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ENTRE PROJETOS, MEDIÇÕES E BAMBUS:
UM CURRÍCULO VAI SE INVENTANDO
Paulo Ricardo Ramos Pereira1
Sônia Maria Clareto2
Universidade federal de Juiz de Fora, [email protected]
Universidade Federal de Juiz de Fora/ Departamento de Educação, [email protected]
Resumo:
Este artigo se compõe junto a uma pesquisa que vem sendo realizada em uma escola de
tempo integral, no município de Juiz de Fora. A escola tem aulas da grade curricular
pela manhã e projetos realizados na parte da tarde. Um desses projetos se tornou nosso
foco de estudo para realização deste artigo. Uma possibilidade de ocupação de um
terreno pertencente à escola foi o disparador do projeto. Durante sua elaboração e
construção, algumas inquietações sobre medida, área e escala se tornaram questões. Que
medida? Que área? Neste texto vamos trazer o trabalho realizado pelos alunos e as
afetações e atravessamentos de um currículo, com o movimento da vida escolar. Um
currículo vai se inventando em meio a bambus, medidas, quases e esboços. Escola e
currículo sempre em movimento, atravessados por bambus, por brincadeiras, pelo
quase, pelas (im)possibilidades, pela vida...
Palavras-chave: Medidas. Escala. Escola de tempo integral.
Introdução
Uma escola de tempo integral, no município de Juiz de Fora (MG), com turmas
do primeiro ao nono ano do Ensino Fundamental, além da Educação Infantil. Nesta
escola vem acontecendo, desde 2013, a pesquisa: “Por uma educação matemática
menor: currículo e formação de professores junto à sala de aula de matemática”3. O
interesse da investigação gira em torno de estudar a formação de professor de
matemática e o currículo escolar, junto à matemática que acontece na sala de aula. A
equipe executora é formada por dois alunos de licenciatura em matemática (bolsistas de
Iniciação Científica no projeto), uma mestranda professora de matemática, o professor
de matemática da escola e a coordenadora, professora na Universidade Federal de Juiz
de Fora. Na pesquisa são acompanhadas as aulas de matemática, além de diversas
atividades realizadas na escola.
1 Aluno na Universidade Federal de Juiz de Fora. Cursando oitavo período do curso de Licenciatura em
Matemática. 2 Professora associada da Universidade Federal de Juiz de Fora e professora-pesquisadora do Programa de
Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora). 3 Pesquisa financiada pela Capes e pela Fapemig (Acordo CAPES/FAPEMIG, Processo nº APQ 03480-
12) e coordenada pela Sônia Maria Clareto.
Por tratar-se de uma escola de período integral, tem buscado estabelecer modos
de organização espaço-temporal que atendam mais dinamicamente esta realidade.
Assim, durante as manhãs acontecem as aulas das disciplinas curriculares, que são
realizadas em salas de aula com duração de cinquenta minutos, começando às sete horas
e trinta minutos e terminando às doze horas. Há um intervalo de dez minutos, entre as
nove horas e dez minutos e as nove horas e vinte minutos, no qual os alunos lancham no
refeitório. Ao término das aulas pela manhã, os alunos almoçam na escola e ficam no
pátio brincando, cantando, andando de skate, jogando pingue pongue, jogando bola,
namorando... São disponibilizados alguns jogos em mesas no centro do pátio, como
xadrez, kalah4, quebra-cabeça, e os alunos podem usá-los ou, se preferirem, podem ficar
na biblioteca lendo livros ou contando histórias com os alunos mais novos.
Figura 1: Alunos no intervalo do almoço
Foto compõe o banco de dados do projeto.
Durante as tardes são realizados projetos, ofertados para todas as turmas do
quinto ao nono ano e são elaborados pelos professores junto à coordenação pedagógica.
Cada professor define o que pretende trabalhar e, durante uma semana, são visitadas
todas as salas do quinto ao nono ano, com o intuito de fazer uma apresentação das
propostas para o trabalho com os projetos de cada um dos docentes.
Quando todos os projetos são apresentados, cada aluno tem o direito de escolher
um deles para se inscrever e participar. Existem projetos variados, como xadrez, música,
contadores de história, futebol, informática, teatro, mágica, fotografia... As vagas para
cada projeto são limitadas, porém todos os alunos participam de pelo menos um desses
projetos, mesmo não sendo o projeto que desejavam a princípio. A escolha do projeto é
feita individualmente e a ordem de priorização da escolha varia a cada ano. Por
exemplo, se em um ano os primeiros a escolherem são os alunos do sexto ano; em
4 Trata-se de um jogo da família das mancalas. “Mankala é uma palavra árabe, que significa „transferir‟.
Pedras ou sementes são transferidas de um recipiente a outro em um tabuleiro com duas, três ou quatro
filas de recipientes. [...] O jogo tem sido praticado por reis, em belos tabuleiros entalhados em madeira ou
em tabuleiros de ouro, e por crianças, que fazem buracos no chão” (ZASLAVSKSY, 2000, p. 32). Jogo
muito difundido em todo o continente da África. Acredita-se que tenha chegado ao Brasil trazido por
escravos africanos. O Kalah, muito praticado na escola em questão neste artigo, tem duas fileiras de
recipientes. Esta escola toma a cultura africana como centro de sua construção curricular.
segundo lugar, os alunos do nono ano; em terceiro, os alunos do quinto ano; e, por
último, os alunos do oitavo ano; no ano seguinte, é feita uma nova ordem de escolha, de
maneira que, ao final do nono ano, os alunos tenham tido a oportunidade de passar por
toda a ordem de escolha.
Em 2014, um desses projetos foi se inventando junto à equipe executora da
pesquisa e que atua na escola. Com o professor de matemática, responsável pela criação
do projeto, cogitamos a possibilidade de criar um projeto que estudasse propostas de
utilização de um terreno ocioso que pertence à escola. Este terreno se situa dentro dos
limites da escola. Com este trabalho pretendíamos investigar como seriam pensadas e
elaboradas situações de uso daquele espaço. Temas como noções de medida, área,
escala, ocupação de espaço apareceram como possibilidade no planejamento da
atividade.
Dialogando com os alunos, apresentamos nossa proposta de projeto. Foi
cogitada a possibilidade de levarmos à direção as propostas de ocupação do espaço para
estudos de viabilização de efetivação de tais projetos. Os alunos ficaram empolgados
com esta possibilidade e começaram a ponderar acerca da viabilização do projeto. Uma
aluna questiona se a escola teria condições financeiras para bancar os gastos com tais
projetos. Porém, os próprios colegas afirmam que, caso não houvesse dinheiro
suficiente, eles poderiam vender rifas, fazer doces, gincanas... Logo percebemos que a
turma tinha se interessado pela criação do projeto.
Enquanto isso, o terreno esperava....
Esta escola funciona no prédio atual desde 2009, quando da sua construção.
Anteriormente ocupava um espaço adaptado para escola, uma vez que a sede oficial
estava correndo risco de desabamento. O espaço adaptado era uma casa de campo.
Como se tratava de um local temporário, a escola teve que se adaptar ao espaço e não o
contrário. Ao se adaptar ao espaço, a escola criou possibilidades de flexibilização em
seu currículo e em suas práticas educativas, tais como criação de espaços de
convivência nos ambientes externos da escola-casa, flexibilização de horários,
adaptação de atividades ao ar livre etc. Havia, ali, muito espaço externo e a adaptação às
novas condições espaciais propiciaram também novos modos de convivência5.
Ao ser projetado a nova unidade, a comunidade escolar se organizou para
reivindicar mais espaço externo para que as atividades adaptadas – que efetivamente
estavam funcionando bem – pudessem ter continuidade.
Reivindicaram os seguintes ambientes para constituir o espaço
escolar: no que se refere ao prédio escolar – nove salas de aula, duas
salas multiusos (artes em geral e artes cênicas), seis banheiros, dois
banheiros adaptados (para alunos portadores de necessidades
especiais), uma biblioteca, uma secretaria, uma sala para
administração, uma sala para a coordenação pedagógica, uma sala
de apoio pedagógico (sugestão da engenheira), uma sala de
informática (sugestão da secretária de educação), refeitório para cem
alunos, cozinha e dispensa; no que se refere à área externa: quadra
poliesportiva coberta e com vestiário, pátio com área aberta, área
para horta, área verde com parquinho de madeira e, ainda, a
5 Duas dissertações defendidas no Programa de Pós-graduação em Educação (PPGE/UFJF) discutem
essas transições espaciais desta unidade escolar: Sá (2006) e Nascimento (2009).
construção de um bebedouro de alvenaria (SÁ, 2006, p. 64-65,
destaque nosso).
Neste momento começa a surgir o terreno com o qual lidamos na atividade
discutida neste artigo... Longe de ser aquilo que habitava o sonho de professores e
professoras e da direção da escola, este prédio foi a negociação possível.
Em Sá (2006), são explicitados alguns desses sonhos, como o da então diretora
da escola, que fala do modo como compreende que a escola poderia funcionar:
É uma escola com uma área de administração e chalés organizados
numa área verde muito grande. Que não seja um prédio todo
terminado. Mas, com chalés independentes para que a gente pudesse
trabalhar numa perspectiva de educação por oficinas [...]. E que as
crianças pudessem trabalhar independente da idade, mas pelo gosto,
pelo gosto de conhecer. [...] Eu penso, assim, uma escola que não
tenha muro, que não seja dividida, como aquela que a gente tem lá,
né? (referência à sede antiga da escola Experimentar). Ou que os
muros sejam baixos, uma escola onde o acesso para a rua seja... Que
as pessoas vejam o que está acontecendo lá dentro. Uma escola sem
muro. (SÁ, 2006, p. 66, destaque nosso).
O espaço ao qual este artigo se refere foi conseguido pela comunidade escolar
para que pudesse atender às demandas desencadeadas pela necessidade de adaptação da
escola ao espaço da escola-casa.
E o terreno lá, esperando...
Projeto em movimento
Organizamos os alunos em três grupos. A turma era formada por vinte e um
alunos, do quinto ao nono ano. Cada grupo contou com o apoio de um dos bolsistas do
projeto (dos dois alunos de graduação ou da mestranda)6, e cada grupo recebeu um
caderno com folhas em branco7 para a elaboração das atividades do projeto.
Começar: por onde? Como começar um projeto? O primeiro passo foi uma
conversa levantando os interesses de ocupação daquele espaço: fazer uma horta,
construir uma piscina, uma quadra de esportes ou um jardim. Várias opiniões, inúmeras
possibilidades. Mas, será que cabe uma piscina naquele terreno? Ou uma quadra?
Sim, precisávamos medir o terreno para saber o que efetivamente poderia ser aí
projetado.
E o terreno lá, esperando...
Para projetar o que seria construído era necessário, então, saber a área do terreno.
Mas, que área? Área?
6 Neste artigo será abordado o trabalho realizado com um desses três grupos.
7 Cada grupo recebeu um caderno com folhas em branco. Este caderno funcionou como um diário, no
qual os membros do grupo se organizavam para registrar as atividades desenvolvidas pelo grupo ao longo
do projeto. Alguns alunos levaram o caderno para casa com o objetivo de continuar e expandir os
registros.
s.f. Superfície plana delimitada. Medida de uma superfície. Em
matemática, a área de uma superfície é o número de unidades de área
que ela contém. A área pode ser medida em unidades como metros
quadrados, quilômetros quadrados, ou hectares. Você pode recortar
um retângulo de 3 cm por 2 cm em seis pedaços quadrados de 1 cm de
lado. A área é igual à soma das áreas dos seis pedaços. A palavra
área também se refere ao espaço de dentro de triângulos, círculos e
outras curvas. Espaço aberto no interior de um edifício. Fig. Campo,
âmbito de certos ramos de conhecimento, de determinada atividade
ou competência: área das ciências. (SANTOS; NEVES, 2015)
Área de uma superfície plana delimitada. Medida de uma superfície. Surge outra
questão. Que medida?
[...] para medir o comprimento de um objeto o aluno precisa saber
quantas vezes é necessário aplicar uma unidade previamente
escolhida nesse objeto, ou seja, executar duas operações: uma
geométrica (aplicação da unidade no comprimento a ser medido) e
outra aritmética. (BRASIL, 1997, p. 54).
Corpos ansiosos: era hora de colocar a “mão na massa”. Era preciso saber a área
do terreno. Era preciso medir. Era preciso ter uma unidade de medida. Grupos no local.
Mas mesmo estando ali, ainda à dúvida: como poderíamos medir o terreno?
Medição. Ação ou efeito de medir. Adotar uma ação. Uma ação de medir... Mas,
não iríamos utilizar fitas métricas. Era preciso inventar. Uma aluna diz: vamos medir
com a régua! Outra contesta: a régua é muito pequena. Vamos medir com a régua esse
pedaço de bambu, e depois vamos medir o terreno com o bambu. A medida como ação
de medir, como invenção de medir.
Vamos medir o terreno. Vamos medir o bambu: a régua “cabe” quase cinco
vezes no bambu. Há! Então o bambu tem quase um metro e meio! Tínhamos quase a
medida do bambu. Tínhamos quase uma unidade de medida. A medida do bambu para
achar a medida do terreno, para achar a área do terreno. Faltava a medida do terreno.
Grande parte do cálculo realizado fora da escola é feito a partir de
procedimentos mentais, que nem sempre são levados em conta no
trabalho escolar.
Nas situações práticas, frequentemente, não se dispõe de lápis e
papel, tampouco é necessário, pois a maioria das respostas não
precisa ser exata, basta uma aproximação. Existem ainda as balanças
e as calculadoras que informam resultados com precisão. Por essas
razões, uma das finalidades atuais do ensino do cálculo consiste em
fazer com que os alunos desenvolvam e sistematizem procedimentos
de cálculo por estimativa e estratégias de verificação e controle de
resultados.
Para atender a esse objetivo, é primordial que aprendam a
reconhecer se certos resultados relacionados a contagens, medidas,
operações são ou não razoáveis em determinadas situações. A
estimativa constrói-se juntamente com o sentido numérico e com o
significado das operações e muito auxilia no desenvolvimento da
capacidade de tomar decisões. O trabalho com estimativas supõe a
sistematização de estratégias. Seu desenvolvimento e aperfeiçoamento
dependem de um trabalho contínuo de aplicações, construções,
interpretações, análises, justificativas e verificações a partir de
resultados exatos. (BRASIL, 1997, p. 76-77)
E o terreno lá esperando?...
Corpos lançados. Tínhamos o bambu. Medimos os lados do terreno. Descobrimos
que o terreno tem quase trinta e um bambus de frente, e quase trinta e seis de lado.
Considerando aqui a frente como sendo a parte do terreno que é paralelo ao muro lateral
da escola e o lado sendo a parte perpendicular à parede da escola que faz a divisa do
terreno. Tínhamos a área: quase mil cento e dezesseis bambus quadrados. Tínhamos a
medida? Bambus ao quadrado? Bambus ao quadrado!
Figura 2: Imagem aérea do terreno
Disponível em
https://www.google.com.br/maps/place/Escola+Municipal+Jos%C3%A9+
Calil+Ahouagi. Acesso em 22 de jun.
O que foi feito? A identificação da “medida como um número que representa o
resultado da comparação entre duas grandezas de mesma natureza, por meio da divisão
(quantas vezes cabe)” (BRASIL, 2007, p. 10).
Figura 3: Medindo o terreno
Foto do acervo da equipe executora da investigação.
Esboço
Hora de por no papel, pois tínhamos um projeto a fazer!
Porém, algo surpreendente aconteceu e nos atravessou de um modo que não
conseguimos controlar: antes de sairmos do terreno em direção à sala de aula, foram
encontradas “munições”: bolinhas, de algum tipo de semente, que brotam em árvores.
Uma criança lançava na outra, e outra lançava em outra e elas se lançavam. Todos
entramos na brincadeira. Sorrisos e sorrisos. As bolinhas quando em contato com o
corpo impulsionavam certa coceira. Estávamos todos lançados. Todos se coçando...
Uma coceira, um certo incômodo na pele... O que, em um currículo, causa coceira? O
que, em um currículo, causa incômodo? Aquilo é escola? Aquilo é projeto? Aquilo é
trabalho? Aquilo é escape? Aquilo é?
Corpos se coçando, se incomodando, se implicando...
E o terreno lá esperando, esperava por isso?
Corpos lançados, tramando encontros, tramando medições, tramando outros
corpos.
O que define um corpo é esta relação entre forças dominantes e
forças dominadas. Toda relação de forças constitui um corpo:
químico, biológico, social, político. Duas forças quaisquer, sendo
desiguais, constituem um corpo desde que entrem em relação; por
isso o corpo é sempre fruto do acaso, no sentido nietzscheano, e
aparece como a coisa mais “surpreendente” [...]. O corpo é
fenômeno múltiplo, sendo composto por uma pluralidade de forças
irredutíveis; sua unidade é a de fenômeno múltiplo, “unidade de
dominação” (DELEUZE, 1976, p. 21).
E o terreno lá esperando e tramando...
De volta à sala. Era hora de organizar o que seria feito. Vamos fazer um esboço
primeiro. Era uma possibilidade. Vamos usar a folha do caderno do projeto para fazer
o terreno. Um esboço do terreno é feito na folha.
Esboço: Reunião dos traços primários que, sendo provisórios, dão
início a uma obra de arte, a um desenho etc. O que pode representar
um resumo; síntese: realizou um esboço concreto das notícias. Aquilo
que se apresenta de maneira breve e provisória: esboço do trabalho.
Figurado. As ideias iniciais acerca de alguma coisa; começo. Ação
que teve seu desenvolvimento interrompido por alguma coisa (no
início). Os princípios iniciais que definem alguma coisa. Aquilo que
se apresenta com a configuração (contorno) de vultos; sombra.
(SANTOS; NEVES, 2015)
Começou-se a esboçar, então, um início, uma sombra, uma reunião de traços
primários que, sendo provisórios, daria início a uma obra de arte. O terreno já estava na
folha.
Figura 4: Esboço do terreno
Imagem extraída da folha de um dos cadernos realizados na pesquisa.
O terreno já estava na folha? O terreno esperava, na folha, pelo lápis.
O terreno espera na folha?
Uma lista de possíveis modos de ocupação do espaço foi feita. Uma árvore no
meio, em volta alguns bancos. Um campo de futebol. Uma horta próxima ao muro da
escola, pois fica perto da torneira. Um jardim. Alguns brinquedos (brinquedos com os
quais os alunos mais velhos pudessem brincar, pois a escola tem um parquinho, mas só
os alunos da Educação Infantil podem usá-lo).
E o terreno, lá esperando?...
Conversando acerca daquilo que poderia ser elaborado em cada uma das regiões
desenhadas as opiniões vinham e decisões iam sendo tomadas: a árvore será uma
mangueira, pois faz lembrar a antiga escola em que estudavam8; os bancos serão de
madeira, porque o pai de uma das integrantes dos grupos é marceneiro. Segundo a
aluna, seu pai poderia construir os bancos para escola em um preço abaixo do preço de
mercado. O campo de futebol será gramado, e a grama poderia ser comprada em uma
loja que fica perto da escola, cujo dono é pai de um dos alunos. As traves do gol podem
ser de madeira, de tal forma que o mesmo pai que fizer o banco, pode fazer os gols. Na
horta teremos couve, alface, tomate, abóbora, dentre outros legumes e verduras. Serão
8 Muitos alunos que participam deste projeto estudam naquela escola desde a Educação Infantil e,
portanto, estudaram no antigo prédio da unidade escolar, a escola-casa. Aquela experiência, naquele
espaço improvisado, parece ter marcado muitos deles, pois, em diferentes momentos, a imagem daquela
escola volta e, em especial, a memória das atividades desenvolvidas no espaço externo. A mangueira,
árvore frondosa, vigorosa que compunha aquele espaço, é retomada em diferentes momentos. Três
investigações desenvolvidas nesta escola, uma delas se constituiu em tese de doutorado e duas em
dissertações de mestrado, estudam esta dinâmica espacial: Borges (2011), Nascimento (2009) e Sá
(2006).
plantados também pés de frutas como laranja, limão e mexerica... Todos os materiais
serão conseguidos com familiares, já que a escola, mesmo não ficando em uma zona
rural, encontra-se em uma região de muitas casas de campo, o que pode facilitar a
obtenção desses produtos. No jardim teremos vários tipos de flores, como orquídea,
begônia, flores do campo, que também poderão ser doadas por moradores locais e
familiares de alunos. E, por fim, os brinquedos que, de todas as possibilidades pensadas,
era a que provavelmente representaria maior custo para a escola. Foram planejados: um
escorregador, uma gangorra, um túnel, uma balança... Esses brinquedos teriam que ser
construídos com materiais mais resistentes para serem duradouros, pois seriam usados
por alunos que, em média, tinham treze anos.
E o que esperava o terreno? O que esperar de um terreno?...
Com as medidas do terreno e com o esboço feito, era necessário concluir o
projeto. Tínhamos tudo o que seria feito no terreno. Tínhamos as medidas, os materiais,
os lugares onde ficaria cada material, cada objeto. Como, então, colocar o terreno em
um papel de forma que pudéssemos ter uma dimensão exata dos tamanhos? A medida
não é exata. A área do terreno é quase mil cento e dezesseis bambus ao quadrado. Os
lados são de quase trinta e um e trinta e seis bambus. A escala aparece quando uma
aluna afirma: - Vamos fazer cada bambu igual a um centímetro na folha. Fizemos como
foi falado, mas o terreno ultrapassou a folha. Outra aluna contesta: - O terreno é muito
grande, não cabe na folha. A outra aluna responde: - Os bambus que estão grandes.
Vamos fazer cada bambu igual a meio centímetro. E assim foi feito. Dessa vez o terreno
coube na folha. Ele está na folha. Ele está na folha? O bambu é meio centímetro?
Como a medida ganha medida? O bambu estava jogado e perdido em um
terreno, agora é uma unidade de medida. Foi usado. Foi usado? Tudo aproximado. Será
que as medidas não são aproximadas? Conseguimos a exatidão ao usar uma trena, uma
régua, uma unidade de medida padrão? Que exatidão?
Quanta exatidão suporta um terreno?
Com a escala feita, temos o terreno para ocupar. Discutindo acerca do tamanho
de cada região que seria ocupada, decidimos colorir onde ficaria cada uma das coisas
programadas. A parte amarela é o parque, a verde é a horta, azul é o campo, roxa são as
flores, marrom é a árvore, rosa são os bancos, vinho é uma rampa que sai da escola para
os alunos que usam cadeira de roda.
Figura 5: Desenho escala do projeto
Imagem extraída de um dos cadernos realizados na pesquisa.
E o terreno? Lá esperando?...
Coceira
Enquanto se ocupa o terreno, no papel, muitas outras ocupações vão se dando:
um currículo vai sendo ocupado... entre medidas, bambus, réguas e esboços, um
currículo vai sendo esboçado: vai reunindo “traços primários que, sendo provisórios,
dão início a uma obra de arte, a um desenho etc”. Um currículo como obra de arte?
Um currículo vai se fazendo na vida que corre em um projeto, entre os muros da
escola, em composições com aquilo que está para além da escola... Currículo que se faz
entre vidas em uma escola, entre matemáticas em uma escola, entre educações em uma
escola. Um currículo vai sendo inventado...
Porque a Educação aprende que as verdades de um currículo não
preexistem a ele, mas decorrem da reformulação das suas formas de
conteúdo e de expressão; da invenção de problemas e suas condições;
da suscitação de originais modos de ver, sentir, pensar. Intui que os
saberes, poderes e subjetividades, produzidos por um currículo, são
sempre verdadeiros, segundo as verdades que ele introduz, passa, faz
fugir. Logo, que não existem resultados melhores ou piores de um
currículo, em relação a outros, apenas os mais apropriados às
verdades formuladas por cada um (CORAZZA, 2010, p. 152).
O que incomoda em um currículo? A coceira que reverbera de bolinhas-
sementes lançadas? O lançar-se em um terreno? As pontas da bolina? Quantas
possibilidades se abrem todos os dias quando uma pergunta é lançada? Quando
bolinhas-sementes são lançadas? Quando um incômodo move uma implicação? Quando
um projeto é disparado?
Quanto de incômodo, de coceira reverberada, de quases cabe em um currículo? O quase
passa a ser um currículo. O que incomoda passa a ser uma implicação. Escola e
currículo sempre em movimento, atravessados por bambus, por brincadeiras, pelo
quase, pelas (im)possibilidades, pela vida...
E o terreno lá, aqui e acolá compondo currículo,
compondo escola,
compondo vida...
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