações junto a organismos do governo e,
principalmente, como ponto de barganha na discussão da política agrária, uma vez que os
produtores se entendem como grupo que presta grande benefício à sociedade, empregando tal
mão-de-obra.
Caberia, ainda, uma reflexão acerca dessa não qualificação da mão-de-obra, pensada
principalmente acerca dos trabalhadores rurais bóias-frias que, vivendo nas cidades da região,
se dirigem ao campo nos períodos da colheita. Tem-se em diferentes estudos que esses
trabalhadores, por não conseguirem se empregar nas atividades urbanas pela “falta de
qualificação”, são levados aos trabalhos rurais. Contudo, embora haja alguns desses casos,
muitos o fazem por opção, por manterem uma relação de contato com o campo, por uma
trajetória de vida no campo de onde foram, por diversas razões, expropriados, retirados de seu
saber fazer. É partindo da premissa de que estes são trabalhadores não qualificados que se
busca recrutá-los, inclusive pela possibilidade de menores custos e, portanto, de exploração
dessa mão-de-obra.
Para as associações de cafeicultores o fato de gerar emprego é, então, o “efeito social”
do café, uma vez que a cada ano chega a gerar “diretamente e indiretamente mais de 30.000
(trinta mil) empregos e é responsável por 72% da economia do município. É uma atividade
25 TIBÚRCIO, Luciana. Safra do café só cobre os custos de produção. Correio de Uberlândia, Uberlândia, 9 set. 2006. p. A6. O senhor Francisco de Assis, citado na matéria, é o presidente do Conselho das Associações de Cafeicultores do Cerrado.
53
que tem grande característica de distribuição de renda”26, conforme assegura o texto do
informativo da ACARPA (Associação dos Cafeicultores da Região de Patrocínio) da cidade
de Patrocínio, município que se destaca enquanto grande produtor de café de alta qualidade,
segundo os organismos e indicadores econômicos do município, mas também como
município sede das articulações e organizações dos produtores27.
Há uma diferenciação entre os grupos de produtores. Nem todos se tornam associados
ou cooperados dos organismos representativos da categoria; nem todos aderem aos programas
de qualidade e desenvolvimento da lavoura de café, mas é notório que todos pesam a
utilização das técnicas, da mecanização dos tratos culturais das lavouras de café, assim como
a utilização da mão-de-obra rural para a realização das atividades em sua propriedade.
No município de Patrocínio, localizado a 160km de Araguari, são mais freqüentes as
grandes propriedades rurais28, nas quais se utiliza um grande número de trabalhadores locais e
também de trabalhadores de fora, especialmente do estado do Paraná e São Paulo, mas há
ainda a presença, neste município, em número menor, de trabalhadores vindos da região
nordeste, especialmente da Bahia e Ceará.
Acerca das diferenciações entre os grupos de trabalhadores migrantes admitidos em
uma ou outra fazenda, observa-se que há implicações de desconfiança na escolha dos grupos
que serão empregados, mas que remontam a outro momento histórico, marcado pela intensa
migração de famílias sulistas para a região do Cerrado, por meio dos programas de
desenvolvimento do Cerrado e outros, cujos objetivos foram determinantes do final da década
de 1970 aos anos 1980. Este panorama da chegada daqueles grupos de migrantes ainda
repercute no pensamento de um grande número de produtores, muitos deles paranaenses ou
paulistas, de que o melhor grupo para se trabalhar nas lavouras de café é aquele formado por
quem possui uma certa tradição na prática da atividade, mas podem ser observadas outras
relações estabelecidas acerca desses e dos grupos da região nordeste do país.
Em conversas com a senhora Ênia do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de
Patrocínio pode-se enumerar uma série de apontamentos relacionados às diferenças entre os
grupos vindos do Sul e os da região Nordeste. Quando questionei acerca do número de
trabalhadores empregados na colheita do café, a senhora Ênia logo apontou: “são uns dez mil
trabalhadores migrantes e mais ou menos uns oito mil só da cidade para a zona rural”. Dados
26 Dados da cafeicultura de Patrocínio. ACARPA, sem data. 27 Pela densidade que esta questão apresenta, sua discussão será feita em capítulo posterior. 28 São consideradas grandes propriedades rurais aquelas que possuem mais de cinqüenta hectares. As pequenas propriedades são aquelas de até vinte hectares, as de médio porte possuem entre vinte e cinqüenta hectares, de acordo com o agrônomo Fabiano Flumian, da Associação de Cafeicultores de Araguari, em entrevista realizada no dia 15 de julho de 2006.
54
que, segundo ela, não havia como comprovar porque principalmente “os migrantes não
procuram registrar a carteira de trabalho ou nem mesmo procuram o sindicato para obter
qualquer tipo de esclarecimento”29. Parece ocorrer a responsabilização apenas do trabalhador
para o fato da existência de um número pequeno de registros de contrato de trabalho. É sabido
que cabe ao trabalhador, juntamente com seu empregador, estabelecer a devida
institucionalização da relação de trabalho, mas talvez seja possível pensar no papel mediador
que possui o sindicato, uma vez que a relação patrão/empregado não é uma relação entre
iguais, cabendo ao sindicato estabelecer o diálogo de modo que as partes não sejam
prejudicadas. Na verdade, a condição do trabalhador, nesta questão, é de muito menos
influência que a do empregador, que pode se recusar a oficializar o contrato de trabalho sem
que tenha com isso qualquer prejuízo, sendo a sua preocupação o fato de o trabalhador
requerer seus direitos judicialmente.
Quando perguntado quais grupos populacionais eram mais freqüentes na região de
Patrocínio, a senhora Ênia prontamente respondeu que há uma preferência pelos trabalhadores
paranaenses, porque
Os da Bahia, Ceará e Norte de Minas não têm a mesma visão dos paranaenses, eles ficam nas periferia e continuam de safrista. Não tem a mentalidade de transformar em pequeno produtor, continuam assim de empregados. Já os paranaense não, não se encontra os do Sul nas periferia.30
Parece predominar uma idéia de que é possível a qualquer trabalhador “safrista”
tornar-se um pequeno produtor31 na região e o trabalhador que não consegue tal intento não
possui o espírito empreendedor ou a “visão dos paranaenses”. Como se apenas o fato de ser
originário de uma determinada região brasileira, já implicasse valores absolutos que podem
ser encontrados em todos eles. Não se discute ou reflete sobre as condições de trabalho
oferecidas a esses grupos, as condições de manutenção de suas vidas na cidade e região, o
modo como ali permanecem durante o período da safra, ou mesmo por que alguns destes
trabalhadores não conseguem retornar para sua região de origem e acabam permanecendo na
cidade de Patrocínio.
29 Depoimento da senhora Ênia Mendes, funcionária do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Patrocínio em 14 de julho de 2006. 30 Depoimento da senhora Ênia Mendes, funcionária do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Patrocínio em 14 de julho de 2006. 31 Há a compreensão de que o pequeno produtor pode também produzir café além de outras culturas como feijão e milho que seriam em menor escala e mais voltadas para o consumo familiar.
55
O depoimento da senhora Ênia aponta ainda para a questão de que parte dos grupos de
trabalhadores migrantes acaba se instalando nos bairros periféricos da cidade de Patrocínio,
muitas vezes, porque não conseguem o dinheiro necessário para o retorno para seus locais de
origem. Ao que parece, este é um fator para que a entrevistada os chame de “safristas”, uma
vez que grande parte destes grupos possui trabalho “assegurado” apenas no período da safra
do café. O depoimento aponta também para a visão predominante sobre os trabalhadores
rurais migrantes na região, como se todos fossem grupos de praticamente miseráveis, sem
posses e cujo objetivo seria o de se tornar pequeno produtor.
Em outras áreas da região produtora de Café do Cerrado, observa-se que a preferência
por determinados grupos de trabalhadores é um pouco diferenciada, à medida que se observa
a maior presença e recrutamento de trabalhadores, predominantemente “nordestinos”, por
razões que talvez possam ser elencadas como: possibilidade de se pagar menos; menor índice
de reclamações e de ações trabalhistas; entre outras. A pesquisa aponta para elementos que
permitem observar produtores que admitem somente trabalhadores baianos ou cearenses, não
aceitam os paranaenses; e há casos de trabalhadores paranaenses, que para serem admitidos
em determinadas fazendas, se inseriram em grupos de baianos e cearenses omitindo a sua
origem (como se fosse possível disfarçar o sotaque e outras características peculiares a um e
outro grupo) aos empregadores. Embora haja essas diferenciações entre os grupos aceitos ou
não por determinados produtores, ocorre o emprego dos mais diversos contingentes de
trabalhadores de diferentes origens nas lavouras da região.
Recrutar esses trabalhadores, atualmente, não tem sido difícil, pois a maioria daqueles
que vêm para a região mantém alguns vínculos ou estabelecem a cada ano novas relações,
possibilitando seu retorno no próximo ano com alguma certeza de trabalho e algumas
oportunidades de ganho, inclusive para os encarregados, uma espécie de coordenadores, de
formar os grupos que se alojarão nas fazendas. A presença destes trabalhadores por toda
região, embora seja numerosa se dá de forma diferenciada em cada município, devido, em
parte, às características que marcam o recrutamento destes trabalhadores, e em parte porque,
ao longo dos anos, construíram relações e vínculos em uma determinada área e menos em
outra.
A partir destas impressões, as entrevistas com os trabalhadores de fora era o próximo
passo a ser empreendido. Era necessário analisar os apontamentos desse grupo de
trabalhadores rurais presente nas lavouras cafeeiras do cerrado mineiro. As compreensões, as
narrativas observadas, levavam a pensar que estes trabalhadores são tratados como pessoas,
56
cuja mão-de-obra não é qualificada, que não atingem o mesmo objetivo e sucesso de outros
com suposta tradição na atividade cafeeira.
***
Ouvir e analisar os relatos sobre os trabalhadores migrantes, assim como observar os
significados de sua presença na região, tornou-se instigante à medida que remetia a pensar
quem eram esses grupos, como estes trabalhadores pensavam a região e quais eram as
relações e condições de vínculo ao trabalho na lavoura de café. As percepções das pessoas do
lugar ao se referirem aos trabalhadores “de fora”, possibilitava refletir, como afirma Williams,
que
Há sempre, embora em graus variados, consciência prática, relações específicas, habilitações especiais, percepções específicas, que são inquestionavelmente sociais, e que uma ordem social especificamente dominante negligencia, exclui, reprime ou simplesmente deixa de reconhecer.32
Assim, observar os inúmeros grupos de trabalhadores pela região, ora dispersos pelas
fazendas, ora concentrados nos arredores da venda, nas filas dos telefones públicos rurais
esperando para falar com alguém da família em sua região de origem, implicava em pensar
que as impressões até então obtidas acerca destes indivíduos continham significados que
poderiam excluir aqueles sujeitos ou deixava de reconhecê-los enquanto tal. Tornava-se
imprescindível procurar conhecê-los e compreendê-los dentro de todo o processo
anteriormente mencionado buscando estabelecer alguns contatos com os trabalhadores que ali
se encontravam.
Este processo de conhecimento passava pela tarefa de apresentação e da tentativa de
aproximação destes sujeitos para, posteriormente, colher os depoimentos, realizar entrevistas
e analisá-las. Este procedimento mostrou-se um momento de grande aprendizado, e mais, de
possibilidades de investigação de como se portam pesquisado e pesquisador em seus
primeiros contatos, como se estabelece o diálogo entre aquele que pesquisa e quem é
pesquisado. Nesse sentido, colocar-se diante do outro, apresentar-se como alguém interessado
nas experiências de vida e trabalho, sem que tenha algum efeito direto sobre as vidas dos
32 WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1979. p. 128.
57
pesquisados, seja positiva ou negativamente, é algo que gera desconfiança: quem é essa
mulher; quais interesses ela tem; por que está aqui? E, por outro lado: quem são estes
trabalhadores; quais motivações os trazem aos trabalhos na safra de café? Por que parecem
aceitar condições tão difíceis de trabalho e de vida nas lavouras? Mas, conhecê-los implicava
transpor os primeiros sinais da desconfiança e compreender suas histórias de vida dentro de
um processo de intensa precarização do trabalho que se observava na região. Enfrentar as
barreiras da falta de conhecimento sobre estes sujeitos não foi uma tarefa simples, mas se
mostrou para mim um momento de grandes possibilidades de estabelecer vínculos.
Um dos primeiros lugares a que me dirigi para conhecer estes trabalhadores foram as
vendas/mercearias da zona rural, nas quais o encontro talvez ocorresse de forma mais
encaixada com os momentos de não trabalho, para se pensar exatamente as questões do
trabalho. Esses ambientes são poucos e marcados por um amplo movimento, repleto de
trabalhadores e de moradores da região, pessoas conhecidas ou não, e as primeiras conversas
aconteceram, em geral, em meio ao burburinho e movimento habitual daquele ambiente.
Normalmente, a presença dos trabalhadores naquele espaço se dava em grande
número: alguns sentados nos arredores da venda, nas sombras das árvores, tomavam cerveja
ou “pinga” (cachaça); outros grupos jogavam sinuca, enquanto conversavam sobre o trabalho
ou sobre a família; quem telefonou para a cidade de origem, repassa notícias diversas e curtas
aos demais; qual companheiro de viajem foi embora; quem acabou de chegar; quais as
notícias trazidas; ou ainda, foi possível ver a alegria dos pequenos grupos de dois ou três
trabalhadores que estavam de partida e causavam uma espécie de inveja nos demais que
ficavam. Em geral embalados pela música sertaneja que tocava no aparelho de rádio do
proprietário do estabelecimento, o semblante desses trabalhadores mudava com o passar da
manhã e a aproximação do almoço, aliado ao peso do álcool no corpo de trabalhador. Havia,
ainda, muitos outros grupos de conversas, onde os risos, as provocações referentes aos jogos
dos times de futebol, entre outros tipos de brincadeiras, se faziam presentes nas imediações.
Outros sujeitos sozinhos assistiam às partidas, observando de longe, como era o caso do
entrevistado, senhor Lino Moraes, 37 anos, cuja entrevista revelou que estava na região pelo
quinto ano consecutivo33 e que tinha deixado a mulher e dois filhos a cuidar de sua pequena
propriedade.
Ainda nestes espaços, observava-se outro tipo físico, corpos distintos do normalmente
encontrado na região: homens magros, de estatura mediana, cabelos pretos, pele morena,
33 Entrevista realizada em 6 de junho de 2004 nas proximidades da venda. O entrevistado é morador do povoado de Horizonte Novo, município de Monte Santo-BA.
58
alguns usavam um boné, trajavam uma roupa bem cuidada, com aspecto de domingueira;
outras pessoas com roupas mais simples, algumas surradas, outras aparentando serem novas;
alguns mais jovens, trajando bermuda e camiseta; uns poucos, os mais velhos, de calça
comprida e camisa, acompanhado ainda de um chapéu.
Ao observar tantas diferenças de comportamento, eleger aqueles de quem me
aproximaria era determinado, em parte, pelas atividades em que se encontravam envolvidos
ou não. Uma breve apresentação era feita: explicava meu interesse enquanto professora de
História, e em conhecer os grupos de trabalhadores que se instalavam na região para a
colheita de café; falava ainda da necessidade de ouvir suas histórias, de saber o que faziam,
enfim, onde e como viviam. Apresentava algumas questões, na esperança de que a
desconfiança inicial cedesse lugar à vontade de falar dos enfrentamentos de seu dia-a-dia. Ao
perceber, ainda, que de forma reticente o aceite em travar um diálogo, algumas questões eram
lançadas no sentido de procurar saber há quanto tempo trabalhava na região, em qual fazenda
se encontrava alojado, entre outras questões. Somente a partir destas respostas iniciais,
solicitava a permissão para gravar a conversa procurando explicar que este seria um processo
importante para a pesquisa e que, de forma alguma, tal gravação traria prejuízos para o
depoente e, com isso, as informações a mim concedidas não seriam perdidas; procurei
explicar ao entrevistado que sem a sua autorização nada do que fosse dito seria utilizado, nada
seria acessado ou divulgado a outros. Embora, nesses primeiros momentos, não se
estabelecesse uma relação de confiança, os trabalhadores não se recusaram a falar, mesmo que
com algumas reservas, sobre as questões suscitadas, e, com o tempo, em muitos casos, parte
da desconfiança desfazia-se nos momentos posteriores da pesquisa.
No ambiente da venda da senhora Maria e do senhor Anidson, no município de
Indianópolis, foram entrevistados o senhor Manoel34 e o senhor José Ramon35, cujos
depoimentos revelaram aspectos dos enfrentamentos nos trabalhos na lavoura do café, mas
também apontaram para as questões referentes às atividades nas quais se empregavam em sua
região de origem.
Ainda sobre estes primeiros contatos travados no espaço da venda, tem-se que é um
ambiente altamente masculino na zona rural; a presença feminina é rara e, quase sempre está
acompanhada de uma figura masculina, seja filho, marido, irmão, entre outros de maior
proximidade. Enquanto pesquisadora, em um primeiro momento esta regra foi cumprida,
34 Senhor Manoel José de Jesus, 27 anos, solteiro, morador da cidade de Monte Santo-BA. Entrevista realizada em 6 de junho de 2004, na venda próxima da fazenda onde trabalhava. 35 Senhor José Ramon, 28 anos, casado, um filho, e morador da cidade de Senhor do Bonfim-BA. Entrevista realizada na venda próxima da fazenda onde trabalhava em 10 de julho de 2005.
59
chegando ao local geralmente acompanhada de um irmão, cunhado ou marido. Portanto,
enfrentei também alguns obstáculos, pois chegar nesse ambiente e, também em outros,
desacompanhada, ainda que após algum tempo o tenha feito, quase sempre era seguido de um
estranhamento, embora em nenhum momento tenha sido desrespeitada em minha tarefa.
Nesse sentido, após ter estabelecido alguns contatos com os trabalhadores esse processo se
tornou menos complexo.
Com outros grupos de trabalhadores, o primeiro contato se deu no espaço da lavoura,
onde normalmente estavam trabalhando. No ambiente de trabalho as conversas iniciais eram
rápidas e objetivas procurando não atrapalhar o desenvolvimento das atividades e,
conseqüentemente, sua produção. A apresentação inicial era uma tentativa de fazê-los
entender meus objetivos e também de não amedrontar, e macular qualquer possibilidade de
conversa. No ambiente de trabalho, preocupada com a produção e na busca de demonstração
de respeito com o possível entrevistado, no exercício de aproximação, eu procurava marcar as
entrevistas para um momento posterior. A princípio, as respostas ouvidas eram quase sempre
no sentido de dizer que “eu não sei nada não”, “a vida da gente é essa aí”, mas na grande
maioria dos casos, quase todos os trabalhadores do grupo se prontificavam a conversar e
relatar suas experiências, o que era realizado então em momento posterior, geralmente nos
finais de semana, quase sempre no alojamento do grupo ou em suas proximidades: embaixo
de uma árvore ou uma pequena cobertura ao lado do alojamento. Entre os entrevistados,
seguindo esta estratégia, tem-se os senhores Laurêncio, 34 anos; Gilson, 19 anos e Eugênio,
30 anos. Nestas entrevistas, além das narrativas de histórias de vida, as experiências
acumuladas ao longo dos anos consecutivos de viagem, foi possível também conhecer as
estruturas dos alojamentos onde ficavam, as regras que procuravam criar para regular as
relações e para conviverem durante alguns meses.
No processo de conhecimento destes trabalhadores, alguns deles eram mais
expansivos, falavam mais, mediam menos as palavras, relatando, em muitos momentos,
passagens significativas de suas vidas com a família, não se intimidando para falar de seus
sentimentos, frustrações no trabalho, dificuldades enfrentadas em seu cotidiano, a saudade de
casa, os problemas de saúde, entre inúmeras outras questões que se apresentavam. Na direção
oposta, outros se mantiveram mais distantes, atendo-se a responder apenas o que era
perguntado, deixando claro que as relações de confiança e a relação pesquisado-pesquisador
pode requerer um pouco mais de tempo para se estabelecer.
Enquanto pesquisadora tive sempre a preocupação em procurar uma aproximação
desses trabalhadores buscando deixá-los à vontade diante da estranha presença de uma
60
observadora. Nesse sentido, para além das questões de me apresentar como alguém que
buscava compreender o seu cotidiano, as opções que faziam pelo trabalho na lavoura de café,
entre outras questões, buscava, também, não parecer muito distante de seu “mundo” sem fazer
disso uma relação artificial. A princípio, a forma como me apresentava parecia fazer grande
diferença no modo como os trabalhadores também me recebiam e narravam suas histórias.
Assim, eu procurava, com simplicidade, me aproximar, levava à mão um pequeno caderno,
uma caneta, um gravador e algumas fitas de maneira despojada, com o intuito de não
intimidar e dessa forma conseguir estabelecer um bom diálogo.
O estranhamento em relação às minhas perguntas e o meu interesse em suas respostas,
por vezes, era amenizado pelo fato de também não ser da região, embora tivesse morado há
algum tempo; o fato de conhecer as atividades executadas, e algumas das fazendas em que
trabalhavam, fazia com que os trabalhadores se mostrassem mais confortáveis em relatar seu
cotidiano e suas experiências, mas ao mesmo tempo se desobrigavam de narrativas que
explicitassem, por exemplo, a atividade de colher o café, de rastelar ou de abanar, entre
outras.
Um caso que apresenta suas peculiaridades é o encontro com a senhora Carminha de
Araújo, popularmente conhecida como Néinha, e a gravação da entrevista36. Dirigindo-se até
a sua casa, onde estava alojada com o marido e a filha, fez-se a natural apresentação e
encaminhei a possibilidade de iniciar uma conversa. Muito prontamente, ela logo perguntou
se gostaria de ficar dentro da casa, pois era uma tarde de sábado bastante quente. Sugeri que
ficássemos do lado de fora numa pequena calçada de cimento com algumas plantas em volta.
Logo, ela buscou uma cadeira e pediu para eu me sentar. Numa atitude bastante espontânea,
eu já estava sentada na calçada em frente da casa. Ela ficou surpresa, e logo começou a
conversar como se fôssemos amigas, sentou-se na cadeira e, ali ficamos por mais de uma
hora. Sempre por perto, estava sua filha de dez anos que, de vez em quando, também me
concedia algumas respostas. A senhora Carminha se mostrou interessada em contar sua
história, narrou aspectos do cotidiano em seu local de origem, sobre as relações lá
estabelecidas, as dificuldades enfrentadas pelas mulheres para trabalharem e terem uma fonte
de renda, entre outras questões que revelaram também suas opções pelas viagens de trabalho
ao lado do marido.
No caso da senhora Carminha, a primeira mulher encontrada entre os trabalhadores, o
nível de aproximação foi muito maior, os relatos bem mais soltos e as conversas mais livres,
36 Entrevista com a senhora Carminha Araújo, realizada na tarde de sábado 16 de julho de 2005.
61
pois acredito, havia entre nós uma identificação maior: éramos duas mulheres conversando
sobre questões que eu parecia compreender. No caso dos homens, esses momentos eram mais
raros e mais curtos, as conversas ganharam espontaneidade e se tornaram um pouco mais
livres apenas depois de dois ou três encontros.
Nas lavouras da região, então, o contato com alguns trabalhadores estreitou-se à
medida que as informações sobre o cotidiano na lavoura e mesmo em suas regiões de origem
eram mais explicitadas. Percebendo minha interação com os entrevistados de anos anteriores,
novos trabalhadores também se aproximaram para contar suas histórias. Nas visitas,
realizadas em anos posteriores às entrevistas, alguns me recebiam com olhar espantado, por
estar retornando, mas sempre se dispunham a falar. Outros ficaram mais arredios, procurando
fugir da conversa; apenas observavam; talvez tivessem medo das implicações de suas
narrativas em momentos anteriores? Nos grupos de trabalhadores com os quais já havia
estabelecido um maior conhecimento, a aproximação de outros se deu de modo considerável,
pois manifestavam interesse em falar e narrar também as suas histórias.
Apenas com o contato estabelecido com estes trabalhadores foi possível iniciar um
processo de análise e compreensão acerca da presença destes grupos na região, ouvir suas
histórias e contrapô-las aos discursos que se tinha sobre eles.
62
1.2 Significados do trabalho na lavoura de café
Desde o início da década de 1990 viajar para a região do Triângulo Mineiro e do Alto
Paranaíba para trabalhar na safra do café tornou-se quase uma rotina para parte dos homens e
algumas mulheres, moradores do município de Monte Santo-BA e região vizinha,
especialmente do povoado de Horizonte Novo e das comunidades do Sítio do Geraldo,
Mundo Novo, do Sítio de Baixo, do povoado da Pedra Vermelha, entre outros. Os
movimentos de deslocamentos de parte dessa população não são recentes. Historicamente, a
sociedade da região Nordeste do país carrega consigo uma longa trajetória de mobilidades
espaciais, principalmente para a região sudeste do país e mais diretamente para o estado de
São Paulo37. A população da região estudada conta também com grande número de pessoas
que, atualmente, encontram-se residindo em outros municípios e regiões do país38.
A maioria dos movimentos de deslocamento em que se envolveu parte desta
população possuía as características das migrações definitivas, como possibilidades de evitar
determinadas condições e alcançar outras. Contudo, as mobilidades temporárias desta
população para o trabalho sazonal passou a compor também suas histórias de vida. Por que a
opção por este tipo de deslocamento quando há, nas famílias dos trabalhadores, parentes que
residem em outros lugares do país? O que significa permanecer um pequeno período fora de
sua região de origem? Quais os objetivos destes grupos que optaram pela mobilidade
caracterizada pelas constantes idas e vindas? Por que a mobilidade pendular se tornou uma
opção para estes grupos da população?
Os movimentos de idas e vindas para as lavouras de café no Triângulo Mineiro e do
Alto Paranaíba parecem compor e auxiliar na estruturação de uma forma de viver e de pensar
não só o trabalho como também a própria região de origem destes trabalhadores. Uma das
primeiras questões a se pensar é como estes trabalhadores conheceram a região, estabeleceram
contato e realizaram as primeiras viagens. Ao indagar alguns deles sobre este fato, o senhor
Eugênio ofereceu o seguinte relato:
37 Sobre estas mobilidades em diferentes momentos históricos, ver: ANDRADE, Manuel Correia de. A terra e o homem do Nordeste: contribuição ao estudo da questão agrária no Nordeste. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2005; ESTRELA, Ely Souza. Os sampauleiros: cotidiano e representações. São Paulo: Humanitas: FFLCH/USP: FAPESP: EDUC, 2003. 38 A grande maioria dos entrevistados da região, bem como outras pessoas contatadas durante a pesquisa relatou ter parentes próximos morando principalmente em São Paulo.
63
Não porque o Luiz trouxe uma turma, aí, no tempo que veio primeiro aí, né. Trouxe uns dez, aí depois tem uns quatro lá que queria vim pra cá, aí nos viemo atrás. Ai cheguei. Ele mora lá em Horizonte Novo, né? Ele é mineiro mas foi pra lá e, ele resolve trazer o pessoal direto pra cá, todo ano ele traz.39
De acordo com as entrevistas realizadas com os trabalhadores, o homem chamado
Luiz é quem iniciou o trajeto e começou a arregimentar mão-de-obra para o trabalho no
cafezal. Ele parece um tipo de aliciador que fretava um, dois ou mais ônibus e conduzia os
trabalhadores para a região; alguns acabavam se instalando nas cidades, outros nas fazendas,
mas parte dos trabalhadores chegava a viajar sem local certo para trabalhar e ficavam
perambulando por algum tempo, de uma fazenda a outra, até encontrarem um local para se
instalar e trabalhar.
A pessoa com nome de Luiz apareceu em diferentes depoimentos como sendo
originário da região produtora de café; ele teria ido residir no estado da Bahia e, de lá,
começou a trazer os trabalhadores para a colheita nos cafezais. Ao perguntar ao senhor
Laurêncio como ficou sabendo do trabalho na lavoura de café ele respondeu: “O Luiz,
primeiro foi o Luiz, um rapaz aqui, ele é mineiro aqui, ele mora lá. Aí começou trazer os povo
pra cá. Aí vinha, né, a gente não é besta né. Aí ele começou querer dinheiro, aí nós dois, eu
mais o Geno, ‘não, nós vai só’”40.
De acordo com o entrevistado, foi a pessoa chamada Luiz quem primeiro conduziu os
trabalhadores à região. Segundo este e outros entrevistados este Luiz seria o responsável,
então, pelo fretamento dos transportes contratados para as viagens de ida e de retorno. Mas ele
começou a cobrar muito caro pelas passagens levando alguns trabalhadores a empreenderem a
viagem sozinhos como teria acontecido com o senhor Laurêncio e o senhor Eugênio, após
terem conhecido a região e alguns produtores de café41.
Ao questionar o senhor Manoel sobre a primeira vez em que viajou para o trabalho ele
forneceu a seguinte resposta: “Foi difícil, foi em Monte Carmelo em 97. Era umas 150 pessoa,
39 Depoimento do senhor Eugênio Silva Amador, 30 anos, em entrevista realizada no alojamento onde ele e seu grupo se encontravam após o horário de almoço, na tarde de domingo, 14 de agosto de 2005. 40 Depoimento do senhor Laurêncio Silva, 34 anos, em entrevista realizada no alojamento da fazenda onde trabalhava no dia 14 de agosto de 2005. 41 Quanto à presença dos aliciadores, arregimentadores nestas relações de trabalho, Silva (2005, p. 22) aponta que “os gatos, são na verdade, os responsáveis pela chamada terceirização das relações de trabalho, prática esta tão recorrente no mundo atual globalizado, porém que já vem acontecendo a várias décadas na agricultura, desde o surgimento do processo de volantização da força de trabalho a partir da década de 1960”.
64
ficô tudo num lugar sem trabalho. Uns trabalhava, não ganhava nada, descontava água,
aluguel, cantina”42.
Segundo seu depoimento, as condições em que permaneceram na região eram
lastimáveis, pois não havia trabalho para todos, o que os levou a se revezarem nos postos, a
fim de que todos pudessem pagar as despesas de sua instalação e permanência na cidade. Isto
revela que eles ganharam pouco ou quase nenhum dinheiro para retornar para casa. Quando
perguntado sobre como soubera dos trabalhos naquela ocasião, disse que “uma pessoa falou
do emprego, trouxe todo mundo, alugou um clube, alugou colchão e ficou tudo lá, tudo junto.
Uns trabalhava outros não”43, embora não tenha mencionado o nome da pessoa, as evidências
levam a crer que pode ter sido o mesmo Luiz44.
Esse depoimento revela, entre outras coisas, uma relação de mediação do trabalho, ou
seja, a presença de empreiteiros, ou “gatos”, que aliciam a mão-de-obra nas cidades de origem
dos trabalhadores, levando-os aos locais de trabalho, muitas vezes sem “garantia” da
existência de uma ocupação45. A pesquisa leva a crer que diante das primeiras dificuldades
encontradas, os trabalhadores parecem ter buscado outras formas para se dirigirem ao trabalho
na lavoura de café sem ter que, necessariamente, depender de uma só pessoa.
Pensar esse deslocamento temporário levou a questionar a distância percorrida por
estes trabalhadores. São cerca de 2000km entre o local de residência e a região produtora de
café. No mapa abaixo pode-se visualizar, conforme informaram os depoentes, que o ponto de
referência da partida é a cidade de Senhor do Bonfim/BA e o da chegada é Uberlândia/MG,
principalmente para os trabalhadores que viajam sozinhos na ida para os trabalhos ou no
retorno, utilizando os serviços das empresas regulares de transporte.
42 Depoimento do senhor Manoel José de Jesus, 27 anos, residente em Monte Santo-BA, em entrevista realizada na venda próxima da fazenda onde trabalhava em 17 de julho de 2004. 43 Depoimento do senhor Manoel José de Jesus, 27 anos, residente em Monte Santo-BA, em entrevista realizada na venda próxima da fazenda onde trabalhava em 17 de julho de 2004. 44 Foram várias as referências a esta pessoa e, enquanto pesquisadora, eu procurei conhecer e estabelecer um contato, mas sem sucesso. Nos momentos em que estava pesquisando na região do café ele se encontrava na Bahia, organizando grupos, fretamentos, de acordo com os trabalhadores, e quando estive em Horizonte Novo ele estava viajando para Minas. 45 Esta questão será tratada com a análise das questões trabalhistas e das relações de trabalho.
65
Irecê
Jequié
IlhéusItabuna
Camaçari
Juazeiro
Jacobina
Barreiras
Petrolina
Xique-Xique
Porto Seguro
Senhordo Bonfim
Feira deSantana
Bom Jesusda Lapa
Teixeira de Freitas
Vitória daConquista
Jataí
Trindade
Goiatuba
Porangatu
Itumbiara
Pires do Rio
AnápolisUnaí
AraxáUberaba
Januária
Uberlândia
Montes
Claros
TeófiloOtoni
GovernadorValadares
.
-50° -40°
-20°
-10°
Trópico de Capricórnio
BAHIA
MT
GOIÁS
PI
MINAS GERAIS
TO
SP
MS
PB
ES
RJ
BRASÍLIA
Palmas
Goiânia
Aracaju
Vitória
Salvador
BeloHorizonte
Rio de Janeiro São Paulo
Arquip. de Abrolhos
São Joãodel Rei
Ouro Preto
Projeção PolicônicaMeridiano de Referência: -54º W. Gr
Paralelo de Referência: 0 º
0 240km120
Fonte: Base cartográfica Atlas IBGE, Diretoria de Geociências, Coordenação de Cartografia.
Org.: ; Antonio Santiago da Silva.Adaptação: Antonio Santiago da Silva - 2008.
Maria Andréa Angelotti Carmo
Capital de Estado
Sedes Municipais
Limites estaduais
Capital do País
Legenda
Percurso dos trabalhadores
MA
Equador
Capricórnio
Trópico de
50° O
70°O
20°SGO
Brasil
670 1.340km
Escala gráfica
0
50° O
70°O
20°S
BA
MG
O C
E A
N O
A T
L Â
N T
I C
O
Catalão
Araguari
MonteSanto
Santa Mariada Vitória
Patrocínio
MonteCarmelo
Cidades de partida dos trabalhadores
Cidades de interesse
Percurso dos trabalhadores
Figura 2: Percurso dos trabalhadores da Bahia para a região cafeeira no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba,
Minas Gerais. Fonte: IBGE – Diretoria de Geociências, Coordenação de Cartografia. Base Cartográfica, Atlas.
Organização: Maria Andréa Angelotti Carmo; Antonio Santiago da Silva. Adaptação: Antonio Santiago da Silva.
A distância percorrida por estes trabalhadores, embora considerada longa, não parece
oferecer obstáculos para a realização da viagem, uma vez que esta aparenta ter integrado seu
modo de viver e de lidar com as questões do orçamento familiar e com as atividades
praticadas no período da entressafra do café. Muitos viajam há cerca de doze, oito, seis anos
consecutivamente; outros fazem intervalos de um ano entre uma viagem e outra, mas a grande
maioria dos entrevistados e outros trabalhadores conhecidos viajaram pelo menos três vezes
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para os trabalhos nas lavouras cafeeiras. Quando perguntado há quanto tempo conhecia a
região do café, o senhor Eugênio revelou: “Dez a onze ano já. É, sempre eu trabalho aqui
[referindo-se à fazenda onde se encontrava]. Só trabalhei no Celso o primeiro ano que nós
trabalhamo aqui, trabalhamo lá e só. Mas o tempo todo eu estou aqui todo ano”46.
Ao se observar o número de viagens realizadas por parte dos trabalhadores tem-se o
quanto esses movimentos pendulares de migração estão presentes na região pesquisada e a
cada ano parece atrair outros trabalhadores, talvez mais jovens, ao mesmo tempo em que
outros deixam de realizar tal intento. Há ainda os trabalhadores que fazem intervalos entre
uma viagem e outra, entre um ano de colheita e outro, o que parece estar relacionado aos
resultados do trabalho em determinada safra, mas também, aos diálogos que estabelecem com
sua realidade local.
É característica desse tipo de movimento a presença majoritariamente masculina, onde
predominam os mais jovens com idade entre dezenove e quarenta anos, principalmente,
podendo ser encontrados adolescentes e também trabalhadores idosos. Os movimentos
migratórios, na grande maioria dos casos, são marcados pela especial presença de homens e,
nos quais, a presença feminina é quase sempre exceção47. A participação de famílias inteiras
nestes processos é ainda mais raro, uma vez que, por serem movimentos temporários, os bens
da família precisam ficar sob os cuidados de alguém e normalmente fica sob a guarda da
mulher e/ou dos filhos. Contudo me deparei com alguns casos em que as mulheres
acompanham os maridos com um ou dois filhos como foi com a senhora Carminha, a senhora
Simone, a senhora Eliane que acompanharam os maridos em pelo menos uma de suas
viagens. No caso de Carminha, uma das mulheres entrevistadas e que se encontrava na
lavoura de café, perguntei por que ela decidiu acompanhar o marido e sua resposta foi: “Eu
tinha vontade de vim, né. Tinha vontade de conhecer e trabalhar pra ganhar meu dinheiro, né.
Lá ninguém pega em dinheiro não, não trabalha”48.
Vale ressaltar no depoimento da senhora Carminha o seu desejo de obter uma renda
própria para empregar da forma que achar melhor, ou seja, adquirindo produtos e bens para
além do mínimo necessário obtido com a renda de seu marido. Ao afirmar que em sua região
ninguém pega em dinheiro e não trabalha, a entrevistada reforça a idéia da falta de emprego, 46 Depoimento do senhor Eugênio Silva Amador, 30 anos, em entrevista realizada no alojamento onde ele e seu grupo se encontravam após o horário de almoço, na tarde de domingo dia 14 de agosto de 2005. 47 Sobre as discussões acerca da presença majoritariamente masculina nos processos de migração temporária, ver: CORTES, Geneviève. Partir pour rester: survie et mutation des sociétés paysannes andines (Bolivie). Paris: Éditions de l’IRD, 2000; GARCIA, Afrânio Raul. O Sul: caminho do roçado. São Paulo: Marco Zero; Brasília: Ed. Universidade de Brasília; MCT-CNPq, 1989. 48 Depoimento da senhora Carminha Araújo, no dia 7 de junho de 2005, na casa onde se encontrava alojada com o marido e a filha de 12 anos.
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mas com outras entrevistas foi possível observar, principalmente entre os homens, que há uma
série de atividades que desenvolvem, mas que pode não ser com regularidade.
A pesquisa permitiu observar que para as mulheres da região de Horizonte Novo, o
acesso a um trabalho é muito difícil, elas acabam dependentes da renda que os maridos obtêm
e, ao que parece, estas mulheres desejam ter seu próprio rendimento, talvez para poderem
adquirir os produtos que desejam sem, para isso, ter que demandar do marido o valor
desejado. Ainda na perspectiva da aquisição de alguns bens a senhora Carminha descreve o
que conseguiu em uma de suas viagens:
Eu tinha vontade de vim, pra trabalhar e ter meu dinheiro, comprar minhas coisas que eu preciso, que eu tenho vontade né? Comprei uma televisão, uma antena parabólica, que se eu não tivesse vindo, eu nunca ia conseguir ter, porque o marido vem trabalhar e chega lá compra alguma coisa pra sobreviver, né? Aí dessa vez eu vim quero comprar um som, comprar alguma coisa pra dentro de casa.49
Como se observa, os produtos adquiridos com os ganhos da lavoura de café, quase
sempre estão relacionados a bens que, acredita-se, possibilitam maior conforto à família.
Desse modo, estes ganhos são quase sempre vistos como investimentos, uma vez que, é
através deles, que a família ou o trabalhador consegue adquirir alguns produtos de maior custo
e que seriam de difícil aquisição somente com a renda que possui. Podem ser considerados
investimentos, também, porque a família adquire bens como terras ou animais ou ainda
constrói sua casa no povoado. O dinheiro ganho parece não ser, portanto, destinado à
manutenção da família, mas um complemento da renda que se tem.
Pensar as razões e motivações que levavam estes homens e mulheres ao deslocamento
era algo instigante e, aparentemente, não estava relacionado à questão da sobrevivência e
manutenção da vida. Compreender suas motivações passava por questionar os trabalhadores,
buscar conhecer quais os objetivos que apresentavam para o tempo passado longe de casa.
Quando perguntei ao senhor Laurêncio, depois de afirmar que havia colhido café em quatro
safras, o que o motivou a viajar pela primeira vez ele ofereceu o seguinte depoimento:
“Porque eu queria fazer uma casa pra mim. E lá o dinheiro que a gente ganha só dá pra lá
mesmo, pra viver lá, e a casa pra fazer lá gasta uns três mil reais, aí eu, eu vou pra ver se...”50.
Uma vez mais, tem-se a busca pela aquisição e, no caso relatado, a construção de um
imóvel. O depoente revela sua vontade de construir sua casa com o dinheiro adquirido com o
49 Depoimento da senhora Carminha Araújo, no dia 7 de junho de 2005, na casa onde se encontrava alojada com o marido e a filha de 12 anos. 50 Depoimento do senhor Laurêncio Silva, em entrevista realizada no alojamento da fazenda onde trabalhava no dia 14 de agosto de 2005.
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trabalho na safra de café, uma vez que o seu ganho em sua região é suficiente apenas para a
manutenção das necessidades básicas. Contudo, não havia conquistado o seu objetivo inicial,
tinha conseguido apenas adquirir o terreno onde faria a construção. O entrevistado continua
seu depoimento:
É aí, o dinheiro que eu consegui aqui foi novecentos e pouco, aí só sei que vai dar pra comprar, comprar os tijolos, o cimento, aí eu mesmo levanto, né que eu sei. Tem o meu pai que sempre trabalha de pedreiro, meus irmão dois trabalha, aí me falaram que quando eu fizesse o alicerce podia ir lá pegar no carro lá que ele trabalha sábado e domingo. Aí eu, aí falta a madeira que a madeira é setecentos reais, aí eu vou vender o carro e vou me ajeitar um pouco.51
O entrevistado revela que não conseguiu todo o valor necessário para a construção de
sua casa que ficaria em torno de R$3.000,00 (três mil reais), mas com o dinheiro obtido, mais
a venda do carro que possuía, a ajuda de seu pai e de dois irmãos trabalhando nos finais de
semana ele esperava alcançar seu objetivo.
Em outra entrevista, o senhor Eugênio revelou um elemento a mais para se
compreender os movimentos de um lugar para outro. Quando perguntei o que ele esperava
encontrar e quais eram seus objetivos quando se dirigiu a Minas pela primeira vez respondeu:
Ah, eu sei lá, eu vim mais assim, pela idéia dos outros, né? ‘O pessoal ta lá trabalhando, num sei o que, ganhar mais um pouco’. Eu digo: ‘vamo embora, vou’. Sempre eu gosto de andar pra conhecer, né? Num é só interesse de dinheiro não. Eu gosto mais de andar pra conhecer as coisas né? Aí eu vim pra cá, trabalhei uns trinta dia só, aí fui embora. Naquele ano o serviço era pouco.52
Entre os diferentes depoentes, se observou que a grande maioria alega as
possibilidades de aumento do orçamento como a principal motivação para se permanecer
durante o período de colheita longe de casa. Embora a questão referente às possibilidades de
incrementar ou de obter uma renda durante um período pareça compor a grande maioria dos
objetivos destes trabalhadores, o entrevistado acima citado apresenta um elemento novo entre
as suas motivações: o de gostar de conhecer lugares. Talvez, parte de sua
justificativa/motivação esteja vinculada ao fato de perceber que, entre os trabalhadores e
moradores da região produtora de café, tem-se a idéia de que aqueles que para lá se dirigem o
51 Depoimento do senhor Laurêncio Silva, em entrevista realizada no alojamento da fazenda onde trabalhava no dia 14 de agosto de 2005. 52 Depoimento do senhor Eugênio Silva Amador, 30 anos, em entrevista realizada no alojamento onde ele e seu grupo se encontravam após o horário de almoço, na tarde de domingo dia 14 de agosto de 2005. Este mesmo trabalhador vem sempre para a mesma fazenda, onde trabalhou por dez anos consecutivos.
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fazem porque são desempregados e/ou buscam uma renda maior, conseguida em um breve
espaço de tempo, conforme relata o senhor Francisco, um trabalhador local, quando indica
que na região de origem desses trabalhadores não há emprego: “Porque lá num tem emprego,
num tem serviço também. Então aqui, nada, nada, eles ganhando oito reais por dia, às vez
livre, eles ficam aqui três, quatro mês, eles vão leva um dinheiro bom, porque lá às vez num
ganha nem isso”53.
Há uma compreensão, principalmente entre trabalhadores e produtores da região
receptora destes grupos, de que a movimentação somente ocorre tendo em vista as
dificuldades e a falta de emprego na região de origem. Talvez o entrevistado, senhor Eugênio,
percebendo a forma como seu grupo é visto nas terras de Minas, queira livrar-se um pouco
dessa imagem: de que o seu local de origem é onde impera a pobreza e a falta de emprego e,
por esta razão integram os movimentos de deslocamento. Nesse caso, o fato de gostar de
conhecer lugares não implicaria permanecer trabalhando e vivendo nas condições a que se
submetem durante todo o período de trabalho na safra, mas sim, em buscar conhecer os
lugares de outra forma e não realizando as viagens durante anos consecutivos. De algum
modo, buscando complementar o trecho anterior do depoimento e instigado a responder o
porquê das opções pelo trabalho na safra do café, o senhor Eugênio continua:
Na realidade todo mundo precisa de trabalhar, né? Lá o pessoal trabalha também, tem os negócios, cada quem tem o seu compromisso, né? Mas acontece que o pessoal, já tem as roça, as fazenda tudo certa aí, os dono das fazenda, aí tem que... resolve vim, né? Traz uma turma e tal, o pessoal ajeita mais um pouco... Todo mundo tem a sua profissão, uns trabalha na roça, ou trabalha de outra coisa, cada quem faz a..., porque ninguém vai viver no mundo sem fazer nada, né? Tem que fazer alguma coisa.54
“Na realidade todo mundo precisa de trabalhar”. Esta frase remete não somente à
dimensão do trabalho como possibilidade de satisfação das necessidades físicas e biológicas,
mas também a uma dimensão que parece transformar o trabalho em essência do próprio
homem. Parece inadmissível o homem sem trabalho, o não trabalho parece significar a
negação da essência humana, a negatividade do ser social55.
53 Depoimento do senhor Francisco Alvarenga, 43 anos, em sua residência na cidade de Araguari no dia 13 de fevereiro de 2000. 54 Depoimento do senhor Eugênio Silva Amador, 30 anos, em entrevista realizada no alojamento onde ele e seu grupo se encontravam após o horário de almoço, na tarde de domingo dia 14 de agosto de 2005, logo depois de terminarem uma tarefa de abanar o café. 55 SILVA, Maria Aparecida de Moraes. Migrants temporaires dans les usines de canne à sucre de l’état brésilien de São Paulo. Migrations Société. Paris, CIEMI, v. 20, n. 115, p. 125-146, janv./févr. 2008. p. 144
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Ao mesmo tempo em que a necessidade de trabalhar aparece em primeiro plano, em
segundo o entrevistado dá a entender que a opção pelo trabalho nas lavouras em Minas está
vinculada a uma rede de relacionamentos já estabelecidos, principalmente com os fazendeiros
da região, o que faz com que os grupos se formem e se dirijam para as lavouras onde já
possuem esses contatos. Retomo a idéia de que o entrevistado tenta desfazer-se de uma
imagem que acompanha os grupos de trabalhadores de fora, principalmente porque destaca
que “todo mundo tem a sua profissão” e, ao mesmo tempo, que “ninguém vive sem fazer
nada”. Há, portanto a tentativa de desvincular as viagens da falta de emprego ou de
possibilidades de ganho na região de origem. Continuando seu depoimento, em alguns
momentos, seu argumento parece bastante convincente neste sentido, porque quando
perguntei se ele achava que as pessoas vinham para ganhar, obter uma renda melhor, ele
responde:
É porque tem que ganhar mais um pouco, né? E acontece que, a gente fica aqui num lugar desse parado, num sai pra lugar nenhum, vai juntando mais um pouco, porque na realidade, tem gente que ganha às vez até mais, eu mesmo já teve tempo de ganhar mais dinheiro que aqui por mês já. Mas acontece que eu gasto mais porque eu moro lá.56
Observar o que o depoente apresenta contribui para pensar as opções que fazem com
as viagens que realizam. Em trecho anterior o depoente narra que as pessoas talvez fizessem a
opção da viagem como uma resposta às redes de relações já estabelecidas anteriormente, ou
mesmo como uma forma de conhecer o lugar, ou outro argumento que justifique a opção pela
viagem. O entrevistado estabelece outra relação entre o fato de ganhar mais quando estão
longe de casa, justificando talvez este ganho com a condição de que não fazem outra coisa
além de trabalhar, pois não saem do alojamento para se divertirem, participarem de festas ou
outras diversões, da mesma forma como o fazem em seu local de origem; ou seja, a forma de
gastar o que ganham se torna diferenciada em um e outro espaço, o que possibilita uma
espécie de poupança durante os períodos do trabalho temporário.
Ao mesmo tempo, pode-se observar uma análise matemática de sua situação e
condição. Em muitos momentos é possível pensar que estes trabalhadores possuem
determinada renda em sua região, insuficiente, dadas as suas necessidades naquele espaço, o
que não acontece quando se encontram na região receptora, uma vez que se tem a idéia de que
ali estão apenas para trabalhar; então, toda a atividade e o dia-a-dia são focados apenas 56 Depoimento do senhor Eugênio Silva Amador, 30 anos, em entrevista realizada no alojamento onde ele e seu grupo se encontravam após o horário de almoço, na tarde de domingo dia 14 de agosto de 2005, logo depois de terminarem uma tarefa de abanar o café.
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enquanto produtividade e renda e as demais dimensões do viver são deixadas para o espaço
que lhe é familiar. Com isso, pode-se perceber que há um dimensionamento diferenciado
entre os dois espaços onde circulam: um espaço é do trabalho e o outro espaço do viver, sendo
este marcado também pelas atividades produtivas, mas especialmente, pelas possibilidades de
colocar sob o mesmo patamar o trabalho e a sociabilidade. Talvez se possa, nesta situação,
dimensionar o trabalho como aponta Silva:
O ato do trabalho exige submissão, uma subordinação da vontade do trabalhador constantemente manifesta. Há uma tensão entre vontade e livre jogo das forças corporais e intelectuais. O objetivo do trabalho preexiste na consciência e, como uma espécie de lei, determina a ação57.
O fato de estes trabalhadores se encontrarem em um espaço, que está estabelecido
como lugar para se trabalhar e ganhar algum dinheiro, faz com que as diferenciações e
dimensões da vida também sejam colocadas em separado. É como se a subordinação da
vontade deste trabalhador tivesse o local próprio para ser colocada à prova, enquanto no seu
local de origem essa subordinação também existente às condições ali estabelecidas pudesse
ser minorada por outras dimensões da vida, pela presença da família, pelos seus costumes,
pelas possibilidades de diversão entre outros elementos.
O depoimento do senhor Laurêncio oferece mais uma contribuição para esta discussão.
A maioria do povo de lá só tem alguma coisinha por modo daqui. Lá, oh, a gente pode ganhar cinco milhão por dia, a gente não fica com um conto, gasta todinho. É, se a gente tenta pegar mil reais com um plano de fazer alguma coisa, sempre aparece outra coisa. Nunca vi um negócio desse não. E aqui quem vive aqui não sai pra lugar nenhum, não vê uma mulher [risos] não vê nada aqui, aí não gasta, não tem como gastar.58
O entrevistado associa os bens conquistados pelas pessoas em sua região de origem
aos ganhos obtidos nas lavouras de café. Logo em seguida ele tece um argumento que parece
muito simples: gasta-se muito mais quando se está em seu local de segurança. Estando em sua
região o dinheiro que se ganha toma outros rumos e parece estar mais voltado para a
manutenção do consumo diário e outras despesas mais corriqueiras, além das festas e
diversões como o entrevistado relata. Na região do trabalho no café, como estão dispostos a
trabalhar e possuem um objetivo claro, eles parecem menos seduzidos a gastar o que ganham
e menos dispostos a se dispersarem pela região para não correrem o risco de retornar para
57 SILVA, Maria Aparecida de Moraes. Errantes do fim do século. São Paulo: Ed. UNESP, 1999. p. 110. 58 Depoimento do senhor Laurêncio Silva, coletado na manhã de domingo 14 de agosto de 2005 no alojamento da fazenda onde trabalhava.
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casa sem nada. Talvez esta seja uma das razões pelas quais alguns entrevistados argumentam
que não saem para lugar nenhum, permanecem apenas no local de trabalho e se dirigindo
apenas à venda para algumas compras.
O aspecto relacionado às diferenciações entre um local e outro, entre a região de
origem e a região do trabalho mais duro, aparece entre os trabalhadores mais jovens e
solteiros especialmente. Observa-se, entre estes trabalhadores, uma intensa defesa de seu
lugar de origem, e pode-se dizer ainda, uma defesa que não se dá pelas características
econômicas, mas sim culturais e quiçá de vida, pois é ali que consideram estar vivendo,
enquanto na região de Minas estão apenas trabalhando. Alega-se ser um lugar muito melhor
do que Minas, porque é a sua terra natal e porque as pessoas têm outra forma de viver quando
comparado com os modos de viver em Minas, principalmente no que diz respeito aos
elementos que os jovens mais valorizam, como a participação em festas, reuniões com os
amigos, entre outras atividades relacionadas à sociabilidade. É o que nos leva a pensar o
trecho do depoimento do senhor Genivaldo.
Primeiramente, um divertimento que não tem aqui perto. Assim, até mesmo pra jogar bola, né? Ou até mesmo, tipo assim, uma festa pra gente distraí um pouco. Tudo fica mais difícil... Lá até dia de semana, muito piór, um fim..., um sábado, um domingo, e outra, tem o povoado da gente também que dia de sábado e domingo é divertido demais! A gente chega aqui, a gente chega aqui, a gente está com quinze dia hoje de trabalho, pra nós já tem três mês que nós estamo aqui. Devido que a gente, é só daqui pra roça, é ruim demais.59
As relações de amizade, de namoro, bem como atividades que se vinculem às formas
de sociabilidade parecem ser um item que pesa entre os trabalhadores mais jovens e solteiros,
e mesmo entre alguns casados que chegam a mencionar estes aspectos como elementos que
dificultam a estadia em Minas, mas ao mesmo tempo distingue bem os espaços destinados ao
trabalho e à vida. Tal distinção entre espaços, assim como as dificuldades apresentadas podem
ser compreendidas como fatores que dão a estes trabalhadores noções de tempo diferentes
daquela a que está acostumado: “a gente está com quinze dia hoje de trabalho, pra nós já tem
três mês que nós estamos aqui”. Mais uma vez a forma como dinamizam o tempo, dedicando
a sua quase totalidade ao trabalho faz com que este mesmo tempo tome outras dimensões.
Nesse sentido, pode-se pensar que não é o tempo que se altera, mas sim o ritmo que estes
trabalhadores passaram a impor ao seu cotidiano de trabalho.
59 Depoimento do senhor Genivaldo Santos, na tarde de sábado, 15 de julho de 2006 no alojamento onde ele e seu grupo estavam instalados em uma fazenda do Triângulo Mineiro.
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As noções de tempo e de espaço podem ser aqui discutidas à medida que os
trabalhadores em seus depoimentos apresentam concepções e noções que se modificam
dependendo do local onde se encontra. Ainda no que diz respeito à distinção dos espaços,
talvez se possa juntar ao argumento do senhor Genivaldo aquele apresentado pelo senhor
Eugênio quando diz:
Se eu morasse aqui eu também num ganhava o que eu ganho, não. Porque ninguém ia trabalhar até seis dia na semana, e hoje60 ainda trabalha até um pouco, nos trabalhamos mais um pouco. Por isso que ajunta mais um pouco, mas se fosse lá mesmo na nossa região, oh! Porque lá num fica final de semana, às vez quer saí pra um lugar pra outro, né?61
Vale ressaltar que os dois depoimentos tratados sobre essa temática foram realizados
na região produtora de café, talvez por isso, o trabalho pareça ser retratado como sofrimento62,
fadiga, esforço cansativo e tão separado do que se pensa enquanto viver no seu local de
origem. Pode-se, ainda, perceber duas visões sobre o mesmo aspecto, uma vez que estes
trabalhadores quando retornam a seu lugar de origem, têm o trabalho redimensionado e
materializado em conquistas e, valorizado ou dotado de uma positivação que parece suplantar
o desgaste físico, parece diminuir o sofrimento através do distanciamento no tempo e no
espaço.
A busca do aumento da renda é o argumento mais comum apresentado em diferentes
depoimentos para as viagens temporárias, pois afirmam que com o trabalho na lavoura de café
é realmente mais fácil conseguir uma renda extra que possibilite adquirir alguns bens ou itens
que, talvez, não fosse possível sem o trabalho temporário. Ao que parece, a dimensão da
busca por melhores condições de manutenção da vida estão diretamente associadas à
dinâmica do trabalho temporário, pois com ele se quer alcançar uma série de objetivos de
ordem econômica, mas quem sabe também pessoal ou política, uma vez que, embora
apresentem argumentos que possam indicar para o aumento da renda, pode-se pensar na
possibilidade de a viagem estar dialogando com outros aspectos da dinâmica de vida na região
de origem.
As razões e motivações apresentadas por aqueles que participam dos movimentos de
deslocamento temporário ou definitivo perpassam as formas como pensam e representam seu 60 O entrevistado refere-se ao domingo, dia em que se realizou a entrevista logo após ele e seu grupo chegarem da roça para o almoço. 61 Depoimento do senhor Eugênio Silva Amador, 30 anos, em entrevista realizada no alojamento onde ele e seu grupo se encontravam após o horário de almoço, na tarde de domingo dia 14 de agosto de 2005, logo depois de terminarem uma tarefa de abanar o café. 62 Sobre o redimensionamento da atividade laboral ao longo da história ver: BAITELLO JR, Norval. O trabalho entre a vida e a morte. Projeto História, São Paulo, EDUC, n. 16, p. 115-120, fev. 1998.
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local de origem e o local de recepção, e tais representações podem ser analisadas a partir
daqueles que, de fato, se movimentam nestes espaços e, do mesmo modo, a partir daqueles
que recebem essas representações e elaboram também as suas.
CAPÍTULO 2
Colher café: espaços do trabalho e da sociabilidade
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2.1 Experiências cotidianas: construindo saberes
Na condição de pesquisadora, os anos de contato com os trabalhadores rurais na região
do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba e as suas narrativas forneceram elementos para se
pensar parte do seu cotidiano nas lavouras de café, os aspectos relacionados ao trabalho e as
tarefas ali desempenhadas, assim como as relações estabelecidas no espaço onde passavam a
conviver, nos alojamentos. Dentre os inúmeros relatos é possível apreender parte dos
significados de suas escolhas ao deixarem sua região de origem, especialmente os da região
norte da Bahia, ao decidirem participar de um processo em alguns aspectos diferente daquele
vivido em seu dia-a-dia. No amplo conjunto de diálogos, têm-se os apontamentos e tentativas
de registro de seus empenhos em aprender a lógica de bem executar as tarefas, principalmente
nas colheitas das lavouras de café. E nesse desenrolar vieram à tona aspectos como as suas
dificuldades, os seus sucessos, os momentos de superação e também os de seus fracassos;
enfim, apareceram elementos que bem delineiam o teor das relações que ali se estabelecem
por força do trabalho, mas também por suas escolhas.
O trabalho na safra de café, na região do Cerrado de Minas Gerais é o elemento que
agrega um sem número de sujeitos vindos de regiões diversas do Brasil, mas, principalmente,
os aqui estudados da região de Monte Santo-BA. A pesquisa, as conversas com esses
indivíduos, permitem pensar que as suas experiências anteriores em outras atividades, em
outros trabalhos, formam uma base que se distancia da dinâmica das colheitas de café e as
implicações que a encerram. Nesse sentido, as atividades a que se dispõem executar estes
sujeitos, que optam por deixar sua região e partir em busca da possibilidade de aumento de
sua fonte de renda em terras distantes, compõem um quadro mais amplo de imbricação de
fatores e disposições sociais. Há que se considerar que, no bojo das relações tecidas por esses
sujeitos, as características sociais que se vislumbram parecem contribuir para a compreensão
dos modos de viver destas pessoas, pois nas relações de trabalho, nas atividades
desempenhadas, nas formas como se relacionam no ambiente de trabalho e no espaço do
descanso, emergem seus valores, suas compreensões e suas intervenções sociais.
A atividade rural é, para uma parte destes trabalhadores, uma importante ocupação no
Cerrado mineiro. O grande número de plantações de café, milho, soja e os espaços ocupados
pela pecuária somam-se ao cerceamento e à disputa pelos espaços promovidos pela
expectativa das lavouras de cana-de-açúcar que deixam o interior de São Paulo e avançam o
país a dentro. Dessa dinâmica, que aflige os proprietários, há que se considerar a condição dos
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trabalhadores, que fazem da lida no campo parte importante de sua fonte de renda. Mas,
mesmo entre os trabalhadores rurais, encontram-se os que fazem das demandas e das opções
dos proprietários agrícolas, uma forma de viver que se alterna entre a lida no campo e o
trabalho na cidade. Para muitos, a atividade rural é esporádica, sendo realizada em períodos
específicos do ano, ou está restrita à realização de algumas poucas tarefas como o roçado de
pastos, o feitio de cercas para as lavouras, ou auxiliando um parente ou conhecido em sua
roça.
Ouvir as narrativas sobre os objetivos que tinham com o trabalho nas lavouras de café
possibilitava compreender apenas uma parte dos motivos de estarem ali. Parte de suas
narrativas não me era compreensível, como por exemplo, quando eu perguntava como era o
local onde moravam eles diziam: é um povoado. Nas conversas iniciais, não compreendia o
que, de fato, estavam narrando quando mencionavam que moravam no “povoado”. Não era
cidade e não era zona rural, possuía uma característica própria. Alguns elementos desta
questão remetem a apresentar a discussão acerca dos critérios adotados por políticas públicas
ou mesmo pelo IBGE1 para delimitar o que é rural e o que é urbano, pois na maioria das
vezes, desconsidera-se o que os sujeitos moradores dali pensam e elaboram. Nas entrevistas, a
noção de povoado não parecia compor nem um, nem outro espaço, seria algo à parte,
formulado a partir das experiências e das vivências destes sujeitos em sua região. Estas
questões levaram a refletir acerca da delimitação ou conceituação dos espaços, do rural e do
urbano, do campo e da cidade. Nesse sentido, os apontamentos de Silva contribuem para
pensar que:
[...] a utilização que os autores clássicos (como, por exemplo, Marx e Weber) davam ao corte urbano/rural relacionava-se ao conflito entre duas realidades sociais diferentes (uma em declínio, outra em ascensão) em função do progresso das forças capitalistas que minavam a velha ordem feudal. A dicotomia urbano/rural procurava representar, portanto, as classes sociais que contribuíram para o aparecimento do capitalismo ou a ele se opunham na Europa do século XVII, e não propriamente a um corte geográfico.2
1 De acordo com esse órgão “na situação urbana consideram-se as pessoas e os domicílios recenseados nas áreas urbanizadas ou não, correspondentes às cidades (sedes municipais), às vilas (sedes distritais) ou às áreas urbanas isoladas. A situação rural abrange a população e os domicílios recenseados em toda a área situada fora dos limites urbanos, inclusive os aglomerados rurais de extensão urbana, os povoados e os núcleos” (IBGE, 1997). Tal delimitação é feita considerando-se apenas os aspectos administrativos de atendimento dos poderes públicos municipais. 2 SILVA, José Graziano da. O novo rural brasileiro. Campinas, SP: UNICAMP-IE, 2002. p. 3. Sobre uma perspectiva mais recente acerca das noções de rural e urbano, ver também: ABRAMOVAY, Ricardo. O futuro das regiões rurais. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2003.
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Do mesmo modo como não há um corte geográfico na utilização de termos que
parecem representar espaços como rural e urbano3, talvez fosse possível pensar no povoado
como o local onde as relações não se baseiam também em distinções geográficas, mas em
experiências de vida.
Ao tentar comparar o povoado com pequenas cidades da região ou mesmo com
comunidades rurais, eu não entendia quais eram os seus parâmetros. Do mesmo modo,
quando diziam que possuíam cinco tarefas de terra, o que isso significava? Ao narrar que
“viver na roça” (na lavoura de café) era difícil, que era tudo longe demais, eu me perguntava
como seria “viver na roça” na região norte da Bahia, dentre outros aspectos que pareciam
importantes, que estavam me dizendo.
Estas questões apresentavam-se como incógnitas para a compreensão de quem seriam
esses sujeitos, quais as suas intenções vindo trabalhar nas colheitas nas lavouras de café em
Minas Gerais, dentre outras que me levaram a buscar maiores informações sobre a região de
origem destes trabalhadores, procurando sempre interrogá-los mais e compreendê-los melhor.
Em certa altura, entendi que se fazia necessário conhecer a região de onde vinham estas
pessoas. Teve início então uma nova fase no processo de pesquisa, na qual o contato com os
trabalhadores ultrapassava as gravações e as análises das conversas exigiam mais
investimento.
Tive a certeza de que se fazia necessária a retomada da proximidade com os
trabalhadores, devido à chegada do período da colheita do café no ano de 2006, para
esclarecer uma série de questões sobre o comportamento, as escolhas, as opções desses
trabalhadores; um investimento no conhecimento e análise da região de origem desses
sujeitos. Prontamente, mas não sem uma dose de grande dúvida, os trabalhadores me
forneciam informações necessárias para chegar até lá e também conhecer o povoado de
Horizonte Novo, no município de Monte Santo-BA, sugeriam-me, inclusive, quais pessoas eu
deveria procurar4. Entre os trabalhadores que me deram uma série de indicações estão os
senhores Eugênio, Aguinaldo, Adilson, Ota, Carminha, Gilson, Genivaldo, Carlos, Sebastião,
Jairo entre outros. Estas pessoas forneceram informações sobre empresas de ônibus para
viajar, nomes de familiares (mães, irmãos, sobrinhos, esposas), endereços, sítios onde eu
3 Os limites que muitas vezes parece existir entre esses espaços talvez possam ser minorados à medida que se pensa o “meio rural como a base para a expansão de inúmeras atividades – baseadas em laços sociais que os indivíduos e as organizações foram capazes de construir – daí vai decorrer uma visão do território brasileiro que recusa às metrópoles o lugar exclusivo de horizonte promissor para as novas gerações” (ABRAMOVAY, Ricardo. O futuro das regiões rurais. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2003. p. 13). 4 Estava claro que procuravam conduzir os meus passos e selecionar o que deveria ver e ouvir, se um dia por lá aparecesse.
79
encontraria seus familiares e mesmo outros trabalhadores, além de sugestões de lugares para
conhecer como a Igreja de Monte Santo. Informações como o trajeto a ser percorrido, a
melhor forma de me locomover, as alternativas de transporte, uma vez que havia problemas
com estradas não asfaltadas, horários esparsos de transportes coletivos, entre outros
problemas, a distância entre as regiões e a dificuldade de locomoção se apresentavam como
um obstáculo.
Mesmo fornecendo essas informações, muitos dos trabalhadores se mostravam
bastantes céticos em relação ao meu interesse de conhecer sua região, não tinham nenhuma
expectativa de que realmente realizaria essa viagem. Na verdade, as informações soavam
como um desafio. Por que afinal se faria tal viagem? Qual o interesse? Por que se abalar até
lá? A forma como o “desafio” era proposto soava também como uma proposição que passava
pela compreensão de diversos fatores, alguns já presentes e sistematizados nas entrevistas,
outros por melhor serem trabalhados e que poderiam auxiliar na análise das experiências e
disposições desses sujeitos.
Ao chegar em Horizonte Novo, em agosto de 2006, procurei pela entrevistada, a
senhora Carminha, pois era a minha referência eleita, construída a partir da entrevista e outros
encontros em Minas e por uma afinidade que se solidificara aos poucos. Fiquei em sua
residência, que se tornou, também, o meu ponto de segurança e a referência para os
trabalhadores e moradores que queriam conversar com a pesquisadora. A senhora Carminha
rapidamente passou de entrevistada a também guia, pois andamos pela região, pelos sítios e
casas de algumas pessoas do povoado. De forma clara, sua presença amenizava o
estranhamento, principalmente das mulheres, cujos maridos eu havia entrevistado nas
lavouras em Minas Gerais. Do mesmo modo, a senhora Carminha também me permitiu
conhecer como era seu cotidiano e o dos demais, ao mesmo tempo em que me conduzia pela
região, me permitia conhecer as pessoas, me apontava o que considerava importante entre os
seus.
Muitas impressões dos entrevistados foram, de certo modo, comprovadas quando, na
chegada ao povoado de Horizonte Novo, no município de Monte Santo, na região norte da
Bahia, os apontamentos acerca das dificuldades de se viajar em um ônibus lotado, com poucas
opções para se alimentar, a dificuldade com o calor, dentre outros, logo se fez sentir. Uma vez
no povoado, encontrei alguns dos trabalhadores citados, e outros que já conhecia de períodos
anteriores e que mal acreditavam na minha presença ali. Com algum tempo de conversa,
muitos relataram que haviam duvidado que eu pudesse chegar àquela região, e demonstraram
um certo contentamento, pois agora eu conheceria, de fato, o que haviam falado, era uma
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espécie de alegria pela possibilidade de que me aproximaria, de algum modo, de suas
experiências em seu local de origem.
As impressões desta viagem foram marcantes, me encontrei em local totalmente
diferente e novo, onde outros valores, outras formas de viver se espraiavam e se confrontavam
com o meu olhar e minha própria experiência de vida. Mas, entre os então trabalhadores rurais
das colheitas de café, nas lavouras de Minas gerais, que ali reencontrava havia muito mais
espontaneidade, pois agora, eu era quem estava em ambiente estranho, então podiam falar
mais à vontade. A receptividade dos familiares daqueles que ainda se encontravam em Minas
também foi algo marcante. Foi nesta ocasião que entrevistei a senhora Valdina, o senhor Jorge
Amador, o senhor Fernando, o senhor José Barbosa, o senhor Jorge Mota e sua mulher
senhora Maria, e a senhora Elisângela, cujas histórias de vida, as avaliações, as lembranças e
memórias diversas me permitiram conhecer melhor também a história da região e suas
experiências naquele espaço. Normalmente, as conversas eram com grupos de pessoas muito
amistosas, calorosas, contavam suas histórias e, respeitavam meu desconhecimento quando
lhes perguntava sobre as coisas mais corriqueiras de sua vida, das formas de lidar com a terra,
os trabalhos, entre inúmeras outras questões que me foram respondidas com presteza pelo
senhor Jorge Amador, o senhor Fernando e outros.
Em julho de 2007, retornei à região uma vez mais e me instalei na residência da
senhora Carminha, com quem mantive contato no intervalo das viagens. Se na primeira vez
havia o espanto pela minha presença ali, na segunda, havia outras manifestações não menos
calorosas e receptivas. Retornei à casa de todos aqueles que eu havia entrevistado na primeira
viagem e busquei outras pessoas para conversar, especialmente nos sítios do município de
Monte Santo. Nesse momento estabeleci contatos mais diretos com os pequenos agricultores
da região como o senhor Valdir, o senhor Duda, a senhora Inês, cujas conversas me
possibilitaram conhecer os seus vínculos com a terra, com o trabalho rural e como os
trabalhos de seus filhos ou parentes próximos que em Minas eram empregados também nas
pequenas propriedades.
Parte das impressões da primeira viagem era, agora, melhor compreendida; meu
contato não era mais o de estranhamento, então as pessoas também me deixavam perceber
mais a sua própria narrativa. Neste ano, revi muitos dos trabalhadores ainda nas lavouras em
Minas e, depois, pude reencontrá-los no estado da Bahia, pois a grande maioria já havia
retornado, uma vez que a produção do cafeeiro foi menor neste ano, acarretando menor tempo
de trabalho e também menor ganho, conforme muitos me relataram. Entre os trabalhadores
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reencontrados estão os senhores Rufino, Jailson, Eugênio, Gilson, Ota, Genivaldo, Simeão,
Tito de Jesus entre outros.
O contato com esses trabalhadores em terras mineiras ou em terras baianas, certamente
propiciou maior aproximação de suas experiências, assim como, em alguns momentos, me vi
sendo chamada, em suas narrativas, a atuar em favor desses grupos, uma vez que se
dispunham a contar suas histórias, a falar de seus sentimentos, inseguranças, sucessos e
desafios em terras distantes, também como um pedido de ajuda para os problemas que
encontravam cá e lá. Era como se tivesse sendo dada a mim a chance de participar desse
movimento, conhecendo o vai-e-vem desses sujeitos, através de suas experiências e
narrativas, mas também com o “convite” ao compromisso de também fazer suas histórias e
vidas conhecidas e, quiçá, respeitadas.
Parte das entrevistas então, coletadas nas lavouras em Minas Gerais, só pode ser
compreendida e analisada após conhecer a região dos trabalhadores. No município de
Indianópolis-MG, ao perguntar o que o trabalhador Gilson, fazia na região de Horizonte
Novo-BA, após alguns segundos de avaliação, respondeu que: “trabalha assim, de enxadeta
assim, destocando o mato, sabe, essas coisa. Planta feijão assim quando tá chovendo”5. O
entrevistado menciona adiante em seu depoimento que outros tipos de trabalho são mais
difíceis de serem encontrados. Destaca-se, das palavras do depoente, um certo ar de surpresa e
de uma forma de desconforto com minha pergunta, especialmente quando procura deixar
claro que exercia uma atividade, que, retirado as devidas distâncias, eu deveria ter alguma
facilidade para compreender do que se tratava. A lida com a “enxadeta”, possivelmente uma
forma pensada para se comunicar com a pesquisadora, pode ter sido uma maneira de
manifestar uma existência anterior ao nosso encontro, mas que teria dificuldade para
compreender sem a calma e a disposição do entrevistado.
O trabalho rural brasileiro não possui características únicas. A diversidade de produtos
agropecuários e as características das regiões brasileiras são elementos a serem considerados
em qualquer análise. E, por certo, na região de Horizonte Novo o trabalho em geral, e o rural
em específico, possui características diferentes daquelas desenvolvidas na colheita do café.
Para outros trabalhadores, como os vindos dos Estados de São Paulo, Paraná, Ceará, Bahia,
dentre outros estados brasileiros, pode-se apontar que o trabalho rural abriga especificidades e
uma certa dose de escassez. Nesses casos, alguns trabalhadores passam a ter um contato mais
direto com o trabalho agrícola apenas quando estão nos períodos de maior demanda de
5 Depoimento de Gilson Ferreira, 19 anos, no alojamento da fazenda onde trabalhava no dia 14 de agosto de 2005.
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trabalho de algumas plantações específicas em regiões bem definidas no país, como as
lavouras de café. Nessa direção, narra o entrevistado Eugênio ao responder sobre a sua
preferência:
Não gosto de trabalho de roça não. Estou aqui porque venho com a turma aí. Mas, dizer que é pro meu gosto não. Não que eu não sou acostumado trabalhar na roça, por dia. Os cara até diz assim lá [Horizonte Novo-BA]: ‘uah, tu vai fazer o que lá [em Minas Gerais], eu nunca vi tu trabalhando’. Porque eu passo o ano lá só trabalho nesse tempo na roça aqui. Mas lá eu faço outras coisa, não trabalho em roça não. Mas aqui quando chego, nem parece, né?6
Alguns dos trabalhadores entrevistados procuram deixar claro, como o depoimento do
senhor Eugênio, que optam pela lida nas lavouras de café, pelo trabalho rural, não porque
gostam dele. Ao contrário, alguns enfatizam que por uma série de razões – uma delas, é a
dificuldade em realizar determinadas tarefas, ou ainda, o ritmo exaustivo de atividades que
implica no emprego de muitas horas de trabalho – exercem essa atividade apenas longe do seu
local de origem. E o entrevistado, numa proposição que parece exagerada, porém, com
segurança e sem medo do efeito que possa provocar, encaminha suas palavras no intuito de
buscar o efeito contrário sim, de pouca intimidade com o trabalho continuado, ao afirmar que
as pessoas de sua localidade dizem que nunca o viram trabalhando e não acreditam que
trabalhará nas lavouras mineiras. Diante desse quadro, pode-se questionar por que acabam
optando por realizar uma atividade tão difícil e tão diferente do que estão acostumados a
fazer?
Talvez seja possível pensar em um diálogo que estes trabalhadores travam com as
escolhas e as estratégias de lidarem com aspectos da realidade vivida e com as possibilidades
vislumbradas, com os sonhos, desejos, medos e alegrias a partir da dedicação, neste caso, do
trabalho rural temporário nas colheitas das lavouras de café, revelando que, em muitos
momentos, estes trabalhadores parecem obter alguma forma de sucesso em sua empreitada.
Os relatos iniciais dão conta de que algumas pessoas viajam em busca de trabalho nas
propriedades rurais mineiras há dez, doze anos.
Numa entrevista, ao ser questionado sobre a atividade que exerceria em Minas Gerais,
na ocasião da sua primeira viagem, o senhor Rufino respondeu:
Não! A gente se vê fazer, a gente vê fazer faz na hora. Tem uma primeira explicação, a gente chega lá, quando vê outro começar tem que saber que
6 Depoimento do senhor Eugênio Amador, 30 anos, em entrevista realizada no alojamento, juntamente com um grupo de trabalhadores vindos do interior da Bahia, onde se encontravam após o horário de almoço, na tarde do domingo 14 de agosto de 2005.
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é aquele serviço, né? Aí vai, uns mais outros menos, não é todo mundo igual, né? Uns mais outros menos, chega lá.7
Ao que parece, estes trabalhadores habituados a realizar atividades bastante diferentes
na área rural de sua região de origem, passam por um rápido processo de aprendizagem e
adaptação ao trabalho de colheita do café. Este processo ocorre de maneira diferenciada entre
os trabalhadores, alguns aprendem a executar as atividades com mais rapidez, outros
apresentam maiores dificuldades, mas todos acabam por desempenhá-las. Há que se
considerar que o processo de aprendizagem é parte constitutiva do período de ganho do
trabalhador, impactando diretamente o retorno financeiro ao longo do período de colheita.
Nessa direção, ao ser questionado sobre como era o trabalho de colheita, Jailson
respondeu:
A gente tem bastante dificuldade, aí a gente pega informação assim com as outras pessoa. Quando é uma pessoa assim, a gente pede um colega pra ensinar. Pra tirar o café não é tão difícil, difícil é assim na hora de rastelar, de banar que é [risos]... tem que ter técnica mesmo pra jogar peneira e tudo.8
O processo de aprendizagem das tarefas envolve cadência e ordem no seu
desenvolvimento, assim como o emprego de algumas técnicas e habilidades, na grande
maioria das vezes, compartilhada e ensinada pelos companheiros de trabalho. Parece haver,
dessa forma, entre estes trabalhadores uma rede de solidariedade, amparada em um conjunto
de lógicas próprias do grupo, em que se ajudam, somando esforços no período de
aprendizagem. De acordo com o entrevistado, quem não conhece e não sabe realizar a
atividade solicita auxílio e informação de quem já conhece, que pode ensinar, fornecer as
informações necessárias para o bom desempenho do trabalho, colaborando para que o outro
aprenda. Esse compartilhar de saberes acerca da execução das atividades leva a crer que “com
a transmissão dessas técnicas particulares, dá-se igualmente, a transmissão de experiências
sociais ou da sabedoria comum da coletividade”9.
O ato de ensinar os fundamentos da dinâmica produtiva das colheitas de café, assim
como o de aprender parecem envolver muito mais que a tarefa em si, por estar imbuído de
uma disposição em compartilhar as experiências vividas naquele ramo da atividade, com as
7 Depoimento do senhor Rufino Estêvão de Jesus, 49 anos, acompanhado de sua mulher, a senhora Valdina de Lima, em entrevista realizada em sua residência na manhã de sábado 21 de julho de 2007. 8 Depoimento do senhor Jailson Araújo, em entrevista realizada no dia 22 de julho de 2007, numa tarde quente de domingo na residência de seus pais, em Horizonte Novo-BA. 9 THOMPSON, E. P. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 18.
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estratégias já elaboradas ao longo do tempo por aqueles que são conhecedores e as
possibilidades de elaborar novas com aqueles que estão chegando.
A primeira das tarefas na lavoura de café, e a considerada a mais fácil delas, é a de
apanhar, catar os grão de café do cafeeiro. Popularmente ouve-se a palavra “panha”, que
designa o processo de derriça dos grãos, que é feita sobre panos estendidos sob o cafeeiro10.
Estes panos são feitos de náilon ou outro tipo de material grosso como a lona, numa extensão
que fica entre quatro e oito metros de comprimento por dois metros de largura arrastados ao
longo das ruas do cafezal. Somente após derriçar os grãos sobre os panos, a ponto de quase
não conseguir arrastá-los é que se faz a limpeza das folhas que caíram com os grãos e os
ensaca, obedecendo a medida de sessenta litros de café por saco, sobre a qual é realizado o
pagamento da produção do trabalhador.
A foto abaixo mostra uma trabalhadora ensacando a medida de sessenta litros de café,
numa propriedade rural na região do Triângulo Mineiro.
Foto 1: Ensacamento da medida de grãos de café. Fonte: Arquivo Jornal Correio de Uberlândia, Uberlândia. Fotógrafo: Manoel Serafim
10 A maior parte do tempo do trabalhador na colheita de café é dedicada ao processo de derriça e uma pequena parcela, menos da metade, é dedicada à rastelação e abanação. “De maneira geral, pode-se admitir que o tempo total gasto na colheita é assim distribuído: 60 a 70% na derriça, 20 a 30 % na rastelação e 10 a 15% na abanação. Esta última, apesar de mais rápida, constitui trabalho penoso para o colhedor.” Disponível em: <http://www.cafedocerrado.com.br>. Acesso em: nov. 2008.
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Segundo a lógica da colheita do Café do Cerrado mineiro, tem-se o quadro composto
pelo fato de que quando os frutos do cafeeiro estão maduros, a derriça é realizada
manualmente, o que implica em mais tempo para derriçar todos os grãos de um pé. Isso
compõe uma situação de maior esforço, maior destreza corporal e imersão do trabalhador ao
interior da planta, configurando uma tarefa mais penosa, mas um maior rendimento das sacas
colhidas por dia, pois os frutos, com mais polpa e grãos mais pesados rendem mais no
momento de enchimento da medida utilizada para pagamento da produção do trabalhador.
Por sua vez, no caso dos frutos já estarem secos, a colheita, a derriça é feita com o
chamado “pauzinho”, numa operação que se dá, batendo-se nos galhos do cafeeiro. Neste
caso, a derriça é mais rápida, menos trabalhosa, mas o rendimento das sacas colhidas por dia é
um pouco menor. No entanto, os trabalhadores preferem colher o café um pouco mais seco,
pois assim o trabalho parece render mais, todo o processo é mais rápido, significando também
o breve retorno para casa e ganhos mais rápidos. Diante desse quadro, ao se perguntar sobre o
rendimento da derriça o senhor Eugênio argumentou: “O café rende por que está seco. Eu
deixei mais pra andar nesse tempo pra cá, por causa disso, né? Por que é o tempo que tira
mais café e rende mais pro dono e pra gente também”11.
Este entrevistado participa da colheita de café, na região do Triângulo Mineiro e Alto
Paranaíba, há cerca de doze anos. Ao longo deste período, o senhor Eugênio parece ter
desenvolvido outras habilidades para além da colheita, como o fato de ter aprendido a ler o
processo de secagem dos grãos e de sua relação com o desempenho nas colheitas. Este senhor
parece saber que, chegando à região no início do período de safra, entre os meses de abril e
maio, encontra-se os grãos de café ainda maduros, sendo mais difícil e mais demorada a
derriça, enquanto que chegando por volta do mês de junho ou julho, como é o caso do ano em
que concedeu a entrevista, os grãos já estão mais secos.
Sobre a dinâmica de quando iniciar a colheita há que se destacar, dentre muitos fatores
a serem considerados: a idade das plantas; o perfil da gleba onde foi implantada a cultura; a
variedade das plantas escolhidas; o ano climático, especialmente a questão da irrigação, que
combinados em maior ou menor proporção compõem as especificidades do cafeeiro.
Geralmente, a colheita tem início quando há uma média de 80% dos grãos maduros. Este é
um momento de cautela, pois a incidência de grãos verdes pode comprometer a qualidade do
11 Depoimento do senhor Eugênio Amador, 30 anos, em entrevista realizada no alojamento onde ele e seu grupo se encontravam após o horário de almoço, na tarde de domingo dia 14 de agosto de 2005.
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conjunto do produto final, de acordo com especialistas da área12. Como o processo de colheita
ocorre em um longo período, os grãos, gradativamente, vão amadurecendo e secando ainda na
árvore, o que do meio para o final da colheita implica em ter os grãos quase totalmente secos.
O fato de estarem, proporcionalmente, mais secos favorece a colheita manual, e a utilização
do pauzinho, na derriça dos grãos, batido nos galhos a fim de acelerar a colheita, e favorece
também o uso das máquinas colheitadeiras que deixam menos café na árvore quando os grãos
já estão secos13.
O processo da derriça, embora considerado simples, também apresenta alguns fatores
que dificultam a tarefa do trabalhador, como a altura do cafeeiro que passa a exigir a
utilização de escadas para se alcançar o alto dos pés conforme se tem na imagem abaixo.
Foto 2: Derriça do cafeeiro com utilização de escada. Fonte: <http://www.cafepoint.com.br> Acesso em: dez. 2008. Fotógrafo: Erásio de Grácia Júnior.
Acerca deste equipamento, ao perguntar ao senhor Rufino sobre a utilização da escada
na derriça, o entrevistado respondeu que: “usa o pano do mesmo jeito. É duro carregar a
escada, de vez em quando uma quedazinha [risos]”14.
No processo da colheita, os entrevistados narram que após alguns dias derriçando o
café, realiza-se a rastelação dos grãos que ficaram sob os pés de café e logo em seguida
realiza-se a abanação. Entre as tarefas que exigem maior esforço físico estão rastelar o café do
12 Sobre o cultivo do café e suas especificidades pode-se encontrar uma gama de informações em sites especializados como os da EMBRAPA, do Café do Cerrado ou ainda da Revista Cafeicultura. 13 Conforme informações coletadas com o agrônomo e também produtor de café na região José Campaner, em janeiro de 2008. 14 Depoimento do senhor Rufino Estêvão de Jesus, 49 anos, em entrevista realizada em sua residência na manhã de sábado 21 de julho de 2007 onde ele estava com sua mulher senhora Valdina de Lima.
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chão e abanar os grãos, numa tentativa de separação das impurezas que se somam aos grãos
de café, utilizando a peneira. Nesse sentido, quando perguntei sobre as dificuldades para se
realizar determinadas atividades o senhor Rufino respondeu:
Não, dá pra trabalhar, né? É assim meio cansativo tem uns tipo de coisa, né? Que nem tem a rastelação, assim baná, né? Quem não sabe, mas dá pra trabalhar. A gente tem que viver, só vive trabalhando mesmo, de qualquer jeito que tiver, pode se num escritório, num banco, em qualquer lugar que você tiver, está trabalhando, né?15
As palavras do entrevistado deixam clara a dificuldade com alguns dos processos da
colheita de café. O aparente tom de conformação em suas palavras acena para um grau de
dificuldade importante, que é contraposto ao fato de que trabalhador vive para trabalhar.
Ainda assim, parece haver, para grande parte dos trabalhadores, uma séria disposição em
aprender, especialmente porque se tem a clareza da necessidade de trabalhar, e que a atividade
é cansativa, por mais que o entrevistado tente aproximá-la das demais atividades laborais que
existem, um escritório, um banco, em qualquer lugar, trabalho é trabalho, esteja onde estiver e
realizando seja qual for o tipo de atividade, conforme apontou o entrevistado acima.
Na mesma direção, quando perguntei ao senhor Jailson acerca de qual atividade da
colheita de café considerava mais difícil, respondeu que: “é rastelar, tem que abaixar...
Rastelar é ruim demais. Você sente doer assim perto, assim dos rins, as costelas aqui
[apontando e apalpando a região das costelas em seu corpo] fica tudo dolorido”16.
De acordo com os apontamentos, a tarefa de rastelar os grãos de café que ficaram pelo
chão requer que o trabalhador fique curvado sobre o rastelo durante boa parte da jornada de
trabalho, acarretando fortes dores lombares, principalmente nos primeiros dias. Esta atividade
é considerada entre os trabalhadores muito próxima da capina, ainda que seja mais leve, por
se utilizar o rastelo, mas o fato de ter que se inclinar para passá-lo embaixo dos pés de café
puxando tudo o que se encontra ali para logo depois ser abanado, é um complicador. Ainda no
tocante ao processo de rastelação, procura-se apanhar os grãos de café que caíram antes do
início da colheita e os que escaparam da queda sobre o pano estendido sob os pés de café, na
ocasião da colheita.
Apesar do depoimento do entrevistado Jailson, que enfatiza a dor advinda da
rastelação, os apontamentos dão conta que entre as tarefas desenvolvidas na colheita, a
15 Depoimento do senhor Rufino Estêvão de Jesus, 49 anos, em entrevista, em companhia de sua mulher a senhora Valdina de Lima, realizada em sua residência, em Horizonte Novo, na manhã de sábado 21 de julho de 2007. 16 Depoimento do senhor Jailson Araújo, 22 anos, em entrevista realizada em 22 de julho de 2007, numa tarde quente de domingo na residência de seus pais.
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considerada mais difícil é a de abanar o café17. Abanar os grãos de café, ao que parece, é uma
atividade que requer do trabalhador uma grande habilidade com a peneira, pois ao lançar o
café para o alto, na busca da separação das folhas, das impurezas dos grãos, a empunhadura
da peneira, a dosagem da força e o movimento necessário fazem com que o trabalhador
depreenda mais ou menos força física e obtenha maior resultado com o menor esforço. E
evidentemente é esta habilidade que determina a rapidez com que o café é limpo ou não das
folhas e pequenos pedaços de galhos que foram juntados na rastelação.
Foto 3: Abanação do café. Fonte: Arquivo JORNAL CORREIO DE UBERLÂNDIA, Uberlândia. Fotógrafo: Manoel Serafim (22 de maio de 2001)
É certo que a abanação requer habilidade com a peneira e também um relativo preparo
físico. Em geral, o trabalhador se inclina até o chão para apanhar, sobre a peneira, o café
amontoado com pequenos galhos, folhas e terra, e logo em seguida inicia o movimento de
lançar ao alto a quantia do que apanhou, a fim de retirar toda a sujeita e deixar apenas os
grãos de café. A seqüência e repetição destes movimentos deixam a maioria dos trabalhadores
rurais vindos do norte da Bahia com fortes dores nos braços, dores lombares, além de ficar em
contato com a poeira durante este trabalho18. A pessoa que está desempenhando esta tarefa
17 A dificuldade apresentada por esta tarefa e a habilidade que ela requer remete a pensar as referências ao concurso de Abanar Café realizado na região de Venda Nova dos Imigrantes no estado do Espírito Santo, em razão da Festa do Café Arábica promovida há dez anos no período da safra do café naquela área. 18 É possível encontrar apontamentos de trabalhadores rurais vindos de outros estados, notadamente os paranaenses, que se apóiam sobre a dificuldade dos trabalhadores baianos, nesse processo, para tentarem desqualificá-los.
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fica, não raro, totalmente coberta pela poeira, respirando-a durante todo o dia, o que requer
algumas medidas por parte dos trabalhadores na tentativa de amenizar estes fatores.
Nessa direção, quando menciona as dificuldades e dores geradas no desenvolvimento
de algumas tarefas, o entrevistado Jailson esclarece que:
Quando está abanando também a gente bebe muita cachaça também. A gente acredita que aquilo lá ajuda que, é muito pó, né, é muito pó, e acho que aqueles adubo, que fica ali na terra ali, aí a gente acredita que tomando uma cachaça ali ajuda a melhorar.19
O trabalho ao longo dos anos, nas colheitas de café, propicia a construção de um
conjunto de experiências e de percepções próprias dos trabalhadores que buscam a região. E
por certo as impressões, as leituras dos acontecimentos ao longo do tempo, contribuiu para a
elaboração de estratégias para tratar as dificuldades com as tarefas desempenhadas. De acordo
como o entrevistado, tem-se que tomar cachaça, por exemplo, é tido como uma ação benéfica
para tentar eliminar o que se respirou com a poeira durante o dia de atividade de abanação dos
grãos. Há ainda, em função da nova lógica de produção agrícola que se estabelece na região, a
utilização de um sem número de produtos químicos durante o trato da lavoura, não apenas de
café, fato que é de conhecimento dos trabalhadores rurais, sabe-se também dos problemas de
intoxicação que estes produtos podem causar. Assim sendo, para os trabalhadores envolvidos
no processo da colheita, há que se observar e elaborar formas de lidar com o possível perigo20.
Acerca da experiência na atividade de colheita o senhor Jailson afirma em seu
depoimento que:
E a gente acaba aprendendo uma coisa que, café pra gente trabalhar, a gente tem que ter muita experiência. É um trabalho muito cansativo porque ultrapassa né? A gente trabalha de, vamos supor, cinco e meia, a gente volta escuro, umas seis hora, seis e meia. Ás vezes a gente até num almoça direito, chega já é almoçando, já voltando já. É correria mesmo. E logo no início eu queria acompanhar os outros também, os que tinha mais prática, aí foi o que acabou atrapalhando também. Isso aí também... é porque a gente queria andar muito depressa e acabava ficando café pra trás, a gente num agüenta também, cansa logo. Sente muitas dor assim no corpo, fica com o corpo bastante dolorido. Aí é um monte de coisa também.21
19 Depoimento do senhor Jailson Araújo, 22 anos, em entrevista realizada no dia 22 de julho de 2007, numa tarde quente de domingo na residência de seus pais. 20 Há que se mencionar outras estratégias presentes em outros momentos do cultivo e trato do cafeeiro. Nas experiências com o trato desta lavoura na região do Paraná nos anos 1980, recordo os trabalhadores que utilizavam bombas costais para pulverizar o cafezal consumindo bastante suco de limão, pois acreditava-se que ajudaria a prevenir uma possível intoxicação. 21 Depoimento do senhor Jailson Araújo, 22 anos, em entrevista realizada em 22 de julho de 2007, numa tarde quente de domingo na residência de seus pais.
90
O trabalho da colheita como já mencionado, exige do trabalhador adaptação e, acima
de tudo, muita resistência física que, para Jailson se resume em adquirir muito conhecimento,
a partir da experiência dos trabalhadores mais velhos. Seu depoimento direciona o olhar para
questões como as dificuldades com a jornada e a carga diária de trabalho, para o ritmo do
trabalho, o cansaço físico, a falta de experiência na tentativa de acompanhar o ritmo de outros
trabalhadores mais adaptados à dinâmica da colheita, e também a necessidade de se obter um
rendimento mínimo diário compatível com as suas aspirações e ou necessidades.
O trecho do depoimento do entrevistado manifesta que, em sua experiência inicial na
atividade, teve problemas com o fato de não saber realizar as tarefas corretamente e, ao
mesmo tempo, querer acompanhar os trabalhadores já habituados ou com maior experiência.
Acabava deixando a desejar na execução da tarefa, principalmente ao deixar grãos no
cafeeiro, o que deve ter lhe causado reclamações do gerente ou proprietário da fazenda, pois o
ato de “deixar café para trás” é tido como uma das piores falhas de um colhedor, do mesmo
modo como esta falha é uma das mais apontadas e reclamadas por gerentes e produtores. A
partir desta experiência, o senhor Jailson parece ter compreendido que a prática é que faz o
bom colhedor.
Se de um lado ocorre o estranhamento com o tipo de atividade, conforme mencionou o
entrevistado, por outro, tem-se a dificuldade em relação à jornada de trabalho que se inicia
muito cedo, com horário reduzido para a refeição, terminando à noite e, ainda, ao findar o dia
de trabalho um conjunto de dores musculares, advindo do esforço empreendido. Ao relatar
que “é correria mesmo” o entrevistado parece procurar levar a crer que para se obter um
ganho maior é preciso que haja a correria, ou seja, que se utilize todo o tempo possível, com o
aumento de sua jornada, com diminuição do tempo dedicado ao descanso e um forte ritmo de
trabalho, pois o seu ganho é obtido por produtividade, de acordo com a quantidade de café
colhido. Pensando nesta questão, pode-se cogitar que o rendimento que se busca com o
trabalho na colheita de café, talvez pudesse ser obtido em qualquer outro local de trabalho ou
atividade cujo ganho também se desse por produtividade, uma vez que os resultados
econômicos conquistados por estes trabalhadores advém do seu esforço físico, do seu
empenho em uma extensa jornada de trabalho.
As adversidades encontradas na realização de algumas tarefas resultam não em uma
série de queixas e reclamações dos trabalhadores, mas ao que parece, pelas narrativas, em
uma tentativa de aprender a tratar o que é novo para a sua experiência, lidando com estas
adversidades e buscando formas para driblá-las. Para combater as dores musculares advindas
da repetição de determinados movimentos durante o dia de trabalho e conseguir manter um
91
certo nível de produtividade, pois não há como parar as tarefas ou mesmo buscar
conhecimentos médicos que auxiliem no combate às dores, os trabalhadores elaboram
algumas estratégias para vencê-las. Nesse momento, transparecem também elementos que
apontam para uma maneira, uma forma de ser própria desse grupo de sujeitos que deixam a
região norte da Bahia, adentram a região do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, são
considerados “inadequados”, inábeis, dentre outros apontamentos feitos pelos trabalhadores
locais, mas que não se entregam ao cansaço das jornadas, procuram traçar estratégias e
encaminhar a colheita do café de modo que lhes seja mais favorável. Assim o senhor Jailson
comenta que em meio às agruras das etapas de trabalho, constroem e descobrem estratégias.
A gente descobriu agora um remédio, que eles ensinaram pra gente que é bom pra dor que é a sucupira, né, que lá tem bastante. Aí a gente põem, só que a gente já faz com a cachaça que a gente bota que é aquela 51. A gente põe, quebra ela, aí põe no litro e deixa, aí vai ficando amarelinha, aí aquilo lá é bom pra dor.22
Em meio ao universo de estratégias, percepções e tentativas de lidar com as dores, a
semente de sucupira em infusão na garrafa de cachaça se torna uma aliada no combate às
dores no corpo durante o período da colheita. Efetivamente, não consegui registro da eficácia
desta medida, mas vale o que se acredita e os valores construídos em torno desta prática,
como em muitas outras, tornam-se uma forma de base de apoio às dificuldades dos que
querem permanecer na lida das colheitas de café. Importa mencionar que a descoberta narrada
pelo entrevistado aconteceu porque “eles ensinaram”, ou seja, do contato que estabelecem
com os moradores e outros trabalhadores das fazendas cafeerias.
Acerca das estratégias tecidas por diferentes grupos de trabalhadores vale ressaltar a
pesquisa que destaca os trabalhadores negros na cidade de Uberlândia nas décadas de
1945/1960 na qual se aponta para as práticas difundidas entre os trabalhadores da charqueada
dessa cidade, que tomavam um café misturado com muito fedegoso (uma planta bastante
conhecida na região) como tática elaborada frente às condições adversas de trabalho23. Cabe
ressaltar que a “utilização do café de fedegoso como artifício para impedir o maior desgaste
do corpo, podia ser algo conhecido e até difundido entre as pessoas, no entanto, o ato de
acreditar na sua utilização e efetivá-la quotidianamente é muito diferente”24.
22 Depoimento do senhor Jailson Araújo, 22 anos, em entrevista realizada no dia 22 de julho de 2007, numa tarde quente de domingo na residência de seus pais. 23 CARMO, Luiz Carlos do. “Função de Preto”: trabalho e cultura de trabalhadores negros em Uberlândia/MG, 1945/1960. 2000. Dissertação (Mestrado em História)- Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2000. 24 Ibidem, p. 77.
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Para os trabalhadores vindos da região norte da Bahia, recorrer às artimanhas
difundidas entre os diferentes grupos da população nas colheitas de café, ainda que o
resultado não seja o esperado, faz diferença para a continuidade dos trabalhos e para a
recuperação física, e não deixa de permitir que se selecione um tipo de pessoa, marcado por
um forte caráter de fibra e determinação como poucos.
A pesquisa permitiu observar que os casos em que os trabalhadores adoecem não são
raros, mas, muitos deles, mesmo doentes, não deixam de trabalhar. Para alguns, permanecer
um ou mais dias parado lhe causa grande prejuízo porque, sem obter uma renda durante os
dias que permanece sem trabalhar o seu consumo continua, como revelou Gilson em seu
depoimento: “Aqui se o cara, acontecer qualquer coisa que nem aconteceu comigo, é perdido
o dia. Não tá ganhano nada”. Há casos em que alguns trabalhadores acabam, em função de
fatalidades diversas, retornando para casa mais cedo, quando não conseguem restabelecer o
seu quadro clínico, como foi o caso do trabalhador Gilson, que doente por cerca de oito dias
sem poder trabalhar, foi levado ao médico para uma consulta, na qual, segundo o depoente:
“Aí passaram um remédio lá, tomei, aí fizeram uns exame lá, foi fazer, aí um exame ainda
tem que pegar e o outro tem que tirar um eletro do coração pra ver o que é”. Mesmo
realizando alguns exames não estava claro para Gilson qual teria sido o seu problema de
saúde. Quando questionado sobre o que os médicos diagnosticaram acerca de seu estado
físico, respondeu:
Não falou nada não. Falou nada, só assim às vezes é verme, né, que eles tava falando né, que eu escutei. Fiquei internado tomando soro. Estou ficando mais melhor agora, estou recuperando. Pro cara recuperar o cara ficar trabalhando de novo, não recupera. Aí tem que ir embora. É ruim demais, num lugar desse daqui ficar aqui.25
Quando do acontecimento relatado acima, o entrevistado, no momento da narrativa,
um jovem de dezenove anos, na ocasião do acometimento de sua condição física, trabalhando
com um irmão, em sua segunda tentativa de com o trabalho na lavoura de café adquirir uma
moto, registra o ocorrido de forma calma, mas com uma dose de pesar e tristeza. Ao que
parece, o mal estar que teve o impediu de continuar trabalhando e teve que retornar para casa
antes do previsto e sem nenhum rendimento, deixando clara sua dificuldade em permanecer
nas lavouras no estado em que se encontrava. Questionei sobre o que ocorreu que o deixou
adoentado e o jovem Gilson narrou:
25 Depoimento de Gilson Ferreira, 19 anos, no alojamento da fazenda onde trabalhava, no dia 14 de agosto de 2005.
93
Eu tomei um biotônico, né, duas colheres na segunda, aí quando foi meio-dia, vim almoçar, senti aquela coisa ruim no estômago, né, aí achei que ia vomitar, né, aí, senti uma frieza, coisa ruim, o coração disparado, aí fiquei meio roxeado. Foi aí que o Adriano foi me levar lá no Indianópolis.26
As causas de seu mal estar podem estar relacionadas a um problema maior, mas há
indícios para se pensar nas conseqüências de uma alimentação pobre em nutrientes, incapaz
de fornecer a energia suficiente para o grande esforço físico empreendido no trabalho. Tem-se
que grande parte dos produtos consumidos por estes trabalhadores constitui-se de: arroz,
feijão, macarrão, carne, ovos, bolachas, biscoitos e de vez em quando algum tipo de doce,
sendo quase inexistente o consumo de legumes, verduras, leite e derivados. Parece haver um
padrão alimentar rico em cereais e seus derivados, mas pobre em proteínas, podendo interferir
no rendimento do trabalhador cujo esforço físico requer mais do que lhe é fornecido, assim
como de sua condição física. Ao que é possível observar, pode-se dizer que a quantidade de
energia diária não se encontra satisfeita pela dieta e, os alimentos que fornecem vitaminas e
sais minerais, não se encontram representados de maneira significativa27.
De modo geral, desse quadro é possível ponderar que o fato de o trabalhador, muitas
vezes, ter que retornar para casa por ficar doente remete à discussão sobre a relação laboral na
qual está inserido. Trata-se de uma relação em que o trabalhador não vende sua força de
trabalho, mas exerce atividade que se materializa em produtos, pois seu salário é por tarefa e
não pelo tempo. Desse modo, a capacidade de rendimento do trabalhador é o fator
predominante em seu salário, o que não minimiza o caráter do trabalho assalariado28.
O rendimento alcançado por cada indivíduo na colheita de café reflete a quantidade de
sacas de café colhido diariamente, que possui um valor determinado de acordo com a carga do
cafeeiro no momento da colheita ou ainda de acordo com os grãos que podem estar maduros
ou se encontrarem mais secos. São muitos os fatores que acabam refletindo sobre o quanto
cada trabalhador recebe durante um determinado período. Com isso, esses sujeitos elaboram e
26 O entrevistado refere-se a um dos moradores da fazenda, responsável pelo trabalho da colheita do café e de acompanhar os trabalhadores nas suas tarefas, que o levou ao hospital. Depoimento de Gilson Ferreira, 19 anos, coletado no alojamento da fazenda onde trabalhava, no dia 14 de agosto de 2005. 27 CANDIDO, Antonio. Os parceiros do Rio Bonito. 10. ed. São Paulo: Editora 34, 2001. p. 194. Ainda sobre o consumo alimentar entre alguns grupos de trabalhadores volantes e trabalhadores sazonais ver: SILVA, Maria Aparecida de Moraes. Errantes do fim do século. São Paulo: UNESP, 1999. p 245-247; COLETTI, Claudinei. A estrutura sindical no campo: a propósito da organização dos assalariados rurais na região de Ribeirão Preto. Campinas: UNICAMP, 1998. p. 147. 28 GONZALES, Elbio N.; BASTOS, Maria Inês. O trabalho volante na agricultura brasileira. In: PINSKY, Jaime (Org.). Capital e trabalho no campo. São Paulo: Hucitec, 1979. p. 31-33.
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formulam modos de dialogar e enfrentar estes fatores que ora são negociados com os
empregadores, ora são deixados para trás buscando-se outras fazendas para trabalhar.
Tendo em vista estas características determinantes do salário que o trabalhador obterá,
o ritmo de trabalho empreendido por estes indivíduos em muito se assemelha ao ritmo dos
grupos de trabalhadores locais presentes na região.
Ao questionar o senhor Rufino, numa entrevista realizada em Horizonte Novo, sobre
como percebia o seu trabalho, o de seus conterrâneos e o das demais pessoas que trabalhavam
na mesma fazenda em Minas Gerais, narrou que:
Quem é de lá [de Minas], num é que nem nós. Aí chega pega sete hora, quando é dez hora, dez hora já [a voz aumenta de volume enfatizando que é muito cedo e demonstrando espanto], que nem tinha um bocado de mulher lá na fazenda trabalhando mais nós, dez hora tava tudo debaixo dos pé de café almoçando. Aí quando era duas hora da tarde era a merenda. E nós não, nós pegava com força mesmo, pegava seis hora, parava meio-dia, vinha cá fazia comida, almoçava e voltava, num tinha esse negócio de merenda, não. Ia até cinco hora29.
De acordo com o entrevistado, é possível confirmar que, na sua percepção, há pelo
menos dois grupos de trabalhadores: os “de lá”, referindo-se aos mineiros, e o dos migrantes,
seus conterrâneos. A condição desses grupos de trabalhadores rurais era marcada pela questão
da produtividade, assim, ambos procuram investir o maior número de horas possível na
realização da tarefa. Desse modo, as refeições ganham um tempo mínimo. Ao que parece,
enquanto os primeiros iniciam sua jornada diária ainda de madrugada, pois se gasta até duas
horas para chegar à lavoura, os outros trabalhadores que estão mais próximos do local de
trabalho podem iniciar sua jornada um pouco mais tarde; e num movimento duplo, enquanto
os trabalhadores locais encerram as atividades por volta das dezesseis horas, devido ao tempo
do percurso de retorno às suas residências, os trabalhadores alojados nas propriedades rurais,
ao invés de pararem conjuntamente e descansarem, utilizam-se desse tempo para procurar
implementar o seu ganho diário, pois não empreenderão tempo significativo para retornar ao
alojamento.
O tempo é, portanto, fator determinante inclusive no salário dos trabalhadores.
Observou-se que, entre os grupos de trabalhadores locais faz-se até três refeições na lavoura:
muitos tomam o café da manhã ao chegarem à lavoura, almoçam e também tomam um lanche
no período da tarde. Já os trabalhadores migrantes fazem uma refeição só na lavoura,
29 Depoimento do senhor Rufino Estêvão de Jesus, 49 anos, em entrevista realizada em sua residência em Horizonte Novo-BA na manhã de sábado 21 de julho de 2007, onde ele estava acompanhado de sua mulher senhora Valdina de Lima.
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geralmente o almoço. Este fato foi apresentado pelo senhor Rufino como um diferencial para
a possibilidade de aumento do ganho diário, pois paralisam o trabalho apenas uma vez no dia,
assim como um elemento de distinção entre estes grupos e os trabalhadores locais. O senhor
Rufino faz uma diferenciação entre o seu grupo e os trabalhadores locais, pois sua concepção
é a de que o seu grupo trabalha mais pesado e “perde” menos tempo em comparação com o
outro grupo.
A comparação feita pelo entrevistado leva a crer não somente em ritmo de trabalho
diferenciado, mas também em diferenças. Os trabalhadores locais, conforme se acompanhou
em outros momentos da pesquisa, possuem o hábito de almoçar até as onze horas da manhã e
no meio da tarde param para a merenda onde se come alguma quitanda como bolos, pães,
biscoitos com café ou outra bebida que o trabalhador aprecie e goste de levar para o trabalho
como sucos ou chás30. Os trabalhadores migrantes na lavoura não fazem esta refeição.
Normalmente, o almoço acontece por volta do meio-dia e depois não há nenhuma pausa para
refeição até o final do dia de trabalho, voltando a se alimentar apenas no jantar.
Desse fato pode-se questionar: haveria entre os trabalhadores rurais vindos da região
norte da Bahia para as colheitas de café no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba o hábito de
realizar esta refeição em sua região de origem, ou esta seria apenas uma estratégia para se
tentar implementar o ganho diário? Mas pode-se, também, atribuir a falta desse hábito na
lavoura à dificuldade de se adquirir os produtos para esta refeição, uma vez que entre os
trabalhadores não há a prática de se cozinhar ou fazer algo além dos alimentos básicos para o
almoço e o jantar. Para o café da manhã, normalmente, compra-se bolachas e biscoitos
adquiridos na venda ou mercearia.
Há, para o senhor Rufino, a compreensão de que o ritmo de trabalho dele e de seus
conterrâneos é mais intenso, pois, dentre outros, apesar das dificuldades, das dores, do
processo de aprendizagem das diferentes etapas do trabalho a ser executado, estão ali para
trabalhar e não podem “perder tempo”, devendo empregá-lo o máximo possível para que se
obtenha um ganho diário que justifique sua presença ali e, também, garanta alcançar os
objetivos a que se propôs com a saída de casa.
Acerca do contato destes com os trabalhadores locais o senhor Rufino apresenta ainda
em seu depoimento uma experiência a ser analisada.
30 Para mais sobre a dinâmica da alimentação dos trabalhadores nas lavouras de café da região do Triângulo Mineiro, ver: CARMO, Maria Andréa Angelotti. Lavradores de sonhos: saberes e descaminhos de trabalhadores volantes. São Paulo: EDUC, 2006. p. 83-85.
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E tinha umas danada lá que, elas, oh neguinha feia danada, quando se arrumava, bonita virava... Na roça toda enfardada, calça comprida, de bota, de luva, amarra assim [faz o gesto de um lenço sobre a cabeça]. A gente não via nada não, só o olho. Ninguém entendia a fala não rapaz. Eu falava, quando eu pegar de novo essa desgraçada eu vou deixar ela pra trás, vap, vap com a mão, dois, três pano tava pra trás.31
O senhor Rufino registra as impressões do contato mais prolongado que teve com as
mulheres trabalhadoras locais tanto no trabalho quanto na sede da fazenda onde estavam
alojados. Ao que parece, na lida diária junto aos pés de café, as mulheres trabalhadoras
procuravam se proteger do sol, da poeira, das pontas dos galhos secos do cafeeiro, que em
geral, provoca arranhões pelo braço, no rosto, cortes nas mãos, dentre outros, ocasionados
pela falta de equipamentos de proteção. Talvez por esta razão, o entrevistado tenha comentado
que na lavoura as mulheres estavam “feias”, enfardadas. Descrever as vestimentas das
trabalhadoras como fardas remete a pensar, por um lado, que o mecanismo de proteção
utilizado não permitia, a quem trazia aquela forma de olhar, enxergar se aquele era um corpo
masculino ou feminino, pois se via apenas os olhos.
Por outro lado, as palavras do entrevistado permitem pensar que todos aqueles
equipamentos eram desnecessários para que o seu grupo de trabalhadores realizasse o mesmo
tipo de trabalho das mulheres. Há ainda a afirmação de que o depoente não compreendia, nos
breves contatos na lavoura, grande parte do que as trabalhadoras falavam, aparentando uma
dificuldade encontrada para se relacionar com as pessoas do local ou apenas a impossibilidade
de compreensão do que se falava ao som dos movimentos e burburinhos durante a execução
de suas tarefas.
O trabalho manual e mecânico no trato das lavouras de café como a adubação, a
pulverização, a irrigação por gotejamento e outros, em geral, é desenvolvido seguindo a
ordem das fileiras de pés de café. A colheita segue a mesma lógica. Nesse sentido, um outro
elemento a ser destacado do trecho do depoimento acima refere-se ao fato de o entrevistado
dizer que quando “pegar” a mulher, ou seja, alcançá-la na posição da rua de café executando a
mesma atividade, a deixaria para trás. O depoente parece não aceitar ficar em desvantagem
em relação ao ritmo de trabalho empreendido pelas mulheres, o que faz supor a localização do
trabalhador na fileira de café e, por isso, acelerava a derriça (“vap, vap com a mão”) a fim de
deixar as mulheres para trás.
31 Depoimento do senhor Rufino Estêvão de Jesus, 49 anos, em entrevista realizada em sua residência em Horizonte Novo-BA na manhã de sábado 21 de julho de 2007, onde ele estava acompanhado de sua mulher senhora Valdina de Lima.
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Ao que parece, na sua entrevista, o senhor Rufino seleciona e estabelece uma série de
distinções entre o grupo de trabalhadores rurais que se deslocam da Bahia para as plantações
de café em Minas Gerais e as trabalhadoras locais. As diferenças não se restringem à
dimensão da execução das tarefas, em que ambos os grupos de trabalhadores inserem-se, mas
perpassam a questão do trabalho referindo-se às diferenciações que se dão no âmbito das
formas como são desenvolvidas, dos movimentos corporais, da mecânica executada,
aparentando propor que a constituição dos indivíduos, tributária dos fatores externos ao
ambiente do trabalho, impactam de forma distinta cada um dos grupos de trabalhadores. Na
seqüência, na sua residência, na região de Horizonte Novo, no Estado da Bahia, quando
perguntado sobre a presença dos colegas trabalhadores que ainda não voltaram para suas
casas, afirma que
Alguns ficaram lá ainda [nas lavouras de café em Minas Gerais], no Celso [pequeno proprietário de lavoura de café na região de Indianópolis, na região do Triângulo Mineiro]. [Pequena pausa, parece ponderar algo e segue observando] Aí bota a colhedeira, aí fica só, pra tirar só, as coisa que fica, o café bem pouquinho, né, que ela deixa e a banação. [Perguntei: E a questão da colhedeira [da mecanização da colheita e o impacto para os trabalhadores], senhor Rufino, o senhor acha que está aumentando?] Não, tem deles [proprietários] que, não está usando não. Essa fazenda que nós tava mesmo, desse Luiz, [também pequeno proprietário de lavoura de café na região do Triângulo Mineiro] tem uma colhedeira lá, ele não coloca não, pra tirar não. Pôs pros outros [proprietários que optaram pela colheita mecanizada], pagado, né. Judia muito do café. Ela tira muito, mas judia muito, pega mas deixa só o toco. Esbagaça muito. É a produção, parece que é, por dia, é mil saco de café que ela tira.32
As observações do entrevistado colocam uma outra dimensão da relação de trabalho
que esses homens e mulheres deparam-se, nesse universo de relações sociais que compõem a
presença humana na colheita de café na região do cerrado mineiro. A inserção desse e dos
demais grupos de trabalhadores nas colheitas, além das demais lógicas e preferências dos
inúmeros sujeitos sociais envolvidos, dialogam com a presença da mecanização das colheitas.
Nessa direção, os apontamentos do entrevistado, deixam ver que os proprietários das
máquinas colhedeiras, utilizam-nas de forma distinta.
Caso as palavras do depoente reflitam a realidade, é possível pensar na compra e no
aluguel das colhedeiras como um instrumento a mais na oferta e venda de serviços aos
32 Depoimento do senhor Rufino Estêvão de Jesus, 49 anos, em entrevista realizada em sua residência em Horizonte Novo-BA na manhã de sábado 21 de julho de 2007, onde ele estava acompanhado de sua mulher senhora Valdina de Lima.
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proprietários de plantações de café que não conseguiram a mão-de-obra necessária para a
colheita, ou que simplesmente optaram pela colheita mecanizada, e não se importam com os
danos causados aos cafeeiros, pois podem ter em mente a substituição de plantas mais velhas
por um conjunto de mais novas.
Na seqüência do nosso encontro em sua residência, recém chegado das lavouras em
Minas Gerais, indago ao senhor Rufino qual foi o desempenho do seu trabalho, no ano de
2007, e com calma o entrevistado afirmou que:
Acabou [rápido] porque esse ano lá foi fraco. As fazendas lá, lá foi fraco. Que nem nós tava, o cara disse que era pra gastar uns dez, levou vinte e um. Ai tinha mais três paranaense, vamo botar vinte e quatro, tinha mais umas oito mulher lá da fazenda, trinta e duas pessoas trabalhando. Dá pouco tempo. Provavelmente no outro ano a gente vai pra lá.
A rica entrevista com o senhor Rufino, um trabalhador que há anos envereda-se pelas
colheitas de café nas propriedades mineiras, conhecido e conhecedor de muitos produtores
rurais, apresenta elementos importantes para se pensar a dinâmica de produção e o teor das
relações sociais que esses trabalhadores teceram ao longo dos anos de trabalho e de demais
envolvimentos. Na sua localidade, em Horizonte Novo, este senhor é uma espécie de
referência no que se refere ao trabalho nas lavouras mineiras. O seu retorno, mais rápido que
o de muitos outros trabalhadores da mesma região, no ano de 2007, foi explicado pelas
colocações de seu depoimento, em que o aumento do número de colhedores implicou em uma
menor participação de todos os envolvidos. Nota-se que não há referência da questão da
mecanização da colheita, e sim do aumento do número de colhedores de café. Há que se
acrescentar, ainda, o fato de uma pequena produção de café. A pequena produção é explicada
pelo ciclo bi-anual do cafeeiro que determina também o ganho dos trabalhadores em cada ano
de seu empreendimento.
A dinâmica de trabalho na qual estão envolvidos estes sujeitos leva a pensar nas
especificidades da atividade, nas demandas surgidas na execução das tarefas, mas também,
nas diferentes relações que os indivíduos estabelecem, ora parecendo conflituosas e
competitivas, ora parte de uma rede de sociabilidade e solidariedade, o que remete a uma
perspectiva de ação contínua destes grupos de trabalhadores e suas inserções num constante
fazer-se.
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2.2 As relações sociais e os alojamentos
O trabalho na lavoura de café, assim como em outras atividades rurais ou não, envolve
mais que a própria relação de trabalho. No caso dos trabalhadores que passam a dividir
espaços em alojamentos, acabam partilhando aspectos em sua rotina diária. Há uma dinâmica
que permite observar escolhas de pessoas e do grupo, elementos de distinção, de aglutinação e
afastamento dos indivíduos, e de se compreender, de maneira mais profunda, outros domínios
da vida, das compreensões de mundo, da seleção e valorização das experiências destes
sujeitos. Nesse sentido, dividir espaços, os momentos nos alojamentos parece se constituir em
uma forma de se compartilhar, ou ao menos, de se aproximar muito de valores dos demais
sujeitos, ainda que não se concorde, ou comungue com eles.
Nas entrevistas, nas conversas com os trabalhadores, a questão do conviver nos
alojamentos das propriedades rurais em Minas Gerais pareceu ser parte importante de um
processo de reflexão para expor o que pensavam. E nesse desenrolar as palavras ou o silêncio,
os pensamentos ou as ações, as alegrias ou as tristezas e uma série de outras possibilidades do
recôndito desses trabalhadores pareciam vir lhes à mente, algumas ganharam a condição de
serem verbalizadas, outras pararam nos olhares longínquos, nas desconversas, nas pausas
longas, no esfregar silencioso das mãos, no passo pequeno para o lado, dentre outras formas
de silêncio. No geral, pode-se apontar que o convívio, as horas de descanso, as noites de sono,
as refeições, o compartilhar das dores do dia, no silêncio, nas conversas dos alojamentos
passam pela afinidade entre os membros de um grupo ou mesmo pela disponibilidade em se
constituir um grupo. É possível vislumbrar parte destes elementos quando se analisam as
várias narrativas que apresentam os alojamentos dos trabalhadores e as relações que ali e dali
se desdobram.
Na maioria das propriedades produtoras de café pesquisadas, os espaços onde os
grupos de trabalhadores se instalam, durante o período em que permanecem trabalhando, se
mostraram como ambientes nos quais as relações sociais se constituem não como uma
extensão das relações de trabalho, mas por que não dizer, através delas. A observação dos
alojamentos e dos seus usos pode oferecer uma melhor forma de compreender a opção pela
formação dos grupos, assim como as suas peculiaridades, os valores que os trabalhadores
trazem, as questões que permeiam o período de estadia e de convivência, assim como
possíveis desavenças, discordâncias, as negociações constantes, ou ainda, um conjunto de
100
elementos que passam pelas relações destes trabalhadores com empregadores ou gerentes de
trabalho.
A análise e o estudo sobre os espaços dos alojamentos e as relações sociais que ali se
estabelecem em diferentes momentos históricos e em diferentes culturas, como observa
Menezes ao analisar os alojamentos de trabalhadores das usinas de cana-de-açúcar nos
estados da Paraíba e de Pernambuco, revelam que estes espaços constituem-se em importante
elemento para a compreensão dos grupos e das relações que ali se ampliam e estão
imbricadas33. No caso de trabalhadores, os alojamentos se constituem em um ambiente no
qual as relações de trabalho podem ter extensão.
De modo geral, há que se considerar uma outra característica da relação trabalhista que
os alojamentos acabam encerrando. Ao longo dos anos, este espaço de descanso do
trabalhador foi utilizado não somente como “um conjunto de prédios e instalações, mas [um
espaço que] contém a ideologia do controle e disciplinamento da força de trabalho”34. Pode-se
acrescentar que nestes espaços as relações sociais podem ter o ambiente no qual as análises,
acordos, formas de atuação no trabalho são elaborados e, também, as relações pessoais se
sedimentam e, ao mesmo tempo, onde as diferenças podem estar latentes. Os alojamentos dos
trabalhadores constituem-se num espaço ambíguo, onde se reafirmam a identidade do grupo
de uma mesma origem e também onde as diferenças aparecem com freqüência.
As condições de vida a que os trabalhadores rurais de outras regiões do Brasil se
submetem nas lavouras em Minas Gerais, muitas vezes são subumanas. Geralmente, a área e
os cuidados do cafeeiro, ao longo dos anos de uma determinada fazenda é indicador do tipo de
alojamento que a propriedade possui para abrigar os trabalhadores no período da colheita. Isto
porque as médias e grandes fazendas, com mais de cinqüenta hectares, são mais bem
equipadas possuindo espaços próprios para tal fim, construções que além de quartos coletivos
possuem também cantinas e banheiros, numa relação que extrapola o simplismo do binômio
econômico, baseado no tamanho das propriedades e sua renda. Ao contrário, é pautado pela
preocupação com o investimento no cafezal e no elemento humano que fará uma das etapas
mais importantes de todo o processo de trato e manutenção do cafeeiro.
Nas propriedades que investem na produção, em todos os sentidos, as refeições são
fabricadas na cozinha da cantina e, por isso, são de responsabilidade do fazendeiro que
33 Neste texto, a autora faz referência aos estudos que analisam “o sistema de alojamentos nas minas de ouro na África do Sul como um sistema de controle do trabalho, e também as condições sociais degradantes dos trabalhadores que vivem nos alojamentos no Brasil e que afetam a reprodução da força de trabalho” (MENEZES, Marilda Aparecida de. Redes e enredos nas trilhas dos migrantes: um estudo de caso de famílias de camponeses-migrantes. Rio de Janeiro: Relume Dumará; João Pessoa: EDUFPB, 2002. p. 145-146). 34 Ibidem, p. 149.
101
destina uma pessoa para esta tarefa e cobra uma taxa de cada trabalhador. Nesse caso, os
trabalhadores não se preocupam e não precisam dedicar parte do seu tempo com o preparo das
refeições, embora paguem um valor considerado alto por este serviço35, mas que agrada a
muitos, pois, na maioria dos casos, destinam todos os seus esforços ao trabalho.
Os alojamentos mais comuns, na maioria das propriedades, são grandes improvisos.
Normalmente, se constituem de algum espaço ou construção inutilizada na fazenda, como
casas abandonadas ou ainda barracões onde se guardam implementos e máquinas agrícolas.
Nestes espaços os trabalhadores passam a conviver, organizando-se ali a vida por um curto
intervalo de tempo e no pouco espaço a que têm acesso. Muitas vezes, as casas têm apenas
dois cômodos que são divididos pelos membros do grupo: ali se têm os espaços destinados
para cozinhar, para dormir, e também para assistir a televisão – em geral emprestada pelo
fazendeiro ou algum morador da fazenda.
Em uma das visitas a um alojamento, no qual entrevistei alguns trabalhadores, pude
observar que uma casa de dois cômodos foi compartilhada por um grupo de oito pessoas. Em
cada cômodo se instalavam quatro deles, em dois beliches com colchões à mostra, bastante
velhos e sujos. No mesmo espaço havia também uma geladeira velha, deixada ali pelo
proprietário para uso dos trabalhadores e também um fogareiro a gás, de duas bocas em cima
de alguns tijolos a uns cinqüenta centímetros do chão onde preparavam os alimentos. Chamou
a atenção as condições em que se encontrava este cômodo. Nos beliches além dos colchões
sujos, sem lençóis ou outro tipo de cobertura, havia também bolsas de viagem penduradas,
bonés e peças de roupas espalhadas. No fogareiro duas panelas, onde se percebia que havia
alimento, contudo, as tampas das panelas estavam repletas de poeira36, também, havia uma ou
duas colheres. No chão, ao lado do fogareiro, via-se, ainda, uma terceira panela,
aparentemente com alimento, e uma caixa de papelão contendo alguns produtos como óleo de
soja, arroz, café, açúcar e feijão. Percebia-se, facilmente, que as condições de higiene eram
complicadas. Não havia uma pia para lavar os utensílios utilizados, o que se tinha era uma
pequena estrutura de madeira montada para se colocar os utensílios de cozinha do lado de fora
do cômodo, onde não se via um aparador para a água como uma pia, por exemplo, então ao
utilizar a água da torneira, a pessoa tinha que inclinar o corpo para frente, para não se molhar
com a água que caía, enquanto realizava a limpeza de algum vasilhame.
35 Há informações de que no ano 2008 alguns trabalhadores chegavam a dispor de R$ 200,00 mensais para terem acesso às refeições principais: almoço e jantar. 36 Esta visita foi realizada no mês de julho de 2005, mês que as chuvas já cessaram, e o que marca o tempo na região são os fortes ventos repletos de uma poeira vermelha que vão até o final do mês de agosto.
102
Outros alojamentos foram visitados, mas em nenhum outro se observou tamanha
precariedade, embora não fosse também um exemplo a ser seguido em termos de conforto ou
de higiene, assim como em divisão do espaço.
Observa-se que os trabalhadores vindos de outras regiões do Brasil para a colheita do
café negociam diversos aspectos de seu trabalho, como: preço das medidas de café colhido;
alguns discutem uma parte ou a totalidade da passagem de volta; a antecipação de recursos
para ser enviado para a família na Bahia; dentre outros. Mas “aceitam” ou aprenderam a lidar
com essa situação provisória dos alojamentos das propriedades, talvez pela clareza de sua
brevidade, ou a expectativa de que na próxima fazenda seja um pouco melhor.
Contudo, por certo que o aspecto da condição temporária, com o prazo para findar, e
um objetivo prático de aumento da renda são fatores a serem considerados por esses sujeitos
para se submeterem às condições dos alojamentos. Esta discussão pode ser ampliada para se
pensar outras questões, como aquelas apresentadas nos estudos de Sayad em que os
provisórios alojamentos eram destinados a trabalhadores provisórios, imigrantes pobres aos
quais eram designadas moradias pobres37, onde se tem o espaço de moradia representando ou
expressando, em parte, como estes trabalhadores são vistos e compreendidos por
determinados grupos sociais.
Entre alguns entrevistados, a questão do alojamento apareceu com diversas
conotações, como o local onde as relações estão mais próximas, como o ambiente onde
deveria haver um mínimo de organização, dentre outros elementos que remetem a pensar no
alojamento como o espaço em que não se realiza somente as tarefas individuais, a higiene
corporal, o descanso após o dia de trabalho, mas as relações também devem estar
minimamente organizadas. Ao ser questionado sobre como eram os alojamentos que tinha
conhecido, o senhor Jailson respondeu:
Alguns é até assim organizado. É só um vão só, um espaço, só as beliche de madeira, os colchão são bom, tem uns que são novo. Esse que eu tava tinha cerâmica, era bem organizado, mas só que era muita gente, aí uns chegava com a botina suja e entrava, o banheiro era só lama. Ninguém limpa. Teve um dia lá, que eu limpava, aí eu digo: ‘oh, vamo combiná uma coisa: cada dia, fica revezando, um limpa um dia, outro limpa outro dia’. Aí foi assim, aí nós mantinha bem organizadinho o banheiro, limpinho. Mas antes, tava, era só lama só.38
37 SAYAD, Abdelmalek. L’immigration ou les paradoxes de l’alterité. Paris: Raisons D’Agir Éditions, 2006. p. 87. 38 Depoimento do senhor Jailson Araújo, 22 anos, em entrevista realizada no dia 22 de julho de 2007, numa tarde quente de domingo na residência de seus pais.
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A pesquisa permitiu perceber que, normalmente, quando o grupo de trabalhadores, nos
alojamentos das propriedades, possui muitos indivíduos, costumam se dividir formando
duplas, trios ou quartetos, tanto para realizarem as tarefas na lavoura quanto para dividirem as
despesas de manutenção e para efetuarem as tarefas de cozinhar e organizar o alojamento, ou
parte dele, especialmente a área que se destina às camas e o banheiro. Durante as visitas a
alguns alojamentos, pode-se observar uma certa hierarquia: em geral, o “chefe” de turma, o
responsável pelo grupo, também se encarregava de dividir as tarefas e é o primeiro a escolher
a atividade que executará em prol do conjunto – usualmente, pude notar que se escolhe a que
tem mais facilidade para desempenhar ou a que lhe agrade mais – designando aos demais o
restante das atividades. Entre as tarefas que são divididas estão: cozinhar; fazer o café de
manhã; lavar a louça; fazer a limpeza do banheiro, limpar os quartos ou o alojamento de modo
geral.
No tocante a divisão das tarefas, revelou Gilson em seu depoimento: “Um cozinha,
outro dia é outro. Quando um não cozinha, às vezes chia, né. Aí vai levando a vida, uns faz
uma coisa, outros faz outra. E o tempo vai passando, né. A gente se ajuda né, senão vira
bagunça mesmo”39.
Ao que parece, tenta-se uma forma de revezamento, podendo ser diária ou semanal.
Mas de acordo com o entrevistado, parece não funcionar em alguns casos. Importa destacar
que, por mais que alguma pessoa sinta dificuldade com esta ou aquela tarefa, a preocupação é
não deixar a vida de todos virar uma bagunça, em meio à precariedade das instalações. O
depoimento do senhor Genivaldo também contribui para esta questão:
Cada um tem o seu serviço. Um cozinha o feijão, outro faz o arroz, outro macarrão, o café assim é eu que faço. Todo dia cedo eu que acordo e faço o café. Cada um é escalado, ninguém nem fala eu vou fazer isso, não, cada um faz. Eu mesmo, meu serviço é fazer o café cedinho, acordo cinco e meia, mas também chego em casa tomei banho já vou logo me deitando, eles que se virem com a janta40.
A perspectiva da divisão das tarefas parece ser ainda a melhor forma de garantir que
todos no grupo dêem a sua contribuição para a manutenção de uma certa ordem interna, onde
nem um nem outro se sinta prejudicado. Embora tenha percebido, como no caso do senhor
39 Depoimento de Gilson Ferreira, 19 anos, coletado no alojamento da fazenda onde trabalhava, no dia 14 de agosto de 2005. 40 Depoimento do senhor Genivaldo Santos, 24 anos, na tarde de sábado, 15 de julho de 2006 no alojamento onde ele e seu grupo estavam instalados em uma fazenda do Triângulo Mineiro. O senhor Genivaldo é também um dos “chefes” de grupo; com ele havia mais cinco trabalhadores dividindo o alojamento que era uma pequena casa com dois quartos onde contavam com alguns equipamentos, como um velho fogão, um rádio e uma televisão emprestados pelo fazendeiro.
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Genivaldo, que é “chefe” do grupo, que este escolhe a primeira tarefa distribuindo as demais
aos outros membros.
Um outro aspecto a ser observado refere-se à questão da alimentação preparada pelos
trabalhadores no interior do alojamento. Nesta direção, principalmente entre os trabalhadores
que cozinham o próprio alimento (o que não ocorre nas fazendas onde se tem as cantinas,
oferecendo-se o café da manhã, o almoço e o jantar todos os dias da semana), observa-se uma
série de tentativas de acordos41 que procuram organizar o preparo das refeições. Na maioria
dos casos, os trabalhadores que estão em grupo preferem comprar parte dos produtos em
conjunto, dividindo ao final o valor da despesa, assim como preferem cozinhar os alimentos
para o grupo dividindo entre si esta tarefa. Há acordos para se estabelecer o quê e a
quantidade do que será comprado para a semana. Para realizar a compra, em geral, todos os
trabalhadores se dirigem para o comércio mais próximo, normalmente uma pequena venda,
embora apenas um deles vá efetivamente realizar a compra semanal, os demais adquirem
produtos considerados individuais, mas ir até o comércio local, parece possuir outros
significados, conforme será tratado posteriormente.
Entre os principais produtos adquiridos para esses trabalhadores estão: “feijão, arroz,
açúcar, café, carne, tempero”, conforme narrou o senhor Simeão em seu depoimento42.
O senhor Laurêncio, quando indagado acerca do consumo e da compra de
mantimentos revela que:
Todos compram junto o básico, e aí quem quiser um doce, uma bolacha, é individual. Junto é o arroz, feijão, uma carne, óleo, tudo, só não compra as bolacha, essas coisa de comer, da gente merendar assim. Isso é separado. Aí quando a gente vai pensar, gasta mais do que a conta que a gente tá comendo feijão, por que esse é mais barato, é.43
Parece haver a compreensão, um consenso entre os trabalhadores de que se procura
adquirir parte dos produtos, possivelmente como forma de minimizar os gastos e as perdas
que seriam provocados pelo manuseio de infindáveis pequenas quantidades por cada uma
daquelas pessoas, mas há também alguns produtos que são considerados opção e escolha de
cada sujeito, deixando claro que cada um também pode ter suas opções e preferências e que a
41 Há casos em que os trabalhadores “contratam” uma mulher, moradora da fazenda onde estão alojados para cozinhar e lavar as roupas. Quando isto ocorre, os trabalhadores realizam as compras, mas entregam os mantimentos à pessoa encarregada de preparar a alimentação, pagando um valor acordado pelo serviço. 42 Depoimento do senhor Simeão Barbosa, 43 anos, coletado no dia 22 de julho de 2007 na residência de seu pai, senhor José Barbosa, em Horizonte Novo-BA. 43 Depoimento do senhor Laurêncio Silva, 34 anos, coletado na manhã de domingo 14 de agosto de 2005 no alojamento da fazenda onde trabalhava.
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perspectiva de grupo prevalece em alguns momentos, num movimento que se procura
respeitar as individualidades.
Na mesma perspectiva, o depoimento do senhor Jailson, a respeito da forma como
tratam, nos alojamentos, a questão das compras também apresenta a divisão que se faz entre o
que se pensa enquanto produtos para o grupo e o que se compra de ordem pessoal, ao
observar que:
É só, a gente pega sempre individual é só coisa assim mais pessoal, né, como pasta de dente, sabonete, xampu, essas coisas, e o que a gente compra junto é feijão, a carne, assim, mais de alimentação.44
Como se observa são pensados para o coletivo os produtos básicos para a alimentação
cotidiana na lida nas colheitas nas lavouras de café. Produtos de higiene pessoal, bem como os
doces, bolachas e, também, as bebidas como cachaça, cerveja ou refrigerantes, em geral
consumidos na própria venda, são pagos individualmente. Destas bebidas, apenas a cachaça é
levada para o alojamento, e é consumida durante a semana. Nesse sentido, o depoimento de
Jailson mais uma vez revela: “Eu não sou muito assim de beber não, mas meus colegas
chegou da roça já, eles faz compra nos domingo, aí já traz dois, três litro de 51, pra passar a
semana não pode faltar não. Aí quando chega da roça aí já vai lá e já toma”45.
A cachaça, quando consumida em pequena quantidade (numa dimensão que interessa
para este estudo), parece compor parte das estratégias de alguns desses trabalhadores para
lidar com o desgaste causado pelo trabalho, e também é considerada uma forma de amenizar a
distância de casa. A bebida alcoólica entre diferentes e variados grupos de trabalhadores, no
meio urbano e mesmo no meio rural, é pensada, por um lado, como uma forma de driblar as
agruras do trabalho e, por outro, como um problema que gera o absenteísmo e a queda na
produtividade. No caso dos trabalhadores aqui pesquisados, tem-se a bebida como uma forma
de, também, se livrar da saudade, das dores no corpo provocadas pelo esforço do trabalho,
forma de sociabilidade ou de prática social e, ainda, como uma forma de “ganhar” coragem
para expressar o que pensa sobre determinado acontecimento, o que nem sempre termina de
maneira amistosa.
Ao longo da pesquisa encontrei referências ao consumo exagerado de álcool nos
alojamentos, e aos problemas advindos dessa prática. Nessa direção, os apontamentos do
senhor Jailson, a seguir, dão conta que:
44 Depoimento do senhor Jailson Araújo, 22 anos, em entrevista realizada no dia 22 de julho de 2007, numa tarde quente de domingo na residência de seus pais. 45 Idem.
106
Tem pessoas que aí quando chega da roça aí já vai lá e já toma. Aí passa da conta, bebe demais, começa, começa a falar demais. Ás vezes a gente acaba acalmando né, a gente dá conselho e tudo. Nessa fazenda que eu fui, tinha cachaça, mas os cara bebia era controlado, ninguém bebia pra exagerar não.46
É importante notar que o álcool é uma constante nos alojamentos, não sendo proibido
por proprietários, gerentes ou mesmo pelos “chefes” de turma. Não há registros de proibições
nas fazendas e alojamentos visitados ou mesmo mencionados pelos trabalhadores; ao
contrário, observa-se que alguns fazendeiros ou gerentes passam alguns momentos, do final
da tarde, nos alojamentos bebendo e conversando com os trabalhadores o que também pode
significar uma forma de controle, sociabilidade, preocupação, dentre outros. O controle e
disciplina desses trabalhadores rurais não aparecem de forma muito contundente e
formalizada nos alojamentos pesquisados. O que se percebe é que entre os membros do
próprio grupo de trabalhadores no alojamento, alguns valores e comportamentos são
considerados importantes, como o consumo excessivo de álcool, o que pode acarretar em
maior ou menor respeito por parte dos que acabaram de chegar, delineando, aos olhos das
demais pessoas próximas, uma forma de vê-los, normalmente estendida à população local e
mesmo para os fazendeiros e gerentes. Em geral pude observar um grupo de homens, vindos
de localidades distantes, com hábitos e maneiras de ser próprios, que procuram instalar-se,
preparar suas refeições, processar o trato de seus corpos, de suas preferências, mas também de
auferirem algum recurso para suas demandas, seus sonhos, suas famílias distantes.
Esses sujeitos, que passaram algum tempo alojados, na maioria dos casos, em
precárias construções improvisadas, teceram lógicas e encaminhamentos para gerenciar as
próprias diferenças internas, e ainda assim compor uma forma de serem vistos enquanto
trabalham. Nessa condição, tem-se que “todos são olhados pelos guardas que não usam armas
e são, geralmente, escolhidos dentre os próprios trabalhadores”47, alguns mais, outros menos
preocupados com a forma como são compreendidos pelos demais membros daquele local, é
possível pensar que os trabalhadores baianos mais experientes, com mais viagens às
propriedades mineiras tenham conseguido compreender a forma como são percebidos e
passam aos colegas de alojamentos suas observações. Tem-se ainda, de acordo com Silva, que
nos espaços dos alojamentos uma série de regras e normas são instituídas e que “este conjunto
46 Depoimento do senhor Jailson Araújo, 22 anos, em entrevista realizada no dia 22 de julho de 2007, numa tarde quente de domingo na residência de seus pais. 47 SILVA, Maria Aparecida de Moraes. Errantes do fim do século. São Paulo: UNESP, 1999. p 243.
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de proibições destina-se a corrigir as condutas destes homens saídos de lugares onde os
hábitos e costumes são totalmente diferentes” 48.
No caso dos trabalhadores pesquisados na lavoura de café no Cerrado Mineiro o
recrutamento, assim como o estabelecimento destes trabalhadores nos alojamentos da própria
fazenda, constitui-se em uma forma de manter o grupo de trabalhadores sob o olhar do
fazendeiro ou de seus comandados, à medida que com os trabalhadores rurais recrutados nas
cidades da região, esse controle não podia ser efetivado fora do seu horário de trabalho.
Acrescenta-se o fato de que, no caso dos trabalhadores de fora, alojados nas propriedades
mineiras, o espaço do trabalho e o espaço da “casa” não se distinguem sendo o segundo a
extensão do primeiro e vice-versa, onde as relações que se estabeleceriam apenas no âmbito
do trabalho se estendem para dentro do alojamento como a presença e atuação do “chefe” de
turma ou mesmo dos gerentes, como a divisão das tarefas domésticas por duplas.
De algum modo, a convivência, assim como as práticas, o gerenciamento dos hábitos,
a negociação das diferenças no alojamento, marcam a maioria das relações amistosas entre
seus membros, e por extensão, influem no bom desempenho das atividades. Se não houver
discussões ou brigas entre os trabalhadores, as tarefas do alojamento são mais facilmente
divididas, a preparação dos alimentos, a divisão das despesas, o compartilhamento das
saudades, das dores advindas do trabalho, dentre outras questões, também se dá de forma
menos conflituosa o que implica acordos no grupo que favorecem o dia-a-dia das atividades
da colheita.
Pode-se dimensionar que parte das relações que estes sujeitos estabelecem nos
alojamentos das lavouras de café tem início ainda em suas regiões de origem nos bares, nos
comércios, nos jogos de futebol, na feira, em seu cotidiano, onde se permite que saibam quem
está “de pensamento ir trabalhar no café”. Assim, alguns já habituados aos trabalhos
convidam aqueles que acreditam ser um “bom trabalhador” e um bom companheiro para
conviver durante alguns meses. Embora haja os trabalhadores que viajam sozinhos, sem
grupos e sem lugar certo para trabalhar, em geral, a formação de grupos ainda no local de
origem é o que predomina, esta formação do grupo requer alguns critérios, tanto para os
considerados “chefes”49 de turma como para aqueles que vão compor estas equipes.
É, vai os grupos, vai os grupo de gente aí que, ai vai eles. Aí quando chega agora cada quem tem sua fazenda de ir pra lá, né? Esses que vai,
48 SILVA, Maria Aparecida de Moraes. Errantes do fim do século. São Paulo: UNESP, 1999. p 243. 49 Os trabalhadores que arregimentam os grupos no local de origem não serão aqui chamados agenciadores ou aliciadores por possuírem características um tanto diferenciadas dos agenciadores clássicos presentes nestas relações de trabalho conforme será tratado adiante.
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chega lá, certo na fazenda, fica aquela pessoa, já responsável pra trazer o pessoal, né? Aí no tempo liga pra lá, e tal.50
Conforme afirma o entrevistado, há uma pessoa que se encarrega de manter o contato
com os fazendeiros da região na tentativa de assegurar um local para se instalar e trabalhar
nos anos seguintes.
Alguns entrevistados apontam os aspectos da boa convivência como fator para se obter
sucesso na viagem e critério para se escolher os membros do grupo com os quais viajará no
ano seguinte e, nesta direção, aponta o depoimento do senhor Eugênio que se encarrega de
sempre formar um grupo de trabalhadores.
É, sempre tem as pessoa, num é todo mundo que a gente pode andar, né? Tem gente que a gente escolhe e, prefere num trazer, e certo tipo de gente, que... Aí eu tenho que vê se ele é um cara bom, um cara que anda direito, pra num chegar e num fazer vergonha. Fazer vergonha aí maltrata todo mundo né?51
O entrevistado apresenta valores que lhe são muito caros enquanto “chefe”, pois ele
exerce o papel de mediador entre o empregador e os trabalhadores dialogando acerca dos
interesses de seu grupo. Portanto, o seu grupo não pode ser de pessoas estranhas ao seu
conhecimento, assim, ele prefere não trazer consigo “determinadas” pessoas que não sejam de
seu agrado. Tem-se aqui um juízo de valor do entrevistado que escolhe aqueles que ele julga
melhor para trabalhar em sua equipe. Os critérios podem ser subjetivos e depender do que
cada “chefe” ou trabalhador entende como valor e moral: “eu tenho que ver se ele é um cara
bom, um cara que anda direito”. Em que implicaria a falta destas características morais para o
grupo? Pelo depoimento citado, pode-se observar que, embora os critérios para escolha dos
trabalhadores pareçam subjetivos, os resultados de uma escolha não muito boa podem
acarretar em prejuízos objetivos como “fazer vergonha”. Em que implicaria esse “fazer
vergonha”? Pode-se pensar que há uma complexa avaliação por parte do “chefe” de turma,
onde é ponderado não somente se o trabalhador é bom ou não na atividade que vai
desempenhar, como também se é alguém de fácil convivência, se reclama muito, se é um
consumidor de bebida alcoólica a ponto de prejudicar o desempenho no trabalho, se é uma
pessoa que briga muito, que “arranja” confusão, se é um bom pagador de suas dívidas entre
outros. Estes são quesitos considerados importantes para o “chefe” de turma porque de algum
50 Depoimento do senhor Rufino Estêvão de Jesus, 49 anos, em entrevista realizada em sua residência em Horizonte Novo, na manhã de sábado 21 de julho de 2007, onde ele estava com sua mulher, a senhora Valdina de Lima. 51 Depoimento do senhor Eugênio Amador, 30 anos, em entrevista realizada no alojamento onde se instalava no dia 14 de agosto de 2005.
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modo são relevantes também para os empregadores. Caso algum trabalhador apresente
características que venham prejudicar seu desempenho no trabalho ou na convivência com a
equipe, ele acaba sendo rejeitado pelo empregador, pelo “chefe” de turma e mesmo dentro do
grupo nas próximas viagens.
Pude observar que os trabalhadores não são pensados ou vistos como sujeitos isolados,
indivíduos responsáveis por suas ações, mas são vistos como parte de um conjunto. Caso
algum deles venha cometer algum “deslize” em relação ao trabalho ou à convivência com os
demais faz com que todos os membros da equipe passe a ser avaliado e percebido de uma
outra forma por fazendeiros e também por trabalhadores de outros grupos. Talvez por esta
razão o entrevistado revele que se “fazer vergonha aí maltrata todo mundo”, no sentido de
ofender e prejudicar o grupo ao qual ele pertence e, vale dizer, que pode ser estendido aos
“migrantes” de um modo geral, aos “baianos”, como são chamados na região.
Ainda para compreender a formação das equipes, o senhor Eugênio oferece em sua
narrativa outro critério para a escolha dos trabalhadores:
Eu só chamo quem já andou mais pra cá. Quem já veio. Tem gente que nunca veio eu não me interesso não, porque chega aqui fica culpando, que é a gente mesmo que traz. ‘Ah, foi me trazer pra cá, não sei o que’. Agora o pessoal que já sabe não tem nem o que dizer mais, né, vem porque quer.52
O fato de possuir alguma experiência em anos anteriores na colheita de café é
importante no momento de escolha dos trabalhadores que formarão os grupos. Se por um lado
se avalia o trabalhador, por outro, avalia-se também o próprio trabalho. Sabe-se que é uma
atividade difícil e que as condições de permanência na região não são fáceis, por isso, trazer
quem já conhece pode oferecer alguma vantagem na medida em que estes não reclamarão das
instalações nas fazendas e nem das tarefas a serem executadas, pois conforme se apresenta em
alguns depoimentos o primeiro ano de trabalho, a primeira viagem, é sempre marcada pela
dificuldade de adaptação em relação às atividades, às condições de alojamento, à convivência
com o grupo, entre outras dificuldades.
Parece acontecer um “ritual de passagem” a partir do momento em que se realiza a
viagem. Para os que ainda não o fizeram é um momento de expectativas, e talvez por isso, de
frustrações e reclamações principalmente para o “chefe” de turma. Para aqueles que já o
fizeram é uma escolha: já se conhece o trabalho e tudo o que ele envolve. Talvez por essa
52 Depoimento do senhor Eugênio Amador, 30 anos, em entrevista realizada no alojamento onde se instalava no dia 14 de agosto de 2005.
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razão o depoente explicite que “o pessoal que já sabe não tem nem o que dizer mais, né, vem
porque quer”. Mesmo considerando todos esses elementos parece não ser uma tarefa fácil
para aqueles que se encarregam de formar as equipes de trabalhadores, como argumenta o
senhor Eugênio:
Trago direto a turma, né? Seis, sete, oito. Nem sempre é fácil de arrumar e é difícil porque quem está fazendo alguma coisa num quer vim, né? E o que está ganhando às vez menos, num interessa vim pra ganhar alguma coisa que é mais rápido também né? Trabalhar menos tempo e vai embora mais cedo também...53
Pode-se observar que a viagem é uma opção para aqueles que se aventuram mas, há
também aqueles que não deixam sua região pois de acordo com o depoente quem está
realizando alguma atividade rentável não a deixa para trabalhar no café, e quem tem alguma
renda, ainda que pouca, prefere ficar em seu local de origem a passar por toda a dificuldade
que envolve sair de casa e retornar após um período ainda que seja curto, por isso, a
dificuldade em formas as equipes de trabalho.
A formação dos grupos de trabalhadores aparece de diferentes maneiras nos
depoimentos. Embora a maioria apresente argumentos fortes em relação às vantagens de se
trabalhar com um “bom” grupo ou pessoas conhecidas, há casos em que esse processo de
formação não se dá por uma pré-escolha do trabalhador. Alguns trabalhadores não têm grupo
fixo, muitas vezes ele não escolhe com quem irá viajar ou ficar alojado, principalmente, nos
casos em que estes trabalhadores não se adaptam em determinada fazenda e precisam mudar-
se para outra onde já se encontram grupos estabelecidos e, aquele que chega, deve se adequar
ao já formado. Nesse sentido, o senhor Tito afirmou em seu depoimento:
Só uma vez levei turma, aí não levei mais porque, às vez começa ganhar pouco na fazenda e aí eu não posso sair sozinho, tem que ficar mais os outros. E eu indo só, se eu vê que não deu certo, não tem porque esperar, né. Não tem porque esperar. E a pessoa levando uma turminha a gente tem que ficar junto com eles, né. Se não der certo naquela fazenda a pessoa tem que correr atrás de outra ate dar certo pra turma.54
O entrevistado revela uma compreensão diferenciada em que o trabalhador não pode
permanecer “fixo” a um determinado grupo. A sua experiência de onze anos viajando para as
lavouras do Cerrado Mineiro o faz pensar que encarregar-se de levar turma, ou mesmo de
53 Depoimento do senhor Eugênio Amador, 30 anos, em entrevista realizada no alojamento onde se instalava no dia 14 de agosto de 2005. 54 Depoimento do senhor Tito de Jesus, 31 anos, coletado em 06 de agosto de 2006, em sua residência na área rural de Monte Santo-BA.
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permanecer ligado a um único grupo, pode prejudicá-lo nas escolhas das fazendas para
trabalhar ou mesmo impedi-lo de sair de uma determinada fazenda quando acreditar não estar
ganhando o suficiente.
Outro entrevistado, ao ser questionado sobre a sua inserção nos grupos de trabalho,
respondeu:
Na maioria das vezes não tenho grupo não, porque esse ano mesmo, num tive escolha assim, de escolher grupo porque num tinha lugar certo pra ir. E a gente está muito a fim de trabalhar muito, né, a gente num tem assim como escolher. Mas, para o ano eu já tenho assim, um lugar quase certo pra ir trabalhar55.
Embora ele manifeste que possivelmente já tenha a fazenda para onde ir no próximo
ano – a última onde trabalhou em 2007 –, isto não significa que os demais que estavam com
ele retornarão para o mesmo lugar ou que ele já tenha um grupo formado para a sua próxima
viagem. Em geral, avalia-se o trabalho, a equipe e a(s) fazenda(s) onde atuaram no ano que
passou para vislumbrar o próximo ano de trabalho. Assim os grupos podem ser reformulados,
mas o que se tem observado é que os grupos mudam muito pouco e muitos deles são
formados por laços de parentesco, embora os de amizade também apareçam em grande
número. É procurando evitar conflitos, divergências e outros tipos de problemas que os
trabalhadores buscam permanecer em grupos em que haja alguma afinidade e empatia mesmo
que isto signifique ficar longe de irmãos e outros parentes, uma vez que o período de
convivência é considerado longo e os conflitos devem ser os mínimos possíveis. Ao mesmo
tempo, há uma forma de organização dentro do grupo que é facilitado pela boa convivência
entre seus membros. Esta boa convivência em parte também é mediada pelo “chefe” da turma.
Em geral, é na atmosfera das precárias condições de trabalho e alojamento que estes
grupos organizam as suas tarefas diárias. Os trabalhadores são levados a prepararem o
alimento no período noturno, e o jantar é feito de forma a ser também o suficiente para o
almoço do dia seguinte. Nesse sentido, e sobre o revezamento das tarefas, Jailson dá o
seguinte depoimento: “Pra cozinhar, a gente só cozinhava mesmo a noite, porque a gente sai
bem cedo, né? Aí eu cozinhava um dia, outro dia era meu colega. Cozinha a noite o da janta e
do almoço”56. Quando o talhão onde estão trabalhando é longe do alojamento, os
trabalhadores levam para a roça, cada um a sua marmita, para o almoço. Em geral, observa-se
que esses trabalhadores preferem despender um pouco mais de tempo de trabalho e irem até o
55 Depoimento do senhor Jailson Araújo, 22 anos, em entrevista realizada no dia 22 de julho de 2007, numa tarde quente de domingo na residência de seus pais. 56 Idem.
112
alojamento, onde podem aquecer o seu alimento e saboreá-lo, com mais prazer e, comparado
com as condições das plantas ao ar livre, na precariedade dos alojamentos, ficar com um
mínimo de conforto.
Sobre o preparo do alimento, para o consumo no dia seguinte, muitas vezes frio,
devido à distância entre a localização da roça e o alojamento, o entrevistado revela:
Esses dias que a gente tava trabalhando pertinho a gente vinha comer aqui. Aí esquentava. Agora quando leva, aí fica ruim demais. Aqui comida fria, né, é embaçada demais, o cara chega do trabalho, o cara comeu de meio-dia, vai comer comida fria, fica embaçado demais, da queimoso demais. Aqui todo mundo dá um queimoso arretado aqui. É, a comida é arroz, feijão, carne, macarrão...57
Numa dimensão que amplia a perspectiva da alimentação, apenas para ficar vivo, as
palavras do entrevistado apontam para a questão do paladar. Nesse sentido, o distanciamento
da lida nas colheitas e do alojamento, parece implicar num conjunto de refeições em que
escapam o sabor e o prazer de alimentar-se nessas condições. Pode se apontar que as palavras
do entrevistado permitem pensar que essas refeições parecem diferentes daquelas que estão
habituados a comer nas suas casas. A preferência pela alimentação aquecida destaca-se, e a
narrativa do entrevistado apresenta outras particularidades, como o fato de que o alimento frio
é o responsável por causar-lhes possíveis problemas de “queimação” no estômago, azia,
conforme o trecho destacado.
O depoimento do senhor Jailson, quando indagado acerca de outros elementos da
refeição, responde que com os seus colegas de trabalho, preparavam um alimento, e que as
vezes:
Sai horrível a comida [risos]. É dá pra [movimenta a cabeça, numa proposição afirmativa, como quem diz que é possível se alimentar] [...] Aí tem pessoa assim que nem uns rapaz ‘eu nunca cozinhei’, a gente ensina, ‘é assim, assim’, dá as dica vai. Aí é arroz duro, feijão fica duro, outro põe sal demais, outros põe sal nenhum [risos] Eu esquecia do sal falava assim os cara: ‘o arroz tá sem sal, toda vez que você cozinha o arroz, você deixa sem sal’. Sempre acabava esquecendo alguma coisa. Eh, em alguns ponto assim é divertido, a gente se diverte muito. Quando a gente tá assim num grupo legal, que tem grupos que né, num é muito bom, que lidar com pessoas assim, é difícil né, é complicado, a pessoa lidar com muita gente assim, uns concorda com uma coisa, outros já tem outro pensamento.58
57 Depoimento de Gilson Ferreira, 19 anos, coletado no alojamento da fazenda onde trabalhava, no dia 14 de agosto de 2005. 58 Depoimento do senhor Jailson Araújo, 22 anos, em entrevista realizada no dia 22 de julho de 2007, numa tarde quente de domingo na residência de seus pais.
113
Para além das questões referentes à divisão do trabalho no alojamento, ao que se refere
à qualidade do alimento que consomem, observa-se que há uma certa tolerância pelo alimento
mal cozido ou que não tenha ficado do agrado, o que revela, talvez, um nível de exigência,
que nesta situação específica, parece moderado. Outro elemento marcante no depoimento do
entrevistado é a sua perspectiva de grupo. Diante das dificuldades vividas, aponta que se o
grupo de trabalhadores possui uma certa sintonia, isso ameniza as dificuldades no sentido de
levar o grupo a conviver com as duras condições de maneira mais leve ou “divertindo-se”
com os acontecimentos que, de alguma forma, desagradam, o que remete a pensar numa rede
de sociabilidade em que “a vida cotidiana assume significados e sentidos para além das
condições espoliativas de trabalho e moradia”59.
Desse modo, ao se formar ou compor uma equipe de trabalho, parece que esse grupo
de trabalhadores baianos tem a preocupação em pensar como será a convivência dos sujeitos
no ambiente do alojamento, o que remete a pensar que as relações pessoais são levadas em
consideração no momento do deslocamento para a colheita do café no Cerrado Mineiro. Pois,
havendo uma maior dificuldade de permanecer no mesmo espaço, com pessoas com as quais
não se tem o mínimo de afinidade, as demais tarefas e encargos relativos às lidas na colheita,
a dificuldade com a distância da família, com a ausência dos elementos da cultura do grupo,
dentre outros, podem ser fatores a mais compondo negativamente no desempenho pessoal e,
conseqüentemente, no ganho final da colheita.
O depoimento do senhor Rufino oferece alguns elementos para pensar as relações que
se estabelecem nos alojamentos, assim como os valores ali presentes:
Aí tinha um cara que ele era desses, que não queria fazer nada, queria depois que a comida pronta, ele chegava logo, e logo ele fazia o prato dele. Aí, nós não tinha fogão, era na lenha, lá fora lá. Nós fazia comida, quando chegava ele entrava no banheiro pra tomar banho era uma hora e tanto, duas hora. Quando saía era só no creme, e perfume, só o cheiro do danado deixava nós doido de pedra dentro do barraco60 [risos]. É porque cheiro é bom, né. Mas a gente, na hora de fazer comida, assim peão, tá tudo junto assim, soltano aquele perfume mais brabo do mundo ali. E dentro de casa nós se labutano. “Pra quê esse negócio, aqui num tem mulher não!” Ficava abusando com ele, lá, né.61
59 MENEZES, Marilda Aparecida de. Redes e enredos nas trilhas dos migrantes: um estudo de caso de famílias de camponeses-migrantes. Rio de Janeiro: Relume Dumará; João Pessoa: EDUFPB, 2002. p. 157. 60 Em vários momentos dos depoimentos, do senhor Rufino, do senhor Jailson e outros, a expressão barraco aparece para designar o local de alojamento dos trabalhadores em diferentes fazendas. O termo é bastante utilizado na linguagem dos fazendeiros e também dos trabalhadores; tal denominação ocorre também pela precariedade em que se instalam estes trabalhadores. 61 Depoimento do senhor Rufino Estêvão de Jesus, 49 anos, em entrevista realizada em sua residência em Horizonte Novo, na manhã de sábado 21 de julho de 2007, onde ele estava com sua mulher, a senhora Valdina de Lima.
114
O entrevistado, com suas palavras, registra um comportamento que parece fugir do
padrão, pois um de seus companheiros de trabalho insistia em não participar da divisão das
tarefas, era destes que não querem fazer nada, que queria tudo pronto, mesmo com toda a
dificuldade que os demais trabalhadores enfrentavam tendo que cozinhar no fogão a lenha,
fora do alojamento.
Em geral, os poucos comportamentos que parecem não se adequar a um certo padrão
entre os trabalhadores é logo tomado como discrepância e, no caso citado pelo depoente,
parece estar mal situado. As tarefas devem ser compartilhadas, de modo a não pesar mais
sobre essa ou aquela pessoa, mesmo com as deficiências e dificuldades de cada um. Na
mesma direção, parece haver no alojamento marcas importantes da forma de proceder na
questão pessoal. No “barraco”, entre os trabalhadores, conforme registrou o entrevistado, não
se tem a presença feminina, então, aparentemente, não há razão para o uso exagerado de
perfumes e cremes, principalmente no momento em que todos se juntam para executar as
tarefas de limpeza ou mesmo de cozer os alimentos. Aparentemente, tem-se aí, estabelecidos,
alguns dos valores do mundo masculino, ou ao menos o que é concebido enquanto tal, por
estes trabalhadores no espaço do trabalho.
Com a pesquisa observou-se, em muitos momentos, a tentativa de se estabelecer um
bom ambiente, marcado pela sociabilidade entre os membros do grupo de trabalho,
principalmente quando se encontram nos alojamentos. Desse modo, mesmo quando as
atitudes de alguns são consideradas desabonadoras ou que não expressam o que pensa o
grupo, tem-se ações que parecem minorar o acontecido, normalmente por meio de
brincadeiras e chacotas iniciais, e em seguida, por intermédio de conversas mais sérias, sem
rodeios. Contudo, mesmo nesta tentativa de manter uma certa harmonia no grupo, há
registros, entre os trabalhadores de uma série de conflitos que podem ser materializados em
violência física, palavrões e xingamentos ou de estranhamentos que podem se dar no âmbito
dos valores e dos significados para cada um.
Em alguns casos os conflitos passam por valores defendidos ou entendidos pelos
trabalhadores conforme narra o senhor Jailson em seu depoimento:
Outros tem assim muita usura, você tirar assim uma diária assim de cem, cento e trinta. Aí tem outros que tira mais baixo, aí fica só perguntando: ‘quanto foi que você tirou, quanto foi que você tirou?’ E tem confusões também no barraco. Uns bebe cachaça, ih. Esse ano mesmo eu tive num
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barraco lá de um colega meu, eles ainda pegaram faca ainda [risos] pra brigar, aí foi que nós, tirou. Então tem tudo isso aí.62
Chama a atenção, neste trecho do depoimento, a questão do desrespeito de alguns
valores que parecem caros, à maioria dos entrevistados. Ao que parece, a condição de
trabalhador que aufere maior ou menor ganho, nas mãos de uns poucos, serviu de usura, por
parte de alguns, que procuraram encetar uma forma de menosprezo com aquele trabalhador
que ganhou menos no mesmo dia de trabalho. Pode se pensar que esse aspecto está
relacionado ao fato de haver uma certa competição, entre os trabalhadores do mesmo grupo,
pautada na disputa para ver quem colhe mais café em um dia, e assim, obter maior
remuneração diária. Um outro aspecto a ser considerado, pode ser a questão da vigilância de
uns sobre outros, que muitas vezes possuem grau de parentesco próximo e, por isso, o valor
conquistado por cada um pode ter interesse até mesmo no sentido de preservação das famílias.
Nesse sentido, há interesse em saber se o que o trabalhador ganha num determinado período
de trabalho é ou não enviado ou dedicado à sua família ou se o trabalhador está mesmo
empenhado em conquistar seu objetivo.
A pesquisa acerca da dinâmica das relações estabelecidas por esses trabalhadores nas
colheitas de café, notadamente as que se referem à dinâmica nos alojamentos das
propriedades, para além do simples espaço do descanso e das atividades mais corriqueiras,
apresenta, portanto, elementos que possibilitam a compreensão de valores e dos modos de
viver destes homens também em outros espaços e ambientes, com sua própria família e em
sua própria casa.
O alojamento, embora componha as fazendas, com suas sedes e moradores, é um
ambiente que fica um tanto à parte do restante da dinâmica da vida das pessoas do local. As
pesquisas permitiram observar que o alojamento é acessado pelos fazendeiros ou seus
empregados para resolver alguma situação, solicitar algum trabalho ou ainda para uma
espiada rápida para saber como os trabalhadores estão se relacionando naquele espaço e se
nada se encontra fora do agrado do patrão. Nesse espaço, os trabalhadores vindos de outras
localidades do Brasil permanecem a maior parte do tempo quando não estão nas lavouras.
Esses trabalhadores não circulam pelos espaços da fazenda. Ao grupo que chegou à
propriedade é destinado o local do alojamento e o trabalho, não há permissão para que se faça
uso de qualquer fruto ou planta do quintal ou da horta. A distinção e delimitação de seus
espaços parecem ser bem claras aos trabalhadores. Nesse aspecto, o relato do senhor Rufino
62 Depoimento do senhor Jailson Araújo, 22 anos, em entrevista realizada no dia 22 de julho de 2007, numa tarde quente de domingo na residência de seus pais.
116
oferece elementos para pensar o contato de seu grupo com os moradores das fazendas e suas
residências, quando perguntado sobre o relacionamento, a questão da casa do patrão e dos
demais moradores das propriedades, responde que: “Não, não tem média [não é do costume,
não faz parte] de chegar a entrar numa casa, assim, né. Aquele que leva as pessoas naquela
fazenda, às vezes o patrão chama, né, vai lá, né. Só ele ali, mas não é pra ser”63.
O depoimento do senhor Rufino permite observar um certo distanciamento entre os
trabalhadores e a casa do fazendeiro que fica reservada quanto ao acesso dos trabalhadores.
Eles só se aproximam quando, e se, chamados. A referência acima, “aquele que leva as
pessoas naquela fazenda” é a pessoa que normalmente fica a frente do grupo de trabalhadores,
às vezes recebe o convite e adentra a residência do proprietário, do responsável pela
produção, mas não é algo corriqueiro. Parece não haver nada institucionalizado ou mesmo
falado entre as partes nesse sentido, mas vislumbra-se que há um código, uma forma de
conduta desejada e estabelecida, onde as normas estão colocadas sem ter que dizê-las. O
contrário desta relação surpreende os trabalhadores, como narra o depoente, a seguir:
Um dia, um dia eu tava lá, sei que ele [o proprietário] chamo, eu fui lá [na residência] e ele disse: ‘chegue pra cá’. [eu respondi] ‘Aqui tá bom’. [ele replicou, em voz firme] ‘Não, pode entrar pra cá, entre pra cá. Vem ver a cozinha aqui como é’. Aí fui lá botar a cara lá. Aí eu tinha chegado. Ai, assim quando chegou [na cozinha da residência do proprietário] já foi logo enchendo um copo de café com leite pra mim. ‘Pois tome aqui, tome um café, tome esse café aqui’. Aí foi passando manteiga no pão pra mim. Aí já foi pegando, que eles faz uns pãozinho lá, eles sempre faz. Aí deu cinco ou seis pão pra eu trazer. Aí foi tirando um pedaço de bolo pra mim lá. Deu até uma tigela pra eu levar.64
A atitude do fazendeiro, narrada pelo senhor Rufino, é incomum. A pesquisa permitiu-
me compreender que o trato com o conjunto de trabalhadores rurais locais, ou os vindos de
outras regiões do país, não é o narrado acima. A surpresa do entrevistado é sincera. Pois o
cafeicultor, além de convidá-lo para entrar, ofereceu-lhe café e pão, para comer ali, e também
para levar ao alojamento; essa atitude destoa da prática costumeira. Vale destacar a frase do
senhor Rufino: “Aí fui lá, botar a cara lá”. A forma como afirma que entrou na casa, remete a
pensar numa espécie de intromissão. O depoente parece saber que não poderia estar ali, mas
ainda assim, entrou. Continuando o seu depoimento, o senhor Rufino ainda registrou:
63 Depoimento do senhor Rufino Estêvão de Jesus, 49 anos, em entrevista realizada em sua residência em Horizonte Novo, na manhã de sábado 21 de julho de 2007, onde ele estava com sua mulher, a senhora Valdina de Lima. 64 Depoimento do senhor Rufino Estêvão de Jesus, 49 anos, em entrevista realizada em sua residência em Horizonte Novo, na manhã de sábado 21 de julho de 2007, onde ele estava com sua mulher, a senhora Valdina de Lima.
117
Lá não, não tem esse negócio não, todo mundo é igual. Todo mundo é igual. Com a gente mesmo o velho disse: “oh, nós somo, eu fui uma pessoa que chegou aqui foi pobre, cheguei não tinha nada”. Ele veio do Paraná. “E hoje nós tem isso aqui, só na região aqui”. 65
Ao mencionar que naquela fazenda todo mundo é tratado em condições de igualdade o
senhor Rufino oferece a possibilidade de se vislumbrar o que o grupo de trabalhadores
originários da região norte da Bahia, quando deslocam-se para as colheitas de café na região
do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, acaba passando e enfrentando enquanto trabalhador.
Se naquele espaço, o entrevistado teve a sensação de receber um tratamento igual ao de
qualquer outra pessoa, pode significar que em outras fazendas por onde passou, sentiu-se
tratado de uma forma diferente daquela, talvez de rejeição e de distanciamento. O depoimento
traz, ainda, as possíveis palavras do fazendeiro dizendo que já foi pobre, que chegou à região
pobre e sem posses e que, atualmente, possui as fazendas produzindo café. Tal fato remonta
ao novo período de constituição da lavoura de café na região do cerrado, conforme marcado
pelos programas que procuraram implantar uma nova lógica de organização da agricultura e
pecuária, onde inúmeras famílias oriundas da região Sul do país passaram a ocupar a região
no processo de expansão da lavoura cafeeira conforme se discutirá no capítulo 5 deste
trabalho.
65 Idem.
118
2.3 As relações sociais e a venda
As experiências acumuladas ao longo do tempo com as viagens anuais dos
trabalhadores levaram-nos a elaborarem uma série de formulações acerca da região de
recepção e de como poderiam lidar com algumas condições a que se submeteram
inicialmente. As pesquisas levam a crer que os trabalhadores aprenderam a olhar para a região
produtora de café e perceber que nela as relações também se modificam com a presença deles.
Nesse aspecto, um dos elementos a ser pensado se relaciona aos valores ganhos no trabalho e
valores gastos com a própria manutenção no local de trabalho.
Muitos relatos dos trabalhadores apontam as dificuldades com os preços praticados no
comércio da região que são extremamente altos, tornando “a viagem”, o deslocamento para a
lida nas colheitas, ainda mais cara, pois além das despesas de manutenção da família que
ficou na região norte da Bahia, tem-se também a sua própria despesa pessoal, que para os
parâmetros que possuem, ou pela percepção dos entrevistados, daria para sustentar uma
família inteira e não somente uma pessoa. Nesta direção, o depoimento do senhor Simeão,
entrevistado em sua residência, no norte do estado da Bahia, oferece uma breve noção desta
questão. Quando perguntei sobre as dificuldades em se manter em Minas Gerais, recorreu não
às dificuldades da colheita, mas afirmou que:
Lá é muito caro. Eu gastei quase duzentos conto [reais], o ano passado nós pagamo duzentos e sessenta. É muito caro as coisa dela [a proprietária do comércio mais utilizado pelos trabalhadores rurais, no município de Indianópolis]. Um quilo de carne diantera é sete reais, sete reais. Lá é feijão, arroz, açúcar, café, carne, tempero. Só não feijão e farinha que nós levamo daqui. Panela, nós levamo também daqui.66
Como se pode observar, o entrevistado entende que os valores dos produtos adquiridos
são altos e, somado a esta condição, tem-se o quadro que pode explicar a razão de levarem
para Minas Gerais alguns produtos de sua região. A referência de preços dos produtos
consumidos para estes trabalhadores é construída a partir das compras efetuadas nos
estabelecimentos da zona rural. Muito dificilmente um grupo de trabalhadores realiza suas
compras em mercados das cidades próximas às propriedades rurais em que trabalham. Um
66 Depoimento do senhor Simeão Barbosa, 43 anos, coletado no dia 22 de julho de 2007, na residência de seu pai, senhor José Barbosa, em Horizonte Novo-BA. Importa dizer que os custos mencionados pelo entrevistado são apresentados em um momento em que a inflação é muito baixa e os valores dos produtos alimentícios também o são, diferentemente dos valores do ano seguinte em que a inflação alcança um alto percentual percebido principalmente nos preços dos produtos alimentícios.
119
dos locais que ganha destaque na comercialização de produtos para estes trabalhadores é a
“venda da Dona Maria”, mencionada pela maioria dos trabalhadores entrevistados e cuja
localização atende vasta área de fazendas no município de Indianópolis. Outras vendas se
localizam nas proximidades desta como a venda do Campo Alegre, o Armazém do Nô, a
venda do Santo Antônio, no município de Araguari, entre outras que se encontram pelas áreas
rurais dos municípios pesquisados.
Nas entrevistas, o fator econômico, a questão da despesa doméstica, parece influenciar
parte dos trabalhadores a formularem algumas maneiras de driblar os valores despendidos na
região de trabalho, buscando minimizar os gastos durante o período da colheita. No geral, esta
parece ser a motivação para os trabalhadores levarem em suas viagens a Minas Gerais alguns
dos produtos de maior consumo como o feijão e a farinha de mandioca, conforme relatou o
senhor Rufino, quando perguntei acerca do que ele levava consigo nas viagens, respondeu
que:
Se for pra gente levar, tem que levar de tudo que dá pra levar, só não a água, né? No mais, era pra gente levar de tudo, que eu nunca vi um lugar caro daquele, que nem ali naquela venda, daquela senhora67... Nós levamo aqui, nós levamo feijão, levamo arroz, levamo óleo, sal, pasta, sabonete, saco de farinha, de tudo nós levamo e deixamo lá, demo lá pra uns velho bêbado, que é pai desse Luiz68... que ali pro lado de farinha, misericórdia. Nós demo a ele, demo feijão lá, vendemo e demo, e lá foi só pegado só, pra quatro pessoa, eu e meu filho mais dois amigo, nós cozinhava junto. Compramo só panela de pressão, umas vasilha pra fazer café, esse negócio de pão, bolacha, essas coisas e a carne. Quando nós passamo que fomo pagar, pagamo quatrocentos reais. Por dezessete dia trabalhano, aí tem três domingo vai pra vinte, né? Três semana, no máximo 22 dia, pagamo quatrocentos reais. É muito né?69
De acordo com a pesquisa, para a maioria dos entrevistados, os custos de manutenção
nos locais de trabalho são bastante elevados, como destacou o senhor Rufino. No trecho, há
elementos que possibilitam pensar, por exemplo, a respeito de um possível aumento dos
valores dos produtos, por parte dos comerciantes, durante o período em que estes
trabalhadores se mantêm na região. Não houve como aferir esta percepção dos entrevistados.
67 Neste momento o senhor Rufino foi repreendido por sua mulher, senhora Valdina, pois em sua compreensão o marido não deveria falar da pessoa proprietária da venda onde realizava suas compras. Acredito que a atitude da senhora Valdina tem um misto de desconfiança em relação à minha pessoa, e também de repreensão ao marido, pois sendo eu da região, poderia colocar o seu marido em uma situação difícil caso viesse a fazer algum comentário sobre a nossa conversa com a pessoa mencionada ou mesmo com outros da região. 68 O entrevistado faz referência ao pai do proprietário da fazenda onde estava trabalhando. 69 Depoimento do senhor Rufino Estêvão de Jesus, 49 anos, em entrevista realizada em sua residência em Horizonte Novo, na manhã de sábado 21 de julho de 2007, onde ele estava com sua mulher, a senhora Valdina de Lima.
120
O fato a ser destacado é que esses trabalhadores fazem as contas dos seus custos,
investimentos, somando, subtraindo, dividindo os valores da despesa pelos dias trabalhados,
demonstrando uma forma de controle sobre suas economias. Nesse sentido, vale tomar as
referências do senhor Rufino para pensar a questão: ele faz as contas de vinte e dois dias
trabalhados em que, juntamente com o filho e mais dois trabalhadores adquiriram produtos no
comércio próximo à propriedade, tais como carne, alguns poucos produtos como bolachas,
café, algumas panelas e pagaram o valor de quatrocentos reais. Como se observa pela
narrativa do entrevistado, o que se consome não parece ser o que mais encarece na
alimentação do trabalhador e, ao mesmo tempo, tem-se a clareza, a partir das narrativas, que o
consumo na venda é mínimo.
É possível pensar que os produtos trazidos pelos trabalhadores remontam não somente
a uma economia nas despesas, mas, também, a elementos vinculados aos seus próprios
valores, aos seus hábitos e preferências que, supostamente são majorados com o período em
que permanecem nas lavouras de café, sobretudo no que diz respeito à alimentação.
Entrevistando outro trabalhador, ao responder o que levou para o trabalho nas lavouras de
café, procurou mencionar algumas preferências dos trabalhadores:
Eu esse ano eu levei, eu levei feijão, foi poucas coisa, óleo, arroz, mas tem pessoas aí que leva uma quantidade grande mesmo, saco, leva saco de feijão, farinha que é, baiano gosta muito de farinha. Tem um monte de coisa também que eles leva. Leva pra não comprar lá, que lá é mais caro né, essas coisa. A gente costuma ficar três meses lá, a gente já tem uma base de quanto vai pagar, três meses lá a gente paga quatrocentos.70
Uma vez mais se tem descrita a forma como esses trabalhadores da região norte da
Bahia, tentam garantir despesas mínimas nos comércios próximos das propriedades rurais em
que se estabelecem, levando grandes quantidades dos produtos que acreditam ser mais caros e
os de sua preferência. Ainda que se gaste um pouco a mais antes da viagem adquirindo as
mercadorias que serão levadas, as narrativas deixam ver que muitos possuem a compreensão
da diferença entre os preços praticados em um e outro lugar, tornando-se claro o entendimento
de que o custo é mais alto na região de trabalho. Parece haver entre os trabalhadores uma
média de gasto por pessoa durante um determinado período. No caso do senhor Jailson, ele
acredita que em três meses de trabalho o seu gasto é de quatrocentos reais (R$400,00).
Procurando saber qual relação que esses trabalhadores estabelecem entre o que ganham e o
70 Depoimento do senhor Jailson Araújo, 22 anos, em entrevista realizada no dia 22 de julho de 2007, numa tarde quente de domingo na residência de seus pais.
121
que gastam no período de trabalho, eu os questionei sobre o resultado de seu trabalho, ao que
o entrevistado, o senhor Lúcio respondeu:
Ganhei muito dinheiro e não ganhei porque lá gasta muito, né. E o tempo foi curto também, eu fiquei lá não chegou dois mês direito. Eu gastei, eu gastei não, lá me, na venda lá, a velha falou que foi oitocentos conto, oitocentos reais [R$800,00]. Só a minha parte. É caro... Lá é bom demais, só que a gente tem duas despesa, uma lá, outra aqui, pra quem tem família, né.71
As observações do senhor Lúcio revelam que os trabalhadores possuem uma lógica
própria para fazerem seus cálculos que se equilibra entre o ganhar muito ou pouco, e tem uma
relação direta com o período que passaram nos trabalhos e as despesas que tiveram com sua
manutenção. Desse modo, se as despesas forem muito elevadas é necessário que os ganhos
também assim sejam, ou o resultado final obtido com o empreendimento e dedicação ao
trabalho podem ser bem menores que o esperado. O senhor Lúcio chega a insinuar que suas
despesas no comércio próximo, no meio rural, em menos de dois meses não pode ter ficado
em oitocentos reais (R$800,00).
Outro entrevistado, ao ser questionado sobre os valores que pagava com suas despesas
na lavoura de café, respondeu:
Acho que é porque é um lugar que tem mais dinheiro, né? Lugar que tem mais dinheiro as coisas é mais caro. Fica caro, dois meses lá, a pessoa gasta de quinhentos a seiscentos real um só, uma pessoa só. Aí se for um pai de família que nem eu, que vai daqui, aí chega lá, é duas despesa, é uma lá outra aqui. Gasta quinhentos lá, aqui gasta mais ou menos quinhentos com a família aqui, vai pra mil reais. E dois meses, gasta quatrocentos de passagem de ida e volta, vai pra mil e quatrocentos, mil quinhentos por aí de despesa, né. Não compensa ganhar pouco. Se ganhar pouco só dá pra despesa. O trabalho, o tempo que a pessoa está lá trabalhando é perdido.72
Vale notar que, de acordo com o entrevistado, os trabalhadores que possuem família,
com mulher e filhos que permanecem na região de origem, têm a sua manutenção e a da
própria família para arcar. Desse modo, é preciso que a sua renda cubra as despesas com a
família e a viagem e ainda acrescente algum dinheiro para empregar nas mais diversas áreas e
aspirações do trabalhador, o que significa para o entrevistado o resultado do emprego de seu
tempo e trabalho.
71 Depoimento do senhor Lúcio Sousa, 31 anos, em entrevista realizada no final da tarde de sábado em frente à residência do senhor Fernando sobrenome, em Horizonte Novo, no dia 21 de julho de 2007. 72 Depoimento do senhor Tito de Jesus, 31 anos, coletado em 6 de agosto de 2006, em sua residência na área rural de Monte Santo-BA.
122
É plausível que estes sujeitos façam suas contas e estabeleçam formas de lidar e
conseguir seus objetivos gastando o menos possível na região receptora. As narrativas sobre a
questão da manutenção pessoal durante as colheitas de café nas propriedades mineiras
apresentaram outros elementos a serem analisados. Ao mesmo tempo em que mencionavam
os custos com os produtos adquiridos, apresentavam suas impressões sobre o comércio local,
o estabelecimento da prática de venda e a pessoa do comerciante, que nos casos mais citados
tratava-se da senhora Maria, uma comerciante muito conhecida na região de Indianópolis,
cujo estabelecimento atende fregueses de inúmeras fazendas tanto no município de
Indianópolis como de Araguari.
Após narrar o quanto achava caro os produtos no comércio rural próximo, o senhor
Simeão teceu o seguinte comentário:
Agora num tem pessoa melhor não. A pessoa chega lá, pessoa que ela nunca viu na vida ela vende fiado. É gente boa. Ninguém pode falar de uma velha daquela não, que merece castigo. Que uma pessoa que num conhece ninguém numa terra daquela, e o cara dizer: “eu vou lhe vender fiado”. Só diz qual é a fazenda que está trabalhando e pronto. Ela vende na hora. E se num tiver trabalhando ela arruma lugar pra trabalhar. Esse ano ela meteu a faca nos baiano lá [risos].73
O depoimento do senhor Simeão destaca suas impressões de forma bastante marcante.
Por um lado, acredita que os preços praticados pela proprietária do referido estabelecimento
comercial são elevados demais, mas por outro lado, menciona uma espécie de “solidariedade”
advinda da mesma pessoa, pois ao que parece, a comerciante, sem conhecer os trabalhadores
recém chegados “confia-lhes” as mercadorias que necessitam do seu estabelecimento,
“apenas” assegurando-se nas palavras da pessoa, que dará o nome da fazenda onde está
trabalhando e, quando não, em alguns casos, dispõe-se até auxiliar, a arrumar emprego para os
trabalhadores, quando ainda não possuem uma fazenda para trabalhar. A comerciante em
questão parece ocupar um papel social importante para estes sujeitos, fornecendo-lhes e
garantindo sua manutenção e servindo como um local de segurança para aqueles que estão
ainda sem trabalho.
O estabelecimento comercial em questão se constitui, pois, em um ponto de referência
para trabalhadores e também para os fazendeiros que para ali se dirigem em busca de
informações sobre as pessoas que buscam trabalho. A comerciante, então, acaba ocupando um
espaço marcado por uma forma de mediação. De um lado, há anos radicada no mesmo local,
73 Depoimento do senhor Simeão Barbosa, 43 anos, coletado na residência de seu pai, senhor José Barbosa, no dia 22 de julho de 2007, em Horizonte Novo-BA.
123
conhece alguns dos trabalhadores que há muito tempo trabalham nas colheitas de café.
Quando chega alguém pela primeira vez, não é difícil, com algumas poucas perguntas, tentar
associá-lo a alguém, da sua própria região, já conhecido. Por outro lado, conhece os
proprietários rurais, que nas conversas, nos momentos de final de tarde, entre uma bebida e
outra, lhe apresenta suas demandas, suas dificuldades com o pessoal. E nessa intercessão, a
comercialização dos produtos, com ambas as partes relacionando-se melhor, é possível que,
sem macular nenhuma das partes comercialize mais produtos. Nesse sentido, o seu papel é o
de apresentar um ao outro, permanecendo como um ponto de apoio para ambos.
Em geral, sobre o papel social ocupado pelo comerciante no período escravocrata no
Brasil, Carvalho Franco apresenta em suas análises que o vendeiro “em suas relações com o
fazendeiro (ou com o escravo), se revela o mesmo novidadeiro pouco digno de confiança,
com a diferença porém que este último não resistiu às suas investidas, satisfazendo-lhe a
curiosidade”74. Em alguns casos, o comerciante constitui-se um tipo especial de informante
para quem o procurar, pois estabelecendo relações com os dois grupos envolvidos conhece e
busca estar atualizado com as notícias e novidades: quem precisa de trabalhador, quem
precisa de lugar para trabalhar, assim como manifesta impressões sobre o trabalhador ou o
fazendeiro, dependendo de quem demanda informação. O senhor Tito de Jesus apresentou em
sua narrativa um momento difícil que passou em sua última viagem: “na última vez, eu fui
sem lugar certo. Quando cheguei em dona Maria [a comerciante] me apoiei lá e fiquei uns três
dias sem trabalhar, depois comecei trabalhar em uma fazenda”75.
De diversas formas, as referências acerca deste estabelecimento comercial como ponto
de referência e apoio aparecem nas observações dos entrevistados. E ao que tudo indica, a
venda é um ponto de apoio, com o qual os trabalhadores sabem que podem contar, e jogam
com a sua penetração, seu poder e lugar nas relações de trabalho que almejam. E talvez, ciente
dessa condição, o senhor Tito de Jesus tenha se expressado com tamanha serenidade acerca de
sua aventura de mais de dois mil quilômetros, sem vínculo empregatício definido, tendo
passado três dias na “venda” e em seguida conseguido local para trabalho, por certo com os
que por ali passaram. Pode-se pensar o papel do comerciante, nessa situação, como aquela
analisada por Franco em que o vendeiro possui uma posição social dúbia, aproximando-se ora
74 FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. 3. ed. São Paulo: Kayrós, 1983. p. 73. 75 Depoimento do senhor Tito de Jesus, 31 anos, coletado em 6 de agosto de 2006, em sua residência na área rural de Monte Santo-BA.
124
do fazendeiro ora do trabalhador76, assim como parece oscilante seu papel aos olhos dos
trabalhadores quando ora afirmam que: “é gente boa” e ora comentam que: “esse ano ela
meteu a faca nos baiano lá”. Ao mesmo tempo, a relação dos trabalhadores com a comerciante
é uma relação que possui significados que se aproximam de uma forma de solidariedade: os
trabalhadores têm nela a certeza de que não ficarão desamparados por alguns dias e, que ela
vai confiar-lhes as vendas fiado, mas vai cobrar-lhes o preço que todos conhecem.
Ainda acerca do papel social do comerciante, pode-se analisar a questão posta a partir
do personagem João Romão, um português, dono da venda, no romance O Cortiço de autoria
de Aluísio Azevedo. João Romão, vendeiro, conhecia o que se passava pelas redondezas, era
também, por que não dizer, uma espécie de confidente, a quem as pessoas narravam e
confiavam suas histórias. Após um período comprando comida e quitanda da negra escrava
Bertoleza, demonstrou grande interesse pela sua vida e sua história “e com tamanho empenho
a lamentou que a boa mulher o escolheu para confidente das suas desventuras [...] João
Romão tornou-se o caixa, o procurador e o conselheiro da crioula”77. Há que se considerar
que o papel assumido pelo personagem talvez não tivesse sido possível caso ocupasse uma
outra posição social, ou não tivesse também decodificado as relações que se estabeleciam no
meio onde vivia, fato que possibilitou não somente amasiar-se com Bertoleza, como
transformá-la em sua escrava aparentando certo grau de afetividade78.
O comércio na zona rural, representado pela venda, possui uma dinâmica própria.
Grande parte dos moradores das redondezas, assim como os trabalhadores, quando ali chegam
realizam suas compras a prazo. O pagamento da caderneta é realizado apenas ao final da
colheita ou no momento em que o trabalhador decide mudar de fazenda. Na grande maioria
dos casos, não são os trabalhadores que fazem os acertos, mas sim os proprietários ou
gerentes que procuram o estabelecimento para saldar as dívidas e, posteriormente, abater do
valor que o trabalhador conquistou naquele período de trabalho. Este acerto é, quase sempre,
feito ao final dos trabalhos na fazenda onde se encontram. Ao procurar saber em qual fazenda
76 Conforme analisa Franco: “A posição do simples vendeiro é, em certa medida, oscilante: ora se observam relações de recíproco comprometimento e dependência entre ele e os estratos superiores, ora, pelo contrário, ocorre como que o seu nivelamento com as camadas mais pobres” (FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Op. cit. p. 69). 77 AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. São Paulo: Ed. Abril, 1981. p. 13-14. 78 Pode-se refletir ainda acerca da figura do vendeiro em trabalhos como: BARREIRO, José Carlos. Tradição, cultura e protesto popular no Brasil 1780-1880. Revista Projeto História. São Paulo, EDUC, n. 16, fev. 1998; e também WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos africanos, vivências ladinas: escravos e forros em São Paulo (1850-1880). São Paulo: Hucitec, 1998. Nestes estudos, “as vendas e tabernas representam o espaço em que as classes subalternas rompiam com o conceito de honestidade socialmente estabelecido” (BARREIRO, 1998, p. 18-19). O vendeiro aparece como o receptador de produtos roubados pelos escravos, constituindo-se em uma figura emblemática na sociedade.
125
o trabalhador está instalado ou trabalhando pode ser uma forma adotada pelo comerciante de
saber também a quem recorrer para o pagamento da conta.
Diante desta dinâmica de trabalho, há o fato de o trabalhador não receber ao final de
uma semana, quinzena ou mesmo ao final de um mês de trabalho impossibilita-o de adquirir
os produtos em outros estabelecimentos na zona urbana ou mesmo na zona rural, de modo que
pudesse pagar no ato da compra, à vista, e não fiado. Mas, ainda que tivesse acesso ao seu
rendimento em períodos mais curtos encontraria maior dificuldade em se locomover até uma
das cidades próximas para realizar suas compras e retornar para o alojamento. Em nenhum
momento os trabalhadores manifestaram o desejo de não mais realizar suas compras nos
estabelecimentos comerciais da zona rural. Ao contrário, nelas parecem possuir alguma forma
de referência, conhecimento e controle, em todos os sentidos, de uma relação em que também
são atores ativos.
O fato de vender fiado aos estranhos caracteriza para os trabalhadores uma aparente
bondade ou solidariedade, mas sabem, que também é um modo de ganhar clientes. De modo
geral, observa-se que os trabalhadores se sentem acolhidos naquele local, pois sem conhecer
nada e ninguém, conseguem quem não os distinga por serem “de fora”, garanta-lhes a
sobrevivência com as vendas a prazo. Isso demonstra também que o comerciante, ou no caso
específico a vendeira, conhece e decodificou os valores que são caros para estes trabalhadores
e os manuseia, na maior parte dos casos, com a anuência dos envolvidos que também
possuem interesses a serem defendidos.
“Confia-se” no trabalhador, e no valor que traz consigo, de ser um bom pagador.
Pode-se pensar que não se estabelece ali uma dívida financeira, mas também uma dívida
moral, uma vez que para o trabalhador pagar corretamente suas dívidas constitui-se em uma
forma de poder garantir a sobrevivência no próximo ano, quando retornar para a lavoura de
café, o que acaba por compor determinado código de comportamento destes trabalhadores79.
Desse modo, o pagamento da dívida espraia-se do econômico e chega às raias do valor moral
para o trabalhador individualmente, mas também para o seu grupo de trabalhadores. Pode-se
inferir que, o não pagamento da dívida na venda, implica também a pressão de seus próprios
companheiros uma vez que isto implicaria em dificuldades para todos, nos anos seguintes.
Enquanto os moradores da região e os proprietários buscam informações sobre
trabalhadores, os estabelecimentos comerciais constituem-se, ainda, para os habitantes das
79 Para uma discussão que entende a dívida moral do trabalhador como uma forma de obrigá-lo a aceitar difíceis condições de trabalho e mesmo o trabalho escravo, ver: SILVA, Maria Aparecida de Moraes. Migrants temporaires dans les usines de canne à sucre de l’état brésilien de São Paulo. Migrations Société. Paris, CIEMI, v. 20, n. 115, p. 125-146, janv./févr. 2008. p. 133.
126
propriedades próximas, também, num espaço de discussões dos mais variados assuntos, desde
a política local, das últimas notícias, dos encaminhamentos que culminaram na formação de
laços que ultrapassam o simples local de aquisição de produtos. O local onde também se toma
dinheiro emprestado, no qual se pede socorro em uma doença, onde se solicita um veículo
para levar alguém ao médico. Nesse desenrolar, a família do comerciante acaba ocupando
outras posições sociais quando chamada para apadrinhar as crianças que nascem, ou dos
filhos que se casam, ou ainda, quando candidatos a vereadores do município são eleitos com
um representativo número de votos80.
Para os trabalhadores vindos de outras regiões, a venda é muito mais que o local onde
se adquire os produtos necessários, é também o local de encontro, o espaço onde se reúnem
em busca de notícias da região de origem, notícias da família que ficou, ou mesmo de amigos
ou parentes que estejam trabalhando em outras fazendas da região. A venda constitui-se em
referência também para os familiares que ficaram, pois o número de telefone que se tem para
um contato de emergência, na maioria dos casos, é o da proprietária deste estabelecimento
comercial.
As diversas utilizações e as formações de redes que os trabalhadores vindos para
Minas Gerais estabeleceram na região produtora de café, e a partir dela, podem ser pensadas
com a narrativa do senhor Rufino:
Aí nós saimo de lá, arrumamo lá no, lá no Aldo. Ali perto da quadra lá, né. Aí nos fomo trabalhar pra lá. Aí, deu colheita pouca. Aí um filho meu veio embora, mais outros que tinha lá, aí ficou só eu e esse daí [apontando para o filho mais novo que nos acompanhou em uma parte da entrevista], sozinho lá. E nós, aí de lá, nós fomo lá pro, aquele lá que tem a granja, de junto do Aldo, assim, o seu Antônio. Parece que ele é irmão daquele que mata gado, que mata gado, o seu Joaquim. Seu Joaquim é aquele que traz carne lá pra dona Maria. Sei que lá tem uma granja lá. De junto daquele, do rapaz que mataram dentro do café, na casa. Nós ficou lá, pegamo lá também não deu. Era só pra banar, não deu. Aí viemos cá. Saímos de lá, viemo cá pro Claridinho, Claridinho ali de junto do Ironi ali, do cara que mataram no prédio dele. Diz que é de um padre né? Diz que é Romeu, né? Chama Romeu.
Neste trecho do depoimento o senhor Rufino descrevia como tinha sido o ano de
trabalho de 2006, quando, juntamente com seus filhos tentaram trabalhar, mas não se deram
muito bem em uma fazenda, passaram para uma segunda, uma terceira, coisa que eles fazem a
cada ano, mas não obtiveram sucesso. Ao que tudo indica fora um ano em que a produção dos
80 No caso da família proprietária da venda mais mencionada pelos trabalhadores tem-se que o proprietário foi eleito por duas vezes consecutivas como vereador da cidade de Indianópolis, e mais uma vez eleito em 2008.
127
cafeeiros nas propriedades em que estiveram estava em baixa. Chama a atenção em sua
narrativa o conhecimento que possui da região e das relações que nela se desenrolam. Ainda
que não tenha certeza dos papéis e das ligações de parentesco, função, ou outras relações, o
entrevistado fornece elementos para inferir que o seu contato com a região ultrapassa a
questão dos postos de trabalho, embora esteja a eles vinculado, pois é conhecendo a região
que avalia e procura pensar o melhor local para trabalhar no ano seguinte. Com as viagens que
já fez acabou construindo um conhecimento sobre os fazendeiros e, quem sabe, até
decodificou as redes de relações destes fazendeiros; com esta informação consegue saber
quais proprietários pertencem a este ou àquele grupo, quais pagam melhor ou pior, assim
como quais inspiram mais confiança. Mas, para conhecer é preciso se dispor e querer andar,
envolver-se com outras pessoas da região, conversar e trocar informações. É possível pensar,
ainda, que parte das informações que adquirem é também compartilhada no espaço da
“venda”, local onde todos se encontram, trocam impressões.
As redes de relações sociais nas quais se envolvem estes trabalhadores passam pelas
relações do trabalho, pelas fazendas onde trabalham, mas também vão a outros espaços que,
de algum modo, foram decodificados por estes trabalhadores à medida que as viagens se
sucediam umas às outras, construíram conhecimentos, se assenhoraram daquela realidade
procurando pensar nos anos vindouros e nas possibilidades de retorno em anos seguintes, sem
que tivessem, muitas vezes, que se submeter a algum chefe de grupo e pudessem viajar por
conta própria, conforme se pode observar em alguns depoimentos.
SEGUNDA PARTE
129
CAPÍTULO 3
As viagens para Minas: percepções sobre o processo
130
3.1 Depois de Minas
A mobilidade anual em que se envolvem os grupos de trabalhadores da região norte do
estado da Bahia além de possibilitar pensar as condições de vida e trabalho desses sujeitos nas
lavouras de café também é retratado em diferentes narrativas de parentes e amigos residentes
na região de origem. Conhecer a sua região, buscar conhecer o local onde residiam, seus
familiares, o grupo ao qual pertencem resultou em uma série de informações sobre os
“migrantes” e suas histórias, assim como possibilitou ouvir daqueles que ficam torcendo pelos
familiares que viajam o que pensam sobre esse movimento dos trabalhadores para as lavouras
de café no Cerrado Mineiro.
O processo de deslocamento dos trabalhadores pesquisados envolve não só o
indivíduo que realiza a empreitada, mas também todos os que estão à sua volta: pais,
mulheres, filhos, parentes próximos e amigos, que também apostam em uma condição
diferenciada de vida a partir do deslocamento para a região produtora de café. Os resultados
alcançados com a viagem, sejam eles de sucesso ou de fracasso, acabam alcançando o grupo
ao qual o trabalhador pertence.
Para os senhores e senhoras, pais, mulheres, filhos, entre outros, as viagens de seus
entes queridos, amigos ou apenas conhecidos para os trabalhos nas lavouras de café tiveram
um grande efeito sobre o povoado e a região onde moram. Algumas mudanças foram a elas
associadas, independentemente, se de fato, foram as responsáveis pelas transformações
mencionadas. O depoimento do senhor Fernando oferece alguns apontamentos:
Ah, depois dessa Minas, de lá de Minas, graças a Deus o lugar melhorou muito, né. Ave Maria, cem por cento! Porque cada fraco1 aqui que num tinha, num tinha um arroz pra fazer. Já depois de Minas é moto, é carro, é tudo. A maioria aqui que tem as casa é quase tudo de Minas [...] Ah, pois é, compra lá traz para cá, então vai aumentando a coisa, né, melhorando. E é tudo pro lugar, né? Tudo pro lugar. Aí ele, segura, né? Segura seus dinheiro, suas coisinha. Igual meu filho chega e vai comprar suas coisinha quando ele vem de lá pra cá. Quando é o ano que vem ele diz: “se Deus quiser eu volto de novo”, pra poder ganhar outro, já deixa outras coisinha.2
Cabe destacar que em vários depoimentos coletados a referência à região da lavoura
de café aparece apenas como Minas. Para estes depoentes, Minas corresponde ao lugar para
1 Vale dizer que a expressão “fraco” está relacionada à condição social de alguns moradores vista pelo entrevistado como inferior uma vez que não possuíam nem o arroz para se alimentar. 2 Depoimento do senhor Fernando Araújo, 66 anos, na tarde de domingo 6 de agosto de 2006, quando ele e sua mulher, sentados na porta de casa, observavam o movimento dos mais jovens pelas ruas e botequins do povoado.
131
onde seus parentes e amigos se dirigem para trabalhar. Tal expressão chama a atenção porque
ao que parece, o fato de dizer Minas não significa que estão falando do estado de Minas
Gerais, um amplo território, mas que estão se referindo simplesmente à região da lavoura de
café, que é distante e muito diferente da sua própria região.
No depoimento acima citado, há uma relação direta entre as viagens dos trabalhadores
para Minas e as melhoras que possivelmente ocorreram no povoado, principalmente para
algumas pessoas que, de acordo com o senhor Fernando, não possuíam renda que lhes
garantisse o sustento. Há, ainda, a compreensão de valorização do lugar (povoado) à medida
que os trabalhadores procuram aumentar sua renda com as viagens temporárias e, ao
retornarem, investem o que conseguiram na construção de casas, adquirem bens, outras vezes,
levam os produtos que compraram em terras mineiras como motos, aparelhos de som,
televisores, entre outros. Ainda que a relação entre a melhora das condições do povoado e o
trabalho em Minas seja supervalorizada pelo senhor Fernando, pode-se pensar em mudanças
que se refletem não na estrutura do povoado, mas nas condições de vida dos trabalhadores que
parecem realizar algumas conquistas.
Ainda no depoimento acima, o retorno ao trabalho no ano seguinte também aparece
como fator de valorização, pois demonstra que o trabalhador está em busca de “crescer” e
conquistar maior independência financeira. Se, por um lado, ocorre a “valorização” do esforço
desse trabalhador, por outro, dadas as condições em que estes trabalhadores permanecem nos
demais períodos na região, pode-se pensar ainda que as conquistas a partir do trabalho nas
lavouras de café se refletem também sobre a economia e orçamento de pais e familiares, uma
vez que se tem uma certa independência, ou melhor, estes conseguem se manter e às suas
famílias sem demandar o auxílio dos pais aposentados ou das economias advindas de suas
pequenas propriedades.
Para pensar estas questões, o depoimento do senhor José Barbosa apresenta elementos
que remetem também às relações que aquela população estabeleceu entre os trabalhos em
Minas Gerais e o cotidiano no povoado.
A vida dura nossa, é uma vida meio dura porque num tem emprego, num tem nada, né? Quando acontece ter coisa de roça que a gente planta, quebra um galho né? Agora quando num tem coisa de roça é pra nada mesmo. A situação... Você vê que aqui, o pessoal sai daqui pra ir ganhar dinheiro em Minas, que se tivesse emprego aqui num carecia, né? Tem um emprego aqui mais a firma aí num dá pra fichar todo mundo né?3
3 Entrevista com o senhor José Barbosa, 71 anos, no domingo 6 de agosto de 2006 em sua residência, onde recebia várias pessoas que o procuravam para que as benzesse.
132
Parece comum entre alguns dos moradores perceber a dimensão da falta de emprego
como propulsora para as viagens temporárias para Minas, como argumenta o entrevistado, ao
dizer que se tivesse emprego na região não seria necessária a saída de seus moradores. Por
outro lado, pensa-se em uma relação de dependência da natureza quando se trata da pequena
produção agrícola onde o sucesso advém da presença ou não das chuvas para a melhor ou a
pior colheita.
Outro depoimento que aponta esta perspectiva é a da senhora Carminha:
Nesse tempo assim pra colher café não fica homem nenhum lá não. E nossa, a sorte deles de lá é aqui Minas que tem muitos que faz as suas casa daqui, com o dinheiro daqui de Minas. Tem uns que vai ganha mil, dois mil, aí vai compra o material, compra bloco e levanta a casa.4
Para a entrevistada, a relação de dependência econômica com a região produtora de
café está materializada as construções das casas no povoado, como se não fosse mais possível
viver sem contar com o trabalho temporário e o resultado dele advindo.
As mudanças percebidas por estes moradores podem ser pensadas ainda ao lado das
percebidas por aqueles que realizam as viagens. Ao perguntar ao senhor Rufino que
transformação notava, ele apontou:
Agora mudou, está bem melhor, graças a Deus, né. Antigamente era muito, né, a gente era, um povoadinho pequeno, o povo de agora, tem muitos habitantes aqui né, já, tem uma feirinha simplizinha, que antes não tinha. Tá tudo adiantado, né, graças a Deus, foi o tempo, e hoje está outro.5
O entrevistado não relaciona as mudanças às viagens e aos resultados obtidos com o
trabalho nas lavouras de café. O que se observa é que o entrevistado percebe o aumento do
número de moradores do povoado como um fator da mudança, assim como a instalação de
uma pequena feira livre uma vez por semana para a aquisição de alguns produtos. A
perspectiva de mudança, de crescimento, de melhora das condições de vida parece ser
comum, mas esta mudança não possui um fator único e não está relacionada apenas aos
trabalhos na lavoura de café.
A partir dos depoimentos do senhor Fernando e do senhor José Barbosa coloco a
seguinte questão: o que fazia, então, essa população antes dos trabalhos nas lavouras de café 4 Depoimento da senhora Carminha Araújo, 44 anos, no dia 7 de junho de 2005, na casa onde se encontrava alojada com o marido e a filha de doze anos. 5 Depoimento do senhor Rufino Estevão, 49 anos, em entrevista realizada em sua residência em Horizonte Novo-BA, na manhã de sábado 21 de julho de 2007 onde ele estava com sua mulher senhora Valdina de Lima.
133
na sua concepção? De que forma e por que as transformações no povoado foram associadas
aos trabalhos e viagens temporárias?
É possível pensar em formas diferenciadas de se observar a situação das pessoas que
vivem no povoado. Como apontei anteriormente, os trabalhadores que viajam para as
atividades na safra do café não dizem, em momento algum, que lhes falta emprego em sua
região, mas que participar do trabalho temporário é a forma de se alcançar um objetivo, de
conquistar um sonho.
O depoimento do senhor Jailson apresenta alguns elementos que apontam nesta
direção: “O que me levou ir pra lá, assim, a gente, cada um tem um sonho pra realizar, e o
meu sonho é ter meu salão completo mesmo, bem organizadinho, então, eu só penso só nisso
só”6.
Ao revelar o sonho e o objetivo que tem com suas viagens para Minas, o entrevistado
demonstra ter clareza do que deseja. Sua meta é organizar um pequeno salão de cabeleireiro
que ele já possui funcionando em um cômodo de sua casa. Ao longo de seu depoimento o
entrevistado revelou que faz cortes de cabelo e penteados, é bastante procurado por homens e
também pelas mulheres em busca de cuidados com a aparência. Para ele o fato de conseguir
melhorar os equipamentos, assim como organizar a mobília em seu salão, será fator de
distinção que poderá atrair um maior número de clientes, garantindo assim a sua renda e
manutenção. Com esse objetivo, então, o entrevistado realiza as viagens para o trabalho no
café anualmente, revelando que, a cada ano, ele consegue adquirir um bem ou um instrumento
melhor para o seu salão. Quando perguntei sobre as atividades que desempenha nos demais
períodos do ano ele responde: “Na padaria eu trabalhei lá quase quatro ano. Eu tenho o salão,
dá pra ir levando, a gente ganha um troquinho aí, dá pra, pra gente se manter, até chegar a
época da colheita”7.
Com o dinheiro ganho nas atividades que desempenha nos períodos da entressafra em
seu local de moradia, no povoado de Horizonte Novo, o entrevistado revela que consegue
manter-se e também à sua mulher. Observo que o período da colheita de café foi, de algum
modo, incorporado às formas de se obter uma renda maior por grande parte dos moradores da
região. Ainda que se desempenhe uma outra atividade remunerada nos demais períodos do
ano, quando chega a época da colheita de café, deixa-se tudo para viajar para o trabalho que,
aparentemente, rende mais.
6 Depoimento do senhor Jailson Araújo, 22 anos, em entrevista realizada no dia 22 de julho de 2007, numa tarde quente de domingo na residência de seus pais em Horizonte Novo-BA. 7 Idem.
134
Ao analisar os depoimentos dos trabalhadores aparecem algumas peculiaridades no
tocante às atividades desenvolvidas no período da entressafra do café na sua região de origem.
Quando perguntei ao senhor Laurêncio sobre a sua ocupação em seu local de residência ele
respondeu: “Eu toco, é. Agora dia três já tem festa, de setembro, dia dez já. Minha banda é
Sandrilê. O outro que toca comigo é meu cunhado”8.
Outro depoimento nesse sentido foi oferecido pelo senhor Eugênio:
Eu trabalho com isso aí, lá. Eu tenho uma banda de forró, o Forró Caldo de Cana. Sempre toca lá, porque nesse tempo que eu vim, quando a gente sai depois das festas. E eu também deixei pra vim agora nesse tempo, porque é o tempo que passa o mês de junho que é o tempo que a gente toca mais nas festas lá, né? É o tempo de festa. Aí nesse tempo fica mais devagar um pouco. Aí, a gente vem pra cá que adianta mais um pouco, né?9
Chamou a atenção o envolvimento destes dois trabalhadores que narraram seu contato
com a música e o trabalho que realizam na região, animando bailes, participando de festas e
outras atividades relacionadas a música. A colheita de café se inicia por volta do mês de maio,
quando os trabalhadores começam a chegar, mas o período em que os músicos mais atuam na
sua região é no mês de junho, período das “festas de São João”, como eles relataram, por esta
razão, o entrevistado revela que deixa a sua região para se dirigir à lavoura de café quando as
festas estão se encerrando.
Tal fato oferece dois elementos a serem analisados: estes trabalhadores deixam para
viajar apenas no final do período de festas a fim de aproveitar o momento para ganhar algum
dinheiro; ao chegarem às lavouras por volta do final do mês de junho ou início de julho,
encontram os grãos de café mais secos e, com isso, acreditam que o trabalho pode ser feito
mais rapidamente, podendo também reduzir seu período de estadia nas lavouras de café,
retornado para casa mais rápido.
As atividades em que se inserem estes trabalhadores em sua região de origem parecem
dialogar com as possibilidades dos ciclos das viagens para as lavouras de café. Talvez seja
possível inferir que os ganhos salariais destes trabalhadores, assim como o seu nível de
reivindicação também dialogam com o trabalho temporário, o que implica dizer que parte das
expectativas em relação a rendimentos e aquisições parece estar, atualmente, relacionada com
o trabalho na colheita de café.
8 Depoimento do senhor Laurêncio Silva, 34 anos, em entrevista realizada no alojamento da fazenda onde trabalhava no dia 14 de agosto de 2005. 9 Depoimento do senhor Eugênio Amador, 30 anos, em entrevista realizada no alojamento onde se instalava no dia 14 de agosto de 2005.
135
Questionado sobre a freqüência de festas das quais ele participava com sua banda o
senhor Laurêncio respondeu:
Tem, sempre tem. Quando eu vim pra cá deixei duas festas. Foi, aí arrumaram por lá e botou outro cara pra tocar e parece que não prestou, ninguém gostou. Aí eu liguei domingo ele disse: “rapaz você tá aqui dia três?” Eu digo: “tô!” Ah, pois já tem uma festa lá pro dia três, e outra pro dia dez. Dia três é em Andorinha na cidade, show de calouro sabe, que o rapaz faz, aí chama todas as banda aí começa quatro hora da tarde, vai até amanhecer o dia, lá. A festa de lá é quente.10
Ao que parece as festas das quais participam as bandas de forró na região de
Andorinha e Monte Santo são numerosas, mas provavelmente estas festas são limitadas a
alguns períodos do ano, o que não garante a manutenção constante destes músicos que
acabam se envolvendo em outras atividades também.
Questionei o senhor Eugênio sobre o valor que sua banda recebia para animar as
festas, e ele respondeu:
É oitocentos, setecentos. Depende o tempo, sabe. Tem o tempo que é mais caro, outros tempo fica mais barato porque depende de ocasião de festa, né. Fora de tempo já fica mais devagar um poquinho porque a gente tem que pegar mais também festa de ingresso pra fazer. A gente faz, bota os comercial na rádio e faz portaria, sabe, nos lugar, no povoado. Portaria. Tem vez que dá bom e tem vez que é mais fraco.11
Há, portanto, uma periodicidade nas festas da região que parecem determinar os
valores pagos às bandas para que estas se incumbam da tarefa de animar o público com seus
ritmos. O entrevistado relata que nos períodos mais difíceis, com menor número de atividades
eles promovem os bailes onde os participantes devem adquirir o ingresso que em geral custa
até R$3,00 (três) reais, conforme o depoente afirmou na continuidade de sua narrativa, mas
nem sempre o resultado financeiro é o esperado, o que significa que estes músicos enfrentam
problemas quanto ao que ganham em seu ofício e o que necessitam para sua manutenção.
Talvez esta “instabilidade”, que possui uma lógica e uma dinâmica para a vida destes
trabalhadores quanto a uma fonte de renda, leva os moradores mais velhos a associarem as
viagens à falta de emprego, enquanto os mais jovens que empreendem as viagens percebem o
trabalho na safra de café apenas como uma oportunidade a mais de se obter algum bem ou
ampliar o que já possuem. A grande maioria dos trabalhadores entrevistados defende que,
10 Depoimento do senhor Laurêncio Silva, 34 anos, em entrevista realizada no alojamento da fazenda onde trabalhava no dia 14 de agosto de 2005. 11 Depoimento do senhor Eugênio Amador, 30 anos, em entrevista realizada no alojamento onde se instalava no dia 14 de agosto de 2005.
136
com o trabalho na colheita de café, conseguem adquirir bens que não seriam possíveis em tão
pouco tempo. Nesse sentido, o senhor Tito revela: “Às vezes aqui a gente é, compra animal
pra botar na roça, muitas vezes a gente compra moto, compra moto. Sempre emprega o
dinheiro [...]. Compra criação, terra, compra terra” 12.
Além dos bens materiais, visíveis em sua residência, o senhor Tito e sua mulher,
senhora Elisângela, revelaram que após os trabalhos nas lavouras de café conseguiram
construir a casa em sua pequena propriedade13, instalaram os equipamentos de energia solar14,
compraram móveis e outros equipamentos para casa, o que parece demonstrar uma condição
de vida já estruturada e que é melhorada com as viagens realizadas pelo senhor Tito15,
segundo ele desde os vinte anos, repetindo-a anualmente.
As pesquisas apontaram que, com os resultados obtidos a partir dos trabalhos nas
safras, os bens e as conquistas dos trabalhadores são mais aparentes, consegue-se materializar
o seu salário em bens e outras aquisições. Talvez este seja o fator que faz com que os
senhores e senhoras, moradores do povoado e da região, acreditem na transformação do lugar
a partir do trabalho temporário na safra de café, pois anteriormente a este período a renda
conseguida por estes mesmos trabalhadores não era possível ser visualizada em tais bens, uma
vez que parece ser suficiente apenas para a manutenção da família. Contudo, os movimentos
de deslocamento que hoje integram as vidas dessa população não é novidade.
Se, por um lado, têm-se os trabalhadores jovens integrando os movimentos de
deslocamento atual, por outro, vê-se que os moradores, hoje aposentados, participaram
também de movimentos migratórios principalmente para o Sudeste e Sul do país. Parte desse
contingente viveu alguns anos em outras regiões e retornou para seu local de origem
conforme relata o senhor Marino em seu depoimento: “Eu fui daqui para o Paraná sete vezes,
parece conta de mentiroso, eu fui cinco vezes solteiro e casado fui duas vezes. Eu fui daqui
pra lá e ela ficou aqui, aí depois ela foi atrás, depois nós voltamo”16.
Tem-se que essa população, especialmente a menos favorecida, em um e outro
momento viveu/vive um processo de itinerância em busca de condições de vida mais
12 Depoimento do senhor Tito de Jesus, 31 anos, em sua residência na região rural de Horizonte Novo-BA, no dia 6 de agosto de 2006. 13 De acordo com o depoimento do casal as terras que possuem medem três tarefas. Esta medida será discutida e melhor apresentada no Capítulo 4. 14 Até o ano de 2007 havia apenas um projeto do governo do estado da Bahia, juntamente com o Governo Federal, de instalação de energia elétrica na zona rural da região. 15 Vale mencionar que no ano em que a entrevista foi realizada o casal possuía quatro filhas e esperavam o nascimento do quinto filho para os próximos meses. 16 Depoimento do senhor Marino Gomes, coletado no dia 20 de julho de 2007 em sua residência em Horizonte Novo-BA, ao lado de sua mulher Sra. Maria Gomes.
137
favoráveis. As mobilidades espaciais das populações menos favorecidas na sociedade
brasileira é uma constante. Os fatores de propulsão da população rural nos idos das décadas
de 1950 e 1960 do campo rumo aos centros urbanos, no denominado processo de êxodo rural,
podem ser pensados como elementos que tornaram “disponível” parte dessa mesma
população que voltou ao campo sob a condição de trabalhador volante temporário, ou ainda,
fez de uma grande parcela dessa população reserva para os trabalhos no meio rural. Ao longo
das últimas três décadas pode-se pensar que essa mesma força propulsora, que tem colocado
em mobilidade grandes grupos da população ao longo dos anos, impulsiona milhares de
trabalhadores a se deslocarem milhares de quilômetros para a realização de atividades
temporárias na safra de diferentes produções. Desse modo, tem-se um grande número da
população de algumas áreas do país submetida e estabelecendo diálogos com as formas de
intensificação da produção agrícola capitalista que busca atender às demandas de um mercado
cada vez mais exigente.
Ainda sobre a opinião dos moradores da região de onde saem os trabalhadores há
depoimentos importantes, reveladores não somente do que se pensa sobre aqueles que viajam,
mas também das razões para aqueles que ficam, em geral, os habitantes de mais idade.
É vão trabalhar lá, os que não têm com que viver. A gente já tem porque a gente é aposentado, né, dá pra gente comer, dá pra dar um pouquinho pr’os filhos, né? Mas, por isso a gente não vai, não sai mais pra lugar nenhum, também é tudo velho. E não sobra nada não, porque somos os dois aposentados só que a gente ajuda os filhos.17
O depoimento da senhora Maria Gomes é bastante incisivo quando considera que os
trabalhadores que vão para o estado de Minas Gerais em busca de trabalho o fazem porque
não possuem uma fonte de renda. Este, aliás, conforme se apontou também em depoimentos
anteriormente citados, é o argumento predominante entre a população mais velha. A senhora
Maria contrapõe-se aos trabalhadores que viajam pelo fato de que ela e seu marido possuem
uma renda com a qual conseguem “viver”, sendo os dois aposentados. A aposentadoria
constitui-se uma tranqüilidade para o casal e, ao mesmo tempo, garante também a manutenção
da vida de seus filhos e netos, por isso alega que não sobra nada do que ganham.
Um trecho de destaque do depoimento da senhora Maria Gomes, é a relação que
estabelece entre as viagens e a idade. Ela argumenta que o casal já não viaja em busca de
17 Depoimento da senhora Maria Gomes, em sua residência em Horizonte Novo no dia 20 de julho de 2007. A senhora Maria concedeu a entrevista ao lado do marido, senhor Marino Gomes, na qual os dois narraram suas histórias com bastante sintonia ao contar os acontecimentos de suas vidas, principalmente, no que se tratava dos trabalhos e dos filhos.
138
trabalho porque estão “velhos” e, conseqüentemente, já possuem uma renda “estável”, o que
vai de encontro à opção que fizeram no passado de trabalhar nas lavouras de café no estado do
Paraná conforme narrou o senhor Marino. Nesse sentido, é importante retratar a forma como o
casal se conheceu. A senhora Maria é de origem cearense, cuja família migrou para o estado
do Paraná nos anos de 1940. O senhor Marino, nascido na região de Horizonte Novo morou
muitos anos fora do estado da Bahia, viajando sozinho; trabalhou no estado do Paraná em
constantes movimentos de idas e voltas que ele alega foram um total de cinco vezes. Foi
nestas viagens que ele conheceu a senhora Maria e acabaram se casando no estado do Paraná,
moraram lá ainda alguns anos depois de casados, até decidirem se mudar para Horizonte
Novo, onde o senhor Marino adquiriu uma pequena propriedade. Mesmo após se
estabelecerem em Horizonte Novo, viajaram para o estado do Paraná ainda mais duas vezes
em busca de trabalho. Após a geada dos anos de 1970 que acabou com parte da produção de
café no estado, decidiram então retornar em definitivo para Horizonte Novo, conforme
relataram em seu depoimento, e de onde não mais saíram para trabalhar. De algum modo, o
depoimento da senhora Maria, assim como a sua própria trajetória de vida, revela que a busca
por outras regiões e trabalho são pensados como uma forma de dialogar com uma
determinada situação, quando ainda se é jovem ou se tem força física para se submeter a
situações de trabalho que exigem grande esforço.
Entre os homens mais velhos, moradores da região pesquisada, observa-se que parte
dos anseios em conquistar algum bem ou produto é manifestada de outra forma, o poder de
compra e aquisição é pensado não mais como possibilidade a partir da realização de uma
atividade remunerada a curto prazo. A fonte de renda para esse grupo da população está
vinculada, em geral, às pequenas propriedades que possuem, aos animais e pequenos
rebanhos que criam, assim como a aposentadoria a que têm acesso pelo Fundo de Assistência
ao Trabalhador Rural, na grande maioria dos casos, é que acaba por sustentar também filhos e
netos.
A importância da aposentaria para estes grupos da população pode ser observada nas
entrevistas:
Aposentadoria naquelas época não existia. Não existia não. Meu pai morreu já com idade de 70 ano e não era aposentado. Hoje não, hoje interou 60 anos já está podendo, a mulher interou 55 já está podendo. Tudo já tem sido mais fácil de se viver.18
18 Depoimento do senhor Fernando Araújo, 66 anos, em entrevista realizada em sua residência em Horizonte Novo no dia 6 de agosto de 2006.
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Outro depoimento destaca como a aposentadoria é pensada por estes grupos e revela
outros elementos:
Depois que inventou a aposentadoria, a gente deve botar as mãos pro céu e entregar o finado Getúlio Vargas todo dia pra Deus ajudar. É, porque foi quem, foi quem colocou essa lei, pagar férias, pagar décimo terceiro e aposentar o pessoal. Se não fosse ele, não tinha jeito. Eu estou considerando o Lula igual o finado Getúlio, porque o Lula está fazendo a mesma tarefa, viu?19
Vale destacar que, de acordo com os depoimentos, parte das mudanças que parecem
ter ocorrido nas condições de vida dessa população está associada ao acesso a direitos
adquiridos como a aposentadoria20 ou mesmo os direitos trabalhistas. A comparação que o
entrevistado fez entre o então Presidente da República Getúlio Vargas e o Presidente no
período da entrevista, e então candidato à reeleição, é outro elemento a ser considerado. Nas
diversas casas em que eu chegava e mesmo na residência do entrevistado senhor José Barbosa
as questões políticas foram lançadas e, naquele período, mês de agosto de 2006, aquela
população acompanhava através da televisão as campanhas presidenciais; as pessoas
acompanhavam e comentavam sobre os índices e defendiam a reeleição do Presidente Lula
como alguém que, filho do Nordeste, estava fazendo a diferença para suas vidas.
É importante observar, nesse sentido, que a aposentadoria assim como os programas
de transferência de renda do Governo Federal, especialmente o programa Bolsa Família e,
anteriormente o Bolsa Escola, possuem para essa população um grau de importância mais
significativo que para outros grupos da população de outras áreas do país.
Ao narrar as condições em que vive parte da população da sua região o senhor José
Barbosa oferece o seguinte depoimento:
E a sorte, a sorte nossa aqui, de muita gente aqui foi depois dessa Bolsa Família, foi depois que o presidente entrou, que o Lula entrou. Foi que melhorou muito. Porque todo, quase todo mundo tem um salarinho de sessenta e cinco, de noventa e cinco. Se não é isso, Ave Maria rapaz, as pessoa morria tudo de fome. Esse benefício começou com Fernando
19 Entrevista com o senhor José Barbosa, 71 anos, no domingo 6 de agosto de 2006 em sua residência, onde recebia várias pessoas que o procuravam para que as benzesse. 20 Um dos estudos que analisam a relação entre a previdência e a redução da pobreza no Brasil aponta que: “O fato de a previdência reduzir a pobreza não significa que esse instrumento esteja atuando sobre os mais pobres. Como acabamos de mostrar, os recursos da previdência não fluem entre as gerações de modo a equilibrar a pobreza de uma para a outra. Assim, se quiséssemos mesmo que a previdência fosse entendida como um programa redistributivo, poderíamos redesenhá-la de modo a, mantido o volume de recursos, deslocar parte deles para os mais pobres – os jovens e as crianças – e, com isso, reduzir o grau de pobreza na sociedade.” (TAFNER, Paulo. “Simulando o desempenho do Sistema Previdenciário: seus efeitos sobre a pobreza sob mudanças nas regras de pensão e aposentadoria”, In: TAFNER, Paulo e GIAMBIAGI, Fabio (Orgs.) Previdência no Brasil: debates, dilemas e escolhas. Rio de Janeiro: IPEA, 2007, p.
140
Henrique, mas ele começou dar o Bolsa Escola, mas depois quando o Lula entrou foi que melhorou.21
Como se observa são apontados os programas de transferência de renda como agentes
responsáveis por parte das mudanças que os moradores do povoado de Horizonte Novo
observam ao longo dos últimos anos. O acesso a uma fonte de renda mínima, principalmente,
administrada pelas mulheres, conforme revelado em diferentes depoimentos garante a
manutenção de famílias inteiras que, com o valor recebido, pagam parte das compras do
mercado, adquirem os alimentos básicos para os filhos, enquanto os maridos buscam a
realização de alguma atividade e algum rendimento.
Eu acredito que nem todo mundo recebe, ne. Que isso também ajuda muito, as mães de família pobre, ajuda muito, é pouco mas serve né. Pior se não tivesse nada. Se não recebesse dinheiro nenhum teria fome na região. Tinha. Mas recebe esse dinheiro, ajuda compra alguma coisa, né, quando eles recebe, já compra né.22
Nesse sentido, de acordo com dados do Ministério do Desenvolvimento Social e
Combate à Fome, o município de Monte Santo possui 10.025 (dez mil e vinte e cinco)
famílias cadastradas no Programa Bolsa Família e destas 8.276 (oito mil duzentas e setenta e
seis) receberam o benefício em dezembro de 200823. Vale mencionar que o município possui
cerca de 57.000 (cinqüenta e sete mil) habitantes.
Nessa direção, alguns dados referentes ao percentual de domicílios por Unidade da
Federação que receberam dinheiro de programa social do governo no ano de 2006 oferecem
uma perspectiva sobre a representatividade desta renda para determinadas populações. Tem-se
que no estado da Bahia 33,3% dos domicílios particulares receberam dinheiro de programa
social do governo. Destes 56,7% não possuíam renda per capta ou apresentavam renda de
menos de meio salário mínimo; 27,8% tinham renda entre meio e um salário mínimo per
capta e 7,3% possuíam renda de um salário mínimo ou mais24. Pode-se considerar que há um
alto índice de domicílios no estado que receberam algum benefício de programas sociais do
governo em comparação a outras Unidades Federativas como o caso de Minas Gerais, 19,1%
do total de domicílios, e São Paulo 7,6%. Vale notar que os estados do Nordeste brasileiros
estão entre aqueles em que há maiores índices de domicílios que foram atendidos pelos
21 Entrevista com o senhor José Barbosa, 71 anos, no domingo 6 de agosto de 2006 em sua residência, onde recebia várias pessoas que o procuravam para que as benzesse. 22 Depoimento do senhor Basílio Miguel da Silva (Duda), em entrevista realizada na residência do seu vizinho, senhor Valdir Deolindo de Lima, no dia 21 de julho de 2007, na comunidade do Sítio do Geraldo. 23 Informações disponibilizadas em: <www.mds.gov.br/adesao>. Acesso em: jan. 2009. 24 Informações colhidas em: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2006.
141
programas de transferência de renda do Governo Federal como Pernambuco 34,9% e Ceará
39%. Contudo, pensar estes dados referentes aos programas de transferência de renda
possibilita dimensionar não o quanto estas áreas parecem ser atingidas por um alto índice de
pobreza, mas em como estas populações passaram, nos últimos anos, a ocupar outras posições
sociais com o mínimo que receberam do Governo Federal. Tais programas permitiram a
milhares de famílias o acesso mínimo às possibilidades de atendimento das necessidades
básicas como a alimentação.
Cabe destacar que entre as possibilidades de acesso a renda como os programas ou a
aposentadoria, esta foi apresentada pelos entrevistados nas áreas rurais como elemento
importante na manutenção das famílias, mas os programas de renda mínima parecem ter
maior peso entre os moradores do povoado que não possuem acesso à terra, pois não têm
como produzir o mínimo para a subsistência. O fato de algumas famílias possuírem pequenas
glebas caracteriza uma condição diferenciada de vida, mas não é o elemento que distingue
aqueles que viajam ou não.
As saídas em busca de trabalho, conforme aparece em diferentes depoimentos
coletados, vêm sempre tomadas de muitas expectativas e, quase sempre aparecem como
possibilidade e contraponto ao que experimentam no dia-a-dia na região de moradia. Ao
mesmo tempo em que se observa a população masculina mais diretamente envolvida com
estes movimentos, têm-se que mesmo entre os homens há elementos que diferenciam as
escolhas entre quem vai e quem fica.
Ao que parece é mais comum os homens casados se deslocarem, embora não seja uma
regra. Nessa direção, Rosental aponta em suas análises acerca das migrações no interior da
França no século XIX que os homens casados parecem ser mais estáveis que os demais, mas
em todo caso, são mais móveis25. Esta situação talvez possa ser pensada para os homens
casados de Horizonte Novo que buscam outros meios e fontes de renda a fim de proporcionar
uma condição social diferenciada à sua família. De acordo com alguns depoentes, os mais
jovens, considerados aqueles que não possuem mulher e filhos, argumentam que “é mais
difícil de vim porque [jovem solteiro] não tem problema, não tem família pra sustentá”26. Tal
condição parece permitir ao jovem não ter que se deslocar, o que pode significar enfrentar
condições adversas e que podem ser deixadas para um próximo momento da vida, mas ao
25 ROSENTAL, Paul-André. Les sentiers invisibles: espace, familles et migrations dans la France du 19eme siècle. Paris: Editions EHESS, 1999. p. 43. 26 Depoimento do senhor Manoel José, 27 anos, solteiro, residente em Monte Santo-Bahia, em entrevista realizada em 6 de junho de 2004, na venda próxima da fazenda onde trabalhava.
142
mesmo tempo, com uma idade mais avançada os homens também não estão mais dispostos a
tal façanha, daí a grande maioria ter entre dezenove e cinquenta anos, aproximadamente.
O fator idade pode ser considerado em relação àqueles que viajam, mas não em
relação à condição de ser solteiro ou casado27 uma vez que a idade com que se casam é, em
geral, muito baixa. Nesse aspecto, alguns dos trabalhadores que foram entrevistados em 2006,
no ano seguinte haviam se casado, como foi o caso de Gilson de dezenove anos, cuja mulher
conheci quando lá estive, e do senhor Jailson que aos 22 anos completava três anos de
casamento. Nesse caso, na tentativa de compreender os fatores que propiciam a alguns
partirem e a outros não, possa se pensar, por um lado, na possibilidade de que o processo de
deslocamento para alguns indivíduos dessas populações se caracterize como um “privilégio
dos menos pobres”28, embora cada indivíduo e sua família acabe construindo estratégias para
também realizar a viagem. Por outro lado, parece haver um ciclo migratório uma vez que
pode-se dizer que há uma referência do itinerário de migração com o ciclo vital do indivíduo e
seus projetos de vida. Nesse sentido, “a idade do migrante, sua posição social, seus objetivos
(casamento, construção de uma casa...), suas escolhas de investimentos na comunidade de
origem interferem o percurso migratório”29.
O argumento do privilégio entre os menos pobres pode ser discutido no caso dos
trabalhadores da região norte da Bahia, pois na maioria das vezes, não há recursos para se
pagar a passagem, mas tal fato não impede o trabalhador de viajar, o dinheiro para pagá-la é
tomado de empréstimo com algum agiota30 no próprio povoado. Em alguns casos, esse
empréstimo é realizado com um aliciador que cobra juros altíssimos pelo serviço, tanto que os
primeiros pagamentos recebidos com o trabalho na colheita são para pagar a passagem e
evitar que os juros aumentem vertiginosamente, conforme se registrou em algumas narrativas,
especialmente no depoimento da senhora Valdina, cujo marido e dois filhos estavam
trabalhando na lavoura na ocasião de sua primeira entrevista:
Sai daqui, eles toma dinheiro a juro. Pega dinheiro aqui com os vizinho que tem mais condição, né. Pega a juro, aí pega o dinheiro da passagem e
27 A denominação casamento, não é necessariamente utilizada aqui para expressar as uniões realizadas oficialmente na instituição religiosa ou civil. A grande maioria dos casamentos, principalmente entre os mais jovens, são uniões não oficializadas e por isso são também conhecidos como amasiados, amigados e outras expressões populares. 28 Esta é uma possibilidade apresentada nos estudos sobre as migrações ocorridas na região do Pampa Churigua na Bolívia no qual alguns fatores como o acesso à terra e a idade dos homens que migram influenciam e determinam o período em que permanecem ausentes de sua região. (CORTES, Geneviève. Partir pour rester. Survie et mutations des societés paysannes andines (Bolivie). Paris: Éditions de l’IRD, 2000. p. 163-164). 29 Ibidem, p. 260. 30 Tem-se nesse papel proprietários de algum comércio no povoado ou de um antigo agenciador na região de origem.
143
o dinheiro do café, né, pro caminho [referindo ao dinheiro gasto durante a viagem para alimentação]. Aí como eles trabalham, de lá diz que iam mandar, e mandam, né. Manda pra pagar, o juro, o dinheiro que tomaram, né? Senão ainda mais aumenta, e lá já ganha pouco né? E assim... eles deposita, eles pega o número d’uma conta, eles deposita, né? Porque senão o juro vai longe e aí não dá, né?31
Em geral, quando se trata de grupos de trabalhadores migrantes observa-se que ao
serem “contratados” estes trabalhadores têm suas passagens pagas pelo empregador ou o
aliciador que recebem pelo valor após os trabalhos, provocando, em grande número de casos,
a submissão do trabalhador ao empregador uma vez que ele chega para o trabalho já
endividado com o patrão, o que se pode chamar de imobilização da mão-de-obra, cujo efeito é
o seu baixo custo, conforme discutem Esterci e Silva32. No caso dos trabalhadores
pesquisados observa-se que o fato de tomarem o dinheiro emprestado para pagarem a
passagem dá-lhes uma certa autonomia em relação aos empregadores pois não ficam restritos
ou pressionados a permanecerem em uma só fazenda, ou mesmo a um possível aliciador de
forma tão direta. Em diversos momentos a pesquisa levou a conhecer o processo de
pagamento das passagens ou do agiota. Em geral, estes trabalhadores não possuem vínculos
bancários com nenhuma instituição financeira. Desse modo, ao tomarem emprestado o valor
necessário com o agiota, que em geral é um comerciante do povoado, tem-se que os
trabalhadores ao receberem o primeiro pagamento nas lavouras de café depositam o dinheiro
diretamente na conta bancária do agiota33. Ao questionar a senhora Valdina sobre como seu
marido lhe enviava o dinheiro para pagar as contas afirmou:
Eles deposita, pega assim o número de uma conta. Que ele saiu devendo muito aqui, sabe, e quando acaba ele deixou um débito aí no mercado. Que até ele mandou duzentos ainda ficou ainda bem uns cento e cinqüenta pra dar ainda, fora às vezes no açougue que ele está trabalhando essa semana pra ver se Deus ajuda pra ele mandar o dinheiro para pagar o açougue34.
31 A entrevista foi realizada na residência da Senhora Valdina de Lima, de 54 anos, em Horizonte Novo-BA, no dia 6 de agosto de 2006, após algumas conversas informais, em que demonstrava muitas saudades de seu marido e dos dois filhos que estavam trabalhando nas lavouras de café. 32 ESTERCI, Neide. Escravos da desigualdade: um estudo sobre o uso repressivo da força de trabalho hoje. Rio de Janeiro: CEDI: Koinomia, 1994; SILVA, Maria Aparecida de Moraes. Migrants temporaires dans les usines de canne à sucre de l’état brésilien de São Paulo. Migrations Société. Paris, CIEMI, v. 20, n. 115, p. 125-146, janv./févr. 2008. p. 133. 33 Um dos proprietários da região que emprega cerca de oito trabalhadores todos os anos apresentou em nossa conversa uma série de comprovantes de depósitos bancários nominais a uma mesma pessoa, referindo aos depósitos que o proprietário teria efetuado a pedido dos trabalhadores com os valores ganhos por eles e que seriam enviados para pagar o empréstimo inicial e para as famílias, conforme o relato de José Campaner. 34 A entrevista foi realizada na residência da senhora Valdina de Lima, 54 anos, em Horizonte Novo-BA, no dia 6 de agosto de 2006, após algumas conversas informais, em que demonstrava muitas saudades de seu marido e dos dois filhos que estavam trabalhando nas lavouras de café.
144
Pode-se observar pelo depoimento que as contas bancárias utilizadas não pertencem
aos familiares dos trabalhadores, mas sim, a pessoas que são os comerciantes na região, uma
vez que os valores são enviados para quitar algumas dívidas, conforme narrou a senhora
Valdina. Nesse aspecto, ainda, as remessas de dinheiro que enviam às suas famílias passa
também pela conta do agiota ou do comerciante. Ocorre que, na grande maioria das vezes, as
mulheres ou familiares acabam não recebendo o dinheiro em mãos, pois descontam-se os
valores de despesas gastas pela família que adquire os produtos necessários à manutenção na
casa comercial, seja o mercado ou o açougue.
Para pagarem seu débito não precisam trabalhar nesta ou naquela fazenda de café,
ficando na dependência do fazendeiro, basta que enviem o dinheiro para suas famílias ou
mesmo diretamente ao agiota. Este elemento é essencial para muitos trabalhadores que, se
estiverem descontentes com os ganhos em uma fazenda, rapidamente buscam informações
com outros trabalhadores para mudar de local de trabalho, isto lhes garante alguma
autonomia.
Além desta autonomia, o fato de pagar sua própria passagem, ainda que seja tomando
de empréstimo o valor, um dos entrevistados revela que, em alguns casos, os trabalhadores se
dirigem para a região do café antes mesmo do período da safra para poder ganhar algum
dinheiro e quitar a dívida com o agiota, pois a partir do momento em que começar a ganhar
um pouco mais na colheita o seu ganho é líquido podendo poupar mais para levar para casa.
O senhor Jailson revela em seu depoimento uma das estratégias adotadas por alguns
trabalhadores:
A maioria toma dinheiro emprestado né, pra ir, nesse mesmo agiota que eles deixam, né, alguns quando já pega o dinheiro, aí eles tomam a juros eles já empresta já a quinze por cento. Ele pega a três por cento e quando vai é quinze por cento. Olha que diferença né. A maioria pega. Aí vai antes pra quando trabalhar na colheita não ter que, não pegar mais daquele dinheiro, não retirar mais, aí eles mandam aqui, acerta a dívida.35
O entrevistado revela conhecer parte das artimanhas de alguns trabalhadores e também
a dos agiotas que financiam estas viagens. De acordo com o depoente, alguns trabalhadores
quando retornam dos trabalhos nas lavouras entregam o dinheiro ganho aos agiotas sob uma
taxa de 3% (três por cento) de juros, como uma forma de não gastar o dinheiro de uma vez e
fazer uma espécie de poupança. Mas, quando o agiota é acionado por outro trabalhador que
precisa do dinheiro para viajar a taxa de juros é de 15% (quinze por cento), o que faz com que
35 Depoimento do senhor Jailson Araújo, 22 anos, em entrevista realizada no dia 22 de julho de 2007, numa tarde quente de domingo na residência de seus pais em Horizonte Novo-BA.
145
a grande maioria envie o dinheiro para saldar esta dívida assim que recebe os primeiros
pagamentos.
Dirigir-se para a safra de café é, portanto, um momento que envolve outras pessoas
além dos trabalhadores e seus familiares. Por certo, o comércio local, assim como outros
indivíduos acabam atingidos pelos resultados obtidos por aqueles que, anualmente, se
colocam em movimento.
Para realizarem os seus objetivos, vê-se que os enfrentamentos não são poucos.
Importa observar que os deslocamentos aparecem e são representados de maneira diferenciada
por cada um dos grupos envolvidos no processo, para aqueles que empreendem as viagens e
para aqueles que permanecem em sua região.
146
3.2 Representações de Minas e das viagens
Há um conjunto de representações sobre a região produtora de café, formulado e
divulgado pelos trabalhadores em seu local de moradia. A partir de conversas e narrativas dos
parentes e amigos próximos daqueles que viajam observa-se que há uma dada compreensão
dos significados do trabalho na lavoura, ou seja, a forma como ele é realizado, como vivem
durante o período que estão fora de casa, os conflitos ou as relações que estabelecem, como se
organizam no dia-a-dia, enfim. Aqueles que permanecem ouvem apenas que é muito difícil e,
talvez, não conseguem dimensionar o grau dessa dificuldade, como se observa no depoimento
da senhora Valdina, cujo marido e dois filhos trabalhavam nas lavouras de café em Minas
quando foi realizada a entrevista:
É, eles conta que, tem vez assim que tá bom, tem semana que tão ganhando mais, semana que tão ganhando menos, fala que tá ganhando menos. Não fala mal assim, os patrão é muito bom. Ontem mesmo meu marido ligou, falou que ele tava até lá, onde eles tava. Fala que eles mora em barraco, eles mesmo cozinha. Chega a noite eles faz a marmita pro outro dia, pra janta e a marmita. Eles fala isso.36
A dimensão do que experimentam estes trabalhadores parece não ser aferida por seus
parentes. Pelo depoimento da senhora Valdina percebe-se que as dificuldades são pensadas e
percebidas mais em relação aos ganhos ou às expectativas de produção, enquanto as demais
implicações do convívio, das relações de trabalho, da realização do próprio trabalho, das
condições de permanência nos alojamentos, enfim, do seu cotidiano, parecem ser secundárias.
Ainda nessa direção, dizer que mora em barraco é diferente de experimentar tal condição,
assim como o fato de cozinharem à noite o alimento para o dia seguinte parece ser apontado
como parte da dinâmica de quem opta pelo trabalho na lavoura de café, mas que, nem com
toda essa situação “falam mal”, seja do trabalho ou do patrão, pois todos são bons para eles.
Outro entrevistado, senhor Jorge, cujos filhos viajam todos os anos para o trabalho nas
lavouras de café, também relata o que ouve de seus filhos:
Eles só conta que, dificuldade, trabalho muito, e aí o que ganha num dá pra nada, é tudo é pouquinho. E vai tirar despesa lá pra pagar lá, chega
36 Depoimento da senhora Valdina de Lima, 54 anos, em entrevista realizada em sua residência em Horizonte Novo-BA, no dia 6 de agosto de 2006, após algumas conversas informais, em que demonstrava muitas saudades de seu marido e dos dois filhos que estavam trabalhando nas lavouras de café.
147
aqui com uns seiscentos, setecentos, quatrocentos, outros às vez, mais de mil. Depende da sorte.37
Para o senhor Jorge Amador as dificuldades estão relacionadas ao custo-benefício que
o trabalho e o período fora de casa podem representar, mas ao mesmo tempo ele condiciona o
fator “sorte” principalmente às fazendas com mais produção e aos empregadores que melhor
pagam pela saca de café colhido. Ao perguntar a outro depoente, o senhor Jorge da Mota, o
que ele pensava das viagens de seus filhos para as lavouras de café respondeu: “Boa vida lá
não tem não. Tenho certeza que não tem não”38, demonstrando uma certa familiaridade com o
que representa sair pelo mundo para trabalhar longe de sua terra natal. Mas, para aqueles que
realizam o intento de ir trabalhar e conhecer a região produtora de café, como percebem as
relações e os contatos com os trabalhadores e moradores dessa região? Sem o intuito de
responder a estas questões, os depoimentos possibilitam analisar algumas problemáticas.
O senhor Tito afirma em seu depoimento:
Lá é muito sofrimento pra gente ganhar dinheiro. Aqui por pouco que a gente ganha mais tá em casa, sem despesa, né? Por mais pouco que a gente ganha... A gente vai pra ganhar um pouco mais de dinheiro, mas não acha bom, não.39
O entrevistado faz questão de colocar a dificuldade que representa ficar fora de casa,
mesmo que seja para ter acesso a um rendimento um pouco maior. Ao que parece, mesmo
tendo em vista este aumento da renda o trabalhador não acha bom, não o faz porque gosta,
mas porque talvez seja impelido a realizar tal intento tendo em vista o futuro de sua família.
O senhor Tito pondera os ganhos que tem em um e outro espaço com as dificuldades
que enfrenta para obter um orçamento maior. O fato de estar em outro local, longe da família,
para além da questão da distância, há também o elemento referente à manutenção da vida dos
seus e da sua própria: quando estão todos juntos as despesas aparentam ser menores; quando
estão longe de casa, há as despesas da família que ficou em casa e a sua própria. Daí a idéia
de que, talvez, a viagem não seja assim uma grande vantagem, pois se tem mais as despesas
de viagem, entre outras que serão abatidas do valor ganho na safra, sem falar nas dificuldades
no desempenho das atividades e nas condições em que permanecem instalados nas fazendas,
como foi abordado anteriormente.
37 Depoimento do senhor Jorge Amador, 59 anos, em entrevista realizada em sua residência na área rural de Monte Santo-BA, no dia 6 de agosto de 2006. 38 Depoimento do senhor Jorge da Mota, 68 anos, em entrevista realizada em sua residência em Horizonte Novo-BA, onde também se encontrava sua mulher a senhor Maria da Mota, 62 anos, no dia 6 de agosto de 2006. 39 Depoimento do senhor Tito de Jesus, 31 anos, coletado em 6 de agosto de 2006, em sua residência na área rural de Monte Santo-BA.
148
Mesmo diante das dificuldades enfrentadas por estes trabalhadores, não se pode
dimensionar o número de indivíduos que partiram motivados pelos discursos de parentes e
amigos que trabalharam nas lavouras de café. Provavelmente, construiu-se uma série de
discursos que propagam as representações sociais das lavouras de café ou de Minas, como a
maioria dos moradores dizem. Nas várias conversas e depoimentos Minas aparece como local
de oportunidade, mas também como lugar de desventuras, onde o sofrimento e as dificuldades
não parecem minorados, especialmente por aqueles seus parentes cujas experiências foram
frustrantes.
As representações acerca do trabalho nas lavouras podem ser pensadas a partir do
depoimento do senhor Jailson:
Um monte de gente, assim, colega meu não agüentaram o serviço, era muito pesado. Que eles imaginam uma coisa quando chega lá é outra né? É bastante diferente, uns pensa que é cidade, é perto da cidade. Vai, as área lá são distante, as fazenda são distante uma da outra, não é perto. Aí a maioria vai enganada, pensa que só é chegar e juntar o dinheiro e vim embora, mas não é.40
Os elementos apontados pelo entrevistado possibilitam pensar que, parte dos
trabalhadores que se aventura em terras mineiras para trabalhar nas lavouras de café é
influenciada por imagens e histórias contadas por aqueles que já o fizeram. O comportamento
registrado pelo depoente remonta à questão de alguns indivíduos estarem “enganados” em
relação não só ao trabalho, mas também ao lugar e as suas condições, percebendo que o
dinheiro tão propalado por quem já possui essa experiência não é tão fácil de ganhar. Em
depoimentos como o do senhor Jailson, a distância e a dificuldade de acesso e comunicação
com outros trabalhadores e fazendas aparece como elemento que permite refletir acerca das
distâncias dos sítios em sua região e a facilidade que possuem para se locomover e que é
bastante restrito nas fazendas de café. Nesse sentido, o depoimento do senhor Genivaldo
oferece a seguinte afirmação: “Pra qualquer lugar que a gente quer ir é na perna. Lá a gente
tem o carro ou tem uma moto, né, a gente não pára. Agora aqui tudo se quiser ir tem que ser
na botina [risos], aí é ruim, é ruim mesmo”41. A forma como o senhor Genivaldo olha para o
lugar do trabalho na safra do café e a sua região de origem passa, em parte, pelas suas
condições materiais em um e outro espaço. Como trabalhador de fora, sua condição é de
dedicação ao trabalho, com poucas possibilidades de se locomover pela região até porque sua
40 Depoimento do senhor Jailson Araújo, 22 anos, em entrevista realizada no dia 22 de julho de 2007, numa tarde quente de domingo na residência de seus pais em Horizonte Novo-BA. 41 Depoimento do senhor Genivaldo Santos, 24 anos, na tarde de sábado, 15 de julho de 2006 no alojamento onde ele e seu grupo estavam instalados em uma fazenda do Triângulo Mineiro.
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finalidade é o trabalho. Enquanto morador em sua região não há porque se limitar ou se impor
determinadas condições, pois ali se encontra em casa, conhece tudo e a todos.
Continuando o depoimento o senhor Genivaldo ainda oferece a seguinte afirmação:
A gente estava trabalhando em Irecê, colhendo feijão e aí falaram que tinha café aqui, que aqui era bom. Mas muitas vezes, tem muita gente que vem enganado achando que aqui é uma [pronuncia a palavra lentamente dando a conotação de que é muito diferente do que se diz] coisa e chega é outra [risos]. É até pior do que onde a gente mora [risos]. Tem muita gente que pensa: oh vou pra Minas Gerais e acha que é um lugar, é na cidade, quando chega aqui. Pior do que lá o serviço, mais pesado. E nem imagina o serviço que deve ser aqui, o duro que a gente dá.42
O depoimento aponta para as possibilidades de interpretação daqueles que ouvem as
histórias contadas pelos trabalhadores que já experimentaram os deslocamentos para a região
de café no Cerrado Mineiro e acabam se decepcionando com o que se deparam, pois, ao que
parece, não encontram o que esperavam além das dificuldades em relação ao trabalho que,
para o depoente, é muito mais difícil que o trabalho que executa nas lavouras em sua região.
Não raras vezes, ouvi narrativas e depoimentos de parentes que não tinham se
adaptado ao trabalho, que tinham passado por sérias dificuldades durante o período em que
permanecem nas lavouras de café.
Já fez seis ano que ele foi a última vez. Ele não tava se dano bem. Por que o que trabalhava não dava não, tava dando bem poquinho. Uma vez ele foi mais o Luiz, essa última vez chegô com trinta reais só. Foi saindo de fazenda em fazenda, cada vez mais e ruim, desceram tudo e uns foi pra São Paulo. Ele chegou aí podre, podre, de uma gripe que quase que morria, só deitado no chão, diz que aonde caía uma água direto de encanação sabe, no chão. Foram muitos, tudo pra São Paulo, ele, quase que dava uma pneumonia. Lá num é brincadeira não. Quando pega uma fazenda boa ainda dá pra uns.43
Na maioria das vezes, as experiências frustradas, sejam por questões trabalhistas ou
pelas questões de saúde, contribuem para a continuidade ou não das viagens em anos
vindouros, influenciando os indivíduos na decisão de retornar ou não. No caso do depoimento
da senhora Rita o marido já não viajava há seis anos, pois não teria tido sucesso em duas
viagens que empreendeu.
Outro relato instigante é o da senhora Maria Leide:
42 Depoimento do senhor Genivaldo Santos, 24 anos, na tarde de sábado, 15 de julho de 2006 no alojamento onde ele e seu grupo estavam instalados em uma fazenda do Triângulo Mineiro. 43 Enquanto entrevistava o senhor Jorge da Mota e sua mulher senhora Maria da Mota em sua residência, eles receberam uma prima chamada Rita que ficou durante nossa conversa e também deu seu depoimento acerca das viagens que o marido fizera.
150
O Zezito quando ele foi, foi em 98 que levou muita gente, levou quase trezentas pessoas que a gente nem imaginava de vim todo mundo inteiro, de voltar, pois sofreram muito lá, passaram até fome. Meu marido mesmo passou até fome lá em Minas, só veio porque Deus é mais. Na época chegou aqui com oitenta conto porque achou um filho de Deus que ajeitasse a ele... Ele está lá agora. Ele passou fome lá e aí ele diz que tinha vez que imaginava nunca mais de vim aqui na terra dele, porque o que passaram lá a primeira vez que ele foi! Aí sofreram muito.44
Chama a atenção no depoimento da senhora Maria Leide o número de trabalhadores
que afirma terem saído de Horizonte Novo no ano de 1998, cerca de trezentas pessoas. De
acordo com conversas e informações coletadas na região o povoado de Horizonte Novo tem
cerca de 1.200 eleitores, o que implica em uma população um pouco maior que isso. Os
trabalhadores que se envolveram com a atividade de colher café parece ser uma parcela
representativa para o número da população local. Contudo, o fato de sair um grande número
em direção à mesma região, alguns não chegaram a trabalhar muitos dias como revelou o
senhor Manoel em depoimento já citado. Os trabalhadores acabaram se revezando nas vagas
de trabalho a fim de que todos conseguissem o mínimo para a sua manutenção; talvez a
afirmação de que tenham passado fome remeta a este aspecto. Outro elemento a destacar é o
fato de o senhor Zezito estar trabalhando no café no período em que foi coletado o
depoimento de sua mulher. Tal fato talvez aponte para as formulações que alguns indivíduos
tecem sobre suas experiências e as opções que fazem ao longo de sua trajetória de vida,
utilizando as dificuldades passadas em momento anterior para dialogar com outras
possibilidades e enfrentar o que parece ser duro demais na perspectiva de que seja diferente.
As narrativas de trabalhadores, assim como de alguns familiares indicam, portanto, um
movimento de deslocamento que se formou, em parte, pela propaganda feita sobre a região do
café. Muitos chegaram a participar do movimento em um primeiro momento, mas sem
encontrar as condições relatadas acabaram passando por dificuldades, tentando em outros
momentos realizar a mesma empreitada ou desistindo de realizá-la. A questão de uma certa
propaganda sobre a região veiculada entre os trabalhadores pode ser pensada através do
depoimento da senhora Carminha:
O povo falava muito, né, que era bom, bom, digo: pois então eu vou lá pra mim ver [risos]. Vê se é bom mesmo! Só que eu me enganei, né. É bom assim que a pessoa trabalha ganha seu dinheiro, né, que lá ninguém
44 Depoimento da senhora Maria Leide, que se encontrava na residência do senhor José Barbosa no momento em que realizava a entrevista com ele, mas ela sempre emitiu suas opiniões e experiências, participando de toda a entrevista.
151
pega dinheiro mesmo, só pega dinheiro quando o marido trabalha, mas não dá nem pra fazer a compra né, pra sobreviver. Aí o dinheiro não chega pra dar pra mulher, né?45
O que parece ser uma dinâmica da “propaganda” que se faz entre os indivíduos de
uma comunidade pode ser explicada, talvez, pelo papel das redes sociais no processo de
deslocamento, uma vez que estas podem estar relacionadas à dinâmica no sistema de
organização coletiva existente no interior da comunidade.
O depoimento da senhora Carminha revela que, além de ter sido atraída para Minas,
em parte, pelo que diziam outros trabalhadores, em parte por sua curiosidade, há também
outro elemento importante a ser considerado em relação às mulheres que viajam também para
o trabalho temporário. Embora sejam poucas, não deixam de apresentar suas experiências e
também de revelar como são as condições de vida em seu local de origem, bem como os
valores que, com elas, são construídos e repassados aos filhos. A senhora Carminha aponta,
então, para as dificuldades de se viver em um local onde o acesso a um posto de trabalho é
muito difícil para estas mulheres, que em geral, vivem com o que ganha o marido. Sendo este
um valor muito baixo, acaba se tornando insuficiente para que elas também realizem seus
desejos e sonhos que não passam somente pela manutenção da vida, mas estão relacionados
aos bens de consumo, ao conforto para a casa, a objetos pessoais, que muitas vezes,
constituem objeto de desejo por um tempo prolongado ou até que se tenha a oportunidade de
viajar para a colheita de café, como acontece com outras mulheres como as senhoras Simone
e Eliane entre outras contatadas em Horizonte Novo.
Há uma série de diferenciações feitas pelos inúmeros trabalhadores acerca de
diferentes aspectos presentes em um e outro lugar. Entre estes aspectos aqueles que se
relacionam ao “estranhamento” que parece ser simples como a questão climática, é algo que
faz pensar. O depoimento da senhora Carminha sobre o inverno que se enfrenta na região das
lavouras de café e na região de origem aponta algumas peculiaridades:
E o pior que a gente se dá mal, porque a gente mora lá, né, não tem negócio de ter blusa de frio nem cobertor, né? Aí a gente vem olha, passa frio, né? Porque lá não tem. Tem dia assim que a noite que tá calor a noite que a pessoa toma dois, três banho a noite pra conseguir dormir. É muito quente lá.46
45 Depoimento da senhora Carminha Araújo, 44 anos, no dia 7 de junho de 2005, na casa onde se encontrava alojada com o marido e a filha de doze anos. Vale destacar que a durante quase uma década permanecia na sua região todos os anos quando o marido viajava até o dia em que resolveu viajar também. 46 Depoimento da senhora Carminha Araújo, 44 anos, no dia 7 de junho de 2005, na casa onde se encontrava alojada com o marido e a filha de doze anos.
152
Como este, outros depoimentos também apontam para esta diferença “sentida na
pele”. Não é somente a questão climática, mas o quanto estes trabalhadores experimentam a
dimensão das diferenças entre os espaços no qual residem e no qual se dedicam aos trabalhos
na safra do café.
Outro depoimento que contribui para esta análise é o do senhor Genivaldo quando
aponta:
Rapaz é difícil a gente só fica porque a gente já veio e faz vergonha voltar. Aí [risos] a gente veio, igual tem neguinho aí, igual aqui dessa turma aqui [apontando para um outro grupo de trabalhadores que estavam alojados na fazenda vizinha] já teve um que veio, com oito dia, no primeiro dia de trabalho correu, pra Bahia, voltou. Trabalhou de manhã até o meio dia e vazou. E a gente fica sei lá, fazendo... A gente só fica porque faz opinião, senão corre e vai embora.47
Como se observa, entre os trabalhadores, muitas vezes, as dificuldades aparecem mais
ligadas aos aspectos do trabalho, e não é raro o trabalhador desistir de sua empreitada e
retornar para casa. Entre aqueles que permanecem esta decisão é tomada como um desafio
que parece ser colocado sobre sua vontade e também sobre seu corpo, uma vez que a decisão
de ficar implica em submeter-se às condições de permanência no trabalho e também nos
alojamentos, de sujeitar-se a permanecer contra sua vontade.
Como já foi mencionado anteriormente, tem-se que, em sua grande maioria, as
mulheres permanecem na região de origem dos trabalhadores. Muitas se colocam a cuidar dos
bens que a família possui, fazem a colheita do feijão, cuidam da criação, enfim, outras
permanecem nos povoados à espera do retorno dos maridos. Ao se questionar as mulheres
sobre como é permanecer por alguns meses sem a presença do marido, uma das entrevistadas
respondeu: “A pessoa se obriga, né? A pessoa vendo seu marido trabalhando pegando o seu
dinheiro a pessoa se obriga a ficar”.
Ao afirmar que a pessoa se obriga a ficar pode-se interpretar que, para esta
entrevistada, não faz parte de seu universo de escolhas e sonhos ter o marido viajando
anualmente para as lavouras de café, e se pudesse escolher, talvez esta alternativa não
compusesse a sua vida; mas, dentro da conjuntura em que vive, por ver seu marido tendo
acesso a uma renda maior e aumentando os bens que possui, ela se obriga a ficar sozinha com
as filhas durante os meses em que o marido permanece ausente.
47 Depoimento do senhor Genivaldo Santos, 24 anos, na tarde de sábado, 15 de julho de 2006 no alojamento onde ele e seu grupo estavam instalados em uma fazenda do Triângulo Mineiro.
153
A ausência do marido em casa para estas mulheres pode significar dificuldades, além
da preocupação que demonstram ter com as viagens e o período passado fora de casa. A
senhora Valdina afirmou em seu depoimento, quando questionei sobre como era passar o
período em que o marido estava ausente: “Ah, minha filha, a gente passa até, as vezes, alguma
precisão, né? A gente não pode entrar assim, comprar bastante nos mercados que senão a hora
que chegar não paga, não paga não minha filha”48.
A condição social da senhora Valdina, aparentemente, não seria uma das piores
encontradas no povoado, pois o marido e os dois filhos de dezenove e vinte e dois anos, com
os trabalhos na região no período de entressafra, conseguiam manter as despesas que, ao
aproximar-se do período de colheita de café, eram deixadas fiado no comércio da região para
serem pagas com o trabalho temporário. Contudo, a residência da senhora Valdina era uma
das mais bem estruturadas no povoado: uma casa com três pequenos quartos, uma sala, uma
cozinha e uma varanda, com o piso em cerâmica e pintura nova, contando ainda com um
pequeno quintal e uma pequena horta49. A pesquisa apontou outras famílias cuja estrutura
financeira e emprego do dinheiro conseguido com os trabalhos na lavoura de café era feito de
outra forma, o que não significa que as mulheres também não encontrassem dificuldades
durante o período de ausência de seus maridos.
A preocupação demonstrada em algumas narrativas como da senhora Elisângela,
senhora Carminha e a senhora Maria da Mota, parece estar muito relacionada às questões de
saúde ou aos riscos de seus familiares sofrerem algum acidente seja no percurso da viagem,
seja no trabalho. Pode-se questionar se não ocorre por parte destas mulheres a preocupação
com um possível envolvimento de seus maridos com outras mulheres em terras de Minas, mas
este elemento não apareceu nas narrativas, tendo aparecido uma preocupação que parece
partir dos maridos para com as suas mulheres quando estão fora de casa.
Quando se encontrava nas lavouras em Minas a entrevistada Carminha ofereceu o
seguinte depoimento quando perguntei sobre como era ficar em sua região quando o marido
viajava:
48 Depoimento da senhora Valdina de Lima, de 54 anos, em entrevista realizada no dia 6 de agosto de 2006 na sua residência, em Horizonte Novo. A senhora Valdina aparentava muito sofrimento em sua narrativa. Manifestava seu descontentamento com os sérios problemas de saúde que enfrentava e as dificuldades que estava encontrando para conseguir a aposentadoria que ajudaria na manutenção da família e na aquisição dos medicamentos que precisa adquirir mensalmente. 49 Pode-se afirmar que todas as casas visitadas no povoado contavam com um quintal e uma pequena horta onde podia se encontrar tanto plantas utilizadas para fazer algum chá para ajudar no combate de algum tipo de mal estar como algumas hortaliças e árvores frutíferas.
154
As mulher fica tudo sozinha lá. Aí eles vão, manda dinheiro, né? A pessoa fica fazendo conta no mercado eles fica mandando dinheiro pra pagar a venda, manda dinheiro pra pagar assim mistura, que compra a carne fiado, né. Fica mandando dinheiro. Fica lá tudo sozinha. No momento que tem uma festa só vai a mulherada. Aí os homem não importa não que só está só nós mulher, só dança nós mulher.50
Para além da dinâmica desenvolvida para a manutenção da vida da família com a
partida dos maridos, a entrevistada revela que a sociabilidade e a participação em eventos pela
região não é interrompida, o que pode gerar ciúmes por parte dos maridos que estão longe.
Embora não tenha registrado em entrevista, algumas mulheres do povoado chegaram a narrar
casos de outras mulheres que, no período em que os maridos se encontravam em Minas,
foram morar com outros homens. Pode-se dimensionar que as relações que chegam ao fim
nesta época são percebidas também no momento em que os trabalhadores formam os grupos
para viajar. Aquele que “perdeu” a mulher não aceita trabalhar no mesmo grupo que o outro
com quem ela passou a viver, entre outras situações.
Continuando seu depoimento, a senhora Carminha apontou outros elementos:
A gente fica lá sozinha a gente não sai. Porque lá é um lugar que o povo comenta muito, né? A pessoa, o marido tá aqui, aí tem uma festa e a gente ir, o povo fica comentando. A gente só vai em festa mesmo quando eles estão lá. Aí eles vai e leva a gente, né? A não ser, ninguém tem gosto de ir não.51
Em trecho anterior a entrevistada afirmou que as mulheres participavam das festas
quando os maridos estavam longe, mas no trecho acima de seu depoimento revela que a
presença dos maridos é importante na preservação de sua relação uma vez que as “pessoas
comentam muito” sobre as mulheres que saem para se divertir sem os maridos. Ao que
parece, a vida, tanto daqueles que viajam quanto de suas esposas, se vê alterada por uma ou
outra razão.
A pesquisa possibilitou observar que os parentes e amigos dos trabalhadores que
viajam manifestam de formas as mais variadas, o que sentem quando seus entes queridos
estão fora de casa. A senhora Maria da Mota manifestou-se acerca da saída de dois de seus
filhos para os trabalhos em Minas:
Fico com saudade, chorando, preocupada. Fico preocupada só não fico mais muito preocupada porque eu sei que lá é um lugar assim na roça, né,
50 Depoimento da senhora Carminha Araújo, 44 anos, no dia 7 de junho de 2005, na casa onde se encontrava alojada com o marido e a filha de doze anos. 51 Idem.
155
calmo, não, não sabe que existe briga, nem faca, nem tiro, né. Aí a gente fica mais despreocupada, né. Mas a gente fica com saudade e com falta né.52
Conforme mencionado anteriormente, as mães e esposas demonstram temer pela vida
de seus entes queridos. No caso da senhora Maria da Mota, o que parece tranqüilizá-la é o fato
de não ouvir narrativas de brigas que possam ter um desfecho desagradável e, também, o fato
de ouvir dizer que é um lugar calmo por ser na roça.
Outras mães de trabalhadores manifestaram outra forma de olhar para o trabalho de
seus filhos como o caso da senhora Inês:
Eu gosto que ele vai pra lá. Quando ele chega ele faz qualquer futuro, né. Ele sempre se dá bem. Logo ele é uma pessoa muito adulta, ele não perde o tempo dele, ele gosta de sempre estar fazendo alguma coisa. Por enquanto acho que tá tendo confiança nele, né, porque sempre quando é pra ir aquele pessoal, ele conversa aí com os vizinhos, ele junta aquela turma e vai. Ele gosta de ir. Todo o ano, dê no que der ele está sempre preparado.53
Vale notar que os resultados obtidos pelo filho da senhora Inês se reflete de maneira
positiva na forma como ela percebe as viagens, pois ele sempre consegue algumas conquistas
(“faz qualquer futuro”) e também sempre retorna com seu grupo. Ao que se observa, a
senhora Inês se orgulha do filho que não perde tempo preocupando-se com o trabalho, o que
se reflete nos resultados que obtém, assim como o vê se preparando anualmente para viajar
em busca da atividade temporária, embora sejam proprietários das terras onde moram. Em
depoimento de seu filho Genivaldo, anteriormente citado, ele manifestou que é muito difícil
permanecer nas lavouras de café, embora o faça há seis anos. Isso remete a pensar que, talvez,
as suas dificuldades, encontradas no trabalho ou mesmo nas viagens, não sejam contadas aos
seus pais ou tomem outras conotações, como a do desafio ou da aventura, que parecem
amenizar o que se pensa e o que se enfrenta.
Observa-se que nem tudo os trabalhadores contam sobre os trabalhos, as viagens ou as
relações que estabelecem nas lavouras de Minas Gerais:
Às vezes perguntam, algumas coisa, mas não é todas coisa que o cara vai dizer que eles também não vai nem acreditar, né? Tem coisa que a gente fala eles nem sabem que existe, né? E aí umas coisa, as vezes eles
52 Depoimento da senhora Maria da Mota, 62 anos, em sua residência onde também estava seu marido o senhor Jorge Mota, 68 anos, em entrevista realizada no dia 06 de agosto de 2006. 53 Depoimento da senhora Inês dos Santos, 65 anos em entrevista concedida em sua residência no sítio Mundo Novo, no dia 20 de julho de 2007.
156
percebem dá pra entender, mas tem coisa que pensa que é fácil as coisa, né? Chega aí, ah, nada, é mole, todo ano todo mundo vai!54
Ao ser questionado sobre o que seus pais e familiares perguntavam sobre a viagem, o
senhor Eugênio afirmou que nem tudo pode ser dito. Por um lado pode haver uma tentativa de
não preocupar aqueles que ficam no aguardo de seus parentes, mas por outro, o entrevistado
afirma que pode não haver a compreensão do que está sendo narrado por parte daqueles que
ouvem as histórias. Este elemento talvez possibilite pensar uma das dificuldades encontradas
pelos indivíduos ao retornarem para casa. O retorno pode ser pensado como um momento que
compõe o processo de partida e também, o momento em que o indivíduo que se desloca faz
suas análises e pensa a sua experiência a partir do encontro entre velhos e novos padrões
culturais. Sobre o período em que o indivíduo permanece em outro ambiente e retorna,
principalmente, nos processos de migração internacional, Sayad afirma que
Não se habita impunemente outro país, não se vive no seio de uma outra sociedade, de uma outra economia, em um outro mundo, em suma, sem que algo permaneça desta presença, se que se sofra mais ou menos intensa e profundamente, conforme as modalidades do contato, os domínios, as experiências e as sensibilidades individuais, por vezes, mesmo não se dando conta delas, e, outras vezes, estando plenamente consciente dos efeitos55.
Estes elementos também podem ser pensados para os indivíduos participantes desse
processo de deslocamento temporário, onde se experimenta diferenças concretas em seus
modos de viver e o da região de trabalho, ocasionando mudanças conscientes ou não ao
retornarem para casa.
Sobre os períodos em que os trabalhadores permanecem longe de casa, a senhora
Carminha revelou:
Ele quando vem pra aqui, menina, ele fica doido, doido pra ir embora. Tem vez que assim que ele passa um mês e pouco e vai embora, não agüenta a saudade. Não agüenta saudade vai embora. Aí ele veio e pra ficar seis meses ele disse que não ficava não sem eu, então eu falei assim: se você quiser ficar tu fica. Aí eu fico aqui.56
A entrevistada aponta para as dificuldades que seu marido apresenta para ficar um
longo período longe de casa; ele manifestava sentir muitas saudades da família e, quando ele 54 Depoimento do senhor Eugênio Amador, 30 anos, em entrevista realizada no alojamento onde se instalava no dia 14 de agosto de 2005. 55 SAYAD, Abdelmalek. O Retorno: elemento constitutivo da condição de imigrante. Revista Travessia, n. especial, jan. 2000, p. 14. 56 Depoimento da senhora Carminha Araújo, 44 anos, no dia 7 de junho de 2005, na casa onde se encontrava alojada com o marido e a filha de doze anos.
157
viajou para permanecer seis meses nos trabalhos nas lavouras de café, porque teria
conseguido uma ocupação fora do período da safra não aceitou viajar sozinho e acabou
levando também a mulher e a filha.
Os elementos relacionados à saudade aparecem em algumas entrevistas de
trabalhadores. Contudo, ao se revelar o sentimento da falta de casa e da família, muitos
enfrentam as brincadeiras dos companheiros de trabalho, pois há ainda nesse meio um
profundo sentimento em que os valores masculinos parecem predominar, no qual se defende
que homem não chora, que homem deve agüentar tudo, o trabalho duro, a falta de casa e dos
seus, mas ao mesmo tempo tem-se outros elementos que aparecem relacionados às traições
das mulheres aos maridos enquanto estes permanecem fora de casa. Um dos entrevistados
revelou em seu depoimento:
Fez um mês dia oito segunda-feira que eu estou aqui. Eu quero voltar porque a saudade da galeguinha [sua filha de dois anos] é demais. Essa noite mesmo eu sonhei com ela, ela tem um cesso, sabe? de, chegar perto de eu, quando eu tava mais ela, ela ‘painho, o que é, painho’, o que é. Essa noite eu sonhei, aí dá um aperto rapaz no coração [risos]57
O senhor Laurêncio, logo no início de seu depoimento, manifestou que iria embora no
dia seguinte ao da entrevista, não porque tivesse terminado os trabalhos ou alcançado o valor
que era seu objetivo, mas porque não conseguia ficar mais tempo longe de sua família e,
principalmente, de sua filha de dois anos. Seu riso no depoimento além de emocionado
aparentava também alguém um tanto envergonhado, pois não conseguiria permanecer mais
tempo na região. Em sua narrativa manifestou parte de seus sentimentos, forneceu
características de sua filha no sentido de construir um argumento que também o fortalecesse
em sua decisão de retornar, como se tivesse que justificar a sua ação. A decisão tomada pelo
senhor Laurêncio deve ter gerado uma série de comentários por parte de seus companheiros
de grupo, com um sem número de brincadeiras, entre outros que podem ter sido motivos de
desvalorização para o entrevistado; por isso, sua tentativa de explicar e construir um
argumento a fim de não se passar por fraco ou que tivesse a ele associado valores que não
aqueles considerados pertencentes ao mundo masculino.
Compreender a dinâmica na qual estão inseridos estes indivíduos passa por entender o
que manifestam, não somente em relação ao que observam de vantagens em relação ao que
ganham, mas também por delinear o que para eles se apresenta como grande dificuldade que
57 Depoimento do senhor Laurêncio Silva, 34 anos, em entrevista realizada no alojamento da fazenda onde trabalhava no dia 14 de agosto de 2005.
158
tanto pode estar relacionado às questões materiais e econômicas quanto às questões
sentimentais. Todas estas questões que perpassam a decisão de viajar como a de retornar para
casa remontam a demandas práticas como o trajeto percorrido entre um lugar e outro e as
condições em que este é feito. Nesse sentido, os depoimentos foram ricos, oferecendo
descrições de como são realizadas as viagens de ida e volta na empreitada que estes
indivíduos assumem.
A gente gasta muito e é muito perigoso, oh. A gente na viagem que a gente foi daqui pra lá, o ônibus andou virando, parece que tinha uma curva muito fechada, o motorista parece que começou cochilar, aí quando acordou, puxou o freio e acabou virando. Todo mundo se viu morto, o ônibus balançou, balançou, parece que foi Jesus que botou a mão assim, equilibrou. O ônibus andou virando, ele deitou de lado, virou um tanto assim [inclinando a mão para demonstrar a posição em que o ônibus teria ficado], até sair do meio da pista, dançou pra um lado, dançou pro outro, Deus ajudou que aprumou. Agora de lá pra cá foi boa viagem. Só foi ruim porque eu vim em pé [risos]. Mas correu tudo bem.58
O entrevistado relata a última viagem de ida para as lavouras de Minas quando por
pouco não sofreram um acidente no ônibus em que viajavam. A pesquisa indica que, em
geral, ao sair da região de Monte Santo, os trabalhadores o fazem em um ônibus fretado,
normalmente, pela pessoa que se encarrega desta tarefa e que cobra o valor das passagens dos
trabalhadores, no caso a pessoa chamada Luiz. Ao que parece, os veículos contratados não são
regularizados ou apropriados para realizarem tal viagem, com isso as pessoas acabam
correndo sérios riscos durante o percurso, além de outros incidentes que são relatados pelos
entrevistados.
A irregularidade destes transportes pode ser pensada a partir do depoimento do senhor
Rufino. Questionei sobre a viagem e uma possível fiscalização pela Polícia Rodoviária
Federal e o senhor Rufino respondeu:
Eles já sabe, tem deles que já sabe onde tem assim e desvia, né. Tem um lugar lá que eu não sei se, esqueci o nome, que se quatro hora da manhã se passar lá eles derrubam até as bolsas no chão. É quatro hora, mas quando eles chegam, eles vê que ta chegando aquela medida eles param, aí fica ali até umas quatro e meia, quatro e quarenta, passa não tem ninguém. Se vê também outros assim, chega a hora, ele abre ali, dá uma caixinha também, né, o motorista, eles pega. Agora, esse lugar lá, diz que até as bolsa assim eles abrem as bolsas.59
58 Depoimento do senhor Lúcio Sousa, 31 anos, em entrevista realizada no final da tarde de sábado em frente a residência do senhor Fernando Araújo, em Horizonte Novo, no dia 21 de julho de 2007. 59 Depoimento do senhor Rufino Estevão, 49 anos, em entrevista realizada em sua residência em Horizonte Novo-BA, na manhã de sábado 21 de julho de 2007 onde ele estava com sua mulher senhora Valdina de Lima.
159
Ao que parece, as formas de se contornar a fiscalização rodoviária parecem não ser
poucas e nem incomuns. De acordo com o entrevistado acima e outros depoentes, os desvios
pelas estradas é uma constante. Em geral, os motoristas conhecem o trajeto e conseguem
driblar qualquer possibilidade de serem flagrados em veículos inadequados e sem condições
para uma longa viagem. Vale destacar que as viagens nem sempre são realizadas em ônibus.
A pesquisa aponta que, principalmente, no retorno, estes trabalhadores costumam viajar em
vans como relata o senhor Jailson:
A gente veio, veio de van. A gente veio por... essas van aí é tudo transporte clandestino, né? Esses ônibus são tudo ilegal aí, vem tudo por desvio. E é muito perigoso essas viagens aí. Essa última agora, essa quando eu vim de lá. A gente saiu de lá era em duas van, a outra que acompanhava a gente ela furou dois pneu, a van ainda desviou na pista ainda, mas só que não vinha carro, na contra mão. Perdeu dois pneu, deu trabalho para achar os pneu, desceu assim numa descida assim, a gente procurou até quando encontrou. Foi três dia de viagem. A van só quebrando, é muito, a gente se arrisca muito, né? E tem um principal problema também que a gente passa por isso tudo que é um trabalho muito cansativo, muito arriscado também, né?, tem cobra lá e, muitos não valorizam, né, aquilo que consegue.60
Assim como os ônibus, as vans também parecem realizar o transporte de passageiros
ilegalmente. O entrevistado faz referência aos desvios pelas estradas e, com isso, os perigos
encontrados muitas vezes em trechos não asfaltados, avariando ainda mais os veículos e quase
provocando acidentes. São vários os elementos apontados no depoimento. O tipo de
transporte aliado à distância e ao trajeto realizado faz com que a viagem pelos cerca de 2000
quilômetros chegue a durar três dias inteiros. Além das condições do veículo há que se
considerar também o número de passageiros que transporta. O depoimento do senhor Lúcio
citado anteriormente, narrando que no retorno viajou em pé aponta para esta questão. De
acordo com seu depoimento, ele retornou em uma van com mais quinze pessoas e toda a
bagagem dos passageiros que não é pouca, carrega-se de tudo, de panelas a televisores, mais
os objetos pessoais. Em muitos casos estas vans acabam arrastando uma carreta de engate na
qual, geralmente, carrega até mesmo as motos adquiridas pelos trabalhadores na região do
café. Estes veículos adquiridos quase sempre possuem problemas de documentação e, por esta
razão, são vendidas aos migrantes a preços mais baixos e levadas para a sua região para
servir-lhes de transporte ou mesmo para o trabalho como é o caso de alguns deles encontrados
em Horizonte Novo trabalhando como “moto-taxista”.
60 Depoimento do senhor Jailson Araújo, 22 anos, em entrevista realizada no dia 22 de julho de 2007, numa tarde quente de domingo na residência de seus pais em Horizonte Novo-BA.
160
Outro elemento a destacar é que estas vans transportam, há anos, famílias de migrantes
do estado cearense que moram na região e trabalham nas lavouras de tomate e que decidem
visitar sua terra natal. Como em geral, os custos com a viagem são muito altos, estas pessoas
se vêem na situação de ter que se arriscar nesse tipo de transporte, sem nenhuma segurança.
Ao questionar o senhor Eugênio sobre como ele se sentia em viajar nas condições acima
mencionadas respondeu-me:
Não, a gente às vezes pensa alguma coisa diferente por causa que, algum acidente, né? Algumas coisas porque a pessoa que anda de um lado pra outro as coisas não ta fácil, né. E aí de repente pensa de ganhar e acaba perdendo né? Mas a gente tendo fé em Deus está bom, né? O que vale é a fé em Deus. O que tiver que acontecer acontece, mas, sempre tendo fé em Deus. Estando em casa, eu estou aqui mas estou preocupado.61
Mesmo diante das condições de viagem estes indivíduos optam por realizá-la, tendo
idéia dos riscos que correm, mas ao que parece acreditando que nada ocorrerá, e a fé destes
sujeitos aparece em diferentes depoimentos e momentos de suas narrativas, principalmente
quando trata-se de livrar-se dos perigos não só das estradas, mas também dos trabalhos.
É diante deste panorama que o retorno para casa se torna motivo de festa e ansiedade,
tanto para aquele que viaja quanto para aqueles que o aguardam. Ao perguntar ao senhor
Eugênio como observava seus familiares ao chegar a casa afirmou: “Fica mais alegre, né? A
pessoa quando dá a volta no mundo, chegando em casa o pessoal se sente mais alegre e
satisfeito”62.
Pode-se dizer que a alegria é sentida por ambas as partes. Durante o mês de agosto de
2006 quando presenciei os momentos que antecediam a chegada de grupos e mais grupos de
trabalhadores que lotavam três ônibus pude perceber que, dois dias antes da chegada alguém
no povoado teria sido avisado do horário que sairiam de Minas. Depois disso, muitos
comentários, muitas perguntas sobre quem estava voltando e quem ainda permaneceria por lá.
Muitas mães e esposas ansiosas com a chegada.
Em um domingo por volta das seis horas da manhã pude observar um dos ônibus que
parava no povoado trazendo dezenas de homens que desciam cheios de bagagem, traziam
estampado nos rostos o cansaço e alguma alegria por estar em casa, em rever seus familiares.
Fogos eram queimados pelo povoado à medida que o trabalhador se encontrava com os seus.
Neste primeiro momento não parecia importar muito se a viagem tinha sido de sucesso ou
61 Depoimento do senhor Eugênio Amador, 30 anos, em entrevista realizada no alojamento onde se instalava no dia 14 de agosto de 2005. 62 Idem.
161
não, se teria ganho um bom montante ou não. Mas após estes primeiros momentos, de rever
os parentes e amigos, logo as conversas se espalhavam: quem tinha sido roubado, outro que
“não fez para a viagem de volta”, outro que ganhou muito dinheiro, quem se envolveu em
brigas, entre outros.
A dimensão do retorno para algumas populações que têm o deslocamento como parte
de um modo de viver pode ser vislumbrado nos estudos de Estrela, nos quais a autora analisa
o cotidiano de grupos residentes no Alto Sertão da Bahia que se deslocavam para a cidade de
São Paulo e sempre retornavam, ora para residir, ora para visitar os familiares. A autora
descreve o retorno como um motivo de festa para os familiares daquele que voltava para casa:
“A família do indivíduo esperado se preparava para recebê-lo durante meses... Sendo a festa
uma forma de retribuir o auxílio enviado durante a ausência”63.
Pode-se observar, com isso, que a decisão de realizar as viagens tanto para aqueles que
partem quanto para aqueles que ficam, compõe suas opções, expectativas e formas de lidar
com o cotidiano nos demais períodos do ano. Os indivíduos, ao incorporarem as viagens em
suas experiências de vida e trabalho parecem estabelecer um diálogo com o seu cotidiano,
mas também com seus familiares que criam determinadas expectativas e também demandas
que podem ser atendidas a partir dos resultados obtidos, como as expectativas de se conseguir
a construção da casa, aumentar os animais de criação, adquirir motocicletas ou aumentar as
tarefas de terra que possuem a partir dos trabalhos nas lavouras de café no Cerrado Mineiro.
Como apontam as pesquisas, parte dos anseios, dos desejos e das conquistas é relatada
pelos entrevistados e por seus familiares que, de algum modo, também se sentem
contemplados e beneficiados com as aquisições feitas a partir dos resultados dos trabalhos
temporários ou também sentem quando os objetivos não foram conquistados.
No caso dos trabalhadores pesquisados na região de Monte Santo-BA observo que a
grande maioria que realiza as viagens para os trabalhos nas lavouras de café se constitui de
homens com alguns bens e posses, principalmente, pequenos produtores que retiram de suas
glebas o sustento da família nos demais períodos do ano. Entre os mais jovens e adolescentes,
observa-se que estão, de algum modo, amparados pela família, geralmente, se vinculam a
algumas atividades nas pequenas cidades e povoados, ou ainda, contam com os trabalhos
agrícolas nas propriedades das famílias ou de alguém conhecido.
63 ESTRELA, Ely Souza. Os sampauleiros: cotidiano e representações. São Paulo: Humanitas: FFLCH/USP: FAPESP: EDUC, 2003. p. 200.
CAPÍTULO 4
Horizonte Novo: perspectivas e horizontes de seus
moradores
163
4.1 Ser da terra, do lugar
A região Norte do estado da Bahia onde se localiza o município de Monte Santo e nele
o povoado de Horizonte Novo1 é uma região predominantemente agrária, com pequenas
propriedades e poucas possibilidades de emprego fora do ramo da agricultura ou de serviços
nos pequenos centros urbanos das vizinhanças. A região conta com a presença da empresa de
extração mineral Ferbasa (Companhia de Ferro Ligas da Bahia) localizada no município de
Andorinha de onde emprega grande parte de seus funcionários. Embora o povoado esteja
situado no município de Monte Santo, as relações comerciais são travadas praticamente no
município vizinho de Andorinha. À cidade de Monte Santo estão vinculados o acesso a alguns
serviços públicos como saúde (nos casos que requerem internação ou tratamentos mais
longos), processos de aposentadoria, educação escolar e outros ligados às questões político-
partidárias.
O município de Monte Santo2 parece ocupar um lugar de destaque na região, assim
como foi um local estratégico e base de operações do exército na Guerra de Canudos. A
região é descrita por Euclides da Cunha em Os Sertões: “Do alto da Serra de Monte Santo
atentando-se para a região, estendida em torno de um raio de quinze léguas, nota-se, como
num mapa em relevo, a sua conformação orográfica”3. O alto da serra ao qual se refere o autor
é um local de peregrinação e pagamento de promessas realizadas por muitos fiéis
principalmente no final do mês de outubro e início de novembro por ocasião da Festa de
Todos os Santos. Os fiéis fazem sua peregrinação subindo a serra até chegar à pequena igreja
que foi ali construída por volta de 1790, atendendo ao pedido do Frei Apolônio de Toddi.
Sobre a região de Monte Santo, algumas de suas peculiaridades e o caráter marcante
que possui a Serra de Monte Santo para a região, tem-se o filme O Pagador de Promessas,
lançado em 1962, escrito e dirigido por Anselmo Santos e baseado em história de Dias
1 Sobre o povoado de Horizonte Novo, tem-se a seguinte descrição: “localiza-se na Microrregião do Nordeste Baiano, na região Norte do Estado da Bahia. Situa-se na proximidade Oeste do Município de Monte Santo, Estado da Bahia, com aproximadamente 60 km (sessenta quilômetros) de distância da sede e, estradas mal conservadas e não-pavimentadas, com um percurso de quase 3 (três) horas de ônibus. Encontra-se há pouco mais de 1.500 metros da divisa com o Município de Andorinha, estando à leste do Rio Jacuriri, o qual é referência de divisa territorial com o Município. Localiza-se há 512 km de distância de Salvador (capital baiana). O Povoado, ainda, é cortado por uma rodovia intermunicipal, ligando à leste, com o de Pedra Vermelha e com a (sede) cidade de Monte Santo, e Oeste, com as cidades de Andorinha e Senhor do Bonfim. Está numa divisa geograficamente regional, com o Sertão de Canudos à leste e, com a Microrregião de Senhor do Bonfim à Oeste”. Trecho extraído do projeto: Biblioteca Comunitária do Povoado de Horizonte Novo de autoria de Osvaldo Moraes dos Santos, julho/2007. 2 O município conta atualmente com uma população de cerca de 56.000 habitantes de acordo com o IBGE. 3 CUNHA, Euclides da. Os Sertões. 39. ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora, 2000. p. 23.
164
Gomes. O filme traz em seu roteiro algumas das relações conflituosas experimentadas por
pequenos proprietários de terras e grandes fazendeiros, apresentando incipientes conflitos
relacionados à terra, assim como grupos organizados de pequenos proprietários dispostos a
resguardar suas terras contra a “invasão” de grandes fazendeiros. As primeiras cenas do filme
retratam também as relações destes grupos de pequenos proprietários com o padre da igreja
local, padre Eloi, que protegia estes grupos oferecendo-lhes subsídios para que defendessem
seus interesses, mas sempre se colocando contrário à violência que, geralmente, partia dos
grandes fazendeiros para com as famílias de pequenos agricultores. Ainda nessa região foi
gravado o filme de Glauber Rocha, Deus e o diabo na terra do sol. Tais obras remetem a
pensar a região como protagonista de uma nova forma de se conceber o cinema em cujas
tramas se tem parte dos valores e dos embates da população menos favorecida, assim como a
busca por representar o que era a realidade nacional em um momento específico da história do
Brasil4.
Ao falar com os moradores do município pouco desta história apresentada no cinema e
das referências a estas obras relacionadas à região eram mencionadas. Em se tratando dos
moradores de Horizonte Novo muito se tem da sua história cotidiana. Alguns dos moradores
mais velhos do povoado narram suas experiências remontando a inúmeras memórias da
infância na zona rural e da formação do pequeno povoado como opção para as famílias que
foram deixando suas residências nas glebas que possuíam e se aglomerando naquele espaço.
Já os mais jovens narram o que ouviram de seus pais e avós sobre a sua região. Em geral, os
moradores demonstram grande interesse e satisfação em contar a história da localidade que,
conforme observei nas pesquisas está em processo de registro. Alguns membros daquela
comunidade, geralmente, professores da escola ali sediada, vêm realizando um trabalho de
coletar dados, entrevistar habitantes e registrar os principais acontecimentos que marcam a
formação e o desenrolar do viver no povoado e região. Dentre os incipientes registros foram
coletados: um projeto encaminhado ao Ministério da Cultura5; o histórico e o estatuto da
Associação dos Amigos Trabalhadores do Povoado de Horizonte Novo, de posse de seu
criador e também presidente que oferecem alguns elementos para se conhecer como vivem as
pessoas naquela área.
4 Esta discussão aparecesse tratada na obra de Albuquerque Jr. ao mencionar que o cinema novo “retoma a problemática modernista de conhecer o Brasil [...] propõe ser uma retórica de conscientização, do estabelecimento do que era a realidade nacional.” (ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2001. p. 273). 5 O projeto norteia a criação de uma Biblioteca Comunitária do Povoado de Horizonte Novo com data de julho de 2007 e de autoria do presidente da Associação dos Amigos Trabalhadores do Povoado de Horizonte Novo, Osvaldo Moraes dos Santos.
165
Terminais
Hidroviários
Aéreos
Curso d'água intermitenteLago, lagoa permanente
Cidade
Interestadual
Intermunicipal
Fonte:
Org.:
Adaptação:
Base cartográfica,
.
; Antonio Santiago da Silva.
Antonio Santiago da Silva - 2009.
SEI Superintendência de estudos econômicos e sociais da Bahia.
Maria Andréa Angelotti Carmo
80km
PROJEÇÃO POLICÔNICA
400
Monte SantoFed.
Pavimentada
Implantada
Ferrovia
Est.
Município de Monte Santo - BA
40°
11°
10°
39°
Senhor do
Bonfim
Queimadas
Itiúba
Andorinha
Canudos
Nordestina
Quijingue
Cansanção
Euclides da Cunha
Monte Santo
Equador
Capricórnio Trópico de
50° O
70°O
20°S
Brasil
670 1.340km
Escala gráfica
0
50° O
70°O
20°S
BABrasília
Figura 3: Mapa do município de Monte Santo-BA Fonte: Base cartográfica SEI – Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia. Org. Maria Andréa
Angelotti Carmo. Adapt. Antonio Santiago da Silva. 2009
No mapa acima é possível localizar o município de Monte Santo e os demais
municípios vizinhos como Andorinha, Euclides da Cunha, entre outros, assim como a
proximidade com a região de Canudos. O povoado de Horizonte Novo localiza-se cerca de
1500 metros da divisa com o município de Andorinha. Esta proximidade, como já foi
mencionado, tendo em vista a distância que existe entre o povoado e a sede do município
Monte Santo, assim como as condições das estradas, permite que os moradores do povoado e
área rural ali próxima estabeleçam as relações comerciais com Andorinha que atende algumas
das demandas, sendo deixadas para Monte Santo apenas assuntos referentes a serviços
públicos e documentação em geral.
A história da localidade bem como as inúmeras referências aos povoados em outras
áreas do município levou a pesquisar o que se entende por povoado uma vez que estes
apresentam alguns elementos peculiares nos depoimentos de seus moradores. Ao realizar
algumas pesquisas observou-se que os povoados parecem se constituir em espaços,
localidades espaciais bastante comuns em algumas regiões do país e especialmente no estado
da Bahia. De acordo com o IBGE, entende-se por povoado:
166
Setor situado em aglomerado rural isolado sem caráter privado ou empresarial, ou seja, não vinculado a um único proprietário do solo (empresa agrícola, indústria, usina etc.), cujos moradores exercem atividades econômicas no próprio aglomerado ou fora dele. Caracteriza-se pela existência de um número mínimo de serviços ou equipamentos para atendimento aos moradores do próprio aglomerado ou de áreas rurais próximas.6
As características, portanto, do povoado seriam além do acesso a mínimos serviços
púbicos o fato de estar em área rural. Em Horizonte Novo observou-se a presença de uma
escola municipal, Escola Educandário Horizonte Novo que oferece o ensino do pré à 4ª série,
uma pequena capela de credo católico e um posto de saúde que foi inaugurado na semana
seguinte à visita ao povoado em julho de 2007. No caso do município de Monte Santo as
pesquisas indicam que conta com cerca de dezesseis povoados espalhados por seu território7.
Destes, apenas sete constavam do Censo Demográfico de 1991 como um aglomerado e os
demais passaram a ser classificados como povoado no Censo Demográfico de 2000. Vale
observar que, no período de sua classificação como povoado no Censo Demográfico de 2000,
Horizonte Novo contava com 670 habitantes8. Contudo, o Projeto de Biblioteca Comunitária
de Horizonte Novo apresenta em seu texto que a localidade “possui cerca de 1500 habitantes,
incluindo as comunidades circunvizinhas”, sem, contudo, especificar quais comunidades
integram essa contagem da população9.
Embora tenha passado a compor as estatísticas apenas no ano 2000 observa-se que a
história de Horizonte Novo possui alguns nomes e acontecimentos de longa data. A
documentação conseguida, especificamente, permitiu observar uma dada cronologia dos
acontecimentos no povoado assim como o registro de alguns nomes que são referência para
seus moradores. Assim, tem-se:
6 IBGE, Censo Demográfico, 1991. 7 Os povoados do município de Monte Santo são: Alto Alegre Guloso, Capela Bom Jesus da Lapa, Jenipapo de Baixo, Lagoa das Pedras, Lagoa de Cima, Lagoa do Saco, Laje Grande, Mandassaia, Maravilha, Riacho da Onça, Saco Fundo, Santa Rosa, Várzea dos Bois, Pedra Vermelha e Horizonte Novo. Dados disponíveis em: <http://www.sei.ba.gov.br> Acesso em: jan. 2009. 8 De acordo com a Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia disponível em: <http://www.sei.ba.gov.br> Acesso em: jan. 2009. 9 Projeto de Biblioteca Comunitária do Povoado de Horizonte Novo de autoria de um de seus moradores e professor na Escola Educandário Horizonte Novo, Osvaldo Moraes dos Santos, julho/2007. Este projeto foi encaminhado ao Ministério da Cultura, em nome da Associação dos Amigos Trabalhadores do Povoado de Horizonte Novo, fundada em 11/03/2005, com o objetivo de: a) fortalecer a organização econômica, social e política dos seus associados; b) racionalizar as atividades econômicas, desenvolvendo formas de cooperação que ajudem na produção e comercialização; c) garantir os direitos dos associados e associadas junto ao poder público, principalmente no atendimento das necessidades de educação, saúde, habitação, transporte e lazer; entre outros que constam do Estatuto Social da Associação dos Amigos Trabalhadores do Povoado de Horizonte Novo, 11/03/2005.
167
Há mais de seis décadas, possivelmente em meados de 1940, começava a se desenhar uma fazenda, que até então era conhecida por vários nomes: Baixa das Éguas, Canché, Riacho da Lage [...] O primeiro morador da fazenda Riacho da Lage, como era chamada foi o Seu José Virgínio, que construiu sua residência e começou a criar seus filhos, desenvolvendo atividades agrícolas na fazenda. Mais tarde surgiram outras famílias, entre elas as dos senhores conhecidos como João Virgínio (filho de José Virgínio), Miguel Passarinho, Seu Tutu, José Pantaleão e outros.10
O registro da história do povoado segue alinhavando algumas relações entre os
primeiros moradores, os filhos destes e uma série de eventos como o início das práticas
comerciais na localidade que ainda era denominada fazenda Riacho da Lage. A prática
comercial parece ter marcado a formação do povoado que se desenvolveu em volta do pé de
juazeiro (hoje inexistente) que era também um local de descanso para os viajantes que
levavam produtos agrícolas para serem comercializados na feira de Andorinha às segundas-
feiras. Assim, à medida que os “aventureiros comerciantes” paravam para o descanso, a
população rural ali se reunia, podiam comprar e também vender alguns de seus produtos o que
lhes poupava, segundo os registros, os deslocamentos até a feira da cidade de Andorinha para
onde iam montados em animais11.
Ainda de acordo com os registros, o povoado começou a ganhar contornos a partir do
ano de 1952 quando houve a construção de um açude a pouco mais de trezentos metros das
principais residências. Este parece ter sido um fator de atração de algumas famílias,
principalmente nos períodos de seca, conforme se tem: “daí, outras famílias, sentiram a
necessidade de morar próximo de onde pudessem obter água doce, o que minimizaria o
problema da falta d’água na região daquela época”12. As questões relacionadas ao acesso à
água e as formas de conservá-la para utilização em períodos de estiagem se mostram
importantes para se compreender não somente como se vive no povoado, mas também para
compreender como se vive no campo.
Vale notar que, embora os registros tenham uma cronologia que leva o leitor a
compreender os acontecimentos extremamente encadeados de sua história e desenvolvimento,
as narrativas apontam também estes elementos, mas não se restringem a eles, possibilitando
10 Projeto de Biblioteca Comunitária do Povoado de Horizonte Novo de autoria de um de seus moradores e professor na Escola Educandário Horizonte Novo, Osvaldo Moraes dos Santos, julho/2007. 11 Esses acontecimentos estão registrados nos documentos coletados, mas também foram narrados por alguns dos moradores do povoado como o senhor Fernando Araújo, senhor José Barbosa e senhor Valdir de Lima nas entrevistas realizadas em 2006 e 2007. 12 Conforme se tem no Projeto de Biblioteca Comunitária do Povoado de Horizonte Novo de um de seus moradores e professor na Escola Educandário Horizonte Novo, Osvaldo Moraes dos Santos, julho/2007.
168
pensar em problemas que os pequenos agricultores passaram a enfrentar. Se por um lado,
alguns eventos são repetidos pelos diferentes moradores, por outro, observo que estes sujeitos
buscam pensar sobre os acontecimentos, oferecem suas interpretações sobre eles e, ainda,
analisam os fatos relacionando-os a outros, conforme se verá em alguns dos trechos de
entrevistas citados.
As reflexões de parte dos moradores dizem respeito às suas experiências e às de seus
familiares, procuram apresentar elementos de um passado próximo e de seus desdobramentos
em relação aos acontecimentos no presente. No período da última visita feita ao povoado em
julho de 2007, tinha ocorrido, há poucos dias, uma consulta aos seus moradores sobre o nome
que seria homenageado na inauguração do Posto de Saúde da localidade. Entre os três nomes
sugeridos, somente de antigos moradores do povoado, destacavam-se pessoas que haviam tido
uma expressividade para sua história e se tornaram referência para os seus habitantes. O nome
escolhido pelos moradores foi de José Severino, pois segundo argumentaram alguns
moradores e seus descendentes foi o responsável pela construção do açude que se localiza
próximo ao povoado e o abastece durante todo o ano. Os relatos sobre os procedimentos
tomados, na década de 1950, pelo senhor José Severino, foram narrados por alguns de seus
familiares e moradores, como o senhor Nicolau. Aparecem nos relatos aspectos que
relacionam força e coragem para enfrentar os grupos políticos daquele período, assim como
mencionam a gratidão pela benfeitoria ao povoado.
Dentre estes enfrentamentos tem-se, conforme depoimento do senhor Fernando,
alguns que se relacionam à forma como o povoado se iniciou e atraiu as primeiras famílias.
Segundo o entevistado, os furtos e roubos de animais ocorridos nas propriedades rurais parece
ter provocado o abandono das terras, fazendo com que parte das famílias optasse por morar no
povoado, tendo alguns encerrado suas atividades rurais, passando a realizá-las
esporadicamente.
Quando começou aqui, eu sempre me lembro que só tinha umas três ou quatro casa, né? Povoadinho pequininho, os morador morava tudo fora, que tudo era, tudo era as caatinga, né?, criava tudo. Pessoal criava tudo. Aí pessoal foi se reunindo, por aqui, mudando aqui pra perto, lá vai, lá vai. Foi acabano os criatório que os ladrão nunca deixaram. Quem tinha bicho nas roça, os ladrão ia buscar dentro da roça. Se botava no chiqueiro, podia botar pregado com a casa, de noite, tinha vez que vinha buscar com o dono dormindo. E aí foi começando essa vida, o pessoal procurou, largou o lugar deles quase tudo, é pouco que mora por fora. Isso aqui era um lugarzinho pequininho.13
13 Depoimento do senhor Fernando Araújo, 66 anos, em entrevista em sua residência no dia 06 de agosto de 2006.
169
A narrativa do senhor Fernando sobre as origens do povoado e como ele foi crescendo
ao longo dos anos remete às lembranças de mais membros da comunidade, uma vez que
apresenta parte dos motivos que levaram muitos moradores a deixarem suas propriedades e
buscarem o povoado para morar. Interpreto estas narrativas como lembranças individuais que
remetem a experiências que são também coletivas à medida que são relatadas por outros
entrevistados e nestas exposições aparecem a memória como um elemento essencial da
identidade individual ou coletiva, “memória esta que não é somente uma conquista, é também
um instrumento e um objeto de poder”14. Os depoimentos podem ser também analisadas em
conjunto com os elementos que ganham destaque em outros documentos e encaminham a
pensar em uma ordem de acontecimentos ou na “luta pela dominação da recordação” 15 que
transformaram o povoado, que deixou de ser um ajuntamento de algumas casas e tornou-se
referência para a sua população. Isso se deu principalmente a partir do acesso a alguns
serviços e obras públicas como é destacado no Projeto de Biblioteca Comunitário, no qual
aparecem os anos que marcaram a construção das principais obras públicas:
PRINCIPAIS OBRAS PÚBLICAS ANO DE IMPLEMENTAÇÃO
Igreja Católica 1976
1º Prédio Escolar 1978
Instalação da Rede Elétrica 1985
Posto Telefônico 1989
Abastecimento de água 1992
Pavimentação com paralelepípedos 1994
Açougue municipal 1999
2º Prédio escolar 1999
Redes de telefones residenciais e públicos 2000
2º Campo de futebol 2005
Programa Saúde da Família 2005
Quadro 1: Implementação das principais obras públicas em Horizonte Novo-BA. Fonte: Projeto de Biblioteca Comunitária de Horizonte Novo, 2007.
14 LE GOFF, Jacques. Memória e História. Campinas, SP: Ed. da UNICAMP, 2003, p. 469-470. 15 Idem, ibdem, p. 470.
170
Os dados acima possibilitam observar que o acesso à educação no povoado se dá ainda
no final dos anos de 1970, mas a grande maioria dos serviços públicos tiveram início quase
uma década depois como a instalação de rede elétrica ou o abastecimento de água. O acesso a
estes serviços são considerados importantes por esta população que viu sua dinâmica de vida
modificada com o atendimento de algumas de suas necessidades com a possibilidade de uma
melhor qualidade de vida com o atendimento pelo Programa Saúde da Família já no ano de
2005 ou a estruturação de um campo de futebol.
A região do povoado e cercanias parece ter passado, de acordo com os entrevistados,
por algumas mudanças que perpassam a questão econômica e de acesso a bens e também
recursos públicos, como a ocorrência de determinados acontecimentos que impulsionaram
parte da população que possuía suas pequenas glebas de terra a procurarem o povoado para
viver. Ao perguntar ao senhor Jorge da Mota o que ele fazia antes de passar a viver ali ele
respondeu:
Eu criei muita ovelha, mas acabei. Acabei porque começaram a roubar. Ladrão me, me deixaram, veio uma vez me deram o prejuízo pior do mundo. Tinha que está dormindo com elas ali. Eu não ia ficar nessa vida né? (Risos) Aí começaram a roubar, eu digo: ‘quer sabe de uma, é melhor eu evitar, em vez d’eu matar uma pessoa ou um me matar é melhor eu acaba, é ou não é?’ Aí então acabei, crio só os meu boinho e pronto.16
A questão do crescimento ou da percepção do aumento de crimes como furtos e
roubos, está associada ao problema de desemprego, do crescimento do povoado e, a
percepção de mudança se relaciona ao momento em que tiveram de deixar a propriedade rural
e passaram a residir no povoado, de onde alguns continuaram/continuam a cuidar de suas
terras, criar animais, plantar algumas lavouras. Esta é a experiência apresentada pelo senhor
Jorge da Mota, cujos filhos trabalham todos os anos nas fazendas de café em Minas. Quando
lhe pergunto sobre as terras que possui responde:
Não é pouca terra. Pr’aqui é muita [risos]. É umas quinhentas e poucas tarefa17, como diz o outro, duzentos e pouco hectare, né. Eu mesmo
16 Depoimento do senhor Jorge da Mota, 68 anos, em entrevista realizada em sua residência onde se encontrava também sua mulher senhora Maria Amador da Mota, no dia 6 de agosto de 2006. 17 A nomenclatura dos pesos e medidas utilizados na região possui marcas próprias. O senhor Jorge Amador, muito pacientemente, me explicou que:
Aqui mede aqui é por tarefa. Vinte tarefa, trinta tarefa. Uma tarefa mede assim, trinta vara assim, trinta assim, trinta assim e trinta assim [com as mãos o entrevistado representa um quadrado] quer dizer que dá cento e vinte tarefa em quatro. Uma tarefa é quadrado. A gente compra a terra por tarefa, cinco tarefa, dez tarefa ou quatro tarefa, depende o total da pessoa, do dinheiro que pode comprar. Aqui é na faixa de quinhentos real a tarefa. (Depoimento do senhor Jorge Amador)
Assim, dizer que se tem uma tarefa de terra significa dizer que possui 3600m2 de área, uma vez que uma vara corresponde a 2m.
171
trabalho, agora quando precisa de trabalhador é gente daqui mesmo da rua [referindo-se aos moradores do povoado].18
Observo que o depoente possui uma condição financeira bastante diferenciada dos
demais proprietários entrevistados na região. Enquanto a grande maioria possui até 25 ou
trinta tarefas de terra o entrevistado afirma possuir quinhentas tarefas, sendo considerado um
grande fazendeiro pelos moradores da vizinhança.
Nesse aspecto o depoimento do senhor José Barbosa oferece uma contribuição quando
perguntado qual a área considerada na região como grande propriedade:
Fazenda grande aqui é de mil tarefa, duas mil tarefa, outras de quinhentos, outros de oitocentos, outros de trezentos. O menos é de cento e pouco aí aqueles de cento e pouco é de mais pobre, pessoal de baixa renda, né. Agora esses outro mais, é o pessoal que tem mais pano, pano pras mangas, né?19
As diferenças sociais e de acesso a terra aparecem em vários relatos e se tornou
importante elemento para se compreender como vive essa população e também como
observam as mudanças ali ocorridas nas últimas décadas. O depoimento de outro entrevistado,
o senhor Basílio, colabora para se pensar esta questão: “Antigamente a gente teve umas
grilagens por aí, deixaram a maioria dos pobres sem as terra”20. Esta foi a única referência
entre os entrevistados sobre uma das possíveis razões que levaram muitos pequenos
proprietários a perderem suas terras. Ao questionar em qual período tal fato teria ocorrido o
senhor Basílio respondeu:
Faz bastante tempo. Nós mesmo temo uma área ali que chama fundo de pasto, onde tem os bichinho da gente né, quase a gente perdeu naqueles tempo. [Ao questionar o que era o fundo de pasto continuou] É um terreno que não tem casa, e não tem roça e o povo cria ali, né. De todo mundo daqui, sítio e Vaz de Fora, e chegaram o ponto que até cercaram essa, cercaram mas passou o redemoinho que era o outro, entrou na justiça.21
Como narrou o entrevistado as questões de disputa pela terra estiveram muito
próximas de sua experiência. O senhor Basílio descreve a área que é de utilização comum de
um determinado grupo da comunidade do Sítio do Geraldo e que quase perderam esta área
18 Depoimento do senhor Jorge da Mota, 68 anos, em entrevista realizada em sua residência onde se encontrava também sua mulher senhora Maria Amador da Mota, no dia 6 de agosto de 2006. 19 Entrevista com o senhor José Barbosa, 71 anos, no domingo 6 de agosto de 2006 em sua residência, onde recebia várias pessoas que o procuravam para que as benzesse. 20 Depoimento do senhor Basílio Miguel da Silva, 62 anos, em entrevista coletada na sede da comunidade do Sítio do Geraldo no dia 21 de julho de 2007. 21 Idem.
172
para os grileiros, mas passou o “redemoinho” e derrubou a cerca e a comunidade acionou a
justiça para conseguir esta área de volta. O redemoinho de que fala o entrevistado remete aos
acontecimentos narrados no filme O Pagador de Promessas onde os pequenos proprietários
se mobilizavam para, no meio da noite, derrubarem as cercas levantadas pelos grileiros
durante o dia. Ao questionar o senhor Basílio sobre este assunto ele se esquivou, talvez
receoso das implicações que sua fala pudesse ter ao narrar a uma estranha estes
acontecimentos.
Ao observar as questões relacionadas ao acesso e disputas pela terra, assim como as
referências às terras cercadas, indaguei o senhor José Barbosa que apontou:
É porque quem comprou cercou e quem, quem já tinha o seu cercou porque, terreno solto aqui não tem mais não. É tudo é corredor. Só tem um terreninho solto aqui pro lado da Pindoba, éh Pilar, Caldeirão, mas o mais já está tudo debaixo de cerco. Pra garantir, criar a vaca, criar o bode, a ovelha, né. Esse pessoal que vem de fora é só pra criar mesmo. Tem deles até que são até, que são sonegador de fiscal, eles não paga os impostos. A metade desses fazendeiro nenhum paga imposto aqui, tudo sonega os impostos. Porque se eles pegasse e pagasse esses impostos, quer dizer que podia até surgir um trabalho pro povo. Mas aí eles não pagam nada e aí eles vão levando a vida.22
As diferenças e distinções uma vez mais aparecem e, vale notar a distinção feita entre
quem é de fora e quem é do lugar, como se aqueles que vieram de outras áreas e adquiriram
terras na região tivessem causado sérios prejuízos aos moradores e pequenos proprietários da
área. Serão as distinções e estas marcas um ciclo sem fim? O depoente aponta ainda possíveis
irregularidades por parte daqueles que adquiriram as terras, prejudicando a população local ao
não efetuarem os pagamentos dos impostos devidos. Não houve, nesta pesquisa, possibilidade
de apurar tal fato, que pode sim ocorrer como pode também ser uma forma de estigmatizar
quem é de fora. O depoimento acima, com os apontamentos que faz sobre as aquisições de
terras e a construção das cercas como garantia de manutenção da área, juntamente com o
depoimento do senhor Basílio sobre a grilagem em períodos anteriores remontam às reflexões
elaboradas por Thompson sobre os cercamentos na Inglaterra quando os seus defensores
argumentava “em torno das rendas e da produtividade por acre. De uma vila à outra, o
cercamento avançava, destruindo a economia de subsistência dos pobres que já era
22 Entrevista com o senhor José Barbosa, 71 anos, no domingo 6 de agosto de 2006 em sua residência, onde recebia várias pessoas que o procuravam para que as benzesse.
173
precária”23. Esta perspectiva pode ser elaborada a partir da afirmação do senhor Basílio de que
a grilagem deixou a maioria dos pobres sem suas terras.
Parece haver entre os moradores da região uma interpretação de que mudanças
ocorreram e parecem reforçar uma desarmonia de direitos entre categorias sociais diferentes,
como argumenta Brandão entre “antigos e novos ‘chegantes de fora’ vistos como ricos e
poderosos” e que estes são
Sujeitos amparados pelo banco, pelos políticos, juízes e a polícia, são percebidos como invasores não éticos destinados ao sucesso e ao progresso, porque chegam com o poder que justifica uma ética de trocas entre pessoas e entre as pessoas e o mundo natural, fundada em princípios ilegítimos, segundo uma leitura dos homens tradicionais do campo, ou intedita a eles24.
Esta compreensão se dá em grande parte porque as novas relações que surgem com a
chegada da “gente de fora” parecem suplantar uma ordem natural das trocas, do entendimento
destes grupos do que vem a ser a relação com a terra, com a natureza. Tal dimensão de
interpretação sobre os processos que atraem populações de outras áreas pode ser pensada
também em relação ao processo de expansão das lavouras de café, como será tratado no
próximo capítulo.
Retomando ainda as referências ao hábito de cercar a propriedade, este parece se
constituir em um valor para os pequenos proprietários. Ao questionar o senhor Valdir sobre
seu trabalho e sua propriedade respondeu:
Tenho minhas propriedade, tudo é bem cercadinho, pequena, mas são bem cercadinha. É cercada. Oh, faz cerca de madeira, cerca de arame, cerca de arame também, né. Mas quando a gente não tem dinheiro, a gente cerca, tira a madeira e faz a cerca. É pois é, uma parte aqui é de arame, outra parte é de madeira, porque sabe a madeira nós temos, né, tem aqui mesmo, e o arame é obrigado a bater o bolso, e as vez tem dele que tem vontade e não pode comprar um rolo de arame. Não é verdade?25
O valor dado à cerca da propriedade remete, por um lado, ao zelo do proprietário pela
terra que possui ao descrever como se faz e os materiais que utiliza, mas por outro, existe a
garantia de que a sua área não será invadida, pois a cerca sinaliza para todos que aquelas
terras têm um proprietário. Nesse sentido, ainda, tendo em vista as peculiaridades da região o
23 THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 44. 24 BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O afeto da terra. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1999. p. 62. 25 Depoimento do senhor Valdir Deolindo de Lima, 59 anos, em entrevista realizada no dia 21 de julho de 2007 na residência de um de seus filhos, junto à sede da comunidade do Sítio do Geraldo.
174
cercamento da área pode ser ainda um obstáculo para os animais que por ventura estejam
soltos para que não ataquem as lavouras e plantações nas vizinhanças.
Ao procurar conhecer e compreender parte da história destes grupos, observei alguns
elementos acerca das mudanças da região nos depoimentos. A declaração do senhor Jorge
revela que a atividade com a qual estava habituado a trabalhar até os anos 1970 era o sisal.
Meu negócio era sisal. Na época o sisal era ouro. Aqui acabou, a seca acabou com tudo. Na minha região ainda tem muito sisal em Conceição do Coité, as batedeiras lá, as cooperativa tudo cheia de sisal. De Cansanção pra lá tem muito, agora pra cá morreu, acabou. A região aqui o pessoal não, era pouco, já era pouco, né, esse pouquinho mesmo a seca acabou de matar e pôs o gado. Aí o capim deu vida, porque o bufa, choveu hoje, com cinco dias já tem comida26.
Conforme possibilita constatar o depoimento do senhor Jorge, a atividade econômica
da região passou por algumas alterações. Houve um período em que a plantação de sisal27 se
constituía na principal atividade produtiva dos pequenos agricultores da região que foram
substituídas ao longo do tempo por outras culturas. De acordo com os estudos de Nascimento,
a implantação do sisal como atividade econômica da população da região de Valente,
município vizinho a Monte Santo, foi uma das medidas tomadas pelo governo do estado no
anos de 1945 como medida para o desenvolvimento local e inserção socioeconômica daquela
população visando fixar a população no semi-árido, mas garantindo-lhe a sobrevivência em
uma área com baixo potencial agrícola e evitando os processos migratórios nos períodos de
estiagem28. Os processos de interferência do Estado na formação, mudanças e estruturação da
produção em algumas áreas não é algo recente.
A referência à cultura do sisal levou a investigar sobre a sua importância na economia
da região ainda hoje, uma vez que no percurso entre a cidade de Feira de Santana e Monte
Santo, quando da primeira viagem realizada à região, observei inúmeras cooperativas de
sisaleiros principalmente nas cidades de Conceição do Coité e Cansanção conforme narrou o
26 Depoimento do senhor Jorge da Mota, 68 anos, em entrevista realizada em sua residência onde se encontrava também sua mulher senhora Maria Amador da Mota, no dia 6 de agosto de 2006. 27“As folhas do sisal produzem uma fibra altamente resistente e que é utilizada para produzir artesanatos, vassouras, sacos, bolsas, chapéus, barbantes, cordas, capachos e tapetes, bem como na fabricação de celulose para a produção de papel Kraft (de alta resistência) e outros tipos de papel fino [para cigarro, filtro, papel dielétrico, absorvente higiênico, fralda etc]. Além dessas aplicações, há possibilidade de utilização da fibra na indústria automotiva, de móveis, de eletrodomésticos, de geotêxteis [proteção de encostas, na agricultura e revestimento de estradas], na mistura com polipropileno, em substituição à fibra de vidro [composição de objetos plásticos] e na construção civil.” (ALVES, Maria Odete; SANTIAGO, Eduardo Girão. Tecnologia e relações sociais de produção no setor sisaleiro nordestino. In: CONGRESSO DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ECONOMIA E SOCIOLOGIA RURAL, 43., 2005, Ribeirão Preto. Anais... Ribeirão Preto, 2005. p. 3). 28 NASCIMENTO, Humberto Miranda. Conviver o sertão: origem e evolução do capital social em Valente/BA. São Paulo: Annablume, 2003.
175
depoente. A pesquisa permitiu conhecer que, atualmente, o estado da Bahia é o maior
produtor de sisal do Brasil. Em 2003, explorou mais de 160 mil hectares e colheu 95,65% de
toda a produção brasileira. O estado possui 76 municípios que se destacam nesta produção,
divididos nas microrregiões, conforme se observa nos dados abaixo:
Na Microrregião Nordeste, 15 municípios são mais representativos em termos de produção: Araci, Cansanção, Conceição do Coité, Euclides da Cunha, Monte Santo, Nordestina, Queimadas, Quijingue, Retirolândia, Santa Luz, São Domingos, Serrinha, Teofilândia, Tucano e Valente... Em termos de área plantada, o sisal ocupa o segundo lugar, perdendo somente para o feijão (102.700 hectares)29.
O município de Monte Santo também é apontado como um dos grandes produtores de
sisal. Contudo, não se verificou a prática desta produção na região pesquisada, assim como
apontou o senhor Jorge da Mota no depoimento citado anteriormente. Outro dado importante
se refere ao número de propriedades rurais nestes municípios que produzem o sisal. Tem-se
que:
O número de propriedades rurais dos municípios chega a 63,5 mil, ocupando uma área total de 1,33 milhão de hectares. Do total dos estabelecimentos rurais, 95,7% são familiares, ocupando 57,7% da área total. O tamanho médio dos estabelecimentos familiares é de 12,61 hectares, enquanto que os patronais têm área média de 219,47 hectares (MDA/INCRA, 2000)30.
Através destes dados, tem-se, no que se refere à produção do sisal, que o número de
propriedades familiares representa 95,7% e ocupam 57,7% da área cultivada, o que revela,
como em outros casos na agricultura brasileira, que as pequenas propriedades são
responsáveis por grandes números da produção, mas, de outra maneira pode-se vislumbrar
que os cerca de 5% grandes proprietários detém 43% da área cultivada de sisal, apontando
para a expressiva concentração fundiária. Estes números permitem pensar também a região
pesquisada composta, em grande parte, por pequenas propriedades responsáveis também por
outras produções como o feijão e o milho, especialmente.
Ao questionar alguns moradores sobre por que o sisal teria desaparecido da região de
Horizonte Novo, conforme me relataram, uma depoente respondeu:
29 ALVES, Maria Odete; SANTIAGO, Eduardo Girão. Tecnologia e relações sociais de produção no setor sisaleiro nordestino. In: CONGRESSO DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ECONOMIA E SOCIOLOGIA RURAL, 43., 2005, Ribeirão Preto. Anais... Ribeirão Preto, 2005, p. 6. 30 Ibidem.
176
Aqui eles acabaram de uma vez. Eles cortaram a raiz no verão, [referindo ao período de intensa seca]. Meu tio mesmo, ele tinha uma roça de sisal. Aí quando entrou um verão preto aqui uma época que quase se acaba tudo, que foi quase dois ano de seca. Aí meu tio, botava fogo no sisal, né e picava a machado, cortava o sisal e cortava todo miudinho pra dar ao gado pra não morrer de fome. Aí naquilo que tanto a seca foi comprida que o povo matava o sisal todo e ao mesmo tempo perdia o gado.31
O fim do cultivo do sisal na região do povoado e redondezas parece ter sido associado
aos intensos períodos de seca pelos quais passou a região. Outros indícios não foram
encontrados referindo-se ao fim desta lavoura, mas tem-se que o município de Monte Santo
ainda permanece entre os maiores produtores de sisal do estado da Bahia, contudo, a região
dos trabalhadores pesquisados parece não se incluir nestes índices.
Ao observar que o sisal havia “desaparecido” daquela área questionei o senhor Jorge
da Mota sobre o que ele passou a cultivar:
Eu planto só capim. Eu planto só capim, não trabalho com outra coisa não. É o capim que vocês não conhecem lá em Minas, que o capim lá é braquiara e aqui é o bufa. É inglês, é da Inglaterra. Aí ele veio, esse bufa veio pr’aqui em setenta, está com trinta anos. Aqui também ninguém conhecia. Aí os fazendeiro veio puxando, os ingleses veio puxando, os grande fazendeiro aqui do sul da Bahia, né. Aí veio, veio até quando alcançou aqui e hoje o capim que nós temos é esse. E acabou a seca. De setenta e seis pra cá melhorou muito a situação.32
Como já mencionado anteriormente, este entrevistado não possui a mesma condição
financeira e social dos demais entrevistados, mas dois de seus quatro filhos enfrentam os
trabalhos nas lavouras de café há cerca de seis anos. Seu depoimento permite observar que,
enquanto um grande criador de gado, busca sempre acompanhar as mudanças que favorecem
a produtividade. Para ele, o capim utilizado na região atualmente, de origem inglesa, é mais
favorável aos enfrentamentos da seca naquela área modificando a situação dos criadores de
gado dali. Vale observar o destaque dado pelo entrevistado ao fato de que em Minas Gerais o
capim utilizado é a braquiária, considerada inferior não havendo o conhecimento do capim
bufa. Há, neste momento, um diálogo claro comigo enquanto pesquisadora que, tendo
chegado de terras mineiras onde estavam seus filhos, deveria saber que ali, naquela região da
Bahia, havia também alguns sinais de riqueza e prosperidade que talvez pudesse estar no
mesmo patamar do café.
31 Depoimento da senhora Maria Leide, que se encontrava na residência do senhor José Barbosa no momento em que realizava a entrevista com ele, mas ela sempre emitiu suas opiniões e experiências, participando de toda a entrevista. 32 Depoimento do senhor Jorge da Mota, 68 anos, em entrevista realizada em sua residência onde se encontrava também sua mulher senhora Maria Amador da Mota, no dia 6 de agosto de 2006.
177
No que se refere às mudanças pelas quais passaram parte dos pequenos agricultores na
região, tem-se que muitos deles “perderam” suas terras, vendendo-as para saldar dívidas,
outras vezes, para fazer um tratamento médico ou mesmo para garantir o sustento da família.
Esses produtores vêem as mudanças ocorridas como problemáticas, pois à medida que
aumentou a população do povoado não houve aumento das possibilidades de emprego e renda
para a grande maioria. Esta situação atual parece ser tida como oposição ao que se viveu na
região em outro período de sua história, onde a residência na área rural representava também
o acesso a maiores possibilidades de sustento de suas famílias.
Entre os moradores e trabalhadores da área rural, que ainda vivem do trabalho e dos
recursos em suas terras observa-se que suas percepções são diferenciadas, pois as mudanças
são vistas como sinônimo, em grande parte, de melhorias quando comparadas aos tempos de
infância e juventude. Nessa direção, o senhor Valdir, um dos entrevistados da comunidade
Sítio do Geraldo aponta:
Mais pra traz, era mais ruim, a diferença que eu acho é essa, né? Porque tudo era difícil, num chovia certo, num tinha, hoje graças a Deus, né. Quando meus filho mesmo estudava, ia trabalhar mais eu no motor do sisal, ao redor daqui quatro quilômetro. E lá a mãe levava a comidinha pronta, a marmitazinha, lá mesmo eles, meio dia, ia tomar banho, lá mesmo rompia pra escola, quatro quilômetro, era quatro quilômetro. E hoje está aí, oh. Hoje está pertinho, os ônibus tão passando aí, leva os menino, leva e trás, está numa boa. A diferença que eu acho é essa daí.33
Uma vez mais o sisal aparece como referência nas atividades praticadas na região em
períodos anteriores. Uma das diferenças a que se pode associar a percepção dos moradores
sobre a região e as mudanças é a questão de ser ou não um pequeno proprietário. Os
moradores da zona rural são proprietários da área onde moram, portanto, mesmo enfrentando
algumas dificuldades relacionadas às secas, problemas com a plantação entre outras, ainda
têm de onde retirar uma pequena renda para a manutenção da família, podem realizar alguns
cultivos além de ter, no período da seca, outras possibilidades para manter o gado ou outras
criações com a utilização da palma que, geralmente, está presente nos arredores das casas ou,
muitas vezes, em plantações maiores34.
33 Depoimento do senhor Valdir Deolindo de Lima, 59 anos, em entrevista realizada no dia 21 de julho de 2007 na residência de um de seus filhos, junto à sede da comunidade do Sítio do Geraldo. 34 A palma, de acordo com Andrade, “é muito difundida nas áreas semi-áridas de clima menos rigoroso. A melhoria da qualidade do gado e a elevação dos padrões técnicos levaram os fazendeiros a procurar cultivar plantas que servissem de alimento aos animais [...] palma e capineiras.” (ANDRADE, Manuel Correia de. A terra e o homem no Nordeste: contribuição ao estudo da questão agrária no Nordeste. 7. ed. rev. e aumentada. São Paulo: Cortez, 2005. p. 173).
178
Com as suas pequenas plantações, os moradores da área rural, mesmo com as
dificuldades que enfrentam relacionadas às chuvas e outras questões, alcançam maiores
possibilidades para sustentar suas famílias que os moradores do povoado. Estes, na maioria
das vezes, são proprietários apenas da casa onde residem e o acesso a um trabalho como fonte
de renda fixa ou “estável” se torna mais difícil. Do mesmo modo, estes grupos vêem
minimizadas as oportunidades de trabalho, uma vez que no povoado pouco há onde se
empregar, às vezes, no reduzido comércio, em bares que, normalmente, são um cômodo da
casa da família onde trabalham apenas aqueles que ali residem. Observa-se, então, que a
maioria se envolve em atividades esporádicas na zona rural, fazem bicos entre outras
possibilidades, uma vez que a grande maioria vive com uma renda ainda que seja mínima.
Talvez por estas questões relacionadas ao emprego e fonte de renda, há diferenças no modo
como os moradores mais velhos percebem as mudanças em relação aos mais jovens. Os
primeiros vêem de forma mais negativa apontando para os problemas atuais ou para aqueles
que os levaram a alterar sua condição; os mais jovens são mais otimistas e demonstram ter
desenvolvido uma forma própria de lidar com o seu local de origem no qual aprenderam e
desenvolveram formas de se sustentar no contexto vivido.
As comparações entre passado e presente não deixam de nortear uma série de
conversas e entrevistas, onde, as transformações percebidas ao longo do tempo tomam
dimensões diferenciadas, ora positivas, ora negativas dependendo também do nível de acesso
a alguns bens e valores que o entrevistado possui, bem como de acordo com o lugar social que
ocupa na comunidade, se um pequeno sitiante, um membro de associação ou conselho
comunitário, entre outros. Assim, referindo-se às formas de acesso à saúde, o senhor Valdir
estabelece sua comparação entre o passado e o presente:
E outra também, adoecia, como eu criei os meu, quando adoecia um, meus filho, quando adoecia, o que que fazia. Nós corria daqui, montava no animal, pra ir pra Andorinha, comprar um remédio, um remédio, né? Era pra remédio. Médico nesse tempo não tinha. Em Andorinha não tinha, aqui perto não tinha não. Só tinha em Senhor do Bonfim ou Monte Santo, né? Então saía de animal aqui, saía na parte de manhã, pra chegá a tarde né? Era sofrimento oh! E outra o remédio que nós queria era, a gente tinha que trabalhar adquiri o tostão. E hoje, está fácil, hoje você chega no hospital, você tem o remédio, tem tudo, né?35
O senhor Valdir estabelece um quadro de comparações entre passado e presente
positivando este último, apontando para as facilidades no acesso a alguns serviços como o de
35 Depoimento do senhor Valdir Deolindo de Lima, 59 anos, em entrevista realizada no dia 21 de julho de 2007 na residência de um de seus filhos, junto à sede da comunidade do Sítio do Geraldo.
179
saúde, de transporte, aquisição de remédios entre outros. O depoente coloca que era muito
mais difícil para a família cuidar dos filhos quando teve os seus e que, atualmente, muito se
modificou tornando a vida na região menos complicada. Entre os principais fatores
responsáveis por esta “facilidade”, descrita pelo entrevistado, está o acesso aos serviços
públicos como o atendimento médico e medicamentos nos hospitais públicos. Quando
perguntado sobre o que provocou essas mudanças o senhor Valdir respondeu:
Eu acho que foi por causa dos político que melhorou tudo, né? Porque se entra um prefeito, então ele está ajudando, não está, o município? Então a diferença que eu acho é essa. Porque naquele tempo era tudo difícil oh. Os mais velho, um povo muito acanhado, num saía, num adquiria nada. Aqui mesmo, não nego não, que veio melhorar depois que a gente se formou pra cá. A gente tomou pé, né? Tomou pé, a gente vai em Monte Santo, vai em Andorinha, então a gente já adquiriu alguma coisa pr’aqui. que aqui num tinha, os tanque era deste tamaninho [dimensionando com as mãos o que considera pequeno], hoje já tem oh, essas aguada aí, bastante aguada né? E não tem mais porque os político também não se interessa muito. É que vamos falar a verdade, né?36
Seu olhar é de alguém que está envolvido nas relações político-partidárias do
município. Enquanto ex-presidente da associação comunitária do Sítio do Geraldo, o
entrevistado relaciona essa dinâmica política às transformações na sua região. Para o senhor
Valdir a população mais antiga, os seus predecessores, não agiam em prol de melhorias para a
região pois eram “acanhados”, referindo-se, com esta expressão, possivelmente, a pessoas que
não se envolviam com questões e lutas políticas. Talvez este acanhamento mencionado
remonte a questões muito mais sérias. O envolvimento desta população com as discussões e
questões políticas do município talvez fosse algo perigoso para aqueles que se envolviam,
pois a população menos favorecida conhece o seu poder de barganha e até onde pode
reivindicá-los, assim como conhece o poder dos grupos dominantes, sendo a relação entre os
dois, uma relação entre desiguais.
Para exemplificar esta situação tem-se que o último prefeito do município de Monte
Santo era um médico da cidade. Ora, o lugar social que o médico ocupa para esta população
detendo o poder de atender ou não os pacientes, ou melhor, os seus eleitores, isto quando não
detém inclusive a administração de hospitais como se pode observar em diferentes municípios
do país, faz pensar em como se estabelecem as relações das populações menos favorecidas
com os políticos de determinada região, onde suas perdas são prejudiciais não somente para
si, mas podendo se espraiar a todos à sua volta. Desse modo, talvez não houvesse como medir
36 Idem.
180
forças ou enfrentar determinadas situações sem que tivessem prejuízos mais sérios ou mesmo
acabassem no isolamento, perdendo o pouco do que possuíam.
Outro elemento a destacar no trecho do depoimento citado talvez seja a referência do
entrevistado à forma como percebe a história da região e as mudanças nela ocorridas, a partir
também de sua própria inserção no processo de luta por estas melhorias, assumindo a
presidência da associação de moradores da comunidade onde reside e, que, atualmente, está
sob a responsabilidade de um de seus filhos.
181
4.2 A pequena produção
A pesquisa permitiu observar que mesmo para os atuais moradores do povoado a
questão da terra se faz presente em seu cotidiano. Alguns já possuíram terras e tiveram que se
desfazer delas; outros ainda a possuem, mas não praticam mais as mesmas atividades que há
tempos passados, por razões as mais variadas. Alguns porque já não têm condições
financeiras para manter a terra produzindo, outros porque se “desgostaram” por causa dos
problemas enfrentados ao longo do tempo como roubos e outras práticas; outros, ainda,
mantém uma pequena gleba de terra com alguns animais apenas para o sustento familiar.
Os pequenos produtores fazem seus roçados onde plantam, de acordo com o período
de chuva, feijão, milho, mandioca, reservando a maior parte da produção para o consumo, e
destinando apenas o excedente ao comércio cujo valor é utilizado para adquirir outros
produtos necessários à manutenção da vida. Nesse sentido, quando perguntado ao senhor
Valdir se ele possuía uma propriedade respondeu:
Tem uma terrinha pouca, só pra gente trabalhar mesmo. É uma base assim de nove hectare. Aí eu planto tudo, né? Feijão, milho, a mamona, a mandioca, né, de tudo, capim... Quando chove assim, que a gente tira bastante, a gente come e vende também um pouquinho, né. Vende um pouco, vende e compra. Quando o ano é bom, a gente tira que sobra, né? aí fica pra se manter, e vender um pouco, também.37
A questão da terra, de ser um pequeno produtor se constitui em um elemento
importante para esta população. A terra parece compor seu cotidiano de tal forma que, ao
perguntar se ele possuía terras, o senhor Valdir respondeu dizendo que “tem uma terrinha
pouca”, como se não pudesse considerá-la, de tão pouca que é? Talvez ainda, esta forma de
mencionar sobre suas terras, esteja relacionada ao valor que ela possui para sua vida, que,
embora pouco extensa, é a que o sustenta, por isso trata-a como terrinha.
Os significados da terra para os trabalhadores que experimentam o movimento e o
trabalho em regiões tão diferentes e tão distantes, assim como para aqueles que não
participam do processo de deslocamento, mas vivem da terra, podem estar carregados também
de outras conotações como status, segurança, direitos, conforme aponta Thompson quando
argumenta que “a terra carrega sempre outros significados, mais profundos do que o simples
37 Depoimento do senhor Valdir Deolindo de Lima, 59 anos, em entrevista realizada no dia 21 de julho de 2007 na residência de um de seus filhos, junto à sede da comunidade do Sítio do Geraldo.
182
valor da colheita”38, uma vez que ela pode significar para estes sujeitos mais que a produção,
o preço de mercado ou valor de troca.
Vale observar que a forma como denominam a área de terra que possuem pode estar
relacionada com a questão do trabalho. Quando perguntei ao senhor Jorge Amador quanto de
terra ele possuía respondeu que: “Entre aqui e ali tem a base de vinte tarefa”. A tarefa, como
mencionado anteriormente, parece não só estabelecer uma medida como também remete à
área que um trabalhador deveria executar determinada atividade em um certo limite de tempo,
ou seja esta seria a sua empreita ou a sua tarefa39. Ainda nesse aspecto, a maioria dos
entrevistados não utilizou de outras nomenclaturas para se referirem às suas terras,
mencionando quase sempre que tinham “uma terrinha ali; uma terrinha pouca; umas poucas
tarefas”.
A questão do acesso a terra é primordial para estes pequenos agricultores, ao mesmo
tempo em que parece constituir-se em um valor também para os trabalhadores que viajam
para as lavouras de café. A forma como se estabelece a relação destes sujeitos com a terra é
diferenciada. A pesquisa permitiu observar que, entre os trabalhadores que não possuem
terras, parece haver o desejo pela aquisição, assim como se tem o acesso através do
arrendamento, conforme mencionou o senhor Lino, ao afirmar que paga um “agrado” pelo
arrendamento que fizera das terras de um parente, ou seja, parece não estar ainda instituído
naquele contexto um valor monetário pré-estabelecido e, quando o dono da terra é mais
próximo, como um amigo, um parente ou um compadre, o uso da terra chega a ser cedido
(“dado”), como denominou o entrevistado40. O que nos leva a pensar que esses grupos
possuem ainda relações de trabalho e valores que destoam daqueles vividos nas lavouras de
café, marcados pelos valores capitalistas.
As condições em que estes pequenos produtores estão inseridos, na dependência da
natureza e sem acesso a alguns recursos para o trato das lavouras como em outras áreas do
país, são muitas vezes interpretadas como os fatores que impulsionam para os deslocamentos
e os processos de migração. Os estudos de Andrade fazem referência aos pequenos produtores
da região nordeste do Brasil como grupos sujeitos à migração e que, às vezes, não têm acesso
suficiente à produção sendo necessário buscar outras fontes de renda:
38 THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 64. 39 Sobre as medidas de superfície utilizadas em diferentes estados brasileiros o Serviço de Estatística da Produção do Ministério do Desenvolvimento Agrário disponibiliza uma tabela de Medidas não decimais onde a Tarefa possui treze variações de medidas diferenciadas de acordo com a Unidade da Federação. 40 Depoimento do senhor Lino Moraes dos Santos, 37 anos, em entrevista realiza nas proximidades da fazenda onde trabalhava com mais vinte pessoas no dia 6 de junho de 2004.
183
Não conhecendo os processos técnicos de conservação do solo e não dispondo de dinheiro para adquirir adubos, têm eles uma produção mínima, sendo a renda auferida insuficiente para a manutenção da família. O sitiante complementa o seu orçamento trabalhando “alugado”, como camarada, diriam no sul do país, para os grandes e médios proprietários vizinhos, ou emigra no estio para a área açucareira, a fim de trabalhar nas usinas de moagem, deixando à mulher a guarda e administração de sua gleba.41
O movimento de deslocamento, como forma de busca por manutenção da própria vida
e a de sua família, parece ser o mote das discussões sobre esses grupos populacionais em
diferentes períodos históricos, como se fosse possível pensar em indivíduos cujos atributos
intrínsecos e instantâneos que, em função de certos estímulos produzissem tal ou qual ação.
Mas, ao que se observa, estes deslocamentos temporários funcionam como uma
complementação para um modo de viver que lhes são próprios, lembrando que, muitas vezes,
não são os pais das famílias que viajam, como no caso dos entrevistados: senhores Valdir,
Basílio, Jorge Amador, Jorge da Mota, José Barbosa, Fernando Araújo, senhora Inês e
senhora Bia, mas seus filhos que ao retornarem acabam auxiliando nas pequenas
propriedades. Talvez seja possível pensar que a complexidade das pessoas implique em
considerar que elas se inserem na história e que seu comportamento não deve ser traduzido
somente em termos de atos, mas também, simultaneamente, em termos de perspectivas e de
desejos42.
Os trabalhadores que experimentam os deslocamentos acabam se deparando com duas
maneiras próprias de se pensar o acesso a terra e a relação com ela. Na região de origem o
tempo da natureza e a produção alcançada da relação do homem com a terra parecem ser um,
enquanto que em Minas, o homem pode acelerar sua produtividade com os recursos a que tem
acesso, utiliza muito menos o sistema de consorciação de culturas, está mais voltado para uma
dinâmica de uso e exploração da terra mercantil, na pequena propriedade na Bahia, a relação
está mais voltada para a produção de subsistência com o uso intensivo da terra. Talvez seja
possível pensar que, nas experiências dos sujeitos pesquisados, a existência de um lugar é
viável apenas em relação ao outro, ou seja, a manutenção de sua pequena propriedade talvez
seja possível com o trabalho temporário nas lavouras de café, seja o seu próprio ou de algum
41 ANDRADE, Manuel Correia de. A terra e o homem do Nordeste: contribuição ao estudo da questão agrária no Nordeste. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2005. p. 168. 42 Estas reflexões apresentam maior densidade e contribuem para pensar algumas formulações correntes sobre os processos de deslocamento populacional em: ROSENTAL, Paul-André. Les Sentiers Invisibles: espace, familles et migrations dans la France du 19e siècle. Paris: Éditions de l’École des Hautes Études en Sciences Sociales. 1999.
184
familiar. Nesse sentido, as pesquisas de Silva apontam para uma relação muito próxima entre
um lugar e outro, mantida pelo trabalho e o cultivo da terra.
Unindo duas terras separadas no tempo e no espaço. O homem na terra dos outros tem a força para trabalhar. Com o dinheiro produzido por esta força, o homem alimenta a família, que, então passa a produzir a força para trabalhar a própria terra. Somente assim, pode-se produzir a unidade anterior entre homem-terra. Da interação entre homem-terra, espera-se o produto, a colheita para produzir a força até o mês de maio, quando, novamente, impõe-se a partida para reproduzir a situação anterior.43
A relação que os trabalhadores estabelecem entre um lugar e outro pode ser pensado
menos como dependência da renda obtida com o trabalho na colheita de café e mais como
possibilidade de manter ou aumentar o que possui. O depoimento do senhor José Ramon
aponta elementos para pensar como a viagem para outra região foi incorporada pelos sujeitos
que a empreendem: “Porque quando começa uma vez, vira tradição, né?, todo ano tem que
estar aqui. Quando chega perto mesmo, a pessoa fica na ansiedade de vim, contando os dias,
né?”44.
Pelo depoimento pode-se pensar que na palavra tradição está embutido um certo ar de
permanência do ato de viajar, mas talvez possa se compreender na narrativa do entrevistado
não somente a repetição contínua do ato de viajar para os trabalhos na safra de café, mas
também a legitimação e expectativa construída com este ato. Assim, há que se considerar que
as viagens e os trabalhos em diferentes espaços compõem um amplo campo de disputas no
qual se estabelece uma relação de troca, e no qual estão presentes todas as contradições
sociais e culturais45.
Estas questões podem ser vislumbradas ao se compreender como essas populações se
relacionam com a terra, o como e o quê produzem. Ao questionar alguns pequenos
agricultores sobre o que se produzia na região ouvi algumas afirmações, conforme a do
senhor Basílio:
Aqui a gente vive do cabrito, do borrego, do bezerro quem cria, quem possui uma vaca, né. E se vive também da colheita. Mas uma colheita assim, né, você sabe que o sertão é muito seco. Hoje devido essa desmatação que tá no mundo, a chuva ficou mais escassa. Porque esse sertão baiano, pernambucano daqui até o norte, tudo é um só. É porque
43 SILVA, Maria Aparecida Moraes. Trabalho e trabalhadores na região do “mar de cana e do rio de álcool”. Revista Agrária, São Paulo, n. 2, p. 2-39, 2005. 44 Depoimento do senhor José Ramon Alves Pereira, 28 anos, em entrevista realizada nas proximidades da fazenda onde trabalhava na colheita do café no dia 10 de julho de 2005. 45 THOMPSON, E. P. Costumes em comum; estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Cia das Letras, 1998. p. 16-17.
185
aqui, chove duas vezes no ano, o ano que o ano é bom de chuva chove. A chuva de verão, da trovoada né, e chove inverno. Essa passagem mesmo de maio para cá até o mês de agosto sempre chove de inverno aqui. É a safra mais que a gente tira, é feijão de arranque.46
De acordo com o entrevistado e no caso dele, especialmente, tem-se a criação de
alguns animais como atividade principal em suas terras, mas tem-se também a colheita que
depende dos índices pluviométricos no período do cultivo. Conforme afirmou o depoente, a
região visitada na Bahia é castigada pelo período de estiagem, portanto, o ciclo da produção é
bastante marcado pelas condições climáticas. Observei que esse mesmo ciclo da produção
viabiliza a locomoção desses grupos para a colheita de café entre os meses de maio e
setembro, pois é um período em que quase não se trabalha a terra, como revela o senhor Jorge
Amador, que tem dez filhos dentre os quais cinco viajam para trabalhar no café.
Agora no mês de setembro, que a gente planta na trovoada, num sabe? Aí quando é em maio e abril tem inverno aqui, a gente faz de novo, para plantar no inverno, o clima agora que nós tamo agora, que o tempo esquentou, num sabe? Aí nós prepara tudo o ruero aí vem a chuva, num sabe? Aí é trovoada. Aí no inverno é, chega a frieza, só aquela chuvinha todo dia. Nós tamo em agosto, até em janeiro é trovoada. Aí em janeiro, fevereiro e março aí já começa o clima de inverno. Planta duas vez por ano, planta na trovoada e planta de inverno por ano47.
O ciclo produtivo na região é marcado por dois momentos distintos: entre fevereiro e
março, quando se faz a plantação de inverno, como relata o senhor Jorge e que, segundo ele, é
a lavoura que mais produz, pois é o período de maior incidência de chuvas na região. A
colheita da lavoura de inverno normalmente é realizada em julho ou agosto, momento em que
muitos trabalhadores estão envolvidos com a safra de café. Mas, observei que um grande
número de mulheres faziam as colheitas e batiam o feijão, como no caso da Senhora Bia,
mulher do senhor Jorge, e da senhora Inês, mãe do entrevistado que trabalhava em Minas,
Genivaldo. O outro período é o chamado trovoada, entre agosto e setembro, quando se
procura também plantar especialmente feijão e milho48.
46 Depoimento do senhor Basílio Miguel da Silva, 62 anos, em entrevista coletada na sede da comunidade do Sítio do Geraldo no dia 21 de julho de 2007. 47 Depoimento do senhor Jorge Amador, em sua residência na área rural de Horizonte Novo no dia 6 de agosto de 2006. 48 A referências aos períodos de estiagem como fator de desestruturação da economia das populações destas áreas chamadas sertão do Nordeste aparecem nos estudos de Castro onde afirma que: Infelizmente, as secas periódicas, desorganizando por completo a economia primária da região, extinguindo as fontes naturais de vida, crestando as pastagens, dizimando o gado e arrasando as lavouras, reduzem o sertão a uma paisagem desértica, com seus habitantes sempre desprovidos de reservas, morrendo à míngua de água e de alimentos. CASTRO, Josué de. Geografia da fome: o dilema brasileiro: pão ou aço. 5ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 158-159.
186
Outro entrevistado oferece também alguns elementos acerca da questão do plantio na
região.
Só duas vezes a gente planta. E acontece que a gente planta na trovoada o feijão de corda, o milho, né. Planta e perde. Às vezes você planta também na passagem do inverno, do frio, e perde também. Acontece de perder. Sempre é mais comum aqui. E é isso que fica sofrendo, comprando caro que cai na mão do atravessador, que vem pra mão da gente, pra comprar um quilinho pra comer é muito caro. Aquelas pobre muito, né passa até fome... Hoje abaixo de Deus que dá um jeitinho, as pessoas, aposentado pelo FunRural, que é o pensionista chamado, né, ele recebe é o salário mínimo né. Sempre bota o que comer às vezes ajuda os filhos quando não tem, né. Eu mesmo faço isso.49
Ao longo do depoimento do senhor Basílio se observa as suas referências a dois tipos
de feijão plantado na região, sendo o feijão de arranque e o feijão de corda. A lavoura de
feijão de arranque, que é plantada no período da trovada, é a mais produtiva, enquanto que a
produção do feijão de corda no período do inverno é menor. Ao buscar compreender quais
eram esses tipos de feijões o senhor Basílio explicou:
O feijão de corda que se chama aqui que a gente planta na trovoada, né. Aquele que tem rama, desce as rama grande, né. Feijão de arranque nós conhece aqui é esse feijão que nós mesmo come que tem lá em Minas, tem em São Paulo, todo estado, que planta muito no interior de São Paulo, planta no Paraná, né O feijão de arranque que nós conhece aqui é esse outro que é de, ele cresce aqui assim [como um pequeno arbusto, a uns trinta centímetros do solo], solta uma corda, é, ele bota as baguinha na corda e bota ali na parte mais de baixo. O ano bom que chove bem, carrega bem.50
Na descrição do entrevistado tem-se que os tipos de feijão mais cultivados naquela
área possuem características um pouco diferentes, sendo o feijão de arranque o mais comum e
também consumido em outras áreas do país conforme o entrevistado apontou. Dialogando
com os meus questionamentos e perguntas que lhe pareciam muito óbvias era preciso me
fazer compreender do que se tratava. Já o feijão de corda parece se diferenciar também pela
formação das vagens que são mais alongadas e que compõe as preferências deste grupo da
população.
As pesquisas permitiram constatar que a principal atividade econômica da região é,
praticamente, a agricultura de subsistência, onde se conta com o bom tempo para se alcançar
maior produção e dela retirar o necessário para a manutenção da família e, o “sobrante”
49 Depoimento do senhor Basílio Miguel da Silva, 62 anos, em entrevista coletada na sede da comunidade do Sítio do Geraldo no dia 21 de julho de 2007. 50 Depoimento do senhor Basílio Miguel da Silva, 62 anos, em entrevista coletada na sede da comunidade do Sítio do Geraldo no dia 21 de julho de 2007.
187
vender no povoado, para pessoas próximas, ou comercializar nas feiras que acontecem
semanalmente em locais estratégicos como no povoado vizinho (Pedra Vermelha) ou nas
cidades de Andorinha e de Monte Santo. O depoimento do senhor Jorge Amador permite
observar algumas questões acerca da produção e a utilização que fazem dela:
A gente só não vende porque os anos daqui é muito escasso né. No ano que dá bom você às vez planta um saco de feijão, que um saco de feijão é doze prato51, então você as vez, tem ano que você não tira nem a semente e tem outros anos você não perde que as vezes acontece você tira dez saco, doze saco. Dá para a pessoa que tem muita gente assim como eu passar o ano. Não dá nem pra vender. Porque se você for vender fica sem nada, né.52
Como se vê, a produção conseguida por estes pequenos agricultores está quase
basicamente voltada para o consumo familiar, entre outras razões, pela dependência que
possuem dos períodos de chuva que acabam determinando inclusive que tipo de cultura cada
agricultor irá cultivar ou se irá cultivar, não podendo ainda comercializar muito do que produz
para garantir uma reserva para o período de estiagem. Outra questão que chama a atenção ao
questionar sobre o que cultivavam em suas terras foi a referência ao “plantar de tudo”, como
afirmou a senhora Inês:
A gente planta de tudo. Agora que a gente está deixando mais que nós não estamos mais plantando, mais de tudo a gente se plantava, mas agora esse ano não plantemo não e está muito devagar. De vez em quando tem plantar uma coisinha, quem tem pouco, um prato ou dois de feijão, tem que a gente pôr debaixo do chão.53
A declaração da senhora Inês de que se planta de tudo talvez remeta a pensar que estes
pequenos produtores plantam o que convém para o atendimento das necessidades da família,
utilizando ao máximo possível a área de terra que possuem cultivando ali os mais
diferenciados tipos de plantas, embora alguns tenham maior importância na manutenção da
família do que outros e, embora nem sempre, os resultados desse plantio sejam positivos
variando de acordo com os índices pluviométricos. Sobre as plantações ali efetuadas o senhor
José Ramon afirmou que “é feijão, milho, abóbora, tomate, melancia”54. As condições de
51 A medida por prato foi outra das medidas que didaticamente o senhor Jorge Amador me explicou: “um prato é seis litro. Essas lata de óleo é seis lata de óleo cheia. Aí é um prato. E um saco é doze prato”. 52 Depoimento do senhor Jorge Amador, 59 anos, em entrevista realizada em sua residência na área rural de Monte Santo-BA, no dia 06 de agosto de 2006. 53 Depoimento da senhora Inês dos Santos, 65 anos, coletado em sua residência, na região denominada Mundo Novo, no dia 20 de julho de 2007. 54 Depoimento do senhor José Ramon Alves Pereira, 28 anos, em entrevista realizada nas proximidades da fazenda onde trabalhava na colheita do café no dia 10 de julho de 2005.
188
manutenção da vida parecem ser um dos fatores que influenciam na decisão de plantar ou não,
conforme registrou a entrevistada, afirmando que “tem que plantar uma coisinha”, mas ao
mesmo tempo “tem que pôr debaixo do chão”, o que faz pensar que o ato de plantar para a
entrevistada parece estar envolvido de um tratamento carinhoso dado aos grãos que irão
alimentar a família e mesmo à terra uma vez que a motivação da disposição de lidar com a
terra pode “estar além da necessidade de prover de alimentos o paiol do sítio e a dispensa, e
da obrigação camponesa de transformar em mercadoria o restante das safras e transformar em
reserva de dinheiro e compra de outros bens o produto sazonal da agricultura familiar”55.
As referências dos entrevistados ao “plantar de tudo” aparecem em diferentes
momentos apontando para os usos da terra de maneira consorciada, fato explicado, em parte,
pela pequena área a que têm acesso os pequenos “sitiantes” procurando utilizar ao máximo a
sua gleba entre o cultivo e a criação de animais como argumentou o senhor Valdir: “Ah, eu
planto tudo, né. É o feijão, o milho, a mamona, a mandioca, né. De tudo né, capim também
tem um pouco de capim”56.
As referências ao cultivo do milho, do feijão e da mandioca são as que mais aparecem
nos depoimentos dos pequenos agricultores da região levando a pensar em sua atuação e
participação nos índices de produção do município de Monte Santo conforme se pode
observar no quadro abaixo, onde são apresentadas as áreas cultivadas de algumas das
principais culturas no ano de 2007.
Ano: 2007 Cultura Área plantada (ha) Feijão 8.060
Mandioca 7.000
Milho 8.000
Mamona 50
Castanha de caju 10
Cana de açúcar 5
Sisal ou agave (fibra) 5.000
Quadro 2: Produção Agrícola do município de Monte Santo no ano de 2007. Fonte: Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia. Disponível em: www.sei.ba.gov.br
55 BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O afeto da terra. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1999. p. 64. 56 Depoimento do senhor Valdir Deolindo de Lima, 59 anos, em entrevista realizada no dia 21 de julho de 2007 na residência de um de seus filhos, junto à sede da comunidade do Sítio do Geraldo.
189
A área cultivada dos principais produtos obtidos na região, como milho e feijão, é
expressiva em comparação com outras como a cana de açúcar, a castanha de caju e outras,
assim como ainda se registra no município uma extensa área com o cultivo do sisal apontado
anteriormente como uma das principais atividades da região de Horizonte Novo em anos
precedentes. Mesmo diante destes índices tem-se que para estes pequenos produtores os
resultados de suas colheitas é, quase sempre, destinado ao consumo próprio, sendo esta uma
produção basicamente de subsistência.
A compreensão de produção de subsistência é aqui entendida como aponta Heredia,
como aquela que além de ser consumida pelos próprios produtores, pode também ser
comercializada para adquirir “os bens necessários à reprodução física e social das famílias
desses pequenos produtores”57. Geralmente, toda a família de pequenos agricultores se integra
no desenvolvimento das atividades exigidas pela produção, mas percebe-se uma divisão
interna das tarefas, sendo destinadas aos homens algumas atividades e às mulheres outras. Foi
possível verificar que às mulheres é destinada a tarefa de colheita e beneficiamento do feijão,
conforme se acompanhou no mês de agosto de 2006, quando algumas delas se encontravam
nas lavouras “batendo feijão” como no caso da senhora Inês e da senhora Bia cujos filhos se
encontravam, naquele período, nas lavouras de café. Normalmente, as mulheres se reúnem em
grupos para se ajudarem na colheita e depois disso, realizam o que chamam de “bater feijão”,
retirando os grãos das vagens e preparando para a armazenagem, o que revela uma dinâmica
na execução desta atividade envolvendo grupos de mulheres da comunidade. Às mulheres
ainda destina-se o cuidado com os animais do quintal como porcos e galinhas, além de todas
as atividades relacionadas ao cuidado doméstico, como cozinhar, lavar, passar, cuidar das
plantas do quintal entre outras. Aos homens parece destinar-se a tarefa do plantio
especificamente e da limpeza das roças, assim como o cuidado com os animais,
especialmente, com o gado, com as ovelhas e cabras e, ainda, na comercialização dos
produtos seja na feira, realizando as compras para casa, ou fazendo a troca de produtos
excedentes por outros. Em geral, as dificuldades com a criação de gado e de ovelhas nesta
área é muito parecida com a do plantio uma vez que as chuvas são determinantes no tipo de
trato dado aos animais. Ao ser questionado sobre a criação de animais o senhor Jorge Amador
respondeu:
A gente tem umas três cabeça ou quatro de gado, ovelha tem poucas cabeça. Tempo escasso assim não pode criar muito que é no tempo seco
57 HEREDIA, Beatriz Maria Alasia de. A morada da vida. Trabalho familiar de pequenos produtores do Nordeste do Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. p. 37.
190
assim, é muito aperto pra gente. Aí a gente dá ração ou milho pra ir dando, palma, corta a palma também pra misturar. No tempo que chove é que a gente descansa.58
A criação de animais, seja gado ou ovelhas conforme se tem na área, parece demandar
muito cuidado e zelo por parte dos criadores; é preciso acompanhar os filhotes, cuidar da
alimentação, tratar os parasitas, especialmente no período de estiagem do que será ofertado
como alimento. O número de animais de cada pequeno produtor parece ser pensado como
uma forma de também enfrentar as secas, pois um maior número de cabeças exige do pequeno
produtor maior capital para adquirir ração e outros produtos necessários à manutenção do
rebanho quando não se pode contar com as pastagens na estiagem. Para auxiliar neste período
tido como um momento crítico do ciclo produtivo a utilização da palma na alimentação da
criação parece uma constante, conforme afirmaram o senhor Jorge Amador e o senhor Valdir:
“A palma de dar de comer pros bicho”.
Alguns dados sobre o efetivo de animais presente no município de Monte Santo
permitem observar quais estão entre as principais criações destes pequenos produtores:
Ano - 2007
Tipo de Animal Quantidade (cabeças) Bovinos 34.024
Caprinos 117.600
Galinhas 14.700
Muares 422
Ovinos 123.740
Suínos 948
Quadro 3: Efetivo de animais – Monte Santo, no ano de 2007. Fonte: Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia. Disponível em: www.sei.ba.gov.br
Vale notar que entre os animais que estão em maior número na região têm-se as cabras
e ovelhas que, como se observou, são bastante comuns em toda pequena propriedade ainda
que seja em pequeno número. A criação destes animais é também a garantia da manutenção
da família, ora se vende uma cabeça ou outra para adquirir alguns produtos, ora se faz uso
para o próprio consumo.
58 Depoimento do senhor Jorge Amador, 59 anos, em entrevista realizada em sua residência na área rural de Monte Santo-BA, no dia 06 de agosto de 2006.
191
Pode-se observar na localidade que, em alguns momentos, parte do que produzem é
vendido nas feiras da região. O depoimento da senhora Inês permite pensar a regularidade da
presença destes pequenos agricultores nas feiras da região: “O dia de ir pra feira aqui é dia de
terça-feira. E sexta-feira que é hoje é lá no Monte Santo. Segunda é em Cansanção e aí a
gente não vai em feira lá, é longe. Tem mais espaço, mais longe do que daqui em Monte
Santo”59.
Durante as visitas realizadas à Horizonte Novo pude acompanhar a movimentação nas
feiras das cidades de Monte Santo, Andorinha e no povoado da Pedra Vermelha. As feiras
parecem ser itinerantes, onde os comerciantes se deslocam para cidades diferentes
dependendo do dia da semana. Nesse sentido, a senhora Inês afirma que terça-feira é o dia de
ir para a feira na Pedra Vermelha, povoado que fica entre o povoado de Horizonte Novo e
Monte Santo. Os moradores de Horizonte Novo preferem ir à feira na segunda-feira em
Andorinha, distante oito quilômetros do povoado, enquanto que na sexta-feira, na cidade de
Monte Santo, a quarenta quilômetros do povoado, os habitantes da região aproveitam para ir à
feira e resolver outros problemas como documentação, receber aposentadoria, ir ao médico,
realizar exames entre outras atividades das quais estão dependentes de atendimento na sede do
município.
As feiras livres constituem, portanto, um momento importante para essa população,
não somente pela possibilidade de adquirir produtos a preços mais acessíveis que no comércio
local, como também de comercializar sua produção que muitas vezes é repassada aos
feirantes, pois é difícil para o pequeno produtor permanecer na feira esperando um comprador
para o seu produto.
Em geral, os pequenos sitiantes possuem um veículo que utilizam para transportar seus
produtos e também a família ou algum vizinho que necessite de uma carona para chegar até a
feira, mas, normalmente, há um ônibus que, a um preço mais acessível, leva os moradores no
período da manhã retornando apenas no final da tarde. A viagem, ainda que seja de curta
distância, chega a durar horas pois as estradas não pavimentadas apresentam problemas que
deixam a viagem mais longa, além das inúmeras paradas que faz para apanhar ou deixar
passageiros às margens das estradas, nas entradas dos sítios. Nas feiras é possível adquirir
uma série de produtos que vão de alimentos a roupas, calçados, raízes, mudas de plantas,
fumo, artesanato, entre outros produtos. Para os pequenos produtores é também o local de
comercializar os produtos excedentes para adquirir outros necessários à família. Vendem-se
59 Depoimento da senhora Inês dos Santos, 65 anos, coletado em sua residência, no sítio Mundo Novo, no dia 20 de julho de 2007.
192
desde pequenos animais, como galinhas, ovelhas, e também ovos, feijão, milho, farinha de
mandioca e outros produtos. Conforme aponta Heredia, “a feira é, além de um lugar para
comprar e vender, um ponto de reunião social. A feira é um local de encontro”60.
Foto 4: Relações comerciais e sociais na feira em Monte Santo Fonte: Arquivo da autora, agosto de 2006.
Guardadas as devidas proporções, pode-se pensar que a feira ocupa o lugar de
sociabilidade como o observado em relação às vendas nas lavouras de café. Em meio a todas
as práticas comerciais ali desenvolvidas verifica-se que as pessoas também utilizam aquele
ambiente para se divertirem, colocar a conversa em dia, dividirem as impressões sobre
acontecimentos, contarem as notícias da família, assim como se inteirar dos acontecimentos
políticos da cidade, ir à igreja, entre outras. Ao sair de casa em direção a qualquer uma das
feiras da região a pessoa sabe que terá o dia todo para realizar suas demandas, podendo incluir
nelas a visita a um parente, um compadre, um conhecido.
O espaço da cidade não aparenta ser almejado pelos trabalhadores entrevistados,
principalmente por aqueles que possuem suas pequenas propriedades. A dinâmica de relação
com as cidades da vizinhança passa, quase sempre, pela participação nas feiras, seja para
vender ou adquirir algum produto. No caso mais específico da cidade de Monte Santo, a
60 HEREDIA, Beatriz Maria Alasia de. A morada da vida. Trabalho familiar de pequenos produtores do Nordeste do Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. p. 45.
193
distância também impossibilita uma relação mais próximas dos moradores do povoado de
Horizonte Novo e região rural, na qual a presença dos moradores acontece em momentos
muito específicos, em busca de atender alguma necessidade ou nas festas religiosas ou outras
comemorações que atraem principalmente os jovens.
Foto 5: Vista aérea da Praça Monsenhor Berenguer onde são realizadas as feiras em Monte Santo-BA. Fonte: http://www.montesanto.net. Acesso em: jan. 2009.
A foto acima registra a praça central da cidade de Monte Santo onde são realizadas as
feiras e onde se encontra ainda uma concha acústica com palco onde são realizados os eventos
políticos e sociais da cidade que envolvem grande número de participantes. A sede do
município, embora distante e de difícil acesso comparando-se com a possibilidade de se
dirigir até a cidade de Andorinha ou Senhor do Bonfim, constitui-se em referência para os
moradores da área rural, pois é ali que buscam os principais serviços para atender as
comunidades rurais, como as reivindicações por escola, melhorias nas estradas, transporte
para as crianças, entre outros serviços, assim como é em Monte Santo que esta população
participa das atividades políticas, elegendo seus vereadores e prefeito.
194
4.3 A Escola
Vale notar que algumas comunidades rurais da região pesquisada possuem
características bastante marcantes, não raro acabam formando grupos de atuação político-
partidária, que estabelecem diálogos com organismos públicos como a prefeitura municipal,
pleiteiam melhorias diversas, sob a responsabilidade do governo estadual, e em alguns casos
acionam este ou aquele ministério. A região rural conta com cerca de 80% da população do
município61, ou seja, dos cerca de 56.000 habitantes, 46.000 vivem na zona rural, espalhados
pelas pequenas propriedades do território.
Durante as visitas à região observei um grande número de pequenas comunidades
rurais que, em geral, se constituíam em sede para um determinado grupo da população. Estas
comunidades estavam equipadas com uma escola de Ensino Fundamental de 1ª a 4ª série, um
bar ou venda equipado com alguns jogos como sinuca, às vezes havia ainda uma pequena
igreja, geralmente de credo católico e, um campo de futebol. A área onde se encontram tais
prédios acaba se tornando uma referência para aqueles que residem por perto ou que
pertencem àquela determinada localidade.
Cada região rural ou comunidade possui uma denominação, geralmente originária do
antigo nome da fazenda que ali existia, conforme registraram alguns dos entrevistados. Esta
fazenda, mesmo tendo sido subdividida em pequenos lotes, acabou por ceder o nome ao
bairro rural. Esta relação entre as denominações que recebem as comunidades ou bairros
rurais e as antigas formações de fazendas que ali existiram pode ser compreendida em parte
pela discussão apresentada em Andrade quando aponta que são chamadas “sítios” as parcelas
de terras maiores62, ou seja, ao se pensar no Sítio de Baixo, Sítio Mundo Novo, Sítio do
Geraldo entre outros, pode-se entender que eram antigas fazendas com tais denominações.
Estes são os locais onde também se desenrola parte da sociabilidade desta população.
Ao buscar compreender em que consistia a formação das chamadas comunidades, ou
os sítios como denominam os entrevistados, para além da questão referente às antigas
fazendas da região, observou-se que estes espaços, para os trabalhadores, estão imbuídos de
um sentimento de pertencimento revelado pelos depoentes principalmente em relação a outras
61 De acordo com dados do IBGE, Censo Demográfico, 2000. 62 ANDRADE, Manuel Correia de. A terra e o homem do Nordeste: contribuição ao estudo da questão agrária no Nordeste. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2005. p. 167.
195
localidades ou aos sítios de origem. Este elemento possibilita pensar as referências aos bairros
rurais defendidas por Candido ao afirmar que:
Além de determinado território, o bairro se caracteriza por um segundo elemento, o sentimento de localidade existente nos seus moradores, e cuja formação depende não apenas da posição geográfica, mas também do intercâmbio entre as famílias e as pessoas, vestindo por assim dizer o esqueleto topográfico.63
Desse modo, as denominações e referências dos entrevistados aparecem não somente
como espaços geográficos, mas também como locais em que uma identidade parece estar em
operação. Estes bairros não parecem ser tributários apenas do caráter de vizinhança, mas
também das relações que os grupos mantêm internamente inclusive com um certo grau de
parentesco, ou ainda, podem ser pensados como o resultado das relações que se estabelecem
entre as diferentes unidades camponesas e suas relações entre si e com a escola, a venda, o
centro comunitário64 ou a associação de moradores. A organização espacial parece ser ainda,
uma das formas de se alcançar as relações entre as comunidades e a sede do município, como
se observou através das pesquisas.
Ao investigar a região de Horizonte Novo e as comunidades rurais vizinhas constatei
que um dos principais espaços presentes nas comunidades rurais são as escolas, tidas pelos
entrevistados como uma facilidade para as crianças que residem nos arredores. Pode-se
verificar que o número de escolas presentes nas áreas rurais é considerável, embora o índice
de analfabetismo ainda seja muito alto, principalmente entre os senhores e senhoras acima de
trinta e cinco, quarenta anos, e a taxa de analfabetismo funcional também seja muito alto.
O índice de analfabetismo pode ser um item a ser analisado sobre esta população a
partir dos dados do censo demográfico de 2000 em que a taxa de analfabetismo entre crianças
de dez anos ou mais corresponde a 41,5% da população total do município, destes 24,8%
encontram-se na área urbana e 44,2% na área rural. Ao comparar estes índices com os
correspondentes ao da população com quinze anos ou mais se tem que estes somam cerca de
34.906 e 74,3% destes aparecem compondo a taxa de analfabetismo funcional65.
Estes índices podem ser analisados ao lado do número de estabelecimentos
educacionais presentes no município entre 1996 e 2005.
63 CANDIDO, Antonio. Os parceiros do Rio Bonito. 10. ed. São Paulo: Editora 34, 2001. p. 84. 64 Para uma concepção de bairro rural a partir da geografia agrária e de como o bairro é entendido como local da identidade ver: BOMBARDI, Larissa Mies. O bairro rural como identidade territorial: a especificidade da abordagem do campesinato na geografia. Agrária, n. 1, p. 55-95, 2004. 65 Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia. Disponível em: <http://www.sei.ba.gov.br>. Acesso em: jan. 2009.
196
ANO URBANO RURAL TOTAL
1996 6 169 175
2000 12 198 204
2005 7 176 183
Quadro 4: Número de estabelecimentos educacionais municipais e estaduais no município de Monte Santo Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2000.
Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia/SIDE
Os estabelecimentos educacionais na zona rural são todos municipais, com exceção de
uma escola de Ensino Médio situada no povoado de Pedra Vermelha e que atende a clientela
das áreas vizinhas; entre elas, conta-se com as escolas de Educação Infantil e de Ensino
Fundamental. Considerando a área do município de 3.285,17km2 no qual cerca de 80% da
população reside na área rural é de se compreender que haja um grande número de escolas
para atender a essa população. Mas, um dos problemas responsáveis talvez pela taxa de
analfabetismo funcional seja manter o aluno freqüente na escola, uma vez que as crianças,
muitas vezes, precisam caminhar alguns quilômetros para estudarem ou enfrentem outras
questões como o trabalho nas lavouras ou o cuidado com irmãos mais jovens, o que dificulta a
permanência das crianças na escola. Ao questionar o senhor Basílio sobre quais as séries
oferecidas na escola da comunidade do Sítio do Geraldo ele respondeu:
Aqui só entra da terceira e quarta. Os pequeno estuda ali na escola que tem na Fazenda Mel. Eles vão de a pé. É vizinho aqui, dá a base de dois quilômetros. Vai a pé. E que daqui são mais pouco, né. Mais é de lá mesmo, né? Mas tem um bandinho que vai de pé.66
Pode-se observar que as escolas espalhadas pela área rural oferecem apenas o ensino
até a 4ª série do Ensino Fundamental e as crianças para continuarem os estudos a partir da 5ª
série devem procurar as escolas dos povoados, de Monte Santo ou da cidade vizinha
Andorinha. Em geral, um transporte coletivo é oferecido pela prefeitura municipal para
transportar as crianças e, principalmente os adolescentes, que para freqüentar o Ensino Médio,
precisam se dirigir ao Povoado da Pedra Vermelha onde há uma escola estadual, ou se
desejarem estudar em Andorinha, precisam arcar com os custos do transporte, como acontece
com alguns jovens e também professores do povoado que fazem cursos superiores ou técnicos
na cidade de Andorinha ou Monte Santo.
66 Depoimento do senhor Basílio Miguel da Silva, 62 anos, em entrevista coletada na sede da comunidade do Sítio do Geraldo no dia 21 de julho de 2007.
197
Alguns dos trabalhadores entrevistados estudavam até o período em que realizaram a
primeira viagem para os trabalhos nas lavouras de café em Minas Gerais como se tem no
depoimento do senhor Jailson:
Eu desisti de estudar pra ir lá pra Minas. Eu estudei até o primeiro ano, mas só que foi incompleto, desisti no meio do ano. Eu até na época eu tinha vontade de estudar, mas na época eu trabalhava na padaria e era a noite, e no dia seguinte, era de manhã eu estudava. Aí eu perdia a noite quase toda ia estudar não agüentei não, muito sono, atrapalhava muito. Aí eu desisti. Foi logo também quando eu casei com a Regiane. Aí falei, não. Eu até falei pra ela esse ano falei assim, que era pra ela continuar estudando, ne? Que até se tivesse como, se der certo assim, igual eu estou indo pra lá todo ano e juntando grana pra mais na frente ela fazer a faculdade, sabe?67
O entrevistado não coloca o fato de ter saído para trabalhar em Minas como o
principal fator que o levou a abandonar o 1º ano do Ensino Médio, mas sim o outro trabalho
que tinha na padaria pouco antes de se casar. Vale observar que o depoente não se manifestou
sobre a possibilidade de seu retorno para a escola, mas apresentou o desejo de que a esposa
continue os estudos de Magistério e futuramente faça um curso superior.
Outro trabalhador, Gilson, quando perguntei se tinha freqüentado a escola respondeu:
Eu estudo ainda. Eu estudo a quinta série. O ano passado já perdi já, esse ano, chega lá vou, se eu ficar mais ou menos vou ver se eu volto de novo, ver se eu passo né? Vê se eu passo. Se num passar mais está fazendo o esforço, né? Não deixa de estar aprendendo uma coisinha.68
A entrevista foi realizada no mês de julho quando o depoente estava às vésperas de
retornar para casa porque tinha adoecido. O condicionante para retornar para a escola quando
estivesse de volta à sua região era melhorar seu estado de saúde. Vale observar que o
entrevistado afirma que estava cursando a 5ª série e constata-se que há grande distorção entre
idade e série, o que talvez tenha dificultado o seu retorno de fato para a escola. Durante a
visita ao povoado no ano de 2007 verifiquei que o entrevistado não havia retomado seus
estudos e tinha se casado.
Na realidade em que vive a população do povoado e região rural pode-se afirmar que a
educação formal é considerada mais importante e até mais viável para as crianças em idade
escolar. Os adolescentes, além de terem de se locomover por distâncias maiores para
67 Depoimento de Jailson Araújo, 22 anos, em entrevista realizada no dia 22 de julho de 2007, numa tarde quente de domingo na residência de seus pais em Horizonte Novo-BA. 68 Depoimento de Gilson F. da Silva Amador, 19 anos, no alojamento da fazenda onde trabalhava no dia 14 de agosto de 2005.
198
continuar os estudos, ainda acumulam as atividades do trabalho rural durante o dia e os
estudos à noite, o que acaba sendo um fator que eleva o índice de evasão escolar entre os
adolescentes e jovens.
Contudo, a educação formal parece se constituir, para pais e mães, um elemento
importante, principalmente entre as pessoas de mais idade que narram como era estudar na
sua infância.
Eu pra aprender, estudar, pra aprender assinar o nome, porque naquele tempo uns quinze dia na escola a noite ia, eu só agüentei assim uma semana a noite e aprendi a assinar o nome. E a maioria aqui, muitos da idade minha aqui, não sabe, nem sabe nem assinar o nome. Porque não existia escola naqueles tempo, né. Os pais também não tinha condição de dizer assim, eu vou arrumar um professor lá fora e vou botar em casa pra ensinar os filhos. Não tinha condições né, muito pobre e aí o resultado que as pessoas vive hoje sem aprender nada, sem ter palavra nenhuma. Se alguém hoje aprendeu assinar o nome, assinar documento uma coisa é porque lutou depois de velho pra entrar na escola.69
O entrevistado relata a dificuldade de conseguir permanecer na escola quando ainda
era criança. Manifesta que não era tranqüilo estudar no período noturno e este foi um dos
fatores que o levou a parar seus estudos, pois o acesso à escola era complicado, mesmo assim
conseguiu aprender a assinar seu nome. Vale ressaltar a frase do senhor Basílio quando afirma
que “as pessoa vive hoje sem aprender nada, sem ter palavra nenhuma”. O depoente parece
compreender que o conhecimento das letras possibilita à pessoa maior autonomia que pode
ser materializada em palavras ou na capacidade de poder expressar-se e fazer-se
compreendido e que, ele talvez, não tenha alcançado tais quesitos pois não estudou quando
criança.
Ao questionar o senhor Valdir sobre a sua freqüência à escola quando criança
respondeu:
E não, naquele tempo os pais, “não, não vai estudar, vai trabalhar”. Cheguemos aqui na mesma situação, uma crise ruim de uma medida, que eu vou falar verdade é ruim viu. Uma crise ruim e ruim mesmo e cadê, nós, ao invés de estudar nós tava era ajudando o pai na roça.70
Vale observar o quanto alguns elementos foram se modificando para estas populações
como para outras em todo o país. A educação escolar formal, antes tida como algo para
69 Depoimento do senhor Basílio Miguel da Silva, 62 anos, em entrevista coletada na sede da comunidade do Sítio do Geraldo no dia 21 de julho de 2007. 70 Depoimento do senhor Valdir Deolindo de Lima, 59 anos, em entrevista realizada no dia 21 de julho de 2007 na residência de um de seus filhos, junto à sede da comunidade do Sítio do Geraldo.
199
poucos, pois a relação emprego-estudo ainda não havia se solidificado, não se tornando ainda
um obstáculo para realizar determinadas atividades, é agora compreendida como algo a ser
buscado principalmente pelas crianças.
O senhor José Barbosa revelou em seu depoimento como era a relação estudo-
emprego quando era jovem:
Naquele tempo se você soubesse assinar o nome trabalhava, se não soubesse também trabalhava. Porque tinha serviço era a, construção civil em São Paulo, a gente chegava e arrumava trabalho. Podia ir, podia ir mil, só era chegar era tudo empregado.71
O depoente revela a compreensão de que o que mudou não foi a valorização da
formação escolar, mas sim, a diminuição das vagas de emprego, pois no seu entendimento,
não importava se a pessoa era alfabetizada ou não, havia onde se empregar, principalmente
em atividades como a construção civil em São Paulo, conforme ele relata ter experimentado
há cerca de cinqüenta anos.
Ao perceber que havia uma certa valorização da educação formal entre os
entrevistados, talvez porque não a tiveram, e vejam a educação como uma possibilidade de
ascensão social e de mudança de vida para seus filhos, busquei saber sobre a freqüência das
crianças na escola e observei que, entre algumas famílias que residem na área rural, as
crianças ainda não a freqüentam. Ao questionar a senhora Elisângela se suas filhas estudavam,
ela respondeu:
Não, por enquanto não. Aquelas duas que está aqui comigo [mostrando uma foto na estante], a de seis anos que é essa [mostrando a filha que acabava de entrar na sala] e a de oito anos não está estudando. Elas têm que ir para Horizonte, vai um monte de criança daqui todo dia. Eu vou botar elas agora. Ela chora pra eu botar ela na escola logo. Com seis anos já é pra estar, né?72
A educação formal para alguns, principalmente entre os moradores do povoado é
também uma possibilidade de acesso ao programa de transferência de renda do Governo
Federal, uma vez que a garantia da manutenção da Bolsa Família recebida todos os meses é a
freqüência do aluno na escola, independentemente de seu rendimento, ele precisa estar
matriculado e freqüente. Para a entrevistada, contudo, que reside na área rural, a presença de
71 Entrevista com o senhor José Barbosa, 71 anos, no domingo 6 de agosto de 2006 em sua residência, onde recebia várias pessoas que o procuravam para que as benzesse. 72 Depoimento da senhora Elisângela Ferreira, 24 anos, em entrevista realizada em sua residência na área rural distante cerca de 3km do povoado de Horizonte Novo, no dia 6 de agosto de 2006 juntamente com seu marido, senhor Tito de Jesus.
200
suas filhas na escola não parece ser primordial, por isso não há pressa em matriculá-las, além
do que terão que caminhar alguns quilômetros todos os dias o que pode ser uma das razões
para que as filhas ainda não estejam sendo alfabetizadas. Ao questionar se a entrevistada tinha
estudado ela respondeu:
Não, eu mesmo cheguei ir, mas não aprendi nada [a entrevistada sorri envergonhada]. Eu sei meu nome assim, mais ou menos sabe, só que com sobrenome com tudo vai pra muito longe aí tem vez que, quando eu fui tirar meu documento mesmo eu não assinei, não consegui assinar de jeito nenhum.73
A senhora Elisângela revela que não aprendeu quase nada no pouco tempo em que
chegou a freqüentar a escola. Ao narrar este fato, a entrevistada se mostrou envergonhada,
como se fosse incapaz de aprender, como se fosse “culpada” por seu insucesso na tarefa do
aprendizado, talvez estivesse comparando-se ao marido que revelou saber um pouco mais, ou
estivesse envergonhada diante da pesquisadora que, no seu entendimento, possuiria mais
conhecimentos que ela. Saber escrever o próprio nome, parece para a senhora Elisângela algo
que está fora de seu alcance, pois sabe apenas o primeiro nome, sendo difícil para ela escrever
também o sobrenome.
Respondendo a mesma questão o senhor Tito afirmou:
Eu já estudei ainda, quando eu estava bem, numa carreira boa já, né, meu pai me tirou para trabalhar. Eu não fiz nenhuma série, mas naquele tempo a gente começava e já sabia um pouco, mas aí meu pai me tirou para trabalhar na roça. Eu tinha doze, treze anos. Tem vez que eu ainda acerto fazer o nome, mas é difícil.74
O trabalho das crianças ao lado dos pais na lavoura parece se constituir o maior
obstáculo para a freqüência das crianças na escola durante algum tempo, principalmente, entre
os entrevistados que têm mais de 28 ou trinta anos. Mas, para as crianças atualmente essa
questão não aparece, embora a evasão escolar ou o fato de estar fora da escola ainda seja
constante na região.
Ao analisar os depoimentos acima pude observar que, para a dinâmica na qual estão
inseridos estes grupos e o casal entrevistado, o conhecimento ou não das letras, a
possibilidade ou não da leitura, pouco ou quase nada alteram a sua vida, uma vez que a
73 Depoimento da senhora Elisângela Ferreira, 24 anos, em entrevista realizada em sua residência na área rural distante cerca de 3km do povoado de Horizonte Novo, no dia 6 de agosto de 2006 juntamente com seu marido, senhor Tito. 74 Depoimento do senhor Tito de Jesus, 31 anos, em entrevista realizada em sua residência na área rural nos arredores de Horizonte Novo, no dia 6 de agosto de 2006, onde estava presente também sua mulher, a senhora Elisângela.
201
necessidade da escrita e sua utilização naquele ambiente estão, quase sempre, relacionadas à
assinatura do próprio nome em algum documento.
Pensar o índice de analfabetismo talvez implique em dizer que esta é uma população
fadada ao fracasso e ao atraso, mas há que se pensar que “uma sociedade analfabeta recobre
características que remetem às especificidades da cultura oral em relação à cultura letrada”75,
razão pela qual a memória popular também seja tão recorrente e ampla e utilizada, inclusive,
no processo de registro da história da região. Nesse sentido, vale recorrer ao projeto da
Biblioteca Comunitária do Povoado de Horizonte Novo, de autoria de Osvaldo Moraes,
professor de matemática e história da Escola Educandário Horizonte Novo, no qual revela que
“um problema preocupante que envolve os moradores é o analfabetismo, uma vez que, apenas
25% (vinte e cinco por cento) dos seus habitantes são considerados alfabetizados, ou lêem e
escrevem um simples bilhete”76. Observa-se que há uma preocupação com o índice de
analfabetismo presente entre os moradores da região, mas há também um diálogo a partir do
qual se acredita que a alfabetização e a educação escolar é a arma contra os problemas sociais
enfrentados como o desemprego, a prostituição, contra o “atraso” e a falta de cultura77. Nesse
aspecto talvez seja possível argumentar que o índice de analfabetismo não significa
diretamente falta ou ausência de possibilidades de inserção desses grupos em processos de
reivindicação e lutas, ou de falta de conhecimento, de argumentos ou de compreensão da
prática do poder. Como aponta Barreiro, basta lembrar que na França pré-revolucionária, o
índice de analfabetismo atingia cerca de 60% da população e, as idéias difundidas naquele
período chegavam às camadas populares apenas em segunda ou terceira mão78.
Para estes indivíduos que aprenderam a viver sem a leitura e a escrita, certamente,
desenvolveram outras formas de se relacionar e articular o que para nós, alfabetizados, é
extremamente difícil imaginar. O fato de não conhecerem o mundo das letras e estarem à
margem da dinâmica de uma sociedade em que a escrita é a lei, não torna essa população
marginal aos processos de reivindicação ou de participação da dinâmica política, social ou
cultural daquela e da região onde se inserem temporariamente.
75 BARREIRO, José Carlos. E. P. Thompson e a historiografia brasileira: revisões críticas e projeções. Revista Projeto História, São Paulo, n. 12, p. 57-75, out. 1995. p. 65. 76 SANTOS, Osvaldo Moraes dos. Projeto de Biblioteca Comunitária do Povoado de Horizonte Novo, julho de 2007. 77 Os estudos de Albuquerque Jr apontam que o camponês nordestino é visto em obras como a de Graciliano Ramos como um ser silenciado, sem linguagem e, este silêncio está diretamente ligado à sua carência econômica e de poder. Esta percepção acerca do homem do Nordeste levou à construção da visão de alguns setores da sociedade que liga diretamente alfabetização e politização. (cf. ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 2ª ed., São Paulo: Cortez, 2001, p. 229-230). 78 BARREIRO, José Carlos. E. P. Thompson e a historiografia brasileira: revisões críticas e projeções. Revista Projeto História, São Paulo, n. 12, p. 57-75, out. 1995. p. 63.
202
Vale mencionar que a pesquisa possibilitou apreender que os indivíduos desta área são
sujeitos atuantes que dialogam com as suas experiências, com os conhecimentos que possuem
de outras áreas do país, assim como com o seu próprio ambiente. Nesse sentido, é importante
colocar que a natureza não é o fator determinante do modo como vivem essas populações,
como acredita Euclides da Cunha em Os Sertões em que o meio natural aparece como um dos
fatores determinantes do conflito, no qual a natureza não é apenas cenário mas protagonista79,
e sim, que o indivíduo desta área do país domina e conhece a natureza da qual extrai a sua
sobrevivência.
A perspectiva de que a natureza, o sertão, é também determinante das características
físicas, morais e de valores presentes em sua população pode ser encontrada na obra Vidas
Secas de Graciliano Ramos em que cada passo e atitude de Fabiano, protagonista do enredo,
está marcado pelo rastro da pobreza e da seca, assim como sua forma de (não) se expressar80.
Tal aspecto condiciona o homem ao meio e não o vê como agente que, inserido em tal
dinâmica, precisa e emite formulações e respostas que parecem incompreensíveis ou beiram a
falta de consciência ou atitude política.
Ao observar, por meio das entrevistas, que muitos dos moradores daquela região são
conhecedores, não somente de outras áreas do território baiano, como de outros estados do
país, como São Paulo, Paraná e Espírito Santo e, mais recentemente a região do Triângulo
Mineiro e do Alto Paranaíba, tem-se que ao retornarem para o seu local de origem, estes
indivíduos fizeram suas opções, possivelmente contrapondo suas experiências locais com as
vivenciadas nas demais localidades por onde passam ou passaram.
Conhecer a região para a qual decidem retornar os trabalhadores encontrados nas
lavouras de café é parte do processo com o qual dialogam, observando os problemas que lhes
são próprios, seja no povoado ou nas áreas rurais, e buscando as soluções possíveis para que
não seja necessário abandonar a sua região e nela continuar a desempenhar o seu papel de
agente e sujeito de sua história.
79 Para uma discussão acerca da obra de Euclides da Cunha na historiografia ver: ALVES, Francisco José. D’Os Sertões como obra historiográfica. In: GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado (Org.). Estudos sobre a Escrita da História. Rio de Janeiro: Ed. 7 Letras, 2006. 80 RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 34ª ed. Rio de Janeiro: Record; São Paulo: Martins, 1975.
203
4.4 As comunidades rurais
O problema na área rural com a falta de água para o abastecimento das casas é uma
das grandes dificuldades para as populações desta região. De acordo com algumas entrevistas
este teria sido um dos principais fatores que impulsionaram famílias inteiras a deixarem suas
residências na área rural e terem ido se instalar no povoado de Horizonte Novo, como foi
apresentado no início deste capítulo. No povoado há um açude em seus arredores que o
abastece. Pude acompanhar durante as pesquisas no povoado como funciona o abastecimento
de água para aquela população: do açude a água é bombeada para uma grande caixa que fica
no centro do povoado, dali tem-se três pontos estratégicos onde os moradores podem recolher
a água para abastecerem suas casas. Essa sistemática de distribuição e abastecimento de água
no povoado acontece desde 1992. Uma vez por semana, geralmente aos sábados, os
moradores, principalmente as mulheres e as crianças, carregam a água para suas casas onde
utilizam tambores, potes e todo tipo de vasilhame no qual seja possível guardar a água que
será utilizada durante toda a semana para lavar e cozinhar, até o próximo dia em que o
fornecimento será feito para toda a população. Esta movimentação foi acompanhada em julho
de 2007 conforme se tem na imagem abaixo.
Foto 6: Mulheres aguardam para retirar água Fonte: Arquivo da autora
204
O abastecimento de água no povoado funciona de modo que seja distribuída às
famílias residentes e para que não venha faltar nos períodos de estiagem, procurando poupar
ou restringir o acesso à água a um dia na semana apenas. Na zona rural, observa-se que as
comunidades ou os bairros rurais acabam organizando também as suas estratégias para lidar
com esta dificuldade. Em uma longa conversa com o senhor Valdir transpareceu parte dos
problemas que enfrentam em relação a isso, mas também fui surpreendida ao constatar
tamanha organização por parte daqueles habitantes que aparentavam ser tão frágeis, tão
deixados à própria sorte. Claro que esta foi a primeira impressão do olhar forasteiro de quem
acaba de chegar e não consegue perceber como as pessoas podem se mobilizar diante de seus
enfrentamentos.
A narrativa do senhor Valdir, assim como a do senhor Basílio apontou para algumas
das formas de como aquela população do Sítio do Geraldo se organizou para tratar de seus
problemas e encontrarem outras saídas. Nesse sentido, a relação dos membros da comunidade
com os políticos do município apareceu como fator importante conforme menciona o senhor
Valdir em seu depoimento:
Eu mesmo nunca fui em Monte Santo pra falar com o prefeito sou bem atendido, graças a Deus, ele recebe a gente bem. Aqui no verão a gente não passa sede porque eles não deixam. Não, não passa não. É porque ele manda o carro pipa, né? Manda. A distribuição é o seguinte, a distribuição ele manda aí um até a associação aqui, ai tem uma cisterna, né, foi o prefeito mesmo que fez, aí quando o caminhão vem coloca a água, eu é que fiquei com a chave né, aí vai as pessoa pega água, quando todo mundo pega água a gente tranca, né. Quando é a tardezinha abre novamente vai todo mundo pegar sua água. E quando não é lá, como tem as fazenda aqui que tem as casa muito longe a gente escolhe outra cisterna lá, né, aí coloca água, a vizinhança, todo mundo pegando água ali. Graças a Deus viu, nunca passemos. Graças a Deus nessa parte, somo bem atendido, viu.
A participação ativa do entrevistado, conforme se observa em seu depoimento retrata
parte das conquistas que tiveram a partir das reivindicações junto aos organismos públicos e
especialmente ao prefeito de Monte Santo, que segundo o senhor Valdir, tem atendido as
demandas da região sempre que solicitadas. Como o acesso à água nos períodos de estiagem é
um dos maiores problemas da região, o entrevistado descreve como é feito o abastecimento
para as famílias daquela área rural. O caminhão pipa fornecido pela prefeitura transporta a
água até a cisterna da associação e após é redistribuída aos moradores que para ali se dirigem
em busca de água, assim como é escolhida uma outra cisterna em outros sítios para também
serem abastecidos e depois redistribuírem a água da qual necessita a população do entorno.
205
Esta dinâmica parece ocorrer em parte pelas manifestações dos moradores da área que buscam
uma solução para enfrentar o período de estiagem, e também, porque não querem deixar suas
pequenas propriedades para irem residir em outro local.
Parte das manifestações e das reivindicações daquela população pode ser
compreendida com a atuação da associação de moradores. Em alguns depoimentos a
associação é referência para as mudanças ocorridas na região ao longo dos anos, como
descreve o senhor Valdir:
Aqui mesmo, aqui mesmo não vive não, aqui veio melhorar depois que a gente se formou pra cá. A gente tomou pé, né. Tomou pé, a gente vai em Monte Santo, a gente vai em Andorinha, então a gente já adquiriu alguma coisa pr’aqui. né? Aqui não tinha, os tanque era desse tamaninho, hoje já tem olha, essas aguada aí, bastante aguada, né? Isso, e não mais porque os político também, não se interessa muito.81
Há uma reflexão do entrevistado que remete a pensar nas alterações ocorridas em sua
região, em parte, após sua atuação como membro e como presidente da associação
comunitária. A associação parece ser o caminho mais curto entre a necessidade e a requisição
possivelmente atendida. Nesse sentido, o entrevistado aponta para uma das modificações
importantes não somente com o aumento do número das aguadas82, como o aumento do
tamanho dos açudes que funcionam como reservatório, ora para uso doméstico, ora para
saciar a sede dos animais. Para esta população ter a reserva de água é um valor que diz
respeito não somente ao cuidado que os indivíduos possuem com o “bem” que é a água nesta
região, mas também com o valor da manutenção da própria vida e da criação existente em
suas pequenas propriedades.
Esta importância dada aos açudes pode ser observada quando o senhor Valdir me
levou a conhecer o açude que possui em sua propriedade, onde uma cerca de madeira mantém
os animais longe da água que serve ao uso e consumo doméstico não somente de sua família,
mas para as famílias vizinhas.
81 Depoimento do senhor Valdir Deolindo de Lima, 59 anos, em entrevista realizada no dia 21 de julho de 2007 na residência de um de seus filhos, junto à sede da comunidade do Sítio do Geraldo. 82 Entende-se por aguada os açudes que se espalham pela área rural.
206
Foto 7: Açude que serve como reserva de água para a família do Sr. Valdir e os vizinhos da comunidade do Sítio do Geraldo. Fonte: Arquivo da autora
Para estas comunidades o acesso à água nos períodos de estiagem é a garantia da
manutenção da vida, mas também de permanência em suas terras, pois não precisam se
deslocar ou passar a residir em outras áreas onde o acesso à água seja mais fácil. Por esta
razão observa-se que as populações rurais da área buscam se organizar para serem atendidas
em suas demandas.
Outra questão que parece importante para as comunidades e a população rural é a
manutenção das estradas em boas condições de tráfego. Nesse sentido, o senhor Valdir uma
vez mais revela como ele, e sua comunidade, são atendidos pelo poder público municipal
sempre que requerem algum serviço.
Eu mesmo é só chegar lá e pedir no outro dia o carro pipa chega aqui. Máquina mesmo pra fazer essa estrada, né? Nós não pode falar mal porque graças a Deus, aqui até quando a máquina vem eu levo lá. É eu que levo, né. Um dia desse veio a máquina aqui, passou nessa estrada aqui, ficou umas galha aqui que não fizeram né?, eu fui em Monte Santo quando cheguei falei: Everaldo, eu digo, a máquina passou só na estrada principal, né, mas as galhada ficou. Ele falou: quando for quinta-feira você espera a máquina. Quando foi quinta-feira a máquina chegou aqui mesmo. Aí também aproveitei e fiz logo o que tinha que fazer né? Pois é. Graças a Deus somo bem atendido nessa parte, graças a Deus. Somo.
207
Pois é. E se não faz mais é porque o município é muito grande, é grande demais, não é verdade, o município de Monte Santo é grande, oh.83
O senhor Valdir parece ser uma referência para sua comunidade, pois tendo sido
presidente da associação ali existente conhece desde os secretários municipais ao próprio
prefeito e parece ser sempre ouvido em suas manifestações na Prefeitura, como no caso citado
acima em que ele questiona o serviço incompleto realizado pelas máquinas nas estradas da
região e reivindica que o trabalho seja terminado, o que foi atendido dentro do prazo
estipulado.
Estas questões e a força política que o senhor Valdir demonstrou sobre ele mesmo e
sobre a associação que mencionava a todo o momento levou-me a questionar e procurar
conhecer esta organização. Estes questionamentos possibilitaram observar que o diálogo que
estas pessoas estabelecem com a sua realidade e o seu ambiente passa também pela
associação, pela união de famílias pequenas proprietárias, em torno das associações existentes
nas comunidades rurais a fim de reivindicar possíveis melhorias ou mesmo estabelecer
códigos, regras e valores que beneficiem todos os envolvidos; parece haver um sentido de
coletividade. O depoimento do senhor Basílio fornece elementos nesse sentido:
Nós aqui tem uma associação que funciona acho que há doze anos ou até mais. E nós aqui a luta é grande e cada um presidente que entra, já entrou três, a luta é grande tem aquela vontade que as coisas melhora, que traga as coisas pro município, pra fazenda e não vem ficar só no papel.84
O entrevistado revela a existência de uma importante associação atuando em sua
comunidade. Ao procurar entender qual era essa associação e a quais interesses ela atendia,
ouvi de alguns moradores que a mesma auxilia e interfere junto aos organismos públicos
quando precisam ser atendidos em alguma demanda.:
Aqui a associação é meio forte, né, é grande né. Não aqui mesmo, nós tem a nossa aqui. O presidente é meu filho aqui, ele é o presidente, é o dono da casa aqui [referindo-se ao local onde estávamos]. Está com dois mandato que ele é o presidente, pois é. E é bem organizada viu, graças a Deus, a gente paga todos os impostos. Tá tudo em dia, pois é85.
83 Depoimento do senhor Valdir Deolindo de Lima, 59 anos, em entrevista realizada no dia 21 de julho de 2007 na residência de um de seus filhos, junto à sede da comunidade do Sítio do Geraldo. 84 Depoimento do senhor Basílio Miguel da Silva, 62 anos, em entrevista coletada na sede da comunidade do Sítio do Geraldo no dia 21 de julho de 2007. 85 Depoimento do senhor Valdir Deolindo de Lima, 59 anos, em entrevista realizada no dia 21 de julho de 2007 na residência de um de seus filhos, junto à sede da comunidade do Sítio do Geraldo.
208
A narrativa do senhor Valdir assim como a do senhor Basílio permitiam observar a
existência da associação, algumas das medidas que ela tomava, mas não me possibilitaram
compreender quais as finalidades e objetivos dessa agremiação organizada e, em quais
dimensões ela se relacionava com organismos públicos, ou outras entidades. Contudo, foi a
partir de um dos trechos da narrativa do senhor Valdir que pude compreender melhor de que
associação eles estavam falando:
Nós temo aqui um fundo de pasto também. Nós temo um fundo de pasto da associação. São novecentos hectares. Essa é toda em mata. É, não é tirado uma árvore verde, nós só tiramo a madeira seca que está no chão. Então essa está lá reservado, né. Mas mesmo nessa época, nessa época, uma parte dos bichinho estão tudo lá comendo lá, né? É, tem. É cercada também, nós cercamos, o pessoal da associação toda, né. Já fizemos uma aguada. Nós mesmo fizemo, né, uma barragem, uma represa, uma barraginha, né. Nos juntamos tudo com o dinheiro da associação nós fizemos, né. Mas se Deus quiser, o prefeito prometeu e vai fazer uma pra nós, agora. Se Deus quiser ele tá vindo qualquer hora pra uma reunião, então se é promessa né, desde o outro prefeito, que era o prefeito Jorge, então se é promessa do outro, então se Deus quiser ele vai fazer.86
Como revela o depoente, o fundo de pasto é uma área de utilização comum para as
pessoas da comunidade, onde buscam preservar ao máximo a vegetação para que não venham
sofrer com a falta de alimento para os animais nos períodos em que recorrem a esta área,
geralmente na estiagem. O senhor Valdir revela que a área é de novecentos hectares e que as
pessoas da comunidade se envolveram a fim de cercá-la, como uma forma de garantir a
propriedade para a comunidade, assim como se organizaram para fazer o açude e estão na
expectativa da construção de um novo pela prefeitura municipal de Monte Santo. Esta questão
da dependência, em muitos casos, dos organismos públicos ou mesmo de políticos para a
construção de açudes ou outras formas de se atender a essa população em suas demandas por
água, remonta à discussão da existência de uma “indústria da seca”, “facilmente simulável
numa enorme área de baixa pluviosidade natural, quando para isso se associam políticos, que,
dessa forma, encontram modos de servir sua clientela”87.
Como esta população teria tido acesso a este fundo de pasto? Questionei então o
senhor Basílio sobre o que era o fundo de pasto e ele respondeu: “É um terreno que não tem
casa, e não tem roça e o povo cria ali, né. É de todo mundo daqui, sítio e Vaz de Fora, e
86 Depoimento do senhor Valdir Deolindo de Lima, 59 anos, em entrevista realizada no dia 21 de julho de 2007 na residência de um de seus filhos, junto à sede da comunidade do Sítio do Geraldo. 87 RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 349.
209
chegaram o ponto que até cercaram essa, cercaram mas passou o redemoinho que era o outro,
entrou na justiça”88.
O entrevistado revela que a área já foi pivô de conflito, ou seja, alvo da grilagem
ocorrida na região, conforme foi abordado anteriormente, mas que a comunidade recorreu à
justiça e obteve sucesso na reintegração de posse da área.
Sobre estas formas de utilização coletiva da terra tem-se que os fundos de pasto são
áreas tradicionais no Semi-árido, de posse coletiva e de uso comum, utilizadas no pastoreio de
caprinos pelas famílias de uma mesma comunidade ou de comunidades próximas, de maneira
a complementar a agricultura de subsistência, conforme já abordado. Estas áreas remontam à
época do fracionamento das sesmarias em fazendas e ocorrem em “terras devolutas”, que não
foram requeridas por particulares após a Lei de Terras de 1850 e, “devolvidas”, passaram à
propriedade da União que as repassou aos Estados, logo após a criação da República. As
terras devolutas devem ser compreendidas como as que foram concedidas pela coroa
portuguesa aos sesmeiros atreladas à cláusula de que aquele que recebia a área tinha cinco
anos para torná-la produtiva, devendo retornar à coroa caso a exigência não fosse cumprida.
Estas terras que retornaram foram chamadas devolutas, embora tenha assumido o sinônimo de
terra improdutiva89. Mesmo possuindo o caráter de doação, não houve uma forma de impedir,
por parte da metrópole, a formação de grandes latifúndios improdutivos, que aliavam o
padrão de exploração colonial ao apossamento desenfreado de grandes áreas. A lei de Terras
de 1850, de acordo com Silva,
Pretendeu impor os princípios da política de intervenção governamental no processo de apropriação territorial, representando uma tentativa dos poderes públicos (o Estado Imperial) de retornarem o domínio sobre as terras chamadas devolutas que estavam perdendo em função da vertiginosa ocupação que se processava sob a iniciativa privada.90
Mas parte dos objetivos propostos pela Lei de Terra, não foi atingida, como a
demarcação das terras devolutas e, ao mesmo tempo, a Lei trazia em seu artigo 1º, e outros,
que levavam a interpretação de que a “cultura efetiva e a morada habitual” garantiam a
permanência de qualquer posseiro, nas terras ocupadas. Este é um dos grandes problemas que
multiplicaram as ações dos grileiros e posseiros sem que houvesse o controle do Estado, uma
88 Depoimento do senhor Basílio Miguel da Silva, 62 anos, em entrevista coletada na sede da comunidade do Sítio do Geraldo no dia 21 de julho de 2007. 89 SILVA, Lígia Osório. As leis agrárias e o latifúndio improdutivo. São Paulo em Perspectiva, n. 11(2), p. 15-25, 1997 90 Idem, p. 17.
210
vez que com o advento da República estas terras teriam sido passadas ao domínio dos estados
que pouco fizeram no sentido de implementar uma política de colonização ou assentamento91.
As terras devolutas atualmente ocupam as discussões acerca da reforma agrária e da
implementação de uma política agrária. Estas áreas compõem as possibilidades de
democratização do acesso a terra apenas nas duas últimas décadas, após a Constituição de
1988 quando se passou a discutir a utilização destas áreas nos processos da reforma agrária. O
quadro abaixo possibilita vislumbrar as áreas devolutas em alguns estados do país.
UNIDADE DA FEDERAÇÃO ÁREA EM HECTARES
Amazonas 40 milhões
Pará 31 milhões
Bahia 22 milhões
Minas Gerais 14 milhões
Piauí 10 milhões
Mato Grosso 9 milhões
Maranhão 6 milhões
Rio Grande do Sul 6 milhões
Ceará 6 milhões
Pernambuco 3 milhões
Quadro 5: Área de terras devolutas no Brasil por Unidade da Federação Fonte: OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino. O Brasil, a reforma agrária e as terras devolutas. Rádio Agência Nacional, 26/04/2007. Entrevista disponível em: <www.radioagencianp.com.br>. Acesso em: jan. 2009.
A falta de regulamentação ou mesmo de demarcação destas áreas por parte dos
governos estaduais resultou no que agora se vê na região de Monte Santo e em outros estados
do país, áreas utilizadas coletivamente (fundo e fecho de pasto), originárias destas terras
devolutas.
As comunidades de Fundo e Fecho de Pasto são assim compreendidas nos documentos
pesquisados:
São formações sócio-econômicas que configuram um modelo singular de posse e uso da terra no semi-árido baiano, cuja expressão social vai além da sua participação como força produtiva. As propriedades coletivas são ocupadas, de modo geral, por uma comunidade de origem familiar
91 Para uma discussão mais aprofundada acerca destas questões, ver: SILVA, Lígia Osório. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da Lei de 1850. Campinas: Ed. da Unicamp, 1996.
211
comum que se realiza como atividade predominante, o pastoreio comunitário extensivo de gado de pequeno porte e, subsidiariamente, a agricultura de subsistência representada, principalmente, pelos cultivos do milho, do feijão e da mandioca.92
No caso da comunidade do Sítio do Geraldo observa-se pelos depoimentos coletados
que a área do fundo de pasto é destinada apenas ao manejo de animais de pequeno porte
durante o período de estiagem, tornando-se uma garantia para a manutenção de inúmeras
famílias que utilizam a área. Os Fundos de Pastos estão presentes ainda na região do Cerrado
onde recebem o nome de Fechos de Pasto, e também é comum em outros estados da
federação como Pernambuco e Ceará, embora não seja de conhecimento comum.
No estado da Bahia, após a Constituição Estadual de 1989, foi reconhecida esta forma
de acesso à terra, cujas áreas de fundo de pasto deveriam passar por um processo de
regulamentação conforme sugere o artigo 178 da Constituição Estadual:
Art. 178 – Sempre que o Estado considerar conveniente, poderá utilizar-se do direito real de concessão de uso, dispondo sobre a destinação da gleba, o prazo de concessão e outras condições. Parágrafo único – No caso de uso e cultivo da terra sob forma comunitária, o Estado, se considerar conveniente, poderá conceder o direito real da concessão de uso, gravado de cláusula de inalienabilidade, à associação legitimamente constituída e integrada por todos os seus reais ocupantes, especialmente nas áreas denominadas de Fundos de Pastos ou Fechos e nas ilhas de propriedade do Estado, vedada a este a transferência de domínio.93
Conforme se observa estas áreas são declaradas como pertencentes ao Estado e
cedidas ao uso coletivo, mas a legalização destas áreas como pertencentes às comunidades
que as utilizam ainda não se tornou uma realidade. Por serem terras devolutas, há uma série
de registros de conflitos porque vez ou outra aparece alguém requerendo a propriedade e
querendo tomar posse da terra, à medida que ocorre a sua valorização produtiva. Para que o
processo de regulamentação se concretize, parece ocorrer a exigência da formação de uma
associação nas comunidades cujas áreas são utilizadas coletivamente, mas isto ainda não
parece ser o suficiente, pois há cerca de dez anos as associações se espalham pelo Estado e
pelo município de Monte Santo, mas até o momento nada foi alcançado. De acordo com
dados do Projeto GeografAR94, em todo o estado há cerca de 365 associações espalhadas
92 Projeto Integrado de Pesquisa: “A Geografia dos Assentamentos na Área Rural” – Projeto GeografAR. Disponível em: <www.geografar.ufba.br> 93 Constituição do Estado da Bahia, 05/10/1989. 94 O projeto GeografAR é desenvolvido pelo Instituto de Geociências da Universidade Federal da Bahia, cujo objetivo é conhecer a geografia dos assentamentos na área rural do estado. Este projeto vem desenvolvendo as suas pesquisas desde agosto de 1996, tendo como proposta principal discutir o processo de
212
pelos municípios onde esta forma de ocupação de terra compõe o modo de vida da população
rural. Cerca de vinte mil famílias vivem do uso coletivo destas áreas, atingindo mais de cem
mil trabalhadores rurais. A regulamentação destas áreas no estado da Bahia é de competência
da Coordenação de Desenvolvimento Agrário conforme se pode observar em alguns de seus
textos95.
A não regulamentação destas áreas parece ser não somente um problema como
também uma preocupação, conforme afirma um texto da ACOTERRA (Associação
Comunitária Terra Sertaneja), com sede em Monte Santo96. Esta associação possui entre suas
metas:
Regularização e sustentabilidade das áreas coletivas de fundo de pasto, apoiado pelo Fundo Brasil de Direitos Humanos, envolve 35 comunidades e pretende trabalhar pela regularização de 26 áreas, atingindo cerca de 20 mil trabalhadores rurais de fundo de pasto. O objetivo é garantir o direito de acesso às áreas coletivas de fundo de pasto pelos trabalhadores rurais organizados em associações locais, e efetivar, em nome das mesmas, a regularização jurídica para garantir o seu direito definitivo e legal sobre as áreas97.
Os documentos desta organização ainda destacam seus principais objetivos:
Tem como foco principal a luta pelo acesso à educação, à saúde, à terra e à água. Atua, em especial, na regularização fundiária dos territórios utilizados coletivamente pelas comunidades de fundo de pasto (ocupação e uso de espaço aberto, geralmente composto de terras devolutas, acessível a todos os membros da coletividade), uma vez que a falta de documentação que comprova a ocupação tradicional destes territórios tem levado a desapropriações forçadas, grilagem e concentração de terras por parte de grandes fazendeiros.98
Há, portanto, uma demanda a ser tratada no que se refere à regularização destas áreas
para que não se constituam em espaços de conflitos e sejam utilizadas pelos trabalhadores
rurais sem que tenham que se preocupar com a perda ou não da terra coletiva. A questão do
acesso a terra e outros serviços pelas comunidades rurais, principalmente através das
associações de Fundo de Pasto é uma luta encampada por outras instituições e organismos. A
relevância destas associações para as comunidades locais pode ser ainda compreendida pelos
apropriação/produção/organização do espaço geográfico no campo baiano, assim como as diferentes espacialidades e territorialidades que emergem ao longo deste processo. 95 Informações acerca das ações deste organismo ver: www.cda.ba.gov.br. Acesso em: jan. 2009. 96 A ACOTERRA é uma organização de trabalhadores rurais que atua há cerca de dez anos junto às comunidades de pequenos agricultores da caatinga. 97 Disponível em: <www.fundodireitoshumanos.org.br>. Acesso em: jan. 2009 98 Disponível em: <www.justicaambiental.org.br>. Acesso em: jan. 2009.
213
levantamentos realizados sobre elas no estado da Bahia e, ainda, pela forte presença e atuação
em determinadas áreas.
O mapa abaixo revela os números e os municípios no estado da Bahia que possuem as
Associações de Fundo e Fecho de Pastos no ano de 2005.
Figura 4: Mapa da distribuição e número das Associações de Fundo e Fecho de Pasto identificadas no estado da
Bahia, 2005. Fonte: Projeto Integrado de Pesquisa: “A Geografia dos Assentamentos na Área Rural” – Projeto GeografAR.
214
Os municípios constantes no mapa e os respectivos números de Associações são os
seguintes:
Município Associação de Fundo de Pasto
Andorinhas 20 Antonio Gonçalves 4 Brotas de Macaúbas 2 Buritirama 4 Campo Alegre de Lourdes 8 Campo Formoso 34 Canudos 14 Casa Nova 15 Curaçá 29 Itiuba 7 Jaguarari 19 Juazeiro 33 Mirangaba 3 Monte Santo 45 Oliveira dos Brejinhos 13 Pilão Arcado 24 Pindobaçú 4 Remanso 7 Santo Sé 3 Seabra 1 Sobradinho 14 Uauá 57 Umburama 3 Total 365 Quadro 6: Municípios baianos e os respectivos números de Associações de Fundo de Pasto
identificadas. Fonte: Projeto Integrado de Pesquisa: “A Geografia dos Assentamentos na Área Rural” –
Projeto GeografAR.
De acordo com o mapa e os dados acima, o município de Monte Santo possui 45
associações de Fundo de Pasto identificadas e como se observa a região vizinha a este
município é a área que apresenta um grande número de associações. Estas informações foram
encontradas através dos documentos disponibilizados pelo Projeto GeografAR, desenvolvido
pelo Instituto de Geociências da Universidade Federal da Bahia, cujo objetivo é conhecer a
geografia dos assentamentos na área rural do estado. Este projeto vem desenvolvendo as suas
pesquisas desde agosto de 1996, tendo como proposta principal discutir o processo de
215
apropriação/produção/organização do espaço geográfico no campo baiano, assim como as
diferentes espacialidades e territorialidades que emergem ao longo deste processo99.
MUNICÍPIO ASSOCIAÇÃO E COMUNIDADE DE FUNDOS DE PASTOS Monte Santo Ass. Com. Agro Pastoril de Flores e Região Ass. Com. Agrop. Alto Sertão da Faz. Lagoa Bonita Ass. Com. Agrop. da Faz. Alto da Pedra, Alto da Roça e Algodão Ass. Com. Agrop. da Faz. Barreiras, Caldas e Umburanas Ass. Com. Agrop. da Faz. Capivara Ass. Com. Agrop. da Faz. Mandim Ass. Com. Agrop. da Faz. Poço do Boi Ass. Com. Agrop. da Faz. Poço do Boi 307.944-9 Ass. Com. Agrop. da Faz. Praça Ass. Com. Agrop. da Faz. Praça I Ass. Com. Agrop. da Faz. Santo Antônio e Mestre Ass. Com. Agrop. da Faz. Santo Antônio, Barra e Poço da Carnaíba Ass. Com. Agrop. da Faz. Terra Livre e Varjão Ass. Com. Agrop. da Faz. Várzia de Fora e Sitio do Geraldo Ass. Com. Agrop. das Faz.s Abandonadas da Ilha Bastião Ass. Com. Agrop. de A.S.B.P.C Fundo de Pasto Santo Antonio I Ass. Com. Agrop. de Fundo de Pasto Santo Antonio I I Ass. Com. Agrop. Lagoa da Ilha, Caldeirão e Bastião Ass. Com. Agrop. Paredão do Lou Ass. Com. Agropecuária da Faz. Caramujo e Região Ass. Com. da Faz. Algodões Ass. Com. da Faz. Praça Ass. Com. de Pindoba Ass. Com. do Fundo de Pasto da Faz. Surará Ass. Com. do Fundo de Pasto da Faz. Surará I Ass. Com. dos Moradores das Faz. Lagoa dos Fonseca Jabucunan e Queimadas do Bro Ass. Com. dos Peq. Prod. Abandonados da Faz. Oiteiros I V Ass. Com. dos Peq. Prod. Abandonados da Faz. Oiteiros II Ass. Com. dos Peq. Prod. Abandonados da Faz. Oiteiros III Ass. Com. dos Peq. Prod. da Faz. Oiteiros I Ass. Com. dos Peq. Prod. da Faz. Paus Verdes / Atrás da Serra Ass. Com. dos Peq. Prod. de Muquém e Região Ass. Com. dos Peq. Prod. Rurais da Faz. Ipoeira e Furtuna Ass. Com. e Agrop, dos Peq. Prod. Rurais da Faz. Junco e Região Ass. Com. e Agrop. da Faz. Barreiras, Caldas e Umburanas Brava Ass. Com. e Agrop. da Faz. Mundo Novo e Região Ass. de Des. Com. dos Peq. Agric. Desasistidos das Faz.s São Pedro de Baixo e São Pedro
de Cima Ass. Com. e Agropastoril Terra Livre e Varjão de Fundo de Pasto da Lagoa do Pimentel Ass. Com. Poço da Caraiba Ass. Com. Jacuricí e Região Fundo de Pasto Varzea de Fora Fundo de Pasto Barreiras Fundo de Pasto Monte Alegre Fundo de Pasto Sucuruiuba
Quadro 7: Associações e Comunidades de Fundos de Pastos no município de Monte Santo-BA. Fonte: Projeto Integrado de Pesquisa: “A Geografia dos Assentamentos na Área Rural” – Projeto GeografAR.
99 A descrição, informações e publicações acerca das pesquisas estão disponíveis no site: www.geografar.ufba.br.
216
Foi após conhecer estes dados que se compreendeu que a associação de que falavam o
senhor Valdir, o senhor Basílio e outros moradores da comunidade como o senhor Adilson,
nada mais era que a Associação Comunitária da Várzea de Fora e Sítio do Geraldo, uma das
45 associações das comunidades de Fundo de Pasto do município de Monte Santo, como se
tem na listagem acima.
As associações comunitárias acabam se tornando uma das formas de reivindicação
para estes grupos populacionais que não passam apenas pela regulamentação das áreas de
Fundo de Pasto, mas também por outras demandas como educação, saúde, a construção de
açudes, entre outras, imprescindíveis à manutenção das inúmeras famílias em suas pequenas
propriedades sem que tenham que, necessariamente, deixar suas terras ou engrossar as fileiras
da migração que, em muitos momentos, parece ser apontada como a única saída para estas
populações.
A forma como estas famílias experimentam seu cotidiano frente ao campo de lutas
diárias leva a pensar no período histórico em que as grandes fazendas eram tidas como
“currais eleitorais”
[...] onde o voto seguia as prescrições do senhor do domínio e era visto como uma das formas de marcar a lealdade ao patrão, a quem se deviam os elementos mais essenciais da vida cotidiana: a casa de morada, o roçado para as culturas alimentares, a lenha e a água para os serviços domésticos essenciais, o apoio em horas de doença ou precisão, etc.100
Esta dimensão do cotidiano da população submetida ao domínio dos grandes senhores
e sem condições necessárias e suficientes para a manutenção da vida da família fora daquele
padrão existente, poderia ser a forma de garantir a sua sobrevivência e o acesso ao mínimo
necessário à sua existência, ao invés de simples sujeição ou submissão101.
Observando a dinâmica de vida destas populações, seja no povoado ou nas
comunidades e bairros rurais, tem-se que estas não podem ser estigmatizadas ou sofrer com a
rotulação de que são “atrasadas”, subordinadas a determinados mandonismos, e sim, que estas
populações são portadoras de práticas sociais que não são nem atrasadas nem adiantadas, mas
complexas, específicas e ambíguas102. Nesse aspecto, pensar a dinâmica destas comunidades
100 GARCIA, Afrânio; PALMÉRIO, Moacir. Rastros de Casas-grandes e de Senzalas: transformações sociais no mundo rural brasileiro. In: SACHS, Ignacy; WILHEIM, Jorge; PINHEIRO, Paulo Sérgio (Org.). Brasil: um século de transformações. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 38-77 e p. 45. 101 Sobre esta dinâmica de vida e os embates das famílias camponesas ver: GARCIA, Afrânio. Libres et assujettis: marché du travai et modes de domination au Nordeste. Paris: Ed. de la Maison des Sciences de l’Homme, 1989. 102 BARREIRO, José Carlos. E. P. Thompson e a historiografia brasileira: revisões críticas e projeções. Projeto História, São Paulo, nº 12, outubro 1995, p. 57-75, p. 67
217
remete à analise elaborada por Albuquerquer acerca do processo de elaboração e divulgação
da imagem de um determinado Nordeste que “quase sempre não é o Nordeste tal como ele é,
mas é o Nordeste tal como foi nordestinizado”, sobre o qual se repetem textos e imagens103.
Conhecer a dinâmica de vida de parte dos trabalhadores e o local onde estão inseridos
e onde se sentem contemplados em suas necessidades, o local com o qual se identificam,
levou-me a compreender parte do processo pelo qual passam os trabalhadores daquela região
nas lavouras de café. Nesse sentido, o depoimento do senhor Tito de Jesus permitiu observar a
forma como estes trabalhadores se vêem diante de seus empregadores e da população
residente em Minas.
É porque as pessoa lá (em Minas Gerais) não sabe como é a vida da gente aqui, né?104 ... Sempre tem pessoa lá né, que pensa que a gente vai daqui, é porque, acha que aqui, acha a gente é umas pessoa sem terra, não tem morada, não tem emprego, né? A gente não tem morada, não tem como viver, aí sai daqui pra trabalhar lá. Tem muitos fazendeiro lá que fica botando banca na gente, né? Eles pensa que a gente num tem como viver aqui, quer pagar café bem baratinho. Quer pagar café barato lá, do jeito que eles querem. Aí não dá certo.105
O senhor Tito de Jesus aponta para a sua percepção de migrante que, fora de seu lugar,
enfrenta, além das dificuldades, uma certa visão sobre ele e seu grupo, tidos como gente sem
“eira nem beira”. Sua narrativa revela parte do que ele sente enquanto trabalhador migrante
em relação aos enfrentamentos e ao tratamento recebido em terras distantes. Demonstra estar
ofendido com o que se pensa dele e de seu grupo em terras mineiras e da utilização que se faz
desta condição (imaginada pelos fazendeiros) e, com isso, querer pagar menos pelos
trabalhos, parecendo considerar que, “para quem não tem nada todo pouco ajuda”. Contudo, a
condição econômica de Tito de Jesus é uma das melhores encontradas na Bahia, possui terra,
casa recém construída, animais, entre outras aquisições que conseguiu também com o trabalho
nas lavouras de café, como a instalação de iluminação em suas terras através da energia solar.
Para o senhor Tito de Jesus está clara a imagem que se tem dele e seu grupo na região
do trabalho no café e, a representação da miserabilidade parece imperar sobre estes
trabalhadores, revelando o não conhecimento das histórias destes sujeitos. E, ao mesmo
103 ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2001. p. 311. 104 Neste momento da fala de Tito de Jesus ele parecia me chamar para participar, atuar sobre a falta de conhecimento sobre suas vidas e o seu cotidiano na Bahia. Talvez, tentar amenizar parte do que sofrem e ouvem? 105 Depoimento de Tito de Jesus, colhido na manhã de domingo, 6 de agosto de 2006, em sua residência, tendo ao lado sua mulher Elisângela que compartilhou do depoimento do marido e contribuiu com sua percepção aguçada do que representa para sua família as viagens do marido.
218
tempo, mostrando que a condição destes grupos é bastante diferenciada dos trabalhadores
volantes locais cujas condições de vida parecem muito mais precárias que aquelas
encontradas na Bahia.
Estas questões e a relação que se tem entre a região de origem e a região do trabalho
nas lavouras de café possibilitam pensar que o processo de deslocamento não pode ser
compreendido apenas “como um deslocamento no mapa, mas como um trânsito inserido em
uma rede de relações sociais”106, que perpassam ambos os espaços. Talvez por esta razão,
dizer que os indivíduos envolvidos neste processo de deslocamento são trabalhadores
migrantes ou trabalhadores sazonais implique em não reconhecer a opção e a decisão que este
sujeito toma, mesmo ao conhecer outras áreas e retornar para sua terra de origem, com todos
os problemas que parecem gritar na mídia e no imaginário social como obstáculos à
manutenção da vida.
106 DURHAM, Eunice Ribeiro. A Dinâmica da Cultura. Campinas: COSACNAIF, 2005. p. 189.
TERCEIRA PARTE
220
CAPÍTULO 5
Ser trabalhador na lavoura de café: enfrentamentos e
organizações
221
5.1 A cultura do café no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba
Pensar as questões referentes à presença dos trabalhadores “migrantes” na região
produtora de café instiga a conhecer parte do contexto no qual esta lavoura foi se
estabelecendo a partir das transformações nas quais se viu inserida nos anos de 1970. Uma
série de mudanças teve início quando da implementação dos chamados Programas de
Desenvolvimento do Cerrado1, cujos objetivos eram expandir a fronteira agrícola2. Essa
expansão era pensada e foi propiciada basicamente pelos governos estadual e federal,
iniciando-se com o pioneiro Programa de Assentamento Dirigido do Alto Paranaíba
(PADAP), implantado no ano de 1973 pelo governo do estado, onde se destacava e sugeria a
produção de café como atividade prioritária. Após este projeto, uma série de outros foram
difundidos. No ano de 1975 o governo federal lançou o Programa de Desenvolvimento do
Cerrado (POLOCENTRO) e, no ano seguinte (1976), o Programa de Cooperação Nipo-
brasileira para o Desenvolvimento dos Cerrados (PRODECER) propiciando, então, na região,
a ampliação da produção agrícola, mas especificamente de produtos que oferecessem maiores
oportunidades de inserção no mercado, tendo em vista, ainda, uma nova forma de se pensar a
propriedade rural, não mais como o local de onde se obtém o necessário para a subsistência,
mas uma empresa capaz de gerar lucros.
Os programas desenvolvidos para a região atraíram não só investimentos de grupos
externos, como também inúmeras famílias de pequenos proprietários de terra, trabalhadores
rurais assalariados vindos das regiões Sul e Sudeste do país, especialmente dos estados de São
Paulo e do Paraná, onde o ciclo da cultura do café encontrava-se em declínio, dadas as
condições climáticas, custos, dificuldades de manutenção das lavouras, pragas, entre outros
fatores, o que levou parte das famílias envolvidas na produção cafeeira a se deslocar
juntamente com a fronteira agrícola. Nessa direção aponta os estudos de Silva que, de acordo
com dados do Censo Demográfico, a população rural residente na região Norte do Paraná
1 Ver: BRANDÃO, Carlos Antônio. Capital comercial, geopolítica e agroindústria. 1989. Dissertação (Mestrado)- Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1989; GONÇALVES NETO, Wenceslau. Estado e agricultura no Brasil: política agrícola e modernização econômica no Brasil 1960-1980. São Paulo: Hucitec, 1997. 2 Este processo também conhecido como Revolução Verde “marcou uma maior homogeneização do processo de produção agrícola em torno de um conjunto de práticas agronômicas e utilização de insumos industriais (fertilizantes, defensivos, etc.) difundidos através de técnicas de pesquisa agrícola”, conforme apresenta Ferreira. Tal Revolução iniciou-se no Sul do país e avançou pelo cerrado mineiro (cf. FERREIRA, Rômulo Gama. Agricultura familiar e inovações tecnológicas: impactos sobre a ocupação e o êxodo rural nas microrregiões e Patos de Minas e Patrocínio-MG. 2004. Dissertação (Mestrado)- Instituto de Economia, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2004. p. 24).
222
diminuiu de 4.425.490 pessoas para 3.156.831 no período de 1970-1980. Já no ano de 1995,
esta população era de 2.440.000 pessoas. Parte dessa população “expulsa” daquela área
também pela crescente modernização agrícola teria sido atraída por outras áreas rurais que
demandavam grande mão-de-obra, como as lavouras de cana-de-açúcar e de café3.
Os projetos então difundidos na região do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba tinham
como objetivo principal mudar o perfil regional de produção agrícola no Cerrado,
expandindo-se as características propriamente capitalistas de exploração da terra, ainda
incipientes em alguns municípios, nos quais predominavam as fazendas de pecuária extensiva
tendo ao lado as formas produtivas camponesas destinadas ao consumo familiar e não
direcionadas ao mercado.
Com a chegada destes grupos migrantes, houve um processo de “importação” de
agricultores/produtores de outras regiões. Tal processo representou atrair, de algum modo,
produtores com experiência na produção de mercadorias destinadas a grandes mercados,
capaz de atender à demanda colocada para a atividade agrícola na região. Os movimentos
populacionais de grupos de produtores com alguma experiência na atividade agrícola podem
ser observados em diferentes regiões do país, com a expansão de determinadas regiões para a
produção de grãos, por exemplo. Nesse sentido, tem-se no Centro-Oeste brasileiro um alto
índice da presença de tradicionais agricultores de grãos que migraram do sul do país para
aquela área em busca de expandir não somente a produção, mas também em busca de maiores
lucros, o que se justifica, de acordo com Soares, “pelas combinações de arranjos tecnológicos
praticados no Sul/Sudeste do Brasil, as transferências de capitais e a experiência acumulada
dos migrantes, e principalmente investimentos e incentivos públicos”4, que marcam as
transformações ocorridas em algumas regiões brasileiras. Parece haver com este processo a
eleição de certos grupos como mais ou menos qualificados para desempenhar determinadas
atividades da produção, quando o que se tem são maiores ou melhores condições de
investimento em determinada área, ou ainda, maiores possibilidades de acesso às informações
e aos financiamentos disponibilizados para uma região ou outra e que atraem aqueles que já
desempenham as atividades. Nesse sentido, ao longo da história da exploração agro-
econômica no Brasil, uma série de movimentos populacionais atraiu grupos de produtores de
uma região para outra sempre em busca de se expandir e explorar uma nova fronteira.
3 SILVA, Maria Aparecida de Moraes. Errantes do fim do século. São Paulo: Ed. UNESP, 1999. p. 69. 4 SOARES, Wagner L. Do Rural para o rural: ‘a corrida do ouro verde’. In: CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO LATINO AMERICANA DE POPULAÇÃO, 1., 2004, Caxambu-MG. Anais... 2004. p. 3.
223
No caso da agricultura na região do Triângulo Mineiro, tais movimentos são
entendidos como grandes agentes transformadores, não somente pelo número de pessoas que
passaram a residir na região, mas também pelas técnicas e novas possibilidades de produção
estimuladas em parte pela estrutura econômica da sociedade. De acordo com Martins, ao
contrário do que ocorreu em outras áreas do país, por volta do final dos anos 1970 e década de
1980, houve um intenso estímulo ao “desenvolvimento e processo de crescimento, com a
incorporação de novas áreas à produção e de intensa transformação, principalmente, nos
setores mais modernos e articulados à indústria”5, objetivando-se atender as demandas do
mercado externo, sobretudo, com produção da soja, do café e do algodão, processo este que
não teria ocorrido com a mesma intensidade em outras regiões agrícolas do país. Contudo, a
década de 1970 é considerada a década de grandes transformações no meio rural brasileiro
tendo em vista alguns elementos:
O rápido processo de urbanização que muda o aspecto do país de rural para urbano, com o censo de 1970 como referência; o crescimento acentuado do comércio exterior; a alteração na base técnica da produção rural, com ampla absorção de capital; e a definição de um sistema nacional de crédito rural, que motiva e sustenta o processo de modernização do setor agrário.6
Acompanhando o panorama destas mudanças com os processos e programas de
desenvolvimento implementados, a região do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba passou a
compor importante região agrícola no país ocupando lugar de destaque na produção de grãos
e também na produção cafeeira, cujos investimentos passaram por adotar especificidades
técnicas e produtivas demandadas pelas características do solo, pelas peculiaridades do clima
entre outros que impulsionaram a intensa utilização de fertilizantes, de pesticidas e também de
máquinas. Assim, tem-se, nesta área, entre os anos iniciais de implantação dos programas um
alto crescimento na área destinada ao cultivo de culturas como a do café, da soja e da cana-de-
açúcar. Dados do censo agropecuário de 1975, 1980, 1996 e 2006 possibilitam observar o
aumento das áreas cultivadas dos respectivos produtos.
5 MARTINS, Humberto E. de Paula. Formação e desenvolvimento sócio-econômico do Triângulo Mineiro. Revista Varia História. Belo Horizonte, n. 19, p. 164-182, nov. 1998, p. 179. 6 GONÇALVES NETO, Wenceslau. Estado e Agricultura no Brasil: política agrícola e modernização econômica brasileira – 1960-1980. São Paulo: Hucitec, 1997, p. 141.
224
ANO PRODUTO
1975 1980 1996 2006
Café 15.594 55.780 102.163 150.704
Soja 81.719 519.579 290.315 663.021
Cana-de-açúcar 21.695 45.174 75.687 251.920
Quadro 8: Crescimento da área cultivada (ha) – Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba. Fonte: Censo agropecuário, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 1975 e 1980, 1996 e
2006.
Entre 1975 e 1980 a área cultivada de café teve um aumento de cerca de 257,7%, a
área plantada da soja subiu cerca de 535,81% e a cana-de-açúcar 108,22%. Nas décadas
seguintes a área plantada também teve aumentos significativos, mas em percentuais menores
considerando-se o intervalo de dezesseis anos entre 1980 e 1996 . Assim, o crescimento
referente a esse período esteve em: 83,1% para a área plantada de café; 78,9% de decréscimo
para a área destinada à soja, para quase triplicar na década seguinte; e um aumento de 67,54%
para a área de cultivo da cana-de-açúcar. Na última década a área plantada de café voltou a
sofrer um aumento, mas que foi superado pelo crescimento da área cultivada da soja e da
cana-de-açúcar. Estes dados remetem ao aumento significativo de área cultivada e
conseqüentemente da quantidade produzida levando a entender o quanto a agricultura desta
região está marcada pelo discurso de região promissora capaz de atender grandes demandas.
Vale mencionar, contudo, que o mercado não é o único a determinar os rumos que a produção
na região tomaria, pois precisam de “planejamento, execução e avaliação”7 mas, pode-se
observar que as novas condições materiais de produção, que possibilitam uma produção em
escala social tornou a produção familiar incompatível com o capital8. Nesse sentido, as
produções de arroz, milho, feijão e outros também foram avaliadas e consideradas menos
rentáveis e expressivas, embora estejam presentes na região em menor escala, considerando-
se a área cultivada, o volume do que é produzido assim como a organização de produtores, a
ocupação de mão-de-obra, sendo que nas lavouras em destaque, soja e café, ocorre a alta
mecanização em grande parte do processo produtivo.
Tendo em vista as análises dos dados acima, é compreensível que parte da história
registrada dos municípios que compõem esta área enfatize a produção cafeeira principalmente
7 GONÇALVES NETO, Wenceslau. Estado e agricultura no Brasil: política agrícola e modernização econômica brasileira – 1960-1980. São Paulo: Hucitec, 1997. p. 141. 8 Para aprofundar esta discussão ver: GONZALES, Elbio N.; BASTOS, Maria Inês. O trabalho volante na agricultura brasileira. In: PINSKY, Jaime (Org.). Capital e trabalho no campo. São Paulo: Hucitec, 1979. p. 38.
225
como forte elemento de sua economia e do seu “desenvolvimento”. Assim, documentos como
o abaixo citado, buscam salientar a produção do café como um marco para a agricultura e
economia da região.
Somente em 1973, através de um intenso trabalho de divulgação das virtudes da região, é que iniciou o plantio de café em nosso município. As notícias a respeito do alto financiamento do governo e da liberação das áreas do cerrado chegaram ao Paraná, tendo uma boa receptividade naquelas áreas sacrificadas por constantes geadas. O fluxo migratório para Araguari e a região aumentou depois de alguns anos, quando ficou comprovado o acerto da abertura da área ao plantio pelo I. B. C.(Instituto Brasileiro do Café).9
Houve todo um trabalho de divulgação da região que abrangia mais que as “virtudes”
nela encontradas, mas especialmente os recursos financeiros a ela destinados como forma de
se alcançar os objetivos da ampliação dos produtos ali cultivados, da área plantada, assim
como dos mercados a serem conquistados. Ao mesmo tempo em que se percebe este processo
de divulgação da possibilidade de se produzir café na região pode-se pensar em uma
divulgação das possibilidades de acesso ao trabalho temporário da safra, com um diferencial
de que esta segunda divulgação ocorre por parte dos trabalhadores e não propriamente pelos
produtores.
Os investimentos financeiros e tecnológicos que apontavam para a possibilidade de
produzir o café no cerrado atraíram os olhares que se voltaram para região e, com isso,
provocaram também uma intensa movimentação populacional que marcou as transformações
ocorridas em diversos municípios do Triângulo Mineiro e do Alto Paranaíba. Estas
transformações, em parte, passaram pela produção agrícola, mas também, pela forma de lidar
com a terra e de interpretar a propriedade rural como uma empresa rural, pela forma, ainda,
como passaram a coexistir modos e hábitos de vida dos mais diferentes grupos que, em um
mesmo espaço, embora de origens diferentes, passaram a conviver e a dividir conhecimentos,
manifestações religiosas, diferentes comemorações, compreensões de mundo, enfim,
diferentes modos de sociabilidade, mas que nesse espaço ainda se tornaram protagonistas de
embates e também de disputas por espaços de decisão política e econômica.
Os primeiros produtores de café no Cerrado iniciaram suas atividades em 1972, em Patrocínio, segundo registros do extinto IBC – Instituto Brasileiro do Café, pois até então esta era uma área considerada imprópria para o cultivo. Vieram para a região cafeicultores tradicionais
9 “ARAGUARI: cem anos de dados e fatos”. Prefeitura Municipal de Araguari, 1988 (Este livro foi publicado em comemoração ao centésimo aniversário de emancipação política do município no ano de 1988).
226
do Norte do Paraná, de São Paulo e do Sul de Minas com a percepção de que no Cerrado estariam livres de um dos maiores pesadelos climáticos: a geada. Após a grande geada ocorrida em 1975, o fluxo de cafeicultores para o Cerrado se intensificou, de forma que a região começou a se consolidar como nova fronteira.10
Esta é a perspectiva que se tem acerca da produção cafeeira no cerrado propiciada pela
“fuga” dos produtores tradicionais da região Sul do país para área de clima mais ameno e
favorável ao cultivo dessa lavoura. Os migrantes sulistas, contudo, nem sempre eram
pequenos produtores ou pequenos proprietários de terras em suas regiões de origem. Grande
parte também buscou a região com a perspectiva de melhores condições salariais e de vida na
atividade em que detinham conhecimento e que estavam habituados. Entre esses grupos
migrantes que se fixaram na, então, nova fronteira agrícola, alguns adquiriram pequenas
propriedades onde se dedicaram à produção do café, mas um grande número, sem rendas e
sem propriedades, se firmou por longo período como assalariados fixos nas lavouras de café,
como relata empolgada a funcionária do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Patrocínio
(STRP) ao dizer que “muitos vieram para trabalhar como meeiro, parceiro, cerca de 20% dos
pequenos produtores da região são paranaenses que vieram e viram que a terra era boa”11.
Esse processo de recepção de grupos populacionais pelo qual passou a região parece
controverso, pois ao mesmo tempo em que atraiu um grande contingente para a região
praticamente dobrando a população em apenas duas décadas, também diminuiu a população
rural nessa área. Para onde se dirigiram esses grupos de migrantes se havia a busca pelo
trabalho agrícola? Como explicar o fato de que mesmo tendo havido a recepção de grupos de
outras áreas do país a população rural diminuiu gradativamente?
Juntamente com a chegada dessa população migrante, tem-se uma intensa
movimentação do campo para a cidade, pois as mudanças nos modos de produção
possibilitadas pelos Programas ali implementados inviabilizavam a manutenção de pequenos
produtores rurais, assim como impulsionava parte dessa população para outras áreas de
fronteira agrícola ou para as cidades. Segundo Ortega parte dessa população não “possuía
conhecimento daquele padrão tecnológico e muito menos estavam suficientemente
capitalizados para adotá-lo”12, o que aumentou, em muitos casos, as dificuldades de se
permanecer na zona rural como pequeno produtor. Nesse sentido, as formas como se realizava
10 CACCER. Café do cerrado: qualidade com origem certificada. [S.l.: s.n.], [200-]. 11 Entrevista realizada com a senhora Ênia Mendes, no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Patrocínio em 14 de julho de 2006. 12 ORTEGA, Antônio César. Agronegócios e representação de interesses no Brasil. Uberlândia: EDUFU, 2005. p. 1.
227
o trato das lavouras de café e da soja, utilizando-se de grande e intensa tecnologia para obter
maior produtividade, qualidade e menor necessidade de mão-de-obra, levou o trabalhador
rural dessa área a ter suas relações de trabalho e suas atividades modificadas. Tem-se,
portanto, um aumento expressivo da concentração fundiária, com a constituição de grandes
propriedades beneficiadas pelas vantagens fiscais e créditos para a modernização agrícola,
assim como um processo contínuo de proletarização da mão-de-obra13.
Acompanhando-se este processo, observa-se que, atualmente, residem nas pequenas
propriedades apenas a família do produtor que, nos períodos de maior demanda de mão-de-
obra, contrata eventual e temporariamente trabalhadores na região e também de outras áreas
do país. Já nas grandes propriedades têm-se os administradores, encarregados de gerenciar os
trabalhadores temporários recrutados nas cidades da região para trabalhos esporádicos ou
trabalhos na safra onde ainda não foi possível a parcial ou total utilização da máquina. Assim
sendo, a característica da sazonalidade de algumas atividades agrícolas é atribuída ao fato de
que a modernização ainda não atingiu todas as fases do ciclo produtivo e, também porque o
progresso técnico é específico em algumas atividades monocultoras, como argumenta
Graziano14.
Nesse aspecto, ainda que a região apresente algumas características da mecanização
parcial, o que se tem entre os grupos de produtores é o apelo ao aumento da mecanização
como sinônimo de maior produção, menos gastos e conseqüentemente maiores ganhos, como
afirma o engenheiro agrônomo da Associação dos Cafeicultores de Araguari:
O pessoal do café está começando a se dirigir pra colheita mecanizável. E está diminuindo um pouco da mão-de-obra. Então já tem colheita mecanizada e já tem benefício mecanizado. Então o pessoal está terceirizando bastante. Por exemplo, uma colheitadeira, ela cobra em média, isso varia cada caso, cento e cinqüenta reais por hora. Ela retira, a lavoura estando assim de médio porte, vamos dizer a lavora com quarenta sacos por hectare, ela consegue tirar mais ou menos oitenta sacos por hora. Oitenta saquinhos de sessenta litro que é a medida que sai da lavora. Então o custo de uma saca de café se torna o quê?, 1,87 o saco de café, ao passo que se ele fosse colher na mão teria que pagar três, três e cinqüenta, quatro reais. Esse que é o grande diferencial, por isso que o pessoal está começando a colher com máquina. E o pessoal está modernizando os plantios agora, para poder adaptar à colheita mecanizável. Quem está renovando lavora, como eu te disse, está começando, está tentando se adequar a essas novas máquinas.15
13 TOLMASQUIN, Mauricio Tiomno. Le maldeveloppement de la frontiére productive brésilienne: le cas du cerrado. Cahiers du Brésil Contemporain, Paris, n. 4, p. 87-97, 1989. 14 GRAZIANO da Silva, José. De bóias-frias a empregados rurais. Maceió: EDUFAL, 1997. 15 Entrevista com Fabiano Flumian, engenheiro agrônomo da Associação dos Cafeicultores de Araguari, na sede da associação no dia 15 de julho de 2006.
228
Em geral, a mecanização é vista como grande aliada na redução dos gastos com a
produção, comparando-se especialmente, os valores pagos pela colheita mecanizada e os
valores pagos aos trabalhadores com os devidos encargos trabalhistas. A mecanização parece
ser, ainda, de acordo com o depoimento acima, a condição final para todos os produtores e um
caminho sem volta, no qual as próprias lavouras estariam sendo adaptadas para a adoção das
máquinas em todo o processo produtivo, onde os trabalhadores temporários serão totalmente
dispensados.
Diante disso e de todo o processo de transformações ocorrido na atividade agrícola da
região, como explicar a presença dos trabalhadores temporários?
Pode-se observar que a mecanização que se dá em parte do processo produtivo da
lavoura cafeeira, embora alardeada como de grande intensidade, não substituiu a mão-de-
obra. Ao contrário, emprega milhares de pessoas anualmente que, a princípio, eram apenas
trabalhadores volantes locais, mas que, dadas as alterações também nas relações de trabalho
foram, aos poucos, sendo substituídos ou empregados juntamente com os trabalhadores de
outras regiões do país. Para se pensar este aspecto da empregabilidade da lavoura de café tem-
se registrado, de acordo com Ministério do Trabalho e Emprego, que ao longo do mês de
junho de 2008 no ranking das cinqüenta cidades que mais empregaram no referente mês, os
dez primeiros municípios apresentaram forte crescimento do número de vagas com carteira
assinada por conta da produção agrícola e, entre eles estão o município de Monte Carmelo16
na 4ª posição e Patrocínio na 10ª. Nesse sentido registra-se que “em Monte Carmelo, por
exemplo, a colheita do café foi o principal responsável pelo aumento do emprego formal. A
agricultura respondeu sozinha por 2.180 das 2.277 vagas, o que corresponde a 95,74%. O
crescimento em junho foi de 31%”17.
Estes dados apontam não para o crescimento do número de empregos e contratações,
mas, possivelmente, para o crescimento do número de empregos formais com a carteira de
trabalho assinada, o que indica não somente um grande número de vagas temporárias na
colheita de café, mas também um grande número da população que é empregada na atividade,
assim como a precariedade das relações de trabalho que até então se estabeleciam no campo.
Alguns dados dos censos agropecuários possibilitam observar o aumento significativo
da mão-de-obra temporária em alguns municípios da região pesquisada.
16 Vale ressaltar que Monte Carmelo possui uma população de aproximadamente 45 mil habitantes e Patrocínio uma população de cerca de 81.500 habitantes de acordo com dados do IBGE contagem de 2007. 17 UBERLÂNDIA é a 15ª que mais emprega no interior. Correio de Uberlândia, Uberlândia, 24 jul. 08.
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ANO MUNICÍPIO
1980 1985 1995/96
Estrela do Sul 1.333 5.230 2.712
Iraí de Minas 1.713 1.462 1.644
Monte Carmelo 4.942 12.800 23.523
Patrocínio 18.828 31.097 36.914
Quadro 9: Crescimento da mão-de-obra temporária em alguns municípios do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba Fonte: Censos Agropecuários de 1980, 1985 e 1995/96.
Pensar a utilização e presença de uma mão-de-obra temporária e volante nas lavouras
em geral remete a retroceder algumas décadas na história do Brasil e observar como alguns
grupos da população vêm fazendo suas opções e formulando respostas a um processo mais
amplo da sociedade no qual o meio rural sofreu fortes alterações e onde o trabalhador rural
vem dialogando com as mudanças ocorridas nas relações de trabalho enquanto agregado,
meeiro, parceiro ou arrendatário.
Nesse aspecto, vale mencionar que após os anos de 1960, com a promulgação do
Estatuto do Trabalhador Rural (ETR) e o Estatuto da Terra (ET)18 um vasto contingente da
população rural se viu impelida a deixar o campo em busca de outras e novas possibilidades
nas cidades que, necessariamente, não precisavam ser grandes centros urbanos, mas que
elevou consideravelmente o número da população urbana no país em poucas décadas. Assim,
a população urbana que na década de 1960 ainda era menor que a população rural sofreu
alterações. Nos anos 1970, pela primeira vez, a população urbana do país ultrapassou a
população rural e na década de 1980 passou a representar 70% da população do país. No ano
2000 apenas 22% da população ainda residia no campo19. No entanto, mesmo representando
uma referência e melhores oportunidades para grande parte da população que procurou as
cidades para ali viver, esta nem sempre ofereceu possibilidades concretas a esse exército de
mão-de-obra que se formou nos centros urbanos, ou atendeu aos anseios e necessidades
próprias desses grupos de trabalhadores, como a oferta e o acesso a serviços públicos,
18 Vale mencionar, como aponta Gonzales que “o ETR não se constitui em determinante fundamental do trabalho volante. Muito antes do ETR já se verificava a presença de trabalho volante em regime de empreitada na agricultura brasileira. Em São Paulo, foi a partir de 1960 que este fenômeno começou a disseminar-se por todas as culturas assumindo proporções visíveis”. Também neste período, inúmeros trabalhadores envolvidos nas relações de trabalho por tarefa, sob o regime de empreitada estavam nas colheitas de frutas na Califórnia e na colheita de beterraba na França. GONZALES, Elbio N.; BASTOS, Maria Inês. O trabalho volante na agricultura brasileira. In: PINSKY, Jaime (Org.). Capital e trabalho no campo. São Paulo: Hucitec, 1979. p. 33-34. 19 GARCIA, Afrânio; PALMÉRIO, Moacir. Rastros de Casas-Grandes e de Senzalas: transformações sociais no mundo rural brasileiro. In: SACHS, Ignacy; WILHEIM, Jorge; PINHEIRO, Sérgio Paulo (Org.). Brasil: um século de transformações. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 41.
230
educação, saúde e, principalmente o acesso ao trabalho “estável”, uma vez que grande parte
desta população, por ser analfabeta, foi considerada despreparada para o mercado de trabalho
da cidade, considerada mão-de-obra não qualificada para as atividades deste meio, o que
levou muitos deles a voltar a trabalhar no campo como volantes/bóias-frias deslocando-se
diariamente para a atividade rural. Nesse sentido, vale mencionar que “o assalariamento
temporário foi a relação de trabalho que mais cresceu na década de 1970, ocupando os
espaços econômico-sociais antes destinados a outras formas de relações sociais de
produção”20.
Nesse contexto de precarização21 do trabalho rural se inserem os trabalhadores
temporários locais e de fora que atuam nos períodos da safra juntamente com a dinâmica da
mecanização do processo produtivo.
20 COLETTI, Claudinei. A estrutura sindical no campo: a propósito da organização dos assalariados rurais na região de Ribeirão Preto. Campinas: UNICAMP, 1998. p. 126. 21 Entenda-se como processo de precarização do trabalho as péssimas condições de trabalho e salariais a que estão vinculados inúmeros trabalhadores em diferentes setores da economia.
231
5.2 Organizações e mediações das relações de trabalho
O contexto da produção cafeeira na região pesquisada possibilita observar algumas das
mudanças nas formas como os trabalhadores são empregados nas lavouras e as relações
trabalhistas que são firmadas nos diferentes momentos.
Acerca das questões referentes às relações de trabalho tem-se que, em geral, ocorre a
interferência de um mediador entre o fazendeiro e o trabalhador. Desse modo, no que se refere
a essa mediação e os seus agentes a pesquisa apontou para algumas mudanças nas formas
como os grupos de trabalhadores empregados na região e entrevistados percebem a mediação
e dialogam com ela. Como se observou nos depoimentos citados acerca das relações de
trabalho entre os grupos vindos de Monte Santo tem-se que os “chefes” dos grupos de
trabalhadores possuem características bastante diferenciadas das presenciadas nas relações de
trabalho rural em outros momentos da história, como o papel que o “gato” tem ocupado para
os trabalhadores e empregadores no meio rural desde os anos de 1970. Nesse sentido, para os
trabalhadores que se agrupam para o trabalho nas lavouras de café estes chefes também
possuem suas funções de mediar as relações entre empregador e trabalhador, como manter ou
estabelecer o contato com os fazendeiros a fim de assegurar os postos de trabalho.
Não há registros, entre trabalhadores, de que esse mediador receba um valor sobre o
ganho daqueles pertencentes ao seu grupo, mas de ele, pelo compromisso de manter a sua
palavra com o fazendeiro, permanece na fazenda até a finalização de todas as atividades, o
que pode resultar no ganho da passagem de volta para casa. Esta prática não acontece somente
em relação aos mediadores, mas compõe as relações também de outros trabalhadores que
permanecem até o final das atividades, não constituindo assim, uma marca para o mediador.
Questionei o senhor Rufino sobre o ganho das passagens de retorno, ele respondeu:
Todo ano quando termina a colheita eles dão. O ano passado eu não tive porque eu fiquei, fiquei, trabalhei numas quatro fazenda, mas quando chegamo cá nesse Romeu, ele ainda deu cem reais, ainda, deu cem reais pra mim, cem pra meu filho. Nós trabalhamo só uns quinze dia lá, só, só banação, nós fomo lá e banamo o resto, aí deu cem cada um. Agora nesse, que nós tava esse Luiz, terminou, deu cinqüenta conto pra passagem.22
22 Depoimento do senhor Rufino Estevão de Jesus, 46 anos, em entrevista realizada em sua residência em Horizonte Novo na manhã de sábado 21 de julho de 2007 onde ele estava com sua mulher senhora Valdina de Lima de Jesus.
232
Parece ocorrer uma espécie de bonificação ao trabalhador que permanece na fazenda
até o final dos trabalhos, isto porque é muito comum os trabalhadores, após ganharem um
valor que consideram suficiente para realizarem o que desejam, retornarem para casa
deixando parte das tarefas da colheita destinadas ao grupo ainda por fazer. Outro fator que
influencia essa “bonificação” é o fato de o trabalhador não se fixar em nenhuma fazenda,
experimentando entre uma e outra em qual consegue ganhar um pouco mais, não recebendo
nada dos fazendeiros além de seu próprio salário. O valor recebido, na maioria das vezes, não
representa o valor total gasto com a passagem de retorno, mas é dito pelos fazendeiros que é
um auxílio para tal.
Para estes trabalhadores, o mediador ou o chefe da turma além de estabelecer o
contato com os produtores deve ainda ser alguém incumbido da tarefa de efetivar os diálogos
e travar as negociações, apresentar as reivindicações junto aos empregadores, o que lhe dá
uma posição social no grupo diferenciada entre os demais trabalhadores. Perguntei ao senhor
Jailson sobre este aspecto e ele mencionou:
A gente tem um representante nosso, né, um responsável, mas essa pessoa não ganha nada, é só pra conversar, alguém assim com mais intimidade, assim, mais próximo, a gente deixa assim ele resolver, conversar lá com o patrão, a gente não se envolve muito, né, a gente só pára assim o serviço.23
Tal perspectiva por parte destes trabalhadores revela um grau de organização, assim
como uma reflexão sobre como tratar e fazer seus enfrentamentos com os empregadores,
sejam eles os próprios fazendeiros ou gerentes das fazendas. A perspectiva de que não cabe a
eles negociar diretamente com os empregadores aponta para questões históricas nas relações
do trabalho temporário. Estes grupos possuem outras formas de organização que se
diferenciam, em parte, dos trabalhadores temporários recrutados na própria região, uma vez
que as relações de mediação para estes estão muito mais presentes e são determinantes para se
conseguir ou não um posto de trabalho. A fim de melhor compreender estas formas de
mediação se fará aqui um retrocesso na história das relações de trabalho da região a partir dos
depoimentos coletados entre os trabalhadores locais.
A relação com a atividade rural temporária, nem sempre é estabelecida de forma direta
com o próprio fazendeiro. A legislação trabalhista ao longo das décadas de 1980 começou a
ter maior repercussão entre empregadores e trabalhadores rurais. Com isso, observou-se um
23 Depoimento do senhor Jailson Araújo, 22 anos, em entrevista realizada no dia 22 de julho de 2007, numa tarde quente de domingo na residência de seus pais.
233
processo de tentativa de “escapar” dos olhos da lei, onde o empregador não desejava e não se
encontrava disposto a assumir o ônus da contratação efetiva e regulamentada do trabalhador
temporário de acordo com a legislação, possibilitando o surgimento da figura mediadora da
relação de trabalho que foi muito bem aceita por empregadores. Esse tipo de mediação tornou
o “gato” um esperto personagem no cenário agrícola nacional desde o final da década de
1970, presente especialmente nas áreas onde se tem necessidade do recrutamento temporário
de trabalhadores. Sua presença é bastante conhecida nas áreas da produção de cana-de-açúcar,
de laranja e do café, assim como na construção civil. O gato é um agenciador que, sem terras,
sem propriedades, tem nas mãos a possibilidade de maiores ganhos a partir do gerenciamento,
fiscalização e “contratação” de mão-de-obra. Geralmente é também, ou já foi, um trabalhador
rural temporário que, dotado de boas relações com fazendeiros, tendo estabelecido uma rede
de contatos com trabalhadores, conhecedor dos bairros e da população das periferias da
cidade é alçado à “ilusória” condição de “chefe de turma”. Os fazendeiros buscam os “gatos”
para contratarem a mão-de-obra, portanto, a ele é concedido o número de postos de trabalho,
ele é quem faz os acordos dos valores do trabalho uma vez que deste acordo ele ficará com
um percentual, passando para os trabalhadores um valor menor que o acertado inicialmente
com o fazendeiro.
Nesse sentido, um “gato” entrevistado, que prefere ser chamado de empreiteiro que
atua na região rural de Araguari, relatou como estabelece as relações de trabalho e como
procede:
Aí depende da gente combinar. Chama empreitero, tem o apelido de gato, né, por causa disso, por exemplo, eu vou pegar um serviço hoje, vou pegar um serviço aí de dez mil reais, eu vou gastar mil de serviço, eu vou gastar dez, quer dizer que eu vou gasta dez mil, né? Mais como, se eu dobrar o fazendeiro: ‘tá bom eu vou pegar isso aqui por quinze mil’, quer dizer que eu vou ganhar cinco, aí já num tem nada a ver com o trabalhador mais, eu vou pagar ele a dez por dia, a não ser que aconteça alguma coisa, que ele machuca, aí eu sô obrigado.24
Para estes agentes ser chamado de “gato” parece incomodar, pois nesta denominação,
ao longo dos anos, se agregou os significados de sua atuação em favor de si próprio e de
exploração do trabalho alheio. Entre os trabalhadores locais a presença do “gato” é
determinante. Nesse sentido, quando perguntei sobre como arrumava o trabalho o senhor
Antônio revela: “Uai, a gente vê falar que, o gato assim, assim, pegou serviço, aí a gente corre
24 Entrevista com senhor Cirso Batista, 40 anos, realizada em 13 de fevereiro de 2000 na residência de seu amigo senhor Francisco Alvarenga na cidade de Araguari.
234
lá e arruma com ele, né? É no bar mesmo, né, amigo, né, às vez sai falando, né, a gente corre
lá e arruma com ele né?”25 No caso dos trabalhadores entrevistados da cidade de Araguari se
percebe uma grande dificuldade em conseguir os postos de trabalhos, pois a concorrência tem
aumentado, tanto pelo acréscimo destes no espaço urbano, como pela diminuição dos postos
de trabalho com a mecanização de parte das atividades antes destinadas aos trabalhadores
temporários como a capina, a arruação de café, entre outras, por essa razão é preciso “correr”
para se conseguir uma vaga de trabalho conforme relatou o senhor Antônio.
Ao mesmo tempo em que aparece a concorrência entre os trabalhadores pela sua
alocação observa-se que o número de pessoas atuando como gatos era intensa. A uma
entrevistada perguntei se os trabalhadores conheciam muitos “gatos” na cidade e ela
respondeu: “Conhece, menina. Olha tem o Patão ali, tem o Luiz, tem André, tem Sueli, tem o
Romário, tem, tem o João Tucano, tem o Xibiu, ih menina tem gente..., é gato demais! Tem
mais gato do que colhedor de café [risos]”26.
Pensar o número de “gatos” presentes em uma determinada área leva a pensar também
o quanto o trabalho temporário e o recrutamento de trabalhadores volantes compõem a
atividade agrícola nessa área. Por outro lado, vê-se as formas como as relações de trabalho são
estabelecidas, quase sempre buscando o menor número de responsabilidades possível por
parte do empregador27. Nesse contexto, a responsabilidade do empregador acaba transferida,
de algum modo, ao “gato”, como aponta o senhor Francisco em sua narrativa:
Eu vejo o seguinte, porque o gato, ele é responsável pelo peão, o peão que eu digo é porque é na gíria né, ele é responsável por aquelas pessoa, só que o gato, tem muito gato que as vez não assume aquela responsabilidade. Inclusive eu vi um juiz falando, num é que eu estou falando demais porque eu sei até onde que eu posso falar aqui. Esse ano não vai aceitar, vai ter que ter carteira assinada, entendeu? Então eu estou achando bom isso. Porque eu acho que todo mundo tem que trabalhar com seu direito, desde quando Getúlio Vargas decretou, você não era nascida e nem eu, mas se existe o direito da pessoa, tem que ser cumprido e eu achei bonito demais, eu vi, outro dia o juiz falando que não vai aceitar mesmo, quer toda carteira assinada, tanto faz até tomateiro e bóia-
25 Depoimento do senhor Antônio Felipe da Silva, 52 anos, em sua residência na cidade de Araguari em 16 de julho de 2000. 26 Depoimento da senhora Luzinete Nunes da Silva, 32 anos, em sua residência na cidade de Araguari em 26 de agosto de 2000. 27 Nesse sentido, aponta Silva que o “gato” “deve ser entendido nos contextos da circulação da força de trabalho, da eficácia da lei como instrumento de negação do trabalhador e do mascaramento das relações entre patrões e empregados [...] Reificam-se as relações, em que um ex-igual transforma-se em patrão e este desaparece do bojo das próprias contradições criadas pelo ato jurídico.” (SILVA, M. A. de M. Errantes do final do século. São Paulo: UNESP, 1999. p. 114-115).
235
fria. Então achei, legal a lei está sendo cumprida, então eu gosto assim que a lei seja cumprida.28
Ao lado de sua percepção sobre a atuação do “gato”, assim como sobre seu próprio
trabalho, alguns de seus conhecimentos e desejos de uma condição de justiça também
aparecem ao relatar como gostaria que fossem estabelecidas as contratações para o próximo
ano de colheita, respeitando-se a legislação sem perda de direitos para os trabalhadores.
É importante recuperar aqui o quanto a figura do mediador ganhou novas roupagens
ao longo das duas últimas décadas. No caso da região produtora da cana-de-açúcar, grande
destaque nacional na utilização de mão-de-obra escrava, no número de acidentes de transporte
com trabalhadores, mortes de trabalhadores “cortadores” de cana, e também de processos
trabalhistas contra usinas e usineiros, região de destaque na grande mobilização de
trabalhadores, também se destacou na década de 1990 com as Cooperativas de mão-de-obra,
que nada mais eram que cooperativas de agenciadores, funcionando também como uma
mediadora das relações de trabalho. Tratava-se de uma mediação institucionalizada e
regulamentada, pautada em uma legislação que buscava lidar com as questões do desemprego
nos anos 1990, assim como tinha como objetivo desburocratizar as organizações das
cooperativas, como forma de possibilitar aos trabalhadores meios de ganho que não eram
possíveis como assalariados29.
Entre os trabalhadores, contudo, essas cooperativas lhes roubavam direitos, burlavam
as leis utilizando o discurso da autonomia do trabalhador, quando na realidade, utilizava-se
dele para também ganhar com o trabalho do outro, como já fazia o “gato”. Nesse sentido,
quando perguntei ao senhor Francisco qual era a diferença que ele percebia ao trabalhar
vinculado à cooperativa, respondeu: “Não, elas só tira os direito da gente”30. E retirar os
direitos do trabalhador não é pouco. O entrevistado continua sua narrativa explicando:
Assim, por exemplo, eu não tenho o meu fundo de garantia, eu não tenho o meu décimo terceiro, entendeu? Então é isso aí que ela tira. Eu não tenho aquele, o meu direito que se eu tivesse trabalhando, né. Então é isso aí que ela me tira. Agora sobre, aposentadoria, diz que ela aposenta, diz, né, eu não sei, o que diz não se escreve, né, eu não sei. Diz que ela aposenta se for preciso, eu ainda não vi, eu ainda não pude participar dos direito dela né, mas só o que a gente perde na cooperativa é isso aí, você
28 Depoimento do senhor Francisco Alvarenga, 43 anos, em 20 de janeiro de 2000, em entrevista realizada no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Araguari. 29 Sobre esta discussão ver: MISI, Márcia Costa. Direito do trabalho, transformação social e cooperativas de trabalho no Brasil. 1999. Dissertação (Mestrado)-Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1999; PINTO, Airton Pereira. Direito do trabalho rural e a terceirização. São Paulo: LTr, 1999. 30 Depoimento do senhor Francisco Alvarenga concedido em sua residência na cidade de Araguari no dia 13 de fevereiro de 2000.
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perde o fundo de garantia. Aqui por exemplo, eu estando assinando a minha carteira eu não perco o meu direito, eu não perco o meu fundo de garantia, eu vou ter o meu tempo de serviço garantido, né? Agora na cooperativa você num tem isso. Então a única coisa que ela não oferece pra gente é isso31.
A contraposição entre as relações estabelecidas, sejam elas com “gatos”, cooperativas
ou diretamente com o empregador, se dá quase sempre tendo do outro lado o que se alcança
quando se tem o contrato de trabalho registrado em carteira. Este sim, parece ser a garantia
que o trabalhador bóia-fria, volante, temporário gostaria de ter. E este é o ponto onde os
empregadores também se apegam para fazer suas negociações, oferecerem preços e postos de
trabalho. O tema registro na carteira de trabalho virou canção na voz de Tom Zé. “Desafio do
bóia-fria”32, de composição desconhecida e considerada parte do “folclore”, onde se tem
retratada uma “disputa”, quase um desafio de convencimento de patrão e bóia-fria nas
lavouras de cana-de-açúcar, cada um a seu modo, procurando defender seu interesse.
Desafio do Bóia-fria Patrão: Bóia-Fria: Meus senhores, vou lhes apresentar Da justiça e da lei quem se aproxima uma gente não sei de que lugar, tá louvando o que vem de lá de cima uma coisa que imita a raça humana: mas o luxo, o palácio, o desperdício eis aqui o trabalhador da cana. é com Deus que se ajusta cada vício. Pois agora eles só querem falar Sei que a nossa caneta é o machado em direitos e leis a registrar, mas poetas da popularidade imagine a confusão que dá! com sonetos e versos caprichados Eu explico pra eles a tarde inteira já disseram por nós lá na cidade: esse tal de registro na carteira Que lutar por registro na carteira atrapalha, é burrice, é besteira. será nossa causa verdadeira. Bóia-Fria: Patrão: Mas o traquejo da lei e do direito Não me traga cantores de protesto, não degrada quem dele se apetece eta raça de gente que eu detesto, pois enquanto se nutre de respeito só de ouvir este nome de política é o trabalhador que se enobrece. eu já fico agastado e com azia, Além disso quem chega-se à virtude sinto dores, a febre me arrepia e da lei se aproxima e se convém tenho a tosse a maleita e a raquítica, tá mostrando ao patrão solicitude pelo campo é o voto, a abertura, por querer o que dele advém. já não tem mais pureza a criatura Desse modo o registro na carteira com esse tal de registro na carteira será nossa causa verdadeira. que atrapalha, é burrice, é besteira.
31 Depoimento do senhor Francisco Alvarenga concedido em sua residência na cidade de Araguari no dia 13 de fevereiro de 2000. 32 A música compõe o disco No Jardim da Política, gravado ao vivo no Teatro Lira Paulistana em São Paulo no ano de 1984, mas lançado apenas em 1998 pela Palavra Cantada Produções Musicais.
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Patrão: Bóia Fria: Mas que raça de gente muquirana Pois pra mim você tá é misturando me saiu esse trabalhador da cana! ter pureza com ser ignorante ignora que a lei e a justiça tá chamando a burrice de elegante é da autoridade submissa a bobeira mental advogando. e quando jegue se mete a gato mestre Se eu estudo é lutando na peleja vai um pé pr'oeste e outro pro leste. da maneira de a vida melhorar E assim no seu tema predileto e com isso não vou abandonar o diabo já passa por dileto a pureza da alma sertaneja. com esse tal de registro na carteira Desse modo o registro na carteira que atrapalha, é burrice, é besteira. Será nossa causa verdadeira.
Considerada folclore por ser de autor desconhecido, mas retratando a conhecida e
histórica luta dos trabalhadores não só da cana-de-açúcar, mas dos trabalhadores rurais
temporários em geral, a letra da música traz os argumentos dos interessados “desafiantes”, em
que apresentam suas percepções, seus valores, seus pré-conceitos. Cada um à sua maneira,
partindo de sua realidade e sua forma de pensar não somente a relação de trabalho, mas
lançando mão também de seus conhecimentos, do que entende como sendo justiça, ambos os
personagens apresentam em seu “discurso do convencimento” muito mais que uma idéia
sobre o vínculo de trabalho criado entre eles. A questão das negociações, bem como dos
direitos a que os trabalhadores podem acessar com o registro na carteira de trabalho parece ser
o ponto nevrálgico na relação trabalhador-empregador: para os primeiros a garantia de não ser
“passado para trás”, para os segundos é uma bobagem, coisa que atrapalha, pois lhe custa
mais caro contratar sob os rigores da legislação trabalhista.
Nesse aspecto, a grande maioria dos trabalhadores de fora também enfrenta estes
mesmos conflitos como revela o senhor Jailson em seu depoimento:
Trabalha no caso três meses sem carteira assinada, sem nada né, a gente trabalha, o horário ultrapassado, né. A gente tenta fazer um acordo, no final quando a gente já terminou o café pra ele dar uma ajuda assim na passagem né, pra gente vim, que a passagem é duzentos, pela empresa né, que a gente não pretende vim de van.33
Conhecedores de seus direitos, os trabalhadores, ao não terem acesso ao contrato de
trabalho registrado na carteira, acabam negociando com os empregadores de outra forma.
Uma delas é a reivindicação de parte do pagamento da passagem de retorno para casa em um
ônibus e não nas vans que realizam o trajeto e cobram mais barato dadas as condições em que
33 Depoimento do senhor Jailson Araújo, 22 anos, em entrevista realizada no dia 22 de julho de 2007, numa tarde quente de domingo na residência de seus pais.
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trafegam, geralmente lotadas e com pessoas sem assento garantido para a viagem de cerca de
2000km.
Uma vez mais o depoimento do senhor Jailson permite observar o conhecimento que
os trabalhadores possuem de seus direitos, mas não conseguem reivindicá-los de forma tão
direta como o fazem os trabalhadores volantes locais.
Aí a gente chega fala pra ele, pra ele dá uma ajuda que a gente tem direito, né, que a gente está trabalhando num serviço é, sem carteira assinada, a gente trabalha sábado, né, e, é isso aí, e não recebe. Aí, em algumas fazendas assina, outras não. Eles não reconhece isso, né, que a gente tem direito, a gente trabalha, trabalha três meses que é o normal assim de colheita, eles deveriam dar pelo menos as botina, né, o boné, é, esses acessórios né de proteção. Eu já ouvi alguns casos que tem fazenda que, quando o trabalhador adoece eles nem liga. Não tem o cuidado assim de levar no hospital de ver o que que é, né, transportar.34
Mesmo sabendo que “algumas fazendas assina, outras não” eles não procuram para
trabalhar somente as fazendas que fazem o registro do contrato em carteira, porque isso não
parece se constituir em uma questão central da relação de trabalho. A tentativa de negociação
da não assinatura da carteira de trabalho tendo em troca uma parte do valor da passagem de
retorno nem sempre tem resultados positivos para o trabalhador, como revela Jailson quando
argumenta que “eles não reconhece isso, né, que a gente tem direito”. Se por um lado o tema
das contratações e do registro ou não em carteira aparece como uma prática pouco utilizada,
por outro, a negligência em relação à garantia dos direitos do trabalhador parece refletir outras
atitudes de não cumprimento da legislação trabalhista, como oferecer condições e
equipamentos de segurança para o trabalho como a botina, o boné, a garrafa térmica de água,
entre outros equipamentos. Uma outra questão, mas não menos importante, é a falta de
assistência a estes trabalhadores em casos de doenças, conforme registrou Jailson, e também
se verificou em algumas fazendas, em que os trabalhadores tiveram que buscar recursos
médicos por conta própria sem qualquer auxílio do empregador ou responsável da fazenda.
Pode-se indagar, contudo: estes trabalhadores não possuem nenhuma forma de
reivindicação e de luta por seus direitos permanecendo à mercê das vontades dos
empregadores, como acreditam os trabalhadores locais sobre estes grupos? A pesquisa
possibilitou observar que estes grupos possuem as suas formas de reivindicação e organização
como a realização de greves nas fazendas.
34 Depoimento do senhor Jailson Araújo, 22 anos, em entrevista realizada no dia 22 de julho de 2007, numa tarde quente de domingo na residência de seus pais.
239
A gente já fez greve já. Nessa fazenda que eu trabalhei a primeira vez que eu fui, a gente parou o serviço lá, foi uma chiada. Mesmo assim, eles não, não acaba chegando num acordo não e mesmo quando eles resolvem aumentar é também cinqüenta centavos, trinta centavos a mais só, só isso.35
A paralisação das atividades ainda parece provocar a fúria dos empregadores, “foi uma
chiada”, pois em geral há uma expectativa para o fim da safra e dos trabalhos por parte deles.
Entretanto, paralisar os trabalhos nem sempre tem a repercussão esperada com um aumento
expressivo do valor da saca de café colhido. Talvez por esta razão, requerer o pagamento de
parte da passagem de retorno seja algo muito valorizado entre os trabalhadores, uma forma de
“compensar” também os baixos salários.
Pode-se aqui tecer uma análise mais geral, a partir da qual se observa a exploração dos
trabalhadores a fim de se aumentar seus lucros. A recusa em aceitar a legislação, mesmo
quando já regulamentada, o que é direito adquirido dos trabalhadores e, como a relação tem
dois interessados, tem-se todas as formas de tentativas de burlar a lei como de aplicá-la,
cabendo ao trabalhador fazer a opção entre trabalhar em subcondições ou ficar sem trabalho,
como se tem, em muitos momentos, registrado entre os trabalhadores. A legislação, como
qualquer outra forma de regulamentação das relações, também oferece as possibilidades e
margens para que os entendimentos sejam variados, dá margens para formas
institucionalizadas de exploração e de mediação das relações de trabalho, como no caso das
cooperativas de trabalhadores autônomos que ressurgiram no início da década de 1990 como
Alternativa à crise do desemprego, apresentando-se como opção viável dentro do quadro atual, para garantir o meio de subsistência de famílias que dependem unicamente da força de trabalho de seus membros para sobreviver, ao mesmo tempo em que acompanha a tendência de privilegiar a produção autônoma das normas regulamentadoras da relação, uma vez que são as próprias partes – empresa e cooperativa – quem estabelecem essas regras.36
Contudo, ao se apresentar como alternativa de trabalho e renda aproveitando do
trabalho sem a proteção juslaboralista observa-se ao longo da década de 1990 a proliferação
35 Depoimento do senhor Jailson Araújo, 22 anos, em entrevista realizada no dia 22 de julho de 2007, numa tarde quente de domingo na residência de seus pais. 36 MISI, Márcia Costa. Direito do trabalho, transformação social e cooperativas de trabalho no Brasil. 1999. Dissertação (Mestrado em Direito do Trabalho)- Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1999. p. 125.
240
de cooperativas pelo Brasil, muitas das quais constituídas de “cima para baixo”, incitadas
pelos futuros tomadores de serviços e sob o comando de um verdadeiro dono37.
Não é preciso dizer que estas formas de organização acerca do trabalho rural
temporário funcionaram, quase sempre, para pressionar os trabalhadores, reduzir seus ganhos
e até mesmo seus direitos. No caso específico da região de Araguari, enquanto a cooperativa
foi atuante, observava-se entre os proprietários um comportamento que lhes rendesse menos
custos com a mão-de-obra. Ora só aceitavam trabalhadores cooperados, evitando-se assim,
quaisquer possibilidades de litígio trabalhista, ora empregava os não-cooperados, pois assim
não precisaria registrar os contratos de trabalho, não pagaria nenhum dos direitos previstos em
lei, mas em troca, aumentaria o preço pago pela saca de café colhido ou por outra atividade
executada.
A mediação entre trabalhadores/empregadores assume portanto, diferentes
características, em diferentes momentos e nos diferentes grupos pesquisados. Se entre os
trabalhadores locais a mediação é algo quase imprescindível para o acesso ao trabalho, se o
mediador recebe declaradamente o seu salário a partir do trabalho do bóia-fria, entre os
trabalhadores de fora essa mediação parece muito menos ofensiva. Geralmente, os grupos são
formados ainda na região de origem a partir de um trabalhador que estabelece inicialmente o
contato com os fazendeiros da região, se tornando o interlocutor entre o proprietário e os
trabalhadores, mas a viagem dos trabalhadores pode também ocorrer sem esta mediação.
37 Essas cooperativas, muito difundidas no interior do estado de São Paulo, acabaram se estendendo por outras regiões, como foi o caso da COOPERSETRA (Cooperativa de Serviços dos Trabalhadores Rurais e Urbanos Autônomos Ltda.), extensão da cooperativa cuja sede estava na cidade de Bebedouro-SP, e que iniciou suas atividades no ano de 1996 e, após denúncias e acusações de não respeitar os acordos feitos com trabalhadores, teve suas atividades encerradas na região de Araguari em 2002. Embora tenha encerrado suas atividades em relação ao trabalho rural observa-se que esta cooperativa específica assumiu uma nova roupagem, sendo possível encontrá-la oferecendo outros serviços, e ainda, mediando relações de trabalho conforme se segue: “A COOPERSETRA atende diversas empresas, efetuando serviços bancários, busca e remessa de documentos diversos, serviços junto a cartórios, cobranças, distribuição de convites, despachos em aeroportos e entregas de objetos em toda capital paulista, litoral e interior. E mais, na COOPERSETRA, você poderá contratar um profissional motociclista ou motorista sem vínculo empregatício e encargos sociais (baixando seus custos) conforme a lei nº 8949/94 do cooperativismo ou se preferir solicitar serviços avulsos”. Disponível em: <www.coopersetra.com.br/serviços.htm>. Acesso em: 30 abr. 2008.
241
5.3 Enfrentamentos das relações de trabalho: a organização dos produtores
A pesquisa possibilita observar algumas nuances no processo de contratação e de
inserção da mão-de-obra temporária nas lavouras de café. Observar os enfrentamentos destes
trabalhadores em seu cotidiano no trabalho temporário da safra remete à compreensão das
formas como os empregadores também se organizam para tratar estas questões. Nesse sentido,
o trabalho de Ferreira aponta que há acordos e formas de organização dos produtores para
diminuírem os custos da produção, conforme se tem em um trecho de depoimento por ele
citado:
Os migrantes que vinham ganhavam muito dinheiro, chegavam até a comprar lotes de terra, reformar a casa, comprar carro, e hoje isto não acontece mais, o rendimento dos trabalhadores não passa de 3 a 4 salários mínimos. Isto é conseqüência da organização do setor patronal, que hoje está forte, pois sabe-se que antes de todo o início da colheita tem reuniões e eles estipulam mais ou menos o rendimento, o preço, o quanto cada um vai ganhar .38
O que se observa em relação aos valores pagos aos trabalhadores no período da safra é
que, de modo geral, não há grande diferença do que é praticado por saca de café colhido em
toda a região, mas parece ocorrer uma “sintonia” entre os produtores para que os preços sejam
parecidos e desestimulem a concorrência, levando os trabalhadores a não terem opções de
mudar para esta ou aquela fazenda em função do valor recebido pelo trabalho.
No tocante a este aspecto, ao procurar compreender como se dava esta negociação
entre os próprios empregadores/produtores, foi pervebida a atuação das Associações de
Cafeicultores através de cartas de instrução direcionadas aos produtores, conforme se tem no
documento abaixo:
38 FERREIRA, Rômulo Gama. Agricultura familiar e inovações tecnológicas: impactos sobre a ocupação e o êxodo rural nas microrregiões e Patos de Minas e Patrocínio – MG. Dissertação de Mestrado, Instituto de Economia. Uberlândia, UFU, 2004, p. 92.
242
Figura 5: Carta da ACARPA aos cafeicultores Fonte: Carta ao Cafeicultor, ACARPA, Patrocínio, maio 2006.
As orientações referentes aos valores não são as únicas, há ainda indicações da melhor
forma de contrato para se empregar com o registro em carteira de trabalho (contrato de safra
que evita o pagamento de aviso prévio), assim como uma simulação de valores a serem pagos
por esta forma de contratação, com a seguinte recomendação: “Em tempos de preços baixos é
essencial que todos os cafeicultores se unam e adotem a tabela acima. O preço da colheita está
em suas mãos”. A tabela à qual se refere a orientação pode ser observada no documento
abaixo onde se sugere ainda que o cafeicultor “faça uma base de quantas sacas são colhidas
por dia em média e estipule o valor por saca de 60 litros a ser pago ao colhedor”39.
Os dados abaixo permitem observar que caso o trabalhador venha a trabalhar com o
registro do contrato de trabalho em Carteira, de acordo com o regime trabalhista da
Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), os valores ganhos por saca de café colhido são
extremamente baixos uma vez que o empregador desconta nos ganhos do trabalhador as taxas
referentes aos encargos.
39 Carta ao Cafeicultor, ACARPA, Patrocínio, maio 2006.
243
Tabela 1: Valores e encargos a serem pagos aos trabalhadores nas lavouras de café, segundo a CLT.
Fonte: Carta ao Cafeicultor, ACARPA, Patrocínio, maio 2006.
O tom adotado no início da carta como sugestão de preços, ao final se transforma em
um quase apelo à prática comum de valores a fim de reduzir os custos e, com isso, impedir
que os trabalhadores possam realizar suas escolhas ou mesmo fazer suas reivindicações. O
nível de organização e de orientação dada aos cafeicultores permite pensar em como suas
ações chegam até as relações de trabalho e ao cotidiano dos trabalhadores, ou melhor, em
como os trabalhadores da região, em geral, atuantes, levando os produtores a elaborarem
respostas àquelas ações, que muitas vezes eram representadas pelos ganhos e aquisições feitas
pelos trabalhadores. Pensar este nível de organização instigou a buscar conhecer as
instituições às quais se vinculam os produtores da região.
A princípio, a organização dos cafeicultores parece estar voltada às questões de
melhores oportunidades de comercialização obtidas a partir do conjunto de produtores, para as
lutas políticas e defesa de seus interesses junto aos órgãos públicos que se dão sob o nome de
suas associações, mas se observa nas suas atuações importantes decisões que afetam
diretamente os trabalhadores do café. Entre as principais organizações dos produtores, estão,
por toda a região, as Associações de Cafeicultores e também as Cooperativas de cafeicultores
responsáveis pelo armazenamento e comercialização do produto.
Cada uma das instituições compõe parte das relações estabelecidas comercialmente
pelos produtores, mas também integra com suas razões e funções diferenciadas um variável
número de cafeicultores que se espalham por toda a região do Cerrado mineiro. As
244
associações e cooperativas formam o grupo de base de sustentação das organizações de
produtores, enquanto associados, conseguem através destas realizar uma série de
reivindicações, pois encontram-se agrupados e, por isso, mais fortes em suas manifestações.
Estudos como o de Ortega afirmam que as associações de cafeicultores na região do
cerrado mineiro surgiram
Porque os cafeicultores não conseguiam fazer com que os sindicatos patronais rurais encampassem suas principais demandas – então fortes na região mas ainda sob o domínio de proprietários rurais mais tradicionais, especializados na pecuária e em alguns grãos.40
A região contava com a forte presença e atuação dos Sindicatos Rurais que eram
anteriores aos programas e projetos de expansão da agricultura e cafeicultura na área. Como a
grande maioria dos produtores de café que se instalaram na região era proveniente
especialmente da região sul do país, São Paulo e Paraná, enfrentaram dificuldades para se
inserirem nos Sindicatos patronais e fazer com que estes encampassem suas reivindicações.
Desse modo, a formação das associações de cafeicultores teve objetivos próprios que, em
alguns momentos, disputavam com os sindicatos rurais. Nesse sentido, há que se destacar a
força dos Sindicatos Rurais das cidades de Uberlândia e também de Uberaba marcados pela
atuação dos pecuaristas em suas reivindicações e pelos espaços que ocupam na sociedade.
As associações começaram a se formar pela região a partir de 1989 quando em
Araguari era fundada a primeira delas a Associação dos Cafeicultores de Araguari (ACA). No
ano de 1990 era fundada a Associação dos Cafeicultores da Região de Patrocínio (ACARPA)
e, a Associação dos Cafeicultores da Região de Monte Carmelo (AMOCA) surgia em 1991.
Estas associações são as que mais se destacam em suas ações e a partir das quais outras foram
sendo criadas. Estas associações atendem produtores de municípios vizinhos aos municípios
sede. Por toda a área, chamada Cerrado mineiro, conta-se com nove entidades que abrangem
55 municípios e que estão diretamente vinculadas ao Conselho das Associações dos
Cafeicultores do Cerrado (CACCER) com sede em Patrocínio, cujo presidente atual é também
presidente da ACARPA, sendo os dois organismos sediados no mesmo prédio em Patrocínio.
O CACCER é o organismo responsável pela coordenação das ações de marketing e, de acordo
com alguns documentos desta instituição, ela é a responsável por
Manter diversos convênios com instituições brasileiras e internacionais com o intuito de desenvolver programas de capacitação dos cafeicultores
40 ORTEGA, Antônio César. Agronegócios e representação de interesses no Brasil. Uberlândia: EDUFU, 2005. p. 172.
245
do cerrado para atender as exigências de Segurança Alimentar, Responsabilidade ao Meio Ambiente e Responsabilidade Social, que o mercado está exigindo, através das associações e cooperativas filiadas.41
Há uma sistematização das ações destes organismos à proporção que o Conselho se
tornou, a partir de 1992, o órgão responsável por centralizar e encaminhar as medidas ou
reivindicações da categoria frente a outras instituições e mesmo junto a organismos
governamentais, bancos de crédito, imprensa, entre outros. Nesse sentido, um histórico do
CACCER datado de 2000 revela que entre os seus principais objetivos tem-se: “gerir o
marketing do café do cerrado; funcionar como um canal político de representação; e prestar
aos associados orientações em todos os aspectos do seu agronegócio”42. Como se observa,
entre os principais objetivos, assim como na sua estruturação, o Conselho parece encampar de
forma efetiva os interesses dos produtores por ele representados.
Compõem também este sistema as Cooperativas conhecidas por COOCACERS
(Cooperativas dos Cafeicultores do Cerrado) que são entidades responsáveis por armazenar e
preparar o produto para a comercialização. Estas somam um total de cinco na região e estão
localizadas em pontos estratégicos que possibilitem o fácil acesso dos interessados da área
atendida: Patrocínio, Monte Carmelo, Araguari, Carmo do Paranaíba e Unaí.
Essa rede de produção é também alimentada pela Fundação de Desenvolvimento do
Café do Cerrado (FUNDACCER) uma organização criada em 1999 com o objetivo de
fomentar e estabelecer linhas de pesquisa para a produção, identificação e aplicação de cafés
especiais, tornando-se uma ponte na busca de alianças com universidades e centros de
pesquisa brasileiros que se dedicam à investigação científica sobre o café, além de manter
convênios com instituições internacionais como a Associação Cultural Japonesa de Cafés
Especiais, sediada em Tokyo43.
O nível de alcance que estas entidades possuem entre os produtores pode ser
questionado, por um lado, à medida que se tem o número de associados a elas vinculados
mas, por outro, suas redes se estendem também sobre os não-associados conforme as
informações, bem como as formulações sobre o setor, assim como as conquistas acabam se
refletindo sobre o conjunto dos produtores da região. Nesse sentido, pode-se tomar o número
aproximado de associados para se pensar esta questão. A ACARPA, sediada em Patrocínio,
possui cerca de quatrocentos associados, segundo dados de sua secretaria, mas somente o
41 CACCER. Café do cerrado: qualidade com origem certificada. [S.l.: s.n.], [200-]. 42 Idem. Histórico, 2000. Disponível em: <www.cafedocerrado.com.br>. Acesso em: mar. 2008. 43 CACCER. Op. cit.
246
município de Patrocínio possui aproximadamente 666 cafeicultores e 746 propriedades44, e
junte-se a isto o fato de que a entidade também representa e possui como associados
produtores de outros municípios em seu entorno. A área de abrangência da ACARPA,
conforme as pesquisas apontam, é formada por produtores de maior porte que investem em
mais tecnologia, possuem mais recursos financeiros, e também por esta razão, se tornaram os
primeiros a aderirem ao Programa de Certificação do Café, além de outras características que
possuem relativas às relações trabalhistas.
A AMOCA, sediada em Monte Carmelo, possui cerca de 150 associados, mas nem
todos ativos, de acordo com a secretaria, além de contar também com produtores de outros
municípios em seu quadro de associados. A ACA, sediada em Araguari, conta com cerca de
quatrocentos associados cadastrados sendo a grande maioria de pequenos produtores45, mas
segundo dados do município, é uma área que conta com mais de quatrocentos produtores e
propriedades, possuindo ainda como associados produtores dos municípios vizinhos. Em
diferentes documentos e momentos históricos os discursos sobre determinados aspectos da
produção cafeeira parece ecoar entre os vários grupos de cafeicultores que se encontram
estabelecidos nesta área: tratar o trabalhador como um dos elementos que eleva os custos da
produção, apontar a mecanização como forma de baixar os custos, mencionar a crise do setor,
a falta de incentivos e outros, são argumentos presentes em discursos que vão do presidente
das associações aos secretários e secretárias, e muitas vezes, acabam sendo mencionados
pelos próprios trabalhadores.
Estar vinculado a uma das associações dos cafeicultores coloca o produtor no mesmo
patamar de seus pares, podendo-se acessar informações, participar de debates, trabalhos de
campo, seminários, entre outros, além de possibilitar a comercialização de seu produto com a
marca “Café do Cerrado”, conforme prevê o Conselho das Associações dos Cafeicultores do
Cerrado (CACCER). Esta marca tem sido o carro chefe das organizações dos cafeicultores
para defender suas exigências e se imporem no mercado. De acordo com os estudos de
Broggio, o “café do cerrado” constitui a primeira indicação geográfica de café no mundo46 e
acabou sendo conhecida e reconhecida em diferentes instâncias da comercialização interna e
externa. Desse modo, a marca “Café do Cerrado”, assim como a demarcação da referente área
44 Cf. ACARPA. Dados da cafeicultura de Patrocínio. Patrocínio: [s.n.], [200-]. 45 Entende-se como pequenas propriedades aquelas com média de até vinte hectares de café plantado, sendo cerca de 3500 covas de café/ha de acordo com entrevista do engenheiro agrônomo responsável pelos projetos e acompanhamentos junto aos produtores cadastrados na Cooperativa dos Cafeicultores de Araguari. 46 BROGGIO, Celine; DROULERS, Martine. Stratégies caféières du Brésil sur le marché mondial. Études Rurales, Paris, Édition EHESS, n. 180, p. 213-228, jan. 2008.
247
parece representar uma grande conquista para este grupo como revelam documentos do
CACCER.
Região do Cerrado Mineiro é a primeira região reprodutora de café demarcada no Brasil, segundo decreto do Governo de Minas Gerais, desde abril de 1995. São 55 municípios abrangidos, localizados no Alto Paranaíba, Triângulo Mineiro e Noroeste de Minas, apresentando padrão edafoclimático uniforme e possibilitando a produção de cafés de alta qualidade.47
O fato de a região estar delimitada e reconhecida oficialmente faz parte do amplo
leque de divulgação que se tem em torno da produção do café dessa área. A região demarcada
de Cerrado Mineiro constitui então 55 municípios numa área total de 112.289,56km2 dos
quais48 trata-se neste trabalho apenas alguns desses municípios. A região do cerrado é
responsável por 20% da produção mineira de café e 12% da produção nacional. Estes
números podem ser visualizados quando comparada a área cultivada de café em Minas Gerais
com outros estados que também possuem alta produção.
Estados Área em produção (ha) Nº de cafeeiros (1.000 covas)
Minas Gerais 1.062.000 2.295.300
Espírito Santo 538.960 1.130.920
São Paulo 228.520 418.120
Paraná 120.00 284.000
Bahia 101.440 276.378
Outros 295.860 480.360
Total 2.346.780 4.885.078
Quadro 10: Produção de café no Brasil Fonte: Instituto Observatório Social.
Uma outra possibilidade para se pensar a importância que a demarcação da região do
cerrado tem para seus produtores e, para as instituições que os representam, são os mapas que
figuram esta área destacando algumas de suas características, fornecendo informações sobre a
47 CACCER. Café do cerrado: qualidade com origem certificada. [S.l.: s.n.], [200-]. 48 Compõe essa região, segundo o Programa de Certificação do Café: Abadia dos Dourados, Araguari, Arapuá, Araxá, Bambuí, Bonfinópolis de Minas, Buritis, Buritizeiro, Campos Altos, Canápolis, Carmo do Paranaíba, Cascalho Rico, Conquista, Coromandel, Córrego D’Anta, Cruzeiro da Fortaleza, Douradoquara, Estrela do Sul, Grupiara, Guarda-Mor, Guimarânia, Ibiá, Indianópolis, Irai de Minas, João Pinheiro, Lagamar, Lagoa Formosa, Matutina, Medeiros, Monte Alegre de Minas, Monte Carmelo, Nova Ponte, Paracatu, Patos de Minas, Patrocínio, Pedrinópolis, Perdizes, Pratinha, Presidente Olegário, Rio Paranaíba, Romaria, Sacramento, Santa Juliana, Santa Rosa da Serra, São Gonçalo do Abaeté, São Gotardo, Serra do Salitre, Tapira, Tiros, Tupaciguara, Uberaba, Uberlândia, Unaí, Varjão de Minas, Vazante.
248
produção da região e outros índices. O mapa abaixo se encontra na página de divulgação do
Café do Cerrado, na rede mundial de computadores.
Figura 6: Mapa - Região demarcada do Café do Cerrado
Fonte: www.cafedocerrado.com.br
Tal representação da área coloca em destaque apenas parte do estado de Minas no
cenário nacional, que compreende a chamada região do Cerrado, o que equivale a dizer da
importância da produção desta região demarcada para a agricultura nacional, quando os
números apontam que esta área é responsável por 48,8% da produção nacional de café.
Nas diversas associações pesquisadas, observei que vários documentos procuram
demonstrar o quanto a cafeicultura tem e oferece vantagens e o quanto seus produtores
buscaram aperfeiçoar a produção visando atender a um mercado mais competitivo e,
principalmente, ao mercado externo, para o qual cerca de 80% do café produzido é
destinado49.
A nível nacional, de tempo em tempo, a região do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba
é apresentada na mídia pela produção cafeeira, principalmente em se tratando da qualidade do
produto, da tecnologia investida, dos novos recursos e métodos e da busca do aprimoramento
dessa produção, como se lê na matéria “Cuidado no pós-colheita garante qualidade do café”50
49 Este dado pode ser observado principalmente em relação ao município de Patrocínio (cf. ACARPA. Dados da cafeicultura de Patrocínio. Patrocínio: [s.n.], [200-]). 50 CUIDADO no pós-colheita garante qualidade do café. Correio de Uberlândia, Uberlândia, 30 maio 2006. p. A8.
249
na qual é ressaltada que “a bebida fina ganha o mundo e remunera melhor o produtor do grão
brasileiro”, além de outras matérias51.
Esta busca e, de certo modo, o reconhecimento pela qualidade do produto ali cultivado
alcançou na década de 1990 um momento importante com a implantação do “Prêmio Brasil
Qualidade do Café Expresso” pela empresa Illycaffè. Esta empresa sediada na Itália, na
cidade de Trieste fundada na década de 1930, a partir de 1991 lançou no Brasil a premiação
dos 50 produtores cujos cafés alcançassem os quesitos de qualidade fixados por especialistas
na área, com o interesse de adquirir cafés de qualidade e elevar a quantidade comercializada
de café expresso. Deste modo, uma equipe formada por diferentes profissionais de várias
instituições de pesquisa avaliam a qualidade do que se denomina a “bebida” do café. Ao
longo da década de 1990, conforme se observa nos dados do quadro abaixo, as principais
premiações foram conquistadas pelos produtores da região do cerrado52.
Região
Ano
Cerrado de
Minas Gerais
Sul de Minas Gerais
Outras regiões de
Minas Gerais
São Paulo
Outros Estados
1991 5 3 2 1992 9 1 1993 9 1 1994 7 3 1995 8 2 1996 7 3 1997 10 1998 10 1999 2 3 4 1- Paraná 2000 4 3 3 2001 2 1 3 3 1- Espírito
Santo 2002 2 1 6 1- Bahia 2003 3 1 6 2004 3 3 3 1- Bahia 2005 1 4 2 1- Espírito
Santo 2006 3 3 2 1 2007 1 2 5
Quadro 11: Distribuição geográfica de “Prêmios Brasil de qualidade do café expresso Illycafè” – 1991-2007
Fonte: <www.revistacafeicultura.com.br>. Acesso em: maio 2008.
51 Ver ainda: Revista Época, 20 jul. 1998; A NOBREZA do Cerrado. Revista Cafeicultura. 07 set. 2006; Jornal Correio de Uberlândia, Uberlândia, 30 maio 2006. 52 A premiação é realizada em dinheiro, sendo U$30.000 para o 1º colocado, U$20.000 para o 2º colocado, U$ 10.000 para o 3º colocado, sendo o valor do prêmio decrescente até o 10º colocado e do 11º ao 50º um prêmio de U$ 700 cada um, conforme dados da Illycaffè. Disponível em: <www.illycafe.com>. Acesso em: jun. 2008.
250
Os dados permitem observar que na década de 1990 o grande destaque foi obtido pelos
produtores do Cerrado mineiro, mas a partir do final da década e no decorrer da atual, outras
regiões do estado de Minas também vêm se destacando, o que revela mudanças na forma de
produzir, na forma de tratar a propriedade e ainda o crescimento nos investimentos que vem
ocorrendo nestas outras áreas.
Ainda sobre a premiação realizada pela Illycaffè, vale destacar que dentro do
Conselho das Cooperativas de Cafeicultores, a instituição deste prêmio se deu como um
incentivo a melhoria da qualidade do café produzido no Brasil no momento em que o setor
atravessava a crise da desregulamentação do mercado, tornando-se necessário ainda assim,
manter ou acrescer o produto em qualidade para atender as exigências do mercado
consumidor. Desse modo, as premiações, além de se constituírem em uma forma de incentivo,
são percebidas também como uma possibilidade para atravessar um momento julgado difícil
pelo setor. O concurso é entendido como uma forma de se desembaraçarem da crise do início
da década de 1990, quando o Instituto Brasileiro do Café foi extinto após o fracasso definitivo
das negociações de um novo Acordo Internacional do Café, momento este que teria
provocado a “depressão do preço e que acabou refletindo em quedas de qualidade no café
brasileiro”53. Argumenta-se ainda que:
A Illycaffè chegou a ter dificuldades de abastecimento. Como meio para superar o problema, a empresa decidiu instituir um concurso anual, denominado “Prêmio Brasil de Qualidade do Café para Expresso”, visando a identificação dos melhores cafés disponíveis no mercado brasileiro.54
Nesse aspecto, alguns documentos do CACCER trazem que a crise no final dos anos
1980 favoreceu a construção da imagem do café produzido no cerrado, quando a empresa
Illycaffè decidiu instituir o concurso em busca de melhor qualidade para o café por ela
adquirido no mercado nacional. Nesse sentido, tem-se em um de seus documentos:
E, aproveitando-se deste fato, o CACCER, passou a utilizar o concurso, como recurso de marketing para promover o café do cerrado. A estratégia estava formulada, os concursos da Illycaffè tiveram ampla divulgação e repercutiram fortemente junto ao mercado cafeeiro. Dada a presença maciça de produtores do cerrado entre os premiados, em pouco tempo a imagem do café da região e do próprio concurso acabaram ficando associadas. Assim, a qualidade do café do cerrado tornou-se conhecida internacionalmente55.
53 CACCER. Histórico. 2000. Disponível em: <www.cafedocerrado.com.br>. Acesso em: jun. 2008. 54 Idem. 55 CACCER. Histórico. 2000. Disponível em: <www.cafedocerrado.com.br>. Acesso em: jun. 2008.
251
Revistas especializadas na área, matérias de jornais e outros documentos do setor
apontam que o Brasil tem, atualmente, 2,3 milhões de hectares plantados com café, ocupa a
posição de maior produtor e exportador mundial de café e Minas Gerais tem 48,8% da
produção nacional56 o que dá uma dimensão do poder e potencial que esses grupos de
cafeicultores possuem em suas reivindicações, em suas ações, lembrando que falar em
produtores não remete, em nenhum momento, a um grupo homogêneo, seja econômica ou
politicamente. O que se observa é uma dinâmica bastante intensa entre os produtores de café,
organismos que os representam e as políticas econômicas direcionadas para atender os
interesses que se aglutinam em torno desse grupo, esteja ele no cerrado mineiro ou em outra
área do país57. Nesse sentido tem-se medidas tomadas pelo governo federal tais como os
incentivos, financiamentos, o protelar de dívidas entre outras, como apresenta uma matéria do
jornal Folha de São Paulo: “o governo liberou cerca de 1,578 bilhão em apoio à colheita,
estocagem e financiamento da aquisição de café da safra 2006 e também a ampliação dos
limites de financiamento e estocagem ao produtor”58, que favorecem, de algum modo, a
continuidade do crescimento desta atividade nas regiões onde já se encontra consolidada e
mesmo nas áreas onde se encontra em processo de expansão.
Este dado referente aos investimentos do Estado na atividade cafeeira pode auxiliar na
compreensão de como o Governo, através dos seus vários organismos é acessado pelos
agricultores e cafeicultores, especialmente no sentido de ampliar as suas possibilidades de
comercialização e não perda de investimentos, com a ampliação do crédito agrícola, a dilação
de prazos para pagamento de financiamento, além de recursos que financiem a produção59 e
estocagem. Essa prática não é recente na história do Brasil, mas pode-se inferir sobre quais
grupos esse tipo de recurso alcança ou a quem eles são dispensados, podendo-se observar que
os pequenos produtores, em geral, têm maiores dificuldades de acesso a tais políticas.
56 Esses dados podem se observados na Revista Cafeicultura, 07 set. 2006, e também no Jornal Correio de Uberlândia, Uberlândia, 30 maio 2006. 57 A cafeicultura vem alcançando destaque também nos estados do Espírito Santo e Bahia, além do estado de São Paulo. 58 CMN APROVA ajuda extra de R$ 1,6 bi a setor de café. Folha de São Paulo, São Paulo, 19 ago. 2006. 59 Desde 1995, em parceria com o Banco do Brasil, os produtores têm acesso à CÉDULA DO PRODUTOR RURAL (CPR): uma operação que funciona como uma antecipação da receita da venda do produto. Segundo Ferreira, trata-se de uma “espécie de mercado futuro em que a instituição faz um levantamento dos interessados em adquirir o produto e o vendedor se compromete a entregar o produto dentro do prazo estabelecido, o que garante a venda de sua produção.” (FERREIRA, Rômulo Gama. Agricultura familiar e inovações tecnológicas: impactos sobre a ocupação e o êxodo rural nas microrregiões e Patos de Minas e Patrocínio-MG. 2004. Dissertação (Mestrado)- Instituto de Economia, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2004. p. 82-83).
252
Para melhor compreender esta questão há formas de corporativismo que surgiram no
Brasil a partir do final do século XIX quando foram formadas as primeiras associações ou
organizações de prestação de serviços a agricultores como a Sociedade Nacional da
Agricultura e a Sociedade Rural Brasileira, entre outras que, desde então, foram compondo
importantes momentos históricos do país, ora representando e canalizando as reivindicações
dos segmentos da agricultura, ora apenas aparecendo timidamente nos processos de
negociação. A dinâmica de organização do setor cafeeiro remonta às articulações setoriais por
categoria profissional ou produtiva muito presente na história do Brasil a partir dos anos 1980
e que mais recentemente se vê no agronegócio brasileiro ou agribusiness como a Associação
Brasileira do Agribusiness (ABAG) cujas ações estão relacionadas a lobby sobre o governo e
o Legislativo; trabalho de divulgação com associados e interessados; pesquisa, articulação
com entidades empresariais de outros segmentos da economia como descreve Ortega60. Parte
destas ações é percebida também nas associações dos cafeicultores e especialmente com o
CACCER que unindo forças com outros organismos do setor e sociedade busca difundir e
ampliar não somente as qualidades do café do cerrado como também investir em pesquisa que
favoreça o setor através das novas tecnologias.
Nesse aspecto tem-se que os produtores possuem representantes ativos no poder
legislativo do estado. Um dos primeiros nomes a ser relembrado é o de Raul Belém, natural
da cidade de Araguari, que foi deputado federal por quatro mandatos, eleito pela região e,
chegou a ser Secretário da Agricultura do estado de Minas Gerais entre os anos de 1999 e
2001, quando veio a falecer.
O nome de Raul Belém compõe ainda a memória de alguns grupos aos quais era
ligado, especialmente aos grupos de agricultores da região. Nesse sentido, quando do
aniversário de seu falecimento em outubro de 2008, o Jornal Araguari trouxe uma matéria que
rendia-lhe homenagens e na qual se lê:
Enquanto esteve com seus direitos políticos suspensos, o incansável Belém dedicou-se na busca do desenvolvimento de Araguari através da cafeicultura, sendo um defensor intransigente da diversificação agrícola, pois, acreditava ser este o caminho para o progresso e o enriquecimento de Araguari61.
Havia uma ligação direta do então político com as questões políticas e agrícolas da
região e, durante seus mandatos pode-se observar que representava estes grupos em seus
60 ORTEGA, Antônio César. Agronegócios e representação de interesses no Brasil. Uberlândia: EDUFU, 2005. 61 Jornal de Araguari, 14 de outubro de 2008.
253
interesses e em suas disputas políticas tornado-o uma referência para o setor cafeeiro da
região. Outro nome que se solidificou na região produtora de café foi o de Silas Brasileiro,
deputado estadual e federal pela região de Patrocínio e, desde maio de 2007, ocupa o cargo de
Secretário executivo do Ministério da Agricultura. Sobre sua presença e os significados de sua
ação para o setor o senhor Fabiano narrou:
Uma das força que nóis temo no cerrado é o Silas Brasileiro e o Arlindo Porto. É uma das força que nóis temo. O Silas Brasileiro tem alavancado muitos vamos dizer a palavra certa, bom, ele está fazendo muito diferencial para cafeicultura. Então ele está brigando por política agrícola, ta brigando pelo alongamento para vê se muda a questão de mercado do café. Ele tem brigado bastante para as política cafeeira. E ele é um grande nome pra política cafeeira. Se não fosse ele acho que nós estávamos em uma situação um pouco diferenciada62.
Os grupos de cafeicultores se vêem representados em suas reivindicações e contam
com ela para atravessar alguns obstáculos ou conseguir atingir parte de seus interesses e
objetivos. Nesse sentido, um trecho do discurso de Silas Brasileiro na Câmara Municipal de
Patrocínio possibilita observar como são pensadas as ações dos produtores e a função do
Governo para estes grupos.
(...) Recentemente voltamos a ter valorização da moeda. Os produtores que adquiriram insumos na conversão de 3 para 1, hoje estão vivendo outra realidade, com defasagem de 33% do rendimento. O produtor honra seus compromissos, é trabalhador, acredita e vai à luta. Mas sem renda, sem uma política definitiva e sem planejamento do agronegócio ele não chegará a resultado algum. (...) Esperamos que o Governo nos dê abertura para discutir as dificuldades do homem do campo, englobando todos os projetos.63
O discurso foi proferido em 08/06/2006 como uma de suas investidas na campanha
para deputado federal e enquanto representante dos cafeicultores, no qual procurava ressaltar
as dificuldades encontradas pelo setor e a trajetória dos últimos anos. Nesta ocasião o então
deputado não foi reeleito, mas passou a ocupar a presidência do Conselho Nacional do Café
sediado em São Paulo.
A dinâmica na qual se inserem os produtores de café, bem como os grupos que se
especializam cada vez mais em uma determinada produção seja ela agrícola ou não, remonta a
62 Depoimento do senhor Fabiano Flumian, engenheiro agrônomo da Associação dos Cafeicultores de Araguari, no dia 26/07/2006. 63 Discurso publicado no Informativo ACARPA, junho/2006, ano II, n.º 14.
254
uma busca constante pela modernização, assim como por maior inserção em alguns setores,
principalmente dentro das políticas agrícolas ou no alcance que estas possam ter.
A busca pela melhoria da qualidade da produção assim como da produtividade parece
se constituir o principal objetivo do setor. Nesse sentido, os produtores participam de alguns
eventos promovidos e organizados pelas associações, a fim de conhecer as novidades do
mercado, se inteirar das pesquisas recentes e mesmo saber como andam os projetos para o
setor. Para impulsionar e atender os objetivos deste grupo o número de empresas que
aprimoram, criam, expõem e comercializam seus produtos em feiras e seminários sobre o café
é bastante variado. Entre as principais atividades na região do Cerrado estão os trabalhos de
campo oferecidos pela Associação dos Cafeicultores de Carmo do Paranaíba, a Feira Nacional
de Café (Fenicafé64) organizada pela Associação dos Cafeicultores de Araguari e o Seminário
do Café do Cerrado, com palestras e atividades relacionadas às políticas agrícolas, mercado
futuro, entre outros temas que são oferecidos pela Associação dos Cafeicultores da Região de
Patrocínio. Todas estas atividades são promovidas anualmente.
As empresas que estão diretamente relacionadas a estes eventos são indústrias,
fabricantes de máquinas agrícolas como pulverizadores, arruadores, adubadeiras,
colheitadeiras, empresas que oferecem soluções em irrigação como gotejamento, garantia de
fertilidade e produtividade, controle de acidez, de pragas e mesmo empresas que promovem
concursos de qualidade da bebida do café. Marcas e empresas podem ser visitadas em seus
stands durante os eventos destinados ao setor bem como ser facilmente identificados nos mais
diferentes materiais como informativos, panfletos, folders, encontrados nas associações e
cooperativas de cafeicultores65.
A idéia da busca de novas tecnologias e conhecimento na produção aparece em
diferentes momentos como destaque entre os produtores do Cerrado Mineiro, que diante das
dificuldades impostas pelos solos da região no início de sua exploração na produção do café
“passaram a buscar intensamente apoio em instituições de pesquisa para melhor compreender
o solo e clima do Cerrado com o objetivo de conseguirem melhor desempenho econômico”66.
Esta questão da exploração do solo da região mediante a forte utilização de técnicas e
tecnologias como a da irrigação, utilização de fertilizantes, herbicidas entre outras, aparece
constantemente como uma marca do empreendedorismo de seus produtores. Em
64 No evento da Fenicafé acontecem o Encontro Nacional de Irrigação da Cafeicultura no Cerrado, que em 2008 foi o 13º, a Feira de Irrigação em Café do Brasil e o Simpósio Brasileiro de Pesquisa na Cafeicultura Irrigada. 65 Entre as principais empresas que expõem seus produtos e marcas estão: Maqnelson, Asa Arruadores, Bayer, Netafin, Fertilizantes Heringer, Naadan Irrigações, Serrana Fertilizantes, Syngenta, Produquimica e Grundfos, para citar apenas algumas. 66 CACCER. Café do cerrado: qualidade com origem certificada. [S.l.: s.n.], [200-].
255
contraposição a isto a sociedade coloca a discussão dos problemas causados ao meio
ambiente, o uso indiscriminado de produtos e mesmo a utilização das águas fluviais na
irrigação sem nenhum ônus para quem a utiliza não somente nas lavouras de café, mas na
agricultura de modo geral.
A constância com que se referem a esse espírito empreendedor, de busca de melhoria
na produção e de lucratividade remete a pensar a atividade se inserindo no contexto da
modernização da agricultura e de pensar a propriedade rural uma empresa inserida em
contexto mais amplo que o da produção familiar, a fim de atingir as demandas do mercado
internacional. Contudo, ao buscar se inserir neste mercado e atender às suas demandas, insere-
se também em questões de maior amplitude, como a utilização desmedida de recursos
hídricos, a preservação do meio ambiente, do aquecimento global entre outras67.
É na busca por atender às demandas internacionais que se justifica, por exemplo, o
Programa de Certificação do Café do Cerrado, um programa considerado pelo CACCER
como “ousado e, ao mesmo tempo, pragmático, pois procura atender as exigências de
mercado e que, concomitante, estimula o auto-aperfeiçoamento do modelo produtivo dos
cafeicultores da região”68. Este programa funciona como forma de rastrear o produto, levando
grande número de informações até o consumidor. Para se alcançar o selo de certificação deve-
se ter alguns pré-requisitos: “ser associado em condição de regularidade de uma das entidades
filiadas ao CACCER, seja Associação ou Cooperativa; a propriedade deve estar localizada na
Região Demarcada do Cerrado Mineiro”69. Ao requerer a certificação, há um formulário que é
respondido pelo produtor a fim de classificar sua propriedade em duas, três ou quatro estrelas.
Para cada um dos níveis mais exigências são feitas inclusive em quesitos como saúde,
segurança e bem-estar do trabalhador, meio ambiente e conservação, gestão e uso do solo,
entre outros que são considerados relevantes para determinar se uma propriedade pode ou não
receber a certificação.
Embora pareça, este programa, assim como as demais tecnologias e formas de
inserção no mercado externo, não são adotados de forma homogênea, mas observa-se que se
67 Nesse sentido observa-se que falar deste assunto é obrigatório ainda que pouco venha significar em termos de atuação efetiva. É o que se tem no trecho do texto da Associação dos Cafeicultores de Araguari referindo-se ao meio ambiente: “Durante o todo o ano a associação orienta todos os cafeicultores a trabalharem de forma sustentável tentando cada vez mais otimizar processos, garantindo a sustentabilidade da produção.As emissões de Gás Carbônico (CO²) emitidas para a atmosfera em decorrência da FENICAFÉ serão contabilizadas e neutralizadas com o plantio de árvores nativas. Esperamos dar o exemplo para todos os envolvidos diretos ou indiretos, para que trabalhem cada vez mais viabilizando o futuro, e garantindo condições de conservação do planeta Terra”. Disponível em: <www.aca.com.br/fenicafe>. Acesso em: 16 maio 2008. 68 PROGRAMA de Certificação do Café do Cerrado. Carta aos Produtores, fev. 2005. p. 1. 69 Idem. p. 11.
256
tem a perspectiva de se fazer do produtor um empresário totalmente inserido no agronegócio,
voltado para questões mais amplas do mercado nacional e internacional. Em geral, os
produtores de maior porte é que procuram se adequar e adotar novas formas de produção e
produtividade, enquanto grupos de pequenos produtores permanecem à margem destas
iniciativas, compondo com algumas e se mantendo a distância de outras, por falta de recursos,
de perspectivas ou mesmo por opção de continuarem com seu método “particular” de
produção, não aderindo a esses programas, o que não significa também que estejam
desprovidos de qualquer vantagem direcionada ao setor ou que permaneçam totalmente à
margem das estratégias e dos processos nos quais se inserem grandes produtores por meio de
suas instituições. Ocorre que, os órgãos que representam ou associam esses produtores
procuram elaborar estratégias para que o maior número possível de produtores se adéqüe aos
novos programas a fim de intensificar e promover a marca “Café do Cerrado”, mas esses
objetivos nem sempre se constituem em anseios de todo o grupo, ressaltando-se assim, as
divergências que existem internamente.
Embora seja possível observar que uma das marcas registradas da atividade é o
investimento dos mais variados recursos públicos de forma a atender ou amenizar as
“dificuldades” do setor, é presente entre a categoria dos produtores um verdadeiro rosário de
reclamações sutilmente reveladas e aceitas entre esse grupo de que a cada ano tem maiores
prejuízos na produção, não alcançam os objetivos financeiros e produtivos desejados como se
pode ler no trecho da matéria “Safra do café só cobre custos de produção”:
Apesar de este ano a safra ter sido considerada boa e a cotação das sacas estar em alta no mercado mundial, o que pode prejudicar é o câmbio brasileiro. Nem mesmo a safra que deve bater as quatro milhões de sacas vai poder reembolsar todo o prejuízo dos cafeicultores nos últimos quatro anos. “O problema é que o produtor deveria, este ano, fazer caixa para a safra do ano que vem, que naturalmente será mais fraca. Mas mal conseguimos empatar os lucros com os custos de produção, apesar de o preço do café estar razoável em dólar”.70
A perspectiva de obtenção de lucros para além do que se tem alcançado parece ser a
pauta de quase todas as matérias e queixas dos produtores que aparecem em inúmeras
entrevistas em diferentes meios de informação. Como se observa, na matéria citada, a
produtividade foi considerada satisfatória, o preço do produto em dólar é tido como
“razoável”, mas sob a ótica dos produtores ainda não é possível obter o capital para
70 SAFRA do café só cobre custos de produção. Entrevista com o presidente do CACCER. Correio de Uberlândia, Uberlândia, 09 set. 2006.
257
investimento na lavoura no próximo ano. Essa máxima da “crise no setor” está muito presente
também nos informativos e discursos dos cafeicultores, de suas associações, cooperativas e de
seus representantes. Nesse aspecto o depoimento de Fabiano Flumian, engenheiro agrônomo
ligado à cooperativa dos cafeicultores de Araguari, vai de encontro ao discurso corrente:
A cafeicultura vem arrastando dívidas é..., ao longo de seis anos passados, porque o café veio abaixo de cem dólar. E hoje a atividade da cafeicultura, o produtor tem que vender o café, no mínimo, no mínimo a cem dólar, pra poder conseguir e arcar com as despesa que o café gera né? [...] e o pessoal vem carregando dívidas e com isso veio a secutização e veio o alongamento. Secutização que são dívidas que são renegociadas e ele vai, vai pagando o juro e a parcela mediante o prazo determinado pelo governo federal. Então seria catorze ou 25 anos a prorrogação dessa dívida. Então tem as duas modalidade. Secutização e o alongamento71.
A constante crise enfrentada pelo setor remete a analisar esta crise como uma das
razões que leva o setor a buscar a redução dos custos de produção a partir da precarização das
relações de trabalho e dos baixos salários pagos ao trabalhador. O tema “crise” parece se
constituir numa forma de estabelecer alguns diálogos em nível de Estado e procurar atender
suas exigências apontando-se para os benefícios que a cafeicultura traz para a sociedade ao
empregar um considerável número de trabalhadores considerados mão-de-obra não
qualificada como já se discutiu.
Como se pode observar, o setor produtivo possui uma estruturação e organização
bastante atuante e forte, cujos interesses são apresentados e discutidos com o apoio e a partir
de suas associações e, é neste contexto que se inserem os trabalhadores e suas reivindicações,
com suas experiências e tendo que dialogar com tais instâncias utilizando suas armas e seus
conhecimentos e, diante destas formas de organização os trabalhadores também desenvolvem
as suas. Um dos exemplos nesse sentido é que ao serem contratados nas fazendas e, para
acordarem os valores a serem pagos, os trabalhadores realizam uma espécie de teste,
conforme registrou o senhor Jailson em seu depoimento.
Em algumas fazendas a gente faz teste, né? Trabalha sem preço, trabalha uns três dias, às vezes chega até uma semana mesmo trabalhando sem preço. Aí ele [o empregador] analisa assim, vê quem tira mais produção para dar o preço. Aí acaba prejudicando aqueles que não tem prática, né, que foram pela primeira vez. Ele analisa faz uma média pro aquele que colheu mais e acaba prejudicando aquele que não tem prática, que colheu menos. Eles analisam isso. A gente às vezes até combina pra não tirar
71 Entrevista com o senhor Fabiano Flumian, engenheiro agrônomo da Associação dos Cafeicultores de Araguari, na sede da associação no dia 15 de julho de 2006.
258
bastante produção, entre nós, pra não prejudicar aqueles mais fraco de produção. Esse ano mesmo a gente fez isso lá nessa fazenda.72
Diante da tentativa de controle do valor pago aos trabalhadores vê-se que estes
desenvolveram suas formas de lidar com a situação e também de tentar não prejudicar aqueles
que não possuem experiência na atividade, remetendo à solidariedade que também parece ser
uma constante entre os trabalhadores do mesmo grupo ou da mesma região. Estas práticas
elaboradas pelos trabalhadores, pode-se pensar, dialogam, principalmente, com as também
práticas elaboradas pelos produtores e indicam que na relação de forças ambos os grupos
apresentam suas ações embora o trabalhador seja aquela cuja força parece estar menos
aglutinada e, por isso, é mais restrita ao espaço de trabalho onde está inserido.
72 Depoimento do senhor Jailson Araújo, 22 anos, em entrevista realizada no dia 22 de julho de 2007, numa tarde quente de domingo na residência de seus pais.
259
5.4 “Conciliações” das relações de trabalho
Adentrar o sistema organizacional do setor cafeeiro possibilita conhecer parte dos
poderes que o grupo possui, mas também, auxilia compreender como parte das relações
trabalhistas é estabelecida e como os trabalhadores são pensados pelo setor. A preocupação
com a presença dos trabalhadores parece se restringir à redução dos custos e à tentativa de
evitar litígios trabalhistas: “para sua garantia faça o acerto de todos os seus funcionários no
Núcleo Intersindical”73. Esta “sugestão” presente na Carta aos produtores remete ainda aos
“problemas” trabalhistas enfrentados por alguns, o que leva a crer na quantidade de
irregularidades presentes nas relações ali estabelecidas em momentos anteriores e mesmo
atualmente.
As questões relacionadas aos conflitos entre trabalhadores e empregadores são
freqüentes em qualquer que seja o lugar ou atividade. No campo estes conflitos se
intensificaram principalmente desde a instituição da legislação de 1960 que possibilitou ao
trabalhador rural ter acesso a alguns direitos a partir da relação de trabalho como já acontecia
aos trabalhadores urbanos.
Nas áreas onde se tem a grande utilização de mão-de-obra temporária, os conflitos
também são crescentes na medida em que os trabalhadores passam a conhecer melhor as suas
possibilidades de reivindicação, ou passam a ter notícias de outros trabalhadores que
pleitearam judicialmente seus direitos.
Este comportamento de reivindicação não é consenso entre parte dos trabalhadores
locais pesquisados anteriormente. Para muitos deles, é uma decisão difícil porque implicaria
ter suas oportunidades de trabalho futuras comprometidas pelo histórico de acionar a justiça
em algum momento para solucionar uma questão pendente em relação ao seu empregador.
Para outros é uma oportunidade que se deve recorrer para não deixar para trás o que
conquistou, embora esta conquista não seja reconhecida pelo empregador. Entre os
trabalhadores que tem no trabalho temporário na lavoura uma forma de sustento de sua
família, o risco de acionar a justiça do trabalho em busca de direitos não recebidos,
normalmente é maior, como revelaram alguns entrevistados: “Mas é o seguinte, o trabalhador
73 ACARPA. Carta ao Cafeicultor. Patrocínio, maio 2006.
260
que seja por exemplo, o gato, o gato que leva um fazendeiro na lei fica difícil pra ele pegar
serviço mesmo, porque o povo já num tem aquela confiança nele, né?”74.
Durante algum tempo, a denominada lista negra parecia ser mais temida entre os
trabalhadores. Pode-se pensar nesta questão a partir dos valores que estes trabalhadores
assumem em determinadas circunstâncias. Em outro momento, o medo de compor a lista
negra estava diretamente ligado ao fato de ver dificultado o acesso ao trabalho em situações
futuras, uma vez que os empregadores também faziam circular os nomes daqueles que haviam
impetrado alguma ação trabalhista contra os de seu grupo. Havia, entre os trabalhadores,
então, uma preocupação com o seu futuro na atividade. Apenas aqueles considerados mais
ousados tomavam a decisão de reivindicar seus direitos ou procuravam o sindicato em busca
de informações e de como proceder em determinadas situações75.
Atualmente, o número de ações de trabalhadores rurais parece ter aumentado
consideravelmente. Por um lado, devido à difusão das informações de como fazê-lo entre os
trabalhadores e, por outro, tem-se que estes trabalhadores parecem estar menos receosos em
relação ao futuro. Talvez estejam prevalecendo as perspectivas que estes sujeitos possuem
sobre o seu presente, muito mais que em relação ao futuro, portanto de sanar suas
necessidades mais imediatas que podem ser atendidas a partir de ações e reivindicações
judiciais. Mas, a pesquisa leva a crer que a possibilidade de mover ações trabalhistas está
muito mais ao alcance dos trabalhadores locais que dos trabalhadores de fora, uma vez que
esta é uma situação que envolve permanecer mais tempo na região em busca de defesa de seus
direitos e, nas condições em que permanecem na região, tal situação tornaria ainda mais
onerosa sua estadia, sem falar nos riscos de não se conquistar o esperado. Esta pode ser uma
das razões pelas quais os trabalhadores de fora são percebidos como sujeitos que se
encontram à mercê dos produtores e que aceitam as condições que lhe parecem impostas.
Mas, estes grupos estão dialogando não somente com os produtores de café, mas também com
as suas possibilidades com o retorno breve para casa.
Embora estes indivíduos se envolvam menos diretamente com as ações trabalhistas
observou-se que diante do crescente número de ações trabalhistas referentes às atividades
rurais em algumas cidades da região e, em especial na cidade de Patrocínio, a partir do ano de
74 Depoimento do senhor Francisco Alvarenga, 43 anos, concedido em sua residência na cidade de Araguari no dia 13 de fevereiro de 2000. 75 Parte desta discussão foi apresentada quando da análise da inserção dos trabalhadores locais na produção cafeeira. CARMO, Maria Andréa Angelotti. Lavradores de Sonhos: saberes e (des)caminhos de trabalhadores volantes, 1980-2000. São Paulo: EDUC, 2006.
261
1994 os produtores e trabalhadores passaram a contar com a atuação do NINTER (Núcleo
Intersindical de Conciliação Trabalhista Rural) que
Funciona como pessoa jurídica de direito privado e sem fins lucrativos. Tem caráter supra-sindical e composição partidária em relação a todos os órgãos. É integrado por um conselho Tripartite (Sindicato Rural de Patrocínio, Associação dos Cafeicultores da Região de Patrocínio e Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Patrocínio) que é a instância máxima de deliberação: uma diretoria executiva administrativa, uma Seção Intersindical e um Conselho de Arbitragem.76
Esta é uma instituição pioneira no país e a partir da qual outras experiências vêm
sendo implementadas em diferentes setores de atividades no país, como o de Contagem-MG,
de Araguari-MG, de Maringá-PR, entre outras cidades. O Núcleo da cidade de Patrocínio foi
idealizado pelo então juiz titular da Vara do Trabalho de Patrocínio Antônio Gomes de
Vasconcelos, homenageado quando da inauguração da sede própria do Núcleo de Patrocínio
em setembro de 2006, passando o Núcleo a ser denominado “Núcleo Intersindical de
Conciliação Trabalhista Rural Dr. Antônio Gomes de Vasconcelos”. De acordo com seu
idealizador o NINTER tem como principal objetivo:
Criar um espaço de interação entre agentes do poder público e os sindicatos, buscando diagnosticar, solucionar e promover ações conjuntas para resolver problemas locais que dizem respeito à efetividade da legislação trabalhista e sua adequação à realidade local, com o que abre espaço, seguro e imparcial, de diálogo entre o juiz e a sociedade, no qual é visto como participante e colaborador da comunidade na busca de solução para os problemas sociais que lhe dizem respeito.77
Embora, após doze anos de atuação do Núcleo, a sua função primeira ganhe retoques
de uma ação conjunta, quase sem conflitos, sabe-se que uma das principais motivações para a
criação do NINTER Patrocínio foi o agravamento dos problemas trabalhistas na região onde é
maciça a presença de trabalhadores temporários nas lavouras, e nesse conjunto, o contingente
de contratados de outros estados chegavam a representar 50% da mão-de-obra, conforme
aponta Zanetti:
O fato de os trabalhadores serem, em sua maioria, trabalhadores temporários, em grande parte (pelo menos 50%) migrantes de outros estados e, portanto, com contrato de trabalho de poucos meses, ajuda a
76 FERREIRA, Rômulo Gama. Agricultura familiar e inovações tecnológicas: impactos sobre a ocupação e o êxodo rural nas microrregiões de Patos de Minas e Patrocínio-MG. 2004. Dissertação (Mestrado)- Instituto de Economia, universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2004. p. 69. 77 JUIZ do Trabalho é homenageado em Patrocínio. Notícias do Tribunal Regional do Trabalho, 3ª Região 02 ago. 2006. Disponível em: <http://as1.trt3.jus.br/pls/noticias>. Acessado em: abril 2008.
262
entender a implementação do programa, mas não pode ser considerado a única e nem a mais importante justificativa da existência do NINTER. O ponto de partida do NINTER foi o agravamento dos problemas trabalhistas locais. As dificuldades de busca individualizada de soluções levou o Sindicato de Trabalhadores Rurais e o Sindicato Rural, entre julho e agosto de 1994, a procurarem uma solução conjunta para problemas que repercutiam negativamente na comunidade. Logo no começo do processo, houve o convite à Justiça do Trabalho local, que garantiu sua participação.78
O Núcleo Intersindical de Conciliação Trabalhista se diferencia das Comissões Prévias
de Conciliação. Estas Comissões se tornaram possíveis em diferentes áreas de trabalho, rural
ou urbano, nas atividades comerciais ou industriais, a partir da Lei 9.958/00 que acrescentou à
Consolidação das Leis Trabalhistas os artigos 625-A a 625-H, autorizando as empresas e os
sindicatos a instituir as Comissões de Conciliação Prévia, conforme se tem no texto do artigo
e seu parágrafo único:
Art. 625-A - As empresas e os sindicatos podem instituir Comissões de Conciliação Prévia, de composição paritária, com representantes dos empregados e dos empregadores, com a atribuição de tentar conciliar os conflitos individuais do trabalho. Parágrafo único - As Comissões referidas no caput deste Art. poderão ser constituídas por grupos de empresas ou ter caráter intersindical.79
A lei acabou por instituir mais uma forma de mediação entre trabalhadores e
empregadores na resolução de seus conflitos, as Comissões. Transferiu para a Comissão de
Conciliação Prévia autoridade sobre encaminhamentos e soluções anteriormente cabíveis
apenas à Justiça do Trabalho, conforme se tem no parágrafo 625-E, no qual se lê:
Art. 625-E - Aceita a conciliação, será lavrado termo assinado pelo empregado, pelo empregador ou seu preposto e pelos membros da Comissão, fornecendo-se cópia às partes. Parágrafo único - O termo de conciliação é título executivo extrajudicial e terá eficácia liberatória geral, exceto quanto às parcelas expressamente ressalvadas.80
Pode-se interpretar a partir da publicação da referida lei que a Justiça do Trabalho é
considerada e amplamente criticada por sua morosidade, assim como por ainda contar com
uma legislação “arcaica” para o nível das relações trabalhistas contemporâneas, mas em lugar
78 ZANETTI, Lorenzo. Núcleo Intersindical de Conciliação Trabalhista – Patrocínio/MG. In: FUJIWARA, Luis Mauro; ALESSIO, Nelson Nouvel; FARAH, Marta Ferreira Santos (Org.). Programa Gestão Pública e Cidadania. São Paulo: FGV/EAESP, 1999. p. 04. 79 Lei nº 9.958 de 12/01/00, acrescentada à CLT, p. 105. 80 Idem. p. 106.
263
de se repensar tal situação ela é poupada de receber novos processos, alegando-se maior
agilidade na resolução dos conflitos nas Comissões Prévias que acabam atribuindo aos
trabalhadores e sindicatos, principalmente, a responsabilidade na solução das demandas.
O Núcleo Intersindical em questão também foi idealizado com esta finalidade e, no
quadro abaixo tem-se alguns dados sobre a ação do Núcleo entre os trabalhadores com os
números de casos atendidos, os casos solucionados e os casos encaminhados à Justiça do
Trabalho. Vale mencionar que os casos atendidos, são, em sua grande maioria, rescisões
contratuais realizadas junto ao Núcleo conforme orientação da Associação dos Cafeicultores
de Patrocínio aos seus associados.
Ano Casos atendidos
Casos solucionados
Casos encaminhados à Justiça Trabalhista
199481 2.226 2.226 0 1995 9.475 9.236 239 1996 12.582 12.392 191 1997 9.812 9.745 67 1998 10.748 10.698 50 1999 10.035 9.900 135 2000 8.588 8.406 182 2001 6.845 6.750 95 2002 7.648 7.502 146 2003 7.517 7.389 128 2004 7.042 6.978 64 2005 8.248 8.119 129
200682 990 965 35 Quadro 12: Número de casos atendidos no NINTER – 1994-2006 Fonte: Relatório de Atividades do NINTER, agosto 2006.
A análise destes dados permite observar que desde o ano de fundação até o início da
década de 2000 houve um grande número de casos atendidos levando a crer que o número de
trabalhadores na lavoura era maior que o que se tem a partir de então, ou que o número de
rescisões contratuais realizadas junto ao Núcleo eram bem maiores que nos últimos anos.
Talvez seja possível cruzar estes dados também com o crescimento da colheita mecanizada e
por isso a diminuição do número de contratações e, conseqüentemente, do número de
requerentes junto ao Núcleo conforme narrou o senhor José Humberto:
81 Os dados do primeiro ano de atuação do Núcleo correspondem apenas aos casos atendidos entre os meses de outubro e dezembro. 82 Os dados de 2006 correspondem apenas aos casos atendidos entre o intervalo dos meses de janeiro e junho.
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Teve uma queda brusca no número de casos de rescisão contratual feita aqui no Núcleo porque a máquina invadiu a lavoura e passou a depender menos de mão-de-obra. A queda foi em torno de trinta a quarenta por cento e agora está estabilizado83.
Tem-se que nem todos estes casos atendidos são, de fato, questões trabalhistas
conflituosas, sendo o Núcleo o organismo mais procurado pelos empregadores para realizar o
acerto final dos trabalhadores e não mais o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Patrocínio
conforme mencionaram a senhora Ênia Mendes e o senhor José Humberto de Faria em seus
depoimentos.
A partir dos dados referentes aos números de casos atendidos mensalmente, tem-se
que os meses de maior procura estão entre agosto e outubro, período em que o trabalho na
safra do café se encaminha para a finalização e, portanto, o número de rescisões e de
reclamações de direitos aumenta vertiginosamente. Como exemplo, pode-se analisar o ano de
1996, quando se registra o maior número de casos atendidos, sendo que somente no mês de
agosto recebeu 1.994 casos, em setembro 2.666 e em outubro 3.383, totalizando 8.043 casos
dos 12.583 atendidos e encaminhou para a Justiça do Trabalho nesses meses 191 situações.
Pelos dados e documentação obtida junto ao Núcleo, não se tem como afirmar o número de
trabalhadores de fora que têm seus contratos rescindidos junto a esta instituição, embora sua
presença seja ali constante. A região de Patrocínio é marcada pelas grandes fazendas de café
e, na grande maioria, possui uma melhor estrutura de alojamento, do mesmo modo em que a
assinatura do contrato de trabalho em carteira parece estar mais acessível aos trabalhadores
devido aos enfrentamentos jurídicos conforme afirmou o senhor José Humberto em seu
depoimento.
Aqui tem fazenda que chega a empregar duas mil pessoas como essa que é da loja de produtos agropecuários e é tudo com carteira assinada e faz rescisão aqui84.
O Núcleo Intersindical de Conciliação Trabalhista Rural de Patrocínio é um típico
exemplo de como poupar a Justiça do Trabalho de suas funções, retirando do trabalhador o
direito constitucional de ter suas questões resolvidas pelo poder judiciário. Nesse sentido,
83 Depoimento do senhor José Humberto de Faria, representante dos empregadores no Núcleo, em entrevista coletada no dia 14/07/2006 onde contava com a presença do representante dos trabalhadores José Tarcísio Cândido. 84 Idem.
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tem-se abaixo uma das críticas formuladas às Comissões Prévias de Conciliação que podem
ser pensadas também para o Núcleo de Conciliação.
Pode até parecer exagero para alguns, mas esta lei levará o trabalhador a abrir mão de seu direito constitucional de ter sua demanda analisada e resolvida pelo Poder Judiciário (novo art. 625D, caput, da CLT), e o que é pior, sem assistência de um advogado (vide o novo art. 625-D,§ 1º, da CLT) terá suas ações trabalhistas julgadas por uma Comissão de Conciliação estruturada, financiada e mantida pelo empregador, na medida em que as Comissões funcionarão nas sedes das empresas.85
Pode-se observar que a legislação trabalhista, se por um lado, parece arcaica e é
extremamente morosa, por outro está altamente em sintonia com as questões relacionadas às
flexibilizações das relações do trabalho, na medida em que permite uma comissão de
conselheiros decidirem sobre os conflitos e questões trabalhistas. Vale notar que a lei que
autoriza a criação das Comissões Prévias de Conciliação é a mesma que permite a
interpretação da legitimidade do Núcleo Intersindical de Conciliação Trabalhista, mas estas
organizações são consideradas como tendo caráter diferenciado: as Comissões seriam
responsáveis e atuariam na resolução dos conflitos e o Núcleo seria um órgão cuja ação
estaria voltada à prevenção destes conflitos. Contudo, a observância dos dados relacionados à
atuação do NINTER de Patrocínio é algo que impressiona pelo montante que representa.
Desde a sua criação em 1994 o NINTER “atendeu a 101.526 casos e solucionou 100.077. O
impacto na Vara do Trabalho de Patrocínio significou 98,5% de redução no índice de
demandas oriundas do setor rural”86. Assim, não se vê a efetividade da prevenção dos
conflitos, de forma a favorecer a garantia dos direitos dos trabalhadores, mas uma forma de
evitar o registro dos conflitos a fim de garantir a sua credibilidade e, ao mesmo tempo, poupar
o envio à Justiça do Trabalho um grande número de casos. Na verdade, o Núcleo considera
como casos, todos aqueles que o procuraram para simplesmente realizar a rescisão de contrato
de trabalho, seja ele realizado em carteira de trabalho ou não. Parece ser, na verdade, uma
tentativa de legitimar sua ação e sua existência. Qual a diferença, então, entre a rescisão
efetivada anteriormente junto ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais e no Núcleo?
Ao que parece no Sindicato o empregador era ouvido, mas em geral, as questões eram
tratadas de forma a garantir os direitos dos trabalhadores. No caso do Núcleo, observa-se que
85 CAVALHEIRO, Adriano Espíndola. As Leis 9.957/00 e 9.958/00. (Rito Sumaríssimo e Comissão Prévia). 05 fev. 2000. Disponível em: <http://forum.jus.uol.com.br/discussao>. Acesso em: 1 maio 2008. 86 Dados do NINTER divulgados na matéria JUIZ do Trabalho é homenageado em Patrocínio. Notícias do Tribunal Regional do Trabalho, 3ª Região 02 ago. 2006. Disponível em: <http://as1.trt3.jus.br/pls/noticias>. Acessado em: abril 2008.
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os empregadores ganharam estatuto e poder no momento da negociação, pois os
representantes das partes, embora pareçam estar em igualdade, está numa relação de
subordinação, sendo o representante dos trabalhadores alguém muito afinado com o discurso
do representante dos empregadores, o que remete a pensar em uma ação muito pouco
paritária.
Durante a entrevista realizada com os dois membros do Núcleo Intersindical observei
que o nível de argumentação do representante dos empregadores era superior ao do
representante dos trabalhadores que pouco intervinha na conversa e opinava apenas quando
era questionado diretamente. Uma vez mais, a relação empregador-trabalhador de forma
alguma está encontra-se no patamar de igualdade.
É nesse campo de forças que se inserem os trabalhadores temporários das lavouras de
café da região do Triângulo Mineiro e do Alto Paranaíba, seja eles locais ou não, cujas
estratégias tem se estabelecido frente a esse contexto de organização dos produtores, mas que,
em busca de seus interesses e objetivos enfrentam o trabalho temporário como um recurso a
mais para sua vida dialogando não somente com o local específico do trabalho, mas com o seu
local de origem para o qual desejam e retornam a cada ano, após conseguirem ao menos parte
do que pretendiam no começo de suas viagens.
Considerações Finais
Ao longo das últimas décadas o campo brasileiro e as relações sociais ali estabelecidas
passaram a ter novas configurações. O próprio meio rural passou a ser espaço de atividades
diversas e variadas, onde se reúne uma multiplicidade de atores sociais e não é somente o
local da produção agropecuária. Estamos diante de uma nova forma de se pensar também o
homem no campo, assim como as relações que ali se estabelecem. No âmbito destas
transformações, das redefinições das formas capitalistas no campo, o trabalhador é um dos
sujeitos que têm a dimensão de sua atuação modificada de maneira mais significativa.
A agricultura intensiva, especialmente, tem sido um dos fatores desta alteração, uma
vez que a cada dia, registra-se o aumento, neste tipo de atividade, do recrutamento de mão-de-
obra sazonal e temporária, acerca da qual se faz necessário discutir a intensa desvalorização
dos trabalhadores, participantes do processo produtivo da agricultura brasileira, a precarização
das relações estabelecidas, bem como sua intensa exploração na medida em que, para manter
a si próprio e à sua família, o trabalhador procura intensificar ao máximo sua produtividade a
fim de alcançar seus objetivos de ganhos1.
Do mesmo modo, os homens e mulheres que residem e vivem neste ambiente tiveram
suas perspectivas modificadas, tiveram que adaptar-se a um novo modo de se relacionar e
morar no campo, ora incorporando hábitos, ora reformulando outros, e observando as
mudanças ocorridas em diferentes áreas do país em que o campo deixou de significar a falta
de acesso a serviços públicos como escolas, atendimento médico e outros. Na região do
cerrado mineiro, esta realidade de transformações também se faz presente, a produção do café
alcançou, nas últimas décadas, índices elevados de produção e comercialização, associando-se
a utilização de tecnologia moderna, a mecanização de grande parte do processo produtivo e, a
intensa utilização de mão-de-obra no período da safra. Ao longo da pesquisa pude observar
que esta mesma produção tornou possível relações sociais que se diferenciam das vividas em
períodos anteriores, com a constante presença de trabalhadores temporários, com uma intensa 1 Esta discussão é bastante atual, e a sociedade tem sido noticiada sobre o falecimento de um número cada vez maior de trabalhadores temporários, especialmente, nas lavouras de cana-de-açúcar, devido ao trabalho excessivo, conforme se pode ler na matéria do Jornal O Estado de São Paulo de 31 de março de 2007, caderno B10: “morte pode ter sido causada por excesso de esforço físico”. A característica desse trabalho em que o trabalhador é pressionado a produzir tem levado à discussão da diminuição da vida útil do trabalhador que está sendo comparada à do período da escravidão que girava em torno de 12 anos. Conforme pode-se ler na matéria “Cortadores de cana têm vida útil de escravo em São Paulo. Folha de São Paulo, 29 de abril de 2007, p. B1 e B3.
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exploração dessa mão-de-obra que, passou a ocupar a região durante a colheita do café de
maneira provisória, muitas vezes, sem a relação de trabalho formalizada, contando apenas
com a “palavra” do fazendeiro.
A compreensão do processo de inserção de grupos de homens e mulheres da região
Nordeste da Bahia nas lavouras cafeeiras do cerrado mineiro foi possível ao considerar não
somente as atividades laborais em que se inseriam os indivíduos, mas a partir da expectativa
de considerar o seu cotidiano não como algo estritamente novo, mas como novos os sentidos
que os agentes sociais desse processo imprimem ao experimentar suas ações como lutas,
disputas, resistências e diálogos. A princípio, observar a presença daqueles sujeitos nas
atividades da safra na região permitia apenas enxergar indivíduos expulsos de uma
determinada área em busca de algum rendimento em outra, como se a presença deles ali fosse
o cerne do entendimento de sua inserção na região, mas esta limitação foi logo sendo
abandonada com o desenvolvimento da pesquisa e com as análises dos depoimentos
coletados.
A pesquisa fez emergir a forma como os trabalhadores chamados “migrantes” são
percebidos na região produtora de café, uma formulação a partir da qual os sujeitos
encontravam-se acuados mediante sua condição social em seu local de origem e provocava
uma certa desordem ao ocupar os postos de trabalho das pessoas da região. Esta imagem
implicava em não permitir olhar para os indivíduos de outra forma que não fosse pela sua
precariedade e sentido de invasão do espaço do outro. Mas, compreender a inserção destes
sujeitos na dinâmica da produção cafeeira trouxe à tona um modo de viver cujas questões do
cotidiano e do dia-a-dia do trabalho estavam repletas de seus valores, de suas análises, de seus
questionamentos e das suas perspectivas, não somente em relação ao trabalho temporário no
qual se inseriam, mas também em relação ao seu viver na região Nordeste da Bahia.
Os significados do trabalho temporário expressos nas narrativas e depoimentos foram
apresentados com suas reflexões e análises do cotidiano e sua experiência na região baiana,
mas não eram compreensíveis se tomadas e analisadas apenas no local da chegada, visto que o
processo no qual se inserem estes grupos é um movimento pendular, no qual o retorno é certo.
Portanto, o diálogo que estes sujeitos estabelecem possui o seu ponto de partida, o local de
origem, a partir do qual suas demandas são pensadas, suas perspectivas são traçadas e as
disputas são postas. Assim, parte dos significados que o trabalho temporário possui para estes
sujeitos não é o mesmo para outros de outras regiões ou para os trabalhadores locais. O modo
como estes indivíduos lidam com os enfrentamentos relacionados ao desenvolvimento da
atividade também é diferenciado da maneira como os trabalhadores locais pensam e agem,
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pois, para os grupos de fora, as dificuldades encontradas, os problemas com a formalização da
relação de trabalho, os valores ganhos e as negociações são realizadas a partir de uma
demanda que pondera as suas realidades e as suas perspectivas que estão diretamente
vinculadas ao retorno para casa e sua região. Assim, os trabalhos nas lavouras de café e todas
as suas implicações: as dificuldades encontradas, as disputas colocadas, a articulação das
associações de produtores, e toda a gama organizativa que envolve o setor cafeeiro, não
podem ser compreendidas tão somente no âmbito dos conflitos trabalhistas, embora seja ali
que elas mais atuam, como se os trabalhadores estivessem a mercê de uma determinada forma
de ação por parte dos grupos de empregadores, fazendeiros e outros trabalhadores. As
respostas, as estratégias elaboradas por estes trabalhadores também não podem ser
comparadas com a de outros temporários, pois devem ser pensadas como ações que não se
restringem ao momento ali vivido, mas com o que já se experimentou e o que se pensa
enquanto futuro, devem ser analisadas a partir da esfera de ambições e das vivências que estão
postas no local de origem e no local do trabalho, o que corresponde a pensar estes sujeitos
como pessoas que possuem uma história que não se inicia com a chegada nas lavouras de
café, e cuja cultura está situada não apenas em significados, atitudes, valores, hábitos, mas no
lugar material que lhe corresponde.
As agruras que envolvem o desenvolvimento das atividades também não devem ser
pensadas como espaços onde se visualiza o sofrimento, e um certo caráter de predisposição ao
sofrimento, mas sim como a possibilidade que o sujeito utiliza para agregar valores, construir
saberes, em um movimento que não está centrado na lavoura de café, mas na sua disposição
de retornar para casa, rever o seu grupo familiar e social e, ali manter-se como parte da terra,
sem ter que deixá-la ou abandoná-la em busca de um outro local para se instalar com a
família. A forma como os indivíduos elaboram estratégias para desempenhar bem as
atividades é dialoga não somente com a necessidade imposta pela atividade e a manutenção
no trabalho, mas com o anseio de retornar tendo alcançado seus objetivos. O desenvolvimento
das atividades da safra do café implica então, em desenvolver habilidades e em conseguir se
integrar e compor um bom grupo de trabalho.
As relações que os indivíduos estabelecem dentro de um grupo passam pelas questões
ligadas ao desenvolvimento das atividades no campo, ao desempenho das atividades no
alojamento e, também em obter um ambiente favorável à permanência no local de trabalho,
uma vez que a distância de casa, os embaraços e os obstáculos enfrentados são numerosos.
Estabelecer relações intra e externa aos grupos, com os comerciantes e moradores diversos, é
ainda favorável para o retorno em uma próxima safra, pois ao conhecer melhor a região, os
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fazendeiros ou outros empregadores de algum modo, permite que o trabalhador mude de
fazenda, escolha um outro fazendeiro para prestar seus serviços, garanta a sua permanência
temporária na região até encontrar um local para se instalar e trabalhar.
A pesquisa possibilitou observar os trabalhadores temporários nas lavouras cafeeiras
como grupos de homens e mulheres que fazem as suas opções, que dentre as possibilidades
que possuem, escolhem compor os grupos de trabalhadores temporários, não porque não têm
outras saídas ou estratégias, mas porque conseguiram, com a atividade da safra, aliar o
aumento da renda com a condição em que vivem em suas regiões. Os significados e as
representações que as viagens possuem para os trabalhadores e também para os seus
familiares passam, em alguns momentos, pelas possibilidades alcançadas com o trabalho
temporário, mas por todos os riscos que tal ação envolve, não somente durante as viagens e o
trajeto percorrido, mas pelas transformações que estas experiências acarretam naquele que
realiza tal ato como naqueles que permanecem à espera de seus filhos, pais, maridos, amigos,
enfim, pois o fato de vivenciar uma outra dinâmica de vida, de experimentar o deslocamento,
não permite que o indivíduo retorne para casa do mesmo modo, uma vez que sua ação não
fica “impune”. Empreender tal ação pode significar, para a grande maioria dos trabalhadores
estudados, a busca pela manutenção de seu local de residência, onde o trabalho temporário
possibilita pequenas conquistas e alterações no modo como aquela população vive, na forma
como passa a cuidar da terra, a tratar os animais, a lutar e defender a área da qual se sentem
parte, se identificam.
Entrar em contato com a dinâmica de vida no local de moradia dos trabalhadores
tornou possível vislumbrar os significados que o período fora de casa tem para aqueles que
ficam torcendo pelos que partiram. Ao propor que os parentes e amigos dos trabalhadores
narrassem suas histórias de vida, estes sujeitos revelaram parte de todo o processo no qual os
trabalhadores se inserem: as questões de acesso à terra, os problemas e enfrentamentos para se
manterem nas pequenas propriedades nos períodos de estiagem, assim como a forma como
alguns acabaram deixando suas terras para viver no povoado em busca de maior conforto para
a família, como o acesso à água e à energia elétrica. Compreendi um sujeito cuja dinâmica de
saída e retorno, não estava exatamente na busca por um lugar para viver, na busca de
rendimento para a manutenção de sua vida, mas na expectativa de, com um rendimento maior
e mais rápido, permanecer na sua região, com a família e toda sua rede de sociabilidade.
O modo como esta população vivencia e experimenta o seu cotidiano em seu local de
origem foi essencial para que se compreendesse estes sujeitos nos processos em que estão
inseridos. A percepção dos acontecimentos que marcaram a história da região é apresentada
271
nas narrativas de seus moradores que apontam para os eventos que, de algum modo, se
sobressaem na memória do grupo e são ressaltados em seus relatos. Ao mesmo tempo, essa
memória vem repleta de seus valores, do lugar social que ocupam, revelando, muitas vezes,
com pesos que variam entre o positivo e o negativo, os principais acontecimentos ou as suas
compreensões sobre eles e os reflexos que tiveram sobre aquela população, alterando, em
alguns casos, a condição de vida das famílias como aquelas que tiveram que deixar o campo e
passar a residir nos povoados.
A forma como os indivíduos vivenciam diferentes situações cotidianas, o acesso à
terra, as formas de trabalho na terra, os usos que se faz dela, a pequena produção, revelam
que, à sua maneira, esta população dialoga com o que parece ser determinante: a natureza.
Mas aponta para como os sujeitos são conhecedores de seu local e estabelecem com ele uma
relação de tamanha identificação que são capazes de permanecer meses vivendo em condições
subumanas para não terem que deixar suas terras. As experiências desta população ainda
foram reveladoras dos modos como estão inseridos em discussões e questões sociais amplas e
sérias como a reforma agrária, revelando que possuem organizações que propiciam o uso
coletivo da terra também como forma de garantia de condições mínimas de vida durante os
períodos de estiagem. As associações comunitárias são apenas a organização formal de suas
reivindicações que, através da luta pela legalização das áreas de fundo de pasto acaba
municiando os moradores destas áreas com possibilidades de realizarem outras reivindicações
necessárias à sua manutenção na terra como o atendimento educacional e de transporte, por
exemplo. Como se observa a cultura destes grupos é um conjunto de diferentes recursos onde
as relações de troca estão estabelecidas, como aquelas desenvolvidas entre a região das
lavouras de café e a de moradia.
No conjunto dos valores percebidos entre os trabalhadores e seus familiares o acesso à
educação formal ou a ausência dela são reveladores do modo como as populações não letradas
interpretam e dialogam com uma sociedade em que a cobrança da alfabetização é cara. Se por
um lado a educação é um objetivo, especialmente às crianças, por outro, ela não altera a vida
e a condição daquele que não a tem, não limita sua dinâmica de vida e inserção social uma
vez que outras estratégias são desenvolvidas por esta população para se expressar, reivindicar,
viver.
Ao olhar este indivíduo mais uma vez inserido na dinâmica da produção cafeeira tem-
se um trabalhador cujos conhecimentos de seus direitos estão explícitos, cujos desafios e
enfrentamentos estão postos frente aos produtores, mas suas ações e estratégias estão mais
voltadas para o seu desejo de retorno, o seu desejo de conquistar seus anseios em seu local de
272
origem. Talvez isto indique para uma utilização que estes trabalhadores fazem da lavoura de
café e das relações que ali estabelecem para conseguirem os seus objetivos.
O diálogo que estes indivíduos estabelecem entre as duas regiões está tão presente que
para os sujeitos envolvidos o caráter provisório das condições em que permanecem nas
lavouras de café, as discriminações, as explorações que sofrem se contrastam com as
condições vividas e experimentadas em sua região, onde mesmo com a falta d’água ou as
constatações da falta de uma atividade com salário continuado, entre outras questões, em
nenhum momento pareceu se constituir em um local a ser substituído pela região cafeeira ou
outra região do país, embora a movimentação de um lugar para outro pareça ser uma
possibilidade de manutenção daquele modo de viver.
Parte da compreensão da presença destes sujeitos nas lavouras de café só é possível
tendo em vista o seu local de origem, a sua sociabilidade e a sua inserção em um grupo, uma
coletividade que defende interesses comuns, ora no povoado, ora nas comunidades rurais,
cujas mudanças ocorridas ao longo dos últimos anos, não é reflexo apenas das viagens que os
mais jovens executam anualmente, mas também da disposição dos agentes sociais em lutar e
fazer com que o seu local de identidade continue a ser a sua referência e o espaço do qual
busca retirar o sustento dos seus. As organizações destes sujeitos em sua região podem, então,
ser entendidas dentro de um leque de condições e de análises destes sujeitos que colocam as
disputas na região da lavoura de café como algo ínfimo frente às lutas e batalhas que travam
no lugar onde querem permanecer, com sua cultura, seus valores, suas formas de tratar e lidar
com a terra, com a escola, com a família e outras instâncias de seu cotidiano.
Uma relação que talvez seja possível estabelecer é a inserção destes sujeitos em duas
formas de produção diferenciadas: na região de origem a produção agrícola de subsistência,
onde procuram manter uma reserva para a manutenção da família e comercializar o restante
para aquisição de outros produtos necessários ao bem estar da família; na região produtora de
café voltada para o atendimento de um exigente mercado consumidor mais internacional que
nacional, onde as relações capitalistas de assalariamento constituem a tônica do recrutamento
de trabalhadores. Apenas o sujeito que realiza as viagens consegue visualizar estas duas
realidades e fazer a sua opção em utilizar uma para manter a outra e viver com maiores níveis
de conforto e melhores possibilidades de manutenção da sua vida e da de seus familiares que
acabam atingidos, ainda que não diretamente, recebendo o dinheiro ganho, mas na
possibilidade de não necessitar dispor dos seus ganhos e sua renda para auxiliar filhos e netos.
Na dinâmica em que se vêem envolvidos estes sujeitos, tem-se que o trabalho rural, o
trabalho no campo, o lidar com a terra é, na grande maioria dos casos, o fator que permeia os
273
dois momentos da vida do sujeito. A atividade rural aparece de forma diferenciada em um e
outro local, ora os indivíduos são pequenos agricultores, proprietários de suas terras, ora
aparece como um trabalhador temporário, sem direitos, vivendo precariamente, sem nenhum
vínculo com a região de trabalho, mas esta é a opção que o sujeito faz para continuar como o
pequeno agricultor em sua região, utilizando de estratégias, de artimanhas e do conhecimento
que adquiriu ao longo dos anos no trabalho temporário, mesmo com todas as dificuldades
encontradas, para utilizar este espaço e o que ele pode oferecer para manter e permanecer no
local com o qual se identifica, no qual seus bens, sua família e todas as suas relações sociais
estão estabelecidas, sendo este ainda o espaço considerado para viver enquanto na lavoura de
café, como trabalhador temporário, tem-se apenas o espaço do trabalho, quase desvinculando
e distinguindo os dois momentos.
Diante desta dinâmica não se pode afirmar que os grupos que a experimentam estão
compreendidos nesta ou naquela categoria, não podem ser taxados como migrantes
temporários ou trabalhadores sazonais, pois no seu cotidiano, na sua demanda diária, estes
indivíduos são mais que isso, estão construindo e constituindo-se como agentes de sua própria
vida, de sua própria história, tecendo análises, realizando escolhas que se embasam na relação
com os dois momentos no qual se insere. Observar e analisar esse processo de deslocamento
temporário implica em ir além da simples referência ao “trabalhador migrante”, em perceber
que os discursos proferidos sobre este sujeito poderia não permitir reconhecer indivíduos cuja
dinâmica de vida não está toda voltada para a região de deslocamento, mas que, o
deslocamento é apenas um momento em sua experiência, cujos valores, hábitos, estão
presentes, mas cuja vida está em sua região de origem e da qual não se ouviu manifestação de
querer deixar definitivamente.
Acompanhar estes grupos de trabalhadores implica em conhecer uma dinâmica do
mundo rural em que a mão-de-obra compõe o processo produtivo, é explorada, discriminada,
em um momento, mas este mesmo indivíduo experimenta ser proprietário da terra, produzir
para sua própria subsistência, utilizando-se das possibilidades que o outro espaço pode
oferecer ainda que com todos os enfrentados.
274
FONTES
FONTES ORAIS
1. Sr. Cirso Batista – 40 anos
A entrevista foi realizada em 13/02/2000 na residência de seu amigo senhor Francisco
Alvarenga na cidade de Araguari. Na ocasião o entrevistado forneceu informações
importantes acerca da atuação dos trabalhadores volantes na região, assim como expressou
sua forma de pensar a presença dos trabalhadores “migrantes” nas lavouras de café. Narrou
suas experiências de trabalhador volante e também de mediador (gato) na região.
2. Sr. Francisco Alvarenga – 43 anos
O depoimento do senhor Francisco aconteceu em dois momentos. No dia 20/01/2000
na sede do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Araguari onde o depoente acompanhado de
sua mulher buscavam informações sobre o processo de aposentadoria para ela. Nessa
entrevista os comentários ficaram restritos aos direitos trabalhistas, aos problemas enfrentados
junto aos empregadores que, naquele período pareciam perseguir os trabalhadores que se
arriscassem a reivindicar seus direitos judicialmente. Em um segundo momento, no dia
13/02/2000, em sua residência em Araguari, foi possível coletar outras impressões. A
dinâmica de seu envolvimento com o trabalho rural temporário na região, as mudanças que
ocorreram ao longo da última década, assim como a percepção acerca dos trabalhadores
“migrantes”.
3. Sr. Lino Moraes dos Santos – 37 anos
É casado, tem dois filhos, mora em Horizonte Novo-BA, desloca-se para a região há
cerca de cinco anos. Compunha um grupo de cerca de vinte pessoas que alojava-se em uma
grande fazenda de café. Sua narrativa trata especialmente o trabalho e as relações na lavoura
cafeeira, tecendo alguns comentários acerca da sua vivência em sua região de origem.
Entrevista realizada em uma venda nas proximidades da fazenda onde trabalhava no
município de Indianópolis no dia 06/06/2004.
275
4 Sr. Manoel José de Jesus – 27 anos
É solteiro, tem uma filha, morador da cidade de Monte Santo-BA, dirige-se para a
região pelo quarto ano, mas também viaja para São Paulo em outras épocas do ano a trabalho.
O depoimento do entrevistado se atém sobre a primeira viagem que realizou para os trabalhos
na lavoura de café, assim como as dificuldades encontradas. Estava com um grupo de oito
pessoas e foi entrevistado na venda do dono da fazenda onde trabalhava no dia 06/06/2004.
5. Sr. José Ramon Alves Pereira – 28 anos
É casado, tem um filho, morador da cidade de Senhor do Bonfim-BA, é pedreiro, está
na região pela segunda vez, mas também já morou em São Paulo e nessa cidade trabalhou
como vendedor ambulante. O entrevistado revela parte de sua experiência em outras
atividades e em sua região de origem. Trabalhava em uma fazenda com mais quarenta
pessoas. Entrevista realizada na venda próxima a fazenda onde trabalhava no dia 10/07/2005.
6. Sr. Laurêncio Amador da Silva – 34 anos
Prefere ser chamado Lelê; é casado, tem uma filha, morador de Horizonte Novo-BA, é
o segundo ano que vem à região para trabalhar, tem uma banda de música “Sandrilê” e
trabalha esporadicamente em uma empresa de minério. O depoimento é revelador de sua
experiência longe de casa, da saudade que sente da filha e das relações que tece com os
demais de seu grupo. Narra sua experiência em sua região de origem, bem como alguns dos
seus valores. A entrevista foi realizada no alojamento da fazenda onde trabalhava no dia
14/08/2005.
7. Gilson Ferreira da Silva Amador – 19 anos
Aos dezenove anos estava na região pela segunda vez, é morador de Horizonte Novo-
BA; deixou os estudos para poder viajar e pretendia voltar à escola assim que retornasse.
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Estava voltando para casa no dia seguinte à entrevista, pois estava doente já fazia oito dias e
não conseguira, através dos exames que fizera, saber qual era o seu problema de saúde.
Entrevistado em 14/08/2005 no alojamento onde se instalava.
8. Sr. Eugênio Silva Amador – 30 anos
Atende pelo apelido de Geno; separado, cinco filhos, trabalha na mesma fazenda há
onze anos. É o agenciador de um grupo de seis trabalhadores, morador de Horizonte Novo-
BA, integra a banda de música “Forró Caldo de Cana”, já trabalhou também na região do
Espírito Santo na atividade de pesca. Entrevistado nas proximidades do alojamento onde se
instalava no dia 14/08/2005.
9. Sra. Carminha Barbosa de Araújo – 30 anos
Entrevistada na casa onde estava alojada no dia 16/07/2005. É casada, uma filha, mora
em Horizonte Novo-BA. É uma experiência e uma entrevista inusitada, pois não havia
encontrado registros da presença de mulheres entre esses trabalhadores. Narra que só está ali
porque o marido fora convidado a trabalhar cuidando de um viveiro de mudas de café, o
trabalho duraria cerca de oito meses e o marido só ficaria após a colheita se a mulher e a filha
também viessem para perto dele. Estavam em uma pequena casa de uma das fazendas
visitadas, somente o casal com a filha.
10. Sr. Genivaldo da Silva Santos – 24 anos
O entrevistado estava era responsável por um grupo que dividia o mesmo alojamento e
trabalhava para o mesmo produtor. Procurei, como de praxe, me apresentar, dizer um pouco
da idéia de conversar com eles, procurar saber a quanto tempo estava na fazenda e na região,
de onde era, como soube do trabalho. Estas questões possibilitaram a intensificação da
conversa da qual outros do grupo acabaram participando. Apresentaram suas impressões
sobre o trabalho, falaram de Minas Gerais, dos trabalhos em anos anteriores e em fazendas
diferentes. Demonstraram os sentimentos em relação ao seu lugar de origem, a saudade de
277
casa, do alimento preparado pela mãe, ou pela mulher. O entrevistado apontou as dificuldades
vividas no alojamento, a falta de estrutura, a alimentação preparada por eles, a roupa lavada
por cada um, enfim, apresentou como percebe e vive esse período do ano quando está longe
de casa.
Ao mesmo tempo, manifestou os significados daquilo que consegue adquirir com o
trabalho na colheita de café e a forma como é visto em sua terra natal, quando chega de
Minas. Demonstrou também que as relações ali vividas eram, em parte, satisfatórias porque os
membros de seu grupo possuíam algum grau de parentesco: irmãos e primos. O entrevistado
acabou fazendo a propaganda do trabalho no café a formou um grupo de trabalho que
permanece junto até findar as atividades naquela fazenda. Interessante notar que, entre a
maioria dos trabalhadores pesquisados, os laços que firmam antes da viagem ou o acordo que
fazem para integrar um grupo dura até o final da colheita, até o momento do retorno e, com
isso, no próximo ano, pode-se compor ou formar um novo grupo. A entrevista foi realizada
em 15/07/2006.
11. Sr. José Barbosa (Seu Béveio) – 71 anos
Entrevistado no final da tarde de domingo 06/08/2006, depois que chegara na garupa
de um motoqueiro que o trazia de um sítio e que, assim que chegara em casa, atendera um
garoto de cerca de dez anos. No final daquele domingo de trabalho Seu Béveio não se furtou
em ter uma longa conversa.
O senhor Béveio, como é chamado por todos no povoado, é o benzedor do lugarejo,
parece ser muito requisitado para trabalhos de “benzição” em sítios da região, assim como
parece participar ativamente das questões políticas do município de Monte Santo. Em seu
depoimento aparecem as questões que pensa acerca da política nacional (era início da
campanha para Presidente da República), dos partidos políticos, assim como fez questão de
dizer que era filiado ao PFL e depois mudou para o PMDB em virtude das falcatruas que
foram feitas por um prefeito daquele partido no seu município.
Em seu relato aparecem as questões das dificuldades do povoado, a falta de empregos,
as poucas atividades remuneradas, assim como a questão da escola, da saúde, do programa
federal “bolsa família”, do qual faz uma forte defesa dizendo que a maioria da população
daquele lugar vive desse rendimento, pois não há outra forma. Famílias inteiras que são
sustentadas pelo programa Bolsa Família. Apresenta, também, em seu depoimento as
278
mudanças que percebeu ao longo do tempo nas formas de viver, nos trabalhos, na produção e
ainda procura dar suas impressões sobre os “efeitos” que teve sobre o povoado as viagens dos
mais jovens para os trabalhos em Minas Gerais.
12. Sr. Fernando Araújo – 66 anos
Esta não foi a única conversa com senhor Fernando, mas foi realizada no início da
noite de domingo 06/08/2006, sentado na porta de sua casa, onde ele com a mulher
conversavam e apreciavam a movimentação dos mais jovens pelas ruas.
Senhor Fernando é pai de Carminha (que me acolheu em sua casa). É um senhor
calmo, gosta de conversar e contar as histórias do seu lugar. Está na condição de aposentado e
possui uma pequena área de terra e animais. Com muita paciência com a minha ignorância em
relação “às coisas do lugar” contou-me como foi sua vida de infância, adolescente, a
juventude pela região. Falou de trabalho, terra, animais, mudanças. Demonstrou seus
sentimentos em relação às transformações que presenciou e ao mesmo tempo, a saudade que
sentia do filho (adotivo) que naquele período estava trabalhando em Minas porque não tinha
uma ocupação que rendesse dinheiro suficiente para cuidar da família (esposa e uma filha de
dois anos). O tempo todo procurou dizer o quanto seu filho era uma pessoa honesta e
batalhadora, pois quando estava no povoado sempre estava ocupado realizando pequenas
atividades ou atendendo como cabeleireiro (cujos instrumentos e aparelhagens de seu trabalho
me foram mostrados pela irmã). O senhor Fernando aponta as mudanças ocorridas no
povoado com as viagens para Minas, pois as pessoas, segundo ele, conseguiram adquirir bens,
construir casas, comprar terrenos. Isso para ele parece refletir a qualidade de vida das pessoas
que de algum modo, dependem desse trabalho temporário.
13. Sra. Valdina de Lima de Jesus – 54 anos
A conversa com a senhora Valdina se deu na manhã de domingo 06/08/2006. Essa
conversa foi precipitada por muitas outras, mais rápidas, mas com o mesmo engajamento e
envolvimento de sua parte. Demonstrava muito carinho em conhecer alguém da região onde
estavam seu marido e dois filhos, pelos quais admitia ter grande saudade, principalmente por
um dos filhos.
279
A entrevista foi realizada no interior de sua residência com a presença de uma nora,
cujo marido estava trabalhando em Minas, e uma neta de menos de um ano de idade. A
senhora Valdina relata suas experiências de casamento, revelando que fora casada com outra
pessoa com quem tivera três filhos, entre eles uma mulher. Fala de sua preferência pelo filho
mais velho de seu segundo casamento e da relação com a única filha que mora em São Paulo
por quem manifesta grande carinho. Fala de seus problemas de saúde (que não são poucos),
das cirurgias que fez, os remédios que tem que tomar, enfim, de sua vida de mulher
trabalhadora que com o marido construiu uma pequena e charmosa casa no povoado. Relata
ainda o que é feito com o dinheiro que o marido e os filhos levam de Minas e, como vivem,
com as parcas economias, o restante do ano.
14. Sr. Jorge Cândido da Mota – 68 anos
Sra. Maria Amador da Mota – 62 anos
A entrevista havia sido precedida por uma rápida visita no dia anterior, onde procurava
me apresentar e saber como poderia abordar nossas conversas. Na tarde do domingo
06/08/2006 em sua residência gravamos a conversa.
O senhor Jorge, mais falante, relatou as vivências daquela região: as formas e relações
de trabalho de outrora, o trato com as lavouras, o cuidado com a criação, os problemas
enfrentados com roubos de reses, as dificuldades em se manter alguém tomando conta,
zelando de seus pertences: a terra e os animais.
No período da entrevista o casal contava com um filho, Guilherme, que estava
trabalhando em Minas que, por ser ainda jovem, era apontado como um desajuizado pelo pai,
um jovem que bebia muito (alcoólatra) e que não sabia o que queria da vida. O senhor Jorge
manifestou uma forte intolerância em relação a seu filho e aos jovens em geral. A senhora
Maria pouco falou, manifestou-se poucas vezes durante nossa conversa, ao contrário do que
fizera em momentos e conversas anteriores e mesmo depois da gravação.
Talvez esse posicionamento do entrevistado revele algo de sua própria vida como
pequeno proprietário, cuja casa possui estrutura e acabamento não vistos em outras casas
visitadas no povoado. Entre os moradores do local ele é tido como “bem de vida”.
No dia seguinte à entrevista Guilherme retornara de Minas. Já o conhecia de visitas
nas fazendas do Triângulo. Conversamos mas não gravamos nenhuma conversa ali no
povoado. Chamou-me a atenção que Guilherme fora me mostrar poesias e histórias que havia
280
escrito e que constavam de registros em cartório, assinaturas, carimbos, etc., também soube
que compunha algumas músicas que foram gravadas e eram tocadas nos bailes da região por
bandas de forró como o “Caldo de Cana”.
15. Sr. Jorge Amador – 59 anos
A conversa com seu Jorge foi gravada em sua casa, na pequena propriedade que
possui. Ele, sentado na janela da sala, eu e sua nora nas cadeiras da sala. Era por volta de 11
horas da manhã de domingo (06/08/06). Sua esposa, senhora Bia, estava trabalhando,
colhendo e batendo feijão na roça, por isso nesse dia não pudemos conversar.
No dia da entrevista, senhor Jorge contava com dois filhos que estavam trabalhando
em Minas. Dos dez filhos que tem, a maioria, senão todos, já havia feito a viagem algum vez
para trabalhar no café.
Com o conhecimento de um pequeno proprietário, o senhor Jorge falou de trabalho, da
terra, das medidas e valores da terra na região. Explicou-me sobre os modos de plantar,
colher, medir o feijão e o milho. Manifestou interesse em conhecer e saber o motivo real de
minha presença ali no povoado.
16. Sr. Tito de Jesus – 31 anos
Sra. Elisângela da Silva Ferreira – 24 anos
A entrevista foi gravada na residência do casal no pequeno sítio de sua propriedade no
dia 06/08/2006. A casa com cômodos grandes (2 quartos, sala, copa e cozinha) é uma
construção nova, conta com energia solar. Durante a entrevista as filhas do casal adentraram a
sala, por ali ficaram alguns minutos e logo saíram. Tito preparava um churrasco para sua
família.
Casados há oito anos, têm três filhas e ela estava grávida de cinco meses. Durante
algum tempo conversei somente com Elisângela que contava como era a vida longe do marido
durante o período que estava trabalhando. Quando Tito adentrou a sala a conversa se ampliou
à medida que os dois comentavam suas experiências e sentimentos em relação à distância um
do outro. Tito, demonstrara ao longo da entrevista uma certa mágoa em relação à forma como
ele e seus conhecidos são tratados em Minas, como “gente que não tem nada na vida”. Relata
281
que são vistos como marginais, sujeitos sem família, sem emprego e fazia questão de me dizer
que ele tinha, sim, família, casa e um pequeno sítio. Falou de seu trabalho em Minas e na
Bahia, dos bens que possui, da casa que construiu e de suas experiências de vida.
17. Sr. Lúcio Sousa – 31 anos
A conversa com o senhor Lúcio foi gravada em frente à casa do senhor Fernando,
quando Lúcio passava por ali e fora cumprimentar seu Fernando, Neinha, Nicolau e os demais
que por ali passavam, pois havia chegado de Minas naquela manhã.
Contou-me que já fazia sete colheitas que trabalhava em Minas (ele não usa a idéia de
ano, mas de colheita). Narrou a viagem de volta de Minas que fez em companhia de mais
quinze pessoas dentro de uma Van que passou pelos trajetos mais estranhos e perigosos
porque tinha que fugir da possibilidade de encontrar postos da polícia rodoviária. Dentro da
Van disse ter ficado o tempo todo em pé (agachado, com o corpo curvado) porque não havia
lugar para sentar e ele não conseguiu adiar a viagem de volta, queria muito voltar para casa.
Falou dos trabalhos, das lavouras e fazendas por onde trabalhou, relatou algumas
relações trabalhistas, como alguns proprietários o trataram nesses anos de experiência.
Mencionou os recursos que conseguiu angariar nessa colheita específica, o quanto gastou com
as despesas que teve com alimentação e passagem. Relatou também as formas que utiliza para
retornar na próxima colheita.
18. Sra. Simone – 24 anos
A conversa, ou tentativa de conversa, foi gravada na casa da senhora Florzinha, mãe
de Simone. Era uma tarde quente de domingo (06/08/2006). Havia algumas pessoas na casa,
mas depois que entrei acompanhada de Neinha a casa foi ficando pequena pois a cada instante
chegava outra e outra pessoa. Por fim, a conversa era uma grande reunião onde todos davam
uma opinião, faziam uma questão, manifestavam seus pensamentos e experiências.
Havia uma grande curiosidade e admiração pela presença de uma mulher sozinha
naquela distância (que eles não sabiam muito bem qual era, mas parecia ser muito longe). D.
Florzinha conta um pouco de sua filha, fala do período em que esteve fora, e do retorno sem
nenhum dinheiro (numa expressão de reprimenda pelo “fracasso”). Simone, quando inicia
282
seus relatos, parece vislumbrada com Minas, fala do quanto gostava de estar lá. Manifesta o
desejo de retornar comigo, pois seu marido ainda se encontrava no trabalho em Minas.
Comenta sobre as pessoas que conhecera, a forma como era atendida no postinho de saúde, as
relações que estabelecera e, na medida em que dizia o nome das pessoas eram conhecidas dela
e minha também, ela ficava impressionada e com mais vontade de retornar para Minas.
19. Sr. Valdir Deolindo de Lima – 59 anos
Sr. Basílio Miguel da Silva (Duda) – 65 anos
A entrevista realizada em 21/07/2007 foi iniciada com o senhor Valdir; após cerca de
meia hora de nossa conversa chegou um amigo e vizinho de sítio o senhor Duda que foi
chamado e se inseriu em nossa conversa possibilitando observar que suas posições em relação
à narrativa do senhor Valdir se diferenciavam. Por cerca de vinte minutos o senhor Valdir
teve que se ausentar para atender funcionários da prefeitura e a conversa deslanchou com o
senhor Duda.
O senhor Valdir é um pequeno produtor, morador da comunidade do Sítio do Geraldo.
Seus filhos, que também possuem pequenas glebas, viajam anualmente para a colheita de
café. O depoimento do senhor Valdir revela as relações estabelecidas na pequena
comunidade, suas formas de organização em busca de melhorias para a localidade, como a
energia solar instalada nas redondezas, a escola, o transporte para os filhos estudarem. Narra,
ainda, uma série de transformações que ele viu acontecer, tece uma série de comparações
entre o que acontecia e o que se tem hoje. Envolvido com as questões da associação de
moradores revela também as entranhas das relações políticas do município.
Em relação à compreensão das formas de inserção dos moradores da comunidade nas
questões políticas e de busca de melhorias, o senhor Duda, que também é pequeno
proprietário e vive do que produz, manifesta uma compreensão diferente daquela oferecida no
relato do senhor Valdir, indicando para um olhar aguçado frente às questões relatadas.
20. Sra. Inês dos Santos – 65 anos
A entrevista ocorreu em sua residência na região chamada Mundo Novo no dia
20/07/2007. Ela, uma simpática senhora, pequena proprietária de terras, que com sua família,
283
marido e filhos cuidam da plantação de feijão e milho, zelam das ovelhas e cabras que
possuem. Um dos filhos da senhora Inês, Genivaldo, viaja anualmente para a lavoura de café.
Ela revela em seu depoimento o que pensa das viagens do filho, quais benefícios viu
acontecer ao longo dos anos e, apresenta ainda, uma série de elementos relacionados à busca
de melhores condições quando narra acerca dos filhos que já não moram mais na região,
tiveram que migrar, mas também o seu desejo de ali permanecer. Coloca questões
relacionadas à sua idade e à do marido, como fatores que, possivelmente, venham provocar
uma mudança de residência, talvez para um povoado vizinho, Pedra Vermelha, onde possuem
casa.
21. Sra. Maria Gomes –
Sr. Marino Gomes –
O depoimento foi coletado na residência do casal em 20/07/2007. Relembraram os
tempos de juventude, apresentando elementos relacionados à educação escolar à qual o acesso
foi restrito, principalmente para a sra. Maria. Narraram o momento em que se conheceram,
onde se casaram e os lugares por onde viveram, longe de seu local de origem: a senhora
Maria, de Sergipe, e o senhor Marino, de Horizonte Novo. Se conheceram no estado do
Paraná, onde se casaram e moraram por muitos anos, depois se mudaram para o estado de São
Paulo, retornando para a Bahia anos mais tarde. Manifestam algumas compreensões em
relação às mudanças que têm acontecido no povoado, bem como no comportamento dos mais
jovens, especialmente dos filhos.
22. Sr. Simeão Barbosa da Silva – 43 anos
A entrevista com o senhor Simeão se deu na residência de seu pai, senhor José
Barbosa no dia 22/07/2007. É um relato de trabalhador que acabara de retornar da colheita de
café, sem trazer quase nada, pois foi roubado no alojamento onde estava instalado. Segundo
seu depoimento, quem o roubou pertencia ao grupo do qual fazia parte, pois não havia tido a
presença de estranhos no alojamento após o pagamento recebido. É um depoimento repleto de
reflexões sobre os trabalhos na lavoura de café, assim como dos significados da mecanização,
da diminuição da oferta de mão-de-obra, entre outros temas.
284
23. Sr. Rufino Estêvão de Jesus – 49 anos
O senhor Rufino é morador do povoado de Horizonte Novo e marido da senhora
Valdina, entrevistada no ano de 2006, a entrevista se deu em 21/07/2007 em sua residência. O
depoimento do senhor Rufino é revelador, apresenta elementos relacionados ao
desenvolvimento dos trabalhos nas lavouras, os preparativos que fazem para as viagens, as
relações comerciais que estabelecem em terras distantes, como percebem os trabalhadores
mineiros nas lavouras de café. Em uma conversa bastante espontânea, fez questão de colocar
o que pensa, revelando sobre as relações de trabalho mais amistosas e aquelas não muito
apreciadas, como são percebidos e tratados pelos empregadores, manifestando grande vontade
de retornar em outros momentos, pois para ele, há suas vantagens em se realizar as viagens a
trabalho.
24. Sr. Jailson Araújo - 22 anos
O entrevistado é casado, morador do povoado de Horizonte Novo onde possui uma
casa e tem instalados, na sala de casa, todos os equipamentos para o atendimento a seus
clientes, pois é cabeleireiro. A pouca idade parece ser esquecida com a maturidade de seu
depoimento. Revela desde questões relacionadas ao dia-a-dia no povoado às questões
relacionadas aos trabalhos nas lavouras de café, com os conflitos entre trabalhadores, as
dimensões da negociação empregador/trabalhador, as condições em que permanecem nos
alojamentos, as relações de proximidade com pessoas moradoras da região para onde viaja.
Enfim, coloca de forma clara seus objetivos com as viagens que faz bem como os significados
que elas possuem para ele. Narra como são realizadas as viagens, os perigos que correm com
os transportes clandestinos. Reflete sobre o que faz a maioria dos trabalhadores quando
retornam para casa, o que fazem na entressafra, como se dá a sociabilidade em seu lugar de
origem, por vezes comparando com a região mineira. A entrevista foi realizada no dia
22/07/2007 na residência de seus pais no Povoado de Horizonte Novo.
285
25. Sra. Ênia Mendes – 14/07/2006
Entrevista realizada no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Patrocínio. Em sua
narrativa expressou os significados que possuem os trabalhadores migrantes temporários para
o Sindicato de Trabalhadores Rurais, representado por ela. Relatou como percebe esses
sujeitos inseridos na dinâmica regional, qual a representatividade que possuem nos trabalhos
agrícolas do município de Patrocínio e região. Expressou, ainda, parte da visão que têm sobre
os migrantes temporários, bem como sobre os migrantes que chegaram à região na década de
1980 oriundos do sul do país e elegeu alguns elementos como marcas das diferenças entre
esse grupo e os migrantes temporários atuais originários do nordeste brasileiro. Percebe-se em
seu depoimento uma visão “elitista” sobre esses trabalhadores, ou melhor, a visão que é
demonstrada pelos produtores/empregadores quando tratam de modo diferenciado os
“migrantes nordestinos” e os migrantes “paranaenses”. Há uma forma pejorativa de retratar o
primeiro grupo quando se refere a ele como sem consciência de seus direitos, valorizam
pouco o trabalho e não têm objetivos, por isso ficam nesse vai-e-vem, de um lado para outro
em busca de trabalho.
26.– Sr. José Humberto de Faria Reis – Representante patronal - 14/07/2006
Sr. José Tarcísio Cândido – Representante dos trabalhadores
Núcleo Intersindical de Conciliação Trabalhista
A dinâmica de atuação do Núcleo Intersindical foi representada, de algum modo, pela
entrevista, em que o representante patronal falava mais, explicava melhor o processo de
desenvolvimento das atividades, assim como respondia com maior precisão meus
questionamentos, tentando deixar claro que o Núcleo funciona de acordo com os parâmetros
legais. Que o papel do núcleo é fazer rescisões de contratos (os acertos finais), assim como
tentar a mediação na relação de trabalho para que seja enviado à Justiça do Trabalho o menor
número possível de litígios. Desse modo, observa-se que o Núcleo possui importante papel e
representatividade, uma vez que a grande maioria dos fazendeiros faz e rescinde os contratos
de trabalho através dessa instituição.
27. Sr. Fabiano Flumian – 15/07/2006
Engenheiro Agrônomo da Associação dos Cafeicultores de Araguari
286
A entrevista com o engenheiro agrônomo promoveu a percepção de parte do
pensamento dos produtores da região no que tange aos investimentos na lavoura, dívidas dos
cafeicultores, investimentos em programas de certificação do café. Possibilitou, ainda,
compreender como o discurso da imprensa, jornais, rádio, televisão, está marcado pela visão
dos produtores sobre o processo de produção. O quanto eles enfrentam problemas com a falta
de uma política agrícola, como têm despesas com a produção e quão onerosa torna-se a mão-
de-obra a cada ano, o que não reflete nos preços do café. Fabiano procura explicar o processo
da produção e apontar algumas soluções que podem ser vistas para o ramo da cafeicultura:
uma delas o fato de procurar pensar a propriedade rural como uma empresa que deve possuir
um planejamento, assim como ele o faz no projeto EDUCAMPO.
28. Sr. José Eduardo Menezes Mendonça – 28/03/2007
Presidente da Associação de Cafeicultores de Carmo do Paranaíba
A entrevista foi realizada durante a FENICAFÉ (Feira Nacional de Café Irrigado) na
cidade de Araguari, evento que se deu entre os dias 28 a 30 de março de 2003 e que reuniu
cafeicultores das regiões do Triângulo Mineiro e do Alto Paranaíba, assim como presidentes
das Associações e as mais diversas empresas que atuam no ramo da cafeicultura que
expuseram ali os seus produtos. A conversa foi focada na questão dos trabalhadores
migrantes, e o entrevistado revela a importância desse trabalhador na lavoura da região e
fornece um histórico de como essa mão-de-obra começou a ser utilizada no início da década
de 1990. Também faz referência à questão da mecanização da agricultura, à importância da
atuação das associações de cafeicultores e ao modo como as regiões do Triângulo e do Alto
Paranaíba se dividem para a apresentação de discussões e promoções de eventos como o que
estava ocorrendo ali. Explica que a região de Araguari trabalha a questão econômica, a
mecanização e a irrigação da lavoura, enquanto a região de Patrocínio promove eventos
ligados a questões de alcance político, e a de Carmo do Paranaíba desenvolve eventos ligados
a trabalhos de campo com o desenvolvimento de alguns experimentos na área.
287
INSTITUIÇÕES PESQUISADAS
- Associação dos Cafeicultores da Região de Patrocínio – ACARPA
- Conselho das Cooperativas de Cafeicultores do Cerrado – CACCER
- Associação dos Cafeicultores de Monte Carmelo – AMOCA
- Associação dos Cafeicultores de Araguari – ACA
- Núcleo Intersindical de Conciliação Trabalhista de Patrocínio – NICTP
- Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Patrocínio. – STRP
- Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Araguari – STRA
- Visita a FENICAFÉ – Feira de café, em Araguari – 13 a 15 de abril/2006.
- Visita a FENICAFÉ – Feira de café, em Araguari – 28 a 31 de março/2007
- Associação dos Amigos Trabalhadores de Horizonte Novo
MATERIAIS DISPONIBILIZADOS EM ALGUMAS DAS INSTITUIÇ ÕES
(cartilhas, panfletos, folders):
1. Convenção coletiva de trabalho 2005/2007 – STRP
2. Orientações ao trabalhador rural – 2005-2009 – STRP
3. Guia do Produtor Rural – Prefeitura Municipal de Araguari
4. Dados da cafeicultura de Patrocínio. Patrocínio: [s.n.], [200-]
5. Programa de Certificação do Café do Cerrado – ACARPA, ACA, AMOCA
6. Informativo ACARPA, ano II, nº 14, junho/2006.
7. Relatório de dados 1994-2006: casos atendidos, solucionados e encaminhados –
NICTP
8. Carta ao Produtor – ACARPA
9. Café do Cerrado: café com origem certificada – ACARPA
10. Cafeicultor: as vantagens da associação – ACARPA
11. Características da produção na região do Cerrado – ACARPA
12. Estatuto da Associação dos Amigos Trabalhadores de Horizonte Novo
13. Projeto de Biblioteca Comunitária para o Povoado de Horizonte Novo
288
REFERÊNCIAS
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