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  • 7/31/2019 Entre o Merito e a Sorte: escola, presente e futuro na viso de estudantes do ensino fundamental do Rio de Janei

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    Entre o mrito e a sorte

    Revista Brasileira de Educao v. 11 n. 31 jan./abr. 2006 133

    Primeiras consideraes

    Nossa inteno, ao tomar a iniciativa de realizar a

    pesquisa financiada pelo Conselho Nacional de Desen-

    volvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq) que re-

    sultou neste artigo, era compreender um processo so-cial que estaria manifestando-se, entre outros aspectos,

    por um preocupante processo de esvaziamento de sig-

    nificado do espao escolar, para uma parcela da popu-

    lao. Esse processo se manifestaria por severos pro-

    blemas de disciplina,1 violncia e desinteresse, no

    mbito da instituio escolar, e seria aparentemente con-

    tradito pelo afluxo crescente de candidatos ao alista-

    mento escolar, bem como pela indiscutvel relevncia

    que a educao escolar desfruta entre os discursos que

    alcanam repercusso pblica. No entanto, o fenme-no sob nossa ateno ocorreria entre uma parcela so-

    cial de baixa capacidade de expresso pblica e estaria

    condicionado por uma combinao de fatores, entre os

    quais se destacaria a forte reduo na mobilidade so-

    cial em nosso passado recente, por fora do estanca-

    mento do desenvolvimento econmico.2

    Desenvolvendo a pesquisa de campo, deparamo-nos com resultados que tendem a fortalecer nossa

    hiptese principal. Porm, outras questes foram le-

    vantadas, de forma a tornar mais complexa nossa com-

    preenso do fenmeno. At que ponto os fatores ex-

    tra-escolares socioeconmicos e familiares podem

    ser responsveis por menores expectativas escolares

    e de futuro, menor adeso aos procedimentos e com-

    portamentos desejveis diante do que a escola3

    espera por parte de um alunado bem diferenciado

    quanto a esses ltimos aspectos?

    Entre o mrito e a sorte: escola, presentee futuro na viso de estudantes do ensinofundamental do Rio de Janeiro

    Marcio da CostaUniversidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Ps-Graduao em Educao

    Mariane Campelo KoslinskiUniversidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Ps-Graduao em Sociologia e Antropologia

    1 Roure (2001) apresenta uma reviso da literatura recente

    sobre a questo da indisciplina escolar no Brasil, na qual questio-

    na os limites das abordagens de cunho psicolgico em tratar sufi-

    cientemente da questo.

    2 Uma explicao mais detalhada das bases tericas da pes-

    quisa pode ser encontrada em Costa (2001).

    3 Escola uma generalizao que contempla muita diver-

    sidade. Porm, toda escola supe adeso de seus freqentadores a

    regras estabelecidas e a seus objetivos formais.

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    Marcio da Costa e Mariane Campelo Koslinski

    Revista Brasileira de Educao v. 11 n. 31 jan./abr. 2006

    Os resultados preliminares4 de nossa pesquisa

    parecem indicar que as experincias de escolarizao

    percorridas pelos alunos, suas vivncias no mbito

    intra-escolar, jogam papel bastante relevante na ati-

    tude de maior ou menor valorizao conferida es-

    cola e, portanto, no comportamento mais ou menos

    construtivo diante da instituio escolar desenvol-

    vido pelos estudantes. Essa possvel constatao re-

    mete ao campo das polticas pblicas especificamen-

    te escolares um peso maior no enfrentamento de

    graves problemas de desagregao do espao educa-

    cional institucionalizado, retirando um pouco de re-

    levncia da dimenso estrutural socioeconmica mais

    ampla.

    Em contrapartida, necessrio considerar que

    mudanas nos estmulos culturais para um grupo etrioque se configura cada vez mais como um segmento

    importante de mercado, e a adoo de identidades ml-

    tiplas por parte dos estudantes, conforme reconheci-

    do cada vez mais nas reflexes sobre juventude, po-

    dem tambm fornecer compreenso para uma certa

    retrao de uma atitude mais reverente diante da es-

    cola, a qual pode ter sido caracterstica de momentos

    anteriores.

    *

    No plano da gesto dos sistemas escolares edos prprios conflitos sociais envolvendo juventude

    a perplexidade diante da crescente deteriorao do

    valor da escola origina diversas reflexes. O proble-

    ma que poderamos considerar alarmante, observan-

    do a literatura crescente sobre escola e violncia5 no

    Brasil ou relatos freqentes na imprensa, possui, po-

    rm, dimenso maior que suas manifestaes mais

    agudas podem apontar. A violncia referida escola

    pode ser considerada resultante de uma certa deterio-

    rao nas relaes e eroso das regras que regulam e

    definem o espao escolar. Autores internacionais tam-

    bm se debruam sobre o tema, ainda que muitas ve-

    zes este aparea mais fortemente enquadrado em abor-

    dagens normativas que em tentativas compreensivas.

    No entanto, apesar da atrao do assunto, nosso

    foco no est voltado para a violncia. Se passamos

    por essa temtica, isso se deve a que boa parte da

    literatura atual sobre juventude e escola se dedica a

    tratar dessa dimenso. Nosso objeto o valor atribu-

    do educao escolar e aos aspectos a que este pode

    estar associado. A mais instigante reflexo que en-

    contramos sobre o tema do esvaziamento de signifi-

    cado da escola, voltada ao contexto norte-americano,

    mas com muitos aspectos universais, est em Postman

    (1996), que desnuda os deuses fracassados na cons-

    tituio do iderio que sustentaria a escola contem-pornea. O autor enfoca filosoficamente o fracasso

    da escola em disseminar e se nutrir de valores

    constitutivos de uma sociabilidade que se contrapo-

    nha a tendncias desagregadoras do mundo contem-

    porneo.6 Trata-se, portanto, de uma viso que con-

    centra sua ateno nos valores constitutivos das ordens

    e prticas escolares.

    Dubet (2001), por seu turno, como expressivo de

    uma corrente de autores voltados ao estudo da juven-

    tude que tanto tm influenciado o pensamento educa-cional brasileiro, volta-se para aspectos identitrios

    desse segmento etrio, procurando compreender como

    novas conformaes mais abertas de identidades

    amlgamas de valores relativizariam atitudes mais

    reverentes diante da escola e de outras instituies fun-

    damentais da sociedade moderna. Tal linha analtica

    volta-se, dessa forma, para alteraes em elementos

    gerais da cultura, associados a mudanas substantivas

    nos arranjos sociais modernos.

    De certa forma, ambas as maneiras de abordar aquesto apontam um forte descolamento entre o uni-

    4 Quando da confeco deste artigo, um survey com cerca de

    2.600 estudantes estava em andamento. Os resultados aqui apresen-

    tados referem-se aos dados colhidos por meio de grupos focais.

    5 Ver Zaluar (1992), Zaluar e Leal (2001), Minayo et al.

    (1999), Guimares (1998), Candau et al. (1999).

    6 Postman no deixa de estar retomando a invocao

    durkheimiana por uma escola republicana que amplie a densidade

    moral da sociedade, contrabalanando a fora centrfuga da divi-

    so do trabalho, nas sociedades de solidariedade orgnica.

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    verso escolar e aspiraes, comportamentos, enfim,

    valores presentes ao menos em parte expressiva de

    sua clientela.

    No Brasil, Sposito (2002)7 e Dayrell (2002), en-

    tre outros, tm-se destacado nas tentativas de com-

    preender as relaes entre a juventude e o ambiente

    escolar, a partir das prticas e valores desse segmento

    etrio.

    Cremos estar inseridos nessa discusso, procu-

    rando compreender uma dimenso especificamente

    brasileira do fenmeno. Isso nos remete diretamente

    a uma tentativa de combinar a problemtica prpria

    do pensamento educacional com um elemento crucial

    do quadro social brasileiro: os elevados e persisten-

    tes padres de desigualdade,8 combinados ao esgar-

    amento de laos de solidariedade, conforme defini-dos na sociologia clssica. Assim, nossa denominao

    ao projeto Educao e excluso social o sagrado

    sob ameaa, fonte deste artigo, exprime uma tentati-

    va de compreender um fenmeno educacional pelo

    ngulo da desigualdade social que ameaa elementos

    de uma cultura cvica que podem ser considerados

    antecedentes lgicos da ordem social, algo como um

    nvel pr-contratual.

    Escapa s intenes deste artigo desenvolver

    mais detidamente uma discusso acerca da relaoentre educao e igualdade. Procuramos equacionar

    a questo, para fins de uso nesta pesquisa, da manei-

    ra a seguir.

    Ao menos do ponto de vista das idias, educao

    um valor firmemente amarrado a alguma noo de

    justia distributiva, dado que, na sua prpria origem,

    h uma forte afinidade entre a formao dos sistemas

    educacionais modernos, o iderio do direito educa-

    o e a recusa a uma ordem social baseada nos privi-

    lgios de sangue.

    Podemos considerar que, no seu nascedouro, a

    escola moderna indissocivel da noo de igualda-

    de,9 dos valores presentes nesse contexto iluminista,

    republicano, enfim, moderno. Sua expanso mais

    ainda embalada na idia de franqueamento de opor-

    tunidades, emergente nesse processo histrico.10 Nossa

    hiptese trata de uma possvel reverso nessa tendn-

    cia histrica, em alguns segmentos sociais, condizen-

    te com a percepo de uma forte limitao de oportu-

    nidades,11 em meio crise especialmente a partir

    dos anos de 1980 dos arranjos sociais progressiva-

    mente includentes e expansivos.

    A constatao de elementos empricos que forta-

    lecem essa proposio terica alerta para uma poss-

    vel perda do valor da escola, tendncia configurada

    na medida em que foram sendo reduzidas as chancesde insero no mundo da modernidade organizada

    (Wagner, 1994). No consideramos que a escola sem-

    pre desfrutou de valor destacado, posto que , como

    instituio universal, caracterstica especialmente das

    fases maduras de sociedades que se modernizaram.

    H, porm, a possibilidade de que, num contexto que

    reverte tendncias importantes de incluso, o prest-

    gio da instituio escolar enfrente uma indita traje-

    7 Destaque-se o precioso trabalho organizado por Marlia

    Pontes Sposito, denominadoJuventude e escolarizao, publica-

    do em 2002 pelo INEP/COMPED na Srie Estado do Conheci-

    mento.

    8 Ver Henriques (2001).

    9 Mesmo que conforme bem apontam Bendix (1996) ou

    De Swann (1988) e a sociologia da gnese dos sistemas escolares,

    por exemplo, em Archer (1979) os arranjos que engendraram a

    formao da escola moderna no sejam apenas compreensveis

    pela expanso dos ideais de igualdade, estando tambm condicio-

    nados formao e afirmao de novas elites polticas, profis-

    sionais, burocrticas e econmicas, imbricadas na consolidao

    do Estado Nacional e da cidadania.

    10 Ainda que parte da literatura consagrada aps os anos de1970 trate essa expanso como um processo funcional de adequa-

    o a demandas de uma nova forma de estruturao da ordem

    social, limitadora das oportunidades e reafirmadora dos privil-

    gios e heranas.

    11 Corrochano e Nakano (2002) comentam algumas teses e

    dissertaes que apontam elementos de um certo questionamento

    da escola, por parte de alunos trabalhadores.

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    tria regressiva.12 O movimento seria anlogo e inti-

    mamente associado expulso de levas de indivdu-

    os dos mercados de trabalho submetidos a regimes

    formais e, principalmente, percepo de caminhos

    bloqueados.

    *

    Enquanto so clssicos os estudos sobre oportu-

    nidades escolares, os levantamentos estatsticos so-

    bre fluxos e trajetrias educacionais, as anlises

    economtricas ou normativas acerca das imbricaes

    entre padres de escolaridade e estratificao, mobi-

    lidade social ou desenvolvimento13, escassos so os

    trabalhos que investiguem as formas como tais pro-

    cessos so interpretados pelos atores sociais, consti-

    tuindo uma das bases de sistemas de adeso ou recusa,

    sempre parciais, da ordem social.A hiptese que motiva o estudo proposto trata de

    um fenmeno bastante complexo, na multiplicidade

    de suas causas possveis. H diversas possibilidades

    de trajetrias que condicionariam a valorizao atri-

    buda educao escolar. Condicionantes no plano

    das oportunidades escolares, suas caractersticas par-

    ticulares e experincias vividas so muito importan-

    tes no valor atribudo por cada um escola. Outras

    influncias no-escolares, mas a elas associadas, como

    as representaes sobre a escola presentes nos meiosdos quais se toma parte, ou o estilo de vida, devem

    ser tambm relevantes. Por fim, as expectativas de-

    positadas sobre a freqncia escola, sobre as possi-

    bilidades dela decorrentes, compem um quadro ge-

    ral no qual condicionantes estruturais (oportunidades

    economicamente condicionadas) e experincias sin-

    gulares devem estar cotejados. Nosso desafio des-

    vendar se o retraimento das oportunidades de inclu-

    so social exerce papel relevante sobre as representa-

    es do papel da escola, o que se manifestaria

    principalmente sobre aqueles segmentos em maior

    desvantagem naquele primeiro aspecto.

    Para tratar do assunto, recorremos a uma litera-

    tura que, de maneira geral, no o enfoca diretamente,

    mas aborda aspectos intimamente a ele relacionados.

    Excetuando o estudo de Berends (1995), a literatura

    mais adequada para lidar com valor da educao

    foi aquela referente s aspiraes e expectativas de

    futuro, alm de trabalhos contemporneos sobre ju-

    ventude, muito centrados no que era voltado ao seg-

    mento de maior interesse para ns no fenmeno da

    violncia associado a esse grupo etrio.

    Aspiraes educacionais e expectativas futuras:

    um breve histrico da literatura

    Por tratar-se de um tema diretamente vinculado

    ao centro da pesquisa e dos resultados apresentados a

    seguir, passamos a uma reviso de reflexes sobre

    educao e expectativas de futuro.

    O debate sobre desigualdade tornou-se o centro

    do conflito poltico, principalmente depois da Se-gunda Guerra Mundial, com a disseminao de va-

    lores igualitrios e com a demanda popular, no que

    diz respeito a nosso objeto, por oportunidades edu-

    cacionais iguais (Karabel & Halsey, 1977). Inme-

    ros estudos no campo da sociologia da educao,

    desde ento, tm tratado de temas tais como a capa-

    cidade de a educao promover mobilidade e maior

    igualdade, procurando calcular as chances de crian-

    as de diferentes origens de classe de alcanar v-

    rios estgios no processo educacional. Alguns des-ses estudos, mesmo no tratando de um conceito

    mais amplo de valor social da escola, focalizam

    os efeitos tanto de atributos socioeconmicos como

    de certas prticas escolares sobre um aspecto que se

    associa aos interesses deste estudo, qual seja, as as-

    piraes e as escolhas educacionais e de carreira dos

    alunos.

    12 Collins (2000) realiza uma instigante discusso sobre as

    possibilidades de expanso dos sistemas escolares atuais, partin-do de uma observao macro-histrica das instituies de tipo es-

    colar desde a antiguidade oriental e ocidental. No entanto, as es-

    colas antigas no seriam facilmente caracterizveis como insti-

    tuies assemelhadas s nossas redes escolares modernas, as quais

    desfrutaram de prestgio e abrangncia sempre ascendentes, des-

    de que se consolidou a tendncia histrica sua universalizao.

    13 Ver Reimers (2000) ou Chabbott e Ramirez (2000).

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    torna-se centro de debate e de controvrsias no cam-

    po da sociologia geral e, por conseqncia, no campo

    da sociologia da educao.

    Diversas abordagens no campo da sociologia da

    educao passam a considerar a escola como reprodu-

    tora de desigualdades. Numa sociedade em que a divi-

    so do trabalho depende no s da propriedade de ca-

    pital, mas tambm da educao e de habilidades, as

    escolas adquirem importante papel na reproduo e le-

    gitimao dessa forma moderna de estrutura de clas-

    ses (Bowles, 1977). A escola vista como reprodutora,

    seja porque reproduz um padro de cultura de classe

    de uma gerao para outra, ao passo que as medidas de

    capacidade intelectual oferecem uma aparncia

    meritocrtica que mascara esse mecanismo (Bowles

    & Gintis, 1977), ou porque sua principal funo vistacomo a de ensinar culturas de status (Collins, 1977).

    Se, de um lado, os estudos realizados dentro de uma

    perspectiva do estrutural-funcionalismo viam o siste-

    ma educacional como oferecendo e limitando oportu-

    nidades para a mobilidade de indivduos, as abordagens

    que ganham fora a partir desse perodo enfatizavam o

    papel da educao em manter um sistema de desigual-

    dade socialmente estruturado.

    Ainda que diferentes quanto postura crtica

    diante da sociedade, tais abordagens podem ser trata-das como em seqncia, j que supem a funcionali-

    dade dos sistemas escolares diante de um mundo so-

    cial coerentemente ordenado.

    Bourdieu (1977) talvez o principal expoente

    dessa nova abordagem, ao explicar os mecanismos

    que asseguram a reproduo da estrutura de relaes

    de classe. Ao introduzir o conceito de habitus, ou seja,

    o sistema de disposies que age como uma media-

    o entre estruturas e prticas, que so incorporados

    por indivduos pertencentes a diferentes origens fa-miliares e de classe, sua perspectiva pode permitir

    maior espao para uma anlise da ao dos indivdu-

    os. O autor prope

    [...] o estudo de leis que determinam a tendncia de

    estruturas de reproduzirem a elas mesmas atravs da pro-

    duo de agentes dotados de um sistema de predisposies

    que capaz de engendrar prticas adaptadas estrutura e,

    portanto, contribuir para a reproduo de estruturas. (p. 487)

    Para Bourdieu, a escola tende a reproduzir a es-

    trutura de capital cultural entre as classes e a reforar

    as desigualdades sociais iniciais, j que mede ou pre-

    mia o capital cultural previamente adquirido no m-

    bito familiar. Assim, a estrutura social cria indivdu-

    os com diferentes predisposies em relao escola.

    Uma predisposio negativa, que resulta em auto-

    eliminao de classes culturalmente menos favoreci-

    das, vista como

    [...] uma antecipao que se baseia em uma estimati-

    va inconsciente das probabilidades objetivas de sucesso pos-

    sudas por toda uma categoria, das sanes objetivamente

    reservadas pela escola para aquelas classes, ou sees de

    uma classe, desprovidas de capital cultural. (1977, p. 495)

    Tal perspectiva, ao tratar as expectativas e aspi-

    raes em relao escola como produtos de predis-

    posies internalizadas, que levam os indivduos a

    agirem de tal forma que reproduzam a estrutura so-

    cial existente, difere bastante daquelas que apontam

    que aspiraes so limitadas por mecanismos que pro-

    movem competio e premiam o mrito, ainda quesuponham um mesmo desfecho final (Turner, 1961;

    Clark, 1961).

    Aspiraes escolares e as novas

    abordagens para o papel da escola

    Outros estudos, baseados em anlises do siste-

    ma educacional norte-americano, fogem de explica-

    es que privilegiam fatores relacionados habilida-

    de, recursos sociais e culturais, ou fatores relacionadoss classes sociais dos alunos para explicar suas aspi-

    raes ocupacionais e educacionais. Estudos na tra-

    dio da etnometodologia e do interacionismo sim-

    blico apontam para a capacidade de procedimentos

    escolares tais como as percepes dos administra-

    dores e dos professores da escola de moldarem as

    aspiraes dos alunos.

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    Cicourel e Kitsuse (1977) enfocam certas contin-

    gncias da organizao administrativa e das decises

    do pessoal das escolas secundrias norte-americanas

    pelas quais os objetivos dos alunos so processados.

    Mais especificamente, os autores propem estudar

    como certas deliberaes rotineiras de aconselhamen-

    to nessas escolas esto relacionadas a decises em

    relao entrada ou no no ensino superior, escolha

    de universidades de maior ou menor prestgio e es-

    colha de carreiras pelos alunos. Eles defendem o ar-

    gumento de que o progresso dos alunos na transio

    para o ensino superior contingente s interpretaes

    e julgamentos do pessoal da escola, tendo em vista a

    biografia, a aparncia, a conduta, a classe social e o

    tipo social do aluno, bem como sua habilidade e sua

    performance escolar. Os autores concluem que o sis-tema norte-americano se aproxima das regras carac-

    terizadas por Turner (1961) como mobilidade patro-

    cinada (sponsored mobility).14

    J o trabalho de Rist (1977) representa uma ten-

    tativa de oferecer um enquadramento terico para

    pesquisas que tratam dos mecanismos pelos quais os

    professores atribuem certas expectativas aos alunos,

    e como essas so operacionalizadas dentro da sala de

    aula, constituindo uma profecia auto-realizada.

    O autor toma emprestada a teoria da rotulao(labeling theory) para compreender, por meio das

    interaes em sala de aula, como o aluno rotulado

    e, conseqentemente, como sua performance e suas

    aspiraes so afetadas. Se o tratamento dos profes-

    sores constante ao longo do tempo e os alunos no

    resistem aos rtulos a eles atribudos, o comportamen-

    to eperformance dos alunos vo conformando-se ao

    que deles foi originalmente esperado.

    Atravs dessas interaes cotidianas e contingn-

    cias de situaes especficas, nas quais os rtulos vosendo aplicados, o indivduo vai mudando sua

    autodefinio e, conseqentemente, sua motivao

    paraperformance e suas aspiraes futuras.

    Estudos mais recentes no campo da sociologia

    da educao norte-americana fazem uso das aborda-

    gens anteriormente discutidas para compreender como

    outras prticas das escolas secundrias norte-ameri-

    canas tm afetado as aspiraes e escolhas profissio-

    nais dos alunos de diferentes origens familiares.

    Uma prtica bastante discutida por essa literatu-

    ra o agrupamento por habilidade, que consiste na

    diviso de alunos de acordo com performances aca-

    dmicas. Se para alguns autores essa prtica permite

    que professores adaptem suas tcnicas de instruo

    s habilidades dos alunos, as crticas ultrapassam os

    possveis benefcios. De um lado, autores apontam

    que, ao serem divididos de acordo com habilidade aca-dmica, os alunos so segregados, tambm, com base

    em caractersticas sociais, econmicas, de raa e de

    etnia (Gamorran et al., 1995). Essa prtica tambm

    criticada por reforar a diferena entre os grupos de

    alunos, uma vez que as capacidades intelectuais dos

    colegas constituem um importante recurso de sala de

    aula15 (idem, p. 690) e os professores designados aos

    agrupamentos de baixaperformance apresentam me-

    nor motivao e, freqentemente, so os mais

    inexperientes.Ao analisar a prtica de tracking16 nos EUA,

    Oakes e Guiton (1995) chegam a concluses simila-

    res quanto s conseqncias dessa prtica para o au-

    mento de desigualdades. Os autores, atravs de um

    estudo em trs escolas secundrias, discutem o im-

    14 De acordo com o autor, as regras relacionadas mobilida-

    de patrocinada consistem em um processo de seleo controlada,

    no qual a elite seleciona indivduos com os atributos apropriados

    para obter o status de elite.

    15 Estudos recentes, que recorrem modelagem estatstica

    multinvel, tendem a reforar essa hiptese por meio do chamado

    efeito-escola.16 importante ressaltar que o tracking a que os autores se

    referem no consiste em uma escolha de uma trajetria especifi-

    camente acadmica e uma especificamente vocacional, caracte-

    rstica de sistemas educacionais duais, mas na escolha de discipli-

    nas especficas, ao longo do ensino secundrio, de carter acad-

    mico, que so pr-requisitos para entrada no ensino superior, ou

    de disciplinas mais vocacionais.

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    Marcio da Costa e Mariane Campelo Koslinski

    Revista Brasileira de Educao v. 11 n. 31 jan./abr. 2006

    pacto de aspectos da dinmica escolar em modelar

    decises em relao ao tracking. Para tanto, o estudo

    sugere uma explicao ecltica, combinando uma

    abordagem tcnica-estrutural (por exemplo, que apon-

    ta para a relao entre tracking e a estrutura diferen-

    ciada da fora de trabalho) com explicaes culturais

    (que levam em conta normas relacionadas raa,

    classe social e s expectativas educacionais) e com

    explicaes de tipo estratgico (por exemplo, a esco-

    lha dos pais e a presso que exercem na escola).

    Os resultados da pesquisa mostram, de um lado,

    que os discursos dos professores, conselheiros e ad-

    ministradores sobre suas prticas e percepes esto

    de acordo com a perspectiva do capital humano. Es-

    tes relatam que a diferena do direcionamento dos

    alunos para caminhos mais acadmicos ou mais vo-cacionais resultado de uma estrutura aberta, justa e

    meritocrtica. Entretanto, os autores observaram que

    as escolas no estavam engajadas em uma seleo

    neutra, e que os brancos, economicamente mais fa-

    vorecidos, e os asiticos, tinham consistentemente

    melhor acesso aos cursos que levam ao ensino supe-

    rior (colleges) e a trabalhos de maior status, se com-

    parados com alunos de minorias latinas com a mes-

    maperformance escolar.

    Entretanto, se a literatura norte-americana iden-tifica que os agrupamentos por habilidade ou as pr-

    ticas de tracking refletem e reforam as desigualda-

    des de classe, Broaded (1997) sugere que esses efeitos

    podem variar de acordo com os contextos da socieda-

    de mais ampla e da natureza da institucionalizao

    educacional.

    O autor realiza uma investigao em Taiwan, cujo

    contexto difere bastante do norte-americano. Se, de um

    lado, nos Estados Unidos pode-se observar que a com-

    binao de segregao residencial baseada em raa,etnia e classe social, com o predomnio do financia-

    mento e controle local e do estado da escolaridade, gera

    os tipos de desigualdades selvagens e faz do tracking

    uma questo altamente marcada poltica e moralmen-

    te (Broaded, 1997, p. 38), o contexto de Taiwan dras-

    ticamente diferente. Taiwan apresenta, no que diz res-

    peito ao contexto social mais amplo, menos

    desigualdades econmicas e menos tenses entre gru-

    pos tnicos; e, no que diz respeito institucionalizao

    da educao, possui um currculo nacional comum e

    maior padronizao entre as escolas em relao ao fi-

    nanciamento e qualificao dos professores.

    O ensino secundrio de Taiwan caracterizado

    por um forte tracking em seu segundo ciclo,17 e as

    escolas sentem-se pressionadas a conseguir o mxi-

    mo de admisso de seus alunos para as escolas secun-

    drias acadmicas de mais prestgio. Para atingir tal

    objetivo, no segundo ano do primeiro ciclo do ensino

    secundrio, as escolas organizam as classes em agru-

    pamentos de habilidade, divididos em classes mais e

    menos avanadas.

    Apesar de o currculo nacional ser o mesmo, os

    alunos das turmas de mais alta habilidade so mais exi-gidos; deles esperado um maior preparo para os exa-

    mes de admisso para a educao ps-compulsria.

    O autor conclui que um dos efeitos do tracking

    praticado em Taiwan encorajar o desenvolvimento

    de forte aspirao acadmica entre alunos que so

    postos em grupos/classes de alta habilidade, e cooling-

    outou diminuir as aspiraes daqueles que so desig-

    nados s classes de menor habilidade. Entretanto, esse

    resultado no implica aumento de desigualdades so-

    ciais. O autor observa que as variveis relacionadas performance escolar, pontuao e ao nvel de habi-

    lidade do grupo, tm uma influncia mais forte e di-

    reta na formao de aspiraes educacionais dos alu-

    nos do que as variveis relacionadas origem familiar

    consideradas no estudo.

    Em suma, em Taiwan, o agrupamento por habili-

    dade e o tracking diminuem a influncia da origem

    social, dada a menor desigualdade social e a padroni-

    zao do ensino o que, para o autor, sugere um ca-

    rter mais meritocrtico do sistema educacional deTaiwan, se comparado com o norte-americano.

    17 Alunos podem prestar exames que os levam para escolas

    secundrias acadmicas, para os programas tcnicos especializa-

    dos de cinco anos, e para o secundrio vocacional, sendo o pri-

    meiro o de maior prestgio.

  • 7/31/2019 Entre o Merito e a Sorte: escola, presente e futuro na viso de estudantes do ensino fundamental do Rio de Janei

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    Entre o mrito e a sorte

    Revista Brasileira de Educao v. 11 n. 31 jan./abr. 2006 141

    Outro estudo que focaliza os efeitos das prticas

    de tracking apresentado por Berends (1995). Entre-

    tanto, o autor critica estudos que, ao tratarem das atitu-

    des e comportamentos dos alunos, abordam somente

    algumas das dimenses do que ele chama de social

    bonding to school, ou laos sociais com a escola.

    Para desenvolver seu conceito central, Berends

    (1995) inspira-se na social bonding theory de Hirschi,

    usando as dimenses de vnculo, comprometimento,

    envolvimento e crena. Assim, em sua anlise, o au-

    tor toma expectativas educacionais, padres de assi-

    duidade, problemas de disciplina na escola e engaja-

    mento com a escolaridade como constructos para

    medir os laos dos alunos em relao escola.

    Os resultados desse estudo apontam que os im-

    pactos sobre algumas das dimenses dos laos sociaisem relao escola podem ser atribudos s prticas

    de tracking, mesmo que alguns desses efeitos sejam

    de tamanho moderado.

    Vale ressaltar que, para Berends (1995), expec-

    tativas educacionais futuras representam apenas uma

    das dimenses de um conceito mais amplo, social

    bonding to school, e este o que mais se aproxima

    das questes que pretendemos focalizar neste estudo,

    na medida em que o autor procura escrutinar diversas

    dimenses que esto relacionadas a uma variao naadeso instituio escolar.

    Anlise dos grupos focais

    Visto que, de acordo com diversos estudos, fato-

    res relacionados origem social e familiar tm gran-

    de associao com as aspiraes escolares e ao gradi-

    ente de rendimento escolar dos alunos, propusemos

    investigar algumas percepes de alunos de escolas

    de ensino fundamental no municpio do Rio de Janei-ro e observar em que medida a diferenciao por tra-

    jetria escolar, materializada no pertencimento a di-

    versos status escolares, est relacionada a percepes

    acerca da educao.

    Antes apontamos algumas peculiaridades do

    contexto institucional do sistema educacional brasi-

    leiro em relao s prticas de tracking e ability

    grouping. Em primeiro lugar, o contexto brasileiro

    no compreende, formalmente, um ensino secund-

    rio dual que se aproxime de Taiwan, no qual alunos

    so em um momento selecionados para escolas de

    ensino acadmico, que permitem acesso ao ensino

    superior, e escolas secundrias com ensino vocacio-

    nal, que no permitem tal acesso. Outro importante

    aspecto que, apesar de o sistema educacional bra-

    sileiro tambm contar com uma estrutura curricular

    com base nacional, as escolas brasileiras no apre-

    sentam a mesma padronizao que as de Taiwan,

    aproximando-se mais do modelo norte-americano de

    desigualdade entre instituies. H uma grande di-

    ferena entre as regies do pas, no que diz respeito

    a recursos aplicados em educao e qualificao de

    professores das escolas pblicas, assim como entreas escolas privadas e as pblicas; e, mesmo entre as

    escolas pblicas de uma mesma rede, as diferenas

    de reputao so reconhecidas pelas secretarias mu-

    nicipais.

    Na rede municipal do Rio de Janeiro, alm das

    diferentes reputaes das escolas, uma prtica infor-

    mal, aparentemente realizada por vrias delas, cha-

    mou-nos a ateno. Muitas escolas dividem suas tur-

    mas de acordo com a idade dos alunos, sob a

    argumentao de que alunos se desenvolvem melhorcom colegas da mesma idade e em conformidade com

    preceitos pedaggicos em voga. Sabemos que essa

    prtica informal, conseqentemente, separa os alunos

    de acordo com suas trajetrias escolares isto , se

    os alunos entraram cedo ou tarde na escola, se j fo-

    ram reprovados em alguma srie, ou se j se evadi-

    ram da escola por algum tempo. Entretanto, quando

    conversamos sobre essa diviso com a diretora de uma

    das escolas pesquisadas, ela apontou que alguns alu-

    nos de bom rendimento, mesmo que sejam mais ve-lhos, so encaminhados para as turmas 01,18 do tur-

    18 Usamos este rtulo para designar genericamente as tur-

    mas consideradas melhores nas escolas, por ser esse um costume

    bastante generalizado.

  • 7/31/2019 Entre o Merito e a Sorte: escola, presente e futuro na viso de estudantes do ensino fundamental do Rio de Janei

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    Marcio da Costa e Mariane Campelo Koslinski

    Revista Brasileira de Educao v. 11 n. 31 jan./abr. 2006

    no da manh, o que sugere que a diviso de turmas

    tambm leva em conta a performance dos alunos.

    A busca de evidncias por meio de grupos fo-

    cais configurou um momento de pesquisa mais ex-

    ploratrio, sucedido por outro de coleta de dados em

    maior escala, de forma a propiciar recursos analti-

    cos caractersticos da pesquisa quantitativa. Para es-

    tabelecimento das comparaes necessrias, diver-

    sos foram os contextos sociais e escolares cujos

    integrantes foram ouvidos. Buscamos diversidade en-

    tre alunos bons e maus, escolas com prestgio

    igualmente distinto, comportando clientelas socioe-

    conomicamente diferenciadas e sob regime adminis-

    trativo diverso.

    Contamos, para a anlise aqui realizada, com da-

    dos coletados por grupos focais realizados em trsescolas pblicas de ensino fundamental da rede mu-

    nicipal do Rio de Janeiro e em duas escolas privadas

    do mesmo municpio, com estudantes da stima e oi-

    tava sries.

    A Escola A pblica, goza de m reputao e

    fica situada numa regio prxima ao centro da cida-

    de, recebendo alunos tambm de bairros mais afasta-

    dos. A Escola B pblica, de mdia reputao, fica

    numa rea valorizada da orla martima, com alta con-

    centrao de classe mdia alta. A Escola C pblica,goza de boa reputao, fica na zona oeste, zona bas-

    tante afastada do centro da cidade, numa regio com

    alguns traos rurais. As Escolas A e B recebem uma

    populao razoavelmente diversificada moradores

    do asfalto e de favelas, oriundos de famlias em geral

    empobrecidas, mas com padres culturais bem dis-

    tintos. J a Escola C, tambm pblica, conta com um

    alunado um pouco mais homogneo, pobre, dada a

    menor diversificao da rea em que se localiza. A

    Escola D, privada, de reputao inferior, e a EscolaE, privada, de melhor reputao, ficam num bairro

    prximo ao centro, mas caracteristicamente habitado

    por uma classe mdia baixa, um bairro marcado pela

    decadncia econmica.

    Foram realizados, no total, 15 grupos focais, e

    cada grupo contou com 10 participantes, sendo meta-

    de meninos e metade meninas.19 Nas escolas pbli-

    cas, dividimos os grupos focais em alunos pertencen-

    tes a turmas 01 (compostas por alunos cujas trajet-

    rias escolares so fluidas e nas quais a relao

    idade-srie se aproxima da relao esperada) e em

    alunos das turmas 02, 03 ou regular noturno (cujas

    trajetrias so mais acidentadas e nas quais h maior

    incidncia de distoro idade-srie).20

    Por meio desses grupos focais, de um lado, ob-

    servamos a avaliao que os alunos fazem de suas

    escolas, na tentativa de captar caractersticas de suas

    diferentes vivncias e experincias intra-escolares. De

    outro, observamos suas aspiraes futuras de escola-

    rizao e de carreira, bem como a importncia que

    atribuem educao, para captar o valor dado pelos

    alunos educao escolar.

    A percepo dos alunos em

    relao s escolas e s turmas

    Observamos, primeiramente, as percepes dos

    alunos quanto escola que freqentam. Essas per-

    cepes variam muito entre alunos pertencentes s

    diferentes escolas pesquisadas e, em uma mesma es-

    cola, entre alunos pertencentes a diferentes turmas.

    Os alunos das turmas 01 da Escola A (de m re-putao) apresentam uma viso positiva da escola,

    com algumas ressalvas. Eles relatam que o ensino

    de boa qualidade, embora a escola seja bagunada e

    alguns professores ignorem os alunos, como pode-

    mos observar nas seguintes falas:

    19 Mesmo reconhecendo sua possvel contribuio analtica,

    os grupos focais no foram divididos de acordo com gnero, pois

    essa diviso implicaria a duplicao do nmero de grupos e torna-

    ria a pesquisa invivel em termos logsticos. As diferenas de g-nero, entre outras, sero tratadas em trabalho posterior, cuja anli-

    se ter como base os dados coletados no survey.

    20 Nas escolas privadas no foram realizados grupos focais

    levando em conta o prestgio das turmas, uma vez que a diviso de

    turmas de acordo com a idade dos alunos no uma prtica adota

    nesses contextos.

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    Entre o mrito e a sorte

    Revista Brasileira de Educao v. 11 n. 31 jan./abr. 2006 143

    Eu gosto s de um professor desta escola, porque a

    gente vai conversar com os professores e eles ignoram, sabe?

    E eu s no gosto disso, mas o resto tudo timo.

    Ela boa, mas muito bagunada.

    Esta escola j foi boa. Agora, assim, ficou muita ba-

    guna.

    Esses alunos tambm reconhecem que a escola

    tem uma m reputao nas redondezas, mesmo que

    alguns no concordem com ela:

    Tem um menino, ele estuda aqui, ele fala assim: Esta

    escola um puteiro.

    Eu tambm acho que ela [a escola] boa, inclusive o

    pessoal que olha de fora pensa que s tem marginal, s tem

    bandido, mas quem t aqui dentro realmente v que no

    assim.

    Eu no me sinto mal estudando aqui; s porque a es-

    cola tem a fama que ela tem eu no me sinto mal, eu acho

    que ela tem timos professores, timo ensinamento, eu no

    me sinto mal.

    J os alunos da turma do regular noturno dessa

    mesma escola (Escola A) apresentam uma viso una-

    nimemente negativa em relao a ela, alm de tam-

    bm reconhecerem sua m reputao externa. Entreos pontos negativos mais mencionados esto a ba-

    guna e a falta de segurana:

    Eu no acho nada de bom nesta escola. Aqui tudo

    uma baguna

    Eu tambm no acho nada de bom nesta escola. Aqui

    no tem aula, no tem controle, no tem segurana. O que

    tem de bom aqui?! Nada!

    As pessoas olham isso como um puteiro. As pes-

    soas falam isso pra mim: A tua escola um puteiro.

    E ainda falam da falta de professores e do desin-

    teresse destes e da direo:

    Eu no gosto, tambm, de quando os professores no

    do aula. A gente vem para a escola para estudar, mas no

    tem professor, ento pra que vir para a escola?!

    Eu no gosto dos professores que do aula de qual-

    quer maneira, da direo que no faz nada na escola

    Na Escola B esse padro repete-se. Os alunos

    das turmas 01, do turno da manh, acham que a esco-

    la bagunada. Eles reclamam da depredao e da

    pichao, e parecem ter vergonha do aspecto fsico

    que ela tem. Alm disso, reclamam dos alunos ba-

    gunceiros, que no querem nada. Entretanto, elo-

    giam bastante os professores, por sua dedicao e ami-

    zade.

    As turmas 02 (do turno da tarde) dessa mesma

    escola apresentam uma viso mais negativa. Os alu-

    nos tambm reclamaram da desorganizao, da falta

    de disciplina, da sujeira e da aparncia da escola:

    Eu no gosto de nada aqui [...] porque a escola j foi

    boa na poca que tinham outros diretores, [...] o colgio

    virou baguna, entra quem quiser, sai quem quiser.

    [...] s o que voc v aqui garoto pichando.

    O colgio muito bagunado.

    Mas a percepo desses alunos quanto aos pro-

    fessores e direo da escola no to positiva quan-

    to a dos alunos das turmas 01:

    [] no sei se impresso, mas antigamente os pro-

    fessores eram mais atenciosos acho que eles vem que

    alguns alunos no querem nada, e a eles descontam na gente,

    por causa de alguns, todos pagam, no ensinam com pa-

    cincia.

    Eles mencionam gostar de alguns professores,

    aqueles que se preocupam com o aprendizado dos alu-

    nos. Entretanto, reclamam que muitos no explicam

    bem a matria.Essa diferena de avaliao entre as turmas 01 e

    turmas 02 e 03 parece no ocorrer na Escola C, de

    boa reputao. De acordo com a percepo dos alu-

    nos das turmas 01, a escola tima, alguns apontam

    que a melhor da regio, e ainda que a escola est

    melhorando em razo das obras em suas instalaes.

    Tal opinio pode ser sintetizada pelas seguintes falas:

  • 7/31/2019 Entre o Merito e a Sorte: escola, presente e futuro na viso de estudantes do ensino fundamental do Rio de Janei

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    Marcio da Costa e Mariane Campelo Koslinski

    Revista Brasileira de Educao v. 11 n. 31 jan./abr. 2006

    Eu acho que desde o tempo que eu estudo aqui, desde

    a quinta srie, ela est melhorando aos pouquinhos, pelo

    que eu vejo e ouo em matria de ensino ela t boa.

    Esta escola a melhor da regio, que eu acho assim.

    Eu tive mais ou menos umas trs opes de escola para

    estudar, eu escolhi esta aqui porque eu achei melhor.

    A avaliao dessa mesma escola, feita por alu-

    nos das turmas 02 e 03, tambm positiva:

    Eu entrei este ano... achei uma boa escola.

    A escola boa, mas eu continuo aqui porque s vou

    mudar para outra escola quando estiver no 2 grau.

    Nas escolas A e B pudemos observar uma varia-

    o entre as opinies dos alunos das turmas 01 e dasdemais turmas, principalmente no que concerne ao

    ensino oferecido por suas escolas e o empenho dos

    professores. interessante notar que somente nos gru-

    pos focais realizados nessas escolas os alunos men-

    cionam o tratamento diferenciado/privilegiado dedi-

    cado s turmas 01 (turno da manh).

    Na Escola B, uma fala evidencia a diferena com

    que a escola trata turmas de diferentes turnos: E tam-

    bm, se voc entra aqui de manh, uma coisa, e de

    tarde outra, parece que de manh exigem uma or-dem total, ento tm que tratar todo mundo igual.

    Outro aluno, ao referir-se ao turno da manh, o

    caracteriza como tendo ensino mais forte.

    J na Escola A, so os alunos da turma 01, do

    turno da manh, que reconhecem receber tratamento

    diferenciado. Um aluno desse turno afirma: Eu acho

    que o ensino da manh melhor do que o da tarde.

    Essa percepo de ensino mais forte no turno da

    manh, assim como o menor empenho e assiduidade

    dos professores, tambm mencionada por alunos docurso regular noturno da mesma escola. De acordo

    com a fala de um aluno:

    s vezes a gente no tem aula direito, porque faltam

    professores. S temos professores de Histria e de Mate-

    mtica quase o ano todo, e Portugus entrou agora no meio

    do ano. Os professores que do aula, at que do bem, s

    que eles esto um pouco atrasados em relao a turnos de

    manh e de tarde.

    Esses resultados remetem-nos ao estudo realiza-

    do por Gamorran et al. (1995), que sugere que um

    efeito colateral da separao de turmas de acordo com

    as habilidades dos alunos exerce um impacto na mo-

    tivao e empenho dos professores o que, conse-

    qentemente, aumenta a diferena de performance

    entre as turmas. Na percepo dos alunos das escolas

    A e B, a direo dessas escolas preocupa-se mais com

    o ensino e a disciplina das turmas do turno da manh,

    e alguns professores se mostram menos comprometi-

    dos ou motivados em relao s demais turmas.

    Nas escolas privadas observamos tendncias dis-

    tintas, se comparadas com as escolas pblicas. Os alu-nos da Escola D, privada e de m reputao, diver-

    gem quanto qualidade da escola. Alguns alunos

    apresentam uma percepo positiva em relao ao

    ensino, aos professores e coordenao da escola.

    Mas, quando comparam o ensino com outras escolas

    privadas, essa qualidade posta em dvida, como po-

    demos observar neste depoimento: O ensino aqui no

    to severo como no meu antigo colgio.

    Alguns alunos tambm relatam que alguns pro-

    fessores so bons e outros so ruins. interessanteobservar que, de acordo com esses alunos, os pro-

    fessores so bons porque so divertidos e amigos, e

    alguns so chatos porque cobram demais. Uma

    aluna aponta que os alunos da escola so baguncei-

    ros e que as salas de aula so pequenas e mal con-

    servadas.

    Os alunos da Escola E, privada e de boa reputa-

    o, apresentam uma viso mais crtica de sua escola.

    Dizem que, em sua maioria, os professores so bons,

    mas neste caso os considerados bons so os que expli-cam bem e so rigorosos. Os alunos elogiam as regras

    rgidas da escola, que evitam baguna. Entretanto, re-

    latam que as salas so quentes e as cadeiras desconfor-

    tveis, e criticam o currculo e o ensino. Apontam que

    o currculo poderia oferecer outras disciplinas, como

    informtica e outras lnguas estrangeiras, e alguns ma-

    nifestam o desejo de estudar em outras escolas que ofe-

  • 7/31/2019 Entre o Merito e a Sorte: escola, presente e futuro na viso de estudantes do ensino fundamental do Rio de Janei

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    Entre o mrito e a sorte

    Revista Brasileira de Educao v. 11 n. 31 jan./abr. 2006 145

    ream mais qualidade de ensino, mais contedo, mais

    fortes nas matrias.

    A crtica mais incisiva dos alunos que freqen-

    tam a Escola E, se comparados com os da Escola D,

    de m reputao, pode estar relacionada s carreiras

    de alto prestgio escolhidas por esses alunos e per-

    cepo da longa escolarizao como nica via para

    mobilidade social, como veremos a seguir.

    Expectativas de escolarizao e de carreira

    As expectativas futuras de escolarizao e car-

    reira tambm variam bastante entre as escolas pes-

    quisadas e entre as turmas de uma mesma escola.

    Na Escola A, observamos que alunos das turmas

    01, alm de sustentarem uma viso mais positiva desua escola, tambm apresentam maiores aspiraes

    escolares do que os alunos do regular noturno.

    Os alunos das turmas 01, ao serem indagados so-

    bre seus planos futuros, na sua maioria informam o

    desejo de chegar ao ensino superior e de seguir uma

    carreira definida. Os alunos mencionam carreiras tais

    como direito, comunicao e informtica. Um dos

    componentes do grupo revela aspiraes no s de

    concluir a graduao, em histria, como o desejo de

    fazer ps-graduao: J pretendo fazer histria, mes-trado, depois ps-doutorado em cincias polticas. Mas

    a tem que fazer fora do Brasil porque no tem curso

    aqui no Brasil.

    Entretanto, alguns alunos expressam dvidas quanto

    carreira que pretendem seguir, ou mostram dvidas

    em relao possibilidade de alcanar seus objetivos:

    Eu, assim, at hoje no tenho na minha cabea a mi-

    nha formao que eu quero para mim, mas gosto muito de

    Informtica.Eu vou fazer concurso, vou ver se eu passo. De qual-

    quer jeito eu vou, provavelmente eu vou estar estudando

    num colgio pblico, e pretendo fazer concurso para a fa-

    culdade de Jornalismo.

    As perspectivas de escolaridade dos alunos do

    ensino fundamental noturno so bem mais modestas.

    Os alunos, em sua maioria, afirmam desejar comple-

    tar o ensino mdio, e alguns expressam dvidas quanto

    possibilidade de alcanar esse nvel de ensino:

    Eu venho para a escola por duas razes: uma porque

    com estudo muita gente no est arrumando um emprego,

    imagine sem. A, no mnimo, quero terminar o primeiro grau.

    Eu venho para a escola pra poder terminar o segundo

    grau, s. Faculdade e vestibular bobeira, para mim! No

    vou conseguir nada mesmo! Segundo grau, se conseguir!

    Eu vou tentar estudar at o segundo grau e parar, e se

    no conseguir vou parar na mesma. De segundo grau pra l

    no vou conseguir nada mesmo.

    Eu vou parar tambm no segundo grau, se chegar l.

    Somente um aluno menciona o trabalho que gos-taria de ter, motorista de nibus, que no est atrela-

    do a uma carreira de ensino superior.

    Essas ltimas falas chamam-nos a ateno por

    dois motivos: de um lado, os alunos parecem no atri-

    buir importncia ou no aspirar chegar ao ensino su-

    perior; de outro, colocam em dvida se so capazes

    at mesmo de concluir o segundo grau. Esses dados

    parecem indicar que os alunos j incorporaram pre-

    disposies negativas, ou, de acordo com Bourdieu

    (1977), j anteciparam uma estimativa inconscientede suas probabilidades de sucesso. Alm disso, os alu-

    nos demonstram uma certa desvalorizao no s da

    escola que freqentam, mas da educao escolar em

    geral, como algo relevante para suas vidas. Voltare-

    mos a essa questo na sesso seguinte, na qual essa

    tendncia se torna mais evidente.

    Vale ainda ressaltar que um dos alunos dessa tur-

    ma associa diretamente a sua falta de motivao ou

    aspirao educacional qualidade de ensino que a

    escola oferece:

    Eu vou fazer um curso de FAETEC.21 S isso! Por-

    que se no fosse isso no vou continuar estudando, porque

    21 Fundao de Apoio Escola Tcnica do Estado do Rio de

    Janeiro, instituio estadual que congrega escolas que recebem

    tratamento privilegiado, comparado s demais da rede.

  • 7/31/2019 Entre o Merito e a Sorte: escola, presente e futuro na viso de estudantes do ensino fundamental do Rio de Janei

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    Marcio da Costa e Mariane Campelo Koslinski

    Revista Brasileira de Educao v. 11 n. 31 jan./abr. 2006

    estar numa escola como esta, prefiro ficar em casa vendo

    televiso ou fazer outras coisas.

    J os alunos das turmas 01, mesmo que no futuro

    no alcancem o ensino superior ou sigam a carreira

    desejada, no incorporaram idias de fracasso e man-

    tm suas aspiraes altas.

    Na Escola B, os alunos das turmas 01, turno da

    manh, mencionam querer concluir o ensino superior.

    Algumas das carreiras mencionadas foram ecologia,

    fisioterapia e medicina. Um aluno disse querer ingres-

    sar em uma faculdade, mas ainda no escolheu uma

    carreira, e outro menciona querer fazer faculdade fora

    do pas. Somente um aluno diz no saber o que far

    no futuro.

    J nas turmas 02, turno da tarde dessa mesmaescola, alguns alunos mencionam a inteno de fazer

    faculdade, mas poucos foram capazes de mencionar

    que carreira gostariam de seguir. Dois alunos aponta-

    ram para as seguintes carreiras: direito e arquitetura.

    Os outros mencionaram carreiras vagas, no neces-

    sariamente atreladas ao ensino superior:

    Eu e ela queremos ter o nosso grupo e danar.

    Eu quero ser MC.

    Antes eu queria ser mdica de autpsia, mas eu vique no era o meu dom, eu queria decorar apartamento, ou

    criar assim.

    J na Escola C, de boa reputao, alunos tanto

    das turmas 01 quanto das turmas 02 e 03 apresentam,

    em sua maioria, aspiraes de alcanar o ensino su-

    perior.

    Nas turmas 01, na sua maioria os alunos no s

    pretendem fazer curso superior, como dizem j ter

    escolhido os cursos ou carreiras que pretendem se-guir. Alguns dos cursos mencionados foram letras, di-

    reito, economia e veterinria. Uma aluna diz querer

    ser professora e atriz; ainda assim, menciona que para

    ser atriz precisa fazer faculdade de quatro anos.

    Poucos alunos apontam no saber que carreira

    vo seguir, ou falam de uma carreira indefinida, mas

    ainda assim mantm as aspiraes em relao ao en-

    sino superior: Quando eu terminar a oitava eu vou

    terminar um ciclo, a eu quero fazer o segundo grau e

    depois uma faculdade, mas eu no sei qual, ainda.

    A carreira militar tambm mencionada por alu-

    nos dessas turmas.

    As turmas 02 e 03 mencionam menos suas aspira-

    es em relao ao ensino superior, se comparadas com

    as turmas 01, e so menos determinados em relao s

    carreiras que pretendem seguir. Dois alunos mencio-

    nam querer fazer faculdade de direito. Outros, ao se-

    rem indagados sobre suas perspectivas futuras, apon-

    tam para a vontade de continuar estudando, mas sem

    ter um curso definido: Fazendo faculdade e arruman-

    do emprego estudar para o vestibular.

    Uma outra aluna expressa sua vontade de conti-

    nuar estudando e revela a carreira que gostaria de se-guir, apesar de duvidar das possibilidades reais de

    segui-la:

    Eu gostaria de continuar estudando, fazendo vestibu-

    lar, uma faculdade Eu gostaria de fazer medicina. Eu sei

    que no d para fazer, mas eu sempre gostei

    Os grupos focais realizados nessas trs escolas

    pblicas sugerem uma significativa diferena entre as

    aspiraes dos alunos das turmas 01, que em sua maio-ria pretendem chegar ao ensino superior e j escolhe-

    ram uma carreira definida, e dos alunos das turmas 02,

    03 e regular noturno. interessante notar que os alu-

    nos dessas turmas pertencentes s escolas A e B, que,

    como vimos anteriormente, apresentam vises negati-

    vas em relao aos estabelecimentos em que estudam,

    tendem a apresentar menores aspiraes de escolari-

    dade e carreiras mais indefinidas, se comparados com

    os alunos das turmas 02 e 03 da Escola C, de maior

    reputao, mesmo que essa ltima escola esteja locali-zada em uma das regies mais pobres do municpio.

    Esses resultados sugerem que a reputao das escolas

    e os procedimentos internos por elas adotados esto

    associados e, de alguma forma, podem estar influenci-

    ando as expectativas futuras dos alunos.

    Nas escolas privadas, voltamos a observar uma

    tendncia de aspiraes de escolarizao mais eleva-

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    Entre o mrito e a sorte

    Revista Brasileira de Educao v. 11 n. 31 jan./abr. 2006 147

    das. Os alunos da Escola D dizem que pretendem se-

    guir carreiras de prestgio como medicina e direito;

    identificam tambm carreiras na rea de informtica e

    teatro. interessante notar que alguns alunos tambm

    tm aspiraes em relao carreira militar: ser ofici-

    al do exrcito, entrar para a marinha. Alguns mani-

    festaram desejo de em dois anos estarem trabalhando,

    mas disseram que os pais s permitiriam que traba-

    lhassem aps o trmino do ensino mdio.

    J na Escola E, a maioria dos alunos informou

    querer seguir carreiras nas reas mdicas (odontolo-

    gia, medicina, pediatria). Outras carreiras mencio-

    nadas foram direito, jornalismo, engenharia, biologia,

    psicologia e pedagogia. Todos os alunos pretendiam

    completar o ensino superior e j tinham em mente a

    carreira que gostariam de seguir. Diferentemente dosalunos da Escola D, alguns deles relatam que no pre-

    tendem trabalhar to cedo, porque o trabalho durante

    os estudos pode comprometer o futuro.

    Importncia atribuda escola

    Observamos tambm as diferentes percepes

    dos alunos quanto importncia da escola em suas

    vidas.

    Os alunos das turmas do turno da manh da Esco-la A, de m reputao, ao serem perguntados por que

    vo escola, apontaram para um motivo bastante re-

    corrente: para obter melhores perspectivas futuras. Os

    alunos, em geral, concordam que a escola importante

    para vencer na vida, para ter emprego digno e,

    conseqentemente, para que possam ajudar suas fam-

    lias. O depoimento abaixo ilustra essa percepo:

    Eu quero ter um emprego digno para ajudar minha me,

    tirar minha me do morro, porque eu no pretendo morarpara sempre no morro. Eu no quero isso pra mim, nem pra

    minha me. Eu quero morar na rua, ter uma casa boa.

    A escola tambm vista por esses alunos como

    um local de socializao, onde eles podem encontrar

    amigos, praticar esportes e ter acesso a lazer seguro.

    Essa percepo resumida na seguinte fala:

    Eu venho de uma forma geral, tambm, tem a aula

    que eu sei que preciso da educao, mas tem meus amigos

    no ptio, tem esportes tambm que eu fao, tem conversa,

    tem namoro.

    Os alunos ainda se referem a outras importantes

    funes da escola para suas vidas: disseminao de

    informao (sobre sexo, por exemplo), formao de

    valores e de carter e preveno contra o uso de dro-

    gas e contra a entrada na vida do crime.

    Eu acho que o ginsio mais importante ainda, por-

    que mais voltado para os jovens de 13 a 16, 15 anos, e a

    idade que vai formar nosso carter, no futuro, porque for-

    mou agora, no futuro no muda mais.

    Sem escola, acho assim, sem escola a gente no

    nada. Porque melhor a gente vir para a escola do que ficar

    na rua roubando, sabe, sendo bandido no morro, voc vira

    bandido hoje pro outro dia voc morrer.

    A escola, para esses alunos, parece ser muito mais

    que um instrumento de ascenso social:

    De uma forma geral, escola quase tudo, pratica-

    mente tudo que tem em nossa vida.

    A casa, nossa segunda casa.Voc aprende muito mais coisas, eu acho, aqui na es-

    cola, do que em casa.

    Os alunos da turma do regular noturno dessa mes-

    ma escola no atribuem uma importncia to diversi-

    ficada ao papel da escola. Muitos a percebem como

    meio de conseguir um emprego e de alcanar estabi-

    lidade:

    Para mim, a escola serve para nos preparar e no futu-ro arrumar um emprego melhor.

    Para mim, tambm serve para adquirir conhecimento

    e arrumar um emprego futuramente, para poder ter estabili-

    dade.

    Importante ressaltar que esses alunos no usam

    termos como melhorar de vida, mas percebem a

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    Marcio da Costa e Mariane Campelo Koslinski

    Revista Brasileira de Educao v. 11 n. 31 jan./abr. 2006

    escola como precondio para conseguir ou para man-

    ter um emprego. Entretanto, alguns alunos questio-

    nam esta relao entre estudo e emprego, e at de-

    monstram um certo desprezo em relao escola:

    A escola serve para estudar e ser algum na vida, mas

    muitas vezes ela no to importante, porque existem pes-

    soas que no estudaram e hoje esto bem de vida; como

    exemplos, tem o Romrio, Slvio Santos, entre muitas ou-

    tras pessoas.

    A escola serve para ensinar, mas hoje em dia no sei

    se ela est podendo fazer isso. Serve para ensinar para as

    pessoas poderem ter um trabalho melhor, uma situao fi-

    nanceira boa, mas hoje ela no oferece tudo isso. Eu no

    vejo nada de bom na escola.

    Alguns alunos indicam a exigncia dos pais como

    o nico motivo para freqentarem a escola: Eu ve-

    nho para a escola porque os meus irmos ficaram na

    6 e 7 srie, ento a minha me me obriga, porque se

    no fosse, no vinha.

    Na Escola B, os alunos da turma 02, do turno da

    tarde, freqentemente relatam que freqentam a es-

    cola para que possam continuar seus estudos, seguir

    uma boa carreira, e para melhora de vida: Porque eu

    tenho um objetivo na vida, quero fazer faculdade, tra-balhar.

    Entretanto, alguns alunos tambm falam sobre a

    exigncia dos pais como motivo para freqentarem a

    escola e revelam que, apesar de reconhecerem a im-

    portncia da escola, no se interessam pelo estudo:

    Eu no sou muito de estudar, teve uma srie que eu

    saa pra ir pra escola e no ia, eu parei, minha me no

    falou nada, falou, me botou de castigo, mas agora que eu

    moro com meu pai, no, eu sou obrigada a ir pra escola.

    [...] tava faltando muito, no tinha gosto de entrar,

    ficava l fora, ia pra casa de amiga, mas agora comecei a

    vir, agora que eu t sabendo que eu t com a nota ruim, que

    se eu subir mais um pouco eu vou passar de ano, ento eu

    t vindo porque eu quero passar de ano, e qual o prazer que

    a me sente vendo o filho repetir de ano

    Para os alunos das turmas 01 da Escola C, a es-

    cola importante tanto para conseguir um trabalho

    como para informar e preparar para experincias fora

    da escola:

    [] se a pessoa no tem um bom estudo ela no con-

    segue sobreviver, tem que estudar bastante pra ter um tra-

    balho decente e poder ter uma famlia.

    Mas na escola voc aprende com quem voc deve ou no

    andar, mas se voc no estudar no faz as escolhas certas

    Os alunos das turmas 02 e 03 dessa mesma esco-

    la destacam que a escola importante para conseguir

    um bom trabalho e um futuro melhor.

    A maioria dos alunos da Escola D aponta que a

    escola tem grande importncia para conseguir um bomtrabalho e ter um bom futuro. Ao serem indagados

    por que freqentam a escola, os alunos em geral res-

    ponderam:

    Para ser algum na vida.

    Porque eu quero ter uma profisso boa quando eu

    crescer.

    Eu venho escola porque eu acho necessrio e essen-

    cial, ainda mais para a carreira que eu quero seguir.

    Poucos alunos mencionaram freqentar a escola

    por obrigao dos pais.

    Na Escola E, motivos similares foram apresen-

    tados: para ser algum na vida; para garantir o fu-

    turo; conseguir trabalho bom, carreira profissio-

    nal, aumentar conhecimentos.

    Alguns alunos tambm indicam que vm por

    obrigao dos pais, mas que freqentariam a escola

    mesmo que no fossem obrigados.

    Novamente podemos perceber uma associaoentre a experincia escolar dos alunos, e/ou a atitude

    em direo escola que freqentam, e a importncia

    que atribuem escola de forma mais abrangente. Alu-

    nos que freqentam escolas de menor prestgio e tur-

    mas mais velhas tendem a ver a escola meramente

    como instrumento para conseguir ou manter um em-

    prego e demonstram certo desinteresse pela educa-

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    Entre o mrito e a sorte

    Revista Brasileira de Educao v. 11 n. 31 jan./abr. 2006 149

    o escolar, ou, at mesmo, duvidam de seus efeitos

    benficos; enquanto para alunos de turmas mais no-

    vas as funes so bastante diversificadas e, como

    nas escolas privadas, sua importncia primordial pa-

    rece ser proporcionar uma possibilidade de melho-

    rar de vida ou de alcanar a carreira escolhida. Essa

    percepo sobre a relao entre escola e trabalho

    analisada com mais detalhe a seguir.

    Relao escola /trabalho

    Os alunos das turmas 01, turno da manh, da Es-

    cola A, ao serem indagados sobre os fatores que in-

    fluenciam na hora de conseguir um bom trabalho,

    apresentaram respostas bastante variadas. Os primei-

    ros fatores mencionados foram oportunidades e in-vestimentos do pas. S ento dois alunos mencio-

    nam a importncia conjunta de ter estudo e de ter

    oportunidades.

    Interessante notar que s um aluno disse que o

    estudo o fator fundamental, mas com isso trouxe

    reaes diversas:

    No concordo, porque eu acho que o estudo um dos

    fatores.

    [] tem que ter QI (quem indica), tem que ter.

    Outros alunos concordaram que ter relaes, co-

    nhecer as pessoas certas, so fatores importantes.

    Alguns alunos mencionam fatores individuais,

    como correr atrs, isto , trabalhar para ter recursos

    para pagar cursos pr-vestibular, ter interesse, tra-

    ar objetivos e trabalhar duro (inclusive para ser

    jogador de futebol). Entretanto, para alguns alunos,

    as pessoas que possuem mais recursos econmicos

    esto em posio de vantagem para correr atrs e,portanto, possuem mais oportunidades de trabalho.

    As falas seguintes resumem essa posio:

    , quem estudou em colgio particular a vida inteira,

    chega na faculdade, vai fazer uma faculdade pblica, en-

    tendeu? A gente no, a gente que estudou em colgio pbli-

    co a vida inteira vai ter que pagar uma faculdade.

    Eles tm mais oportunidade para quem fez faculdade

    pblica.

    Junto com a escolarizao formal, fazer cursos

    extracurriculares (informtica e lnguas) parece ser

    um importante fator para a maioria dos alunos:

    At para ser gari, tem que ter 2 grau. At para ser

    bandido no morro, tem que ter estudo.

    Hoje em dia, em todos os empregos precisa de 2 grau,

    voc tem que saber ingls, tem de saber mexer em compu-

    tador...

    [...] especializao, por causa que hoje em dia eles

    no querem qualquer um com uma faculdadezinha qual-

    quer e se eu tiver curso de ingls, informtica, espanhol,

    isso e aquilo, claro, eu vou receber bem mais que uma pes-

    soa comum.

    Para um dos alunos esse fator mais importante

    do que escolarizao formal:

    Tem algumas pessoas que nem so formadas, enten-

    deu, mas tm conhecimento em todas essas reas, que ga-

    nham melhor que uma pessoa formada. Tem pessoas for-

    madas varrendo rua.

    As opinies dos alunos da turma do regular no-

    turno da Escola A oscilaram entre o fator estudo e o

    fator sorte. A primeira opinio manifestada enfatizou

    o estudo, embora a importncia de cursos extracurri-

    culares tambm tenha sido mencionada: Primeira-

    mente o estudo, porque voc vai procurar emprego

    e a primeira coisa que eles perguntam se voc tem

    estudo.

    Em um primeiro momento, alguns alunos con-

    cordaram que o estudo o fator mais importante.Entretanto, outros alunos defendem a importncia da

    combinao dos fatores estudo e sorte:

    Eu acho que alm do estudo tem que ter muita sorte,

    porque todo mundo precisa de sorte para conseguir um

    emprego. Tem muita gente que estudou muito e no conse-

    guiu nenhum emprego.

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    Marcio da Costa e Mariane Campelo Koslinski

    Revista Brasileira de Educao v. 11 n. 31 jan./abr. 2006

    Outros alunos relativizam ainda mais a importn-

    cia do estudo, apontando que este no garante trabalho,

    e que ter boas relaes um fator mais importante:

    Eu acho que o estudo no to importante assim, por-

    que tenho um amigo que tudo fez, teve todos os estudos, mas,

    no entanto, no tem um trabalho e fica mendigando por a.

    Para mim, para melhorar de vida, hoje, no ter estu-

    do, mas sim muita sorte e conhecer pessoas certas.

    Os alunos ainda concordaram que ter boa apa-

    rncia, boa apresentao e saber falar so fatores

    importantes para conseguir um emprego.

    Para os alunos da turma 02 da Escola B, essa

    tendncia repete-se: o estudo visto como um fator

    muito importante, mas que no garante um futuro me-lhor. Diversos alunos mencionam conhecer pessoas

    que completaram o ensino superior e que no conse-

    guiram bons empregos:

    A minha irm est no segundo ano e no quer fazer

    faculdade, e ela v pelo exemplo da minha tia, que estudou

    e no conseguiu trabalho, a nica coisa que ela tem uma

    escolinha particular que ela mesma construiu.

    A minha tia se formou em contabilidade e trabalha

    como merendeira.

    Outros ainda mencionam que, em virtude da con-

    corrncia, o estudo no garante um bom trabalho:

    [...] eu acho que o estudo inclui ter uma vida melhor,

    mas no garante nada que eu v trabalhar com aquilo, e eu

    conheo, uma mulher que fez faculdade de Pedagogia e

    no consegue emprego. a concorrncia.

    O meu primo t se formando em relaes internacio-

    nais, e ele diz pra mim que pra voc conseguir subir voctem que se esforar, porque muita concorrncia, e eu que-

    ro me formar em Direito, eu preciso ter todos os livros, os

    artigos, sem isso eu no sou nada.

    Apesar de o estudo no ser um fator determinan-

    te, de acordo com esses alunos, ao menos nessa lti-

    ma fala o esforo individual valorizado.

    Para os alunos das turmas 01 da Escola C, o prin-

    cipal fator para conseguir um bom trabalho o estu-

    do, e esse fator parece estar tornando-se cada vez mais

    importante:

    [] porque trabalho agora est difcil de arrumar,

    quem no tem estudo. s vezes, quando eu era menor, eu

    falava: vou pra escola pra me preparar pro futuro.

    [...] hoje em dia at gari tem que ter estudo, e se a

    gente no estudar no pode fazer um curso de computao,

    no pode fazer uma faculdade, ento hoje extremamente

    necessrio

    Outro fator relacionado ao esforo individual

    tambm mencionado: Trabalhar duro tambm, ter

    muita prtica tambm, porque a pessoa, quando quer,consegue, querer poder.

    O fator importncia de conhecer as pessoas cer-

    tas foi mencionado por um dos alunos.

    As opinies dos alunos das turmas 02 e 03 da

    Escola C variaram um pouco mais, se comparadas

    com as dos alunos das turmas 01. O principal fator

    mencionado foi o estudo: [...] Acho importante estu-

    dar, para depois ter um bom trabalho.

    Apesar de uma aluna tambm mencionar o fator

    esforo individual, outros alunos associaram a impor-tncia de estudar com fatores como sorte e cursos

    extracurriculares.

    Para os alunos da Escola D, o fator predominan-

    te o estudo. Vrios alunos concordaram com a se-

    guinte afirmao: Acho que o mais importante mes-

    mo o estudo.

    Mas outros alunos defendem que estudo im-

    portante, mas ter sorte, conhecer as pessoas certas e

    ter oportunidades tambm so fatores que influenciam.

    Nessa escola, um dos alunos tambm menciona o casode pessoas que estudaram e no conseguiram um bom

    emprego: Eu j sei de muita gente que estuda muito,

    se forma como advogado e hoje em dia trabalha como

    lixeiro. A pessoa tem que ter sorte.

    Na Escola E, o fator estudo foi o nico mencio-

    nado. Alm disso, os alunos acham que, para conse-

    guir um bom emprego, necessrio ter ensino supe-

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    Entre o mrito e a sorte

    Revista Brasileira de Educao v. 11 n. 31 jan./abr. 2006 151

    rior. Os alunos qualificam ainda mais seus relatos e

    mencionam que ter estudado em uma boa instituio

    e ter um bom currculo so fatores essenciais.

    De acordo com um dos alunos, bom currculo

    abrange: O que voc estudou na escola ou na facul-

    dade, como voc passou, o tipo de instituio que voc

    estudou.

    Para esses alunos, o sucesso profissional est re-

    lacionado ao estudo, ao mrito pessoal e reputao

    da instituio em que se estuda. Outro fator apontado

    foi estar bem informado.

    Novamente observamos grandes diferenas nas

    percepes dos alunos, de acordo com o prestgio de

    suas escolas e o tipo de turma que freqentam. Essas

    diferenas vo desde opinies mais padronizadas, de

    que fatores individuais ou relacionados ao estudo (fa-tores meritocrticos) so os determinantes (Escola E

    e turmas 01 da Escola C), at opinies mais diver-

    gentes, que relativizam a importncia do estudo em

    detrimento de fatores como sorte e relaes sociais

    (Escola A e turmas 02 da Escola B). Esses dados apre-

    sentam-nos indcios de que a opinio sobre a impor-

    tncia da educao escolar para alcanar um bom tra-

    balho ou seguir a carreira desejada parece variar de

    acordo com a experincia escolar dos alunos, alm

    de variar de acordo com sua expectativa futura decarreira.

    Concluses

    A realizao de quinze grupos focais, em trs reas

    distintas da cidade do Rio de Janeiro, envolvendo es-

    tudantes da stima e oitava sries das redes pblica e

    privada, de escolas de prestgio e localizao geogrfi-

    ca diversificados, alm de fornecer elementos bastante

    relevantes para a produo do questionrio utilizadono survey que os sucedeu, permitiu observar que h

    relevantes contrastes nas percepes dos estudantes

    acerca dos pontos que constituem o cerne da pesquisa.

    De maneira geral, os grupos focais indicam a existn-

    cia de expectativas de futuro profissional e escolar bem

    diferenciadas, conforme as origens socioeconmicas

    dos estudantes pesquisados, como era bastante previ-

    svel, em conformidade com a literatura clssica que

    trata do tema das expectativas desde os anos de 1960.

    Assim, argumentaes que destacam o valor da escola

    e dos estudos na definio do futuro e, portanto, do

    nfase ao valor da educao em suas vidas presentes,

    foram encontradas praticamente na unanimidade dos

    grupos que concentravam estudantes em melhores

    escolas, turmas e situaes socioeconmicas favor-

    veis. medida que os grupos focais se deslocaram para

    reas perifricas do ncleo prestigiado da educao

    (turmas, escolas e populao mais pobres), a nfase na

    importncia da escola para a definio do futuro e no

    presente vai diminuindo. Esta, no entanto, no uma

    trajetria linear ou simples. Nosso estudo apresenta um

    quadro consideravelmente complexo, em que se cru-

    zam os fortes condicionamentos socioeconmicos comelementos importantes da dimenso cultural, como a

    localizao nas reas geogrficas de uma cidade par-

    tida e, destacadamente, a prpria trajetria escolar dos

    entrevistados.

    Parece-nos que um elemento mais importante

    que o esperado, na inclinao dos entrevistados em

    relao ao papel da escola em suas vidas, sua pr-

    pria experincia escolar pregressa. Claro que, por ca-

    ractersticas prprias deste recurso de investigao

    os grupos focais no nos possvel, a partir dele,inferir qualquer concluso que controle de maneira

    confivel as expectativas, vises de futuro, valor da

    escola, com caractersticas familiares, perfis cultu-

    rais e econmicos dos entrevistados.22 Todavia, a im-

    presso emanada desses grupos destaca o peso dos

    fatores culturais, especialmente a circulao por

    meios sociais, o aporte familiar e a experincia vivi-

    da no processo de escolarizao como elementos que

    complementam, rivalizam ou mesmo se sobrepem

    origem socioeconmica, o que permite ricas inda-gaes acerca da capacidade das polticas pblicas

    em se contrapor a tendncias duras, estruturais,

    da sociedade.

    22 O survey realizado em 2003 pretende permitir que anli-

    ses com esta preciso sejam alcanadas.

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    Marcio da Costa e Mariane Campelo Koslinski

    Revista Brasileira de Educao v. 11 n. 31 jan./abr. 2006

    Resultados animadores no sentido da hiptese

    aqui defendida foram obtidos por Reis (2004), que

    encontra significativa diferena no valor dado edu-

    cao escolar pelos segmentos polares de nossa es-

    tratificao social. Nesse sentido, seus levantamen-

    tos empricos obtiveram resultados claramente

    dissonantes entre povo e segmentos de elites (no

    somente elite econmica) quanto ao valor que confe-

    rem educao para resoluo dos problemas nacio-

    nais e numa escala de quais seriam nossos problemas

    sociais mais destacados.

    Como pode-se observar a partir dos relatos sele-

    cionados, parece que o valor da educao escolar de-

    cresce na ordem prevista em nossa hiptese, mas h

    elementos perturbadores nessa linha afirmativa. Afi-

    nal, no mais pobre e remoto agrupamento ouvido (Es-cola C), identificamos expectativas de incluso so-

    cial e de carreira escolar, bem como apreciaes sobre

    a escola bastante positivas. Entretanto, foroso in-

    formar que, segundo a diretora da escola em questo,

    situaes como a forte atrao do trfico de drogas e

    das galeras correspondentes (Guimares, 1998;

    Minayo, 1999) no chegavam a se constituir um gran-

    de problema na rea, diferentemente das outras esco-

    las pblicas presentes no estudo.

    Os estudos referentes estratificao escolar apartir de critrios de prestgio e trajetria pregressa

    fornecem referncias interessantes para nossas refle-

    xes sobre o valor da escola. Contrariando a uma ten-

    dncia hipersociolgica de estabelecer destinos esco-

    lares e sociais como inextricavelmente amarrados por

    pertencimentos socioeconmicos, parece que a expe-

    rincia de escolarizao fornece elementos relevan-

    tes para compreenso dos padres de adeso ao

    universo escolar e, por conseguinte, aos esquemas

    mais abrangentes de insero social.Os resultados anteriormente apresentados, como

    tantas vezes j alertado, devem ser considerados inte-

    grantes de um estudo exploratrio. Porm, h infor-

    maes bastante interessantes e inquietantes que, de

    antemo, permitem sugerir as polticas pblicas de edu-

    cao, no Brasil, como um fator de acrscimo na desi-

    gualdade social. Afinal, se correto supor que as tra-

    jetrias e experincias escolares jogam um papel de-

    cisivo na conformao das expectativas de futuro e de

    incluso nos benefcios da sociedade nacional, a dis-

    tribuio, a um amplo setor social, de ofertas escola-

    res to precrias e inferiores pode ser um fator que se

    agrega j temerria desigualdade de oportunidades

    de incluso social em outros aspectos, contribuindo

    para formar elementos de uma cultura cvica disruptiva

    com relao ordem social no no sentido imagina-

    do pelos revolucionrios do passado e do presente, mas

    tendente anomia e desagregao.

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    MARCIO DA COSTA, doutor em sociologia pelo Instituto

    Universitrio de Pesquisa do Rio de Janeiro (IUPERJ), profes-

    sor da Faculdade de Educao e do Programa de Ps-Graduao

    em Educao da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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    Marcio da Costa e Mariane Campelo Koslinski

    Revista Brasileira de Educao v. 11 n. 31 jan./abr. 2006

    Publicou recentemente:Jovens estudantes do Rio de Janeiro: h-

    bitos, valores e expectativas segundo o prestgio de suas escolas

    (Boletim Soced Sociologia da Educao, n. 1, 2005, endereo

    eletrnico: ); Amor e des-

    prezo: o velho caso entre sociologia e educao no mbito do GT-

    14 (Revista Brasileira de Educao, n. 22, p. 101-120, jan./abr.

    2003); Criar o pblico no-estatal ou tornar pblico o estatal?

    Dilemas da educao em meio crise do Estado (Revista Brasilei-

    ra de Educao, n. 18, p. 41-51, set./dez. 2001); Tempos de deses-

    perana: roteiro para pensar a educao quando o futuro parece

    sombrio (Humanas, Porto Alegre, v. 24, n. 1-2, p. 186-200, 2001);

    Stimulating citizenship: can educational policy enhance civic

    culture? (Educational Theory & Practice, Austrlia, Albert Park,

    v. 22, n. 1, p. 75-93, 2000).E-mail: [email protected]

    MARIANE CAMPELO KOSLINSKI, doutoranda do Pro-

    grama de Ps-Graduao em Sociologia e Antropologia da Uni-

    versidade Federal do Rio de Janeir