entre o silêncio e a obra - trecho

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Rio de Janeiro | 2014 C ATHERINE L ÉPRONT Tradução Caio Meira 5a prova - ENTRE O SILÒNCIO E A OBRA.indd 3 9/1/2014 10:09:40

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Vencedora dos principais prêmios literários na França, unanimidade entre os críticos e falecida em 2012, Lépront apresenta uma coletânea de artigos, análises, críticas, palestras e ensaios, em que procura compreender e compartilhar os inúmeros e complexos mecanismos da criação artística, seja ela literária, dramática, musical ou pictórica.

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Rio de Janeiro | 2014

Cather ine Lépront

TraduçãoCaio Meira

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O material histórico na narrativa de ficção*

A Moncef Khemiri

Quando um romancista planeja não somente inscrever uma

narrativa num contexto histórico que constituiria seu cenário

intercambiável, mas ainda, ao contrário, escrever uma história da

História, ele se choca contra três tipos de dificuldades, e elas, num

primeiro tempo, parecem insuperáveis.

A primeira dificuldade decorre de que, num sentido, o tempo

calendário da História — suas datas, as durações mensuráveis e, por-

tanto, quantificáveis dos acontecimentos — impõe repentinamente

à narrativa de ficção uma restrição da qual, por definição, ela está

emancipada. No sentido inverso, o tempo da narrativa de ficção —

percebido, sentido, qualitativo, não mensurável — com seus hiatos,

pausas e dilatação, e também com suas formidáveis intuições da

incomensurável eternidade, introduz no tempo histórico do relógio um

princípio de relativização que incorre no risco de afetar o próprio

valor dos fatos, conforme sejam eles relatados, brevemente evocados

* Uma primeira versão deste texto, aqui modificado, foi tema de uma confe-

rência na Faculdade de Letras de Manouba, em Túnis, em dezembro de 2000,

e de uma publicação pelo Instituto Francês de Cooperação.

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ou silenciados, porque teriam mergulhado no abismo temporal dos

saltos quantitativos, às vezes imensos, que se permite o romance.

Se se considerar a relação do autor de ficção com o material

que utiliza como uma confrontação com uma massa de modelar,

coletando, trabalhando como a sovar a escrita, estruturando, dando

forma, a segunda dessas dificuldades se torna evidente pelo fato de

ele se encontrar diante da necessidade de misturar a História “ver-

dadeira” e a ficção “imaginária”, isto é, de transformar numa só coisa

duas substâncias heterogêneas, cujos elementos chegam até mesmo

a ser incompatíveis, à primeira vista. Trataremos aqui do problema

da integração do material histórico à narrativa, ao mesmo tempo

que veremos que soluções propõe o romance para essa terceira difi-

culdade, que decorre evidentemente das duas primeiras, e que diz

respeito ao próprio gênero.

Irredutibilidade dos dois tempos — interior, não mensurável

e incomensurável dos quais dá conta a ficção, e calendário men-

surável no qual se inscreve necessariamente a História —, incom-

patibilidade dos materiais, é a própria narrativa, cuja ambição é

ser ao mesmo tempo histórica e de ficção, que parece, de fato, não

poder constituir um gênero, posto que o problema diante do qual é

colocado o autor se apresenta inicialmente, para ele, em termos de

alternativa, e das mais elementares: narrativa histórica ou narrativa

de ficção.

Assim chamaremos essa narrativa ainda improvável de “narra-

tiva histórica de ficção”, devido a essa contradição nos termos que

a fórmula comporta, e que temos a intenção de resolver do melhor

modo, mas também porque essa apelação “romance histórico”, por

um lado, é assimilada à tentativa de Georges Lukács* e, por outro

* Georges Lukács, Le Roman historique, Paris, Payot, 1977.

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lado, foi desgastada pela grande produção de intrigas romanescas

inseridas num cenário qualificado de “histórico”, apenas com o

pretexto de que a época evocada fazia parte do passado e, às vezes, de

um contexto exótico. Esses produtos em série e feitos de acordo com

os códigos folhetinescos não participam, em sua grande maioria, de

modo algum, da literatura, uma vez entendido que a literatura é

uma arte, e que a narrativa histórica de ficção que nos interessa

aqui é um objeto de arte, ou um “objeto estético”, para retomar a

expressão de Mikhail Bakhtin.*

• • •

Todos os testemunhos confirmam: a parte mais importante do

material histórico é coletada e armazenada antes da redação pro-

priamente dita do romance. Assim, no início dos anos 1860, temos

de um lado Flaubert, acumulando, em Paris, uma incrível quanti-

dade de documentos e testemunhos diretos sobre o reino de Luís

Filipe até a revolução de 1848 e o golpe de Estado de 2 de dezembro

de 1851, com vistas à criação de A educação sentimental; por outro lado,

é Tolstói recolhendo, por sua vez, narrativas ouvidas dos protago-

nistas das guerras napoleônicas e da campanha da Rússia, e mergu-

lhando, na biblioteca pública de Moscou, na história da rivalidade

entre o czar Alexandre I e Napoleão, desde os fracassos de Austerlitz,

em 1805, de Eylau e de Friedland, e desde a Paz de Tilsit, em 1807,

até a retomada das hostilidades em 1812, famoso e glorioso ano do

exército russo — isso para a criação de Guerra e paz.

* Mikhail Bakthin, Esthétique et Théorie du roman, Paris, Gallimard, col. “Tel”, nº.

120, 1972, tradução para o francês de D. Olivier, prefácio de M. Aucouturier.

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Por outro lado, não é raro que o romancista conduza sua pes-

quisa histórica para o romance a ser criado por meio da redação

de uma narrativa completamente diferente; não porque hesite

entre dois projetos, mas sim porque as duas atividades não são pre-

judiciais uma à outra, pela simples razão de que o trabalho de orga-

nizar e acumular conhecimentos não solicita nem as mesmas forças

nem a mesma disposição de espírito que o trabalho de criação. Em

Estética e teoria do romance, Mikhail Bakhtin distingue entre a “atitude

criadora da consciência” e as “atitudes cognitiva e ética”, aquela se

situando não ao lado destas, “sempre preexistentes, mas do lado de

fora e acima das outras”. Assim o romancista pode se consagrar às

duas tarefas alternadamente durante um mesmo período de ati-

vidade, sem que isso lhe traga o menor problema. No entanto, o

próprio fato de essas tarefas serem diferentes, ainda que possibilite

a facilidade com a qual o escritor as conduz, significa igualmente

a que ponto os dados históricos e a matéria ficcional são, por sua

vez, de natureza diferente, e isso constituirá a primeira dificuldade

contra a qual o escritor esbarrará.

Quando inicia a redação da narrativa de ficção, já relacionada à

documentação e aos testemunhos históricos reunidos, isto é, quando

ele se lança numa “atitude criadora”, o problema se lhe apresenta

inicialmente em termos de irredutibilidade: como, de fato, o mate-

rial histórico acumulado poderia ser tratado por essa consciência

criadora “como se” fosse ela que estivesse na fonte do mesmo, e

“como se” o material histórico fosse ficção, como “criar” e informar,

quando a História é consubstancialmente estranha à ficção, e que

tudo, na verdade, opõe a matéria fictícia e a histórica?

O que incomoda o romancista, em primeiro lugar, quando ele

se põe a trabalhar na criação propriamente dita, é que a matéria

histórica já está lá, sob a forma de algo extremamente tangível:

os documentos que ele acumulou, num maço de notas, em cadernos,

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fichas nos quais ele mesmo registrou acontecimentos reais, já ocor-

ridos, datados, situados, realizados por pessoas reais. Além do mais,

alguns desses acontecimentos fizeram época, sendo considerados

como altos e exemplares feitos, outros são até objeto de comemo-

rações — assim, é no ano da celebração do quinquagésimo ani-

versário de 1852 que Tolstói decide escrever um romance sobre

a campanha da Rússia, antes de estender, por mais quinze anos, o

campo abarcado por sua narrativa histórica de ficção. E quanto a

tais pessoas, protagonistas reais da História, por vezes algumas delas

já chegaram a ser alçadas ao status de “personagem histórica”. Isso

significa que, com o passar do tempo, tais fatos e pessoas já foram

objeto de muitas narrativas, algumas oralmente contadas no âmbito

privado da história familiar, outras escritas e difundidas no contexto

público da história oficial. Significa também que tais narrativas, por

outro lado, conferiram a tais acontecimentos e seus autores reais, com

frequência heroicos ou, ao contrário, qualificados de “inumanos”,

de “monstruosos”, uma rigidez marmórea que constitui o extremo

oposto da flexibilidade, da maleabilidade ad libitum do material ima-

ginário da ficção, mas também um caráter autoritário e impres-

sionante; comparadas a tais qualidades, as intrigas e personagens

propriamente romanescas podem aparecer a priori como irrisórias.

É penetrado por esse sentimento que Flaubert escreve a Duplan

em 14 de março de 1869: “Tenho muita dificuldade para encaixar

minhas personagens nos acontecimentos de 1848. Tenho medo de

que o fundo devore os primeiros planos: esse é o defeito do gênero

histórico. As personagens da história são mais interessantes que as da

ficção, sobretudo quando estas têm paixões moderadas.” Do mesmo

modo, em História do cerco de Lisboa,* José Saramago determina que sua

* José Saramago, Histoire du siège de Lisbonne, op. cit.

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personagem Raimundo Silva, autor de uma histórica “retificada” do

cerco, faça uma nítida distinção, irônica no caso, entre a narrativa

histórica “difícil” e a narrativa de ficção “fútil”.

Já ocorreu igualmente que elementos históricos e seus autores,

sobre os quais o romancista se propõe a trabalhar, tenham assu-

mido uma dimensão lendária, ou mesmo mítica, isto é, de certo

modo fictícia, o que intimida o romancista a ponto de este ter a

impressão de que, para ele, é “tarde demais” para tratar do assunto.

Todavia, sabemos muito bem como a literatura austríaca do século

XX respondeu, de maneira exemplar, à paralisante imagem mítica

que o Império austro-húngaro, até o fim, modelou e veiculou de si

mesmo: literatura de ficção, ela se apoderou dessa imagem dada pela

versão oficial histórica, de certo modo a re-representou, mas para

denunciar o fato de que o Império tinha de tal modo se identificado

à representação fictícia que construíra de si mesmo, que acabara por

se imobilizar, divorciado da realidade, conduzindo-se assim para

sua própria derrocada. Uma vez definitivamente sepultada a era

austro-húngara e, com isso, perdido o Império e o mundo que lhe

estava associado, essa literatura terá finalmente sabido apoderar-se

com sutileza do mito histórico em proveito do mito literário, sem

dúvida nostálgico, porém — e eis aí o paradoxo da ficção — mime-

tizando muito bem o primeiro apenas para sublinhar seu caráter

artificial e falacioso. Para dar um único exemplo, ao lado de Stephan

Zweig, de Robert Musil e sua Kakânia, de Broch e, mais tarde, de von

Doderer e von Rezzori com seu “império do Meio”, o Joseph Roth

de A marcha de Radetsky, especialmente, metamorfoseou o imperador

Francisco-José numa inesquecível figura literária, igual às grandes

personagens romanescas que marcam a história da literatura,

tendo-o submetido, sem sacrificar a verdade histórica factual, aos

mesmos tratamentos literários, às mesmas operações de distorção, de

estilização, de transfiguração e, nesse caso preciso, a uma petrificação

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que vai até a imutabilidade rígida que o caracteriza; isso foi feito de

modo que é como se o autor tivesse utilizado algum próximo seu

como modelo único, ou como se tivesse concebido uma espécie de

colagem de traços, defeitos e características tomados de empréstimo

a diversas pessoas.

Quanto ao material da ficção, ele não é já dado.

Seja qual for a importância das notas feitas sobre o conteúdo da

narrativa de ficção antes do início da redação — retratos, esboços

de cenas, pedaços de diálogos —, seja qual for a fidelidade com

a qual o plano premeditado terá sido respeitado, e restituídas as

lembranças conscientes, as personagens estabelecidas de acordo com

seus modelos, o material de ficção, de fato, só está realmente presente

quando tudo estiver escrito; o romancista só pode concebê-lo em

sua totalidade in fine e a posteriori (e ainda assim com a condição de

poder ser um leitor objetivo de sua própria obra). Pois a escrita que

confere a esse material estilo, forma e sentido é não somente seu

constituinte necessário, indissociável de seu conteúdo, mas também,

para seu autor, elemento revelador.

O material histórico, já presente, é além do mais já formulado.

E, sobretudo, numa linguagem distinta da linguagem própria do

escritor, que é sua escrita e, diferentemente ainda do material fic-

tício, que pertence propriamente a seu autor e vem de dentro dele,

é um material estranho e exterior a ele.

Uma das soluções para dissolver o material histórico na narra-

tiva de ficção histórica proposta pelo romance é deixar tal mate-

rial em estado natural, representando-o como tal: documentos

e testemunhos emanando de outrem, emitidos em linguagem de

outrem, acontecimentos observados por outrem. Três possibilidades

se oferecem então ao romancista: ou ele aposta que não somente

o conteúdo, mas também o lugar desse material em dado ponto

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— em determinado momento da narrativa — terá sentido, ou

então dá sua opinião, seja diretamente, caso tenha adotado a téc-

nica do autor onisciente, que intervém enquanto tal na narrativa,

ou indiretamente, por intermédio de seu narrador porta-voz, ou,

ainda, por meio da personagem que, tratada em terceira pessoa,

assume pontualmente esse papel; ou então, enfim, ele faz com que

os acontecimentos sejam relatados por diversos protagonistas —

pessoas reais ou personagens de ficção — de maneira mais ou menos

contraditória, durante discussões, por exemplo.

Com suas colagens de atualidades, especialmente sob o modo de

artigos de jornais, procedimento que inaugura com Manhattan Transfer,

em 1925, algo que o leva depois ao mesmo tempo à perfeição e ao

impasse técnico, John Dos Passos ilustra de maneira exemplar o pri-

meiro caso. Nenhum comentário sobre esses documentos é feito;

trata-se de exposição pura e simples. Seu desígnio é, de fato, como

notou Sartre, o de “mostrar esse mundo, o nosso mundo. Mostrá-lo,

somente, sem explicações nem comentários”,* e fazer com que nele

evoluam protagonistas que formulem pretensas opiniões ou pen-

samentos unicamente nos termos dos documentos colados, e que

vivam acontecimentos após acontecimentos ou, mais precisamente,

permaneçam hesitantes em relação a eles — inclusive em relação à

guerra — sem que estes tenham para eles o menor sentido, acon-

tecimentos que sequer pareçam ligados por alguma causalidade, e

que sequer se organizem de acordo com qualquer escala de valores.

A tragédia do homem na História, tal como exposta por John Dos

Passos em toda a sua nudez, consiste em que a História deixa o

homem de fora dela.

* Jean-Paul Sartre, Critiques littéraires, in: Situations I, Paris, Gallimard, 1947.

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O caso de Tolstói, em Guerra e Paz, parece-nos hoje bastante sin-

gular, do ponto de vista do direito de propriedade literária e da

desenvoltura com a qual é tratada a verdade histórica. Quanto

aos documentos consultados, acontece de fato que sejam citados

in extenso, diretamente nos trechos narrativos, sob a forma de diá-

logos entre protagonistas da história, bem como nas considerações

de Tolstói e em seus trechos doutrinais, quando então são retomados

pelo escritor russo por sua própria conta, reescritos, ao passo que os

autores dos propósitos citados figuram frequentemente como per-

sonagens de ficção. Com exceção dos propósitos de autor do próprio

Tolstói (que no entanto são amplamente tomados de empréstimo

a Proudhon, a Joseph de Maistre e a seus amigos historiadores-

filósofos, especialmente Pogodin), que são objeto de digressão ou

que constituem longos trechos historiosóficos da segunda parte da

obra, Tolstói trata todo o material histórico de modo a integrá-lo no

contexto romanesco e lhe conferir um papel dramático na própria

narrativa de ficção. Inspirado de muito perto pela técnica utili-

zada por Trollope em The Bertrams, seu procedimento consiste em

fazer convergir umas em direção às outras as personagens reais da

História e os protagonistas imaginários da ficção: por exemplo, Éric

Radoitski, autor real de Lembranças de campo de um artilheiro de 1812 a

1865, que Tolstói cita abundantemente, perfila-se assim na ficção

sob as aparências um tanto apagadas de Tuchin, e Bazdieev, autor real

de escritos maçônicos — a partir do qual ele cria o fictício Pedro

Bezukhov, seu adepto —, torna-se a personagem Pozdieev, por sinal

bem mais humana que seu modelo. De modo inverso, Mikhailovski

faz mais do que simplesmente lhe inspirar os relatos de Austerlitz

e a discussão de Napoleão vencedor com os oficiais russos, mas

é a Nicolas Rostov que Dolgorukov ordena um reconhecimento, e

Bolkonski é testemunha do ferimento de Kutuzov, e, aliás, o príncipe

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André encontra-se presente na entrevista entre os protagonistas reais da História. Quanto ao relato feito — este também real — por Joseph de Maistre da batalha de Borodino, Tolstói “coloca-o na boca de”, para retomar aqui uma expressão do jargão teatral, trans-formando-o numa discussão ocorrida no salão de Anna Pavlovna. Seria possível, assim, multiplicar à vontade as ocorrências desses en- contros entre pessoas e personagens na arena única do romance de Tolstói. Também eficazes e bem mais reveladores sobre o sentimento de Tolstói sobre os acontecimentos são, por um lado, sua maneira cada vez mais leve de tratar a verdade histórica na medida em que avança em seu relato e, por outro, a perspectiva de que considera os altos feitos da História. Que ele coloque no contexto de sua glória o ritual da toalete de Napoleão fazendo com que o mesmo apareça “gordo e nu” (sabe-se que tal episódio realmente ocorreu na ilha de Santa Helena), ou que considere os conselhos de guerra como propósitos mesquinhos trocados entre oficiais superiores, semir-reais, semi-imaginários, ou ainda que descreva as grandes batalhas do ponto de vista de uma bateria, ou do civil Pedro Bezukhov, é sempre com a mesma intenção de agregar numa mesma humani-dade as grandes personagens históricas e os atores ou meras teste-munhas, imaginários ou, por vezes, também reais, mas que a crônica histórica terá relegado ao anonimato.

Todavia, com Tolstói (Dostoiévski dizia que ele era o histo- riógrafo da nobreza russa) e até mesmo, mais tarde com Vassili Grossman de Vida e destino (ainda que este tenha dado a palavra, muito mais, aos simples soldados e às suas famílias, tendo assim, por conseguinte, aumentado o número de vozes com direito à História), com eles, pois, e apesar dessa relativa plurivocidade, estamos ainda, por um lado, diante de uma literatura heroica (vizinha do gênero

épico), e, por outro, diante de um discurso do autor sobre a História

que prevalece sobre as falas das personagens, contaminando-as. Seu

ponto de vista permanece único, autoritário, predominante, estamos

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diante de uma pintura monoperspectivista, clássica, da História.

Sem ser absolutamente maniqueísta, pode-se dizer que a visão do

romancista é pelo menos unilateral e partidária, e esse ponto de

vista pessoal não somente corresponde ao ponto de vista oficial, mas

ainda contribui para alimentar o que constitui, com sua História,

a memória oficial da coletividade representada na narrativa de

ficção — são ainda romances de celebração de uma memória ainda

gloriosa.

O que ocorre em Flaubert já é totalmente diferente. Sobre esse

autor, Pierre-Marc de Biasi escreveu: “no que diz respeito, por

exemplo, à revolução de 1848, trata-se, para Flaubert, de checar as

informações (em toda a imprensa da época, em memórias e estudos

históricos, nas mais diversas publicações, testemunhos de sobrevi-

ventes etc.) até obter, sobre os acontecimentos de que ele queria

falar, imagens incontestáveis, exaustivas, precisas, e politicamente

não passíveis de ‘recuperação’ por nenhum dos partidos interes-

sados [...]. Cabe ao estilo e à composição os papéis de evitar o parti

pris e restituir a história naquilo que foi, na época, sua incapacidade

de ‘Fazer sentido’”* — entre 1840 e 1851, que cobre a duração de

A educação sentimental, Flaubert tinha entre dezenove e trinta anos e

possuía, portanto, uma memória viva dos acontecimentos; assim o

romance corresponde muito bem àquilo que Paul Ricœur chama

“um espaço textual apropriado à correlação entre crise histórica e

crise mnemônica”** (a propósito de Confissão de um filho do século, de

Musset, e do poema “Le Cygne”, extraído da sessão “Quadros pari-

sienses”, da coletânea As flores do mal, textos comentados por Richard

Terdiman).

* Pierre-Marc de Biasi, “Introduction” aos Carnets de travail de Gustave Flaubert, op. cit.

** Paul Ricœur, La Mémoire, l’Histoire, l’Oubli, Paris, Seuil, 2000, p. 508.

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• • •

Ora, é uma crise de alcance completamente diferente, e até mesmo de outra natureza, que terá vivido o romancista imedia-tamente contemporâneo: diferentemente dos que o antecederam, sua memória, individual, privada, quer seja a sua própria, quer ela tenha sido alimentada, às vezes, pelos relatos de seus próximos, tes-temunhas diretas dos acontecimentos relatados, é uma memória desestabilizada pelos documentos e discursos que construíram a memória coletiva do século XX. Isso o põe, de saída, numa postura inédita em relação ao material que terá coletado do mesmo modo que faziam os escritores seus antepassados, uma memória que lhe trará os mesmos problemas técnicos. Pois no caso dos escritores contemporâneos, ocorre que ele se encontra diante de documentos com frequência parciais, mais ainda muitas vezes parciais e contra-ditórios, que defendem teses opostas, que servem a causas inimigas; em alguns casos, o escritor contemporâneo se sentirá autorizado a contestar a veracidade de certos documentos. Esse ceticismo crítico é por ele adotado a partir de então diante de qualquer fonte histó-rica, referente a qualquer período.

Em História do cerco de Lisboa, Saramago põe em cena uma perso-nagem que escreve, nos dias de hoje, um relato do cerco, o que lhe permite criticar não só a maneira pela qual Portugal construiu o mito fundador de sua história, como, ainda, com o pretexto de falar de história antiga, a ficção de sua história moderna — colonial — e contemporânea, que começa com a ditadura de Salazar. Ele escreve, com o veio cômico que o caracteriza: “o mal das fontes, ainda que verazes de intenção, está na imprecisão dos dados, na pro-pagação alucinada das notícias, agora nos referíamos a uma espécie de faculdade interna de germinação contraditória que opera no interior dos factos ou da versão que deles se oferece, propõe ou vende, e, decorrente desta como que multiplicação de esporos,

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dá-se a proliferação das próprias fontes segundas e terceiras, as que

copiaram, as que o fizeram mal, as que repetiram por ouvir dizer, as

que alteraram de boa-fé, as que de má-fé alteraram, as que interpre-

taram, as que rectificaram, as que tanto lhes fazia, e também as que

se proclamaram única, eterna e insubstituível verdade, suspeitas,

estas, acima de todas as outras.”*

A história oficial, ou o que Paul Ricœur chama de “memória

histórica doente”, engendrou essa crise de confiança do indivíduo

por diversas razões, em diversos níveis — e a “transposição das

categorias patológicas para o plano histórico, acrescenta Ricœur [é

ainda mais pertinente por ser evocada] a relação fundamental da

história com a violência”.**

Adotando uma ordem crescente de malignidade, aquilo a que,

inicialmente, por vezes desde a infância, a maior parte de nós —

e portanto os romancistas contemporâneos — foi confrontada foi

o hiato existente entre, por um lado, a celebração oficial dos heróis

e, por outro, os relatos dos próximos que, se nem sempre foram os

atores, pelo menos foram testemunhas diretas dos fatos narrados,

e que bombardeavam esse culto. Foi assim que, de ambos os lados

das trincheiras da Primeira Guerra Mundial, vozes se elevaram para

narrar a existência cotidiana dos soldados, o horror na realidade.

Dessa maneira, os relatos dos próximos, atores ou testemunhas dos

fatos, em lugar de erigir o homem ao status de herói — ao he-

roísmo congelado, estatuado, e que só era cultivado para camuflar o

absurdo das decisões governamentais —, serviram mais para honrar

sua memória com uma maior fidelidade do que fizeram, e ainda

o fazem, as celebrações funerais oficiais: quer tenham feito justiça

* José Saramago, Histoire du siège de Lisbonne, op. cit.

** Paul Ricœur, La Mémoire, l’Histoire, l’Oubli, op. cit., p. 95.

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ao sofrimento vivido, ou quer ainda tenham mostrado de maneira

pontual a covardia, a violência, o gosto sanguinário pela carnifi-

cina para alguns, a loucura, o que eles devolveram a esses homens

foi sua dimensão humana. A primeira consequência é que, a partir

de então, o relato fundado na memória privada — logo, preten-

samente ameaçada a todo instante pela imaginação, o exagero, os

sentimentos — que passa a prevalecer sobre o documento oficial

(basta ler, a esse respeito, os edificantes volumes de A ilustração), isto

é, sobre a História imediatamente escrita, da qual, porém, temos o

direito de esperar que esteja imbuída de “ambição de fidelidade” e

que preencha sua “função verificativa”.*

Mais tarde, sempre pela via desses relatos diretos, os heróis esta-

tuados pela História oficial fazem mais do que recuperar carne

humana e rosto patético, ou lamentável, ou assustador: eles caem

de seu pedestal (ainda que alguns nele permaneçam com toda a

legitimidade) e o fazem coletivamente, em massa, pois foi exata-

mente sobre a coletividade que houve não apenas mistificação, mas

dissimulação, dissimulação dos fatos e dos documentos que a con-

cernem, denegação de verdade, silêncio — silêncio sobre a cola-

boração passiva e ativa dos dirigentes e das populações civis com a

Alemanha nazista: os únicos colaboradores a terem sido suposta-

mente castigados, e o compartilhamento era, portanto, claro entre

o bem e o mal; silêncio sobre a Shoá: todos os deportados eram

pretensos resistentes e cocelebrados com os prisioneiros de guerra;

silêncio das grandes nações colonialistas sobre as verdadeiras con-

dições de acesso a independência de seus protetorados, mandatos

e colônias; silêncio, evidentemente, das próprias grandes dita-

duras sobre as sevícias cometidas contra seus inimigos internos —

* Ibid., p. 6.

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