entre o silêncio e o dizível: um estudo discursivo de sentidos de

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS LINGUÍSTICOS E LITERÁRIOS EM INGLÊS LAURA FORTES ENTRE O SILÊNCIO E O DIZÍVEL Um estudo discursivo de sentidos de bilinguismo, educação bilíngue e currículo em escolas bilíngues português-inglês Versão corrigida São Paulo 2016

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ESTUDOS LINGUSTICOS E

    LITERRIOS EM INGLS

    LAURA FORTES

    ENTRE O SILNCIO E O DIZVEL

    Um estudo discursivo de sentidos de bilinguismo, educao bilngue

    e currculo em escolas bilngues portugus-ingls

    Verso corrigida

    So Paulo

    2016

  • LAURA FORTES

    ENTRE O SILNCIO E O DIZVEL

    Um estudo discursivo de sentidos de bilinguismo, educao bilngue

    e currculo em escolas bilngues portugus-ingls

    Verso corrigida

    De acordo:

    Orientadora: Profa. Dra. Marisa Grigoletto

    Tese apresentada ao Departamento de Letras

    Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e

    Cincias Humanas da Universidade de So

    Paulo para a obteno do ttulo de doutora em

    Letras.

    rea de concentrao: Estudos Lingusticos e

    Literrios em Ingls

    Orientadora: Prof. Dr. Marisa Grigoletto

    So Paulo

    2016

  • Folha de aprovao

    FORTES, Laura.

    Entre o silncio e o dizvel: um estudo discursivo de sentidos de bilinguismo,

    educao bilngue e currculo em escolas bilngues portugus-ingls

    Tese apresentada ao Departamento de Letras

    Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e

    Cincias Humanas da Universidade de So

    Paulo para a obteno do ttulo de doutora em

    Letras.

    Aprovada em: 11 de abril de 2016.

    Banca Examinadora

    _______________________________________________________________

    Instituio______________________ Assinatura: _______________________

    ______________________________________________________________

    Instituio______________________ Assinatura: _______________________

    ______________________________________________________________

    Instituio______________________ Assinatura: _______________________

    ______________________________________________________________

    Instituio______________________ Assinatura: _______________________

    ______________________________________________________________

    Instituio______________________ Assinatura: _______________________

  • Vera e Leila, pela alegria na vida e pela amizade mais que materna, mais que fraterna, mais que terna eterna.

    Ao Mario, che mbohayhu.

  • AGRADECIMENTOS

    FAPESP, pela bolsa concedida (Processo 2012/21924-3) desde janeiro de

    2013, o que foi fundamental para a realizao desta pesquisa.

    CAPES, pela bolsa DS concedida entre outubro e dezembro de 2012 (DS-

    DLM-FFLCH-USP) e pela bolsa (Processo n 3760/14-6) concedida para a

    realizao do doutorado sanduche sob orientao do Prof. Dr. Alastair Pennycook

    na University of Technology, Sydney, entre julho e dezembro de 2014.

    Profa. Marisa Grigoletto, com quem tenho tido o privilgio de conviver e

    aprender h mais de doze anos, pela amizade sincera e pela orientao sempre

    precisa nos caminhos da Anlise de Discurso.

    famlia querida, que me apoiou durante todo o percurso:

    Ao Mario e Uda, pela pacincia e pelo amor incomensurveis;

    Vera e ao Carlos, pelas muitas oraes, pelo acolhimento e pelo afeto;

    Leila e ao Danilo, pelas palavras de incentivo e pelos momentos de

    descontrao.

    Ao Prof. Carlos Renato Lopes e Profa. Maria Teresa Celada, que

    contriburam imensamente com comentrios e sugestes sobre a pesquisa no

    exame de qualificao, apontando novos direcionamentos que foram fundamentais

    para a realizao de determinados gestos de leitura do arquivo.

    Aos professores e coordenadores de escolas bilngues que participaram desta

    pesquisa, dedicando seu tempo e demonstrando o desejo de compartilhar

    conhecimentos e contribuir para o campo de estudos sobre bilinguismo e educao

    bilngue no Brasil.

    Ao Grupo LEDI, do qual tenho participado desde a Iniciao Cientfica, e cujos

    membros tm me ensinado tanto: Dolores, Ins, Bruno, Ana Faria, Daniella, Patrcia,

    Beatriz, Dbora, Marco Costa, Flavia, Laura. Agradecimentos especiais Dolores e

    Ins, que participaram mais de perto do processo da pesquisa e dos devaneios

    tericos que irromperam nos cafs com abobrinha...

    Ao Prof. Alastair Pennycook, que me orientou durante a realizao do estgio

    de doutorado sanduche na University of Technology, Sydney (UTS). Suas

    interlocues foram essenciais para pensar possibilidades de prtica de entremeio

    com diversas teorizaes, o que fez toda a diferena na pesquisa.

  • Profa. Jacqueline Widin, com quem aprendi muito nas aulas de Language

    and Power na UTS e que generosamente contribuiu com minha pesquisa com

    leituras de meus textos e indicaes de autores.

    famlia brasileira australiana, que me acolheu de corao aberto em

    Sydney e com quem aprendi os diferentes modos de ser Aussie: Daniela Cristina

    Costa, Adriano Alves, Caio e Enzo; Renata e famlia; Clara e famlia; Carol e famlia;

    Valentina e famlia; Thalita e famlia; Stefania e famlia; Fernanda e famlia. Marlia

    Ftima, amiga querida que possibilitou e mediou esse encontro, que levo na vida.

    Aos amigos e colegas que conheci durante o estgio de doutorado sanduche

    em Sydney: Misako Tajima, Benjamin Hanckel, Bong Jeong Lee, Amina Singh,

    Ayumi Inako, Feifei Liu, Irna Sari, Ivor King, Kathy Shein, Nipa Saha, Shaonee

    Rahman, Shashi Sharma, Vronique Conte, Zhen Zhang, Denise Enayati, Oksana

    Nemesh, Mlanie Duchet, Owais Haji. Cada um contribuiu de forma singular para a

    realizao desta pesquisa, e todos me ensinaram igualmente o quanto bom

    conviver com a diferena.

    Aos professores Adrin Fanjul, Anna Carmagnani, Jos Horta Nunes, Deusa

    Maria de Souza Pinheiro-Passos, Suresh Canagarajah, Elana Shohamy, Maria

    Cristina Leandro Ferreira, Maria Jos Coracini, Xon Carlos Lagares, Walkyria

    Monte-Mr e Ernesto Bertoldo, cujas interlocues contriburam em diversos

    momentos com a pesquisa.

    Renata Lcia Moreira, amiga desde a poca da graduao que me

    acompanha, incentiva e est sempre na torcida por meus projetos.

    Giane Lessa, que me incentivou nesta jornada com carinho, amizade

    indicaes de leitura, orientaes e muitas risadas.

    Cristina Ramos e Marina Bastos Buteler, grandes amigas que

    acompanharam grande parte destas minhas inquietaes e cujas palavras de

    incentivo sempre foram restauradoras neste percurso.

    Clarice Tumelero, amiga sempre presente, que me apoiou e me

    surpreendeu diversas vezes batendo minha porta com uma receita especial.

    Aos alunos e amigos/colegas do Colgio Oswald, com quem aprendi os vrios

    sentidos do trabalho docente, do compromisso com o outro e com a educao.

    Aos funcionrios da Biblioteca Florestan Fernandes da FFLCH-USP,

    especialmente ao Carlinhos, pelas palavras de incentivo e pela ajuda na hora certa.

  • Dificilmente escapamos aos sentidos tal como eles se apresentam e se representam. E eles no so por isso uma ameaa: so antes um convite vida, experincia, histria, interpretao.

    Eni P. Orlandi ORLANDI, E. P. (1992) As formas do silncio: no movimento dos sentidos. 5 ed. Campinas, SP. Editora da Unicamp, 2002, p. 173.

    O pensamento no o que se presentifica em uma conduta e lhe d um sentido; , sobretudo, aquilo que permite tomar uma distncia em relao a essa maneira de fazer ou de reagir, e tom-la como objeto de pensamento e interrog-la sobre seu sentido, suas condies e seus fins. O pensamento liberdade em relao quilo que se faz, o movimento pelo qual dele nos separamos, constitumo-lo como objeto e pensamo-lo como problema.

    Michel Foucault FOUCAULT, M. Polmica, poltica e problematizaes. In: Foucault, M. tica, sexualidade, poltica, (Ditos e escritos, vol. V). Organizao e seleo de textos de Manoel Barros da Motta; traduo Elisa Monteiro, Ins Autran Dourado Barbosa. 2.ed . Rio de Janeiro, Forese Universitria, 2006, p. 231-2.

  • RESUMO

    FORTES, L. Entre o silncio e o dizvel: um estudo discursivo de sentidos de bilinguismo, educao bilngue e currculo em escolas bilngues portugus-ingls. 2016. 444 f. Tese (Doutorado) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2016.

    Esta pesquisa prope uma anlise discursiva de sentidos de bilinguismo, educao bilngue e currculo em escolas bilngues portugus-ingls no sistema educacional brasileiro. Os percursos da anlise se fizeram a partir de uma entrada, teoricamente orientada pela anlise de discurso pecheutiana, num complexo de discursividades heterogneas configuradas sobre o real da expanso dessas escolas, frequentemente justificado por uma demanda crescente pela aquisio da lngua inglesa cada vez mais cedo. Tendo em vista esse complexo de discursividades, o corpus de pesquisa foi configurado a partir da construo de quatro arquivos: a) arquivo do discurso cientfico sobre bilinguismo, constitudo de um levantamento das pesquisas e publicaes acadmicas sobre esse tema; b) arquivo do discurso poltico-educacional, constitudo de documentos legislativos, normativos e curriculares; c) arquivo do discurso institucional, constitudo de textos disponibilizados nos sites das escolas e na mdia jornalstica/publicitria; d) arquivo do discurso profissional, constitudo de entrevistas com professores e coordenadores do Ensino Fundamental de trs escolas bilngues na cidade de So Paulo. Na primeira parte da pesquisa, so analisadas a formao de conceitos, as condies de produo e a circulao de sentidos de bilinguismo e educao bilngue nos trs primeiros arquivos (cientfico, poltico-educacional e institucional). Na segunda parte da pesquisa, focaliza-se a anlise discursiva de sentidos do currculo da escola bilngue portugus-ingls nos dizeres do discurso profissional, considerando possibilidades de seu atravessamento pelas discursividades analisadas na primeira parte. Uma das questes iniciais que mobilizou a investigao foi assim formulada: como se constituem e se organizam os saberes sobre a(s) lngua(s) nessas instituies, considerando que essa modalidade de ensino no contemplada por uma regulamentao especfica? A anlise indicou que os sentidos dessa ausncia funcionam diferentemente, num processo discursivo que hipotetizamos como uma tenso entre o silncio e o dizvel produzida pela (des)regulao do discurso poltico-educacional. Formulou-se a hiptese inicial de que os sentidos sobre o ensino de ingls na modalidade bilngue so produzidos por um pr-construdo, um j-dito, que funciona a partir de uma memria de deslegitimao do ensino da lngua inglesa na educao bsica brasileira. No decorrer da pesquisa, entretanto, essa hiptese foi apenas parcialmente confirmada, pois se constatou a incidncia de outros sentidos nesse processo discursivo, em que ganhou destaque a representao da lngua como mediao, configurando um imaginrio de tenso entre o aprender em ingls e o aprender ingls. A partir da anlise, conclumos que um olhar sobre o currculo como instrumento lingustico poderia constituir um caminho frtil de interpretao desses sentidos, uma tomada de posio que demandou deslocamentos tericos na busca por possibilidades de entremeio. Palavras-chave: Anlise de discurso. Bilinguismo. Silenciamento. Currculo. Escola bilngue portugus-ingls.

  • ABSTRACT

    FORTES, L. Between the silenced and the sayable: a discursive study of meanings of bilingualism, bilingual education and curriculum in Portuguese-English bilingual schools. 2016. 444 f. Thesis (PhD) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2016.

    This research proposes a discursive analysis of meanings of bilingualism, bilingual education and curriculum in Portuguese-English bilingual schools in the Brazilian educational system. Drawing on the materialist discourse analysis framework proposed by Michel Pcheux in the 1970s, it examines a complex of heterogeneous discursivities shaping the real of the fast increasing number of those schools, which is often justified by a growing demand for the acquisition of the English language at an earlier age. In view of that complex of discursivities, research data comprises texts from four archives: a) scientific discourse on bilingualism, consisting of a bibliographic survey of academic research and publications on bilingualism; b) political-educational discourse, consisting of national/state language policies and curriculum guidelines; c) institutional discourse, consisting of texts available on bilingual schools websites and news/advertising media; d) professional discourse, consisting of interviews with teachers and coordinators of three bilingual schools in the city of So Paulo. The first part of the research analyzes the formation of concepts, the conditions of production and circulation of meanings of bilingualism and bilingual education in the first three archives (scientific, political-educational and institutional). The second part of the research focuses on a discursive analysis of meanings of Portuguese-English bilingual schools curricula in professional discourse, considering possibilities of its imbrications with the discourses analyzed in the first part. The main research question was formulated as follows: how is knowledge about language(s) constituted and organized in those school institutions, considering that Portuguese-English bilingual education is not regulated by law? The analysis indicates that the meanings of this lack of regulation function differently in a discursive process interpreted as a tension between the silenced and the sayable which is produced by the (de)regulation of political-educational discourse. The initial hypothesis predicted that meanings of English language teaching in bilingual education provision were produced by the preconstructed (the already said of other discourses) evoked by a social-historical memory of delegitimation of English language teaching in the Brazilian educational system. However, that hypothesis was only partially confirmed, as an incidence of other meanings was found in this discursive process, such as the representation of language as mediation, which has configured an imaginary of tension between learning in English and learning English We concluded that these meanings could be better understood if the curriculum were interpreted as a linguistic tool. Keywords: Discourse analysis. Bilingualism. Silencing. Curriculum. Portuguese-English bilingual school.

  • RSUM

    FORTES, L. Entre le silence et le dicible: une tude discursive des sens du bilinguisme, lducation bilingue et des programmes dans les coles bilingues anglais-portugais. 2016. 444 f. Thse (Doctorat) - Facult de Philosophie, Lettres et Sciences Humaines de lUniversit de So Paulo, So Paulo, 2016.

    Cette recherche propose une analyse discursive des sens du bilinguisme, lducation bilingue et des programmes dans les coles bilingues anglais-portugais dans le systme ducatif brsilien. Les parcours de lanalyse sont effectus partir dune entre, thoriquement guide par lAnalyse du Discours de Pcheux, dans un ensemble de discours htrognes configurs sur le rel fait de l'expansion de ces coles, souvent justifie par une demande croissante de lacquisition de la langue anglaise un ge prcoce. Compte tenu de cet ensemble de discursivits, le corpus de recherche a t cr partir de la construction de quatre archives: a) larchive du discours scientifique sur le bilinguisme, compos dune collection de recherches et de publications acadmiques sur le bilinguisme; b) larchive du discours politique-ducatif, constitu de documents lgislatifs, rglementaires et pdagogiques; c) larchive du discours institutionnel, constitu des textes disponibles sur les sites Internet des coles, de la presse et des bulletins publicitaires; d) larchive du discours professionnel, comprenant des entretiens avec les enseignants et les coordinateurs des niveaux Primaire et Secondaire de trois coles bilingues de la ville de So Paulo. Dans la premire partie de la recherche, sont analyses la formation des concepts, les conditions de production et de circulation des sens du bilinguisme et lducation bilingue dans les trois premiers archives (scientifique, politique-ducatif et institutionnel). La deuxime partie de la recherche se concentre sur l'analyse discursive des sens des programmes des coles bilingues portugais-anglais dans le discours professionnel, compte tenu des possibilits de sa traverse par les discursivits analyss dans la premire partie. Lune des questions initiales qui ont mobilis cette recherche a t formule ainsi: comment se constituent et sorganisent les connaissances sur la(les) langue(s) dans ces institutions, tant donn que ce type d'enseignement nest pas matris par une rglementation spcifique? Lanalyse a indiqu que les raisons de cette absence fonctionnent de faon diffrente, dans un processus discursif qui met lhypothse dune tension entre le silence et le dicible produite par les rglementations (ou les manques de rglementations) du discours politique-ducatif. Lhypothse initiale formule est que le sens de lenseignement danglais en modalit bilingue est produit par un prconstruit, un dj-dit, qui fonctionne partir dune mmoire de dlgitimation de lenseignement de langlais dans le systme ducatif brsilien. Au cours de ltude, cette hypothse a t partiellement confirme, car il a t constat lincidence dautres sens dans ce processus discursif. Mots-cls: Analyse du Discours. Bilinguisme. Silencement. Programme scolaire. cole bilingue portugais-anglais.

  • EMOMBYKY

    FORTES, L. Kirir ha ayvu apytpe pete arandue a o e uaa hag ua mba pa e i heise, e i te omboe ha mboerrembiasa e i mboehao portuge-ingle-pegua. 2016. 444 r. Tembiapo (Tembikuaajra) - Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2016.

    Ko tembihai ogueru pete tesai o mba pa e i heise rehegua, eki te omboe ha mboerrembiasa e i mboehao portuge-ingle-pegua ojeipurva Brasil te omboe-pe. Ko tembihai rete ojejapo epurvae ue irundy techau aha u ra guive a) techau aha mbae uaavete ayvu eki rehegua; b) techau aha te omboere ui ayvu; c) techau aha mboehao ayvu; d) techaukaha mbaapohra ayvu (emongeta mboehra ha mboetendota ndive mbohapy eki mboehao tva So Paulo-pegua). Porandu epyr pete ha omongu va o type a tembihai mba ichapa heoi ha oemobosa oi uaa u ra umi e(gura) mbaehao pegua, o ei uaa rupi ndaiporiha mbaeveichagua apopyr ombohap va peichagua te omboe? Ko tesai o ohechau a umi heiseva o ha pyat irir ha ayvu apyt pe ova apopyr ndaipori hagu re engu ra te omboe rembi o ui rehegua. Oemo uri porandu epyrr mba pa heise ingle emboe e ime, mbae ogueruha pete o eepyre, pete o mbapyr mava, heis va maymva avare pe umi ingle emboe o va mbaehao Brasil-gua te ombo pe naiporiha. Ko tembiappe upe porandu oemone michimi. avei o ei uaa o ha ambue eimo upe heis va rapre.

    eipea Ayvu uaapota. eki. Kirir r. Mboerrembiasa. Mboehao eki portuge-ingle.

  • LISTA DE FIGURAS

    Figura 1: A representao do iceberg duplo da proficincia bilngue (CUMMINS; SWAIN ([1986] 1992a, p. 83) .............................................................. 177

    Figura 2: Configurao de arquivos sobre a questo do bilinguismo para a anlise discursiva .................................................................................................... 346

    Figura 3: Esquema sinttico dos percursos de leitura do arquivo .......................... 347

    Figura 4: Tenses das incidncias do discurso cientfico sobre o arquivo do discurso profissional analisadas no captulo 4 ........................................................ 350

    Figura 5: Anlise do atravessamento do discurso profissional pelo discurso institucional analisado no captulo 5 ........................................................................ 351

    Figura 6: Anlise das representaes e prticas do/no currculo bilngue nos dizeres do arquivo do discurso profissional (captulo 6) .......................................... 352

  • LISTA DE TABELAS

    Tabela 1: Levantamento da literatura para a configurao de um arquivo do discurso cientfico sobre bilinguismo (em ordem de publicao).......................... 40-41

    Tabela 2: Escolas internacionais no Brasil (Moura 2009, p. 57) ............................... 89

    Tabela 3: Escolas bilngues no estado de So Paulo (CORREDATO, 2010, p. 57, 8) ......................................................................................................................... 94

    Tabela 4: Escolas bilngues no estado de So Paulo (Moura 2009, pp. 60, 1) ........ 96

    Tabela 5: Finalidade dos atos normativos (DAVID, 2007, p. 23) ............................ 104

    Tabela 6: Levantamento de pesquisas sobre educao bilngue portugus-ingls no Brasil ........................................................................................................ 134

    Tabela 7: Processo de realizao de entrevistas para a configurao do arquivo do discurso profissional .............................................................................. 162

    Tabela 8: Normas para transcrio baseadas em Pretti (1999).............................. 162

    Tabela 9: Cdigos usados para identificao dos sujeitos e das escolas .............. 164

    Tabela 10: Categorias de anlise para a leitura do arquivo do discurso profissional .............................................................................................................. 169

    Tabela 11: Modelo de Imerso Total Precoce (CORREDATO, 2010, p. 31) ......... 316

  • LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    AD Anlise de Discurso

    AICL Aprendizagem Integrada de Contedos e de Lngua

    CAPES Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior

    FAPESP Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo

    FD Formao Discursiva

    HIL Histria das Ideias Lingusticas

    IBC Instruo Baseada em Contedos

    IES Instituio de Ensino Superior

    INEP Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira

    L2 Segunda Lngua

    LA Lingustica Aplicada

    LE Lngua Estrangeira

    MEC Ministrio da Educao

    OEBi Organizao das Escolas Bilngues de So Paulo

    PEB I Professor da Educao Bsica I

    PEB II Professor da Educao Bsica II

    PLE Portugus Lngua Estrangeira

  • SUMRIO

    Introduo: o comeo de um gesto de leitura ...................................................... 18

    PARTE I BILINGUISMO E EDUCAO BILNGUE: FORMAO DE CONCEITOS,

    CONDIES DE PRODUO E CIRCULAO DE SENTIDOS ....................... 34

    Captulo 1 O bilinguismo como objeto de conhecimento: a formao dos

    conceitos ............................................................................................................ 35

    1.1 DISCURSOS DA LINGUSTICA E PRODUO DE SABERES SOBRE

    BILINGUISMO ....................................................................................................... 37

    1.1.1 Configurao de um arquivo do discurso cientfico sobre bilinguismo ....... 38

    1.2 CONCEITUALIZAES SOBRE BILINGUISMO PRODUZIDAS PELA

    LINGUSTICA ........................................................................................................ 43

    1.2.1 O bilinguismo de prestgio em processos de designao .......................... 54

    1.3 A EMERGNCIA DE CONCEITOS DISCORDANTES: PROCESSOS DE

    RESSIGNIFICAO DE SENTIDOS DE BILINGUISMO ..................................... 58

    1.3.1 Pcheux e Pennycook: das (im)possibilidades de prticas de entremeio .. 69

    CONSIDERAES SOBRE O CAPTULO........................................................... 76

    Captulo 2 - Polticas de lnguas e memria: espaos do silncio, espaos do

    dizvel .................................................................................................................. 79

    2.1 POLTICAS DE LNGUAS ............................................................................... 80

    2.1.1 Memria do ensino de lngua estrangeira no Brasil: uma bifurcao de

    sentido ................................................................................................................ 82

    2.1.2 Circunstncias globalizantes ..................................................................... 87

    2.2 O ESPAO DO SILNCIO: (DES)REGULAO DO DISCURSO POLTICO-

    EDUCACIONAL .................................................................................................... 91

    2.3 O ESPAO DO DIZVEL: INTERNACIONALIZAO, PODER E

    SUBJETIVIDADE ................................................................................................ 111

    CONSIDERAES SOBRE O CAPTULO......................................................... 118

  • Captulo 3 Discursividades sobre a educao bilngue no Brasil: academia,

    mdia e divulgao institucional ..................................................................... 119

    3.1 ACADEMIA: PRODUO DE SABERES E (IN)VISIBILIDADE DE DIVISES

    ............................................................................................................................ 121

    3.2 MDIA: METONMIA DE CELEBRAO DA VANTAGEM BILNGUE .......... 138

    3.3 DIVULGAO INSTITUCIONAL: CELEBRAO DO INGLS GLOBAL E DA

    COMUNICAO ESPONTNEA ....................................................................... 146

    CONSIDERAES SOBRE O CAPTULO......................................................... 157

    PARTE II SENTIDOS DO CURRCULO DA ESCOLA BILNGUE PORTUGUS-

    INGLS NO DISCURSO PROFISSIONAL ........................................................ 159

    Captulo 4 Bilinguismo: o discurso cientfico e a taxonomia do impossvel 172

    4.1 O BILINGUISMO ENTRE SENTIDOS ONTOLGICOS E INSTITUCIONAIS

    ............................................................................................................................ 173

    4.2 SENTIDOS DE BILINGUISMO COMO EFEITOS DE UM PROCESSO

    PARAFRSTICO ................................................................................................ 188

    4.3 SENTIDOS DE ENSINO BILNGUE ENTRE TAUTOLOGIAS E ESPAOS DE

    EQUVOCO ......................................................................................................... 200

    4.4 O SUJEITO BILNGUE COMO MQUINA LGICA ..................................... 207

    CONSIDERAES SOBRE O CAPTULO......................................................... 215

    Captulo 5 Pygmalion: o discurso institucional e a legitimao .................... 217

    5.1 VENERANDO A CRIAO: UMA INSTITUIO SEM FALHAS .................. 221

    5.2 O SUJEITO-ALUNO: PROJETO E PRODUTO DA INSTITUIO ............... 229

    5.2.1 O aluno top .............................................................................................. 230

    5.2.2 O monolngue transformado em bilngue ................................................. 240

    5.2.3 Cidados pluriculturais para o mundo globalizado................................... 243

    5.3 O MODO COMPARATIVO DE DIZER CONSTRUINDO A LEGITIMAO .. 247

    5.4 (CONTRA)IDENTIFICAES COM UMA EDUCAO DE ELITE: MAIS UM

    LUGAR DE LEGITIMAO? .............................................................................. 267

    CONSIDERAES SOBRE O CAPTULO......................................................... 278

  • Captulo 6 Currculo e sujeito: recorte e organizao de saberes ................. 282

    6.1 PROCESSOS METONMICOS DE DEFINIO DO CURRCULO BILNGUE

    ............................................................................................................................ 290

    6.1.1 O currculo bilngue integrado: um lugar de completude, equilbrio e

    harmonia ........................................................................................................... 291

    6.1.2 O currculo bilngue baseado em projetos: instaurao de certos modos de

    governamentalidade ......................................................................................... 299

    6.1.3 O currculo bilngue socioconstrutivista: diluio e indistino ................. 306

    6.2 O CURRCULO COMO ORGANIZAO DE SABERES SOBRE (O ENSINO

    D)A LNGUA: REPRESENTAO DE UM LUGAR SEMPRE ATINGVEL ........ 314

    6.2.1 (O ensino d)a lngua como mediao: um saber sobre algo pela lngua . 315

    6.3 O CURRCULO BILNGUE REGULAMENTADO: ESPAOS DE

    (DES)REGULAO ............................................................................................ 327

    CONSIDERAES SOBRE O CAPTULO......................................................... 341

    Consideraes finais: a questo da interpretao incontornvel e retornar

    sempre ............................................................................................................ 345

    Referncias ............................................................................................................ 363

    Apndices .............................................................................................................. 389

    Anexos ................................................................................................................... 442

  • 18

    INTRODUO: O COMEO DE UM GESTO DE LEITURA1

    A anlise de discurso trata a questo da interpretao restituindo a espessura linguagem, e a opacidade aos sentidos. Ela prope, ento, uma distncia, uma desautomatizao da relao do sujeito com os sentidos. (ORLANDI, [1996] 2007a, p. 99).

    Comecemos a reconstruo da histria de um gesto de leitura pelos caminhos

    abertos pela interpretao. Esse campo pode ser aquele que nos convoca

    incessantemente ao sentido, na iluso das evidncias e das verdades, daquilo que

    se apresenta como inquestionvel numa transparncia fabricada da linguagem que

    nos captura para nos reconhecermos como sujeitos livres para aceitarmos nossa

    submisso (ALTHUSSER, [1969] 2007). Nessa convocao ideologia estamos

    colados aos sentidos. Mas esse campo da interpretao, visto como uma escritura,

    uma leitura interpretativa (PCHEUX [1982] 2010), pode constituir um gesto de

    distanciamento a partir do qual a linguagem recobra sua profundidade, seus

    equvocos, deixando escapar pontos de impossvel PCHEUX, [1983] 2002, p. 29)

    na opacidade dos sentidos, pontos de deriva possveis PCHEUX, [1983] 2002, p.

    53), que deslizam e que podem ser sempre outros nas contingncias das

    identificaes do sujeito e no ritual com falhas da ideologia.

    A possibilidade de realizao de gestos de leitura interpretativa (PCHEUX

    [1982] 2010) o que nos tem mobilizado no campo de estudos e de pesquisas na

    anlise do discurso pecheutiana h mais de doze anos. Uma histria em contnua

    (re)construo dos afetos tericos (PAVEAU; ORLANDI, 2013). Afetos que nos

    inscrevem em momentos de desautomatizao na relao com o sentido

    (ORLANDI, [1996] 2007a, p. 99) por meio dos recortes e das organizaes de

    saberes propostos por essa escritura num batimento entre descrio e

    interpretao (PCHEUX, [1983] 2002, p. 54). Esta pesquisa resulta de muitos

    desses batimentos, que se desdobraram em aprendizagens e deslocamentos, a

    muito mais que duas mos... e as mos do leitor neste momento tambm fazem

    parte desse processo, no qual devero se enrolar e desenrolar os fios dessa malha

    interpretativa, como no gesto incansvel de Penlope. Comecemos, ento, puxando

    1 Seria do maior interesse reconstruir a histria deste sistema diferencial dos gestos de leitura

    subjecente, na construo do arquivo, no acesso aos documentos e a maneira de apreend-los, nas prticas silenciosas da leitura espontnea reconstituveis a partir de seus efeitos na escritura consistiria em marcar e reconhecer as evidncias prticas que organizam essas leituras, mergulhando a leitura literal (enquanto apreenso-do-documento) numa leitura interpretativa que uma escritura. (PCHEUX ([1982] 2010, p. 51, grifos do autor).

  • 19

    o fio de um relato, imaginariamente construdo e organizado como um incio de

    constituio do arquivo desta pesquisa, uma vez que o arquivo permite uma leitura

    que traz tona dispositivos e configuraes significantes (GUILHAUMOU;

    MALDIDIER [1986] 2010, p. 162), isto , o arquivo funciona discursivamente,

    produzindo efeitos de sentido.

    I. Puxando o fio de um relato: incurses incipientes pelas discursividades em

    circulao sobre a educao bilngue

    Iniciei minha experincia profissional como professora de lngua inglesa em

    um instituto de idiomas em 1998, um ano antes de ingressar no curso de Graduao

    em Letras na USP. Atuando no Ensino Fundamental em uma escola regular em So

    Paulo e num curso de ps-graduao em uma faculdade entre 2008 e 2012 2 ,

    comecei a observar que os sentidos da lngua inglesa filiados ao imaginrio de uma

    super-comunicao como parte da ideologia predominante do mercado

    globalizado (PAYER, 2005, p. 22) comeavam a circular mais intensamente a partir

    de/por um novo lugar: a escola bilngue portugus-ingls. Muitos de meus alunos e

    alguns de meus colegas comeavam a questionar a qualidade do ensino de lngua

    inglesa na escola regular, contrapondo-o ao ensino da escola bilngue, tido como

    mais eficaz, uma vez que, nesse contexto, a criana aprenderia a lngua mais

    cedo e, portanto, conseguiria alcanar a proficincia mais fcil e rapidamente.

    Instigada por esses sentidos atribudos ao ensino da lngua inglesa sentidos

    que pareciam produzir, imaginariamente, um novo lugar de legitimao desse ensino

    , realizei algumas pesquisas preliminares sobre o oferecimento da modalidade de

    educao bilngue no Brasil. Entretanto, no foi possvel encontrar estatsticas3 que

    tenham registrado o surgimento, a oficializao e a expanso desse segmento

    educacional. Ao mesmo tempo, observei que uma das discursividades mais

    proeminentes sobre as escolas bilngues aparecia nas textualidades colocadas em

    2 Ambas as instituies enquadram-se no segmento privado de ensino.

    3 Referimo-nos a rgos governamentais responsveis pela organizao e regulamentao do sistema educacional brasileiro, nomeadamente MEC e seus respectivos institutos de pesquisa e de documentao, dentre os quais destacamos o INEP.

  • 20

    circulao pela mdia jornalstica, que, desde a dcada de 2000 4 , vinha dando

    destaque ao aumento do nmero desses estabelecimentos de ensino no mercado

    e enfatizava as vantagens da educao bilngue. O discurso da mdia parecia

    instaurar, assim, um dos espaos do dizvel 5 (ORLANDI, [1990] 2008a; [1992]

    2002a) sobre a educao bilngue no Brasil, dando-lhe visibilidade a partir de

    determinados sentidos. Na matria Cresce procura por escolas bilngues no pas

    (AGNCIA ESTADO, 2010), por exemplo, o fenmeno educacional do

    bilinguismo aparece assim enunciado

    O nmero de escolas bilngues no Brasil saltou de 145 em 2007 para 180 em 2009, registrando um aumento de 24% no perodo. Neste ano, outros sete colgios esto abrindo as portas s em So Paulo.O surgimento de novas instituies revela um nicho educacional disputado, que se tornou sonho de consumo de famlias de classe mdia e alta.

    A intensificao da circulao de informaes sobre as escolas bilngues na

    mdia constitui um movimento de regulao de sentidos no apenas sobre essa

    modalidade de ensino, mas tambm sobre as lnguas em questo o portugus e o

    ingls, no caso e sobre os processos de aquisio de lnguas evocados pelo

    significante bilinguismo. Assim, certos sentidos (e no outros) so colocados em

    circulao pela mdia sentidos de exaltao de uma vantagem bilngue 6 , que

    produzem uma representao do bilinguismo e da educao bilngue como saberes

    legitimados sobre (a relao entre o sujeito e) a lngua, com marcas de

    discursividades do mercado (nicho educacional disputado, sonho de consumo).

    As manchetes a seguir ilustram a circulao de sentidos dessa vantagem bilngue

    Aprendizado precoce: Quanto mais cedo, mais fcil Folha de So Paulo (26/08/2003)

    7

    Por um crebro bilngue Revista Educao (14/07/2011)

    8

    Fluncia em um segundo idioma e acesso ao estudo no exterior atraem brasileiros para escolas bilngues - O Globo (24/01/2008)

    9

    Bebs tm aula de ingls antes mesmo de falar - Folha de So Paulo (12/06/2011)

    10

    4 Vide no Anexo A os dados sobre a frequncia de publicaes sobre educao bilngue no Jornal

    O Estado de So Paulo. Esses dados so apenas ilustrativos, apontando um aumento na ocorrncia desse sintagma num jornal de grande circulao no estado. 5 Orlandi ([1990] 2008a, p. 60) define o dizvel como aquilo que determinado scio-historicamente como tal. Como o prprio ttulo desta tese indica, mobilizaremos esse conceito em diversos momentos de nossas anlises discursivas. 6 Desenvolveremos esta anlise na seo 3.2 do captulo 3.

    7 Cf. referncia completa em Almeida (2003).

    8 Cf. referncia completa em Corra (2011).

    9 Cf. referncia completa em Matuck (2010).

  • 21

    Crianas bilngues tm mais facilidade na alfabetizao O Estado de So Paulo (09/02/2012)

    11

    Falar duas lnguas desde cedo positivo O Estado de So Paulo (23/09/2013)

    12

    Em um estudo discursivo sobre o ensino de ingls para crianas no Brasil,

    Garcia (2011) 13 identificou o enunciado quanto mais cedo, melhor como

    predominante na produo de sentidos sobre o ensino da lngua inglesa nesse

    contexto educacional. Tal enunciado perpassa esses dizeres, construindo a

    necessidade da aprendizagem precoce de ingls. Desse modo, nas textualidades da

    mdia, a escola bilngue portugus-ingls predominantemente significada como um

    lugar em que a demanda por esse tipo de aprendizagem seria contemplada

    plenamente, retroalimentando os sentidos da vantagem bilngue, principalmente a

    partir da comparao com a modalidade de ensino de ingls em escolas regulares

    no-bilngues.

    II. (Des)arquivando: adentrar o campo de documentos pertinentes e

    disponveis sobre uma questo14

    Essas incurses ainda incipientes pelas discursividades em circulao sobre

    a educao bilngue produziram o desejo de buscar pesquisas sobre as escolas

    particulares bilngues portugus-ingls no Brasil e, mais especificamente, na cidade

    de So Paulo. Foram escassos os trabalhos encontrados, nenhum deles filiado

    teoricamente anlise de discurso (AD). Tais estudos tm em comum o objetivo de

    investigar diversos aspectos do funcionamento das escolas bilngues brasileiras em

    mbito nacional e/ou estadual, pautando-se metodologicamente em abordagens

    etnogrficas tanto na rea de Educao quanto na rea de Lingustica Aplicada. o

    caso de Corredato (2010), Cortez (2007), David (2007), Fvaro (2009), Gazotti

    10

    Cf. referncia completa em Gois e Rewald (2011). 11

    Cf. referncia completa em Milena (2012). 12

    Cf. referncia completa em Mattos (2013). 13

    Tomei conhecimento desse estudo durante o II Seminrio de Pesquisas sobre Identidade e Discurso, realizado na Unicamp em 06 e 07 de dezembro de 2010, quando tive a oportunidade de compartilhar minhas inquietaes iniciais sobre as discursividades da educao bilngue com a amiga e pesquisadora Bianca R. V. Garcia, cuja pesquisa de mestrado (2011) sobre o ensino de ingls para crianas estava em andamento, sob orientao da Profa. Dra. Deusa Maria de Souza-Pinheiro-Passos na Universidade de So Paulo. Foi ela quem levantou a questo do currculo bilngue como uma rea ainda a ser investigada discursivamente. 14

    Definio de arquivo formulada por Pcheux ([1982] 2010, p. 51).

  • 22

    (2011); Meaney (2009); Mello (2002), Miascovsky (2008) e Moura (2009).

    Entendemos que esses estudos sejam de suma importncia para o processo de

    mapeamento da estruturao do ensino bilngue portugus-ingls no Brasil, trazendo

    discusses pertinentes quanto s implicaes pedaggicas, cognitivas,

    psicolingusticas e sociolingusticas envolvidas no processo de formao proposto

    nesse contexto.

    A pesquisa de Moura (2009), por exemplo, traz um levantamento de escolas

    internacionais no Brasil (34 escolas) e de escolas bilngues portugus-ingls no

    Estado de So Paulo (61 escolas)15. A pesquisadora destacou a importncia de se

    considerar a diferenciao entre as escolas internacionais, tradicionalmente

    organizadas por comunidades de imigrantes e cujo currculo est essencialmente

    focado na lngua do pas ao qual se vinculam (o portugus, no caso, ensinado

    como L2/LE), e as escolas autodenominadas bilngues, cu a presena recente e

    crescente no panorama educacional brasileiro interpretada como um fenmeno

    relacionado ao aumento do interesse pelo ingls como lngua internacional,

    globalizao, s exigncias do mercado de trabalho e busca de diferenciao e

    capital cultural [...]. (MOURA, 2009, p. 29). Em outro momento, Moura (2010)

    abordou a questo da falta de polticas pblicas e de uma legislao oficial que

    contemplem programas de educao bilngue voltados para o ensino de lnguas

    de prestgio no Brasil, enfatizando, novamente, o crescimento desse segmento

    educacional.

    A pesquisa de David (2007) tambm destacou o aumento do nmero de

    escolas de educao bilngue a partir dos anos 1990, predominantemente na cidade

    de So Paulo, onde algumas escolas particulares de educao infantil passaram a

    oferecer propostas curriculares que contemplavam o ensino da lngua inglesa com

    base no modelo de programa de imerso canadense. Embora tenha apontado a

    expanso desse segmento educacional no Brasil, a pesquisadora no aprofundou a

    anlise de suas possveis causas socioeconmicas, restringindo seu estudo

    15

    Segundo a pesquisadora, o critrio para o levantamento dessas escolas foi sua autodenominao como bilngue, no tendo sido seu ob etivo analisar se o currculo dessas escolas seguia uma configurao que caracterizasse efetivamente um ensino bilngue. possvel encontrar uma listagem atualizada dessas escolas no blog Educao Bilngue no Brasil, sob sua responsabilidade: . Veremos no captulo 2 (seo 2.2) que, como no h estatsticas precisas referentes a esse segmento educacional, cada pesquisador que deseja dedicar-se ao estudo dessa modalidade de ensino no pas usa seus prprios critrios para fazer o levantamento do nmero de escolas. Assim, temos contagens diferentes, dependendo dos objetivos de cada pesquisa.

  • 23

    investigao das teorias de ensino-aprendizagem que constituam a base do Projeto

    Poltico-Pedaggico de uma escola bilngue de So Paulo.

    Corredato (2010) tambm se dedicou ao estudo dessa modalidade de ensino,

    concentrando-se especialmente na anlise do Programa de Imerso Total Precoce

    em uma escola bilngue em So Paulo. A pesquisadora analisou, dentre outros

    temas, as motivaes que levam famlias brasileiras a matricularem seus filhos em

    escolas bilngues. Segundo seus dados, duas razes foram apontadas como

    predominantes para ustificar essa escolha a) a crena de que falar bem uma

    segunda lngua ho e fundamental em nossa sociedade; e b) a crena de ser esta

    uma oportunidade de melhor preparar os filhos para o mercado de trabalho

    (CORREDATO, 2010, p. 67, 68). Essas motivaes no so problematizadas na

    pesquisa, sendo interpretadas como originrias de uma demanda natural de nossa

    sociedade globalizada em que falar uma segunda lngua (i.e., a lngua inglesa)

    torna-se uma vantagem, uma vez que pode levar ascenso econmica e social.

    Consideramos de crucial importncia a contribuio dessas pesquisas para a

    configurao de nossa investigao, uma vez que constituem fontes interessantes

    de apreenso das condies de produo do funcionamento discursivo que foi se

    delineando como nosso objeto de anlise. Desse modo, ao olharmos

    discursivamente para os dados levantados e estudados nessas pesquisas, podemos

    dizer que o processo de implementao das escolas particulares bilngues

    portugus-ingls no Brasil parece estar afetado predominantemente por um

    imaginrio social da lngua inglesa como um bem de consumo necessrio, estando

    relacionado ascenso econmica e a um status sociocultural privilegiado um

    imaginrio que constitui os sentidos evocados no texto miditico, como vimos no

    exemplo acima (AGNCIA ESTADO, 2010). Esse imaginrio constitui, assim, uma

    memria na e, ao mesmo tempo, da lngua (PAYER, 2006, p. 39, 40), perpassada

    pela histria e por seu funcionamento geopoltico, colocando em jogo a relao do

    sujeito com a lngua.

    Ao centrar-se no foco de ateno sobre a memria na lngua, est se considerando a relao entre ambas a partir do ngulo da memria histrica, sob a forma da memria discursiva presente na lngua. [...] Por outro lado, se tomamos o ngulo inverso, a partir da lngua, focalizando-a de conformidade com o que ela significa por sua relao com a histria, ento se est considerando a memria da lngua, isto , a memria histrica (discursiva) parte constitutiva da lngua em que essa histria se d. Nesse sentido a lngua que significa por sua relao com a histria, no sentido de que o fato de um dado sujeito/cidado falar uma lngua X seja

  • 24

    o italiano no Brasil, em 1880, em 1939 ou em 1990 implica diferentes modos de fazer essa lngua significar por sua histria.

    Assim, a memria da/na lngua pode ser compreendida como parte de um

    complexo processo discursivo, uma vez que a memria mantm uma relao

    constitutiva com o real histrico como remisso necessria ao outro exterior

    (PCHEUX, [1983] 1999, p. 56), o que exige do analista de discurso um olhar para

    as especificidades desse exterior que delineia seus limites16. Tendo isso em vista e

    considerando o objeto discursivo que estamos delineando nesta pesquisa,

    observamos que a memria da/na lngua inglesa como lngua necessria encontra-

    se perpassada por representaes do ensino de lngua inglesa no Brasil constitudas

    por um processo histrico que instaurou uma bifurcao de sentidos entre uma

    lngua de mercado e uma lngua de escola (RODRIGUES, 2010; SOUZA,

    2005)17, produzindo sentidos de valorizao do ensino de ingls nas escolas de

    idiomas e de desvalorizao do ensino de ingls na escola regular.

    No podemos deixar de considerar que esse processo discursivo tem

    produzido efeitos para/nos sujeitos-professores e sujeitos-aprendizes brasileiros de

    lnguas estrangeiras. Algumas pesquisas recentes focando especialmente a lngua

    inglesa dedicaram-se ao estudo discursivo desse tema, dentre as quais destacamos:

    a) Baghin-Spinelli (2002), que identificou o discurso da falta e o discurso da

    excelncia como predominantes nas representaes imaginrias dos sujeitos-

    professores em formao em cursos de Letras (ingls/portugus); b) Erlacher

    (2009), que analisou o imaginrio de desvalorizao do ensino de lngua inglesa em

    escolas pblicas, buscando compreender suas relaes com a constituio

    identitria de sujeitos na posio de professores dessas instituies; c) e Silva

    (2010), que estudou a memria que constitui o ensino pblico no Brasil a fim de

    compreender suas relaes com o processo discursivo em funcionamento nas

    representaes de ensino de lngua inglesa materializadas nos dizeres de sujeitos-

    alunos do Ensino Fundamental e do Ensino Mdio.

    Embora tenham constitudo corpora distintos em suas anlises, esses estudos

    privilegiaram, direta ou indiretamente, um olhar sobre um mesmo objeto: o espao

    16 Segundo Pcheux ([1983] 1999, p. 56), uma memria no poderia ser concebida como uma esfera plena, cujas bordas seriam transcendentais histricos e cujo contedo seria um sentido homogneo, acumulado ao modo de um reservatrio: necessariamente um espao mvel de divises, de disjunes, de deslocamentos e de retomadas, de conflitos de regularizao... Um espao de desdobramentos, r plicas, polmicas e contradiscursos. 17

    Na seo 2.1.1 (captulo 2), analisaremos esse processo discursivo em detalhes.

  • 25

    de memria do ensino de lngua inglesa constituindo prticas e subjetividades nas

    quais se inscrevem brasileiros, tanto na posio de professores quanto na posio

    de aprendizes. E nesse espao de memria ou, nas palavras de Foucault,

    enunciados [...] em relao aos quais se estabelecem laos de filiao, gnese,

    transformao, continuidade e descontinuidade histrica (FOUCAULT, [1969] 2008,

    p. 64) que vm se inscrever as discursividades sobre o ensino bilngue, tornando

    (im)possveis determinados sentidos e posies para os sujeitos.

    III. Percursos de hipteses: Quando lhe mostramos a lua, o imbecil olha o

    dedo. Com efeito, por que no?18

    Tendo em vista essas consideraes e o esboo de anlise discursiva inicial a

    partir dos pesquisadores citados, passamos a refletir sobre a complexidade dos

    processos de produo de saberes sobre o ingls como lngua estrangeira (LE),

    sobre o ensino e a aprendizagem na escola bilngue e sobre os sujeitos envolvidos

    nessas prticas pedaggicas no contexto educacional brasileiro na

    contemporaneidade. A partir dessas reflexes iniciais, algumas perguntas foram

    sendo formuladas e reformuladas no decorrer da pesquisa, direcionando nosso olhar

    para movimentos de sentidos especficos nesse funcionamento discursivo.

    a) Como se constituem e se organizam os saberes sobre a(s) lngua(s)

    nas instituies bilngues, considerando que essa modalidade de

    ensino no contemplada por uma regulamentao especfica?

    b) Como se formalizam, se estabilizam e se legitimam determinadas

    prticas pedaggicas nesse espao institucional especfico?

    c) No que concerne especificidade das condies histricas e polticas

    subjacentes aos diferentes segmentos educacionais no Brasil, que

    sentidos heterogneos de bilinguismo e de educao bilngue so

    produzidos? Como esses sentidos se relacionam a sentidos mais

    estabilizados sobre o ensino/aprendizagem de ingls no Brasil,

    18

    Pcheux ([1983] 1999, p. 54, 55), falando sobre a questo da interpretao em anlise de discurso, cita o prov rbio chins e faz a provocao (Por que no?) para argumentar que o foco dessa teoria seria dirigir seu olhar sobre os gestos de designao antes que sobre os designata, sobre os procedimentos de montagem e as construes antes que sobre as significaes.

  • 26

    considerando certas polticas lingusticas historicamente

    implementadas?

    d) Como os espaos do silncio da (des)regulao do discurso poltico-

    educacional afetam os espaos do dizvel sobre essa modalidade de

    ensino?

    e) Levando em considerao o conceito de gramatizao (AUROUX,

    1992), em que medida o currculo uma vez que instaura

    normalizaes em torno do saber sobre a (da) lngua e seu ensino

    poderia constituir um instrumento lingustico?

    Essas perguntas direcionaram nosso olhar para um instrumento de

    formalizao, recorte e organizao de saberes na instituio escolar, o currculo,

    cuja anlise poderia encaminhar uma investigao na busca da compreenso de um

    espao discursivo que comeava a se delinear. Entretanto, ao pesquisar

    documentos curriculares oficiais que regem o ensino de LE na educao bsica, no

    localizamos nenhum registro de determinaes regulamentadoras acerca do

    funcionamento de escolas bilngues portugus-ingls 19 , o que, posteriormente,

    viemos a designar como um silenciamento de sentidos de oficialidade sobre a

    educao bilngue no discurso poltico-educacional20 . Diante da ausncia dessa

    regulamentao, passamos a questionar como, ento, essas instituies estavam

    estruturadas e autorizadas diante dos rgos pblicos de educao, tanto no nvel

    municipal, quanto no estadual e no federal.

    Segundo Corredato (2010), as escolas bilngues tm seu funcionamento

    garantido a partir do Art. 104 da LDB de 1961 (BRASIL, 1961), que autorizou a

    organizao de escolas experimentais, e do Art. 64 da LDB de 1971 (BRASIL,

    1971), que validou o trabalho nessas instituies. Com a LDB de 1996 (BRASIL,

    1996), esses artigos so excludos e autoriza-se o funcionamento de todos os

    estabelecimentos de ensino com pro etos pedaggicos prprios, desde que

    garantam os requisitos curriculares mnimos estabelecidos. Segundo Corredato

    (2010, p. 49):

    19

    Conversas informais com professores que trabalham em instituies bilngues tambm apontaram a ausncia dessa regulamentao, ficando a cargo de cada escola a organizao e a documentao curricular, segundo critrios prprios. 20

    Dedicamo-nos anlise desse silenciamento no captulo 2 e em diversos momentos de anlise do discurso profissional na Parte II desta tese.

  • 27

    Desde que observadas as caractersticas mnimas necessrias para seu registro como escola nacional (base curricular nacional e nmero de horas e dias letivos mnimos especificados pela lei, por exemplo), qualquer escola que complemente sua proposta pedaggica com um currculo bilngue tem seu funcionamento garantido, sem a necessidade de prvia autorizao.

    Embora funcionem como um espao de legitimao para o estabelecimento

    de escolas bilngues, nenhum desses documentos faz referncia particular sua

    implementao e estruturao. Tendo em vista essas consideraes, julgamos

    necessria e relevante uma anlise desse espao de contingncias 21 que se

    configura em torno do currculo (e de discursos sobre o currculo) da escola bilngue,

    buscando investigar a complexidade de seu funcionamento.

    Nessa reflexo, chegamos formulao da seguinte hiptese, que foi o ponto

    de partida para esta pesquisa: os sentidos sobre o ensino de ingls na modalidade

    bilngue so produzidos por um pr-construdo (PCHEUX [1975] 1988a), um j-

    dito, que funciona a partir de uma memria de deslegitimao do ensino da lngua

    inglesa no sistema educacional brasileiro. , portanto, a partir desse pr-construdo

    que o ensino de ingls nas escolas bilngues legitimado, regulando e estabilizando,

    assim, determinadas concepes de lngua e determinadas prticas pedaggicas.

    Desse modo, o currculo de ingls em funcionamento nessas escolas constitui um

    lugar de produo de sentidos sobre a lngua, sobre o ensino e, consequentemente,

    sobre os sujeitos.

    No decorrer da pesquisa, essa hiptese foi parcialmente confirmada, pois

    pudemos constatar a incidncia de outros sentidos nesse processo discursivo. Alm

    dessa hiptese inicial, outras hipteses foram se delineando, como veremos nas

    anlises. Nas consideraes finais da tese, sintetizamos e discutimos as implicaes

    dessas hipteses, buscando aprofundar as discusses sobre os movimentos de

    sentido em torno do currculo de lngua inglesa em instituies escolares bilngues

    portugus-ingls, num jogo entre o silncio e o dizvel.

    Pensando nesses trs pontos sobre os quais as discursividades sobre o

    currculo incidem lngua, ensino, sujeito , nosso interesse no currculo em

    funcionamento nessas instituies bilngues justifica-se pelo fato de que sua

    configurao parece estar filiada a processos discursivos de silenciamento

    21 Ao abordar o conceito de contingncia na formao de professores de ingls, Costa analisa propostas curriculares no Ensino Superior (Licenciatura e Letras) e enfatiza a incorporao da incerteza, da dvida, da contingncia nas propostas curriculares, para que professores e futuros docentes possam ensinar, movimentando-se com mais autonomia em terrenos de incertezas. (COSTA, 2008, p. 76).

  • 28

    (ORLANDI, [1992] 2002a; [1990] 2008a) no discurso poltico-educacional

    engendrados, por um lado, pela ideologia dominante contempornea [de] um

    apagamento, um enfraquecimento do Estado que funciona pela falta e, por outro

    lado, pela dominncia da sociedade de mercado (ORLANDI, 2007b, p. 60). A

    teorizao discursiva sobre o silncio assim formulada por Orlandi ([1992] 2002a,

    p. 31, 70).

    Chegamos ento a uma hiptese que extremamente incmoda para os que trabalham com a linguagem: o silncio fundante. Quer dizer, o silncio a matria significante por excelncia, um continuum significante. O real da significao o silncio. E como o nosso objeto de reflexo o discurso, chegamos a uma outra afirmao que sucede a essa: o silncio o real do discurso. [...] Evidentemente, no do silncio em sua materialidade fsica de que falamos aqui mas do silncio como sentido, como histria (silncio humano), como matria significante. O silncio de que falamos instala o limiar do sentido. (ORLANDI, [1992] 2002a, p. 31, 70, grifo da autora)

    A hiptese de Orlandi se desdobra, assim, para uma reflexo sobre a

    incompletude constitutiva da linguagem e do su eito, afirmando que todo o processo

    de significao traz uma relao necessria ao silncio (ORLANDI, [1992] 2002a, p.

    54), o qual significa em um espao de significao selvagem em que emergem a

    contradio, a ruptura, o equvoco, sem a domesticao produzida pelo dizer

    (ORLANDI, [1992] 2002a, p. 56). Ao lado da natureza constitutiva do silncio

    fundante, Orlandi coloca a natureza contingente da poltica do silncio, ou

    silenciamento como o sentido sempre produzido de um lugar, a partir de uma

    posio do su eito, ao dizer ele est, necessariamente, no dizendo outros

    sentidos. (ORLANDI, [1992] 2002a, p. 54, 55). Assim, o que no dito, o que

    silenciado, constitui, por isso mesmo, significao, [produzindo] um recorte entre o

    que se diz e o que no se diz (ORLANDI, [1992] 2002a, p. 75).

    Temos considerado essas definies tericas para compreender como

    funciona esse recorte no caso especfico do objeto discursivo delineado em nossa

    pesquisa. Assim, a noo de silenciamento tem nos auxiliado a identificar

    significaes produzidas nesse espao de no-dizer instaurado pela poltica do

    silncio que parece se instaurar nos processos discursivos relacionados ao

    currculo da escola bilngue.

    Entendemos que esse processo de silenciamento apresenta-se como uma

    problemtica importante no que concerne s questes de ensino e aprendizagem de

    ingls/LE no Brasil atual, constituindo um objeto de estudo bastante profcuo para o

  • 29

    desenvolvimento de uma anlise discursiva que aprofunde uma discusso sobre as

    implicaes histricas, sociais e ideolgicas desse complexo espao de produo de

    saber e poder (FOUCAULT, 1982) imbricado no funcionamento das instituies

    escolares bilngues portugus-ingls. Desse modo, buscamos analisar os sentidos

    do discurso sobre o currculo das/nas escolares bilngues na cidade de So Paulo a

    partir de uma perspectiva discursiva segundo a qual as lnguas so concebidas em

    sua relao com o poltico e com o histrico (PCHEUX, [1983] 1999; PCHEUX,

    [1983] 2002), ORLANDI, 2001a; ORLANDI, 2007c).

    Trazendo para discusso o caso especfico de nossa pesquisa o discurso

    sobre o currculo da escola bilngue portugus-ingls , foi tambm importante

    considerar a anlise de ORLANDI (2007b) sobre o conceito de multilinguismo

    embora sentidos em torno desse termo produzam a evidncia de pluralidade e

    diversidade, a imposio da lngua inglesa como hegemnica institui um controle

    sobre esses sentidos, naturalizando uma relao de equivalncia entre a lngua

    inglesa e a prpria noo de multilinguismo como se o conhecimento da lngua

    inglesa fosse suficiente para abarcar o conhecimento de diversas lnguas e culturas.

    H, nesse processo discursivo, um apagamento dessa posio de hegemonia

    histrica e politicamente construda ocupada pela lngua inglesa, silenciando,

    assim, uma questo poltica, segundo Orlandi (2007b)22.

    Anlises iniciais23 indicaram que esse processo discursivo parecia perpassar

    a produo de sentidos em torno da lngua inglesa nos processos de significao da

    educao bilngue, mobilizando um espao de memria sobre a lngua e, ao mesmo

    tempo, instaurando novos sentidos. Tais anlises iniciais levaram-nos a considerar

    a educao bilngue um acontecimento discursivo (PCHEUX, [1983] 2002),

    movimento de interpretao terica que nos mobilizou em anlises posteriores24,

    mas que decidimos abandonar.

    22

    Este ser o foco de nossa anlise discursiva, especialmente no captulo 2 (seo 2.2). 23

    Referimo-nos a duas anlises: 1) Anlise apresentada como trabalho final da disciplina Questes de identidade e o(s) discurso(s) sobre ensinar/aprender lnguas, ministrada pela Profa. Dra. Anna Maria Grammatico Carmagnani em 2011 (FFLCH-USP). O trabalho foi apresentado no III SIDIS, na Unicamp (cf.: FORTES, 2012a). 2) Anlise apresentada como trabalho final da disciplina Discurso, gramatizao e relaes internacionais, ministrada pela Profa. Dra. Mara Teresa Celada e pelo Prof. Dr. Jos Horta Nunes em 2011 (FFLCH-USP). O trabalho foi apresentado no III Congresso Internacional da ABRAPUI, na Universidade Federal de Santa Catarina (cf.: Fortes, 2012b). 24

    A interpretao da educao bilngue como um acontecimento discursivo ganhou corpo a partir de alguns desenvolvimentos tericos nascidos de reflexes decorrentes das aulas ministradas pelo Prof. Adrin Pablo Fanjul na disciplina Proximidade lingustica, gneros discursivos e cenas da enunciao (2012/FFLCH-USP). No trabalho final que apresentamos naquela ocasio, estruturamos nosso

  • 30

    Pcheux aborda o acontecimento em sua opacidade no ponto de encontro de

    uma atualidade e uma memria (PCHEUX, [1983] 2002, p. 17), pois comporta a

    equivocidade do acontecimento e, ao mesmo tempo, insere-se em uma rede de

    enunciados que o antecedem e lhe do contorno, (re)organizando seus (efeitos de)

    sentidos. O processo de inscrio do acontecimento no espao de memria implica,

    assim, uma tenso contraditria (PCHEUX, [1983] 1999, p. 50), pois pode

    escapar a essa inscrio ou pode ser absorvido completamente nela. No segundo

    caso, o acontecimento entra no sistema de regularizao da memria, que o

    absorve na cadeia de enunciados, tornando-o, assim, possvel, transparente,

    evidente.

    Considerando essa conceitualizao, estvamos interpretando a expanso da

    escola bilngue como um acontecimento que havia irrompido na memria

    discursiva, produzindo efeitos, tanto de desestabilizao/reconfigurao quanto de

    absoro de dizeres j estabilizados. Essa interpretao mostrou-se inconsistente,

    pois o conceito de acontecimento discursivo em Pcheux ([1983] 2002; [1983] 1999)

    implica uma ruptura produzida por um acontecimento localizvel historicamente. No

    caso da anlise discursiva empreendida por Pcheux ([1983] 2002) sobre as

    eleies presidenciais de 1981 na Frana, o foco est nesse acontecimento, cuja

    discursivizao pelo enunciado On a gagn instaura uma ruptura no processo de

    produo de sentidos no campo poltico francs a irrupo de metforas esportivas

    para designar o acontecimento poltico, o que j vinha trazendo desdobramentos

    para o discurso poltico em sua insero na mdia desde os anos 1970. Similarmente

    anlise de Pcheux ([1983] 2002), poderamos citar a anlise de Indursky (2003)

    sobre o enunciado Lula l como instaurador de um acontecimento e tamb m a

    anlise de Guilhaumou e Maldidier ([1986] 2010) sobre o acontecimento das

    Jornadas de Outubro de 1789.

    principal argumento na interpretao do surgimento da escola bilngue como um acontecimento que irrompe na memria discursiva (no caso, na memria da lngua inglesa e de seu ensino no Brasil), produzindo efeitos, tanto de desestabilizao/reconfigurao quanto de absoro de dizeres j estabilizados. Tivemos a oportunidade de compartilhar as anlises decorrentes desse desenvolvimento terico em dois eventos acadmicos: no VI SEAD (UFRGS, Porto Alegre, 2013) e no X CBLA (UFRJ, Rio de Janeiro, 2013), resultando em dois trabalhos publicados nos anais desses eventos (FORTES, 2013a; 2013b). Nessas oportunidades de compartilhamento das anlises em andamento, mais de uma vez fui questionada a respeito do conceito de acontecimento discursivo, mais especificamente a respeito do modo como eu vinha mobilizando tal conceito para interpretar a emergncia de sentidos de educao bilngue.

  • 31

    Tal problematizao nos levou a perguntar: como detectar a irrupo do

    acontecimento supostamente produzido pela expanso das escolas bilngues se

    essa expanso no constitui algo localizvel historicamente? Alis, poderamos dizer

    que as escolas bilngues constituem um acontecimento ou so discursivizadas

    como tal? O surgimento das escolas bilngues no parece produzir uma ruptura no

    sentido que Pcheux formulou de uma desregulao que vem perturbar a rede dos

    implcitos ([1983] 1999, p. 53). Se o acontecimento implica uma ruptura, como

    delinear essa ruptura em relao s discursividades sobre o currculo bilngue? Foi

    nesse ponto que comeamos a desconstruir nossa hiptese inicial. Pareceu-nos ser

    possvel compreender os movimentos de sentidos de bilinguismo e de currculo

    bilngue a partir de outro olhar: a anlise das diversas discursividades em circulao

    que demandam certas interpretaes e remetem a determinadas regies do

    interdiscurso em que certos sentidos de bilinguismo e de currculo bilngue so

    disponibilizados enquanto outros so silenciados ou, ainda, deslocados. Nessa

    interpretao, o foco desloca-se da noo de acontecimento da educao bilngue

    para o funcionamento de um complexo de discursividades heterogneas que

    vm circunscrever o real incontornvel do aparecimento e da difuso das escolas

    bilngues portugus-ingls no cenrio educacional brasileiro. Esse gesto de leitura

    configurou-se como um dispositivo de anlise que permitiu avanar em algumas

    reflexes sobre o funcionamento de (im)possibilidades de dizer sobre esse processo

    discursivo em determinadas condies de produo25.

    IV. O (estado de) corpus: conjunto sem fronteira no qual o interdiscurso,

    exterior, irrompe no intradiscurso26

    Pensando nesse complexo de discursividades, configuramos o corpus de

    pesquisa a partir da construo de quatro arquivos27 que permitissem a leitura dos

    processos de significao aos quais nos dedicamos nesta pesquisa:

    25

    Segundo Orlandi (2002b, p. 30), as condies de produo incluem, num sentido estrito, o contexto imediato da enunciao e, num sentido amplo, o contexto scio-histrico e ideolgico. 26

    Mazire ([2005] 2007, p. 61) assim define o estado de corpus em anlise de discurso. 27

    Pcheux designa o arquivo como um campo de documentos pertinentes e disponveis sobre uma questo ([1982] 2010, p. 51). Como afirmam Guilhaumou e Maldidier ([1986] 2010, p. 162) O arquivo no um simples documento no qual se encontram referncias; ele permite uma leitura que traz tona dispositivos e configuraes significantes, isto , ele produz efeitos de sentido, funciona

  • 32

    a) arquivo do discurso cientfico sobre bilinguismo, constitudo de um

    levantamento das pesquisas e publicaes acadmicas sobre

    bilinguismo;

    b) arquivo do discurso poltico-educacional, constitudo de documentos

    legislativos, normativos e curriculares produzidos por rgos

    governamentais responsveis pela organizao e regulamentao do

    sistema educacional brasileiro (MEC, Secretaria de Educao do

    Estado de So Paulo, Conselho Municipal de Educao da Prefeitura

    de So Paulo e Diretorias Regionais de Ensino);

    c) arquivo do discurso institucional, constitudo de textos disponibilizados

    nos sites das escolas e na mdia jornalstica/publicitria;

    d) arquivo do discurso profissional, constitudo de entrevistas com

    professores e coordenadores do Ensino Fundamental de trs escolas

    bilngues na cidade de So Paulo.

    Buscamos, desse modo, [reconhecer] os corpora como inseridos em uma

    rede interdiscursiva de formulaes (SARGENTINI, 2008, p. 106), priorizando,

    assim, uma possibilidade de vislumbrar a heterogeneidade das formaes

    discursivas a serem delineadas e, consequentemente, a complexidade dos dizeres

    que ora se complementam, ora se contradizem, mas nunca se completam entre os

    limites entre o dizvel e o no-dizvel que se mostram ao sujeito no processo de

    interpelao-identificao (PCHEUX ([1975] 1988a).

    Os gestos de leitura que lanamos sobre esses arquivos foram constituindo

    percursos de anlise discursiva que recortamos e tecemos na malha da textualidade

    da tese28, dividida em duas partes:

    a) Na Parte I, tratamos da formao de conceitos de bilinguismo no

    arquivo do discurso cientfico (captulo1); das condies de produo

    dos discursos sobre a educao bilngue portugus-ingls no Brasil,

    em relao com o arquivo do discurso poltico-educacional (captulo 2);

    e da circulao de sentidos envolvendo os arquivos do discurso

    cientfico e do discurso institucional (captulo 3).

    discursivamente. No decorrer da tese, falaremos mais sobre os processos de construo dos arquivos para nossos fins de anlise. 28

    Um diagrama da construo da textualidade da tese pela organizao dos percursos de leitura encontra-se no Apndice A.

  • 33

    b) Na Parte II, analisamos os sentidos do currculo da escola bilngue

    portugus-ingls produzidos no arquivo do discurso profissional. No

    captulo 4, analisamos os efeitos de sentido sobre o bilinguismo e a

    educao bilngue nesses dizeres; no captulo 5, dedicamo-nos ao

    estudo da produo de sentidos de legitimao da instituio bilngue;

    e, no captulo 6, analisamos a construo discursiva dessa

    estruturao curricular, interpretando o currculo como um instrumento

    lingustico.

    Tendo apresentado os principais pontos que nos moveram no decorrer do

    processo de constituio deste dispositivo de anlise discursiva, prossigamos,

    ento, em direo aos percursos desse gesto de leitura, que j comeam a se abrir

    para outros espaos de interpretao.

  • 34

    PARTE I BILINGUISMO E EDUCAO BILNGUE: FORMAO DE CONCEITOS,

    CONDIES DE PRODUO E CIRCULAO DE SENTIDOS

  • 35

    CAPTULO 1 O BILINGUISMO COMO OBJETO DE CONHECIMENTO: A FORMAO

    DOS CONCEITOS

    Uma cincia no nasce da definio de um objeto, nem do encontro com um objeto, nem de imposio de um mtodo. Nasce da constituio de um corpo de conceitos, com as suas regras de produo. Por esta mesma razo o devir de uma cincia a formulao dos conceitos e das teorias desta cincia. No s cincias diferentes tero formas diferentes de devir, mas no seio da unidade nominal de uma mesma cincia, conceitos, ou teorias podem ter devires diferentes, tipos de constituio ou de formao que no se podem reduzir num nico modelo. (PCHEUX; FICHANT [1969] 1989, p.113).

    No livro A ferramenta imperfeita ([1977] 1992), Paul Henry desconstri a

    noo de pressuposio na lingustica a partir do trabalho de Frege ([1892] 2009),

    que "formula uma nova questo ao mostrar que a gramtica, e no apenas o lxico

    atravs das questes de referncia, tal que a lngua permite criar um mundo de

    fices, dar aparncia que os objetos existem, quando eles no existem." (HENRY

    [1977] 1992, p. 13). Analogamente, Henry destaca que o tratamento dado lngua

    por Saussure em seu Curso de Lingustica Geral traz tona essa ambiguidade, uma

    vez que, para ele, a lngua , ao mesmo tempo, uma unidade (um sistema) e uma

    instituio social, o que coloca para a lingustica a problemtica da subjetividade:

    "Saussure reintroduz a subjetividade na lngua na medida em que trata de

    significaes, principalmente a respeito da analogia." (HENRY, [1977] 1992, p. 15).

    A questo da materialidade da lngua est instaurada justamente nessa

    contradio contradio como categoria elaborada por Marx, ou seja, como

    desenvolvimento do prprio processo de produo do conhecimento e no

    simplesmente como seu produto pontualmente visvel implicada em sua

    construo discursiva como objeto da "cincia" e o prprio processo discursivo,

    portanto histrico, que est em jogo quando se quer compreender a lngua enquanto

    "objeto de conhecimento" em seu contraste com sua constituio como "objeto real"

    ao entrar na rede de sentidos produzida pela cincia, ou seja, uma "configurao

    epistmica" (HENRY ([1977] 1992, p. 17).

    A materialidade da lngua implica, desse modo, "a relao entre objeto de

    conhecimento e objeto real na lingustica" (HENRY ([1977] 1992, p. 17), deixando

    entrever as contradies da construo de uma unidade a partir de uma diversidade.

    E essa construo s se torna possvel por meio da interpelao ideolgica, por

    meio da qual a relao objeto real/objeto de conhecimento apagada e o trabalho

  • 36

    do linguista sobre a linguagem o exerccio pleno da fico da metalinguagem ,

    ento, legitimado exatamente pela ao do sujeito "falante" e sua "intuio

    lingustica", que "invocada para, em um primeiro momento, constituir a lngua

    como um todo emprico (aquilo que est ou no est na lngua)" (HENRY ([1977]

    1992, p. 19). Num segundo momento, no nvel terico, essa intuio constitui o que

    Chomsky (1965) chamou de "competncia lingustica", um fundamento inato do

    su eito falante. Desse modo, o conceito de "intuio lingustica" constitui um objeto

    de conhecimento que apropriado e apresentado como objeto real:

    O apelo aos fatos pelo vis da intuio lingustica na realidade um apelo a evidncias e representaes ideolgicas: a evidncia do sentido, evidncia da individualidade do sujeito enquanto unidade de uma interioridade singular e de sua universalidade. (HENRY ([1977] 1992, p. 20).

    A questo da produo do conhecimento e, portanto, da lingustica,

    concebida como um processo histrico necessariamente ideolgico que se

    realiza na "prtica cientfica" que constitui e constituda pelos sujeitos em suas

    relaes sociais. Assim, "o que deve ser levado em conta o par cincias-ideologias

    no processo de produo de conhecimento e no apenas um dos dois termos."

    (HENRY ([1977] 1992, p. 25). Diante da impossibilidade de uma "teoria do sentido"

    ou de uma "teoria do sujeito", Henry prope a desconstruo da noo de

    pressuposio na lingustica a fim de colocar em discusso o que ele chama de

    configurao epistmica da lingustica, possibilitando dar visibilidade

    materialidade lingustica em sua relao com a forma-sujeito e com a questo do

    sentido, deslocando alguns dos paradigmas instaurados pela "ideologia da

    transparncia da linguagem na prtica da lingustica" (HENRY ([1977] 1992, p. 29).

    Um caminho possvel para esse deslocamento, segundo Henry, estaria no

    materialismo histrico (teorizao sobre ideologia) e na psicanlise (teorizao sobre

    o inconsciente). Ambos os aportes tericos promovem uma ruptura com a evidncia

    da transparncia da linguagem o materialismo rompe com essa evidncia ao

    considerar o sentido como efeito das representaes ideolgicas; a psicanlise, por

    sua vez, rompe com tal evidncia ao descentralizar e cindir o sujeito, tratando-o

    como efeito da linguagem.

    Baseamo-nos nessa reflexo de Henry para discutir a noo de bilinguismo a

    partir de uma perspectiva discursiva, cujo dispositivo nos possibilitar entrever como

    esse conceito construdo no discurso da cincia, especialmente na lingustica e na

    sociolingustica. O funcionamento desse conceito est ancorado em uma memria,

  • 37

    em uma histria de processos de enunciao que tornam seus sentidos naturais e

    evidentes. Assim, neste captulo, procuraremos elaborar um dispositivo de anlise

    que possibilite um olhar sobre determinadas regies do interdiscurso que constituem

    esse espao de dizeres e saberes, tendo em vista refletir sobre as formaes

    discursivas predominantes nesse processo de formao do objeto de

    conhecimento bilinguismo, que constitui, ao mesmo tempo, um processo de

    formao de conceitos29 sobre bilinguismo.

    Dividimos a anlise desse processo de formao de conceitos em trs

    momentos: discursos da lingustica e produo de saberes sobre bilinguismo;

    conceitualizaes sobre bilinguismo produzidas pela lingustica e suas filiaes

    ideolgicas; e a emergncia de conceitos discordantes como processos de

    ressignificao de sentidos de bilinguismo.

    1.1 DISCURSOS DA LINGUSTICA E PRODUO DE SABERES SOBRE

    BILINGUISMO

    A fim de compreender o processo de formao dos conceitos em sua anlise

    arqueolgica, Foucault prioriza o estudo da organizao do campo de enunciados

    em que aparecem e circulam (FOUCAULT [1969] 2008, p. 62), considerando,

    assim, a exterioridade constitutiva dos processos discursivos. Segundo ele, essa

    organizao do campo enunciativo pode ser pensada a partir de trs formas: a)

    formas de sucesso, em que os enunciados se organizam em sries e entram em

    diversos tipos de correlao; b) formas de coexistncia dos enunciados, que

    esquematizam um campo de presena, um campo de concomitncia e um domnio

    de memria; c) procedimentos de interveno que podem ser impostos sobre os

    enunciados, tais como tcnicas de reescrita e mtodos de transcrio.

    Foucault afirma que, embora essa organizao seja constituda de elementos

    bastante heterogneos, deve-se considerar a relao que se estabelece entre esses

    elementos delimitando seu pertencimento a uma formao discursiva especfica. As

    suas regras de formao se constituem, assim, [...] no na "mentalidade" ou na

    conscincia dos indivduos, mas no prprio discurso; elas se impem, por

    29

    Para desenvolver esta anlise, apoiamo-nos no estudo arqueolgico de Foucault ([1969] 2008) sobre o processo discursivo de formao de conceitos.

  • 38

    conseguinte, segundo um tipo de anonimato uniforme, a todos os indivduos que

    tentam falar nesse campo discursivo (FOUCAULT [1969] 2008, p. 69).

    Dentre essas formas de organizao dos enunciados, destacaremos, em

    nossa anlise, as formas de coexistncia dos enunciados em seu processo de

    delineao de um campo de presena, definido por Foucault como

    [...] todos os enunciados j formulados em alguma outra parte e que so retomados em um discurso a ttulo de verdade admitida, de descrio exata, de raciocnio fundado ou de pressuposto necessrio, e tambm os que so criticados, discutidos e julgados, assim como os que so rejeitados ou excludos.(FOUCAULT [1969] 2008, p. 63).

    Assim, em nossa anlise, procuraremos delimitar o campo de presena

    produzido por discursos sobre bilinguismo, uma vez que colocam em circulao os

    conceitos instaurados discursivamente (FOUCAULT, [1969] 2006) pela lingustica,

    rea do conhecimento reconhecida como cincia e, portanto, legitimadora de tais

    conceitos. Essa verdade admitida (FOUCAULT, [1969] 2008) funciona no discurso

    como um efeito de evidncia de sentidos que delineiam, por exemplo, os limites

    entre as lnguas, a iluso de sua unidade e de sua completude, cuja desconstruo

    parece impossvel.

    Desse modo, interpretamos a formulao e a organizao dos conceitos

    apresentados e discutidos em pesquisas sobre bilinguismo e educao bilngue a

    partir de sua insero em processos de significao, considerando que h uma

    histria na constituio dos sentidos (ORLANDI, 2001a, p. 7), uma histria que no

    cessa de significar nos processos discursivos pela/na memria que os constitui.

    essa histria que se traduz em historicidade quando entra na ordem do

    discurso constituindo o interdiscurso, a memria discursiva que tentaremos

    delinear a partir da anlise dos conceitos de bilinguismo gerados, transformados em

    saberes e colocados em circulao por discursos da lingustica discursos filiados

    ao campo da cincia e que, como dissemos anteriormente, constituem um lugar de

    legitimao de saberes e prticas sobre as lnguas (e seu ensino) em nossa

    sociedade.

    1.1.1 Configurao de um arquivo do discurso cientfico sobre bilinguismo

    A anlise desse processo discursivo convocou-nos a configurar um arquivo do

    discurso cientfico a partir do qual pudesse ser possvel realizar uma leitura sobre a

  • 39

    regulao de enunciados definidores e/ou conceitualizadores de bilinguismo. Para

    tanto, foi feito um levantamento de alguns autores que se dedicaram ao seu estudo

    e produziram livros, artigos, dissertaes de mestrado e teses de doutorado sobre o

    tema.

    Sistematizamos, na Tabela 1 a seguir, as informaes referentes s obras

    selecionadas a partir desse levantamento, constituindo uma amostragem da

    literatura sobre bilinguismo.

    importante ressaltar que o levantamento da literatura sobre bilinguismo

    direcionou nosso olhar para suas diferentes condies de produo, ou seja, tornou

    visveis as filiaes tericas ancoradas a diferentes formaes ideolgicas

    predominantes no processo de produo do objeto de conhecimento30 bilinguismo,

    permitindo duas observaes iniciais:

    1. Os estudos publicados no Canad, Espanha, EUA, Frana e Inglaterra,

    geralmente focalizam o bilinguismo a partir de duas temticas

    principais: a) o processo de aquisio das lnguas, filiando-se

    psicolingustica (principalmente o construtivismo em suas duas grandes

    vertentes: cognitivismo e interacionismo); b) o contexto sociolingustico

    e cultural de imigrao, filiando-se sociolingustica (lnguas em

    contato);

    2. Os estudos publicados no Brasil geralmente focalizam o bilinguismo a

    partir de duas temticas principais: a) a educao indgena; b) a

    educao de surdos. Em menor nmero, aparecem estudos voltados

    para duas outras temticas: a) o contexto sociolingustico e cultural da

    imigrao; b) o contexto de educao bilngue portugus/ingls no

    ensino regular.

    30

    Discorreremos sobre esse ponto adiante, em que, a partir da noo de ob eto de conhecimento em contraste com a noo de ob eto real (HENRY, [1977] 1992), analisaremos a construo do conceito de bilinguismo na/pela lingustica.

  • 40

    Autores Ttulo Tipo de produo Ano/local da 1a publicao

    Leonard Bloomfield Language Livro 1933/Inglaterra

    Franois Grosjean Life with two languages: an introduction to bilingualism Livro 1982/USA

    Hugo Beatens

    Beardsmore

    Bilingualism: basic principles Livro 1982/Inglaterra

    Josiane F. Hamers e

    Michel H. A. Blanc

    Bilinguality and bilingualism Livro 1983/Frana

    1989/Inglaterra

    Jim Cummins e Merrill

    Swain

    Bilingualism in education: aspects of theory, research and practice Livro 1986/Inglatera

    Suzanne Romaine Bilingualism Livro 1989/Inglaterra

    Charlotte Hoffmann An introduction to bilingualism Livro 1991/EUA

    Colin Baker Foundations of bilingual education and bilingualism Livro 1993/EUA

    Marta Kerr Carriker

    (Re)construo de identidades em narrativas em primeira pessoa:

    casos de bilngues

    Dissertao 1998/Brasil

    Li Wei The bilingualism reader Livro 2000/Inglaterra/EUA/Canada

    Ellen Bialystok Bilingualism in development: language, literacy and cognition Livro 2001/EUA

    Helosa A. B. Mello O portugus uma alavanca para que eles possam desenvolver o

    ingls eventos de ensino-aprendizagem em uma sala de aula de ESL

    de uma escola bilngue

    Tese 2002/Brasil

    Tej K. Bhatia e

    William C. Ritchie (ed.)

    The handbook of bilingualism Livro 2004/Inglaterra

    Monica Heller Bilingualism: a social approach Livro 2007/EUA

  • 41

    Ana Paula B. R. Cortez A lngua inglesa como objeto e instrumento mediador de ensino-

    aprendizagem em educao bilngue

    Dissertao 2007/Brasil

    Ana Maria F. David As concepes de ensino-aprendizagem do projeto poltico-pedaggico

    de uma escola de educao bilngue

    Dissertao 2007/Brasil

    Azucena Palacios

    (coord.)

    El espaol en Amrica: contactos lingsticos en Hispanoamrica Livro 2008/Espanha

    Elizabete V. Flory Influncias do bilinguismo precoce sobre o desenvolvimento infantil:

    uma leitura a partir da teoria de equilibrao de Jean Piaget

    Tese 2008/Brasil

    Helena W. Miascovsky A produo criativa na atividade sesso reflexiva em contextos de

    educao bilngue

    Dissertao 2008/Brasil

    Ofelia Garca Bilingual Education in the 21st century: a global perspective Livro 2009/Inglaterra

    Fernanda M. Fvaro

    A educao infantil bilngue (portugus/ingls) na cidade de So Paulo

    e a formao dos profissionais da rea: um estudo de caso

    Dissertao 2009/Brasil

    Selma Moura

    Com quantas lnguas se faz um pas? Concepes e prticas de ensino

    em uma sala de aula na educao bilngue

    Dissertao 2009/Brasil

    Mnica Maria de

    Gouveia Coelho

    Casais Intertnicos Filhos Bilngues? Representaes como Indcios

    de Polticas de (no) Transmisso da Lngua Minoritria da Famlia

    Dissertao 2009/Brasil

    Vanessa D. Corredato O Ensino Bilngue em So Paulo: prticas de imerso em um contexto

    monolngue

    Monografia 2010/Brasil

    Elzira Y. Uyeno e Juliana

    S. Cavallari (orgs.)

    Bilinguismos: subjetivao e identificaes nas/pelas lnguas maternas

    e estrangeiras

    Livro 2011/Brasil

    Bianca R. V. Garcia Quanto mais cedo melhor (?): uma anlise discursiva do ensino de

    ingls para crianas

    Dissertao 2011/Brasil

    Tefilo Laime Ajacopa Trilingismo en regiones andinas de Bolivia Tese 2011/Frana

    Antonieta H. Megale Eu sou, eu era, no sou mais relatos de su eitos fal(t)antes em suas

    vidas entre lnguas

    Dissertao 2012/Brasil

    Tabela 1: Levantamento da literatura para a configurao de um arquivo do discurso cientfico sobre bilinguismo (em ordem de publicao)

  • 42

    Vale lembrar que, das 484 dissertaes e teses sobre bilinguismo 31 que

    constam do acervo dos Bancos de Teses da CAPES, contabilizamos apenas 25 que

    se dedicam especificamente ao estudo do bilinguismo portugus-ingls enfocando

    diferentes contextos e linhas tericas (vide Apndice B). A partir desse

    levantamento, constatamos que a maior parte da literatura acadmica sobre

    bilinguismo produzida no Brasil trata de contextos de educao indgena e de

    educao de surdos; em menor nmero esto as obras que se dedicam ao estudo

    das