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Universidade Federal do Rio de Janeiro ENTRE O LINGUÍSTICO E O SOCIAL: Complementos Dativos de 2ª pessoa em Cartas Cariocas (1880-1980) Thiago Laurentino de Oliveira 2014

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

ENTRE O LINGUÍSTICO E O SOCIAL:

Complementos Dativos de 2ª pessoa em Cartas Cariocas (1880-1980)

Thiago Laurentino de Oliveira

2014

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ENTRE O LINGUÍSTICO E O SOCIAL:

Complementos Dativos de 2ª pessoa em Cartas Cariocas (1880-1980)

Thiago Laurentino de Oliveira

Dissertação de Mestrado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em Letras

Vernáculas, Faculdade de Letras, da Universidade

Federal do Rio de Janeiro, como parte dos

requisitos necessários à obtenção do título de

Mestre em Língua Portuguesa.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Célia Regina dos Santos

Lopes

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2014

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ENTRE O LINGUÍSTICO E O SOCIAL:

Complementos Dativos de 2ª pessoa em Cartas Cariocas (1880-1980)

Thiago Laurentino de Oliveira

Orientadora: Célia Regina dos Santos Lopes

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras

Vernáculas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como

parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Língua Portuguesa.

Examinada por:

____________________________________________________________

Presidente, Profª Dr.ª Célia Regina dos Santos Lopes – UFRJ

____________________________________________________________________

Prof. Dr. Leonardo Lennertz Marcotulio – UFRJ

____________________________________________________________________

Prof.ª Dr.ª Rosane de Andrade Berlinck – UNESP

____________________________________________________________________

Prof.ª Dr.ª Christina Abreu Gomes – UFRJ (Suplente)

____________________________________________________________________

Prof.ª Dr.ª Márcia Cristina de Brito Rumeu – UFMG (Suplente)

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2014

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Oliveira, Thiago Laurentino de.

Entre o Linguístico e o Social: Complementos Dativos de 2ª Pessoa em Cartas

Cariocas (1880-1980) / Thiago Laurentino de Oliveira. – Rio de Janeiro: UFRJ/FL,

2014.

xxi, 166f. 1v. il.

Orientadora: Célia Regina dos Santos Lopes

Dissertação (mestrado) – UFRJ / Faculdade de Letras / Programa de Pós-

Graduação em Letras Vernáculas, 2014.

Referências bibliográficas: f. 161-166

1. Dativo de 2ª pessoa. 2. Pronomes pessoais. 3. Sociolinguística histórica.

I. Lopes, Célia Regina dos Santos. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Pós-

graduação em Letras Vernáculas. III. Entre o Linguístico e o Social: Complementos

Dativos de 2ª Pessoa em Cartas Cariocas (1880-1980).

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Esta pesquisa foi financiada por uma bolsa FAPERJ

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OLIVEIRA, Thiago Laurentino de. Entre o Linguístico e o Social: Complementos Dativos de

2ª pessoa em Cartas Cariocas (1880-1980). Dissertação de Mestrado em Língua Portuguesa.

Rio de Janeiro: Faculdade de Letras/UFRJ. 2014.

RESUMO

A gramaticalização do pronome você desencadeou, no português brasileiro (PB) uma

forte variação na representação da 2ª pessoa do singular, visto que o paradigma do antigo

pronome tu não desapareceu. Essa variação na posição de sujeito tem sido amplamente

estudada (cf. MACHADO, 2006; RUMEU, 2008, 2013), cabendo às investigações futuras

analisar outras posições sintáticas da sentença. Nesta dissertação, investigamos as diferentes

formas pelas quais o complemento dativo pode manifestar-se, em 2ª pessoa: através dos

clíticos te e lhe, dos sintagmas preposicionados a ti, para ti, a você e para você, e ainda do

objeto nulo (sem realização fonética). Chamamos de dativo o argumento interno dos verbos

de dois ou três lugares com papel semântico de alvo ou fonte e substituível por lhe. Neste

estudo, buscamos identificar fatores linguísticos e extralinguísticos que atuaram no

(des)favorecimento de cada variante dativa durante a inserção do você no sistema do PB, por

volta dos anos 1930 (cf. DUARTE, 1995). Além disso, descrevemos também a combinação

do clítico te com o sujeito você em construções como “Você leu o livro que eu te dei?”. Tal

combinação, interpretada tradicionalmente como “ruptura” da uniformidade de tratamento, é

uma construção amplamente aceita e sem estigma social no PB atual (BRITO, 2001). O

corpus constitui-se de 318 cartas particulares escritas por cariocas e fluminenses no período

de um século (1880-1980). Como aparato teórico-metodológico, conciliamos os pressupostos

da sociolinguística variacionista laboviana (WEINREICH, LABOV & HERZOG, 1968;

LABOV, 1994) com a sociolinguística histórica (CONDE SILVESTRE, 2007;

HERNÀNDEX-CAMPOY & CONDE SILVESTRE, 2012). Utilizamos o programa

estatístico GOLDVARB-X como ferramenta para a análise quantitativa dos dados. Os

resultados gerais deste estudo revelam que: o clítico te é a variante dativa mais recorrente na

escrita carioca/fluminense do período analisado, independentemente do tratamento na posição

de sujeito (você ou tu); o clítico lhe confere caráter de formalidade, marcando baixo grau de

intimidade entre os interlocutores; as formas preposicionadas registram baixa frequência de

uso, havendo a substituição das formas a ti e para ti por a você e para você ao longo do

tempo; os subgêneros de carta particular, o núcleo social dos missivistas e o grau de domínio

sobre os modelos de escrita são fatores que condicionam o uso das variantes.

Palavras-chave: complemento dativo, pronomes de 2ª pessoa, cartas particulares.

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OLIVEIRA, Thiago Laurentino de. Entre o Linguístico e o Social: Complementos Dativos de

2ª pessoa em Cartas Cariocas (1880-1980). Dissertação de Mestrado em Língua Portuguesa.

Rio de Janeiro: Faculdade de Letras/UFRJ. 2014.

ABSTRACT

The grammaticalization of the form você has unleashed in Brazilian Portuguese (BP)

a strong variation in the representation of the 2nd person singular, since the old pronoun

paradigm tu has not disappeared. This variation in subject position has been widely studied

(cf. MACHADO, 2006; RUMEU, 2008, 2013), and future research should study other

syntactic positions. In this work, we investigate the different achievements of dative

complement that can manifest itself, in the 2nd person, through the clitics te and lhe, the

prepositional phrases a ti, para ti, a você, para você, and the null object (without phonetic

achievement). We call dative the internal argument to verbs of two or three places with

semantic role of goal or source and that can be replaced by lhe-clitic. In this study, we seek to

identify linguistic and extralinguistic factors which favor or disfavor the use of each dative

variant during insertion of você in BP system, around the years 1930 (cf. DUARTE, 1993). In

addition, we describe also the combination of the te-clitic with você-subject in constructions

like “Você leu o livro que eu te dei?”. Such combination, traditionally interpreted as “break”

the uniformity of treatment, it is a widely accepted construction, without social stigma on

current BP (BRITO, 2001). The corpus consists of 318 private letters written by people who

lived in the state of Rio de Janeiro over a century (1880-1980). As theoretical-methodological

apparatus, we combine the assumptions of Labovian variationist sociolinguistics

(WEINREICH, LABOV & HERZOG, 1968; LABOV, 1994) with the historical

sociolinguistics (CONDE SILVESTRE, 2007; HERNÀNDEX-CAMPOY & CONDE

SILVESTRE, 2012). We use the statistical program GOLDVARB-X as tool for the

quantitative analysis of the data. The overall results of this study show that: the te-clitic is the

recurrent dative variant in writing of the period analyzed, regardless of treatment in subject

position (você or tu); the lhe-clitic confers character of formality, scoring low grade intimacy

between the interlocutors; prepositional phrases record low frequency of use, occurring the

replacement of the a ti and para ti by a você and para você over time; the subgenres of private

letter, the social core of the writers and the degree of dominance on standardized writing are

factors that influence the use of variants.

Key words: dative complement, 2nd person’s pronouns, private letters.

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A Lucas Laurentino de Oliveira,

meu irmão, meu espelho, meu “pequeno linguista”

e agora meu universitário.

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AGRADECIMENTOS

O espaço desta seção é muito curto para que seja possível agradecer a todos que, de

algum modo, me ajudaram ao longo desses dois anos de mestrado. Mesmo assim, tentarei

fazê-lo, desculpando-me desde já por uma eventual e infeliz falha na memória.

Em primeiro lugar, agradeço à minha mãe, Maria de Fátima Laurentino de Oliveira,

e ao meu pai, Adir Carvalho de Oliveira; pela criação, pelo carinho e pelos ensinamentos

constantes. Nunca me iludiram dizendo que o caminho seria fácil, porém nunca disseram

também que eu não conseguiria caminhar. Muito do que eu sou hoje devo a vocês!

Agradeço aos meus avós maternos, Josefa e Raimundo e aos meus avós paternos,

Neyde e Álvaro por toda a sabedoria e vivência a mim transmitidas da maneira mais simples e

didática, coisa que faculdade nenhuma seria capaz de ensinar. Vocês são, com toda a certeza,

os grandes precursores que, a duas gerações, vieram preparando o caminho.

Agradeço também, de uma forma geral, a todos os membros da minha família – tios,

tias, primos, primas etc – pelo apoio e incentivo constantes, sempre os maiores entusiastas das

minhas conquistas.

Um agradecimento muito especial para a minha “mãe acadêmica” Célia Lopes, por

todo empenho, atenção, dedicação e respeito com que sempre me orientou, desde os tempos

de Iniciação Científica até o término deste trabalho. Você é um exemplo que procuro seguir,

admiro muito a maneira como você sabe tratar o profissional sem se esquecer do humano.

Este trabalho não sairia sem sua acurada revisão, seus preciosos comentários e seu senso

crítico constante. Meu muito obrigado!

Agradeço a todos os magníficos professores da Faculdade de Letras da UFRJ, que

muito contribuíram não só na minha formação acadêmica, como também no amadurecimento

do meu senso crítico. Agradeço especialmente aos professores de língua portuguesa

Humberto Soares, Mônica Nobre, Marcia Machado, Violeta Rodrigues, João Moraes, Dinah

Callou, Afrânio Barbosa, Silvia Cavalcante, Maria Eugenia Duarte, Carlos Alexandre e

Aparecida Lino, pelas aulas maravilhosas nos cursos de graduação e pós-graduação. Com

todos vocês, aprendi e entendi que um verdadeiro professor é, na verdade, um grande, eterno e

apaixonado pesquisador.

Agradeço ao professor, pesquisador e colega de projeto Leonardo Marcotulio.

Primeiramente, por aceitar o convite para ser membro da minha banca; e, além disso, pelas

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orientações e sugestões, sempre muito enriquecedoras para o meu trabalho. Obrigado, Léo!

Considero você um modelo a ser seguido.

Agradeço às professoras Rosane Berlinck, Márcia Rumeu e Christina Gomes, por

também aceitarem o convite para participar da minha banca.

Agradeço à professora Vera Paredes Silva, por ceder tão gentilmente as cartas

utilizadas em sua tese de doutorado. Esse material foi imprescindível para que eu pudesse

concretizar o meu projeto de análise. Muito obrigado!

Agradeço também a todos os meus amigos que a Faculdade de Letras me deu:

Giselle e Victor (o “engenheiro letrado”), Eduarda, Mariana, Fernanda, Carol Lucques,

Camila Maciel, Larissa, Anne Karenine, Carmem, Jorge, Rafael, Carlos Eduardo, Silvia,

Vivian e tantos outros. Obrigado pelo carinho, pela amizade. Juntos fomos e somos mais

fortes!

Um agradecimento especial à minha amiga, colega de graduação, “filha da amiga da

minha tia”, colega de iniciação, companheira de viagens, congressos, apresentações,

trabalhos, colega de mestrado e irmã que a UFRJ me deu Camila Duarte de Souza. Nunca

precisamos de beijinhos, abraços e muitas demonstrações exageradas de afeto para termos

certeza da solidez de nossa amizade. Sempre que um precisou, o outro esteve ali para ajudar.

Sempre que era necessário (poucas vezes, é preciso dizer), um “puxou a orelha do outro” e

isso não abalou nossa amizade. Termino o mestrado com a mesma garantia com que terminei

a graduação: não vamos perder o contato! Nossa amizade é para a vida inteira e tenho muito

orgulho de ser seu amigo. Você é uma excelente pessoa e te admiro muito!

Agradeço ao meu amigo Murilo, por me ouvir falando da faculdade, da pesquisa e do

mestrado sem nunca ter reclamado disso. Obrigado por me acompanhar nessa caminhada com

uma paciência incrível! Não é para qualquer um! Estendo, ainda, meu agradecimento a todos

meus demais amigos, pela força e parceria de sempre!

Agradeço aos meus colegas de pesquisa e de pós-graduação Carolina Lacerda, Érica,

Janaína, Rachel, Elaine, Caio, Stephanie, Karine, Diogo, Maria, Patrícia e Núbia. Nossa

convivência e companheirismo deixam, sem dúvida, o trabalho menos pesado e mais

prazeroso.

Agradeço à FAPERJ, pelo auxílio financeiro, de extrema importância para que este

trabalho acontecesse.

Termino agradecendo aos meus alunos da Letras, por, em tão pouco tempo de

convivência, me tratarem com muito respeito e carinho. Ler os comentários de vocês sobre o

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meu trabalho como docente na internet foi surpreendente e me deixou imensamente feliz.

Desejo a todos, sempre, que sigam em frente e atinjam seus objetivos.

Por fim, termino agradecendo a todos os futuros leitores desta dissertação. Espero

que o meu trabalho possa contribuir de alguma forma com a pesquisa daqueles que se

dispuserem a lê-lo.

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“Três cegos rodeiam um elefante e tentam achar uma definição para o bicho. Um

palpa suas pernas e diz que o elefante é uma coluna cilíndrica, rígida, imóvel. Outro palpa a

cauda e concorda com o primeiro, exceto no quesito da imobilidade. O terceiro palpa a

tromba e discorda dos dois no quesito da rigidez. Qual deles tem a razão? Nenhum e todos ao

mesmo tempo, pois cada um fez uma descoberta válida por si mesma, ainda que incompleta.

Estudiosos das línguas e dos fenômenos sociais são como os cegos da fábula. Estão

sempre pesquisando, e sempre produzindo resultados incompletos.”

Ataliba de Castilho1

1 In: Nova Gramática do Português Brasileiro. 1.ed., São Paulo: Contexto, 2010, p. 41

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“Na Faculdade você vai conhecer milhões de

pessoas, boas ou más, mas que a cada dia te

ensinarão lições de vida, porque é vivendo que se

aprende a viver melhor.”

O dado mais sábio desta dissertação.

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SINOPSE

Estudo da variação entre as formas você e tu na posição

de dativo-objeto indireto. Análise da escrita informal

epistolar produzida entre as décadas de 1880 e 1980 por

cariocas de diferentes categorias sociais. Investigação dos condicionamentos linguísticos e extralinguísticos

favorecedores das diferentes estratégias dativas de 2P.

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SUMÁRIO

1. Introdução ................................................................................................................20

2. Os dativos: revisando a literatura linguística .......................................................24

2.1. O caso dativo no latim .......................................................................................24

2.2. Dativos versus Oblíquos ....................................................................................27

2.3. Caracterização geral do dativo em português ....................................................31

2.3.1. Clítico dativo, sintagma preposicionado e objeto nulo: as possibilidades de

realização em análises linguísticas ................................................................................32

2.3.2. Traços semânticos: animacidade e multiplicidade temática

........................................................................................................................................36

2.4. Tipologia dos dativos em português ..................................................................43

2.5. Síntese do Capítulo ............................................................................................50

3. Os pronomes de 2ª pessoa no português brasileiro ..............................................52

3.1. A prescrição das gramáticas normativas: conservadorismo e preservação da

uniformidade de tratamento ...........................................................................................52

3.1.1. Os manuais didáticos e o ensino dos pronomes

........................................................................................................................................56

3.2. A descrição dos estudos linguísticos: variação e ausência da uniformidade de

tratamento ......................................................................................................................58

3.2.1. Representação pronominal de 2ª pessoa: correlação entre formas de

tratamento? ....................................................................................................................58

3.2.2. Formas pronominais de tratamento nas posições de objeto: mescla de

paradigmas .....................................................................................................................65

3.3. Conclusão do capítulo .......................................................................................69

4. Pressupostos teóricos e metodológicos ...................................................................70

4.1. O problema da constituição do corpus ..............................................................71

4.1.1. Os problemas acerca do corpus propriamente dito ....................................72

4.1.2. Informantes de sincronias passadas e a validade social e histórica

........................................................................................................................................73

4.1.3. Representatividade e validade empírica dos dados ...................................75

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4.1.4. Invariação e a ideologia do padrão ............................................................76

4.2. Princípios e conceitos teórico-metodológicos da Sociolinguística histórica

........................................................................................................................................77

4.2.1. Princípio do Uniformitarismo ....................................................................77

4.2.2. A importância da História Social ...............................................................79

4.2.3. O estilo e a reconstrução do contexto de produção................................79

4.2.4. O modelo de Koch e Oesterreicher ............................................................81

4.3. Um estudo de caso para o português brasileiro: a variação pronominal em cartas

pessoais .........................................................................................................................83

4.3.1. A análise pronominal em cartas pessoais ................................................84

4.3.2. A constituição do corpus: problemas e soluções ....................................85

4.3.3. A correlação entre os fatores linguísticos, históricos e sociais: a emergência

de uma norma brasileira ................................................................................................87

4.4. Metodologia .......................................................................................................89

4.4.1. O corpus, suas fontes e informantes .........................................................89

4.4.2. Os dados ....................................................................................................98

4.5. Conclusão do capítulo .......................................................................................98

5. Descrição e análise dos dados ...............................................................................100

5.1. As variantes de dativo e os grupos de fatores ................................................100

5.2. Resultados gerais .............................................................................................107

5.3. Análise variável do fenômeno .........................................................................139

5.3.1. Variantes dativas mais produtivas: clítico te vs. dativo ø ..................140

5.3.2. Variantes dativas de origens distintas: clítico te vs. clítico lhe ..........143

5.3.3. Variantes conservadoras e inovadoras: clítico te vs. sintagmas

preposicionados ...........................................................................................................147

5.4. A Uniformidade de tratamento: retornando à questão ...............................153

6. Considerações finais ..............................................................................................158

Referências bibliográficas .........................................................................................161

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Índice de Esquemas

Esquema 2.1: Hierarquia de animacidade (adaptado de Givón, 1995 apud Company, 2006) ..............37

Esquema 2.2: O continuum dos papéis temáticos do OI ........................................................................41

Esquema 2.3: Gradação semântica das categorias distintivas do dativo ...............................................50

Índice de Gráficos

Gráfico 2.1: Objeto indireto nulo segundo a pessoa gramatical (adaptado de Berlinck, 2005, p. 139)

................................................................................................................................................................35

Gráfico 3.1: Porcentagens do uso não uniforme dos pronomes objetos de 2P nos dois corpora

(BRITO, 2001, p. 101) ...........................................................................................................................64

Gráfico 3.2: Correlação entre as estratégias de acusativo e as localidades (OLIVEIRASILVA, 2011)

................................................................................................................................................................68

Gráfico 3.3: Correlação entre as estratégias de dativo e as localidades (OLIVEIRASILVA, 2011)

.......................................................................................................................................... ..................... 68

Gráfico 5.1: Percentual de ocorrência das variantes dativas nas cartas cariocas e fluminenses (1880-

1980) ....................................................................................................................................................107

Gráfico 5.2: Percentual de ocorrência das variantes dativas na diacronia analisada (1880-1980)

.....................................................................................................................................................132

Gráfico 5.3: A frequência do clítico te nas cartas segundo a forma pronominal do Sujeito na diacronia

analisada (1880-1980) ......................................................................................................................... 154

Gráfico 5.4: A frequência do clítico lhe nas cartas segundo a forma pronominal do Sujeito na diacronia

analisada (1880-1980) ..........................................................................................................155

Gráfico 5.5: A frequência do sintagma preposicionado para você nas cartas segundo a forma

pronominal do Sujeito na diacronia analisada (1880-1980) ................................................................156

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Índice de Quadros

Quadro 2.1: Categorias distintivas (extraído de Berlinck, 2005, p. 131) ..............................................49

Quadro 3.1: Pronomes pessoais do português segundo a perspectiva tradicional (adaptado de Cunha &

Cintra, 1985, p. 270) ..............................................................................................................................52

Quadro 3.2: Distribuição dos 3 subsistemas dos pronomes pessoais de 2ª pessoa pelas regiões

brasileiras (LOPES & CAVALCANTE, 2011, p.39) ............................................................................60

Quadro 3.3: Flexão de caso dos pronomes na norma padrão do português (LUCCHESI & MENDES,

2009, p. 473) ............................................................................................................................. .............61

Quadro 3.4: Flexão de caso dos pronomes pessoais na norma culta brasileira (LUCCHESI &

MENDES, 2009, p.475) .........................................................................................................................61

Quadro 4.1: Parâmetros determinantes do grau de imediatismo/distância comunicativa dos textos

escritos (OESTERREICHER, 2006, p.255) ..........................................................................................82

Quadro 4.2: Corpus analisado e suas fontes ..........................................................................................97

Quadro 5.1: Valores semânticos dos verbos que selecionam complemento dativo ............................115

Quadro 5.2: Grupos de fatores selecionados nos cruzamentos entre o clítico te e as demais variantes

............................................................................................................................. .................................139

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Índice de Tabelas

Tabela 3.1. A distribuição das formas pronominais em função de complemento verbal (MACHADO,

2011, p. 152) ............................................................................................................................. .............63

Tabela 3.2. Correlação das formas acusativas de 2ª pessoa e o sujeito em cartas dos séculos XIX-

XX.(LOPES & CAVALCANTE, 2011, p. 53) ......................................................................................66

Tabela 3.3. Correlação das formas dativas de 2ª pessoa e o sujeito em cartas dos séculos XIX-

XX.(Fonte: LOPES E CAVALCANTE, 2011, p. 56) ...........................................................................67

Tabela 3.4. Distribuição das estratégias de complemento verbal em roteiros cinematográficos (Fonte:

Adaptado de OLIVEIRA SILVA, 2011, p. 27) .....................................................................................68

Tabela 5.1. Correlação entre o tratamento na posição de sujeito e as estratégias utilizadas como

complemento dativo .............................................................................................................................108

Tabela 5.2. Distribuição das variantes de complemento dativo quanto à estrutura argumental do verbo

predicador ............................................................................................................................................112

Tabela 5.3. Distribuição das variantes de complemento dativo quanto ao valor semântico do verbo

predicador ...........................................................................................................................................116

Tabela 5.4. Correlação entre as variantes de complemento dativo e a forma do objeto direto em

estruturas bitransitivas .........................................................................................................................123

Tabela 5.5. Correlação entre o subgênero da carta e as estratégias utilizadas como complemento dativo

..............................................................................................................................................................126

Tabela 5.6. Distribuição das variantes de complemento dativo quanto à seção da carta ....................129

Tabela 5.7. Distribuição das variantes dativas entre as amostras do 1º período (1880-1905) .............133

Tabela 5.8. Distribuição das variantes dativas entre as amostras do 2º período (1906-1930) .............134

Tabela 5.9. Distribuição das variantes dativas entre as amostras do 3º período (1931-1955) .............136

Tabela 5.10. Distribuição das variantes dativas entre as amostras do 4º período (1956-1980) ...........137

Tabela 5.11. Análise multivariada das formas dativas te x zero (Valor de Aplicação: clítico te) .......140

Tabela 5.12. Análise multivariada das formas dativas te x lhe (Valor de Aplicação: clítico te) .........144

Tabela 5.13. Análise multivariada das formas dativas te x SPreps (Valor de Aplicação: clítico te)

..............................................................................................................................................................148

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1. INTRODUÇÃO

A variação entre as formas pronominais tu e você na posição de sujeito constituiu-se,

nos últimos anos, em um notável objeto de investigação, explorado por estudiosos sob

diferentes enfoques e perspectivas (cf. LOPES & DUARTE, 2003; MACHADO, 2006, 2011;

RUMEU, 2008; SOUZA, 2012, entre outros). A alternância das formas dos paradigmas de tu

e você em outros contextos sintáticos encontra-se, contudo, praticamente inexplorada com

poucos estudos já realizados, dentre os quais mencionamos Brito (2001), Lopes & Cavalcante

(2011), Lopes, Rumeu & Marcotulio (2011) e Lopes, Souza & Oliveira (2011). Diante desse

quadro, a presente dissertação objetiva investigar a variação pronominal de referência à

segunda pessoa do singular na posição sintática de complemento verbal dativo. Entendemos

por dativo o argumento interno dos verbos de dois ou três lugares que recebe papel semântico

de alvo ou fonte e pode ser substituído por um clítico, como ilustram os exemplos a seguir:

(01) João telefonou (a ti / para ti / a você/ para você) → João te/lhe telefonou.

(02) Maria mandou um presente (a ti / para ti / a você / para você) → Maria te/lhe mandou

um presente.

Ao consultarmos diferentes gramáticas tradicionais, observamos que, nas seções

destinadas à abordagem dos pronomes pessoais, os autores consideram apenas o tu atua como

pronome pessoal de 2ª pessoa, sendo o você descrito ora como pronome de tratamento, ora

como 2ª pessoa indireta (formalmente de 3ª pessoa, porém semanticamente de 2ª). Os

gramáticos estendem essa possibilidade de referência às outras posições sintáticas, advogando

que teríamos apenas o pronome átono te para os objetos direto e indireto; para o objeto

indireto, haveria ainda a forma ti, encabeçada por preposição.

Um dos problemas em descrever o paradigma “tu–te–ti” como única possibilidade é

a larga utilização do você combinado ao te, como em “Você leu o livro que eu te dei?”, no

português brasileiro atual, falado ou escrito. Os gramáticos tradicionais tentam “resolver” o

problema através da chamada “uniformidade de tratamento”, segundo a qual prescrevem que,

uma vez escolhida a forma de referência à 2ª pessoa (tu ou você), os usuários da língua

deverão estender as formas correlatas desse paradigma a todas as posições, como objeto

direto, objeto indireto e possessivos. Sendo assim, para o uso uniforme do você, recomendam

o uso, por exemplo, do clítico lhe para o dativo-objeto indireto.

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Adotando uma abordagem sociolinguística variacionista laboviana, Gomes (2003),

ao analisar dados de língua falada em uma amostra do dialeto carioca, identificou as seguintes

formas pronominais empregadas como dativo de 2ª pessoa: os clíticos te e lhe e os sintagmas

preposicionados a você e para você. A descrição gramatical não corresponde, pois, ao que

pôde ser verificado em dados linguísticos concretos, nem mesmo entre os falantes cultos.

Sabemos, ainda, que no dialeto carioca é adotado um subsistema de tratamento misto em

posição de sujeito (tu/você)2. Por que, então, as gramáticas tradicionais insistem na descrição

dos pronomes de 2ª pessoa pautada apenas no paradigma do pronome tu? Haveria uma

razão/herança histórica permeando essas descrições? A uniformidade de tratamento seria uma

realidade concreta que regulava a escrita em outras sincronias? Quantas e quais eram as

formas de representação da 2ª pessoa na posição sintática de dativo?

Diante desses questionamentos, traçamos os objetivos norteadores da pesquisa, a

saber: (i) identificar e analisar as formas variantes dativas de 2ª pessoa bem como os fatores

linguísticos e extralinguísticos que atuaram no (des)favorecimento de uma estratégia em

relação às demais no período de um século (entre as décadas de 1880 e 1980); (ii) observar a

manutenção/ruptura da chamada uniformidade de tratamento na escrita dos missivistas, a fim

de discutir a validade desse conceito; (iii) discutir a influência exercida pelas variáveis sócio-

históricas sobre as amostras de dados linguísticos, a fim de destacar a validade e a

representatividade dessas para o estudo diacrônico. Para tanto, analisamos cartas particulares

escritas por cariocas e fluminenses no período mencionado. Como referenciais teóricos e

metodológicos, adotamos a sociolinguística variacionista laboviana e a sociolinguística

histórica (cf. WEINRECH, LABOV, HERZOG, 1968; LABOV, 1994; CONDE

SILVESTRE, 2007; HERNÀNDEX-CAMPOY & CONDE SILVESTRE, 2012)

Formulamos, com base em estudos anteriores, algumas hipóteses a serem verificadas

nos dados do corpus analisado. Em primeiro lugar, supomos que o clítico dativo te seja a

forma pronominal mais recorrente na escrita carioca/fluminense, independentemente da forma

empregada na posição de sujeito, você ou tu. O dativo nulo – isto é, o objeto não realizado

formalmente –, embora não costume ser apontado como uma variante possível, registra uma

frequência considerável de uso, passando a ser mais utilizado após a inserção do você (cf.

LOPES e CAVALCANTE, 2011). As formas preposicionadas sempre apresentaram baixa

recorrência na representação do dativo de 2ª pessoa do singular; com o uso mais frequente de

2 Lopes e Cavalcante (2011, p.37) postulam que, no PB, atualmente, coexistem pelo menos três subsistemas de

tratamento na posição de sujeito – (i) você, (ii) tu e (iii) você/tu. Embora predomine, em algumas localidades, o

uso do você e, em outras, o uso do tu, identifica-se, segundo as autoras, a variação entre as duas formas na maior

parte do território brasileiro. Retomaremos essa questão no capítulo 3 desta dissertação.

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você no português brasileiro, contudo, os sintagmas a você e para você foram substituindo

gradativamente os sintagmas a ti e para ti na variedade carioca. Ainda nessa variedade, o uso

do clítico lhe confere caráter de formalidade, marcando, pois, baixo grau de intimidade (cf.

GOMES, 2003).

Outras hipóteses, de um viés extralinguístico, também fazem parte da presente

dissertação. O gênero “carta particular” apresenta subdivisões condicionadas pelo grau de

intimidade e pela finalidade/tema da mensagem; tais subgêneros interferem diretamente no

uso de determinadas formas de dativo. A uniformidade de tratamento não constitui uma

realidade na escrita epistolar, consistindo em uma artificialidade da gramática normativa. O

núcleo social dos missivistas assim como o grau de domínio destes sobre os modelos de

escrita de sua época são fatores que (des)favorecem o uso de certas variantes em relação às

demais.

Para responder aos questionamentos anteriores, cumprir os objetivos norteadores e

verificar a validade das hipóteses apresentadas, estruturamos a presente dissertação em seis

capítulos. Além desta introdução (capítulo 1), apresentamos no capítulo 2 a primeira parte da

revisão bibliográfica sobre o tema; tratamos especificamente do conceito de dativo discutindo

seu emprego na língua latina. Abordamos, também, a difícil missão que tem sido definir e

diferenciar dativo de oblíquo, devido a várias semelhanças formais e semânticas existentes

entre as duas funções. Ainda no capítulo 2, reunimos uma caracterização geral do

complemento, finalizando com a tipologia para o dativo português, proposta por Berlinck

(1996).

O capítulo 3 traz a segunda parte da revisão bibliográfica, focalizando o quadro dos

pronomes pessoais no PB, especialmente a 2ª pessoa do singular. Confrontaremos o sistema

de pronomes pessoais presentes nas gramáticas normativas e nos manuais didáticos de língua

portuguesa, carregados de conservadorismo linguístico, com os estudos linguísticos sobre o

tema, destacando, dentre outras coisas, a problemática da uniformidade de tratamento.

Apresentaremos, ainda, os resultados de trabalhos sincrônicos e diacrônicos que examinam a

variação entre você e tu nas posições de complemento verbal.

Os pressupostos teóricos e metodológicos adotados nesta pesquisa são expostos no

capítulo 4. Neste, referenciamos alguns autores e estudos importantes para a Sociolinguística,

como o clássico trabalho de Weinreich, Labov e Herzog (1968), Empirical Foundations for a

Theory of Language Change. Além dos postulados variacionistas, dedicamos a maior parte

dos pressupostos à sociolinguística histórica (ROMAINE, 1982; CONDE SILVESTRE, 2007;

HERNÀNDEX-CAMPOY & CONDE SILVESTRE, 2012), área ainda timidamente

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desenvolvida nos estudos linguísticos brasileiros. Discutimos, dentre outras coisas, o

problema de elaboração do corpus na pesquisa sócio-histórica, assim como os princípios e

conceitos teóricos que podem solucioná-los. Em seguida, relacionamos esses problemas e

conceitos ao corpus adotado. As decisões metodológicas tomadas no desenvolvimento da

análise fecham o capítulo.

No capítulo 5, descrevemos os grupos de fatores elaborados para a análise das

variantes de dativo, bem como os resultados obtidos após as rodadas no programa estatístico

GOLDVARB-X. Iniciamos com os resultados globais, mostrando o comportamento e a

distribuição das variantes segundo os fatores linguísticos e extralinguísticos controlados.

Ainda dentro de uma análise quantitativa, apresentamos os pesos relativos das variantes, a fim

de refinar os resultados obtidos na rodada geral. Encerramos o capítulo retomando a discussão

a respeito da correlação entre as formas utilizadas nas posições de sujeito e dativo e

relacionando-a aos resultados obtidos na pesquisa.

As considerações finais estão reunidas no capítulo 6. Retomando o assunto estudado,

recuperamos as hipóteses e os objetivos do trabalho a fim de confrontá-los com os resultados

significativos da análise.

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2. OS DATIVOS: REVISANDO A LITERATURA LINGUÍSTICA

Neste primeiro momento da revisão bibliográfica, exploraremos o conceito de dativo,

visto que as características inerentes a essa categoria sintática interferem na realização dos

pronomes-complemento de segunda pessoa do singular, objeto central desta dissertação.

Apresentamos, a seguir, uma breve discussão acerca do caso dativo na língua latina e da

difícil tarefa de definir essa categoria, além de mostrar as diferenças entre dativo e oblíquo

(outra categoria igualmente complexa de ser formalizada). Na sequência, propomos uma

caracterização geral da função dativa e, por fim, concluímos com uma tipologia para o dativo

português.

2.1. O Caso Dativo no Latim

Em latim, a função sintática dos substantivos, adjetivos e pronomes dentro da

sentença era indicada por uma desinência específica, chamada de marca de caso. O caso é,

segundo Faria (1958, p. 59), a “forma tomada por uma palavra declinável para indicar

precisamente qual a função que desempenha na frase”. Havia na língua latina seis casos,

dentre os quais figurava o caso dativo. Faria (1958, p. 62) aponta que o dativo “é

principalmente o caso da atribuição, indicando a pessoa ou coisa a quem um objeto é

destinado e, daí, no interesse de quem se faz alguma coisa”. Ainda de acordo com o autor, o

emprego mais corriqueiro e geral do dativo era indicar a função do objeto ou complemento

indireto da oração.

A multiplicidade semântica do dativo existente em português e nas outras línguas

românicas já estava presente no latim. Faria (1958) lista em sua gramática nove tipos: dativo

de objeto indireto, dativo de contato ou aproximação, dativo de interesse, dativo de posse,

dativo de referência, dativo ético, dativo de agente ou de obrigação, dativo de destinação e

dativo de direção (exemplificados3, respectivamente, abaixo). O autor observa que todos esses

tipos relacionam-se com a significação básica e geral do caso dativo de atribuição ou

interesse. Para ele, “esta ideia fundamental de atribuição explica o emprego do dativo como

complemento não só de verbos, como também de substantivos e adjetivos (...).” (FARIA,

1958, p. 348-349).

3 Os exemplos (1-9) foram extraídos de Faria (1958). A marcação em itálico pertence ao original; os termos

dativos sublinhados são nossos.

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(03) Hirtio cenam dedi (Cíc., Fam., 9,20,2) “dei uma ceia a Hírtio”

(04) dextrae iungěre dextram (Verg., En., 1,408) “unir a minha destra à tua destra”

(05) non tibi sed patrĭae natus (Cíc., Mur., 83) “nascido não para ti, mas para a pátria”

(06) nullum esse nobis seruom (Plaut., Amph., 385) “não temos escravo algum”

(07) non tibi ego exēmpli satis sum? (Ter., Heaut., 920) “não sou para ti um exemplo

bastante?”

(08) nunc amīci anne inimīci sis imāgo mihi sciam (Plaut., Cas., 515) “agora saberei se me és

a imagem do amigo ou do inimigo”

(09) tibi cauēndum censeo (Plaut., Cas., 411) “penso que te deves acautelar”

(10) dies conloquio dictus est (Cés., B. Gal., 1,42,3) “foi marcado o dia para a entrevista”

(11) it clamor caelo (Verg., En., 5,451) “vai um clamor ao céu”

Van Hoecke (1996, p.6), também assinala que os gramáticos latinos consideravam,

de fato, o dativo como um dativus casus – expressão advinda do grego, dotikê ptôsis – ou

casus dandi (do verbo dare, “dar”), ou seja, como o caso da atribuição: “ele indica a pessoa a

quem alguma coisa é dada (dare), dita, enviada, trazida etc.” (VAN HOECKE, 1996, p. 6).

Contudo, o autor discorda da interpretação do dativo como um caso de atribuição:

(...) em latim o dativo não é realmente um ‘dativo’, um casus dandi, que indica

atribuição. (...) O nome dativus provavelmente pode ser explicado pelo caráter

prototípico da construção dare aliquid alicui (‘dar algo a alguém’), mas isso dificilmente representa o valor fundamental do caso. (VAN HOECKE, 1996, p.18)

O estudioso ressalta também a existência de um número de construções com o dativo

bastante variadas na língua latina e reconhece que tais construções “assumem valores

aparentemente muito distintos” (VAN HOECKE, 1996, p. 5). Embora liste nove tipos de

dativo, Van Hoecke (1996) afirma que, em latim, o dativo constitui um caso bastante

homogêneo. Ele utiliza a noção de “polo de orientação” como um denominador comum que

permite tratar dos diferentes usos do caso dativo:

(...) [o dativo] indica o polo para o qual a ação ou o processo referido pelo predicado

se orienta. Adotando outra perspectiva, podemos dizer também que o dativo serve

como o limite do predicado no sentido que indica o último termo para o qual tende a

ação ou processo referido. Este valor básico pode, contudo, adquirir nuances

específicas segundo o contexto no qual o dativo aparece. (VAN HOECKE, 1996,

p.31)

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Não objetivamos discutir e analisar detalhadamente os diferentes tipos de dativo no

latim, como muito bem o faz ambos os autores citados. Interessa-nos tão somente deixar

registrada a multiplicidade semântica do dativo, verificada na língua latina, e a consequente

multiplicidade de construções e contextos nos quais se pode identificar a presença do mesmo.

Concordamos com Van Hoecke (1996), contudo, no que se refere ao significado básico que

atravessa todos os tipos da categoria em questão: o polo de orientação para o qual tendem as

ações/processos expressos pela predicação da sentença. Ainda que essa conceituação seja

demasiadamente genérica, ela nos parece suficiente para o estudo que pretendemos

desenvolver nos próximos capítulos. Antes de encerrar as considerações sobre o caso dativo

no latim, é preciso comentar um último aspecto.

A língua latina valia-se de marcas morfológicas para expressar os diferentes casos,

dentre eles o dativo. Esse sistema de marcação morfossintática proporcionava, entre outras

coisas, uma sintaxe relativamente livre da sentença e a ligação direta dos substantivos a

verbos ou a outros substantivos. Essas possibilidades, entretanto, inexistem nas línguas

românicas. Tarallo (1994, p. 118) afirma que, na passagem do latim ao português, houve um

processo de mudança encaixada: processos fonológicos que caracterizavam o latim vulgar

(língua falada), tais como a perda da quantidade das vogais e obscurecimento das consoantes

finais, acarretaram perdas no sistema morfológico. Uma dessas perdas foi, justamente, a

marca desinencial de caso.

Tais perdas no nível morfológico foram compensadas dentro do sistema linguístico

com ganhos sintáticos. Ainda de acordo com Tarallo (1994, p. 134), “O uso das preposições

no latim clássico era, pois, restringido a dois casos: o acusativo e o ablativo”. O autor comenta

que, em português, o único caso que sobreviveu foi o acusativo. Portanto, de acordo com sua

análise, “(...) as preposições a ele começaram a se juntar a fim de estabelecer as mais variadas

relações.” (idem). Dito de outra maneira, um dos mecanismos sintáticos que passou a ser

utilizado para substituir a antiga marcação casual foi o emprego mais amplo das preposições;

estas sofreram, nas línguas românicas, um notável enriquecimento funcional, haja vista que a

elas cabe a tarefa de relacionar os substantivos a outros substantivos e alguns verbos aos seus

complementos.

Nesse contexto, podemos destacar como uma inovação das línguas neolatinas a

possibilidade de representar o dativo – nominal ou pronominal – por meio de uma estrutura de

Sintagma Preposicionado (SP). Na língua portuguesa, coube à preposição a o papel de marcar

morfologicamente o elemento da sentença que apresenta o caso dativo. Tal preposição

indicava, em latim, direção no sentido de adjunção. Segundo Tarallo (1994, p. 136), “(...)

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houve ampliação de a para indicar interioridade no lugar de in no latim clássico que regia

acusativo, indicando movimento até, e entrada em algum espaço (...)” [grifos do original].

Sendo assim, ao compararmos o dativo no latim e no português, é pertinente afirmar que,

neste último, a marca desinencial foi substituída pela preposição a4, como podemos notar no

exemplo (12) que retoma (03):

(12) Hirti-o cenam dedi (Cíc., Fam., 9,20,2) “dei uma ceia a Hírtio”

À título de fechamento da presente seção, podemos fazer duas observações com base

no que foi apresentado. Em primeiro lugar, vestígios de marcas casuais foram preservados nos

pronomes pessoais, ainda que de maneira débil. Isso pode ser ilustrado na distinção entre as

formas de sujeito (tu), de complemento acusativo de 2a pessoa (te) e de complemento dativo

e/ou ablativo (ti). As distinções não apresentam a mesma força da língua latina, porém, se

comparadas aos substantivos, nos quais não existe qualquer resquício das marcas de caso

latinas, a diferença é nítida (a distinção entre um SN sujeito e um SN complemento acusativo,

por exemplo, é feita apenas pela posição sintática em relação ao verbo). A estrutura formal

dos pronomes pessoais latinos, contudo, já se modificou e continua se modificando dentro das

línguas românicas. No âmbito do dativo, a combinação entre uma preposição e uma forma

pronominal para expressar o referido caso é legítima: “Pedro enviou uma carta a ti”. Tal

estrutura inexistia no latim. Concluímos que o sistema pronominal em vigor nas línguas

românicas (ao menos no português brasileiro) é uma conjugação entre aspectos

conservadores, que preservam resquícios da estrutura do latim, e aspectos inovadores, que

emergiram e continuam a emergir nas diferentes línguas-romance.

2.2. Dativos versus Oblíquos

Conforme demonstrado na seção anterior, a perda da marcação morfológica de caso

que havia no latim generalizou o uso das preposições. Como resultado, passa a haver em

português um número bem maior de constituintes nominais encabeçados por preposição do

que havia em latim. Isso faz com que, formalmente, o complemento dativo se apresente da

mesma maneira que outros elementos constituintes da sentença. Esses constituintes, no

4 Estudos recentes como o de Gomes (2003) atestam que, no português brasileiro, a marcação do dativo é

variável entre as preposições a e para, com clara evidência de que a última está substituindo o uso da primeira.

Trataremos dessa questão em seção oportuna.

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entanto, exibem uma ampla gama de valores semânticos que se afastam em boa medida dos

valores semânticos verificados para o dativo. Diante dessa similaridade estrutural, diversos

autores apresentam critérios que buscam distinguir os sintagmas preposicionados dativos dos

sintagmas preposicionados ditos oblíquos.

A Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB), documento publicado pelo Ministério

da Educação em 1959 que propôs a uniformização e simplificação da terminologia adotada

nas gramáticas brasileiras, não aponta nenhuma diferença entre os complementos verbais

preposicionados. Seguindo essa orientação, todas as gramáticas ditas tradicionais publicadas

no país, desde então, apresentam como complementos verbais o objeto direto (doravante OD)

e o objeto indireto (doravante OI). No primeiro caso (OD), o complemento não é

preposicionado, ligando-se diretamente ao verbo e, no segundo (OI), os complementos se

ligam ao verbo por intermédio de uma preposição5. De acordo com essa classificação, nas

sentenças em (13) e (14) os constituintes sublinhados são igualmente rotulados como OI:

(13) O João deu um presente para a Maria.

(14) O João sonhou com a Maria.

Rocha Lima (1985), contudo, é uma exceção à regra. Em sua Gramática Normativa

da Língua Portuguesa, é o único gramático tradicional pós-NGB a separar os complementos

verbais preposicionados com classificações distintas. Segundo o autor, o OI “é o

complemento que representa a pessoa ou coisa a que se destina a ação, ou em cujo proveito ou

prejuízo ela se realiza” (ROCHA LIMA, op. cit., p. 219). Percebemos que essa definição se

aproxima-se claramente àquela oferecida por Faria (1958) para o dativo latino. Rocha Lima

(1985, p.219) apresenta três características que identificam o objeto indireto:

Apontem-se-lhe os seguintes caracteres típicos:

a) o ser encabeçado pela preposição a (às vezes, para);

b) o corresponder, na 3ª pessoa, às formas pronominais átonas lhe, lhes;

c) o não admitir – salvo raríssimas exceções – passagem para a voz passiva

Aos demais complementos verbais preposicionados, Rocha Lima (1985, p. 221-222)

nomeia complementos relativos (doravante CR). De acordo com a explicação fornecida pelo

autor, complemento relativo é aquele que se une ao verbo por determinada preposição (tais

5 Essa diferenciação entre OD e OI é, por si só, meramente formal e pouco consistente. As mesmas gramáticas

tradicionais que adotam tal classificação, também afirmam que o OD pode ser preposicionado em alguns

contextos.

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como a, com, de, em etc) e que integra a predicação de um verbo de significação relativa com

o valor de um objeto direto. Como critérios de diferenciação entre CR e OI, o gramático

aponta que o primeiro “não representa a pessoa ou coisa a que se destina a ação, ou em cujo

proveito ou prejuízo ela se realiza” (ROCHA LIMA, op. cit., p. 222); em vez disso, o CR

denota o ser que sofre a ação, tal como o OD. O CR também não pode ser pronominalizado

por lhe(s) na 3ª pessoa, como ocorre com o OI, admitindo apenas a substituição pelas formas

tônicas ele, ela, eles, elas encabeçadas por preposição. Aplicamos em (15) os critérios de

diferenciação expostos por Rocha Lima (1985) aos exemplos (13) e (14). Como podemos ver,

de fato, os complementos preposicionados não poderiam ser analisados como pertencentes à

mesma categoria:

(15) O João deu um presente para a Maria. → O João deu-lhe / lhe deu um presente.

Um presente foi dado (por João) para a Maria.

O João sonhou com a Maria. → *O João sonhou-lhe / lhe sonhou.

O João sonhou com ela.

No âmbito dos estudos linguísticos mais recentes, Duarte (2003) oferece argumentos

sintáticos e semânticos que diferenciam os complementos OI dos complementos a que

denomina oblíquos (OBL). De acordo com a autora, o OI é uma relação gramatical central no

português: “O constituinte com esta relação gramatical é tipicamente o argumento interno

de verbos de dois ou três lugares com o papel semântico de Alvo ou Fonte” (op. cit., p. 289).

São destacadas como propriedades típicas do OI: a animacidade do argumento, isto é, o

constituinte OI é, na maioria dos casos, [+animado]; quando o OI é um pronome pessoal,

exibe a forma clítica de dativo lhe. Duarte (op. cit.) também fornece dois testes para

identificação do OI:

(i) Pode substituir-se o constituinte com a relação gramatical de objecto indirecto

pela forma dativa do pronome pessoal

[...]

(ii) Pode formular-se uma interrogativa sobre o constituinte objecto indirecto

segundo o esquema a quem / a que é que SU V (OD)?, consoante se trate de um

argumento [+hum] ou [-hum], constituindo o objecto indirecto a resposta mínima

não redundante (...). (DUARTE, 2003, p. 290)

No que se refere ao oblíquo (OBL), Duarte (2003) afirma que não se trata de uma

relação gramatical central. Sendo assim, “têm relações gramaticais oblíquas tanto argumentos

obrigatórios (...) e opcionais (...) do predicador verbal (i.e., complementos do verbo) como

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adjuntos (...)” (p. 294). Como teste para a identificação de complementos oblíquos, a autora

aponta que

(...) Os constituintes com relações gramaticais oblíquas que são complemento do

verbo não podem ocorrer numa interrogativa segundo o esquema O que é que SU fez

OBL? / O que é que aconteceu a SU OBL?, sendo a resposta mínima não redundante

o SV constituído pelo verbo e pelos respectivos complementos (...). (DUARTE,

2003, p. 294)

Aplicando o teste da pronominalização pelo clítico dativo lhe e o teste das

interrogativas aos exemplos (13) e (14), temos, respectivamente, os seguintes resultados em

(16) e (17):

(16) a. O João deu um presente para a Maria. → O João deu-[lhe]OI / [lhe]OI deu um presente.

b. O João sonhou com a Maria. → *O João sonhou-lhe / lhe sonhou.

(17) a. Para quem o João deu um presente? R.: [Para a Maria]OI.

b. *O que é que o João fez [com a Maria]OBL? R: Sonhou.

A agramaticalidade de (16b) e (17b) comprova que o constituinte preposicionado

[com a Maria] é um oblíquo e, portanto, conforme explicitam os testes de identificação,

possui uma natureza diferente de um dativo como [para a Maria].

A formalização apresentada por Duarte (2003) para a diferenciação entre

complementos dativos e oblíquos é a mais adotada e difundida entre os linguistas que estudam

tais complementos nas variedades da língua portuguesa. Castilho (2010), no entanto, faz

algumas ressalvas importantes. Primeiramente, o autor lembra que boa parte da complicação

na qual se envolvem o OI e o OBL deve-se ao fato de ambos serem sempre preposicionados,

e, por isso, precisarmos decidir “se tais complementos foram selecionados pelo verbo, ou se

foram selecionados pela preposição ela mesma” (CASTILHO, 2010, p. 305). Os cinco

critérios apresentados pelo autor acompanham a análise de Rocha Lima (1985) e Duarte

(2003) discutidas acima. Ele destaca, porém, que as preposições a e para introdutoras do

sintagma preposicionado dos OI são selecionadas pelos verbos.

Company (2006), ao discutir teoricamente a categoria do OI no espanhol, afirma que

esta é uma categoria paradoxal e, em boa medida, contraditória. Segundo a autora, “o OI

mostra um status fronteiriço entre um objeto ou função direta e um oblíquo ou função

indireta” (COMPANY, 2006, p. 484). Tal afirmação deve-se, essencialmente, à natureza

formal e semântica instável do objeto indireto, conforme pontua a autora:

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31

Formalmente parece oblíquo, mas semanticamente parece uma função direta. Sua

manifestação como FP [Frase Prepositiva, isto é, sintagma preposicionado] o aproxima a um complemento circunstancial ou oblíquo, mas o fato de poder carregar

vários papéis semânticos o aproxima a uma função direta ou argumental e o

distancia dos circunstanciais, já que estes se sujeitam às restrições semânticas

impostas pelo significado da preposição, e têm, consequentemente, em geral um

único papel semântico. Também, a possibilidade de aparecer como pronome átono é

uma propriedade típica dos argumentos ou das funções nucleares, embora a

preposição lhe confira aspecto externo de oblíquo. (COMPANY, op. cit., idem)

De acordo com o excerto anterior, notamos que a autora interpreta o OI como um

elemento nuclear, argumental dentro da sentença, ainda que mencione aspectos segundo os

quais os OI podem ser confundidos com os OBL.

Embora os testes e critérios comentados nesta seção tenham demonstrado uma

eficácia satisfatória e possam dar conta de um grande número de dados, vale frisar que eles

não são decisivos e suficientes. Há uma quantidade considerável de casos em que não é tão

simples e prático arrolar o complemento preposicionado aos dativos/objetos indiretos6 ou aos

oblíquos; isso porque, desde a língua latina, existem verbos cuja transitividade e/ou semântica

é extremamente variável. Esses casos, sempre que surgirem, merecerão observações e

comentários extras, justamente por destoarem do conjunto considerado mais prototípico.

2.3. Caracterização Geral do Dativo em Português

A heterogeneidade inerente ao complemento dativo exige, quase sempre, que se faça

uma delimitação dessa categoria tanto em termos formais, quanto em termos semânticos.

Tendo por base os estudos já realizados sobre a caracterização do dativo stricto sensu,

apresentamos a seguir um breve levantamento acerca das propriedades desse complemento.

Enfatizaremos de que maneira essas propriedades se manifestam no dativo pronominal do

português brasileiro, foco central deste estudo.

6 Doravante, utilizaremos livremente os rótulos “dativo” (DAT) e “objeto indireto” (OI) como sinônimos, uma

vez que já esclarecemos quais tipos de OI são interpretados como “dativos”.

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2.3.1. Clítico dativo, sintagma preposicionado e objeto nulo: as possibilidades de realização

em análises linguísticas

Tratemos, agora, da configuração formal, sintagmática, da representação do OI.

Podemos afirmar que existem, ao menos para o português brasileiro, três maneiras gerais de o

dativo se apresentar na frase: i) como pronome oblíquo átono, isto é, um clítico; ii) como

sintagma preposicionado; iii) como objeto nulo, ou seja, não realizado foneticamente.

Passemos às considerações referentes a cada uma dessas possibilidades.

A respeito da forma clítica dos dativos, Company (2006) tece o seguinte comentário:

A manifestação recorrente do OI como clítico (...) confirma uma característica tipológica básica dos DAT na maioria das línguas, que é o fato de que estes fazem

referência a entidades facilmente identificáveis e recuperáveis no discurso, isto é,

carregam informação conhecida, previamente apresentada no texto, compartilhada

por falante e ouvinte, o que confere aos DAT persistência referencial e um elevado

caráter de tópico (...). (COMPANY, 2006, p. 493)

Seguindo a linha de raciocínio da autora, a categoria dativa está estreitamente

vinculada à classe dos pronomes, devido a essa propriedade de recuperar entidades já

mencionadas no discurso. Um argumento de base fonológica é utilizado por Company (2006,

p. 493): como os dativos veiculam informação “velha”, é natural que se elejam

preferencialmente unidades com baixo peso fonológico, ou seja, os clíticos. Sendo assim, a

utilização da forma clítica é favorecida por ser uma estratégia com menor peso fonológico e,

ao mesmo tempo, maior acessibilidade referencial.

Os estudos sobre o português, entretanto, apontam para um quadro diferente. Ao

menos no que se refere à terceira pessoa, diversos trabalhos têm demonstrado uma queda

progressiva no emprego das formas lhe, lhes7 (cf. BERLINCK, 1996; FREIRE, 2000;

GOMES, 2003, 2007; TORRES MORAIS, 2010; dentre outros). Freire (2000), analisando as

variantes de dativo anafórico na língua falada culta do português brasileiro e europeu, não

contabilizou um único dado de clítico na variedade brasileira, ao passo que a variedade

portuguesa registrou uma frequência de 88%. Berlinck (2005, p. 127, 139), ao examinar

diacronicamente as variantes de OI anafórico no português brasileiro, observou que, enquanto

a estratégia clítica registrou índices entre 70 e 80% nos séculos XVIII e XIX, os dados de tal

estratégia não atingiram 30% no século XX.

7 Alguns dos estudos citados mostram ainda uma alteração na relação gramatical desempenhada pelo clítico lhe:

em algumas variedades, esse clítico passou a indicar a função acusativa de 2ª pessoa do singular. No próximo

capítulo, comentaremos com mais detalhes essa alteração.

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Vale relembrar, contudo, que esses estudos focalizaram principalmente a 3ª pessoa

do singular. Ainda não se tem um quadro bem delineado acerca das frequências de uso dos

pronomes clíticos dativos de primeira e segunda pessoa no português brasileiro. Os poucos

estudos existentes sobre o tema (BRITO, 2000; DALTO, 2002; OLIVEIRA SILVA, 2011)

apontam para uma manutenção dos clíticos nessas pessoas gramaticais, fato que poderia ser

justificado pelo seu caráter dêitico, inerente a tais pessoas.

A segunda manifestação possível do dativo a ser considerada é a de sintagma

preposicionado (SP). Company (2006, p. 495) relembra que, quando o OI assume a forma de

SP, é introduzido pela preposição a. Segundo ela, essa marca preposicional tem origem em

uma mudança sintática compartilhada por todas as línguas romances, com exceção do

romeno. Nas palavras da autora,

Trata-se de uma extensão analógica do significado da preposição latina ad, mediante

a qual o sentido etimológico original desta preposição, de direção para uma meta

locativa (...), se estende para marcar uma entidade que é de alguma maneira

alcançada pela ação do verbo, isto é, um OI, meta da transitividade. (COMPANY,

op. cit., p. 495)

Company (op. cit.) também destaca que as primeiras documentações de OI

preposicionado correspondem a pronomes pessoais de primeira e segunda pessoa. Tal

construção podia ser encontrada com a preposição ad junto ao pronome dativo (ad mihi, ad

tibi), ou ainda com ad junto ao pronome acusativo (ad me magna nuntiavit, “ótimo para mim,

disse”; Plauto, Truc., IV.I.4).

No que tange à língua portuguesa, observamos uma importante diferença na

estruturação do dativo SP: de um lado, na variedade europeia, há a plena utilização da

preposição a, tal qual ocorre no espanhol, por exemplo (TORRES MORAIS, 2010;

COMPANY, 2006); de outro lado, na variedade brasileira, há o uso da preposição a variando

com o emprego da preposição para. Esse fenômeno tem sido analisado por muitos estudiosos;

boa parte deles afirma que tal variação aponta para um processo de mudança, ou seja, para a

substituição de a por para.

Gomes (2003), investigando dados de fala do Rio de Janeiro coletados nas amostras

Censo 1980 e Censo 2000, constata a expansão no uso da preposição para: nos dados de

1980, a frequência dessa preposição estava em torno de 50% contra aproximadamente 40% de

frequência da preposição a; já nos dados de 2000, os índices de para ultrapassam os 80%, ao

passo que os índices de a não atingem 20%. A autora conclui que “a implementação se dá em

todas as faixas etárias e também no efeito de fatores de natureza estrutural” (GOMES, 2003,

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p. 96). É apontado como fator favorecedor à propagação da preposição para o seu caráter

neutro frente à preposição a, vista como mais formal, e à variante sem a realização da

preposição, estigmatizada socialmente. Gomes identifica ainda uma direcionalidade no

emprego de para:

(...) a direcionalidade observada no uso de para, codificando relações semânticas

que vão num continuum do [+concreto] ao [+abstrato] (...) indica que o uso da preposição para se expande para contextos inicialmente preferenciais ou exclusivos

ao uso da preposição a. (GOMES, 2003, p. 96)

Torres Morais (2010), partindo de uma perspectiva formal, argumenta que as

diferenças no uso da preposição do OI observadas entre o PE e PB são de natureza categorial.

O OI dativo é uma classe estrutural distinta, identificada morfologicamente por um marcador

dativo: a preposição a. Os objetos dativos são obrigatoriamente introduzidos pelo morfema a

(a-DP8) e realizados, na forma pronominal, pelos clíticos lhe/lhes. A autora defende, ainda,

que

(...) no PE, o argumento dativo é um argumento extra, adicional, introduzido na

sintaxe pelo núcleo funcional denominado aplicativo, que o licencia sintática e

semanticamente. O núcleo aplicativo estabelece uma relação de posse entre dois

indivíduos: o DPdat e o DP-tema. Os diferentes significados que os argumentos

dativos expressam decorrem, pois, da posição estrutural em que são gerados.

(TORRES MORAIS, 2010, p. 174).

Dentro dessa linha de análise, o OI no PB seria uma função oblíqua no contexto dos

verbos transitivos. A gramática brasileira não mais selecionaria o núcleo funcional aplicativo,

responsável por licenciar argumentos dativos na sentença. As evidências dessa perda seriam: a

baixa produtividade dos clíticos e o aumento no uso da preposição para, em detrimento da

preposição a. Os exemplos abaixo9 ilustram a proposta de Torres Morais (2010),

diferenciando uma construção aplicativa de uma construção ditransitiva preposicionada:

(18) a. O João enviou uma carta à Maria DAT / enviou-lhe uma carta.

[vP O João [v’ v [VP enviou [ApplP à Maria/lhe [APPL’ Ø [DP uma carta]]]]]]

b. O João enviou uma carta para a Maria OBL.

[vP O João [v’ v [VP enviou [PP uma carta [P’ para [DP a Maria]]]]]]

8 DP, do inglês Determinant Phrase, que pode ser traduzido como sintagma determinante (SD). 9 Exemplos extraídos do texto da autora mencionada.

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Podemos dizer, a partir dos exemplos, que a distinção de sentido indicada por Torres

Morais (2010) – a saber, OI-OBL como beneficiário e OI-DAT como recipiente intencional

do OD – sobrevive apenas na variedade europeia. No PB, (18a) e (18b) seriam interpretadas

da mesma maneira, pois o a que aparece nas construções brasileiras não é o morfema

marcador de caso, mas sim uma preposição10

.

A terceira manifestação do dativo a ser comentada é o objeto indireto nulo (Ø),

também chamado em alguns trabalhos de categoria vazia (CV). Tal estratégia, diferentemente

das outras já discutidas, implica a não realização fonética do OI; este é identificado a partir da

grade dos verbos de dois e três argumentos que selecionam um OI (dar, enviar, servir,

obedecer etc). A diferença que se observa entre as variedades do português em relação a essa

estratégia diz respeito à frequência com que é utilizada: os estudos comparativos entre o PB e

o PE verificam que o objeto nulo é mais produtivo na variedade brasileira, embora também

ocorra na variedade lusitana.

Berlinck (2005) analisou na diacronia do PB a manifestação do OI nulo segundo a

pessoa gramatical:

Gráfico 2.1. Objeto indireto nulo segundo a pessoa gramatical

(adaptado de Berlinck, 2005, p. 139)

Como podemos visualizar no Gráfico 2.1, há um crescimento da frequência de uso

do objeto nulo de 1ª e 3ª pessoas, principalmente após o século XIX; em contrapartida,

verifica-se um uso diferenciado do OI nulo de 2ª pessoa, que registra índices altos nos

corpora setecentistas, especialmente nos textos mais antigos, enquanto que, nos últimos anos,

10

Não é nosso objetivo discutir nesta dissertação o estatuto das construções de OI no PB. Apresentamos o

trabalho de Gomes (2003) e Torres Morais (2010) a fim de registrar duas diferentes interpretações para o

processo de mudança da preposição introdutora dos SP dativos.

10% 5%

16% 20%

53%

89%

40%

18%

9%

25%

8%

21% 13% 16%

71%

0%

20%

40%

60%

80%

100%

1730 1790 1840 1890 1987

1ª pessoa

2ª pessoa

3ª pessoa

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apresenta taxas mais baixas. Segundo a autora, a explicação para essa diferença está no

gênero textual analisado:

A formalidade, que marca o tom da maior parte dos documentos, leva à preferência

pelas formas de tratamento indicadoras de respeito e que marquem, de modo

inequívoco, o status do destinatário e a postura humilde do remetente. Assim, o que

se vê nos dados são casos de sintagmas preposicionados que incluem expressões

como Vossa Excelência, Vossa Reverendíssima, Vossa Majestade.”

(BERLINCK, 2005, p. 129)

Diante dessa constatação, Berlinck (2005) conclui que “o objeto nulo, na sua

neutralidade camaleônica, adota o valor de seu antecedente; nesse caso, além dos traços de

pessoa e número, empresta e expressa um grau alto de formalidade” (p. 129). Confrontando

esse traço de neutralidade com os clíticos, Berlinck (2005, p. 130) demonstra que “os dados

parecem indicar que o clítico dativo não serve do mesmo modo a essa finalidade, podendo

marcar, por sua vez, um grau intermediário de formalidade/intimidade”.

É interessante perceber também que, nos resultados de diferentes estudos, o dativo

nulo, a depender da pessoa gramatical, é a estratégia mais frequente ou a segunda mais

frequente, concorrente direta da primeira. Assim como Berlinck, acreditamos que a ampla

utilização do OI nulo está relacionada ao seu caráter neutro; em nenhuma variedade do

português, a estratégia sofre estigma social. Além disso, o usuário da língua, ao empregar o

dativo nulo, elimina o problema do grau de formalidade/intimidade, principalmente em

relação à 2ª pessoa e sua gama de variantes (as quais analisaremos detalhadamente no capítulo

5 deste trabalho).

Pontuados os aspectos formais do objeto indireto relevantes à presente dissertação,

passemos, a seguir, aos aspectos de natureza semântica.

2.3.2. Traços Semânticos: animacidade e multiplicidade temática

Em relação aos traços semânticos do complemento dativo, dois pontos podem ser

destacados: a forte associação que existe entre essa categoria e o traço de animacidade, e a

problemática em torno dos papéis temáticos que o complemento pode desempenhar.

É praticamente unânime entre os estudiosos que a animacidade consiste em um dos

traços semânticos básicos caracterizadores da categoria dativa. Company (2006, p. 505)

relembra que “a humanidade já era um traço caracterizador do DAT na língua-mãe” e “(...)

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também é a propriedade referencial não marcada da maioria dos DAT em muitas línguas”. A

autora opta inclusive pelo rótulo “humanidade” no lugar de “animacidade”, pois, segundo ela,

A referência a humanos é tão central como traço do OI que geralmente se afirma que

“os complementos indiretos que se referem a coisas são extremamente

excepcionais” (Niueuwenhuijsen 1998:39). Inclusive quando se identificam OI

inanimados, algumas gramáticas supõem que se dá um processo metafórico de

personificação (...). (COMPANY, 2006, p. 504-505, nota 18)

Ao analisar os dados diacrônicos do espanhol, a autora conclui que o traço de

animacidade/humanidade é o eixo construtor do espaço estrutural do OI, contrastando-o com

o OD. Em oposição à animacidade do primeiro, o último ocorre de maneira mais frequente e

não marcada com traço [-animado]. Company afirma ainda que tal constatação deve-se ao

fato de que os dois objetos situam-se em zonas opostas da “hierarquia de animacidade”

(GIVÓN, 1995, p. 46, 92): o OI localiza-se prototipicamente no lugar mais alto dessa

hierarquia, ao passo que o OD encontra-se no lugar mais baixo, conforme ilustrado no

esquema a seguir:

HUMANO > OUTRO ANIMADO > FORÇA INANIMADA > INANIMADO

↓ ↓

OI OD Esquema 2.1. Hierarquia de animacidade

(adaptado de Givón, 1995 apud Company, 2006)

Além de distanciar o OI do OD, o caráter essencialmente humano daquele o

aproxima, segundo Company (2006, p. 508), ao nominativo/sujeito, tendo em vista que este

também é prototipicamente animado. Além disso, ambas as categorias – mais o nominativo

do que o dativo – apresentam traços de topicalidade e são entidades ativas com

volicionalidade e agentividade. O traço natural de [+animado/+humano] dos dativos seria

responsável ainda, na visão da autora, pela estreita relação que se observa com os pronomes

pessoais (em especial, os dêiticos):

(...) as 1ª e 2ª pessoas ocupam de maneira natural uma posição mais alta que a 3ª, são

mais importantes e se constituem mais frequentemente que esta em centro de

interesse e atenção discursiva. A seleção referencial de pessoa que o OI realiza está estreitamente associada a outros traços lexicais, individuação, determinação e

animacidade, constantes na configuração semântica da datividade. (COMPANY,

2006, p. 500)

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Embora a língua portuguesa careça de estudos que confirmem os resultados obtidos

por Company para o espanhol, não acreditamos que eles sejam uma particularidade deste

último, mas sim um aspecto universal, inerente à categoria dativa. Como evidências empíricas

da animacidade/humanidade atrelada aos OI, mencionamos: i) a definição/caracterização

básica e geral apresentada para o OI; ii) os exemplos recolhidos nos manuais.

Bechara (1978, p. 207), ao apresentar os “sentidos do objeto indireto”, afirma que

este pode expressar: a) a pessoa ou coisa que recebe a ação verbal; b) a pessoa ou coisa em

cujo proveito ou prejuízo se pratica a ação; c) a pessoa ou coisa que, vivamente interessada na

ação expressa pelo verbo, procura captar simpatia ou benevolência de outrem; d) a pessoa

possuidora; e) a pessoa a quem pertence uma opinião. Em síntese, nos cinco sentidos

expostos pelo gramático, a possibilidade de haver uma pessoa foi assinalada; nos casos em

que se pode ter pessoa ou coisa, aquela foi apontada como a primeira opção. A

exemplificação11

de Bechara confirma o que é pontuado na descrição mencionada:

(19) a. Escrever aos pais.

b. Trabalha para o bem geral da família.

c. Não me venham com essas histórias

d. Tomou o pulso ao doente.

e. Antônio pareceu-me tristonho.

Cada um dos exemplos anteriores corresponde a um dos sentidos comentados pelo

gramático. Mesmo no exemplo (19b), em que aparentemente não há animacidade – “o bem”,

núcleo do constituinte, pode ser considerado uma “força inanimada” dentro da hierarquia de

animacidade apresentada anteriormente –, podemos depreender um traço

[+animado/+humano] implícito; em uma relação metonímica, o “trabalhar para o bem geral

da família” pode ser interpretado como o próprio “trabalhar para a família”, ou ainda, “para as

pessoas da família”. Como se vê, a animacidade também é uma marca semântica sensível do

OI em português, confirmada ainda, por exemplo, pelo verbo “dar”, prototípico da categoria:

alguém-SUJ dá algo-OD a/para alguém-OI.

Duarte (2003) é de igual opinião no que diz a respeito à relação OI e animacidade.

Consoante o que já referimos na seção 2.2, a autora frisa que “o constituinte com a relação

gramatical de objecto indirecto é, tipicamente, um argumento [+anim]” (p.289). A mesma

11 Bechara, 1978, p. 207.

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restringe ainda a ocorrência de OI [-animado] a dois casos específicos: i) com predicadores de

dois lugares, como obedecer e sobreviver (obedecer ao regulamento, sobreviver ao

massacre); ii) com os verbos dar ou fazer acompanhado de um OD cujo núcleo seja um nome

deverbal, tais como nos exemplos abaixo12

:

(20) a. A Maria deu [uma pintura]OD [às estantes]OI.

b. Eles fizeram [uma enorme limpeza]OD [à casa]OI.

Sobre os exemplos, Duarte (2003) destaca também que essas construções aceitam

que o constituinte OI possa ocorrer como OBL:

(21) a. A Maria deu [uma pintura]OD [nas estantes]OBL.

b. Eles fizeram [uma enorme limpeza]OD [na casa]OBL.

Estendendo a análise da autora, podemos afirmar que esses casos de OI seriam

menos prototípicos, casos que Company (2006) considera como fronteiriços com os oblíquos.

Acreditamos que um dos fatores dessa aproximação aos OBL seja justamente o traço [-

animado] dos OI exemplificados em (20). Outra peculiaridade desses casos de OI é a

possibilidade de que eles apareçam, com certa facilidade, sobre a forma de OD. Em relação

aos verbos de dois lugares, não é raridade encontrarmos, por exemplo, “obedeça o

regulamento”, “agradou o pai”, em que há uma leitura evidente de um complemento direto.

Quanto às perífrases com os verbos dar e fazer – também conhecida na literatura linguística

como construções com verbos leves ou verbos suportes (DUARTE, 2003; MACHADO

VIEIRA, 2010) – é possível converter a estrutura em uma sentença do tipo SUJ – Vpleno – OD:

(21) a. A Maria deu [uma pintura]OD [às estantes]OI. → A Maria pintou [as estantes] OD.

b. Eles fizeram [uma enorme limpeza]OD [à casa]OI. → Eles limparam [a casa] OD.

Se a associação do dativo ao traço de animacidade/humanidade é algo de comum

acordo entre os estudiosos, o mesmo não acontece com relação aos papéis temáticos que tal

categoria desempenha na frase. As divergências decorrem dos múltiplos contextos em que o

OI pode aparecer e, consequentemente, dos diferentes sentidos que assume junto ao verbo que

o seleciona. De maneira geral, os linguistas listam entre dois a cinco papéis temáticos para o

12 Exemplos retirados de Duarte (2003), p. 289.

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dativo: receptor, alvo/meta ou fonte, possuidor, beneficiário e experienciador. Abordaremos,

a seguir, o posicionamento adotado por alguns autores que já abordaram a questão em seus

estudos.

No âmbito da tradição gramatical, Rocha Lima (1985) – ainda que não utilize a

nomenclatura técnica de papel temático – diz que o OI “representa a pessoa ou coisa a que se

destina a ação, ou em cujo proveito ou prejuízo ela se realiza” (ROCHA LIMA, op. cit., p.

219). Adaptando a caracterização do gramático para a terminologia linguística, o OI pode

assumir os papéis temáticos de alvo/receptor ou beneficiário.

Duarte (2003, p.289), ao tratar do objeto indireto, restringe tal constituinte a dois

papéis semânticos apenas: alvo ou fonte. Já Castilho (2010, p. 305) afirma que “o papel

temático do objeto indireto é, em geral, /beneficiário/”, não elencando os papéis de alvo e

fonte como possibilidades (o autor os menciona apenas para os oblíquos). Lucchesi & Mello

(2009, p.429-430) também consideram o papel temático de beneficiário como o principal do

dativo; contudo, os autores advertem: “(...) nem sempre o constituinte que se classifica como

OI expressa um papel temático de BENEFICIÁRIO”. Os autores analisam o fenômeno da

alternância dativa13

e observam a impossibilidade de haver alternância quando o OI expressa

um papel de meta, além da possibilidade relativa de ocorrer quando o constituinte OI expressa

relação de finalidade (não há especificação do papel temático para o último caso).

Torres Morais & Berlinck (2007) reconhecem que o argumento dativo se realiza no

português em uma ampla gama de contextos morfossintáticos e que disso decorrem as

múltiplas leituras que se pode fazer desse argumento. As autoras mencionam cinco

interpretações possíveis para o OI no português, a saber: recipiente, fonte, experienciador,

possuidor e afetado. Além disso, citam dez tipos de verbos aos quais os argumentos dativos

podem se relacionar: verbos transitivos de atividade direcional (enviar), verbos transitivos de

criação (fazer), verbos transitivos de atividade não direcional (lavar), verbos transitivos

estativos (admirar), verbos inacusativos psicológicos (agradar), verbos inacusativos de

mudança ou movimento (chegar), verbos inacusativos existenciais (faltar), verbos causativos

(abrir), verbos incoativos (abrir-se) e verbos inergativos (cair). Os exemplos a seguir são

apresentados pelas autoras. Entre parênteses, o papel temático recebido do verbo pelo OI:

13 “(...) tem sido denominado de alternância dativa, línguas [que], como o inglês, dispõem de duas construções

para realizar a estrutura de dativo, a construção de dativo preposicionado (CDP) (...) e a construção de objeto

duplo (COD) (...)” (LUCCHESI & MELLO, 2009, p. 430). Exemplos apresentados pelos autores: a) I gave the

rose to the beautiful girl. (CDP) ; b) I gave the beautiful girl the rose. (COD)

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(23) a. O José enviou uma carta à Maria / enviou-lhe uma carta. (recipiente)

b. O José roubou o relógio ao Pedro / roubou-lhe o relógio. (fonte)

c. O vinho do Porto agradou aos convidados / agradou-lhes. (experienciador)

d. O José admirou a paciência à Maria / admirou-lhe a paciência. (possuidor)

e. O José abriu a porta aos convidados / abriu-lhes a porta. (afetado)

Torres Morais & Berlinck (2007), entretanto, assinalam que as sentenças utilizadas

para ilustrar as interpretações do argumento dativo “referem-se aos usos cultos do PE escrito e

falado. No PB, a maioria delas está restrita à língua escrita mais formal, principalmente

quando se emprega na forma clítica” (p.70, nota 10).

Company (2006, p.520) atesta a existência de cinco papéis temáticos para o OI a

partir do corpus diacrônico do espanhol: receptor, experienciador, possuidor, meta/fonte e

beneficiário. Segundo a autora, a caracterização desses papéis tem a ver com o grau de

envolvimento da entidade OI no significado do verbo e no evento em geral. Sob uma

perspectiva funcionalista, Company afirma que esses cinco papéis semânticos constituem um

continuum de envolvimento ou de afetação:

(...) o receptor seria o OI mais envolvido, o beneficiário o menos envolvido, e dentro do continuum se estabeleceriam fronteiras internas nem sempre bem delimitáveis, já

que com certa frequência pode-se atribuir mais de um papel semântico a uma mesma

entidade OI em uma mesma oração por vez. (COMPANY, 2006, p.520)

A autora observa também que é possível cindir esse conjunto dos papéis temáticos do

OI em duas grandes classes, tendo por base o grau de envolvimento. Assim, receptor,

experienciador e possuidor formam a classe dos papéis temáticos de maior envolvimento com

a semântica do verbo; já os papéis de meta/fonte e beneficiário, compõem a classe de menor

envolvimento. A autora ressalta, contudo, que “todos os papéis semânticos do OI

compartilham e estão ligados pelo valor semântico geral de locus, ou meta final da

transitividade” (COMPANY, 2006, p. 520).

+integrado -integrado

RECEPTOR – EXPERIENCIADOR – POSSUIDOR – META/FONTE – BENEFICIÁRIO Esquema 2.2. O continuum dos papéis temáticos do OI

Dos estudiosos cotejados nessa seção, Company (2006) é a que fornece uma

descrição mais completa acerca dos sentidos assumidos pelo OI, não se restringindo apenas a

mencioná-los e exemplificá-los. Abaixo, apresentamos as definições dos cinco papéis

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temáticos analisados pela autora, os verbos que selecionam cada um deles e alguns exemplos

no português.

(24)

A. RECEPTOR

Entidade que se envolve em um processo de transferência e, normalmente, recebe ou se converte no

novo possuidor do OD, de maneira que o OD entra no domínio do OI. Requer consciência e certa

volicionalidade da entidade OI para tal recepção. A transferência pode ser física ou metafórica. Verbos que o

selecionam: dar, entregar, outorgar, comprar, vender, pagar, dizer, remover.

B. EXPERIENCIADOR

Entidade OI que, devido ao significado do verbo, sofre uma modificação, leve ou forte, de seu estado

anímico, mental ou sensorial. Aparece normalmente em situações estativas. Selecionado pelos verbos chamados

psicológicos (agradar, desagradar, satisfazer) e os de experiência existencial (acontecer, ficar, faltar, passar).

C. POSSUIDOR

A Entidade OI já é a possuidora do OD antes da transitividade do verbo se exercer; não existe,

portanto, transferência do OD, e nesse sentido não é um receptor, embora haja estreita afinidade semântica entre

ambos os papéis. A autora não lista exemplos de verbos que selecionam OI desse tipo.

D. META/FONTE

Entidade a que algo ou alguém chega ou toca, ou se origina se é fonte; pode haver deslocamento ou

transferência de uma entidade, porém o OI não exerce volicionalidade para se constituir em receptor, pode tê-la,

mas na oração somente se põe em relevo o caráter de destino desse OI. Verbos como chegar, enviar, mostrar,

sair, vir selecionam OI meta.

E. BENEFICIÁRIO

Entidade que recebe para seu proveito o significado na oração. Denomina-se “maleficiário” se, em vez

de benefício, o OI obtém dano ou resultado negativo. Entidade alheia, no limite da estrutura argumental, à

margem das relações gramaticais contraídas pelos outros constituintes da oração. Papel semântico fronteiriço a

constituintes de outras naturezas. Uma vasta gama lexical de verbos pode selecionar um OI beneficiário.

(25) A. Os alunos entregaram os trabalhos ao professor.

B. O discurso do réu não satisfez ao juiz.

C. As lembranças lhe cortavam o coração.

D. O rei enviou felicitações aos visitantes.

E. O sol nasce para todos.

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É destacado ainda por Company (2006) que o papel semântico de receptor não só é o

prototípico do OI como também é o mais frequente em todas as línguas. Além disso, os quatro

primeiros papéis temáticos estariam ligados diretamente ao significado do verbo, enquanto

que o beneficiário se liga ao significado geral do evento, e não do verbo em si. Por fim, a

autora conclui que os cinco papéis são semanticamente heterogêneos, podendo exibir diversos

matizes e compartilhar dois ou mais papéis temáticos. São listados como fatores que ajudam a

matizar o valor semântico do OI: a classe lexical do verbo que o seleciona, o tipo lexical do

OD e do sujeito, e a coocorrência de complementos circunstanciais. A possibilidade de o OI

exibir mais de um papel temático simultâneo também é assinalada, como se pode ver no

exemplo dado pela autora:

(26) Fernando comprou os bilhetes a Pedro[BENEFICIÁRIO / FONTE / POSSUIDOR]

Vimos, nessa seção, que do ponto de vista semântico, o complemento dativo é

prototipicamente [+animado], fator que o diferencia do complemento acusativo-OD e o

aproxima ao nominativo-SUJ. Além disso, o dativo pode desempenhar diversos papéis

temáticos, dada a variedade de contextos morfossintáticos em que figura. Esses papéis

diferentes podem, todavia, ser vistos como nuances semânticas de um significado mais geral:

locus ou meta final da transitividade, segundo Company (2006), ou ainda – retomando Van

Hoecke (1996) – o polo de orientação para o qual tendem as ações/processos expressos pela

predicação da sentença.

2.4. Tipologia dos Dativos em Português

As seções anteriores já demonstraram o quanto é heterogênea a categoria dos dativos,

seja em relação aos aspectos formais, seja na configuração semântica. Contudo, para que se

possa empreender uma análise linguística acerca desses elementos, é mister organizá-los

segundo alguns critérios. Nesta seção, expomos uma tipologia dos dativos em português que

será utilizada como parâmetro para o capítulo 5, em que os dados da pesquisa serão

analisados14

.

14 Em razão da existência de inúmeras listas de papéis temáticos para o dativo, conforme demonstramos na seção

anterior, optamos por controlar o valor semântico a partir da referida tipologia, a ser exposta nessa seção.

Evidentemente que essa tipologia não resolve, em definitivo, o problema da pluralidade semântica desses

constituintes; no entanto, julgamos que, para os objetivos desta pesquisa, o uso dessa tipologia seja mais precisa

e adequada.

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A tipologia que adotaremos foi proposta por Berlinck (1996), em um estudo clássico

da expressão dativa em língua portuguesa. A partir da utilização de critérios de identificação –

SP introduzido pelas preposições a/para (em casos raros, em e de), possibilidade de

substituição por lhe e impossibilidade de ser sujeito gramatical de uma sentença passiva – a

autora elabora uma tipologia para o dativo baseando-se nos contextos em que o mesmo

ocorre. Tal tipologia considera dois fatores principais: o tipo de verbo ou construção verbal

com o qual o complemento dativo pode coocorrer e o tipo de relação que ele mantém com o

verbo ou com a sentença.

Berlinck (1996) assinala ainda que essa tipologia foi proposta com base em uma

outra, apresentada para o espanhol por Delbecque & Lamiroy (1996, mesmo volume). A

autora justifica a adoção da mesma estrutura afirmando que “esta é mais compreensível, dada

a proximidade das duas línguas. Entretanto, existem diferenças importantes entre elas. O uso

de parâmetros similares para a tipologia permite uma percepção melhor desses pontos de

divergência.” (BERLINCK, 1996, p. 128). Dentro da tipologia elaborada, a referida autora

hierarquiza os constituintes dativos consoante o grau de previsibilidade desses pelo verbo ou

pela construção verbal. Dentro da hierarquia que se estabelece, encontram-se três níveis.

No nível 1 são reunidas as estruturas transitivas que envolvem verbos de

transferência material (dar), de transferência verbal e perceptual (dizer), de movimento físico

(levar), de movimento abstrato (submeter), de interesse (obedecer), de movimento (chegar) e

de movimento psicológico (agradar). Completam o nível 1 as construções de dativo

possessivo e as construções do tipo se lhe com predicado de três lugares. Nestas estruturas, o

dativo faz parte do complexo verbal, sendo, portanto, um argumento selecionado pelo verbo.

Ao nível 2, pertencem as estruturas de dativus commodi/incommodi e as construções

se lhe com verbos intransitivos. O que diferencia este nível do anterior é justamente a

previsibilidade do dativo, ou ainda o grau de vinculação à estrutura da sentença: enquanto no

nível 1 os dativos são verdadeiros complementos, previstos na grade argumental do verbo, os

dativos do nível 2 não são argumentos verbais, mas sim constituintes regidos por todo o

predicado verbal (verbo + argumentos).

No nível 3 encontra-se unicamente a construção de dativus ethicus, elemento de

natureza não argumental, de uso irrestrito, podendo coocorrer com outro complemento dativo

na mesma oração. Totalmente desvinculado do verbo e do predicado, esse dativo faz

referência à oração como um todo, dotado de valor pragmático.

Dos três níveis mencionados, destacamos os dativos pertencentes ao nível 1, que

serão nosso objeto de investigação nessa pesquisa. Optamos por restringir a análise a esse

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nível porque, como já foi dito, ele reúne os dativos que são verdadeiramente argumentos

selecionados pelo verbo. Cabe agora pormenorizar os subitens que compõem o nível 1 da

tipologia de Berlinck (1996).

O primeiro subitem do nível 1 corresponde aos verbos de transferência material.

Segundo Berlinck, esse grupo verbal expressa um conceito de transferência de algo material,

concreto, representado prototipicamente pelo verbo dar. Conforme a representação genérica

apresentada pela autora, ‘N0 faz com que N1 seja posse de N2’, em que N0 é o sujeito

gramatical do verbo transitivo, N1 é o acusativo (OD) de um verbo transitivo e N2 é o dativo.

São listados como verbos de transferência material: alugar, atribuir, confiar, dar, devolver,

distribuir, emprestar, entregar, fornecer, legar, mandar, oferecer, pagar, passar, restituir e

transferir.

Berlinck (1996) destaca ainda que, dentro da semântica de transferência material, é

possível haver o processo reverso ao descrito acima, isto é, N1, em vez de entrar no domínio

de possessão de N2, é retirado do mesmo. É o que ocorre com verbos como arrebatar,

arrancar, comprar, confiscar, cortar, emprestar, evitar, pedir, furtar, roubar, subtrair,

suprimir, tirar, tomar. Devido a isso, o dativo não é interpretado como recebedor, mas como

fonte da transferência expressa pelo predicador verbal. Sobre esses dativos, Berlinck comenta

que

Curiosamente, a maioria destes verbos ocorre com um complemento dativo

introduzido pela preposição de. Nestes casos, o a-dativo é possível (embora não seja

preferido), mas um complemento introduzido por para é impossível. Esta

impossibilidade reside no fato de que, tendo um valor beneficiário (em uma visão

ampla de ‘beneficiário’), o complemento dativo também é interpretado como

‘fonte’. ‘Fonte’ é tipicamente marcada pela preposição de em português, enquanto para implica uma leitura de ‘alvo’. (BERLINCK, 1996, p. 130).

Sendo assim, a autora sumariza as propriedades distribucionais de construção do

grupo de transferência material da seguinte maneira: [+/- animado]N0 + V + [(+)/-

animado]N1 + {a, para, de}[+/- animado]N2. Em geral, N1-OD não é expresso por uma oração

subordinada completiva; N2 é cliticizável por lhe e, em algumas circunstâncias, pode ser

correferencial com N0. Em (27), exemplificamos as estruturas de transferência material:

(27) a. Não entregaram as mercadorias [ao comprador]DAT.

b. Felipe pediu um chocolate [para o avô] DAT.

c. Pedro tirou os livros [das mãos de Joana] DAT.

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O segundo grupo do nível 1 reúne os verbos de transferência verbal e perceptual,

cujo verbo prototípico é o dizer. Diferentemente do grupo anterior, não ocorre a transferência

de uma entidade concreta, mas sim de algo abstrato; como efeito de um ato comunicativo, N0

faz N2 possuir determinado conhecimento, ideia ou percepção (N1). Nesse caso, o dativo será

sempre [+animado], visto que somente uma entidade animada se envolve em um processo de

transferência de conhecimento. Berlinck menciona como exemplos de verbos de transferência

verbal e perceptual: aconselhar, anunciar, assegurar, augurar, confessar, contar, dizer,

ensinar, escrever, falar, jurar, narrar, notificar, ordenar, perguntar, prometer, protestar,

provar, repetir, responder, sugerir e telefonar.

Como representação das propriedades distribucionais da construção, temos: [+/-

animado]N0 + V + [-animado]N1 + {a, para}[+animado]N2. O objeto direto (N1) é expresso

frequentemente como uma oração subordinada completiva; N2 pode ser pronominalizado por

lhe e ser correferencial com N0. Exemplos de estruturas com verbos de transferência verbal e

perceptual:

(28) a. Pedro disse [para seus colegas] DAT que o diretor estava doente.

b. Ela [me] DAT ensinou a técnica de leitura.

Berlinck (1996) destaca ainda as construções que veiculam a noção de movimento,

uma extensão semântica da ideia de transferência. A autora separa essas estruturas em dois

grupos. O primeiro deles corresponde aos verbos de movimento físico, nos quais há um

deslocamento físico prototipicamente dirigido para um alvo, uma meta. Quando o OI é

expresso por uma entidade [-animada], o alvo tem significado de locativo; quando, no

entanto, esse OI é [+animado], depreende-se uma leitura de beneficiário além da interpretação

de locativo. Construções com os verbos acrescentar, atirar, conduzir, dirigir, encaminhar,

instilar, lançar, levar, pôr e trazer são consideradas de movimento físico. Em termos

sintáticos e semânticos, Berlinck descreve a estrutura dessas sentenças como: [+/- animado]N0

+ V + [+/- animado]N1 + {a, para, em, de}[+/- animado]N2; N1 não pode ser expresso por

uma oração completiva (que) nem por uma oração infinitiva; N2 e N0 podem ser

correferenciais; os casos de N2 [-animado] não são facilmente cliticizáveis.

Além das estruturas com verbos de movimento físico, Berlinck apresenta também os

verbos de movimento abstrato, nos quais está implícito algum tipo de deslocamento. Não há,

porém, uma transferência em sentido lato, mas sim uma aproximação abstrata entre uma

entidade e um estado, um sentimento, uma ideia, ou outra entidade. Como resultado, verifica-

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se uma associação que, por vezes, implica o estabelecimento de uma hierarquia ou estado de

subordinação. Figuram nesse grupo os verbos acrescentar, adaptar, anexar, atribuir, conferir,

consagrar, dedicar, destinar, filiar, imputar, incorporar, juntar, pôr, sensibilizar, submeter,

subordinar e trazer. A sentença de movimento abstrato exibe as seguintes características: [+/-

animado]N0 + V + [+/- animado]N1 + {a, para, em} + [+/- animado]N2; N1 pode ser

correferencial com N0; N2 pode ser expresso por uma oração completiva ou por uma oração

infinitiva, além de ser cliticizável. Exemplificamos em (29) e (30) frases cujos verbos

expressam movimento físico e movimento abstrato, respectivamente:

(29) Ele [te] DAT trouxe um vestido novo para o casamento.

(30) Os trabalhos [lhe] DAT foram submetidos ontem.

Os verbos de interesse assim como os verbos de movimento e movimento

psicológico estruturam, de acordo com Berlinck (1996), construções intransitivas, que

descrevem o estado de associação entre os argumentos do verbo – sujeito e dativo. Não há

agente ou causa envolvidos nesses contextos. Com relação aos verbos de interesse, a referida

autora destaca dois aspectos. O primeiro deles diz respeito ao envolvimento do referente de

N1 no processo descrito: com alguns verbos, N1 é ativa e voluntariamente envolvido na

associação (ou na negação dessa associação); já com outros verbos, não há envolvimento

voluntário da entidade de N1, contudo ele participa de uma associação e/ou correspondência

estática com N2. São exemplos do primeiro caso os verbos acudir, aderir, assistir, faltar,

obedecer, renunciar, resistir e servir. No segundo caso, temos os verbos concernir,

corresponder, equivaler, pertencer e sobrar. Em (30), apresentamos exemplos dos verbos do

primeiro subgrupo; em (31), exemplos de construções com verbos do segundo subgrupo:

(32) a. Aos dezoito anos, todos os jovens começam a servir [ao Exército] DAT.

b. João sempre obedeceu [às regras do trânsito] DAT.

(33) a. O edifício pertence [a um milionário do petróleo] DAT.

b. O preço deste anel equivale [a dois anos do meu salário] DAT.

O segundo aspecto assinalado por Berlinck (1996) acerca das construções

intransitivas de interesse com complemento dativo é quanto à referencialidade de N2. Nos

dois subgrupos mencionados, N2 sempre tem uma interpretação referencial, mesmo se esta

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não é claramente expressa na sentença. Em outras palavras, a ausência de N2 explícito dá

margem a uma interpretação arbitrária, podendo referir-se tanto à primeira, segunda ou

terceira pessoa quanto a um “alguém genérico” ou a “todos”. Os exemplos (33) e (34)

comprovam essa constatação. As características deste grupo são: [+/- animado]N1 + V + {a,

para} + [+ animado]N2. Os exemplos de N1 [-animado] são, aparentemente, marginais; N2

sempre é cliticizável quando for [+animado].

(33) a. Quem é que se importa com o que [lhe]DAT aconteceu?

b. Quem é que se importa com o que aconteceu?

(34) a. O ‘Estado de São Paulo’ de domingo [me]DAT é muito útil.

b. O ‘Estado de São Paulo’ de domingo é muito útil.

Completam o quadro de construções com dativo pertencentes ao nível 1 da tipologia

formulada por Berlinck (1996) os verbos intransitivos de movimento e movimento

psicológico. Os verbos de movimento geralmente subcategorizam um complemento locativo

ou direcional. Quando esse complemento é de caráter [+animado], adquire, além da

interpretação locativa, um sentido de [+afetado]. Seu referente envolve-se, de certa maneira,

no processo descrito, ainda que esse envolvimento seja involuntário. Pertencem a este grupo

os verbos chegar, escapar, entrar, fugir, ir e vir. Esse tipo de construção apresenta as

seguintes propriedades sintático-semânticas: [+/- animado]N1 + V + a + [+animado]N2. N2 é

sempre cliticizável e preferencialmente expresso por um pronome clítico.

Na categoria das construções de movimento psicológico encontram-se alguns dos

chamados verbos psicológicos, tais como agradar, importar, interessar, repugnar e

satisfazer. Esses verbos selecionam um N2 [+animado] que representa o “portador” do

processo psicológico expresso pelo verbo. N1 representa a causa ou origem do processo. O

grupo apresenta como características: [+/- animado] N1 + V 3ª p. + a + [+animado]N2; N1

pode ser expresso por uma oração completiva (que) ou por uma oração infinitiva; N2 é sempre

cliticizável. Em (35) e (36) expomos, respectivamente, exemplos de construções intransitivas

de movimento e movimento psicológico:

(35) Alguns erros de ortografia [me]DAT escaparam.

(36) [A eles]DAT não importa como você utiliza o seu tempo de trabalho.

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Do nível 1 pertencente à tipologia para o dativo português de Berlinck, descartamos

os dativos possessivos e as construções se lhe. O descarte é justificado pelo fato de esses dois

grupos exibirem sempre a mesma configuração formal, isto é, se apresentam sempre sob a

forma de um clítico. Tendo em vista o foco principal desta dissertação, em que pretendemos

analisar a variação entre as formas de dativo de 2ª pessoa do singular, não caberia incluir

junto às demais categorias, essas duas últimas, que não variam formalmente.

O Quadro 2.1 reúne as sete categorias comentadas anteriormente:

Categoria verbo prototípico estrutura sintática geral

transferência material Dar N + V + N + {a, para, em}

N transferência verbal e

perceptual

Dizer

movimento físico Levar

‘movimento’ abstrato Submeter

Interesse Obedecer N + V + {a, para} N

Movimento Chegar

‘movimento’ psicológico Agradar Quadro 2.1. Categorias distintivas (extraído de Berlinck, 2005, p. 131)

É possível perceber que as categorias da tipologia de Berlinck (1996) ilustram com

clareza a definição de dativo sugerida por Van Hoecke (1996), segundo a qual esse argumento

seria o polo de orientação para o qual tendem as ações/processos expressos pela predicação da

sentença. Conforme comentamos brevemente nos parágrafos precedentes, o complemento

dativo é, de maneira genérica, o ponto onde se encerram ou para onde se dirigem as

transferências (materiais, verbais, perceptuais) e movimentos (físicos, abstratos, psicológicos)

construídos pela semântica do núcleo verbal. Mesmo no caso das construções de interesses,

nas quais o sentido de polo de orientação não é tão nítido, podemos notar que o processo de

envolvimento aponta sempre para o argumento dativo.

O esquema 2.3 a seguir é proposto a partir das categorias dativas da tipologia

apresentada por Berlinck (1996). Seu objetivo é demonstrar representacionalmente a gradação

semântica presente na classe dos argumentos dativos:

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Esquema 2.3. Gradação semântica das categorias distintivas do dativo

Na elipse nuclear das estruturas transitivas, estariam as construções de transferência

material, mencionadas por diversos autores como a estrutura básica e prototípica de

ocorrência do dativo; em um nível imediatamente seguinte, as construções de transferência

verbal e perceptual, também bastante frequentes; em seguida, em “camadas” mais afastadas

do “núcleo”, as construções de movimento físico e abstrato, que fecham as estruturas

transitivas. As construções intransitivas de interesse, movimento e movimento psicológico

estariam consideravelmente afastadas do núcleo da categoria dativa, fazendo fronteira com

outras categorias sintáticas.

Embora seja uma representação bem simplificada da complexidade semântica dos

dativos, o esquema proposto será utilizado para verificarmos se essa gradação influencia na

variação dos dativos de 2ª pessoa do singular. Dito de outro modo, verificaremos se o fato de

o dativo analisado pertencer a uma estrutura de transferência material ou de movimento

abstrato, por exemplo, (des)favorece a ocorrência de uma variante em relação às demais.

2.5. Síntese do capítulo

Sumarizando as questões centrais discutidas no presente capítulo sobre a categoria dos

dativos, podemos destacar: o significado básico de polo de orientação para o qual tendem as

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ações/processos expressos pela predicação da sentença que permeia os múltiplos sentidos,

construções e contextos nos quais podemos identificar esse complemento; a difícil distinção

formal entre OI e OBL, atestada pelas diferentes propostas discutidas, o que justifica uma

preocupação semântica e contextual na abordagem desses complementos; as marcas

características da representação do dativo no português brasileiro sob a forma de clítico,

sintagma preposicionado e objeto nulo, atestadas pelos estudos elencados; a animacidade

como um importante traço semântico dessa categoria; a diversidade de papéis temáticos que o

dativo pode assumir, que corroboram sua complexidade semântica; a possibilidade de

hierarquização dos complementos dativos através de uma tipologia pautada no verbo

predicador, como ilustra a proposta de Berlinck (1996), adotada nesta dissertação.

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3. OS PRONOMES DE 2ª PESSOA NO PORTUGUÊS BRASILEIRO

O presente capítulo, que dá continuidade à revisão bibliográfica, abordará o quadro

dos pronomes pessoais no PB, com foco central na representação da 2ª pessoa do singular. Na

primeira parte, apresentamos o quadro pronominal encontrado nos compêndios de gramática

tradicional, marcado pelo conservadorismo linguístico e pela defesa da uniformidade de

tratamento. Assinalamos, também, como os pronomes pessoais e a questão da uniformidade

de tratamento tem sido tratada nos manuais didáticos de língua portuguesa. No segundo

momento, revisitamos alguns estudos linguísticos sobre o sistema de pronomes,

principalmente aqueles que descrevem a variação entre as formas tu e você na variedade

brasileira. Tais estudos evidenciam a artificialidade de se apregoar a correlação entre formas

de tratamento no PB, ao mostrarem que a mescla entre as estratégias dos paradigmas

pronominais de 2P e 3P é fato de longa data. Encerramos o capítulo apresentando resultados

de pesquisas sincrônicas e diacrônicas que investigaram a variação da 2ª pessoa do singular

nas posições de complemento verbal.

3.1. A prescrição das gramáticas normativas: conservadorismo e preservação da

uniformidade de tratamento

A maioria dos gramáticos tradicionais, com raríssimas exceções, tende a apresentar o

seguinte quadro, ao tratar dos pronomes pessoais:

Pronomes

pessoais

retos

Pronomes pessoais oblíquos

não reflexivos

átonos Tônicos

Singular

1ª pessoa eu me mim, comigo

2ª pessoa tu te ti, contigo

3ª pessoa ele, ela o, a, lhe ele, ela

Plural

1ª pessoa nós nos nós, conosco

2ª pessoa vós vos vós, convosco

3ª pessoa eles, elas os, as, lhes eles, elas

Quadro 3.1. Pronomes pessoais do português segundo a perspectiva tradicional

(adaptado de Cunha & Cintra, 1985, p. 270)

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Destacamos do Quadro 3.1 dois aspectos importantes: primeiramente, ele apresenta

como única possibilidade para a representação da 2ª pessoa do singular no caso reto (função

de sujeito) o pronome tu; para as funções oblíquas, são aceitas apenas as formas relacionadas

ao paradigma de tu, o que nos leva a pensar que não haveria variação na referência a essa

pessoa do discurso. Essa forma de apresentação do sistema de pronomes pessoais pelas

gramáticas é notadamente marcada por uma rígida simetria, pressupondo haver sempre uma

correlação entre as formas de determinado pronome, independentemente da função sintática

que ele venha a exercer.

Ao revisarmos, entretanto, a descrição apresentada por cinco gramáticas da língua

portuguesa diferentes, verificamos que não um há consenso entre os próprios gramáticos

quanto ao elenco de formas que compõem o quadro de pronomes pessoais, especialmente no

que tange à 2ª pessoa do singular. Observamos uma oscilação por parte dos autores em

considerar o você como pronome pessoal.

Almeida (1980) segue a orientação tradicional, apresentando como formas de 2ª

pessoa do singular – em posição de sujeito e de complementos verbais – os pronomes tu, te, ti

e “tigo”. O gramático arrola a forma você aos pronomes de tratamento, classe na qual inclui,

além das formas já tradicionais (Vossa Excelência, Vossa Senhoria, Sua Majestade), outras

pouco frequentes, como fulano, beltrano, sicrano e mesmo a forma a gente. No manual deste

autor, encontramos ainda uma definição utilizada como justificativa para a separação entre tu

e você no quadro de pronomes, tradicionalmente denominada de uniformidade de

tratamento. Segundo Almeida (1980, p.174-175),

É de regra, num discurso, em cartas ou em escritos de qualquer natureza, a

uniformidade de tratamento, isto é, do pronome escolhido para a pessoa a que nos

dirigimos. Se tratamos o interlocutor por vós, os pronomes oblíquos devem ser os que correspondem a essa pessoa, e o mesmo se deve dizer dos pronomes

possessivos. Se o tratarmos por tu, usaremos os oblíquos te, ti, contigo e os

possessivos teu, tua, teus, tuas (jamais seu, sua). Se o tratarmos por vossa senhoria,

senhor, você, diremos o, lhe, seu, sua etc.

Como podemos notar, o autor traça um paralelo de uniformidade de uso dos

pronomes a partir do vós, do tu e das formas de tratamento. O autor não menciona em nenhum

momento a possibilidade de combinação entre o você com formas do paradigma de tu, como o

clítico te ou o pronome possessivo teu. Um fato interessante é que Almeida (1980) destaca,

dentre diferentes gêneros textuais, a carta, gênero que consiste no corpus de análise desta

dissertação.

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Silveira Bueno (1968) também considera apenas o pronome tu e seu respectivo

paradigma representante da 2ª pessoa do singular. O autor coloca o você no rol dos pronomes

de tratamento, definindo da seguinte maneira essa subclasse: “Na língua portuguesa e,

mormente, no Brasil, a segunda pessoa é sempre substituída pela terceira que se vê, assim,

empregada duplamente. Quando a terceira se encontra em lugar da segunda, é sempre uma

expressão de tratamento: o sr., a sra., você, etc.” (SILVEIRA BUENO, 1968, p.137). O

referido gramático limita-se a frisar que os pronomes de tratamento pertencem à 3ª pessoa e

isso justifica a concordância em 3ª pessoa com o verbo. Não é feito nenhum comentário

explícito acerca da uniformidade de tratamento.

Já Sacconi (1989) aproxima-se à orientação encontrada em Almeida (1980),

prescrevendo que

Quando escrevemos, principalmente, devemos observar a chamada uniformidade de

tratamento. Significa que, escolhida uma das pessoas, não podemos mudar para

outra. Se, por exemplo, começamos a tratar o nosso correspondente de você (3ª

pessoa), devemos tratá-lo nessa pessoa em todo o escrito, e não passarmos para a 2ª,

depois voltarmos para a 3ª, etc. (SACCONI, 1989, p. 130)

O gramático oferece, ainda, exemplos de uniformidade de tratamento frente a outros,

produzidos por “uma pessoa que não observa a uniformidade de tratamento” (p. 130),

reproduzidos abaixo:

(37) Você não imagina quanto eu a amo, Luísa.

(38) Quero abraçar-te pessoalmente, Manuel, e dizer-te que estou disposto a resolver todos os

teus problemas.

(39) Você não imagina quanto eu te amo, Luísa.

(40) Tu não imaginas quanto eu a amo, Luísa.

(41) Quero abraçar-te pessoalmente, Manuel, e dizer-lhe que estou disposto a resolver todos

os seus problemas.

Rocha Lima (1985) formaliza a questão dos pronomes pessoais no capítulo 9 de sua

gramática apenas considerando a forma tu como representante da 2ª pessoa do singular.

Capítulos seguintes, ao tratar do “emprego do pronome” (capítulo 22), o autor afirma que “o

pronome você pertence realmente à 2ª pessoa, isto é, àquela com quem se fala, posto que o

verbo com ele concorde na forma da 3ª pessoa.” (ROCHA LIMA, 1985, p.282). Ainda assim,

o gramático não inclui a forma você entre as “formas retas ou subjetivas”. É curiosa,

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entretanto, a inserção da forma você e até mesmo do sintagma a você entre as formas oblíquas

(objetivas diretas e objetivas indiretas), pondo estas ao lado de outras formas como os clíticos

te, lhe e o/a. Tal organização só foi encontrada, dentre os compêndios analisados, na obra do

referido autor. Quanto à uniformidade de tratamento, todavia, o gramático não escreve uma

linha sequer sobre a questão.

Kury (1972) mostrou-se como o autor mais incoerente, dentre os consultados, na

descrição dos pronomes de 2ª pessoa do singular. Ele apresenta, no capítulo “Os pronomes”, a

forma você como pronome pessoal: “(...) em ‘Tu não me sais da lembrança.’, ‘Você pode

alcançar a liberdade.’, ‘O senhor vai desculpar.’, tu, você, o senhor representam diretamente a

pessoa a quem se fala, a 2ª pessoa gramatical (...).” (KURY, 1972, p.132). Na mesma página,

contudo, o autor separa tu e você, incluindo-o na “2ª pessoa indireta”, ao lado de o senhor e a

senhora: “São de 2ª pessoa indireta os pronomes que, embora se refiram à pessoa com quem

se fala, levam o verbo para a 3ª pessoa: você, o senhor, Vossa Senhoria, etc. Veja adiante,

‘Pronomes de tratamento’” (p.132). A mesma divisão – 2ª pessoa direta e indireta – é

observada para as formas oblíquas. Dentre as formas oblíquas de 2ª pessoa indireta, o

gramático lista as formas a você e com você.

A incongruência na descrição continua: depois de apresentar o você como pronome

pessoal, 2ª pessoa indireta, o autor classifica-o, em outra seção do mesmo capítulo, como

pronome de tratamento: “Você, o senhor, Vossa Majestade são PRONOMES DE

TRATAMENTO da 2ª pessoa que levam o verbo para a 3ª.” (p.134). Essa contradição na

classificação de um mesmo item gramatical parece-nos fruto de uma “insegurança descritiva”,

na qual, implicitamente, o autor reconhece a legitimidade do você como pronome pessoal; em

contrapartida, o gramático vê-se “obrigado” a seguir a classificação retrógrada em nome de

uma tradição gramatical, tradição essa em que seu compêndio se inscreve.

Sobre a questão da uniformidade de tratamento, Kury (1972) tece a seguinte

observação:

A língua falada muitas vezes não tem ainda fixada uma preferência decidida entre os

dois pronomes de tratamento íntimo (tu, você). Daí decorrem discordâncias e, na

linguagem afetiva, mistura de tratamento, que devem ser evitadas na língua escrita,

levando-se na devida conta o fato da existência de 2ª pessoa direta e 2ª pessoa

indireta (KURY, 1972, p. 136).

O autor, antes de expor seus exemplos, lembra ainda de que, em uma carta ou

diálogo, o indivíduo precisa decidir a forma de tratamento a ser empregada (tu ou você), já

que, a partir disso, “há todo um cortejo de concordância que se deve respeitar, além da forma

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verbal” (p.136). Os exemplos que seguem ilustram a correção defendida pelo gramático. Cabe

destacar, entretanto, que o próprio autor é “traído” pela mistura de tratamento no exemplo

(43c), ao utilizar o clítico acusativo -lo associado ao verbo servir, que pede um complemento

dativo:

(42) a. Espero-te em casa domingo.

b. Peço-te um favor.

c. Terei prazer em servir-te.

d. Procuram-te.

(43) a. Espero-o em casa domingo.

b. Eu a vi ontem. Não a vejo há muito.

c. Terei prazer em servi-lo.

d. Procuram-no lá em baixo.

(44) a. Peço-lhe um favor.

b. Agrada-lhe esta música?

c. Fico-lhe muito grato. Ou: (Fico muito grato ao senhor, a V.Sª.).

Diante desse sumário panorama, podemos dizer que tanto a representação da 2PSG

quanto a questão da uniformidade de tratamento são casos mal resolvidos no âmbito da

tradição gramatical. Os problemas refletem-se na abordagem dos pronomes-complemento,

relegados, na maioria dos casos, a um segundo plano na descrição dos itens pronominais.

Observamos certa dose obsessiva em correlacionar os itens pronominais quanto à forma, sem

que haja preocupação com o sentido veiculado por eles. A insistência nessa correlação entre

as formas de 2ª pessoa nas posições de sujeito e complementos não se sustenta nem mesmo no

âmbito da norma culta, como veremos mais adiante.

3.1.1. Os manuais didáticos e o ensino dos pronomes

A problemática detectada na tradição gramatical reflete-se no ensino de língua

portuguesa no Brasil: ao analisar 14 livros didáticos de português aprovados pelo MEC

utilizados no ensino fundamental e médio a fim de verificar como os pronomes pessoais têm

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sido apresentados aos estudantes, Lopes (2012) constata que o paradigma tradicional de

pronomes pessoais é reproduzido na maioria dos manuais didáticos. As novas formas

pronominais, como você/vocês, encontram-se restritas a adendos feitos em notas e seções

separadas, quase sempre atreladas à linguagem coloquial e informal.

Tal maneira de abordar o tema não reflete a realidade linguística brasileira atual, haja

vista que as “novas formas pronominais” já são consagradas pelo uso, sendo utilizadas

independentemente do contexto situacional ou grau de formalidade, conforme explanaremos

nas próximas seções do presente capítulo. O breve levantamento feito de Lopes (2012) mostra

uma postura extremamente conservadora por parte dos manuais adotados nas escolas

brasileiras do país. Nas palavras de Lopes (2012, p.116),

A produção bibliográfica sobre o tema reúne quase uma centena de trabalhos sob

diferentes perspectivas, mas muito pouco foi aproveitado em termos descritivos nas

gramáticas tradicionais e nos livros didáticos utilizados no ensino de língua

portuguesa no Brasil.

Na síntese de sua análise, Lopes relata que

Nesse breve levantamento, nota-se que a maioria dos livros didáticos (12 dos 14

analisados) apresenta o quadro tradicional de pronomes pessoais, deixando de fora o

pronome vocês que já substituiu o arcaico vós de maneira inequívoca e excluindo as

formas variantes consagradas pelo uso (você e a gente). Seguindo o mesmo modelo

das gramáticas mais conservadoras, os manuais mencionam os pronomes você-vocês

e, eventualmente, a gente nos comentários ou observações adicionais, relacionando-

os sempre ao uso coloquial, registro informal ou uso não-padrão (...). (LOPES,

2012, p. 120)

Quanto à uniformidade de tratamento, a autora observa que os autores dos livros

didáticos referem-se ao uso uniforme como uma realidade do “padrão formal culto” ou da

“variedade culta da língua”, desconsiderando o fato de que os pronomes tu e você são

utilizados principalmente no trato pessoal – íntimo ou neutro – em situações de diálogo

específicas, seja na modalidade oral, seja na modalidade escrita da língua. Por isso mesmo,

não é pertinente lançar mão dos binômios “formal x informal”, “culto x coloquial” para tratar

dessa questão. Ainda sobre a uniformidade, Lopes lembra de que

A correlação entre as formas dos dois paradigmas (de tu e de você) está consolidada

no quadro pronominal e ocorre de maneira bastante generalizada em todas as

situações e níveis sociais. A condenação da “mistura de tratamento” presente nos

manuais didáticos é improcedente por desconsiderar um pressuposto elementar dos

pronomes pessoais (ou de tratamento): seu caráter eminentemente interlocutivo. O

seu uso está condicionado a situações dialógicas e, obviamente, os pronomes você e

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tu não aparecerão em qualquer contexto situacional ou mesmo em qualquer texto

escrito. (LOPES, 2012, p.123-124)

Nas conclusões do referido estudo, a pesquisadora também ressalta a incoerência

interna que se cria nos manuais de português com a transposição de um quadro pronominal

obsoleto das gramáticas normativas: em um primeiro momento, os estudantes são

apresentados a um sistema de pronomes arcaizante, composto por formas pouco usuais; em

seguida, nas demais seções, figuram os pronomes pessoais efetivamente utilizados pelos

mesmos. Na opinião de Lopes, nem mesmo o argumento de que os alunos precisam estudar a

norma culta se sustenta:

No caso da temática abordada, não se pode defender, como se costuma fazer, que o

alunado precisa conhecer a “norma padrão ou culta” por duas razões bem simples:

pronomes pessoais são empregados nas situações de diálogo, são formas

interlocutivas e mesmo os falantes mais cultos utilizam as novas formas e não mais

as antigas. (LOPES, 2012, p.133)

Fica evidente, portanto, que, ainda impera no ensino de pronomes pessoais a

artificialidade da uniformidade de tratamento, forjada pela tradição gramatical brasileira, que

inclui na sua descrição aspectos morfossintáticos característicos do português europeu, mas

que não correspondem à realidade linguística brasileira. Quanto a isso, encontramos inúmeros

estudos linguísticos, que expõem diferentes argumentos para demonstrar, de um lado, o status

de pronome pessoal adquirido pelo você no PB; de outro lado, a invalidade de se defender a

existência da uniformidade de tratamento, seja na língua falada ou escrita. Passemos, então, a

esses estudos na seção que segue.

3.2. A descrição dos estudos linguísticos: variação e ausência da uniformidade de

tratamento

3.2.1. Representação pronominal de 2ª pessoa: correlação entre formas de tratamento?

No que diz respeito à representação da 2ª pessoa do singular, numerosos são os

trabalhos que discutem a inserção de novas formas pronominais no português brasileiro,

sobretudo a implementação do você (cf. LOPES, 2008, 2009; RUMEU, 2008, 2013;

MACHADO, 2006, 2011, entre outros). Lopes & Duarte (2003), ao discutirem a

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pronominalização de expressões nominais em peças brasileiras e portuguesas dos séculos

XVIII e XIX, apontam que

Em relação à forma você, originada do pronome de tratamento Vossa Mercê, o que

se ressalta atualmente como diferença relevante é o seu emprego na interlocução.

Em português europeu você está em distribuição com o(a) senhor(a) e tu, segundo o

grau de intimidade estabelecido entre os interlocutores, o que revela que você ainda

guarda traços de forma de tratamento. No português do Brasil, ao contrário, você já

está perfeitamente integrado ao sistema de pronomes pessoais, substituindo tu em

grande parte do território nacional ou convivendo com tu sem que o verbo traga a marca distintiva da chamada “segunda pessoa direta”. (DUARTE & LOPES, 2003,

p. 61)

Nessa mesma linha, Rumeu (2008), ao analisar a produção epistolar pessoal de uma

família da virada do século XIX para o século XX, constata que o pronome Você era

empregado para destinatários específicos e seu aparecimento como forma plena relacionava-

se, na maioria dos casos, à marcação de ênfase, contraste ou individualização. Contudo, a

autora ressalva que

(...) foi possível perceber que timidamente o pronome Você ocupa os espaços

funcionais de Tu, como formas variantes, principalmente nas cartas femininas. O

processo de pronominalização de Você parece evidenciá-lo, em fins do século XIX e

na primeira metade do século XX, como um legítimo pronome de referência

determinada à segunda pessoa do discurso (...). (RUMEU, 2008, p. 251)

Lopes (2008), ao analisar amostras de sincronias diferentes (cartas de leitores de

jornais do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, para a o século XIX, e peças teatrais

cariocas para o século XX), estende a discussão acerca da competição entre formas de

referência à 2ª pessoa do singular:

A mistura de tratamento já aparece prematuramente no século XIX com baixos

índices percentuais e se configura como um prenúncio da inserção de você no

sistema pronominal. O duelo entre você e tu não se dará de forma definitiva, pois a

forma inovadora e gramaticalizada não se implantará em todas as categorias

gramaticais da mesma maneira. Esse prenúncio já está anunciado nas primeiras

fotografias do século XX, mas os contextos de resistência formal da segunda pessoa

perduram até o século XXI. (LOPES, 2008, p.69)

A autora destaca, ainda, que a competição entre você e tu como sujeito persiste até os

dias atuais, sendo condicionada por fatores de ordem social, regional, etária etc. A partir desse

cenário, Lopes aponta para a possibilidade de se traçar um paralelo entre a variação da 2ª

pessoa que ocorre no português brasileiro com o voseamento hispano-americano:

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Da mesma maneira que há diferentes sistemas de voseamento na América hispânica,

teríamos no Brasil a coexistência de vários sistemas de tratamento. Se na Argentina,

como aponta Fontanella (1977), a coexistência de dois subsistemas vos e tú nos

séculos XVI e XVII gerou à fusão de ambos, resultando no surgimento de uma

paradigma supletivo para o voseo, por que não podemos considerar a criação de um

paradigma misto que estaria se constituindo ou se cristalizando no Brasil? (LOPES,

2008, p.69)

A questão da coexistência de diferentes sistemas de tratamento no PB é retomada em

Lopes & Cavalcante (2011): partindo da proposta de Scherre et al (2009), as autoras advogam

a existência de, ao menos, três subsistemas de tratamento na posição de sujeito: o primeiro,

em que vigora o uso exclusivo ou majoritário do você; o segundo, no qual o pronome tu

prevalece concordando ou não com o verbo; e o terceiro, em que coexistem ambas as formas,

tu e você, cujo uso é condicionado por diferentes variáveis. Reproduzimos, a seguir, o quadro

apresentado pelas autoras:

Quadro 3.2. Distribuição dos 3 subsistemas dos pronomes pessoais de 2ª pessoa pelas regiões

brasileiras (LOPES & CAVALCANTE, 2011, p.39)

Lopes e Cavalcante, op. cit., destacam a importância da identificação desses

subsistemas de tratamento ao interlocutor no PB atual já que, dentre outras coisas, ela auxilia

no entendimento de como se configurou a implementação do você em outros contextos

sintáticos, como, por exemplo, nas posições de complemento verbal15

.

Como podemos perceber, os trabalhos mencionados atestam uma renovação do

quadro de pronomes pessoais do português brasileiro, principalmente no que diz respeito à 2ª

pessoa do singular.

Lucchesi & Mendes (2009), ao discutirem a flexão de caso dos pronomes pessoais

em português e em línguas crioulas de base lexical portuguesa da África, afirmam que

Considerando-se apenas os falantes urbanos com alto grau de escolaridade do

português brasileiro (doravante PB), os falantes da chamada norma urbana culta, já é

possível observar uma instabilidade no que concerne à flexão de caso dos pronomes

pessoais. Desse modo, a norma culta brasileira revela uma realidade bem diferente

15

Neste mesmo trabalho, Lopes e Cavalcante (2011) investigaram diacronicamente a representação da 2PSG nas

posições de acusativo, dativo e oblíquo. Mais adiante, aludiremos aos resultados obtidos pelas autoras para esses

contextos.

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da contida no que se pode chamar de norma padrão. (LUCCHESI & MENDES,

2009, p.472)

O fato aludido pelos autores pode ser facilmente percebido se confrontarmos o

quadro pronominal da norma padrão (discutido na seção anterior) com o quadro da norma

culta brasileira, como vemos em 3.3 e 3.4, respectivamente:

PESSOA DO

DISCURSO

CASO

Reto Oblíquo átono Oblíquo tônico Contrações

1ª pessoa do singular Eu Me Mim comigo

2ª pessoa do singular Tu Te Ti contigo

3ª pessoa do singular ele/ela a/o, lhe, se ele/ela, si consigo

1ª pessoa do plural Nós Nos Nós conosco

2ª pessoa do plural Vós Vos Vós convosco

3ª pessoa do plural eles/elas os/as, lhes, se eles/elas, si consigo

Quadro 3.3. Flexão de caso dos pronomes na norma padrão do português

(LUCCHESI & MENDES, 2009, p. 473)

PESSOA DO

DISCURSO

FUNÇÃO SINTÁTICA

sujeito OD / OI complemento

oblíquo/adjunto adverbial

1ª pessoa do singular Eu me mim, comigo

2ª pessoa do singular você você ~ te ~ lhe / se você, contigo

3ª pessoa do singular ele/ela ele/ela ~ o/a ~ lhe / se ele/ela

1ª pessoa do plural a gente ~ nós a gente ~ nos a gente ~ nós, conosco

2ª pessoa do plural vocês vocês ~ lhes / se vocês

3ª pessoa do plural eles/elas eles/elas ~ os/as, lhes / se eles/elas, si

Quadro 3.4. flexão de caso dos pronomes pessoais na norma culta brasileira

(LUCCHESI & MENDES, 2009, p.475)

Sem grandes esforços, percebemos que o primeiro quadro é acentuadamente artificial

ao apresentar formas indiscutivelmente extintas, como é o caso das formas pertencentes ao

paradigma do vós. Além disso, a perspectiva tradicional negligencia a possibilidade de

ocorrência de formas tônicas em posição de complemento verbal, mesmo nos casos em que

isso não gera estigma social (o uso de você e a gente em posição de objeto e do pronome ele

acompanhado de preposição, p. ex. “Comprei o livro para você/para gente/para ele”).

Notamos, dentre outras coisas, que o quadro tradicional dos pronomes busca preservar a

correlação formal entre as formas retas e oblíquas, correlação que não se verifica nem mesmo

na norma culta.

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Nesse sentido, o segundo quadro evidencia com clareza o “sincretismo” entre formas

antigas e novas. Vale destacar a adoção irrestrita de você(s) em posição de sujeito e o

crescente uso de a gente ao lado de nós (cf. LOPES, 1993, 1999; VIANNA, 2006, 2011). É

interessante observar ainda que, no seio da norma culta brasileira, a possibilidade de

combinação do você com as formas relacionadas ao paradigma de tu é aceita e registrada no

quadro dos autores referidos.

Evidentemente, a possibilidade dessa combinação surge com o aumento progressivo

do você na posição de sujeito em competição com o pronome tu. Pesquisas anteriores (cf.

DUARTE, 1995; MACHADO, 2011; SOUZA, 2012) afirmam que a partir dos anos 1920-

1930 o primeiro suplanta o emprego do segundo. Entretanto, outros estudos baseados em

documentação diacrônica revelam que a “uniformidade de tratamento” não constitui uma

realidade linguística do português desde longa data. Marcotulio (2010, p.118), ao analisar as

cartas escritas pelo 2º Marquês do Lavradio, vice-rei do Brasil entre 1769 e 1776, encontra

dados do você ao lado de formas do paradigma de tu, conforme reproduzimos em 45 e 46:

(45) “(...) Agora parece me, que basta Senhor Antonio ese-Voce quer mais Conversa, ouvenha

para cá, ou espere, que eu possa estar na sua Companhia. Novamente repito os meus

agradecimentos, por todoz osbeneficioz, que tens feito, aos que tetem prezentado Carta

minha.” (Carta do Marquês do Lavradio destinada a Dom Antonio de Noronha, governador

de Minas Gerais, em 12/05/1776)

(46) “Eu continuõ anaõ té poder escrever mais largamente; pórem como tu medeves resposta

dehuã grande Carta que te escrevi, quando Satisfizeres esta divida: eu mefarei novamente

devedor. Fique voce embora com osseõ Sigarro emquanto eu cá vou uzando da minha agoá

friá.” (Carta do Marquês do Lavradio destinada a Dom Antonio de Noronha, governador de

Minas Gerais, em 26/11/1775)

Além dos exemplos mencionados de Marcotulio (2010), cabe apontar outros

trabalhos da perspectiva diacrônica que evidenciam a artificialidade da prescrição da

uniformidade de tratamento. Em sua tese, Machado (2011) analisou as formas de tratamento

ao interlocutor nas variedades europeia e brasileira do português a partir de 29 peças teatrais

escritas ao longo dos séculos XIX e XX. A autora constatou que o uso de você sofreu uma

elevação de frequência nos dados do português brasileiro na virada do século XIX para o XX,

ficando o uso de tu restrito aos pronomes oblíquos e possessivos.

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A Tabela 3.1, extraída de Machado (2011), ilustra os índices de pronomes-

complemento de segunda pessoa do singular:

Tabela 3.1. A distribuição das formas pronominais em função de complemento verbal

(MACHADO, 2011, p. 152)

Como verificamos na segunda coluna, a forma clítica te, pertencente ao paradigma

de tu, registrou altos índices ao longo da diacronia analisada no estudo (1870 a 2003). Ao

comentar os resultados, Machado (2011) assinala que “salta aos olhos (...) que, mesmo os

índices da forma tu exercendo função de sujeito apresentando um drástico declínio a partir da

obra de 1918 (...) observa-se a conservação de um uso expressivo do pronome oblíquo te”

(MACHADO, 2011, p. 152). A autora destaca ainda que, à exceção de 1937, os índices de

usos concretos vão de encontro às orientações normativas das gramáticas.

Brito (2001), em seu estudo, investigou o “uso não uniforme” do pronome de 2ª

pessoa em função de objeto, isto é, a combinação de você com formas do paradigma de tu, em

especial, a associação do clítico te à forma você na posição de sujeito. A autora também

adotou como corpora de análise peças teatrais, além de cartas pessoais, produzidas nos

séculos XIX e XX. Brito (2001) verificou que o uso não uniforme do pronome objeto de 2ª

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pessoa é condicionado por variáveis distintas a cada período.16

O Gráfico 3.1 apresenta seus

resultados a partir da amostra de teatro e de cartas em diferentes períodos de tempo:

Gráfico 3.1 Porcentagens do uso não uniforme dos pronomes

objetos de 2P nos dois corpora (BRITO, 2001, p. 101)

É notável a ascensão do “uso não uniforme” no quarto período, no qual os valores

percentuais são praticamente os mesmos nos dois corpora. Há de se observar, entretanto, que

já no 2º período assinalado, encontramos um índice próximo a 20% de ausência de

uniformidade nos dados das cartas pessoais. A falta de uniformidade pode, de fato, ser

associada à inserção de você, já que essa foi a forma mais favorecedora ao uso não uniforme

dentre as demais estratégias de tratamento analisadas no referido trabalho.

Brito (2001) aponta como um fator motivador para o uso do te com você-sujeito a

perda da informação gramatical de pessoa. Os clíticos o/a (objeto direto) e lhe (objeto

indireto), que deveriam ser empregadas, segundo as gramáticas normativas, com o você na

posição de sujeito, podem gerar ambiguidade semântica, haja vista que também fazem

referência às formas nominais e aos pronomes de terceira pessoa (ele/ela). No entendimento

de Brito (2001), a ambivalência de o/a e lhe desfavorece-os como estratégia de segunda

pessoa. Tal desfavorecimento evidencia-se pela utilização expressiva do clítico te, forma

genuinamente de segunda pessoa do singular.

16 A autora dividiu a amostra em quatro blocos: 1ª metade do século XIX, 2ª metade do século XIX, 1ª metade

do século XX e 2ª metade do século XX.

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3.2.2. Formas pronominais de tratamento nas posições de objeto: mescla de paradigmas

Atendo-nos, agora, estritamente à variação nas posições de complemento, e

reiterando o que já foi apresentado até aqui, é indubitável dizer que a coocorrência dos

pronomes inovadores – na posição de sujeito – com formas dos antigos pronomes – em

posição de complemento verbal – é algo recorrente no atual sistema pronominal do PB. O

aparecimento de novas estratégias de representação da 2ª pessoa do singular não anulou a

utilização das estratégias vinculadas ao paradigma de tu, em específico, o uso do clítico te.

A partir do sincretismo entre as formas pronominais de 2P na posição de

complemento, podemos deduzir que o sistema passou a contar com, pelo menos, três

estratégias de realização tanto do acusativo-OD quanto do dativo-OI:

1) o pronome átono te, vinculado ao paradigma de tu, idêntico para os dois

complementos;

2) as formas átonas de 3ª pessoa do singular o/a e lhe, seguindo a orientação gramatical,

que interpreta o você como uma forma de tratamento e se baseia na flexão do verbo

que o acompanha;

3) a realização da própria forma você, que no dativo vem acompanhada pela preposição

marcadora de caso a/para.

Essa gama de estratégias amplia ao considerarmos o objeto nulo, isto é, a categoria

vazia, que pode ocupar a posição de complementos direto e indireto. Além disso, cabe

mencionar a reinterpretação por que passa o clítico lhe, fato destacado por Gomes (2003), ao

comentar diferentes estudos que tratam das alterações verificadas na série de pronomes-

complemento do PB:

(...) a reorganização do paradigma não está restrito às formas do nominativo, tendo

também afetado o subsistema de clíticos. O PB perdeu as formas clíticas de terceira

pessoa tanto de acusativo (o/a/os/as) quanto de dativo (lhe/lhes). (...) Gomes (1999)

e Freire (2000) (...) observam a ausência do clítico lhe como referência à terceira

pessoa e seu uso não só como referência à segunda pessoa, como também na função

de objeto direto. Ramos (1998) observa que a ocorrência do lhe com essas características é também marca da formalidade. (GOMES, 2003, p. 87)

Com tantas alternativas para a representação da 2ª pessoa do singular nas posições de

complemento, uma indagação é inevitável: todas elas apresentam a mesma distribuição, ou

seja, ocorrem com a mesma frequência? Haveria estratégias mais produtivas do que outras?

Quais seriam?

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De uma perspectiva diacrônica, podemos retomar o artigo de Lopes & Cavalcante

(2011), que analisa as consequências da inserção de você no sistema pronominal do PB no

elenco de complementos verbais de 2P. As autoras verificam que, enquanto a forma você

notavelmente ganhou espaço no contexto de nominativo, o clítico te permanece nas posições

de complemento acusativo e dativo. Essa evidência é detectada em um corpus de cartas

pessoais escritas entre o fim do século XIX e as primeiras décadas do século XX. As autoras

analisaram a correlação entre a forma utilizada na posição de sujeito e as formas empregadas

como de acusativo, dativo e oblíquo.

Em relação ao acusativo (objeto direto), Lopes & Cavalcante (2011) identificam

quatro estratégias de referência à segunda pessoa: o clítico te, a forma lexical você, o objeto

nulo (Ø) e o clítico de terceira pessoa (o/a). A tabela a seguir cruza os resultados de pronomes

acusativos com as formas verificadas na posição de sujeito17

:

Tabela 3.2. Correlação das formas acusativas de 2ª pessoa e o sujeito em cartas dos séculos XIX-XX.

(LOPES & CAVALCANTE, 2011, p. 53)

Os dados de acusativo nos mostram que o clítico te era a estratégia majoritária,

somando 90% das ocorrências. É digno de nota, ainda, que esta estratégia foi a mais

frequente, independente da forma utilizada na posição de sujeito (tu, 97,2%; você, 75%;

você/tu, 85%). O clítico a de terceira pessoa registra apenas uma ocorrência.

Quanto ao dativo, as autoras registraram, além do clítico original de segunda pessoa

te, o clítico lhe, o dativo nulo e os sintagmas preposicionados a/para ti e a/para você. Na

Tabela 3.3, os dados de dativos pronominais aparecem correlacionados aos usos verificados

na posição de sujeito:

17 Cabe salientar que, nesse cruzamento, as autoras aplicam a proposta da existência dos três subsistemas de

tratamento, comentada em linhas anteriores.

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67

Tabela 3.3. Correlação das formas dativas de 2ª pessoa e o sujeito em cartas dos séculos XIX-XX.

(Fonte: LOPES E CAVALCANTE, 2011, p. 56)

Embora apresente índices um pouco mais baixos se comparado ao acusativo, o clítico

dativo te totalizou pouco mais de 50% dos dados levantados. Devemos considerar que, nesta

posição, havia sete estratégias de realização concorrentes (contra as quatro verificadas no

acusativo). Mais uma vez, o clítico te foi a forma mais frequente em contextos de “mescla”:

67 dos 98 dados de dativo de 2ª pessoa coletados em documentos em que havia alternância

entre tu e você correspondem ao te. Nas cartas com uso exclusivo de você-sujeito, houve alta

produtividade desse clítico: 15 dos 56 dados levantados, isto é, 25%. Se compararmos os

dados do te dativo aos sintagmas preposicionados prep.+você – estratégia que, em tese,

deveria coocorrer com você-sujeito – verificamos que estes últimos representam metade do

que foi registrado para o clítico.

Os resultados de trabalhos sincrônicos são bastante semelhantes ao que verificamos

nos dados da diacronia. Oliveira Silva (2011), analisando roteiros cinematográficos

produzidos em três metrópoles brasileiras (Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre), também

detecta uma alta frequência do clítico te tanto como acusativo quanto como dativo. A tabela a

seguir mostra a distribuição geral dos dados a partir dos 13 roteiros submetidos à análise:

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Tabela 3.4. Distribuição das estratégias de complemento verbal em roteiros cinematográficos

(Fonte: Adaptado de OLIVEIRA SILVA, 2011, p. 27)

Os resultados encontrados por Oliveira Silva (2011) ratificam, portanto, o que foi

constatado por Lopes & Cavalcante (2011) na diacronia. Nos roteiros de cinema, há o

predomínio quase absoluto do clítico te sobre as demais estratégias. Como acusativo, o clítico

atingiu mais de 81% de frequência, seguido por apenas 16,7% de você e 2,2% de lhe. No

dativo, os percentuais também são bastante elevados: 83% para te contra 9,7% de para você.

A autora também distribui os dados regionalmente, a fim de perceber se haveria

interferência do fator diatópico. Constata, entretanto, que o uso majoritário do clítico te como

acusativo e como dativo ocorre independentemente da procedência dos roteiros, conforme

ilustram os gráficos:

Gráfico 3.2. Correlação entre as estratégias de Gráfico 3.3. Correlação entre as estratégias de

acusativo e as localidades dativo e as localidades

Fonte: Oliveira Silva (2011)

Vale lembrar que, seguindo a proposta de Lopes & Cavalcante (2011) de que existem

no PB três subsistemas de tratamento diferentes, as três localidades pertenceriam a

subsistemas distintos: no Rio de Janeiro, coexistem tu e você na posição de sujeito; em São

Paulo, o uso de você é praticamente categórico; em Porto Alegre, o emprego de tu é

majoritário. Sendo assim, verificamos junto aos resultados de Oliveira Silva (2011) que,

independentemente do subsistema de tratamento, os diferentes roteiros analisados,

representativos das cidades mencionadas, mostraram que parece não haver um

77

22

1

84

2

14

90

73

0

10

20

30

40

50

60

70

80

90

RJ SP PoA

Te

Você

Lhe

76

8

15

1

91

4 5

84

6 73

0

10

20

30

40

50

60

70

80

90

100

RJ SP PoA

Te

Lhe

Para você

A você

Para ti

2ª Pessoa TE LHE VOCÊ PARA VOCÊ A VOCÊ PARA TI TOTAL

ACUSATIVO 151

81,2%

4

2,2%

31

16,7%

- - - 186

33,5%

DATIVO 215

83%

16

6,2%

- 25

9,7%

1

0,4%

2

0,8%

259

46,6%

TOTAL 366

20

31

25 1

2 445

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comportamento diatópico distinto quanto ao uso do clítico te. Apesar da presença das outras

estratégias de acusativo e dativo, esse clítico figura absoluto com percentuais acima de 70%

nas três localidades, confirmando seu favoritismo como complemento verbal de 2ª pessoa do

singular.

3.3. Conclusão do capítulo

A título de fechamento do capítulo, podemos destacar como informações relevantes à

nossa pesquisa os seguintes aspectos: o quadro de pronomes pessoais apresentado nas

gramáticas tradicionais e reproduzido nos manuais destinados ao ensino de língua portuguesa

é obsoleto e extremamente distante do estado atual em que se encontra a língua portuguesa

falada e escrita no Brasil, principalmente no que tange à 2PSG; diversos estudos teóricos,

pautados em diferentes materiais de análise, evidenciam a coexistência da forma você ao lado

do pronome tu na posição de sujeito para a representação da 2PSG; como consequência dessa

variação, apontam-se i) a existência de três subsistemas de tratamento, predominando, em

dois deles, uma das formas variantes, além da coexistência de ambas no terceiro, e ii) o

aumento no número de estratégias pronominais para as posições de complemento, que passam

a contar com formas acusativas e dativas pertencentes ao paradigma de tu e você; também

decorre da referida variação o desaparecimento da uniformidade tratamental, haja vista a alta

frequência do você com formas pertencentes ao paradigma de tu, especialmente o clítico te.

As questões concernentes à variação e mudança na representação da 2PSG em

posição de complemento, especificamente do complemento dativo, são tomadas como

hipóteses nesta dissertação e serão testadas no capítulo de análise dos resultados.

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4. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS

No âmbito das teorias linguísticas que emergem ao longo do século XX, o trabalho

de Weinreich, Labov e Herzog (1968) é visto como fundador do pensamento sociolinguístico

de orientação histórica. A partir de Empirical Foundations for a Theory of Language Change,

começa-se a propor uma observação e descrição da heterogeneidade ordenada inerente às

línguas naturais como a peça-chave para compreender os processos de mudança linguística.

Além de colocar a heterogeneidade no foco da pesquisa, os autores rompem com a tradição

linguística que vigorava até então ao considerar fatores extralinguísticos, isto é, elementos

externos ao sistema da língua que podem atuar nos processos de variação e mudança. Com

isso, deixam de lado os modelos em que se trabalhava com uma língua abstrata, isenta de

variações, para se adotar um modelo de língua concreta, condicionada por fatores de

diferentes ordens.

No plano histórico, Empirical Foundations modifica a perspectiva acerca da

mudança linguística: não se trata a mudança, como em outras correntes, de maneira abrupta,

em que um estado de língua A passa a um estado B devido a alterações internas ao sistema;

para a orientação sociolinguística, fatores extralinguísticos também condicionam o progresso

de uma mudança no sistema, seja ao acelerar, seja ao refrear o avanço da mesma. Diante dessa

proposta, torna-se necessário o trabalho de constituição de corpora históricos e,

consequentemente, a reconstituição dos “cenários” sociais de períodos históricos anteriores, a

fim de compreender como as sociedades históricas estavam construídas e, principalmente,

como sua estrutura pode ter afetado os processos de mudança linguística.

Os trabalhos no campo da Sociolinguística histórica, contudo, não apresentaram

largo desenvolvimento durante meados do século XX, se comparados à Sociolinguística dita

sincrônica ou quantitativa. Devido às grandes dificuldades enfrentadas no trabalho com dados

históricos, observamos maior avanço da Sociolinguística variacionista, desenvolvida por

Labov, no que diz respeito à constituição de corpora, à metodologia de pesquisa, aos estudos

de caso e à análise da variação e mudança linguística. A Sociolinguística histórica só viria a

apresentar um notável crescimento na década de 1980, a partir dos trabalhos de Suzanne

Romaine (1982, 1988). Ainda hoje, são muitos os questionamentos e críticas que esse campo

enfrenta para se afirmar no quadro geral das teorias linguísticas. No Brasil, em específico,

praticamente não há pesquisas cujos pressupostos teóricos e metodológicos pertençam

estritamente à Sociolinguística histórica; o que temos são diversos trabalhos que conjugam

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diferentes teorias a fim de analisar as mudanças ocorridas no passado18

. No âmbito da

Sociolinguística, os estudiosos geralmente tentam transpor postulados e princípios

variacionistas labovianos para as sincronias passadas. Veremos, entretanto, que essa postura

não é a mais indicada para o tratamento de dados históricos.

O presente capítulo estrutura-se, com exceção desta introdução, em quatro partes

principais: na primeira parte, discutiremos a problemática do corpus na pesquisa sócio-

histórica quanto à constituição do mesmo bem como os problemas em relação aos dados sobre

os informantes, à representatividade da amostra, suas limitações de análise e ainda a validade

de textos escritos para o estudo da variação; na segunda parte, comentaremos brevemente

alguns princípios e conceitos teóricos que têm norteado os trabalhos em Sociolinguística

histórica; na terceira, correlacionaremos os problemas e os conceitos apresentados nas partes

anteriores com o corpus a ser utilizado (cartas pessoais) e o fenômeno em análise, os

pronomes dativos de 2ª pessoa do singular; por fim, na quarta parte, delineamos nossa

metodologia apresentando pormenorizadamente o corpus adotado, suas fontes e seus

informantes, além de comentarmos de forma breve a natureza e a qualidade dos dados

levantados para a análise. Objetivamos, com isso, propor as bases mínimas para um estudo

sócio-histórico de variação linguística no Português do Brasil.

4.1. O problema da constituição do corpus

Para o pesquisador em Sociolinguística histórica, os obstáculos no desenvolvimento

da pesquisa surgem muito antes das etapas de análise: a constituição da amostra de dados é o

primeiro desafio a ser vencido. A célebre frase de William Labov – “to make the best use of

the bad data” (LABOV, 1972, p. 100 apud CONDE SILVESTRE, 2007, p.35) – é uma

máxima constante. Pontuaremos, a seguir, os principais problemas enfrentados pelo

sociolinguista histórico, desde os mais concretos até aqueles relacionados à metodologia de

análise.

18 De um lado, temos a sociolinguística paramétrica, nascida das discussões propostas por Tarallo e Kato (1989)

e adotada pelo grupo de pesquisadores ligados a eles (DUARTE, 1986, 1995; CYRINO, 1997; RIBEIRO, 1995;

dentre outros), que associa os pressupostos da Sociolinguística Variacionista à Teoria de Princípios e

Parâmetros; por outro lado, temos o grupo formado por orientandos de Mattos e Silva (cf. SOUZA, 2003) e por

pesquisadores da UFRJ integrantes do projeto VARPORT, que aliaram a sociolinguística ao funcionalismo,

dando origem ao sociofuncionalismo.

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72

4.1.1. Os problemas acerca do corpus propriamente dito

É inegável que muitos conceitos e métodos aplicados à Sociolinguística histórica –

principalmente nos primeiros anos de desenvolvimento do campo – foram importados da

Sociolinguística variacionista sincrônica. Porém, já na constituição da amostra a ser analisada,

os estudiosos esbarram em um sério problema: a disponibilidade dos dados históricos.

Como bem observou Conde Silvestre (2007, p.35),

Em comparação com a diversidade, quantidade e autenticidade dos dados à

disposição do investigador em sociolinguística sincrônica ou em linguística

descritiva, a informação de que dispõe quem tenta desenvolver sua investigação no

âmbito da linguística ou da sociolinguística histórica é fragmentária, escassa e

dificilmente vinculável à produção real de seus falantes.

De fato, quando o pesquisador em Sociolinguística sincrônica precisa aumentar o

número de dados de determinado fenômeno, geralmente organiza novas entrevistas, realiza

novas gravações, seguindo com rigor os parâmetros preestabelecidos para a coleta (número

equilibrado de informantes quanto ao sexo, à idade, à classe social, à escolaridade etc.). Em

contrapartida, a pesquisa sócio-histórica da língua não dispõe dessa possibilidade. É

impossível ampliarmos o número de dados de informantes do século XIX, por exemplo, pelo

simples fato dos mesmos não estarem mais vivos. Reproduzindo a expressão utilizada por

Conde Silvestre (2007), o estudo em Sociolinguística histórica depende de um material

enviesado, que sobreviveu por obra do acaso, “por azar”. É a partir do material de gerações

passadas que resistiu às mais diversas ações do tempo que se desenvolve toda a pesquisa em

Sociolinguística histórica.

Os corpora linguísticos do passado apresentam dois problemas básicos, do ponto de

vista empírico: a conservação por meio escrito e o caráter fragmentário das amostras. Ambos

estão correlacionados. O primeiro diz respeito ao fato de os textos aparecerem de forma

isolada, desprovidos do contexto e da situação em que foram produzidos. O segundo, talvez

mais complexo, refere-se à constatação de que os textos do passado são restos textuais, mais

amplos na origem, que sobreviveram até os nossos dias. Dada a incompletude e mesmo a

escassez de materiais linguísticos históricos, a pergunta que fazemos é: como proceder? O que

devemos fazer com esses “restos” que chegam até nós? Como manuseá-los? Os estudiosos

propõem algumas respostas.

Romaine (1988, p.1454 apud CONDE SILVESTRE, 2007, p.45) conclui de maneira

axiomática que os dados históricos valem por si mesmos, independentemente de refletirem de

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maneira fidedigna as circunstâncias originais de emissão ou, do contrário, afastarem-se delas.

De fato, apesar dos dois problemas assinalados anteriormente, os materiais sobreviventes

trazem consigo um pedaço do passado que não pode ser desprezado. Caberá ao pesquisador,

utilizando diferentes ferramentas, tentar completar as peças do quebra-cabeça. Além disso,

conforme afirma Milroy (1992, p.47), os linguistas históricos contam com uma vantagem que

os sociolinguistas sincrônicos não possuem: em geral, as mudanças observadas no passado ou

já foram completadas no percurso histórico da língua ou estão em um estágio mais avançado.

Em outras palavras, os estudos em Sociolinguística histórica podem partir dos resultados

atuais sobre os fenômenos para tentar descobrir o que aconteceu no passado da língua para

que chegasse ao estágio atual. Nas palavras do próprio Milroy:

Os problemas do material linguístico e social à disposição do investigador fazem

que este deva projetar para o passado os resultados de investigações atuais; sua

compreensão dos fatos linguísticos do passado deriva principalmente da observação

do presente, de maneira que, analisando as relações entre variação ou mudança

linguística e contexto social que se dão na atualidade – para o qual conta com dados

confiáveis, autênticos e abundantes –, poderia entender de forma razoável o que

ocorreu na história da língua (MILROY, 1992, p.47 apud CONDE SILVESTRE, 2007, p.40)

4.1.2. Informantes de sincronias passadas e a validade social e histórica

Hernàndez-Campoy e Schilling (2012, p. 63) elencam sete problemas que

consideram principais e inerentes à pesquisa em Sociolinguística histórica. Destes sete, pelo

menos três estão relacionados diretamente aos informantes, isto é, aos indivíduos do passado

que deixaram registros. São eles: a autoria, a autenticidade e a validade social e histórica.

Em primeiro lugar, é de grande importância conhecer quem eram os indivíduos que

escreviam na sociedade de uma determinada época e em um determinado lugar. Essa pergunta

torna-se de difícil resposta quanto mais nos distanciamos do presente, ou seja, quanto mais

antigo é o passado estudado. Um dos maiores obstáculos quanto à autoria dos documentos –

quando são assinados – é saber se são autógrafos ou não. Muitos textos de sincronias passadas

não eram registrados pelas mãos do seu autor. Além disso, a existência de diferentes cópias de

um mesmo documento pode gerar dúvidas quanto à versão original.

Esses problemas ocorrem principalmente porque, em períodos históricos antigos, a

grande massa da população era analfabeta, mesmo nos estamentos mais elevados da

sociedade. Era frequente que as famílias nobres dispusessem de um secretário exclusivamente

para redigir documentos. Diante dessa constatação, surge a necessidade de saber até que ponto

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74

a escrita desses terceiros – muitos deles anônimos – interferia no que era ditado pelos reais

autores. Bergs (2005, apud BERGS, 2012, p.91) afirma que o texto ditado afetaria as

variáveis fonológicas e grafológicas, mas interferia em grau bem menor nas variáveis

morfossintáticas.

O problema da autenticidade, de acordo com Hernàndez-Campoy e Schilling (2012),

diz respeito à pureza nos textos e aos usos autoconscientes que são feitos pelos falantes, como

as hipercorreções. Tal problema levanta a questão sobre até que ponto podemos estudar as

formas vernaculares a partir da língua escrita. Se há usos conscientes na escrita,

possivelmente algumas formas próprias da língua falada são evitadas ou substituídas. Dito de

outro modo e em consonância com os referidos autores, os textos refletem esforços em

capturar uma norma padrão que nunca foi a língua nativa de nenhum falante. Cabe ao

linguista, portanto, filtrar o que seria interferência de uma norma aceita socialmente do que

seria mais próximo à esfera do vernáculo e, ainda, o que seria uma atitude autoconsciente do

autor que, em um ato hipercorretor, cometeu um desvio tentando adequar-se a alguma regra.

Conde Silvestre (2007) lembra, contudo, que nem mesmo a Sociolinguística

sincrônica está isenta do problema da autenticidade dos dados:

(...) o investigador em (socio)linguística histórica não enfrenta a priori as dificuldades derivadas do que Labov denomina paradoxo do observador: (...) o

efeito que a presença de uma pessoa desconhecida, que utiliza material de gravação

mais ou menos sofisticado, tem sobre a autêntica produção de fala real por parte de

seus informantes, que, nesse contexto, podem se ver condicionados a emitir um

discurso afastado da fala espontânea que o investigador queria conseguir. (CONDE

SILVESTRE, 2007, p.36, nota 3)

O terceiro problema que remete diretamente aos informantes é o da validade social e

histórica. Como comentam Hernàndez-Campoy e Schilling (2012), geralmente conhecemos

muito pouco sobre a posição social dos autores e sobre a estrutura da comunidade onde eles

estavam inseridos. Em outras palavras, as informações históricas e sociais sobre os escritores

de períodos passados são escassas e isso pode enviesar a análise que pretende ser sócio-

histórica. Além disso, é preciso que o linguista pesquise e compreenda também a sociedade a

qual pertenciam seus informantes, pois alguns conceitos como classe social e gênero/sexo não

podem ser interpretados a partir do sentido que possuem atualmente (tal equívoco caracteriza

um anacronismo nos termos de BERGS, 2012, p.82-83).

A tarefa de recuperar informação social necessária para interpretar padrões de

variação em textos escritos, embora não seja fácil, é fundamental para a análise sócio-

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histórica. Algumas disciplinas podem auxiliar nesse trabalho de reconstrução, em particular, a

história social.

4.1.3. Representatividade e validade empírica dos dados

Além dos problemas relacionados aos informantes, o investigador em

Sociolinguística histórica enfrenta ainda problemas de natureza metodológica. A partir dos

rótulos apresentados por Hernàndez-Campoy e Schilling (2012), é preciso considerar o

problema da representatividade e da validade empírica. Eles evidenciam a inadequação de

transpor a metodologia da Sociolinguística sincrônica para o trabalho histórico e a

consequente necessidade de elaborar uma metodologia de pesquisa própria, independente.

O Princípio da Representatividade – ao lado do Princípio da Generalização – foi

inicialmente mantido pelos linguistas da tradição laboviana como fundamental no rigor

metodológico do procedimento sociolinguístico variacionista. Segundo este Princípio, todos

os membros da comunidade devem ter chances iguais de serem selecionados como

informantes representativos; além disso, os informantes devem ser selecionados preservando

as características sociológicas e demográficas da população. Frente a essa definição, fica

evidente a impossibilidade de aplicação do Princípio no trabalho de Sociolinguística histórica.

Os dados históricos geralmente são irregulares, o que é consequência da preservação

aleatória dos textos e da perda aleatória de outros. Sendo assim, é praticamente impossível

construir uma amostra histórica que seja representativa de toda a população estudada. Na

maioria das vezes, os documentos que sobreviveram foram escritos por pessoas das classes

mais elevadas da sociedade e do sexo masculino. Os pesquisadores precisam ser

extremamente criteriosos ao avaliar quais os tipos de informante, segmentos da população e

de formas linguísticas suas amostras abarcam, visto que não há a possibilidade de remodelar

os conjuntos de dados preexistentes.

O problema da validade empírica está diretamente atrelado ao problema da

representatividade. A Sociolinguística histórica conta, para o seu trabalho, com coleções de

texto cujo tamanho – vale repetir mais uma vez – é inevitavelmente restrito. Isso implica, por

vezes, a limitação (ou mesmo a impossibilidade) em realizar análises de cunho quantitativo e

cálculos estatísticos. A limitação não se refere apenas aos dados linguísticos em termos de

quantidade, tipo e cobertura, mas também aos dados socioculturais limitados que são obtidos

através do estudo das comunidades atuais sobre o passado. Em síntese, a validade empírica de

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uma amostra histórica não pode ser avaliada através dos mesmos parâmetros que avaliam as

amostras contemporâneas. Sua sustentação enquanto corpus de análise depende de um

minucioso trabalho por parte do investigador, que utiliza diferentes ferramentas para a

realização da pesquisa.

4.1.4. Invariação e a ideologia do padrão

Os problemas da “invariação” (ing. “invariation”) e da ideologia do padrão

envolvem, talvez, o maior desafio para o sociolinguista histórico: estudar variação e mudança

linguística a partir de dados da língua escrita. Dito de outro modo: depois de trabalhar na

reconstrução e contextualização do material, a fim de obter informações sobre os autores, e de

adaptar a limitada amostra para uma análise consistente, válida como estudo científico, o

pesquisador terá o trabalho de rastrear dentro dos textos a variação, a inovação no passado.

Nos termos de Hernàndez-Campoy e Schilling (2012), lidar com a invariação é

vencer o uniformitarismo, o conservadorismo da língua escrita para estudar as variações que,

muito possivelmente, estavam presentes na língua oral. Segundo os autores, é sempre

provável ter havido mais variabilidade na oralidade, com padrões diferentes, do que os

documentos escritos permitem visualizar. Isso deve ser entendido como um alerta para o

pesquisador, que deve ser cauteloso com a aparente uniformidade linguística nos documentos,

e mesmo com os padrões de variação observados.

Por vezes, a variação presente nos manuscritos se dá devido a diferenças dialetais,

demográficas e sociológicas, ou ainda devido a diferenças estilísticas entre os autores ou entre

períodos cronológicos distintos. Eis então o ponto de interseção entre a invariação e o

problema da ideologia do padrão: a norma tida como padrão de uma língua nem sempre foi

estabelecida pelos mesmos critérios que temos atualmente. Em períodos mais antigos da

história, por exemplo, cada comunidade ou região específica possuía seu próprio padrão de

língua, aceito pelos moradores como a maneira certa de falar determinada língua. Esse padrão

idealizado aparece refletido nos documentos escritos.

A informação anterior confirma o argumento apresentado pelos autores de que

ambos os pontos de vista, não linguístico e linguístico, em relação aos sistemas da língua e

sua evolução, podem ser influenciados pela ideologia do padrão; ou seja, é comum que as

sociedades humanas estabeleçam uma forma padronizada da língua e utilizem-na como

referência daquela língua. Os estudos linguísticos acerca dos dialetos não padrão não estariam

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imunes, pois, a essa ideologia, de maneira que, mesmo nos registros de informantes menos

cultos, encontramos um “padrão” que tenta se adequar a alguma norma específica da língua

(novamente, como ocorre nos casos de hipercorreção).

Estes dois últimos problemas são advertências importantes para o pesquisador em

Sociolinguística histórica, pois seu trabalho é, em certa medida, paradoxal: buscar registros de

variação onde, em tese, não há variação. Respeitando a norma oficial da língua ou uma norma

particular, constatamos que, nos textos escritos, sempre é preciso transpor a barreira da

uniformidade aparente; por mais atento e conservador que seja o autor do texto, há sempre

algum elemento linguístico que nos permite ver (ou, ao menos, nos aproximar) da língua que

era utilizada no cotidiano, recheada de variações em diferentes níveis.

4.2. Princípios e conceitos teórico-metodológicos da Sociolinguística histórica

Pontuamos, nas linhas anteriores, os problemas considerados principais na pesquisa

em Sociolinguística histórica. Apresentaremos, agora, as “soluções”, isto é, os princípios, os

conceitos teóricos e metodológicos, e as ferramentas de que o sociolinguista histórico dispõe

para levar adiante o estudo da variação no passado das línguas. Comentaremos sobre: o

Princípio do Uniformitarismo e sua aplicação na linguística histórica como base de

sustentação para os estudos diacrônicos; a História Social, disciplina auxiliar da

Sociolinguística histórica, e sua importância na correlação entre língua e sociedade do

passado; o estilo19

, trabalho filológico que serve de ferramenta para a reconstrução do

contexto social; o modelo desenvolvido por Koch e Oesterreicher (1985, 1994) que apresenta

argumentos para validar o estudo da variação linguística através de textos escritos.

4.2.1. Princípio do Uniformitarismo

Sem tradução precisa para o português e, por isso mesmo, podendo ser enunciado

como Princípio do Uniformitarismo ou Princípio da Uniformidade Linguística, tal princípio é

recorrentemente mencionado nos textos teóricos sobre Sociolinguística histórica e se revela

19 Dada a polissemia da palavra “estilo”, cabe explicitar com qual acepção a empregamos. Chamamos de estilo o

“conjunto de características formais que distinguem e qualificam um objeto segundo o modo e a época em que

foi produzido” (HOUAISS). Em termos linguísticos, trabalhar em cima do estilo de um texto para reconstruir o

contexto social em que ele foi escrito significa analisar traços grafológicos, morfossintáticos e discursivos que

permitem situar espacial, temporal e socialmente o autor desse texto.

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basilar para as análises de natureza diacrônica. Bergs (2012, p.81) lembra que o Princípio do

Uniformitarismo (doravante, PU) surgiu no âmbito da geologia, sendo apresentado pela

primeira vez em Principles of Geology, de Charles Lyell. Foi então que os linguistas do

século XIX, muito impressionados com os trabalhos dos geólogos, importaram o PU para a

linguística.

Diversos autores já formularam definições para o PU, todas elas, em essência,

afirmando coisas parecidas. Nevalainen e Raumolin-Brunberg (2012, p.24) afirmam

sucintamente que “os seres humanos, enquanto seres biológicos, psicológicos e sociais,

permanecem praticamente inalterados ao longo do tempo”. Já Milroy (1992 apud CONDE

SILVESTRE, 2007, p.41), ao definir tal princípio, inclui a questão da variabilidade:

(...) este princípio supõe transladar a variação, como característica inerente da

linguagem, do presente para o passado e entender que, do mesmo modo que as

distintas línguas mostram esta qualidade hoje em dia, pode-se assumir que estavam

submetidas à variabilidade em seu desenvolvimento histórico.

Palavras bem semelhantes são utilizadas por Romaine (1988, p.1454 apud

NEVALAINEN & RAUMOLIN-BRUNBERG, 2012, p.25), que complementa sua definição

atentando para o fato de que o PU derruba a aparente invariação:

As forças linguísticas que operam hoje e são observáveis ao nosso redor não são diferentes daquelas que operaram no passado. Este princípio é, de fato, básico para a

reconstrução puramente linguística, mas sociolinguisticamente falando, não é

motivo para acreditar que a língua não variou da mesma forma padronizada no

passado como tem sido observado atualmente.

Bergs (2012, p.80) segue a mesma linha de raciocínio, apenas chamando a atenção

para o fator inverso: assim como tudo o que acontece hoje, possivelmente também aconteceu

no passado, também o que é impossível de ocorrer atualmente, deve ter sido igualmente

impossível no passado. Além disso, o autor ressalta que a análise do fenômeno histórico deve

sempre partir das causas conhecidas, procurando explicá-las antes de tratar das causas

desconhecidas. Ainda segundo Bergs, a aplicação do PU nas ciências humanas requer certa

cautela, visto que não há, nos fenômenos humanos, uma correlação simples e clara com as leis

da natureza.

Lass (1997, p.28 apud BERGS, 2012, p.82) sumariza dois PU para a linguística. O

primeiro, que rotula como Princípio da Uniformidade Geral, afirma que nenhum estado

linguístico de coisas (seja estrutural, processual etc) pode ter sido caso único e isolado no

passado. O segundo, denominado Princípio das Probabilidades Uniformes, postula que a

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probabilidade (global ou interlinguística) de qualquer estado linguístico de coisas tem sido,

grosseiramente, o mesmo como é hoje em dia; ou seja, haveria, segundo ele, uma

probabilidade relativamente uniforme de se encontrar a mesma quantidade de fenômenos e

processos no passado que encontramos atualmente.

4.2.2. A importância da História Social

Uma das disciplinas auxiliares à Sociolinguística histórica, a História Social é de

demasiada importância no trabalho de reconstrução da época em que viveram os escritores

dos documentos de sincronias passadas. Nos termos de Burke (1980, p.35; 1992, p.2 apud

CONDE SILVESTRE, 2007, p.63), a História Social trata da “conformação de distintos

grupos sociais no passado, incluindo sua estrutura, as relações e conflitos entre eles”. Dentre

os tópicos que interessam à História Social, podem ser citados os papéis sociais, as relações

familiares, a estrutura e a mobilidade social, as relações entre os sexos, as relações de poder e

de solidariedade e o desenvolvimento de ideologias e mentalidades.

Não raro, os trabalhos em História Social contribuem para as pesquisas linguísticas

ao fornecer dados estatísticos, históricos e demográficos. Richter (1985, p.57-58 apud

CONDE SILVESTRE, 2007, p.64) ressalta que tal disciplina pode oferecer ao linguista partes

da informação necessária para a reconstrução das variáveis independentes históricas, que

poderiam ter relação com as variações e mudanças analisadas. Além disso, o sociolinguista

que recorre aos dados de História Social evita o equívoco de transferir os modelos sociais do

presente para o passado, eliminando, assim, o risco de anacronismo.

4.2.3. O estilo e a reconstrução do contexto de produção

Grosso modo, podemos dizer que a investigação do estilo complementa o trabalho

conjunto com a História Social na medida em que aquela segue o sentido oposto desta: se na

História Social as informações extralinguísticas são aplicadas aos documentos, a investigação

do estilo parte de elementos do próprio texto para reconstruir o contexto de produção original.

Esse tipo de trabalho é necessário quando não há muita informação histórica disponível acerca

dos documentos (cartas de pessoas não ilustres, por exemplo).

Nas palavras de Conde Silvestre (2007),

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(...) entende-se que a seleção de um estilo por parte do falante supõe que seus usos

linguísticos se adaptam a algumas das possibilidades sociolinguísticas que se dão em

sua comunidade, ou seja, que se pode estabelecer uma correlação entre a frequência

de aparição de certos traços no estilo de um falante individual e os que caracterizam

habitualmente a um grupo social concreto (BELL, 1984, p.151; MORENO

FERNÁNDEZ, 1998, p.94-95; SCHILLING-ESTES, 2002, p.382).

Traugott e Romaine (1985, p.28-29 apud CONDE SILVESTRE, 2007, p.59) definem

o estilo como

resultado de uma relação comunicativa entre os participantes em um ato de fala, os

quais negociam cada ato de fala e o dotam de um ou outro em virtude de uma série

de fatores pessoais e contextuais, e também em função de sua própria imersão na

estrutura social da comunidade de fala, do desenvolvimento de funções socioprofissionais concretas e do estabelecimento de redes de relações pessoais

mais além da interação comunicativa de que se trate.

Moreno Fernández (1998, p.98-103 apud CONDE SILVESTRE, 2007, p.59)

apresenta uma série de fatores que exercem influência no estilo verificado nos documentos.

No primeiro grupo de fatores, de caráter pessoal, estariam (i) o falante e o controle que detém

sobre a produção linguística, além das particularidades históricas, geográficas e

sociolinguísticas as quais se submete; (ii) os interlocutores, quantos deles participam da

interação (estabelecendo relações bilaterais ou multilaterais com o falante), e a atenção à

mensagem (plena ou casual, segundo se trate de interlocutores interpelados diretamente ou

não); e (iii) o tipo de relação estabelecida entre eles (íntima, formal, casual etc).

No segundo grupo de fatores, de ordem não pessoal, o autor aponta (i) elementos

discursivos como o tema (formal ou informal, pessoal ou não), o tipo de comunicação

(monólogo, conversação dirigida, conversação livre) e o gênero discursivo (narrativo,

expositivo, argumentativo); e (ii) elementos contextuais, como o local (familiar ou não), o

momento da interação comunicativa (adequado ou não), e o tipo de atividade pública ou

privada que se desenvolve.

A partir desses fatores, dois objetivos podem ser formulados para a Sociolinguística

histórica, associados à questão do estilo: o de reconstruir mudanças que afetaram as relações

entre os componentes do ato de fala que definem os estilos nas diferentes comunidades

históricas e o de identificar as próprias mudanças estilísticas, das funções e significados

associados a eles, que surgiram, variaram ou desapareceram devido à modificação das

relações entre os componentes do ato de fala (TRAUGOTT & ROMAINE, 1985, p.30 apud

CONDE SILVESTRE, 2007, p.60).

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Em síntese, o trabalho com base no estilo ajuda o pesquisador a separar elementos

linguísticos inerentes do tipo de documento, do gênero textual em questão, daqueles

elementos que seriam intervenções dos escreventes. Com base nessa distinção – sempre

preocupada com a realidade histórica em que o texto foi produzido – o linguista pode chegar a

identificar intervenções da língua falada pelo indivíduo ou pela comunidade na qual ele estava

inserido em seus textos. Traçar o perfil estilístico dos autores é, em última análise, uma forma

segura de neutralizar a interferência dos elementos discursivos na variação linguística

propriamente dita.

4.2.4. O modelo de Koch e Oesterreicher

É aceito pelo senso comum que o espaço da variação linguística é o da língua falada.

Nela encontramos variação nos diferentes níveis, fato esse que é resultado da espontaneidade,

traço marcante da modalidade oral. O tempo de planejamento da fala é bem menor do tempo

dispensado, em geral, à elaboração de um texto escrito, haja vista que o contexto de produção

e o contexto de recepção são simultâneos na oralidade. O falante dispõe também, na

modalidade oral, de estratégias não linguísticas que o auxiliam a completar o sentido do que é

dito (a expressão facial, por exemplo). Do mesmo modo, acredita-se que a língua escrita está

em um polo oposto, pois nela há um grau de variação bem menor, fruto do planejamento e da

estruturação mais elaborados no texto escrito.

Essa separação tradicional, contudo, entre “língua falada” e “língua escrita”, na qual

se associa a variação à primeira, é simplória e mesmo enganadora. A variação da língua não

está restrita à fala e pode ser encontrada também em documentos escritos, como já

demonstraram incontáveis estudos. Porém, como sustentar teoricamente esse ponto de vista,

que vai de encontro à visão clássica e tradicional de “fala x escrita”?

Koch e Oesterreicher (1985, 1994) propõem um modelo no qual essa problemática

recebe uma teorização pertinente e adequada. Em primeiro lugar, os autores tratam de

desfazer a dicotomia clássica e mostrar que, na realidade, a oposição existente se dá entre o

meio de linguagem e a concepção de linguagem: falar em texto escrito e texto oral significa

focalizar os meios da transmissão comunicativa (gráfico e fônico, respectivamente); sendo

assim, não é a matéria textual em si que é contemplada, mas sim o material textual, o suporte

físico pelo qual se estabelece a comunicação. O texto, stricto sensu, pertence, na visão dos

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autores, à esfera da concepção de linguagem: a partir da proximidade ou distância da

comunicação é que podemos traçar o perfil de um determinado texto.

Baseados nas noções de imediato comunicativo e distância comunicativa, Koch e

Oesterreicher (2007) apresentam os textos prototípicos do “imediatismo”, caracterizados pela

oralidade, informalidade e falta de planejamento, e os textos prototípicos da “distância”,

marcados pelo letramento, formalidade e planejamento. Uma conversa íntima é considerada

um protótipo do texto imediatista, enquanto que um contrato jurídico seria um protótipo de

texto distanciado. Os textos prototípicos formam dois polos de um continuum conceitual e

entre eles estão distribuídos todos os diferentes gêneros textuais, que podem ser localizados

segundo o grau de imediatismo ou distância comunicativa. Para avaliar conceitualmente os

textos, os autores formulam parâmetros determinantes, em sua maioria de dimensões

graduadas. São eles:

(a) caráter privado da comunicação (a’) caráter público da comunicação

(b) intimidade ou familiaridade dos interlocutores,

maior conhecimento partilhado

(b’) ausência de intimidade ou de familiaridade

dos interlocutores, menor conhecimento partilhado

(c) forte participação emocional (c’) falta de participação emocional

(d) inserção do discurso no contexto situacional (d’) não inserção do discurso no contexto

(e) referencialização direta (ego-hic-nunc) (e’) referencialização indireta

(f) proximidade local e temporal entre os

interlocutores (comunicação face a face)

(f’) distância local e temporal entre os

interlocutores

(g) intensa cooperação (g’) fraca cooperação

(h) dialogicidade (h’) monologicidade

(i) espontaneidade (i’) reflexão

(j) pluralidade temática (j’) fixação do tema

Quadro 4.1. Parâmetros determinantes do grau de imediatismo/distância comunicativa

dos textos escritos (OESTERREICHER, 2006, p.255)

Para os autores, portanto, a distinção entre os polos conceituais é algo primário para

a compreensão da “oralidade” e “escrituralidade” da comunicação; já o meio é secundário,

haja vista que um texto escrito pode ser oralizado pela leitura e um texto falado pode ser

transcrito a qualquer instante. A partir desse modelo, podemos descartar a dicotomia clássica

“fala x escrita” que, evidentemente, se pauta apenas no meio e negligencia o fato de que há

textos escritos que estão mais próximos ao polo conceitual do imediatismo e vice-versa.

Diante dessa sucinta exposição, é possível estabelecermos uma ponte entre o modelo

de Koch e Oesterreicher (2007) e o trabalho do sociolinguista histórico no que se refere ao

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corpus. Além de atentar para aos problemas já discutidos anteriormente, considerar o

Princípio do Uniformitarismo e utilizar no seu trabalho o estilo e a História Social, é

importante que o pesquisador priorize, na formulação do corpus, textos que se aproximem ao

polo do imediatismo comunicativo, pois neles é mais provável que se encontre variação

linguística mais latente.

Em termos de aporte teórico-metodológico, para a análise da variação pronominal de

2ª pessoa do singular na posição de complemento dativo em dados do português brasileiro,

levaremos em conta: i) a natureza da fonte a ser analisada; ii) o perfil histórico dos remetentes

das cartas no contexto social dos séculos XIX e XX; iii) a representatividade da amostra para

o período focalizado. Por essa razão, discutiremos a seguir as vantagens e desvantagens do

trabalho feito com base em cartas, tendo em vista os três aspectos mencionados.

4.3. Um estudo de caso para o português brasileiro: a variação pronominal em cartas

pessoais

Embora a análise a ser realizada nesta dissertação esteja inserida em uma história

bastante recente (se compararmos aos trabalhos sócio-históricos em outras línguas, em que as

análises atingem o século VIII!), muitas dificuldades listadas em 4.1 permanecem. A

existência dessas dificuldades está estritamente relacionada ao contexto político e social do

Brasil do fim dos oitocentos e de todo o período dos novecentos, o que de certa forma

legitima a adoção da perspectiva sócio-histórica.

Adotamos como corpus de análise cartas particulares. A escolha desse tipo de texto

justifica-se por diferentes razões, esclarecidas a seguir. Além de analisarmos a variação

pronominal de 2ª pessoa do singular na posição dativa, discutiremos as vantagens e

desvantagens em trabalhar com um corpus de cartas pessoais, comentando os problemas

enfrentados e as soluções propostas neste estudo. Depois disso, intentamos articular nosso

objeto de estudo com alguns fatores de ordem histórica e social, a fim de caracterizar a

emergência de uma “norma brasileira”, aludida por alguns linguistas.

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4.3.1. A análise pronominal em cartas pessoais

A principal motivação para a adoção do gênero carta pessoal como corpus de análise

é sua própria estrutura discursiva. Devido ao caráter dialógico desse gênero, o remetente

necessita utilizar formas pronominais para se referir ao destinatário dentro do texto. Tendo em

vista que o fenômeno investigado restringe-se à 2ª pessoa do singular, o gênero epistolar

revela-se como o melhor material para a obtenção dos dados.

Além disso, vale ressaltar que o estudo empreendido nesta dissertação é de cunho

variacionista: observamos o fenômeno da variação pronominal nas cartas dos séculos XIX e

XX. Essa seria a segunda razão para a escolha do corpus. Investigamos a variação na

realização das formas dativas de 2ª pessoa do singular a partir da inserção do pronome você

no português brasileiro e a consequente variação que se desencadeia, a partir de então, entre

essa forma e o antigo pronome tu. Evidentemente, não há materiais de língua falada que

contemplem todo o período que pretendemos analisar. Nesse sentido, a análise e o

levantamento de dados oriundos de cartas pessoais são de extrema importância, pois estas se

aproximam ao polo do imediatismo comunicativo de Koch e Oesterreicher (1985, 1994) e são

mais suscetíveis a apresentar variação linguística. Em outras palavras, estaremos trabalhando

com um material que i) por sua própria natureza, está próximo ao imediatismo comunicativo,

visto que pressupõe uma reprodução de uma “conversa à distância”; ii) apresenta maiores

chances de conter variação no uso dos pronomes de 2ª pessoa do singular, haja vista o traço

de dialogicidade que marca o gênero carta pessoal.

Embora não possamos afirmar que, nas cartas particulares, os indivíduos escreviam

tal como falavam à época, acreditamos que alguns fenômenos linguísticos em variação

possam escapar à pressão normativa e aparecer nos textos, principalmente naqueles cujos

autores detinham menor domínio sobre os modelos de escrita. Novamente, vale repetir, a

transposição das relações sociais para o espaço discursivo é licenciado pelo gênero epistolar,

como bem descreve Silva (2002, p.100):

(...) nos eventos das cartas pessoais, onde se efetivam os contatos interpessoais entre

aqueles que se encontram distantes e têm entre si um laço de afetividade, os sujeitos

(tanto o remetente como o destinatário) trazem, à cena enunciativa, sistemas de

crenças, de valores e de saberes, filiados a quadros das atividades de uma formação

social, construídos no seio das práticas sociais reais da vida cotidiana, deixando assim entrever o papel/identidade social assumido por cada um deles ou, em outros

termos, a posição identitária ali investida (cf. também Bronckart, 1999).

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Em outras palavras, o indivíduo, ao redigir uma carta pessoal, tenta trazer para o seu

texto elementos da vida cotidiana, de forma a reduzir, minimizar, a distância física existente

entre os sujeitos, dado o caráter afetivo e emocional do gênero. Sendo assim, um dos recursos

de que lança mão é justamente a adoção da linguagem que seria utilizada se o diálogo fosse

estabelecido “face a face”. É com base nesse fator que almejamos capturar a variação

pronominal dativa, respaldando-nos no seguinte argumento: se há variação linguística no

texto da carta pessoal – por menor e mais discreto que seja – então essa variação deveria

ocorrer de maneira mais acentuada na língua falada da época.

4.3.2. A constituição do corpus: problemas e soluções

Conforme mencionamos acima, o recorte temporal investigado é recente: analisamos

o período entre as últimas décadas do século XIX até os decênios finais do século XX (1880-

1980). Essa proximidade temporal (estamos falando em dados do século passado) traz

algumas vantagens como, por exemplo, a legibilidade do material encontrado, a possibilidade

de se obter informações mais precisas acerca da sociedade na qual viveram os informantes e

as transformações históricas pelas quais esta sociedade passou. Entretanto, há também

problemas que não podem ser ignorados. Comentamos, a seguir, o problema da

disponibilidade das cartas, da disponibilidade de informações acerca dos seus autores e o

problema da representatividade da amostra constituída para o período em análise.

O primeiro problema, referente à disponibilidade das cartas, traz novamente à tona

um ponto já discutido em linhas anteriores: o fato de a Sociolinguística histórica lidar com

“restos” materiais, isto é, com documentos que sobreviveram ao acaso e chegaram até os dias

atuais. Esse quadro se agrava mais ainda em relação a documentos pessoais: por razões de

valorização social (cf. ELPASS, 2012), era um hábito da sociedade de outros tempos que as

pessoas se desfizessem ou destruíssem textos de ordem particular, pelas mais diversas razões.

A falta de consciência para a preservação desses documentos é mais latente nas categorias

mais baixas da sociedade. Silva (2012), em um estudo que traçou o perfil sociolinguístico do

casal dos anos 1930 a partir das cartas trocadas entre ambos, fontes documentais que fazem

parte do corpus desta dissertação, encontrou recorrentemente nas missivas da remetente

pedidos como o que segue:

(47) “Jayme manda-me dizer se tua mãe falou |alguma cousa com voce au meu respsito [...]

eu pesso-te para rasgares a |carta” (M. 12/01/1937, grifos nossos)

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O material que se encontra disponível nos arquivos públicos pertenceu a membros

das classes mais elevadas, pessoas ilustres cujos parentes julgaram importante preservar os

escritos, conservar a memória através dos documentos. Não raro, encontramos cartas de

artistas, escritores e políticos, como o corpus da Família do ex-presidente da República

Affonso Penna (1906-1909), situado no Arquivo Nacional-RJ, transcrito e editado no trabalho

de Pereira (2012) e também utilizado parcialmente no presente trabalho.

O segundo problema – a disponibilidade de informação sobre os autores das missivas

– é mais acentuado, assim como o anterior, nas classes mais baixas da população. Mantendo a

linha de raciocínio do problema anterior, os indivíduos das classes altas tinham interesse em

preservar seus escritos e, consequentemente, o número de dados disponíveis para pesquisa

acerca dos mesmos é maior; além disso, eram pessoas ilustres, com destaque na sociedade da

época. Logo, haverá mais informações de ordem social para esses autores. Em contrapartida,

os poucos documentos que restaram de indivíduos não ilustres, das classes baixas, trazem

escassos dados biográficos, tornando seus autores praticamente anônimos. O pesquisador que

lida com esses materiais fica restrito às informações do texto. Silva (2012) relata sua

dificuldade de obter dados biográficos sobre o “casal dos anos 1930”:

Essa documentação que serviu de base para esta análise, ao contrário de outros materiais utilizados em estudos linguístico-históricos, não foi localizada em nenhum

acervo ou arquivo de acesso público, e sim recolhido, ao acaso, no lixo, no bairro de

Ramos, subúrbio do Rio de Janeiro. Por essa razão, todos os dados obtidos foram

retirados das próprias cartas a fim de que se fosse possível fazer uma descrição

acerca dos autores das mesmas. (SILVA, 2012, p.43)

Devido à impossibilidade de obter informações através de registros públicos e

arquivos históricos, a descrição do perfil sociolinguístico dos remetentes está

respaldada somente nas missivas. (SILVA, 2012, p.47)

O terceiro e último problema incide diretamente na questão da representatividade da

amostra. Diferentemente da pesquisa em Sociolinguística sincrônica, o sociolinguista

histórico não tem como obter mais dados a partir de novas gravações diretas com outros

informantes da mesma época, com as mesmas características sociais. O trabalho está

reservado ao que literalmente sobrou ao longo do tempo. Isso constitui um forte obstáculo

para os estudos de cunho diacrônico, visto que a quantidade e a qualidade dos textos variam

consideravelmente de um recorte temporal para outro. Souza (2012) analisou a inserção do

pronome você na posição de sujeito através de cartas pessoais, estabelecendo, também, o

período de um século (1870 a 1970) para a análise. A autora relata, ao apresentar os dados

obtidos, a dificuldade concreta para equilibrar sua amostra em todos os períodos:

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Tentamos equilibrar a quantidade de missivas por década, no entanto, esta tarefa não

foi totalmente bem sucedida, devido à dificuldade de encontrarmos o mesmo

número de cartas, com as mesmas características (escritas por moradores do Rio de

Janeiro ou na cidade), durante todo o período de tempo analisado, em especial, na

segunda metade do século XX. (SOUZA, 2012, p.89)

Como bem salienta Souza (2012), é tarefa árdua – por vezes, impossível – obter uma

quantidade razoável de dados cujos informantes possuam as mesmas características

linguísticas e sociais a fim de comparar os dados entre si. Confrontar dados de diferentes

sincronias obtidos de informantes com perfis sociolinguísticos díspares é algo problemático e

pode distorcer os resultados da pesquisa. O pesquisador deve respeitar essas diferenças para

não negligenciar os fatores sociais e externos que interferem nos usos linguísticos.

Não há, infelizmente, soluções definitivas para os problemas aventados. O

sociolinguista histórico precisa formular o melhor caminho para analisar seu objeto de estudo

e tentar amenizar as diferenças e incompletudes em que fatalmente seu corpus histórico

esbarrará. É preciso respaldar-se em diferentes conceitos e princípios no tratamento dos

dados, além de extrair o maior número de informações possível que o corpus permitir. Além

disso, a delimitação do tema precisa ser muito bem pensada, pois se o tema for

demasiadamente específico, há o risco de não se encontrar uma massa de dados relevantes; se

o tema for muito abrangente, a amostra se tornará acentuadamente heterogênea e aumentarão,

com isso, os problemas quanto aos dados extralinguísticos. Baseando-nos nessa orientação,

restringimos a análise das formas variantes dativas de 2ª pessoa do singular às cartas

particulares escritas por cariocas/fluminenses entre as décadas de 1880 e 1980, perseguindo,

assim, uma amostra menos heterogênea e mais equilibrada no que diz respeito aos traços

sociolinguísticos dos informantes.

4.3.3. A correlação entre os fatores linguísticos, históricos e sociais: a emergência de uma

norma brasileira

De maneira global, podemos reduzir os objetivos da perspectiva sociolinguística na

seguinte máxima: identificar os fatores linguísticos e extralinguísticos que aceleram ou

retardam a variação e, principalmente, a mudança linguística. Dentro desse quadro teórico,

elementos de ordem social são vistos como reguladores das inovações que surgem na língua.

Portanto, após identificar os fatores paralelos à variação, cabe ao pesquisador estabelecer

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possíveis correlações, isto é, mostrar de que maneira alterações de ordem histórica e social

podem ter contribuído para propagação de uma variável inovadora no sistema linguístico.

Numerosos estudos acerca do português brasileiro, em particular, os estudos sobre a

mudança no quadro dos pronomes pessoais, apontam a década de 1930 como o período em

que a forma você torna-se mais frequente na posição de sujeito, superando os índices do

pronome tu. Segundo os estudiosos, essa e outras transformações verificadas no português

brasileiro certamente foram condicionadas pelas diversas transformações que a sociedade

brasileira sofreu na virada do século XIX para o século XX. Paul Teyssier (1997), ao tratar

dos aspectos de ordem social no Brasil, comenta uma série de fatos históricos marcantes para

o país:

Independente em 1822, o Brasil vai, naturalmente, valorizar tudo o que o distingue

da antiga metrópole (...). Alemães e italianos chegam em grande número,

principalmente italianos. (...) o tráfico dos negros africanos cessou por volta de 1850, e (...) os índios se diluíram na grande mestiçagem brasileira (...). Em duas

gerações, os novos habitantes aculturam-se e fundem-se na sociedade brasileira. Ao

mesmo tempo, o polo de desenvolvimento desloca-se para o Centro-Sul. Finalmente,

a urbanização e a industrialização transformam inteiramente a aparência do país.

Com a explosão demográfica e o crescimento econômico, o antigo Brasil rural

transformou-se (...) num “subcontinente”, onde zonas desenvolvidas de civilização

urbana coexistem com regiões subdesenvolvidas. (TEYSSIER, 1997, p.96-97)

De fato, em pouco mais de um século, o país deixa de ser colônia de Portugal para se

tornar Império (1822) e República (1889). O centro político, econômico e cultural transfere-se

da Bahia, no nordeste, para o Rio de Janeiro, no atual sudeste. Na virada do século XIX para o

século XX, a sociedade brasileira passa por uma série de transformações que reordenaram as

diferentes relações sociais. Dentre elas, cabe ressaltar a explosão demográfica e a

industrialização, mencionadas por Teyssier, acompanhadas do êxodo rural. Segundo os dados

dos Censos 1900 e 1940 do IBGE, a população do país aumenta, em um intervalo de quarenta

anos, de 17.318.556 para 41.236.315 habitantes.

Os “surtos” de industrialização nas primeiras décadas da República levam uma

massa da população a se deslocar do campo para as cidades, do norte-nordeste para o sudeste

do país. O desenho do espaço urbano é gradativamente remodelado, à medida que os

migrantes se acomodam nas cidades como Rio de Janeiro e São Paulo. A própria escola

brasileira começa a se estruturar, a desenvolver um sistema educacional que atenda – ainda

que precariamente – a população que chega às cidades (FÁVERO, 2009, p. 25).

A história recente do Brasil é profundamente marcada por mudanças que

remodelaram toda a estrutura social do país. Vale lembrar, ainda, que esse período

historicamente efervescente que marca a virada do século XIX para o século XX coincide

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com o surgimento do Brasil enquanto país propriamente dito (LEMOS, 2004, p. 255). País

esse que, ainda no princípio do século XXI, tenta se colocar definitivamente nos trilhos do

desenvolvimento político e econômico. A história é recente porque o país é recente: não

podemos falar em uma sociedade genuinamente brasileira com grande segurança antes do

século XX.

Diante desse cenário, acreditamos que seria um enorme equívoco ignorar essas

transformações históricas e sociais em nosso estudo. A sociedade mudou e, acompanhando-a,

a língua também mudou. Brasileiros e brasileiras de diferentes regiões, com seus diferentes

falares, se encontraram no cenário urbano a partir do século XX e as trocas linguísticas,

certamente, foram inevitáveis. Evidenciamos o desejo de, ao fim das análises acerca dos

dados obtidos a partir das cartas pessoais, conseguir interligar os elementos sociais com as

formas dativas de segunda pessoa estudadas. Esperamos demonstrar que o quadro linguístico

que hoje se apresenta no português brasileiro emerge em consonância com a formação da

sociedade brasileira; em outras palavras, desejamos fornecer, com esse estudo, uma evidência

da norma brasileira que foi sendo construída ao longo de todo o século passado.

4.4. Metodologia

Após a exposição dos pressupostos teóricos de uma pesquisa sociolinguística

histórica, é necessário delinear a metodologia construída para esta dissertação. Enumeramos

nas seções anteriores os problemas enfrentados e as soluções encontradas para os mesmos.

Na presente seção, apresentamos o corpus final utilizado na análise, destacando as fontes das

cartas e os informantes que compõem as dez amostras. Finalizamos a seção comentando a

natureza e a qualidade dos dados obtidos a partir do corpus.

4.4.1. O corpus, suas fontes e informantes

As cartas particulares compiladas para o corpus desta dissertação são marcadas pela

heterogeneidade não só no plano linguístico, mas também no nível social: reunimos nessa

amostra desde documentos escritos por brasileiros ilustres, como o médico e sanitarista

Oswaldo Cruz e o ex-presidente da república Affonso Penna até cartas trocadas por um casal

de noivos, completamente anônimos, cujas cartas foram recolhidas do lixo. Julgamos que essa

diversidade sociolinguística dos remetentes mais engrandece do que problematiza o nosso

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estudo. Os dados obtidos, analisados no próximo capítulo, constroem um verdadeiro mosaico

da representação da 2ª pessoa do singular na posição de complemento dativo. Através deles,

foi possível verificar com clareza a dinâmica incessante das variantes em competição, em

quadros e distribuições que se alteram significativamente ao analisarmos determinado período

e determinada amostra.

Para que fosse possível reunir um número relevante de dados, com informantes

variados, precisamos recorrer a diversas fontes. Utilizamos, basicamente, três fontes

diferentes: Acervos de pesquisa e documentação; Publicações de pesquisadores em obras de

edição; corpora utilizados em teses e dissertações sobre pronomes.

No que se refere à primeira fonte de pesquisa, consultamos dois acervos diferentes: o

Departamento de Arquivo e Documentação (DAD) da Casa de Oswaldo Cruz (COC), situado

na cidade do Rio de Janeiro, e o Corpus Compartilhado Diacrônico (CCD), disponível online

no site do Laboratório de História do Português Brasileiro da Universidade Federal do Rio de

Janeiro20

. No DAD, pudemos ter acesso à série de documentação pessoal do médico Oswaldo

Cruz e sua família. Com a autorização do responsável pelo setor, foi possível fotografar parte

da documentação disponível, posteriormente transcrita, editada21

. Os Acervos Cupertino do

Amaral, Affonso Penna Júnior, Land Avellar e Jayme-Maria “Casal dos anos 30” foram

obtidos por meio do CCD. Na página da internet do Laborhistorico, há 10 amostras

disponíveis para consulta em quatro versões para leitura, além de um léxico de edições:

diplomática (HTML), modernizada (HTML), texto simples original e texto simples

modernizado. Todo o material é fruto do trabalho de transcrição e edição de pesquisadores de

Iniciação Científica, mestrado e doutorado da UFRJ que trabalham com linguística histórica e

história do português brasileiro. Boa parte dos acervos, inclusive, é parte de teses e

dissertações já defendidas, como é o caso do Acervo Affonso Penna Júnior, analisado por

Pereira (2012), e Acervo Land Avellar, estudado por Silva (2012).

Os documentos organizados em publicações, nossa segunda fonte, foram extraídos

de duas obras: A norma brasileira em construção: cartas a Rui Barbosa (1866 a 1899),

organizado pelos professores Dinah Callou e Afranio Barbosa e publicado em 2011; Língua e

Sociedade: A história do pronome “Você” no português brasileiro, da professora Márcia

Rumeu, publicado em 2013. O primeiro título reúne 17 cartas endereçadas ao político e

diplomata brasileiro Rui Barbosa, editadas e disponibilizadas nas versões fac-símile e

diplomático-interpretativa. A obra de Rumeu (2013) consiste na publicação da tese de

20 <http://www.letras.ufrj.br/laborhistorico> 21 Atualmente, as cartas da Família Cruz encontram-se disponíveis na página da web do CCD.

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doutorado da autora, defendida em 2008. No livro, Rumeu apresenta ainda 170 missivas das

Famílias Pedreira Ferraz e Magalhães, editadas pela mesma.

A terceira e última fonte foi extraída dos trabalhos acadêmicos já defendidos que

adotaram como corpus cartas particulares. Conforme já mencionamos, participam desse

conjunto as dissertações de Souza (2012), Pereira (2012), Silva (2012) – disponíveis no site

do Laborhistorico – e a tese de Paredes Silva (1988). As 70 cartas utilizadas na análise da tese

Cartas cariocas. A variação do sujeito na escrita informal estão guardadas nos arquivos

pessoais da professora Vera Lúcia Paredes Silva, que gentilmente nos cedeu para esta

pesquisa22

.

Apresentamos, na sequência, alguns dados biográficos importantes acerca dos

autores das missivas:

i) Acervo Oswaldo Cruz (1891-1915):

Oswaldo Gonçalves Cruz nasceu em 1872, na cidade de São Luís do Paraitinga, no

estado de São Paulo, e formou-se em medicina na Faculdade do Rio de Janeiro. Ficou

internacionalmente conhecido por seus estudos sobre doenças tropicais e introduziu a

medicina experimental no Brasil. Em 1900, fundou o Instituto Soroterápico Nacional,

atualmente conhecido como a Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro. Além da sua

atuação na área médica, Oswaldo Cruz também era ligado à literatura e às artes em geral,

tendo ocupado, inclusive, a cadeira de número 5 da Academia Brasileira de Letras. Foi casado

com Emília da Fonseca, filha de um rico comerciante português. Juntos, tiveram seis filhos:

Elisa, Bento, Hercília, Oswaldo, Zahra e Walter.

A amostra reúne 42 cartas trocadas entre os membros da família do cientista, médico,

bacteriologista, epidemiologista e sanitarista brasileiro. Há documentos de três remetentes: do

próprio Oswaldo Cruz, de sua esposa, Emília Fonseca (tratada por “Miloca” nas cartas), e da

filha mais velha, Elisa (“Lizeta”). Os textos são autógrafos, assinados e relatam, dentre outras

coisas, as inúmeras viagens de Oswaldo Cruz pelo Brasil e pela Europa a trabalho.

Encontramos, também, cartas trocadas pelo casal quando ainda eram noivos. Percebemos com

clareza, ao ler as missivas, que os escreventes adotam um padrão linguístico bastante

conservador, apresentando alto grau de letramento e domínio do registro escrito. Das 42 cartas

analisadas, 27 estão disponíveis no CCD e o restante encontra-se em fase de edição.

22

Como o conjunto de cartas em questão não se encontra alocado em nenhum acervo público e/ou digital

específicos, referimo-nos a ele como “Amostra de Cartas Cariocas – década de 1980”, rótulo criado neste

trabalho.

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ii) Acervo Cupertino do Amaral (1873-1895):

Antônio Felizardo Cupertino do Amaral, nascido em 1852, no Rio de Janeiro, era

filho do Comendador Antônio José Cupertino do Amaral e de Joana Cândida Melo do

Amaral. Formado em Direito pela Faculdade de São Paulo, teve uma vida política bastante

ativa nos últimos anos do Império: oficial de gabinete em 1880, subdiretor da Secretaria de

Negócios do Império em 1887, subdiretor da 3ª Seção da Secretaria de Negócios do Exterior

em 1890, diretor-geral do gabinete da mesma Secretaria em 1891 e secretário de gabinete do

ministro da Justiça e Negócios Interiores entre os anos de 1897 e 1898. Colaborou no projeto

e prontuário do código civil, de Clóvis Bevilacqua, em 1901 e publicou a obra “Sinopse da

legislação brasileira” em 1903. Escreveu, ainda, “Prontuário do Código Civil Brasileiro”,

“Índice do prontuário” e “Apontamento da legislação e Direito Civil”. Faleceu em 1906 no

Rio de Janeiro.

Os documentos originais estão guardados no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro,

sob o título de “Família Antônio Felizardo Cupertino do Amaral”. 35 missivas foram

coletadas por pesquisadores do Laborhistorico, estando disponíveis, atualmente, no CCD 23

documentos. O material consiste em cartas escritas no final do século XIX por Cupertino para

a esposa Elisa e para a filha Marietta, e recebidas por ele de diferentes remetentes, como de

sua mãe Helena, sua prima Anna Espinola e seus amigos Pedro e Alberto Fiacho.

iii) Acervo Affonso Penna Júnior (1896-1926):

A família Penna, oriunda da cidade de Santa Bárbara, no interior de Minas Gerais,

teve como mais membro importante o ex-presidente da república Affonso Augusto Moreira

Penna (1847-1909), que governou o Brasil entre 1906 e 1909. Affonso Penna era graduado

em Direito pela Universidade de São Paulo e foi um dos fundadores da “Faculdade Livre de

Direito” de Minas Gerais, atual Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas

Gerais (UFMG). Casou-se com Maria Guilhermina de Oliveira, sobrinha do marquês do

Paraná, com quem teve nove filhos. Seu filho primogênito, Affonso Penna Júnior

(“Affonsinho”), formou-se em Direito na UFMG (1902), em Belo Horizonte, cidade onde

também integrou grupos literários e cultivou a poesia simbolista. Foi professor de Direito na

mesma Universidade, deputado estadual duas vezes por Minas Gerais e Ministro da Justiça e

Negócios interiores do Brasil, reitor da Universidade do Distrito Federal (RJ), juiz do

Supremo Tribunal Eleitoral e jornalista. Integrou a Academia Brasileira de Letras, ocupando

cadeira número 7. Casou-se com Marieta Germano Pinto Penna, com quem teve sete filhos.

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A amostra é formada por 79 cartas escritas no Rio de Janeiro pela mãe, pai, tia,

esposa, irmãos, primos e amigos de Affonso Penna Júnior. Estão disponíveis no corpus do

CCD, até então, 30 cartas. A maioria das cartas foi escrita por Maria Guilhermina ao filho

Affonso Penna Júnior.

iv) Acervo Land Avellar (1907-1917):

Alarico Land Avellar, nascido em 1882 no município de Vassouras, Rio de Janeiro,

era filho do comerciante e proprietário da Gazeta de Petrópolis, Sr. Júlio César Ribeiro de

Avellar e de D. Helena Land Avellar, e tinha seis irmãos: Eurico, Maria Carolina, Waldemar,

Tito, Edgar e Aluízio. Foi jornalista, Delegado Fiscal junto à Escola Normal Livre de

Petrópolis e Diretor Secretário da Rede Ferroviária Federal. Casou-se com Rita Morgado

Avellar. Sem deixar descendentes, faleceu no Rio de Janeiro em 1977, vitimado de

pneumonia.

Grande número de cartas dessa família tem como remetente a mãe de Alarico,

Helena Land Avellar, que escreve sobre sua rotina em Petrópolis, problemas familiares e

questões financeiras. Há também cartas do filho para a mãe, nas quais ele fala de negócios e

da vinda dela para a cidade. Alarico escreve, ainda, ao pai, Julio Avellar, e aos irmãos Eurico,

Waldemar e Maria Carolina (“Chuchinha”). O assunto principal das cartas destinadas ao pai é

o irmão Waldemar, que só lhe escreve para falar de problemas. A amostra constitui-se de 29

cartas, disponíveis no site do CCD. Os originais manuscritos estão armazenados no Arquivo

Nacional/RJ.

v) Acervo Jayme-Maria “Casal dos anos 30” (1936-1937):

As missivas do casal Jayme e Maria foram editadas por Silva (2012), que propõe

alternativas digitais metodológicas para traçar o perfil sociolinguístico de remetentes. Os

documentos pertencem a indivíduos não ilustres, associados a segmentos sociais mais baixos,

e que, infelizmente, contêm dados biográficos escassos, o que torna seus autores praticamente

anônimos. Todos os dados biográficos disponíveis foram extraídos das próprias cartas.

Jayme Saraiva e Maria Ribeiro eram pessoas comuns, não ilustres: ele era residente

do bairro de Ramos, na área do subúrbio do Rio de Janeiro e trabalhava no centro da cidade

da antiga capital federal; ela morava em Petrópolis e era mãe solteira de uma menina,

chamada Hilda. Ambos moravam com seus pais; a mãe de Jayme não gostava de Maria, e isso

impedia o casal de se encontrar com frequência. Os encontros costumavam acontecer,

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secretamente, na Igreja da Penha, aos domingos (Maria era muito religiosa) ou na Rua

Uruguaiana, próximo ao trabalho de Jayme.

Ambos, apesar de serem alfabetizados, detinham pouco domínio da cultura letrada

(Jayme possuía, aparentemente, maior domínio da norma culta escrita, talvez em razão de

trabalhar com comércio, o que gerava maior contato com a língua escrita, diferentemente de

Maria, que estava restrita às tarefas do lar). A amostra é formada por 96 missivas, sendo 66 do

noivo e 30 da noiva. Estão disponíveis no CCD 42 cartas, já transcritas e editadas, sendo 23

do Jayme e 19 da Maria.

vi) Acervo Família Pedreira Ferraz-Magalhães (1879-1948):

João Pedreira do Couto Ferraz (Conselheiro Pedreira, Dr. Pedreira ou Pai Pedreira) é

o patriarca da família, nascido em 1826, no Rio de Janeiro. Bacharel em Direito pela

Academia de Olinda (1848), foi nomeado Moço da Câmara pelo Imperador Dom Pedro II,

tendo sido promovido, posteriormente, a Veador da Casa Imperial. Chegou à função de

Secretário do Supremo Tribunal Federal, exercendo tal cargo por mais de 50 anos. Casou-se

em 1856 com Elisa Amália de Oliveira Bulhões, logo em seguida, foi morar no morro Inglês

(bairro do Cosme Velho atualmente). Depois de alguns anos, o casal mudou-se para o Alto da

Boa Vista (Tijuca), local onde criou os seis filhos: Maria Teresa, Zélia, João, José, Antonio,

Guilhermina. Além de se corresponder com filhos e netos, o Dr. Pedreira também escrevia

para o genro, Jerônimo de Castro Abreu Magalhães, casado com sua filha Zélia. Desse casal é

que se formou a família Pedreira Ferraz-Magalhães.

Jerônimo Magalhães, nascido em 1851, na cidade de Magé (RJ), foi levado para

Portugal por seu pai após o falecimento de sua mãe, onde foi criado por uma tia materna.

Estudou no Colégio dos Nobres em Lisboa e cursou Humanidades na Alemanha. Após se

formar, Regressou ao Brasil. Em 1875, cursou Engenharia Civil, e, devido a isso, foi nomeado

lente catedrático da Escola de Minas, de Ouro Preto pelo Imperador. Casou-se com Zélia

Pedreira de Abreu Magalhães em 1876. Dessa união, nasceram treze filhos: Maria Elisa,

Maria Rosa, Maria Leonor, Maria Bárbara, Maria Teresa, Maria Joana, Maria Amália, Maria

de Lourdes, Jerônimo, Francisco José, Fernando, João Maria e Luis – dos quais faleceram

ainda na infância os filhos Maria Teresa, Maria de Lourdes, Francisco José e Luís.

As missivas versam, em geral, sobre a saudade que sentiam, já que os filhos de Zélia

tornaram-se religiosos, o que tornava a distância algo constante na família. Outro assunto

tratado nos textos dos irmãos é o falecimento dos pais, Jerônimo e Zélia; apesar de estarem

ausentes quando a mãe faleceu, eles decidiram escrever uma biografia sobre a mãe, retratando

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a devoção que ela tinha por sua família e pela religião. Das 170 cartas – cujos originais estão

no Arquivo Nacional do RJ – coletadas e editadas por Rumeu (2008), 33 encontram-se no site

do CCD23

.

vii) Cartas a Rui Barbosa (1893-1895):

Como já adiantamos anteriormente, a amostra de “Cartas a Rui Barbosa” foi extraída

do livro A norma brasileira em construção: cartas a Rui Barbosa (1866 a 1899), organizado

por Callou e Barbosa (2011) e que reúne 17 cartas endereçadas ao político e diplomata

brasileiro Rui Barbosa. Dentre elas, encontram-se 6 missivas de Carlos Nunes de Aguiar, as

quais integramos ao corpus.

Carlos Nunes de Aguiar nasceu no Rio de Janeiro em 1844. Foi major, coronel,

Presidente de “A Imprensa” e Vice-presidente do Clube Frontão Brasileiro. Escrevia ao

amigo, Rui Barbosa, dando notícias sobre sua vida, sua família e sobre a família de Barbosa

no período em que este se encontrava exilado em Haia, na Holanda, e em Campinas. Carlos

informava também sobre assuntos particulares, seus negócios e os de Rui Barbosa,

principalmente sobre a casa desta, situada na Rua São Clemente, no bairro de Botafogo (RJ).

Além disso, suas cartas tratam da situação geral do Brasil, sobretudo do cenário político da

época (1894-1895). Fala, ainda, da imprensa no Rio de Janeiro, das barbaridades que

ocorriam no tempo do então presidente da república Floriano Peixoto, da situação dos

frontões e da repercussão na cidade do Rio de Janeiro.

viii) Cartas da Família Brandão (1972-1973):

Francisco de Carvalho Soares Brandão Neto nasceu em 1904 no Rio de Janeiro.

Graduou-se pela Faculdade de Direito do Rio de Janeiro na primeira turma de bacharéis da

Universidade do Rio de Janeiro; foi promotor e subprocurador fiscal de São Paulo. Anos

depois, advogou para a Caixa Econômica do Rio de Janeiro, onde se casou com Maria

Martins Penna, não deixando descendentes. Associado ao Colégio Brasileiro de Genealogia,

dedicou-se aos estudos genealógicos, vindo a escrever o livro Glorioso passado – documento

histórico. Para elaborar a obra, Brandão Neto contou com o auxílio de um grande amigo,

Heitor Lyra, secretário de embaixada e embaixador do Brasil em Ottawa, em Lisboa e no

Vaticano.

23 Em Rumeu (2013), estão disponíveis todas as cartas da família, editadas e reunidas em um CD-ROM que

acompanha a obra impressa.

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A amostra é composta por 13 cartas redigidas por Brandão Neto e destinadas ao

embaixador Lyra. Os documentos originais estão guardados no Arquivo Nacional/RJ e, até o

momento, ainda não foram disponibilizados no corpus do CCD (os mesmos encontram-se em

fase de edição). Os assuntos das missivas relacionam-se à genealogia da família Soares

Brandão, visto que Heitor Lyra era um grande especialista em História e Genealogia,

chegando a chefiar, inclusive, o Instituto Histórico Brasileiro e o Instituto Genealógico

Brasileiro.

ix) Acervo Família Lacerda (1977-1979):

A amostra da Família Lacerda é um material que chegou recentemente ao

Laborhistórico/UFRJ, cedido por membros da referida família e que ainda está em fase de

edição. Trata-se de uma família natural de Minas Gerais que, posteriormente, passou a residir

na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro. A maioria das cartas foi escrita no período em que

uma das filhas do casal estudou no Rio e, posteriormente, nos Estados Unidos. Embora seja

um precioso material de uma fase na qual começavam a emergir outros meios de

comunicação – como o telefone, por exemplo – não utilizamos, na constituição do corpus,

cartas de remetentes mineiros24

.

Dessa amostra, analisamos 12 cartas escritas por um amigo carioca da filha dos

Lacerda, com quem ela manteve um relacionamento afetivo durante o tempo em que estudou

no Rio de Janeiro. O rapaz escreveu as cartas no período em que a moça estava nos Estados

Unidos. Dentre outras coisas, ele pede notícias dela, interessa-se em saber se ela estava

gostando de alguém de lá, relata sua rotina de graduando em medicina e, muito discretamente,

fala dos seus sentimentos por ela. As missivas são marcadas por um tom jovial, predominando

assuntos descontraídos tratados com bom humor.

x) Acervo de Cartas Cariocas – década de 1980:

As 70 cartas que constituem a amostra de “Cartas Cariocas – década de 1980” não

estão disponíveis em nenhum corpus ou arquivo público. Elas foram gentilmente emprestadas

pela professora Vera Lúcia Paredes Silva, que controlou com extremo rigor sociolinguístico

as informações relativas aos informantes. A amostra é formada por 42 informantes, todos

cariocas, embora residissem em bairros diferentes da cidade do Rio de Janeiro. Paredes Silva

24

O subsistema de referência à 2ª pessoa do singular utilizado em Minas Gerais é diferente do subsistema

carioca, sendo o pronome você a forma exclusiva na posição de sujeito (cf. LOPES & CAVALCANTE, 2011,

p.37-39).

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(1988) organizou-os segundo os critérios de faixa etária (jovens e adultos), escolaridade (a

maioria possuía ensino superior completo), sexo (dos 42 informantes, 18 eram do sexo

masculino e 24 do sexo feminino) e destinatário (a maior parte das cartas foi remetida a um

destinatário feminino).

A amostra de Paredes Silva (1988) foi integralmente obtida através de alunos e ex-

alunos da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) e são marcadas por

um grau de relacionamento bastante estreito entre os correspondentes, haja vista que, ou eram

parentes, ou amigos íntimos. Além disso, a maioria das cartas faz parte de uma

correspondência mantida regularmente naquele período, o que atribui ao texto das missivas

um caráter coloquial tanto no estilo quanto na temática.

O Quadro 4.2, a seguir, sintetiza as informações principais descritas anteriormente:

Título da amostra/família e período Nº de documentos

analisados

Fonte

Oswaldo Cruz

(1891-1915)

42 DAD – FioCruz

Cupertino do Amaral (1873-1895)

23 CCD

Affonso Penna Júnior

(1896-1926)

30 CCD

Land Avellar

(1907-1917)

44 CCD

“Casal dos anos 30”

(1936-1937)

58 CCD

Família Pedreira Ferraz – Magalhães

(1879-1948)

20 Rumeu (2013)

Cartas a Rui Barbosa (1893-1895)

5 Callou & Barbosa (2011)

Cartas Família Brandão

(1972-1973)

13 Souza (2012)

Amostra de Cartas Cariocas

(1979-1985)

71 Paredes Silva (1988)

Acervo Família Lacerda

(1977-1979)

12 CCD

Quadro 4.2. Corpus analisado e suas fontes

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4.4.2. Os dados

O controle quantitativo dos dados foi o parâmetro adotado para estabelecer um

equilíbrio na amostra. Estipulamos, para cada quarto do século analisado25

(1880-1980), a

média de 200 dados. Isso justifica, por exemplo, a maior ou menor quantidade de cartas e/ou

informantes de determinada amostra em certo período.

Após a leitura dos materiais documentais, destacamos os trechos que continham o

fenômeno em análise e os transcrevíamos em um arquivo de dados. Depois do levantamento,

as ocorrências foram etiquetadas com a codificação dos grupos de fatores elaborados para esta

pesquisa. Em seguida, submetemos os dados codificados ao programa estatístico

GOLDVARB-X, a fim de que pudéssemos obter as frequências das variantes segundo cada

um dos grupos de fatores.

A quantidade de dados obtida por carta não apresentou regularidade; houve cartas

das quais extraímos um número entre 10 a 15 dados – quantidade notável para um fenômeno

morfossintático tão específico –, enquanto outras renderam apenas 2 ou 3 (excetuando-se as

cartas sem nenhuma ocorrência). Essa proporção também não estava vinculada ao tamanho da

carta, isto é, ao número de fólios, pois várias cartas de 2 ou 3 fólios renderam muito mais

ocorrências de estratégias dativas do que outras com 6, 8 e mesmo 10 fólios.

Os fatores que se mostraram determinantes para o aparecimento ou não dos dados

nas cartas são de ordem discursiva: o tema/assunto abordado pelo remetente (íntimo, familiar,

social, político etc); o tom adotado pelo remetente (amigável, repressivo, autoritário,

romântico); a implicação ou não do outro na cena discursiva, isto é, em cartas cujos assuntos

restringiam-se a falar do remetente e do destinatário encontramos mais estratégias dativas de

2P do que naquelas cujos assuntos englobavam terceiros.

4.5. Conclusão do capítulo

Em síntese, abordamos, no presente capítulo, os pontos-chave da discussão em torno

da pesquisa sócio-histórica, destacando, principalmente, a constituição de corpora

diacrônicos, os informantes de sincronias passadas, a representatividade e a validade empírica

dos dados históricos. Elencamos, também, O Princípio do Uniformitarismo, a História Social,

25 Cabe destacar que os anos de 1880 e 1980, que vêm sendo mencionados até aqui e serão referenciados nas

páginas seguintes, não devem ser tomados como um recorte cronológico preciso, haja vista que analisamos

cartas de anos um pouco anteriores a 1880 e posteriores a 1980. Referimo-nos à diacronia analisada por essas

datas procurando ressaltar, na realidade, as décadas que a envolvem.

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o estilo e a reconstrução do contexto de produção como ferramentas importantes para o

desenvolvimento do trabalho em sociolinguística histórica. Com base no corpus utilizado na

pesquisa, discutimos as vantagens e desvantagens de se trabalhar com cartas pessoais, tendo

em vista a natureza das fontes documentais, o perfil histórico dos remetentes e a

representatividade da amostra para o período estudado. Na última seção do capítulo,

explicitamos nossa metodologia de pesquisa, o corpus adotado, suas fontes e informantes, a

natureza e a qualidade dos dados levantados para a análise.

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5. DESCRIÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS

Após todas as considerações de ordem teórica e metodológica feitas no capítulo

anterior, cabe, agora, apreciar os dados levantados para esta pesquisa com o intuito de analisar

as frequências e a distribuição das formas variantes de complemento dativo de 2ª pessoa na

escrita epistolar de cariocas e fluminenses entre as décadas de 1880 e 1980. Para tanto,

organizamos o presente capítulo de descrição e análise dos dados da seguinte maneira: na

primeira seção, as formas variantes de dativo encontradas no corpus serão apresentadas e

comentadas, bem como os grupos de fatores linguísticos e extralinguísticos elaborados para a

análise variacionista; em seguida, expomos os resultados globais, com as frequências

registradas de todas as variantes localizadas no corpus; depois, analisamos os resultados

relativos aos fatores estruturais e sociais controlados; por fim, apresentamos resultados de

rodadas binárias, opondo a forma mais frequente te às demais estratégias identificadas para a

identificação dos ambientes considerados mais favoráveis ao uso do clítico dativo te.

Os valores mostrados foram calculados pelo programa estatístico GOLDVARB–X.

Distribuímos tais valores entre tabelas e gráficos, adotando a forma de apresentação mais

elucidativa do que queremos demonstrar. Todos os exemplos dados foram retirados do corpus

em análise.

5.1. As variantes de dativo e os grupos de fatores

No âmbito da representação pronominal da 2ª pessoa do singular, os complementos

dativos encontrados no corpus apareceram sob a forma dos clíticos te e lhe, dos sintagmas

preposicionados a ti, para ti, a você e para você. Além desses, houve ainda o dativo nulo, sem

realização fonética, porém inferível pela estrutura argumental do verbo. Em outras palavras,

todas as estratégias de realização possíveis para a posição sintática de dativo foram

verificadas no material em questão. Em (48), seguem exemplos da ocorrência de cada uma

dessas estratégias no corpus:

(48)

a. “Não te conto a maior, quero dizer te conto sim. Teu pai me chamou para voltar à sua

casa quando eu pudesse.” [02-08-1978]

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b. “Eu não apressei-me em escrever lhe falando no seu novo despacho porque a falar a

verdade não fiquei contente com o lugar que lhe deram (...).” [14-11-1874]

c. “Fora o que já ø contei, não tenho feito nada de extraordinariamente interessante.” [08-

05-1983]

d. “(...) diz-se que Você é quem influe para que a revolução continue, enfim attribuem a ti

tudo, nunca vi maior injustiça, espero que tudo isto desapareça e que venha a verdade.”

[25-04-1894]

e. “São 11 horas preciso dormir, se não fosse isso seria capaz de ficar a noite toda

escrevendo para ti, dizendo tudo quanto sinto por ti, porque quando estou junto de ti a

emoção embarga-me a voz, faz-me fugir as palavras, e fico mudo.” [02-03-1937]

f. “Maria e eu enviamos um afetuoso abraço a Yolanda e a você.” [04-04-1972]

g. “Bia vou mandar prá você, como presente de aniversário, uma fita do grupo ‘Balão

Mágico’. Espero que você a curta bastante, ok?” [24-10-1985]

No que se refere aos grupos de fatores, elaboramos para a análise dos dados oito

grupos, sendo quatro de natureza linguística e quatro de natureza extralinguística. São eles: a

forma pronominal utilizada na posição de sujeito, o tipo de verbo quanto à estrutura

argumental, as categorias distintivas quanto ao valor semântico do verbo, a forma do objeto

direto, o período de tempo, o subgênero de carta particular, a seção da carta e a amostra do

corpus na qual o dativo ocorreu. Vejamos a composição de cada grupo de fatores, seus

objetivos e hipóteses:

i) A forma pronominal utilizada na posição de sujeito tem como objetivo traçar um

paralelo entre o sistema de 2ª pessoa predominante na posição de sujeito e as formas do

complemento dativo, a fim de verificar se há ou não correlação no uso das estratégias

nessas duas posições sintáticas. O principal intuito é mostrar a artificialidade da

“uniformidade de tratamento” prevista na descrição gramatical para o PB. As

possibilidades previstas por este grupo foram propostas em Lopes e Cavalcante (2011):

remetentes com uso exclusivo do pronome tu como sujeito em uma mesma carta,

remetentes com uso exclusivo de você como sujeito em uma mesma carta, remetentes

com mescla de tratamento entre tu e você em uma mesma carta, além dos remetentes com

uso de outras estratégias de referência à segunda pessoa (senhor, por exemplo). Esse

controle tenta mostrar a variação dos paradigmas de 2P empregados no PB a partir da

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observância dos três principais subsistemas de tratamento discutidos em Lopes e

Cavalcante (2011): i) tu exclusivo; ii) você exclusivo; iii) tu e você (subsistema misto). A

hipótese desse grupo de fatores é que apenas o uso do clítico te não seria condicionado

pelas formas na posição de sujeito, visto que este apresenta uma produtividade

significativa nos contextos de mescla de tratamento e mesmo nos contextos com uso

exclusivo de você.

(49) Subsistema I: Somente tu na posição de sujeito: “Eu soube que tu vinhas do dia 4 de

Setembro. Ø pediste que tua mãe foste26

te buscar (...)” [24-09-1936]

(50) Subsistema II: Somente você na posição de sujeito: “Não fique triste, porque não

mandei nenhuma foto para você. É que eu não tive tempo de escolher quais você poderia

querer, nem tive tempo de pensar em quais que eu gostaria que você mandasse para

mim.” [08-05-1983]

(51) Subsistema III: Variação entre tu~você na posição de sujeito: “Nunca Você me

respondeu sobre a casa de Petropolis, que resolveram? O que me toca, pedi que o Padre

Jerony-mo ponha com o d’elle, até que eu peça. (...). Não te Ø imaginas a penna que tive

de não poder Jeronynho vir até aqui.” [18-01-1920]

(52) “Penso (...) que o Senhor deve também prevalecer-se da moratória e não pagar, pois já

consultei o nosso advogado e é ele desta opinião.” [19-08-1914]

ii) O tipo de verbo quanto à estrutura argumental objetiva verificar se haveria

condicionamento da estrutura predicativa do verbo sobre o uso das variantes dativas; em

outras palavras, queremos investigar, com esse grupo, se o fato de o verbo projetar dois ou

três lugares (des)favorece o aparecimento das estratégias clíticas, por exemplo. Por hipótese,

acreditamos que os clíticos sejam mais recorrentes entre os verbos de três lugares, devido à

presença do objeto direto.

- Verbos de 2 lugares com argumento interno indireto: SU V OI 27

(53) “Se as condições financeiras o permitirem, é claro que eu te telefonarei.” [??-07-1983]

26

Interpretamos o vocábulo “foste” como um caso de hipercorreção para “fosse”, mais coerente com o contexto

em que aparece. 27 SU= Sujeito; V= Verbo; OI= Objeto Indireto

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“pro-curei o famoso Ramos, (...) mostrou se muito penalizado, disendo-me que deseja

muito lhe servir etc. etc.” [25-04-1894]

- Verbos de 3 lugares com argumento interno indireto ou ditransitivos: SU V OD OI

(54) “De qualquer forma vou tentar te dar um número de telefone onde, em agosto,

poderemos nos falar.” [??-07-1983]

iii) A categoria distintiva quanto ao valor semântico do verbo foi um grupo de fatores

pensado a partir da tipologia para os dativos em português proposta por Berlinck (1996, 2005)

e já referida na presente dissertação no capítulo 2. Este grupo tem o intuito de observar se a

semântica do verbo predicador é um fator condicionador de uso das diferentes formas

estratégias de dativo. A hipótese aqui aventada é de que os verbos com a noção de

transferência – prototípica para o dativo – vinculem-se mais fortemente às formas mais

produtivas, ao passo que as formas de ocorrência mais restrita se encaixem, na representação

do dativo, a outras noções semânticas.

(55) Transferência material: “Papai comprou ontem á noite um título do Pro-English, não

sei se você lembra, antes de você viajar vinham aqui em casa te oferecer um negócio

deste.” [28-09-1980]

(56) Transferência verbal e perceptual: “Contente que estou, resolvi fazer uma forcinha e

escrever a voce esta coisa que se propõe a ser carta”

(57) Movimento físico: “Assim que chegar a Paris vou dar immediato cumprimento a tua

promessa e levar-te-ei uma imagem da N. D. des Victories” [24-12-1907]

(58) Movimento abstrato: “tu sabes perfeitamente que eu dediquei todo o meu amor a você”

[19-01-1937]

(59) Interesse: “Quero (...) que voce tome muito cuidado com tudo o que vá te acontecer ai.”

[02-08-1978]

(60) Movimento: “Tenho guardado todos os jornais, o ISTOÉ e outros bagulhos que lhe

chegam.” [28-05-1983]

(61) Movimento psicológico: “Uma notícia que muito vai te agradar é esta hoje vou encher

a proposta para o mês que vem entrar para a linha de tiro.” [25-09-1936]

iv) A forma do objeto direto presente nos verbos de três lugares foi controlada com o objetivo

de analisar se a manifestação desse complemento como clítico, sintagma (nominal,

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pronominal ou oracional) ou objeto nulo interfere na forma do dativo28

. Nossa hipótese é que

há interferência da manifestação de um objeto sobre o outro, principalmente quando o OD é

um clítico; diferentemente do PE, o PB rejeita contrações do tipo “Dei-to”. Além disso, se a

estratégia de realização do OD é uma forma “pesada” – um sintagma oracional, por exemplo

– a concretização do dativo se daria por outra mais “leve” (um clítico, por exemplo).

(62) OD = Sintagma Nominal: “Prometo que na próxima carta, mando umas fotos para

você”. [08-05-1983]

(63) OD Oracional: “Ontem à noite te prometi que iria hoje à casa de Dona Arminda,

porém veja, meu bem, que minha dignidade manda que eu lá não vá (...)” [21-10-1889]

(64) OD = clítico: “Todo o Trabalho que tiveste, que deve ter sido muito grande a julgar pela

correção da biografia do [Padre Pio]. Esta ainda não apareceu; espero enviar-t’a este mês

e escrever ao Frei Inacio”. [14-06-1933]

(65) OD nulo: “fui obrigada a desprendê-la na compra de uma mesa devendo então pagar-te ø

no fim do mês; caso essa quantia não te faça falta.” [19-02-1913]

v) O subgênero de carta particular diz respeito a dois aspectos importantes para o estudo da

variação pronominal: a temática predominante nas epístolas e o grau de intimidade entre

remetente e destinatário. Percebemos que, dentro da amostra de cartas particulares havia

subgêneros aos quais atribuímos os seguintes rótulos: a) cartas pessoais, trocadas geralmente

entre amigos, em que geralmente havia pouca intimidade entre remetente e destinatário, com

temáticas variadas; b) cartas familiares, trocadas entre membros de uma mesma família,

geralmente enviando ou solicitando informações sobre os entes comuns, tratando de assuntos

ou negócios familiares ou pedindo favores; nessas cartas, há um grau de intimidade mediano,

pois, apesar da proximidade familiar, prevalecem relações interpessoais assimétricas (pais e

filhos, tios e sobrinhos etc); c) cartas amorosas, trocadas entre casais de namorados, noivos

ou amantes, em que predomina uma temática afetivo-emocional, tratando do relacionamento

amoroso em si, com elevado grau de intimidade (SILVA, 2012, p. 42). Sendo assim,

objetivamos, com esse grupo de fatores, examinar se os subgêneros arrolados exercem

influência na escolha das formas de dativo feita pelos remetentes. Por hipótese, supomos que

as cartas amorosas favorecem o uso de formas relacionadas ao pronome tu – os sintagmas a ti

e para ti, principalmente – já que traz consigo um traço lírico-romântico típico do discurso

28 Evidentemente, houve a preocupação em separar os dados de dativo encontrados com os verbos de dois

lugares. Neste grupo de fatores, os dados foram marcados com a etiqueta “não se aplica”.

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amoroso. Além disso, acreditamos que o clítico lhe apareça quando há menor grau de

intimidade entre remetente e destinatário, portanto, nas cartas pessoais.

vi) A seção da carta foi o segundo grupo de fatores extralinguísticos controlados na pesquisa.

Partimos do princípio de que o gênero carta particular constitui uma tradição discursiva29

(KOCH, 1997; KABATEK, 2006) e, devido a isso, apresente fórmulas fixas, construções

cristalizadas – principalmente nas saudações inicial e final. Tais fórmulas fixas podem atuar

favorecendo, isto é, preservando determinadas formas dativas. A partir disso, optamos por

dividir a estrutura das cartas em cinco seções frequentemente presentes (saudação inicial com

captação de benevolência30

, núcleo, seção de despedida, post-scriptum e outras diferentes

destas) e marcar em qual dessas seções cada dado de complemento dativo ocorreria.

Afirmamos, por hipótese, que as seções inicial e final constituam, de fato, fórmulas

cristalizadas de cumprimentos e despedidas e que, por isso mesmo, cristalizem o uso de

determinadas variantes. Abaixo, apresentamos exemplos das seções mencionadas, extraídos

de uma carta escrita por Emília Fonseca, destinada ao esposo, o médico Oswaldo Cruz:

(66) Saudação inicial com captação de benevolência: “Morta de saudades te escrevo estas

linhas para saber se te succede o mesmo. Felizmente estamos todos bons e Bentinho

afflicto para descer.” [17-10-1899]

(67) Núcleo da carta: “Eu procuro me distribuir o mais possivel para não me lembrar que

estas longe de mim! De dia coso muito, e de noute deito-me o mais cedo possivel. (...)

Papae disse que quando quizeres o cavallo é só dizer na venda do Dyonisio que elle

mandará o recado para cá” [17-10-1899]

(68) Seção de despedida: “Adeus, Oswaldo recebe mil beijos e abraços d’esta que mais que

nunca te estima e adora” [17-10-1899]

29 “Entendemos por Tradição Discursiva (TD) a repetição de um texto ou de uma forma textual ou de uma maneira particular de escrever ou falar que adquire valor de signo próprio (portanto é significável). Pode-se

formar em relação a qualquer finalidade de expressão ou qualquer elemento de conteúdo, cuja repetição

estabelece uma relação de união entre atualização e tradição; qualquer relação que se pode estabelecer

semioticamente entre dois elementos de tradição (atos de enunciação ou elementos referenciais) que evocam

uma determinada forma textual ou determinados elementos linguísticos empregados.” (KABATEK, 2006, p.

512) 30

“Trata-se de uma seção relativamente fixa no gênero carta que ocorre no início da correspondência e serve

para estabelecer o contato inicial entre remetente e destinatário antes mesmo de introduzir o assunto principal da

carta.” (LOPES, 2011, p.365)

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(69) P.S.: “P.S. Papae esteve hoje com o Hilario De Gouveia elle perguntou muito por voce e

disse que ia te nomear para uma comissão contra a tuberculose e que pedia a voce para

acceitar e apparecer. Elle parte para a Europa no dia 26 d’este mez” [17-10-1899]

vii) O período de tempo tem, como objetivo geral, distribuir as ocorrências do corpus ao

longo dos períodos em que as cartas foram produzidas. Além disso, queremos observar

diacronicamente o comportamento da variação no século estudado. Para esse grupo de fatores,

tomamos por hipótese que o clítico te seja a variante mais produtiva em todos os períodos,

com percentuais relativamente estáveis, diferentemente das demais variantes, cujas oscilações

de frequência seriam mais acentuadas. Diante disso, dividimos o período em questão em

quartos de século, a saber:

- 1º período (1880-1905);

- 2º período (1906-1930);

- 3º período (1931-1955);

- 4º período (1956-1980).

viii) Decidimos também codificar os dados segundo a amostra do corpus de onde foram

extraídos. Julgamos importante saber a procedência de cada forma de dativo a fim de desfazer

aparentes incongruências nos resultados; por vezes, resultados destoantes do conjunto (ou do

esperado) só podem ser explicados a partir das características individuais dos missivistas,

dada a forte heterogeneidade de ordem sócio-histórica existente entre os informantes das

cartas. Embora não haja uma hipótese objetiva para este grupo, como apresentamos para os

demais grupos, acreditamos que, não raro, aspectos de ordem social (grau de domínio sobre os

modelos de escrita, categoria social a que pertence o indivíduo, círculo de convivência social

etc) irão interferir na frequência e na regularidade de uso das variantes. Listamos, a seguir, as

referidas amostras, já apresentadas no Quadro 4.2 do capítulo anterior:

- Acervo da Família Cruz (1891-1915);

- Acervo Cupertino do Amaral (1873-1895);

- Acervo Afonso Penna Jr. (1896-1926);

- Acervo Land Avellar (1907-1917);

- Acervo Jayme e Maria “Casal dos anos 30” (1936-1937);

- Acervo da Família Pedreira Ferraz-Magalhães (1879-1948);

- Amostra de Cartas a Rui Barbosa (1893-1895);

- Acervo da Família Brandão (1972-1973);

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- Amostra de Cartas cariocas – década de 1980 (1979-1985);

- Acervo da Família Lacerda (1977-1979).

Apresentados os grupos de fatores, passemos à apreciação dos resultados obtidos

nesta pesquisa:

5.2. Resultados gerais

Dos 318 documentos analisados, obtivemos um total de 811 ocorrências de

complemento dativo com referência à 2ª pessoa do singular. No Gráfico 5.1, expomos a

distribuição das variantes em estudo.

Gráfico 5.1. Percentual de ocorrência das variantes dativas

nas cartas cariocas e fluminenses (1880-1980)

Como podemos observar, no gráfico 5.1, mais da metade dos dados de complemento

dativo corresponde ao clítico te: 464 das 811 ocorrências levantadas no corpus, o que

representa 57,2% da amostra. A segunda variante mais frequente foi o objeto nulo, com

22,3% (181 dados). O clítico lhe é a terceira forma mais produtiva, correspondendo a 11,3%

das ocorrências (92 dados). Dentre as variantes de sintagma preposicionado, nenhuma atingiu

5% da amostra; contabilizamos 3,4% de para você (28 dados), 2,7% de a ti (22 dados), 2,6%

de a você (21 dados) e 0,4% de para ti (3 dados).

Observadas as frequências totais de ocorrência das variantes, passemos à distribuição

das mesmas de acordo com os grupos de fatores linguísticos e extralinguísticos controlados:

57,2% 22,3%

11,3%

2,7% 0,4% 2,6%

3,4% te

zero

lhe

a ti

para ti

a você

para você

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- A forma pronominal utilizada na posição de sujeito

A Tabela 5.1 apresenta a distribuição das formas dativas correlacionando-as ao

tratamento de 2P utilizado na posição de sujeito. Na primeira coluna, indicamos o tratamento

empregado numa mesma carta como sujeito: somente tu, somente você, tratamento variável

de tu e você na posição de sujeito e outras formas tratamentais de 2P (o/a senhor/a). Nas

demais colunas são apresentadas as formas dativas variantes identificadas em cada subsistema

de tratamento. Os percentuais de frequência estão apresentados horizontalmente:

Te zero Lhe a ti para ti a você para você TOTAL

Somente

Tu

194

78,5%

35

14,2%

1

0,4%

12

4,9%

2

0,8%

2

0,8%

1

0,4%

247

30,4%

Tu e Você 184

70,2%

50

19,2%

7

2,7%

9

3,4%

1

0,4%

3

1,1%

8

3,0%

263

32,4%

Somente

Você

85

30,9%

80

29,1%

75

27,3%

1

0,4%

-

-

16

5,8%

18

6,5%

275

33,9%

Outras

Formas

1

3,7%

16

59,3%

9

33,3%

-

-

-

-

-

-

1

3,7%

27

3,3%

TOTAL 464

57,2%

181

22,3%

92

11,3%

22

2,7%

3

0,4%

21

2,6%

28

3,4%

811

100%

Tabela 5.1. Correlação entre o tratamento na posição de sujeito

e as estratégias utilizadas como complemento dativo

A tabela confirma a hipótese em relação a esse grupo de fatores: praticamente todas

as estratégias de sintagma preposicionado assim como o clítico lhe são condicionadas pelo

tratamento empregado na posição de sujeito. Apesar da baixa recorrência, 14 dos 25 dados de

a ti e para ti ocorreram no contexto previsto, isto é, em cartas nas quais o missivista utilizou

exclusivamente o pronome tu na posição de sujeito. Identificamos o mesmo resultado para as

variantes a você e para você: juntas, totalizaram 49 ocorrências e, destas, 34 foram retiradas

de documentos cujo tratamento na posição de sujeito era o você. As cartas com esse tipo de

tratamento também foram as que mais registraram dados do clítico lhe, correspondendo a 75

das 92 ocorrências dessa variante. Abaixo, seguem exemplos dessas variantes:

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(70) Sujeito tu exclusivo – dativo a ti: “Papai, Mamãe e Sinharinha mandam muitas

lembranças a ti e a tua boa mãe a quem eu peço que me recomendes muito.” [19-04-

1891]

(71) Sujeito tu exclusivo – dativo para ti: “Peço-te que te não entristeças com a minha

ausencia que será, está certa, a mais curta possivel. Passeia o mais possivel, compra

cousas para ti, aproveitando os saldos d’agora Não deixes de ir com os pequenos ver os

fantasmas tão falados.” [08-01-1915]

(72) Sujeito você exclusivo – dativo a você: “(...) resolvi fazer uma forcinha e escrever a voce

esta coisa que se propõe a ser carta, que apesar de terrivel e maçante voce não vai jogar

fora e vai me perdoar pois uma coisa que não sei fazer, além de andar de skate, é

escrever.” [30-01-1977]

(73) Sujeito você exclusivo – dativo para você: “(...) vou me despedindo, mandando mil

beijos para você, e desejando que você seja para sempre essa pessoa incrível que você é.”

[??-03-1982]

(74) Sujeito você exclusivo – dativo lhe: “Quincas enviou-lhe via maritima um livro sobre

“Eça” do Gondim da Fonseca, lógo você receberá.” [20-04-1971]

Fogem à “regra” o dativo nulo e o clítico te. O primeiro, por não estar associado a

nenhum paradigma ou subsistema específico (de tu ou de você), evidentemente não estaria

restrito a uma das possibilidades de tratamento controladas. Podemos perceber certo

equilíbrio na distribuição dessa variante: dos 181 dados registrados, as cartas com uso

exclusivo de você na posição de sujeito computaram 80 ocorrências, seguidas das cartas com

uso variável entre tu e você no sujeito, com 50 ocorrências; entre as cartas com uso exclusivo

de tu, foram computadas 35 ocorrências. As cartas menos favorecedoras à ocorrência de

dativo nulo foram aquelas cuja referência à 2ª pessoa do singular na posição de sujeito foi

feita por formas diferentes de tu e você: apenas 16 dados. Em (75)-(77), temos exemplos da

ocorrência do dativo nulo com diferentes formas de tratamento no sujeito:

(75) Somente você: “A sua conta eu ø mando depois vou ajuntar tudo o que você me deve não

tenho pressa do cobre, enquanto estiver na sua mão não gasto eles (...)” [25-08-1907]

(76) Tu e você: “Agradeço ø tudo o que me dizes; é para mim um consolo o receber noticias

de meus queridos irmãos. Então você tem estado um pouco fraquinha, um pouco

incommodada, pelo que me dizes, não é?” [20-02-1921]

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(77) Somente tu: “Aqui no cartório existe a transcrição de um documento relativo a revolução

de 42 que parece provar a traição de Joaquim Meis se quisseres ø mandarei cópia. [11-10-

1907]

O clítico dativo te apresentou uma distribuição curiosa: das quatro possibilidades de

tratamento na posição de sujeito apreciadas (i- tu; ii-você; iii- você~tu; iv-o senhor), essa

variante foi a mais recorrente em três delas: entre as cartas com uso exclusivo de tu – o

esperado –, 194 dos 247 dados (78,5%); entre as cartas com mescla de tratamento tu/você,

184 dos 263 dados (70,2%); entre as cartas com uso exclusivo de você – o inusitado –, 85 dos

275 dados (30,9%). Esse resultado corrobora a afirmação dos estudiosos sobre o tema (cf.

BRITO, 2001; RUMEU, 2008, 2013; LOPES & CAVALCANTE, 2011): o clítico te constitui

a estratégia preferida para a expressão da segunda pessoa do singular em posição de objeto do

verbo. Os exemplos ilustram essas ocorrências:

(78) Somente tu: “Peço-te que não te esqueças de trazer a pérola quando vieres, sim? Pago

aqui na Europa 50 libras a proporção que ele precisar, o resto quando eu puder no Rio.”

[20-01-1915]

(79) Tu e você: “Estimara que Você e todos os nosso queridos filhinhos tenham passado bem.

depois que parti. Hei de escrever-te sempre ainda que sejam 2 linhas. Faz sempre que

puderes o mesmo, pois já estou ansioso por uma carta.” [12-02-1886]

(80) Somente você: “Tente resistir até o final (...), cabeçada a gente dá uma vez, tente resistir

no tempo e no espaço pelo qual você vai permanecer aí. Se não conseguir, eu te

aconselho a voltar.” [03-10-1980]

Isso é nítido, principalmente, nas cartas em que o pronome tu varia com o você na

posição de sujeito: é este o contexto que credencia o maior número de estratégias dativas, haja

vista que conjuga no mesmo texto as formas de dois paradigmas. O clítico te, contudo,

correspondeu a mais da metade dos dados desse tipo de documento no corpus em análise. O

dativo nulo, segunda estratégia mais frequente no contexto de variação tu/você no sujeito, não

contabilizou nem 20% dos dados (19,2%). Nas cartas em que há uso exclusivo de você, ainda

que tenhamos verificado menor discrepância entre as frequências das variantes mais

recorrentes – te, dativo nulo e lhe, contabilizaram aproximadamente 30% de ocorrências – a

primeira apresentou leve vantagem sobre a segunda (30,9% contra 29,1%), em um contexto

em que, hipoteticamente, deveria ser desfavorecido.

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Ainda sobre a Tabela 5.1, vale ressaltar que, com outras formas na posição de sujeito

estabelecendo referência à 2ª pessoa do singular, o uso de te é inexpressivo (3,7%). Nesse

caso, a estratégia predominante foi o zero (59,3%), seguido do clítico lhe (33,3%). Esse forte

desfavorecimento ao clítico te deve-se ao fato de essas outras formas de referência à 2ª pessoa

relacionarem-se a um tratamento indireto, respeitoso; portanto, para marcar distanciamento, o

uso de formas da 3ª pessoa é preferido frente à forma clítica de 2ª pessoa. Abaixo, temos

ocorrências das variantes dativas mais frequentes com formas de tratamento na posição de

sujeito:

(81) Sujeito senhora – dativo nulo: “Espero que a senhora não descurará deste negócio, pois

já deve estar farta de ser roubada. (...) Sem outro por hoje, peço ø queira aceitar com

Papai e o Duddy muitas saudades e abraços (...)” [31-03-1917]

(82) Sujeito senhora – dativo lhe: “Espero que ao receber esta, a senhora esteja passando

melhor desta terrível moléstia que tanto a tem feito sofrer. (...) Conversei com o meu

médico a seu respeito e (...) ele vai receitar e me dará depois para lhe remeter. [03-07-

1917]

- O tipo de verbo quanto à estrutura argumental

Vejamos agora o segundo fator de natureza linguística, que diz respeito ao tipo de

verbo quanto à estrutura argumental. Como mencionado anteriormente, controlamos, com

base na proposta de Duarte (2003, p. 296), o número de argumentos que os verbos selecionam

e a relação gramatical que esses argumentos desempenham. No caso do fenômeno em

questão, interessa-nos apenas observar se os verbos com os quais o pronome dativo ocorre são

ditransitivos, isto é, projetam dois argumentos internos, ou se são verbos de dois lugares com

um argumento interno objeto indireto. No primeiro caso, estão os denominados pela tradição

gramatical de transitivos diretos e indiretos. Estão, nesse caso, os verbos que selecionam um

argumento externo, um argumento interno com relação gramatical de objeto direto e ainda um

argumento interno relação gramatical de objeto indireto. Dentre os principais verbos

ditransitivos estão: dar, pedir, enviar, dizer, mandar, desejar etc. como ilustrado a seguir:

(83) “Diga ao Edgard que recebi a carta dele que não respondo porque a resposta é a que

agora dou a você.” [13-05-1917]

(84) “Maria e eu enviamos um afetuoso abraço a Yolanda e a você.” [04-04-1972]

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No segundo caso, os verbos de 2 lugares são tradicionalmente conhecidos como

transitivos indiretos. São selecionados um argumento externo e um argumento interno objeto

indireto. Dentre esses, figuram os verbos agradar, acontecer, pertencer, obedecer, suceder,

interessar etc:

(85) “Quero (...) que voce tome muito cuidado com tudo o que vá te acontecer ai.” [02-08-

1978]

(86) “Uma notícia que muito vai te agradar é esta hoje vou encher a proposta para o mês que

vem entrar para a linha de tiro.” [25-09-1936]

Os esquemas relacionais propostos para cada tipo são os seguintes (DUARTE, 2003,

p. 296; 299):

- Verbos de 3 lugares com argumento interno indireto ou ditransitivos: SU V OD OI31

- Verbos de 2 lugares com argumento interno indireto: SU V OI

A tabela a seguir apresenta os resultados globais de todas as variantes dativas tendo

em vista o número de argumentos internos do verbo predicador:

Te zero lhe a ti para ti a você para você TOTAL

Verbos de

2 lugares

24 1 6 7 - 2 3 43

54,6% 2,3% 13,6% 15,9% - 6,6% 6,9% 5,3%

Verbos de

3 lugares

440 180 86 15 3 19 25 768

57,4% 23,4% 11,2% 2,0% 0,4% 2,3% 3,3% 94,7%

TOTAL 464 181 92 22 3 21 28 811

57,2% 22,3% 11,3% 2,7% 0,4% 2,6% 3,4% 100%

Tabela 5.2. Distribuição das variantes de complemento dativo

quanto à estrutura argumental do verbo predicador

Em termos práticos, ainda não podemos dizer se nossa hipótese – clíticos são mais

frequentes com verbos de três lugares – se confirma ou não. Na presente rodada com todas as

estratégias dativas, como vemos na Tabela 5.2, os índices dos clíticos te e lhe, somados,

representam mais da metade dos dados, tanto entre os verbos de 2 lugares (68,2%, 30 dos 44

dados) quanto entre os de 3 lugares (68,6%, 526 dos 767 dados). Será necessário, portanto,

31 SU= Sujeito; V= Verbo; OD= Objeto Direto; OI= Objeto Indireto

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113

em outra etapa da análise, relativizar esse resultado, a fim de verificar os contextos que mais

favorecem, de fato, o aparecimento de cada variante.

Nos verbos de 3 lugares, a segunda estratégia mais frequente, além obviamente do te,

é o dativo nulo com 23,4%. Esse resultado referenda uma possível hipótese de simplificação

da estrutura verbal que se automatiza com um argumento externo e um interno apenas, daí o

apagamento do OI. Comparativamente, sem levar em conta o número de dados brutos, mas os

percentuais de frequência, os SPreps parecem favorecidos com os verbos de 2 lugares. Nesse

caso, a segunda estratégia mais produtiva foi o SPrep a ti com quase 16% de frequência,

seguido por a você e para você com 7% de produtividade cada uma, em termos aproximados.

Os verbos de 3 lugares apresentaram índices baixos nos SPreps, com valores próximos de 3%

ou abaixo disso. Expomos, a seguir, as 12 ocorrências das formas preposicionadas

relacionadas aos verbos de 2 lugares. Voltando aos dados, identificamos que essas ocorrências

estavam relacionadas aos verbos pertencer, referir, telefonar, ligar e corresponder:

(87) “ (...) tu sabes que não pertenço a mais ninguém a não ser a você, tu sabes que todo o

meu prazer é viver em teus braços, recebendo as tuas carícias e teus beijos, Oh quanto me

sentiria feliz com isso.” [25-01-1937]

(88) “O Visconde passou comigo uns 15 dias, sempre se referiu a você com muita amizades e

tem você como um grande Historiador (...)” [07-06-1972]

(89) “Nos dias que antecederam a minha saída de L.A. tentei telefonar p/você para me

despedir, mas sempre durante o dia e nunca tinha ninguém em casa.” [s.d.-déc.1980]

(90) “Hoje de manhã, mamãe e papai foram até a loja para ligar para você, por favor,

desculpe de eu não ter ido, mas eu estava muito cansado.” [28-09-1980]

(91) “Bom, estudei alemão e comecei a copiar o nosso trabalho. (...) Telefonei procê.” [??-??-

1982]

(92) “(...) Minha querida só a ti é que pertence todo o meu amor, só de ti minha flor que eu

espero todo o meu ideal (...)” [22-09-1936]

(93) “(...) recebe com amor muitos beijos deste teu apaixonado noivinho, que só a ti

pertence.” [05-10-1936]

(94) “(...) tu sabes que só a ti é que pertenço, tu é a dona do meu coração, és a eleita de meus

sonhos, és a rainha de meu pensamento (...)” [19-01-1937]

(95) “Deste que tão somente a ti pertence aceita mil abraços, e o dobro de beijos, para que

possas ser eternamente feliz (...)” [25-01-1937]

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(96) “ (...) procurarei nos resto de dias de minha existência corresponder com o meu amor e o

meu afeto, o amor que tanto me dedicas, portanto correspondo a ti, a altura que tu

mereces.” [13-02-1937]

(97) “ (...) desejaria escrever qualquer coisa que você gostasse. Apenas umas letrinhas

dizendo que te amo muito, que tu és a flor de meus sonhos, (...) que és toda a minha

felicidade, que a ti só pertenço, que ti és a rainha de meu coração (...)” [23-02-1937]

(98) “(...) o futuro a ti pertence, os dias felizes virão, tenha confiança no teo destino” [05-03-

1895]

No caso dos verbos de 3 lugares, a diversidade de formas verbais foi notável: dentre

as 62 ocorrências de sintagmas preposicionados levantadas, contabilizamos 23 verbos

ditransitivos diferentes; os mais frequentes foram os verbos mandar (18 ocorrências),

escrever (8 ocorrências) e dedicar (6 ocorrências). Os verbos levar, comprar e enviar

somaram 3 ocorrências, cada um. Exemplificamos tais ocorrências em (99)-(104):

(99) “Estou escrevendo da faculdade, sabe? Mande um abraço a seus irmãos e amigos. Mando

a voce um beijo, cheio de saudades. Escreva-me se puder, tá?” [14-04-1977]

(100) “Já não aguento mais falar com voce pela caneta. Não que não goste de escrever para

voce mas porque prefiriria não precisar escrevê-las mais sim ditá-las ou dizê-las.” [27-

09-1978]

(101) “(...) o meu coração terás eternamente em teu peito batendo dando-te vida, e o teu

viverá em meu peito dando-me vida e alento para continuar dedicando a ti todo o amor

que mereces (...)” [16-03-1937]

(102) “Ela me pediu para lhe dizer que foi ao Correio levar 1kg de jornal para você, mas o

prazo - mais de uma semana - e o preço: 1.100,00, não a animaram e ela desistiu.” [31-

08-1980?]

(103) “(...) Passeia o mais possivel, compra cousas para ti, aproveitando os saldos d’agora”

[08-01-1915]

(104) “Basta meu querido Embaixador, Maria e eu enviamos um afetuoso abraço a Yolanda e

a você.” [04-04-1972]

Dando prosseguimento às observações gerais acerca da Tabela 5.2., percebemos que

os verbos cuja estrutura prevê dois argumentos internos parecem favorecer a realização do

complemento dativo em forma de clítico: dos 464 dados de te, 440 (94,8%) ocorreram com

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verbos desse tipo. Com o clítico lhe, verificamos o mesmo quadro, tendo ocorrido 86 (93,4%)

dos 92 dados dessa variante com verbos de três lugares. Em relação ao dativo nulo, o

favorecimento dos verbos de 3 lugares – ou, vendo do ângulo inverso, a restrição dos verbos

de 2 lugares – é bastante evidente: das 181 ocorrências no corpus, apenas 1 não foi com verbo

bitransitivo. Nesse dado, extraído do núcleo da carta de um dos informantes do 4º período

analisado (1956-1980) endereçada à sua mãe, o verbo de 2 lugares em questão é telefonar,

reproduzido abaixo:

(105) Você pensa essas coisas todas, e mais alguma coisa que você quiser, porque quando eu

ø telefonar (provavelmente 4ª feira de manhã) você me dá as respostas todas. [17-12-

1983]

- A categoria distintiva quanto ao valor semântico do verbo

A próxima variável linguística a ser focalizada também está relacionada ao verbo,

porém do ponto de vista semântico. Com base na tipologia proposta por Berlinck (1996,

2005), apresentada no capítulo 2 desta dissertação, analisamos o valor semântico dos verbos

com os quais as variantes de dativo ocorreram no corpus. Reproduzimos, no Quadro 5.1 as

formas verbais prototípicas de cada classe semântica:

VALOR SEMÂNTICO

DO VERBO

EXEMPLOS

Transferência material dar, distribuir, entregar, mandar, oferecer, comprar,

pedir

Transferência verbal e perceptual aconselhar, contar, dizer, ensinar, escrever, jurar,

perguntar, prometer, responder, telefonar

Movimento físico conduzir, dirigir, encaminhar, lançar, levar, pôr, trazer

Movimento abstrato anexar, atribuir, conferir, dedicar, destinar, filiar,

submeter, trazer

Interesse assistir, obedecer, servir, corresponder, pertencer,

acontecer, faltar, parecer, ser

Movimento chegar, escapar, entrar, fugir, ir, vir

Movimento psicológico agradar, importar, interessar, satisfazer, admirar,

alegrar, emocionar, entristecer, preocupar

Quadro 5.1. Valores semânticos dos verbos

que selecionam complemento dativo

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116

A distribuição das sete variantes de complemento dativo aparece na Tabela 5.3:

te zero lhe a ti para ti a você para você TOTAL

transferência

material

145 66 29 4 1 5 17 267

54,3% 24,7% 10,9% 1,5% 0,4% 1,9% 6,4% 32,9%

transferência

verbal/

perceptual

261 102 48 2 1 9 9 432

60,4% 23,4% 11,1% 0,5% 0,2% 2,1% 2,1% 53,2%

movimento

físico

36 13 9 2 1 3 1 65

55,4% 20,0% 13,8% 3,1% 1,5% 4,6% 1,5% 8,0%

movimento

abstrato

7 - 1 7 - 2 1 18

38,9% - 5,6% 38,9% - 11,1% 5,6% 2,2%

interesse 9 - 2 7 - 1 - 19

47,4% - 10,5% 36,8% - 5,3% - 2,3%

movimento - - 1 - - - - 1

- - 100,0% - - - - 0,1%

movimento

psicológico

6 - 2 - - 1 - 9

66,0% - 23,0% - - 11,0% - 1,2%

TOTAL 464 181 92 22 3 21 28 811

57,2% 22,3% 11,3% 2,7% 0,4% 2,6% 3,4% 100%

Tabela 5.3. Distribuição das variantes de complemento dativo

quanto ao valor semântico do verbo predicador

Atendo-nos inicialmente aos tipos semânticos em si, percebemos a alta incidência

dos verbos com a noção de transferência – seja material, seja verbal e perceptual – na amostra

analisada: 699 dos 811 dados de complemento dativo coletados ocorreram relacionados a

verbos com essa noção. Os verbos de transferência verbal e perceptual foram mais frequentes

do que os de transferência material, fato que podemos relacionar à natureza do corpus:

tratando-se de uma amostra de língua escrita, na qual os indivíduos trocam informações

diversas (pedidos, notícias de familiares, conselhos etc), as “transferências” em questão

envolvem atos comunicativos, marcados pela presença dos verbos dicendi: dizer, contar,

falar, perguntar, prometer, responder, dentre outros, conforme podemos atestar nos

exemplos:

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117

(106) O que tem de novo para te contar é pouca coisa, não há nada nada de novo. [25-08-

1907]

(107) Desde já te digo, que, cravos no Paraná nada tem que preste, o compadre foi quem

arranjou [05-10-1909]

(108) Então te pergunto. Se você puder comprá-lo e me enviar, não seria mais barato? Ou

melhor ainda, se você pudesse fotocopiá-lo (xerocá-lo) acho que seria ainda mais barato. [??-

07-1983]

(109) Não posso informar-te quando podemos conversar. mas farei o possível para ser o mais

breve, tenha confiança em mim pelo amor de Deus

(110) Tente resistir até o final Delinha, cabeçada a gente dá uma vez, tente resistir no tempo e

no espaço pelo qual você vai permanecer aí. Se não conseguir, eu te aconselho a voltar. [03-

10-1980]

Os verbos de interesse contabilizaram 19 dados, o que representa 2,3% da amostra.

Essa categoria semântica foi mais frequente com as variantes te (9 ocorrências, 47,4%) e a ti

(7 ocorrências, 36,8%). Os 7 dados registrados para a forma preposicionada, 6 ocorreram com

o verbo pertencer, ao passo que a forma clítica ocorreu curiosamente com 9 formas verbais

distintas: atender, pertencer, suceder, acontecer, servir, corresponder, faltar, ser e parecer.

Entendemos que o emprego de a ti constituiu um uso bem marcado em nosso corpus, visto

que 6 das 7 ocorrências foram obtidas nas cartas amorosas do informante Jayme, marcadas

por forte lirismo amoroso. Em contrapartida, além de ser a variante mais frequente, o clítico te

constitui um uso não marcado, como ficou evidenciado pela grande variedade de verbos em

tão poucos dados, ilustrados a seguir, ao lado dos exemplos de a ti:

(111) “(...) nesta carta vou renovar o pedido que constantemente te faço, e, peço que em meu

nome o faças à tua boa Mãe, que, boa como ela é com certeza te atenderá: volta, meu

anjo, volta, querida, porque do contrário eu não resisto mais (...)” [16-04-1891]

(112) “Após uma semana e tanto de angustias, (...) receando a cada instante pela minha saúde

e vida, que te pertence e à nossos filhos, (...) eis-me felizmente livre déssas

preocupações, são e salvo, a espera do momento feliz em que estarei junto de ti no seio

de nossa querida familia.” [01-01-1899]

(113) “Morta de saudades te escrevo estas linhas para saber se te succede o mesmo.” [17-10-

1899]

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(114) “Quero (...) que voce tome muito cuidado com tudo o que vá te acontecer ai. Pense bem

antes de toma uma solução pois garotos aproveitadores estão espalhados por todo o

mundo (...)” [02-08-1978]

(115) “(...) ponho-me em teus pés para servir-te de escravo, expondo-me aos teus mandos.”

[16-03-1937]

(116) “(...) cada vez acredito mais minha querida que teu amor me é sincero, um amor puro

criado somente para mim, e o mesmo correspondo-te eu, que vivo na ânsia de cada vez

te amar mais (...)” [25-01-1937]

(117) “Diz-me que as meninas já estão convencidas que devem, ficar e estão satisfeitas, a

minha questão é de ti e da Senhora acredito que na occasião te faltará a coragem e a

ellas tambem (...)” [05-03-1895]

(118) “Não te esqueças de estudar as línguas; a inglesa e a alemã podendo ser e o italiano.

Talvez aí te seja fácil na casa mãe obter quem te ensine.” [08-06-1905]

(119) “Não te parece que é um consolo para nós, que tenha podido entrar no seu convento!”

[11-09-1919]

(120) “(...) Minha querida só a ti é que pertence todo o meu amor, só de ti minha flor que eu

espero todo o meu ideal (...)” [22-09-1936]

(121) “(...) recebe com amor muitos beijos deste teu apaixonado noivinho, que só a ti

pertence.” [05-10-1936]

(122) “(...) tu sabes que só a ti é que pertenço, tu é a dona do meu coração, és a eleita de meus

sonhos, és a rainha de meu pensamento (...)” [19-01-1937]

Os verbos de movimento psicológico somaram 9 dados, sendo 6 ocorrências

relacionadas com a forma te; 4 dessas ocorrências estavam relacionadas ao verbo interessar, e

as outras 2 foram registradas com os verbos importar e agradar. Os 2 dados do clítico lhe

ocorreram com os verbos agradar e interessar. A única ocorrência do SPrep a você foi

registrada não com um verbo simples, mas com uma construção verbo-nominal que exprime

noção de movimento psicológico: “ficar grato”. Vejamos os exemplos:

(123) “ ‘Pisa Lectures’, ‘Formal Syntax’ e a tese da Myriam estão comigo (+ o Ruwet,

‘Gramática Gerativa’). Posso enviá-los, se eles te interessam no momento.” [??-08-

1983]

(124) “Aproveite ao máximo o que há de bom e se isso tudo não lhe interessa considere

aquela sua idéia de só ficar para este primeiro período.” [31-08-1982?]

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(125) “Visto que o retrato lhe agradou, vou ver si tiro outro com o rabut francez; mandarei

logo para você e para os outros irmãos.” [10-04-1921]

(126) “Junto remeto o tal papel, e só eu sinto, a grande massada que tenho te dado com isso;

certo de que você é o mais culpado, pois te pedi que deixasse seu pai fazê-lo, e você não

quis. Por tudo fico muito e muito grata a você.” [17-04-1916]

Os verbos de movimento contabilizaram uma única ocorrência com o clítico lhe. O

verbo a ele relacionado era o chegar, como mostra o exemplo em (127):

(127) “Tenho guardado todos os jornais, o ISTOÉ e outros bagulhos que lhe chegam.” [28-05-

1983]

Consideremos, agora, a distribuição das variantes em relação aos tipos semânticos

dos verbos. O clítico te foi a variante mais recorrente em quase todas as categorias,

apresentando, contudo, frequências diferenciadas: dentre os verbos de transferência verbal e

perceptual e de movimento psicológico, cerca de 60% das ocorrências; entre os verbos de

transferência material e movimento físico, em torno de 50%; com os verbos de interesse,

47,4%; com os verbos de movimento abstrato, 38,9%.

(128) Transferência material: “ (...) eu escrevo para minha casa depois o Antoninho te entrega

e de pois você rasga ou manda para mim (...)” [19-01-1937]

(129) Transferência verbal e perceptual: “Estão montando um palco aqui na praia de

Botafogo. Não sei para que. Quando souber eu te digo.” [15-09-1978]

(130) Movimento físico: “Fiz adquirir uma imagem pra te levar, assim com uma medalha de

ouro feita por um grande gravador francez, egual às que trazem o Rei e a Rainha da

Alemanha.” [29-12-1907]

(131) Movimento abstrato: “Minha flor já começo a sentir uma inquietação por estares longe

de mim, e ando um pouco triste por saber que tu não tens confiança em mim, eu que te

dedico todo o meu amor, os meus momentos e tenho tanta confiança em ti.” [12-01-

1937]

(132) Interesse: “Diz-me que as meninas já estão convencidas que devem, ficar e estão

satisfeitas, a minha questão é de ti e da Senhora acredito que na occasião te faltará a

coragem e a ellas tambem (...)” [05-03-1895]

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(133) Movimento psicológico: “ (...) todos enfim, são de opinião que deves vir quanto antes;

que te importa os teos Bahianos? [05-03-1895]

Já o clítico lhe, embora tenha sido apenas a terceira estratégia mais frequente em

cinco das sete categorias semânticas observadas, foi a estratégia mais equilibrada quanto às

ocorrências: contabilizou ao menos um dado por tipo verbal:

(134) Transferência material: “Antes de mais nada deixa eu lhe dar as explicações que você

queria sobre o embarque de bagagem (...)” [11-04-1983]

(135) Transferência verbal e perceptual: “Você vá pedindo a mamãe que lhe ensine a ler e

escrever para com o tempo sustentarmos uma grande correspondência.” [15-01-1886]

(136) Movimento físico: “você pediu ao Roberto um retrato de Tio Martinho, Roberto

prometeu mas nunca lhe deu, você contou isto ao Visconde, o Visconde escreveu-me e

eu lhe enviei, um “negativo” por carta, você agradeceu, ai começou o ‘bate bola’. até

hoje.” [07-06-1972]

(137) Movimento abstrato: “Adelinha como ‘CÊ’ sabe o meu Inglês é EXCELENTE e andei

‘corrigindo’ a sua última carta e você está de parabéns, pois o seu Inglês está quase tão

perfeito quanto o meu. Por isso ‘poupar-lhe-ei’ o trabalho, pedindo que da próxima vez

escreva em Português.” [10-10-1980]

(138) Interesse: “pro-curei o famoso Ramos, (...) mostrou se muito penalizado, disendo-me

que deseja muito lhe servir etc. etc.” [25-04-1894]

(139) Movimento: “Tenho guardado todos os jornais, o ISTOÉ e outros bagulhos que lhe

chegam.” [28-05-1983]

(140) Movimento psicológico: “Aproveite ao máximo o que há de bom e se isso tudo não lhe

interessa considere aquela sua idéia de só ficar para este primeiro período.” [31-08-

1980?]

Os sintagmas preposicionados, ao todo, destoam do resultado verificado para os

clíticos e para o dativo nulo na medida em que foram mais frequentes com os verbos de

transferência material (27 ocorrências contra 21 com verbos de transferência verbal e

perceptual). Esse “desvio” de tendência deve-se, estritamente, aos dados de para você: 17 dos

28 dados (60,7%) dessa variante ocorrem junto aos verbos com a noção de transferência

material, especificamente com o verbo mandar:

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(141) E mando um beijão bem grande para voce é claro, pois te quero muito. [24-02-1977]

(142) e para você minha querida o que devo mandar? recebe muitos beijos, abraços e mais um

pedaço de amor pois o meu cresceu muito de domingo para cá. [25-09-1936]

(143) a Dona Marieta manda muitas lembranças para você e juizo. [15-03-1937]

(144) Adelinha, todos daqui de casa mandam um beijão pra você (a Fernandinha também) e

não se preocupe com o pessoal da sua casa, pois acredito que estejam com muitas

saudades, mas sobreviverão. [10-10-1980]

Os índices de ocorrência e as frequências obtidas em relação a esse grupo de fatores

e apresentados na Tabela 5.3 parecem indicar que, como propusemos hipoteticamente, os

verbos com a noção de transferência estão vinculados às formas variantes mais produtivas.

Por essa ótica, não surpreende o fato de o clítico te ter contabilizado menos de 10 ocorrências

vinculado aos verbos de movimento abstrato, interesse e de movimento psicológico (ou ainda

de não ter registrado uma única ocorrência vinculado a um verbo de movimento). De acordo

com as explanações feitas no capítulo 2, essas categorias semânticas estão mais distanciadas

da noção básica do dativo – o polo de orientação para o qual tendem as ações/processos

expressos pela predicação da sentença – e, por isso mesmo, acessam significados mais

abstratos. Concluímos que o alto índice do clítico te ser registrado entre os verbos de

transferência verbal e perceptual, e de transferência material deve-se a essa “hierarquia

semântica” dos verbos que selecionam argumentos dativos.

Os resultados verificados no presente grupo de fatores, tal como dissemos para o

grupo anterior, serão retomados na seção que apresenta os grupos de fatores selecionados,

uma vez que esse grupo foi considerado relevante na rodada que opunha o clítico te aos

Sintagmas Preposicionados. Por meio do cálculo de pesos relativos das variantes,

mostraremos as categorias semânticas verbais que favorecem determinadas estratégias,

desfavorecendo as demais e, a partir disso, concluir se nossa hipótese procede ou não.

- A forma do objeto direto

A forma do objeto direto nas estruturas ditransitivas é nosso quarto e último fator de

natureza linguística. Em consonância com o que comentamos ao discutir os resultados do

grupo de fatores que controlou o tipo de verbo quanto à estrutura argumental, o argumento

dativo pode ser selecionado por dois verbos predicadores diferentes: pelo de 2 lugares ou de 3

lugares. No caso deste último, há, ao lado do complemento indireto, a presença de outro

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argumento interno, o objeto direto. Acreditamos que a existência do objeto direto nesse

contexto morfossintático possa condicionar qual variante do dativo irá ocorrer. Sabemos, por

exemplo, que, na variedade brasileira da língua portuguesa, não ocorre o fenômeno da

contração, no qual o clítico acusativo funde-se ao clítico dativo. Partindo da existência desse

condicionamento, cremos que as outras formas nas quais o objeto direto pode aparecer na

sentença interfiram na forma em que o objeto indireto irá ocorrer.

Consideramos quatro possibilidades de ocorrência do objeto direto do ponto de vista

formal: clítico acusativo, sintagmática, oracional e objeto nulo. Por apresentarem uma

configuração sintática mais complexa, haja vista que contém em sua estrutura outro sintagma

verbal, optamos por controlar a forma oracional do objeto direto separadamente das demais

formas sintagmáticas. Chamamos genericamente de “sintagma” as outras possibilidades de

objeto direto na sentença: sintagma nominal, sintagma adjetivo e sintagma pronominal.

Abaixo, exemplificamos, com ocorrências extraídas do nosso corpus, as quatro possibilidades

categorizadas:

(145) Sintagma (nominal): “Quincas enviou-lhe via maritima um livro sobre “Eça” do

Gondim da Fonseca, lógo você receberá.” [20-04-1971]

(146) Sintagma (pronominal): “Pela sua carta de 9 escrita ao Espinola vejo que já tinha feito o

favor que lhe pedi na minha carta de 21 do passado (...)” [16-10-1874]

(147) Sintagma oracional: “Ela me pediu para lhe dizer que foi ao Correio levar 1kg de

jornal para você, mas o prazo - mais de uma semana - e o preço: 1.100,00, não a

animaram e ela desistiu.” [31-08-1980?]

(148) Clítico: “(...) maior mais duradoura e mais ativa é a amizade que me prende a ti (...)”

[05-01-1908]

(149) Objeto nulo: “Desculpe-me por este tempão que fiquei sem escrever ø a voce mas é

porque ando realmente ocupado.” [17-10-1978]

Diante dessas considerações acerca do objeto direto, vejamos na Tabela 5.4 a

correlação entre as variantes de dativo de 2P e a forma do objeto direto nas estruturas

ditransitivas:

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te zero lhe a ti para ti a você para você TOTAL

Sintagma 202 78 32 11 2 11 19 355

56,9% 22,0% 9,0% 3,1% 0,6% 3,1% 5,4% 46,5%

Oracional 128 44 21 - - 2 - 195

65,6% 22,6% 10,8% - - 1,0% - 25,5%

Clítico 3 6 1 3 - - - 13

23,1% 46,2% 7,7% 23,1% - - - 1,8%

Nulo 105 52 32 1 1 3 6 200

52,2% 25,9% 15,9% 0,5% 0,5% 1,5% 3,0% 26,2%

TOTAL 438 180 86 15 3 16 25 763

57,4% 23,6% 11,3% 1,9% 0,4% 2,1% 3,3% 100%

Tabela 5.4. Correlação entre as variantes de complemento dativo

e a forma do objeto direto em estruturas bitransitivas

Com base nos números expostos na Tabela 5.4, constatamos que, diferentemente do

que vimos nos demais grupos de fatores até aqui, o clítico te não é a forma mais frequente

com todas as manifestações possíveis de objeto direto. Tal fato revela que há interferência de

um complemento sobre o outro e, portanto, nossa hipótese procede. Quando o objeto direto

foi expresso sob a forma de um clítico (13 ocorrências), a variante de dativo mais recorrente

foi o objeto nulo – que, em vários contextos, é a estratégia mais frequente depois do te. Esse

resultado parece confirmar o fato de que a ocorrência de objeto direto e indireto sob a forma

de clítico não é algo recorrente na variedade do português brasileiro, tal como encontramos na

variedade europeia. Os quatro dados de clítico dativo de 2ª pessoa do singular que

coocorreram com clíticos acusativos aparecem nos textos de missivistas com maior domínio

sobre os modelos de escrita, mais conservadores linguisticamente:

(150) “O que eu senti às 8 1/2 da manhã e às 7 da noite não tenho palavras para t’o

descrever”. [09-04-1891]

(151) “porém, podes dizer, meu anjinho, com toda a firmeza, que não há nenhuma que seja

tão querida pelo noivo como tu o és por mim, juro-t’o.” [21-04-1891]

(152) “Todo o Trabalho que tiveste, que deve ter sido muito grande a julgar pela correção da

biografia do [Padre Pio]. Esta ainda não apareceu; espero enviar-t’a este mês e escrever

ao Frei Inacio”. [14-06-1933]

(153) “e a razão é, como disse, o meu caracter, que você conhece bastante para que lh'a deva

descrever agora.” [10-04-1921]

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Ainda em relação ao clítico te, verificamos que, além de coocorrer

predominantemente com ODs em forma de sintagmas (nominais ou pronominais) – assim

como acontece com outras cinco variantes, à exceção do lhe –, há um alto índice desse clítico

coocorrendo com OD oracionais. A combinação do complemento dativo com OD oracional

também é resultante da presença dos verbos dicendi em grande número:

(154) “Devo dizer-te que assim te escrevo em vista do que me dissestes a pouco tempo, que o

Edgard aí nenhum futuro podia almejar, nem mesmo o de um bom emprego” [25-03-

1911]

(155) “elas disseram que quando você vier ou través aqui elas iam te contar que eu era

chorona eu disse que eu não me me importava que dissesse.” [05-10-1936]

(156) “Esqueci de te dizer que o ballet ‘Gabriela’ foi transferido para mais tarde. Quem sabe

estão te esperando?” [25-03-1983]

Quanto ao dativo nulo, chama atenção a segunda forma de objeto direto que mais

apareceu com essa estratégia em nossa amostra: outro objeto nulo. Valendo-nos das

ocorrências apresentadas na Tabela 5.4, percebemos que, dos 180 dados de dativo nulo, 78

deles aconteceram com um OD em forma de sintagma nominal/pronominal; bem próximo a

esse número está a coocorrência dos dois objetos nulos, em 52 dados. Ao voltarmos à

amostra, notamos que essa alta incidência deve-se ao uso generalizado do verbo escrever:

(157) Desculpa eu estar ø escrevendo só agora, porém acabei de chegar no rio e havia uma

carta sua aqui datada de uma pá de tempo, e com 2 grandes presente para mim. [24-02-

1977]

(158) Ontem recebi um bilhete de visita em que me dizias estarem todos bem e que não tinhas

bronquite nem tinha notícias minhas. Admira-me isso porque tenho ø escrito todos os

dias, à mesma hora. [20-02-1886]

(159) Eu acho que não e preciso ø escrever mais porque acabei de dizer tudo que ia ø

escrever, não adianta mais nada. [23-02-1937]

(160) Tenho tido notícias suas, não tenho ø escrito porque sei que não tens tempo para

responder. [23-09-1916]

Tal verbo apresenta uma transitividade bastante instável e, não raro, é possível omitir

seus dois argumentos internos (o que se escreve, o OD, e para quem se escreve, o dativo). Van

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Hoecke (1996) tece o seguinte comentário a respeito da omissão do OD na predicação do

verbo scribere, ‘escrever’ em latim:

(...) parece-me que nestas construções o verbo não tem sua significação transitiva

‘incompleta’ em ‘escrever’, mas têm um significado ‘completo’ que implica um

acusativo ‘interno’ do tipo de ‘escrever um texto’ ou uma ‘mensagem’ (VAN

HOECKE, 1996, p.28)

Todos os sintagmas preposicionados contabilizaram maior número de dados com um

objeto direto sintagmático, o que, em princípio, não era esperado, visto que são dois

argumentos internos com uma estrutura mais complexa (se comparados aos clíticos e objetos

nulos, por exemplo). Essa hipótese só foi confirmada nos casos em que o OD era uma oração:

apenas dois dados de a você foram registrados nesse contexto. Vejamos alguns exemplos:

(161) “Viveremos eternamente um para o outro, amando cada vez mais, esquecendo as dores

de agora, o meu coração terás eternamente em teu peito batendo dando-te vida, e o teu

viverá em meu peito dando-me vida e alento para continuar dedicando a ti todo o amor

que mereces”

(162) Foi de uma alegria imensa saber que os tempos que passamos juntas ainda trazem boas

recordações pra você e inclusive pra mim. [??-03-1982]

(163) “Peço a você dar ao Tito a minha caderneta para ele mandar contar os juros, até 30 de

Junho 1917” [08-07-1917]

(164) Papae esteve hoje com o Hilario De Gouveia elle perguntou muito por voce e disse que

ia te nomear para uma comissão contra a tuberculose e que pedia a voce para acceitar e

apparecer. [17-10-1899]

- O subgênero de carta particular

Em relação ao subgênero de carta particular, primeiro grupo de fatores

extralinguísticos, investigamos se a escolha das formas variantes dativas feita pelos

remetentes sofre influência da natureza da carta particular – pessoal , familiar ou amorosa.

Levantamos como hipótese que as cartas amorosas favoreçam o uso das variantes

relacionadas ao pronome tu – especialmente as formas preposicionadas a ti e para ti – pela

razão dessas missivas possuírem um traço lírico-romântico; o pronome tu é notadamente a

forma de tratamento empregada no discurso amoroso e, por isso, teria seu uso favorecido.

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Além disso, o clítico dativo lhe seria outra forma variante do dativo de 2P intimamente ligada

ao subgênero de carta particular: acreditamos que a forma lhe seja favorecida pelo menor

grau de intimidade existente entre remetente e destinatário, tal como ocorre nas cartas

pessoais.

Na Tabela 5.5, correlacionamos os três subgêneros identificados na amostra às sete

variantes do complemento dativo de 2ª pessoa do singular:

te zero lhe a ti para ti a você para você TOTAL

Pessoal 91 36 45 5 - 5 12 195

46,8% 18,6% 23,2% 2,6% - 2,6% 6,2% 24,1%

Familiar 180 83 45 2 2 9 5 326

55,2% 25,5% 13,8% 0,6% 0,6% 2,8% 1,5% 40,1%

Amorosa 193 62 2 15 1 7 11 291

66,3% 21,3% 0,7% 5,2% 0,3% 2,4% 3,8% 35,8%

TOTAL 464 181 92 22 3 21 28 811

57,2% 22,3% 11,3% 2,7% 0,4% 2,6% 3,4% 100%

Tabela 5.5. Correlação entre o subgênero da carta

e as estratégias utilizadas como complemento dativo

Algumas constatações importantes podem ser feitas a partir dos resultados em

questão. Notamos, por meio desse primeiro grupo de fatores extralinguístico, que o clítico te

continua “imune” às restrições investigadas; independentemente do grau de intimidade

existente entre remetente e destinatário, ele é a variante mais frequente nos três subgêneros

(46,8% nas cartas pessoais, 55,2% nas cartas familiares e 66,3% nas cartas amorosas). Isso

revela que o uso da forma te não segue uma orientação discursiva, sociopragmática, na qual

estariam em jogo os papéis sociais desempenhados por quem escreve e por quem recebe a

carta. Trata-se, na realidade, de uma forma neutra, que, como temos observado, atua única e

exclusivamente para indicar a pessoa (nesse caso, 2ª pessoa do singular) vinculada ao

pronome-complemento do verbo, como atestam os trechos abaixo, retirados dos diferentes

subgêneros: no exemplo extraído da carta amorosa, Oswaldo Cruz declara seus sentimentos

de saudade à sua noiva, Emília Fonseca; na carta familiar, Helena Land Avellar dá notícia dos

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parentes ao seu filho, Alarico; na carta pessoal, Carlos de Aguiar dá conselhos ao amigo

exilado Rui Barbosa:

Amorosa:

(165) “Impossível é descrever-te, meu querido anjo, a tempestade que se passava dentro de

mim: era necessário que eu fosse à tua casa, que fosse em pessoa ver aqueles lugares em

que nós estivemos juntos, o lugar em que nos despedimos, aquele em que me foste

dada, enfim era necessário que se despedaçasse o meu coração, que todo o meu ser se

transformasse em lágrimas (...)” [10-04-1891]

Familiar:

(166) “O Tito vai bem, hoje vai te escrever, ele gostou muito do Rio, papai levou eles até

Botafogo para ver a avenida beira-mar.” [18-08-1907]

Pessoal:

(167) “Não estou em condições de te dar conselhos, mais como amigo tenho o direito de te

dizer alguma cousa, não convem porenquanto escreveres nada sobre assumptos

politicos, espere os acontecimentos, pode muito bem tudo isto mudár e Você ser

obrigado a estár aqui para fazer parte ou tomar parte.” [19-11-1894]

Comportamento extremamente oposto pode ser percebido em relação ao clítico lhe.

Vemos que essa estratégia está condicionada ao subgênero, na medida em que é mais

frequente em cartas pessoais (menos familiares) e familiares e fortemente desfavorecida pelas

cartas amorosas (apenas 2 ocorrências em toda a amostra). Conforme aparece na Tabela 5.5,

obtivemos 45 dados de lhe tanto para as cartas pessoais quanto para as amorosas; no entanto,

os percentuais de frequência em relação a cada subgênero revelam que o contexto mais

favorecedor é o de menor grau de intimidade, ou seja, nas cartas pessoais. Nestas, o índice de

ocorrência de lhe é de 23,2% e supera o índice de dativo nulo, que geralmente constitui a

segunda variante mais frequente. Nas cartas familiares, o percentual é de 13,8% e fica atrás da

frequência do dativo nulo, de 25,5%. Nossos dados de lhe corroboram, portanto, o que alguns

estudiosos afirmam sobre o uso desse pronome na área do Rio de Janeiro: ele constitui um uso

marcado, que serve para indicar baixo grau de intimidade ou mesmo formalidade (não só na

língua escrita como também na língua falada). (cf. GOMES, 2003). É o que mostram os

exemplos que seguem, extraídos das cartas pessoais de Francisco Soares Brandão ao “seu

embaixador” e de Carlos de Aguiar, respectivamente:

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(168) “Não repare si por acaso tenha redigido errado algum nome, porque estou lhe relatando

fiado na memoria, sem consultar papel algum.” [25-06-1972] Brandão

(169) “ (...) não darei a letra, nem proporei acção sem combinar com o Amaral, pretendo

diser-lhe que a letra hé minha (...) tudo farei com calma e reflexão, creio que obterei

resultado, confie em mim, espere, brevemente lhe comunicarei o resultado.” [15-11-

1893] Carlos

Outro índice digno de nota é o registrado para o sintagma preposicionado a ti: 15 dos

22 dados levantados no corpus (68,1%) ocorreram em cartas amorosas. Adotamos como

explicação para esse índice o fato de a utilização do pronome tu ser uma convenção do

discurso lírico-amoroso para se reportar à “pessoa amada” como uma estratégia que marca

maior intimidade desde sua origem em oposição ao você que, advinda do tratamento Vossa

Mercê, indicava maior distanciamento. Os exemplos extraídos de nosso corpus ilustram tal

comportamento:

(170) Minha querida só a ti é que pertence todo o meu amor, só de ti minha flor que eu espero

todo o meu ideal, a esperança que brota de meu peito cresce de uma forma espantosa,

envolvendo-nos e unindo-nos cada vez mais [22-09-1936]

(171) “desejaria escrever qualquer coisa que você gostasse. Apenas umas letrinhas dizendo

que te amo muito, que tu és a flor de meus sonhos, que tu és todo o meu ideal, que és

toda a minha felicidade, que a ti só pertenço, que ti és a rainha de meu coração, que és a

eleita dos meus momentos etc. etc. e muita coisa mais. [23-03-1937]

(172) “E a ti envia todos os ‘grãos de terra’ transformados em beijos e abraços.” [23-03-1937]

- A seção da carta

O gênero carta particular pode ser analisado como uma tradição discursiva, nos

termos de Koch (1997), Kabatek (2006) e outros estudiosos. Isso significa dizer que a maneira

como algumas seções são redigidas seguem um modelo estabelecido para esse gênero ao

longo do tempo; dito de outro modo, certas partes constitutivas das cartas, como a captação de

benevolência e a despedida tornaram-se construções cristalizadas, estruturas formulaicas que

são reproduzidas pelos autores. Para o nosso estudo, a presença dessas fórmulas fixas para

“abrir” e “fechar” o texto de uma carta pode ser determinante, tendo em vista que certas

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variantes podem ser conservadas no espaço discursivo dessas seções, em detrimento das

outras seções, de cunho mais autoral.

Resolvemos, portanto, investigar essa hipótese de conservação de formas variantes

por influência das tradições discursivas controlando, através do referido grupo de fatores, em

que seção do documento nossos dados apareceram. Expomos a distribuição das estratégias em

relação às seções controladas na Tabela 5.6 a seguir:

te zero lhe a ti para ti a você para você TOTAL

Captação de

benevolência

21 16 - - - 1 - 38

55,3% 42,1% - - - 2,6% - 4,7%

Núcleo 393 138 83 17 3 12 16 662

59,4% 20,8% 12,5% 2,6% 0,5% 1,8% 2,4% 81,7%

Seção de

despedida

23 19 5 5 - 4 9 65

35,4% 29,2% 7,7% 7,7% - 6,2% 13,8% 8,0%

P.S. 3 4 3 - - 2 1 13

23,1% 30,8% 23,1% - - 15,4% 7,6% 1,6%

Outra 24 4 1 - - 2 2 33

72,7% 12,1% 3,0% - - 6,1% 6,1% 4,0%

TOTAL 464 181 92 22 3 21 28 811

57,2% 22,3% 11,3% 2,7% 0,4% 2,6% 3,4% 100%

Tabela 5.6. Distribuição das variantes de complemento dativo

quanto à seção da carta

Analisando primeiramente as seções, notamos que o núcleo da carta é, de fato, um

espaço “autoral”, isto é, de maior liberdade discursiva por parte do missivista, visto que

registramos dados de todas as variantes em estudo nessa seção. Nela se concentra, também, a

maioria esmagadora das ocorrências registradas: 662 dos 811 dados (81,6%). A seção de

despedida ocupa o segundo lugar em relação ao número de variantes por seção, não

registrando apenas dados de para ti. Esse resultado vai de encontro à nossa expectativa, já que

acreditávamos que nessa parte das missivas, por ser uma fórmula fixa, anotaríamos menor

variação entre as formas dativas. Exemplificamos, a seguir, três das seis formas variantes

registradas na seção de despedida das cartas:

(173) “Lembranças a Dona. Marietta, fala com ela que eu gostava muito de conhecê-la,

embora já a conheça um pouco pela tua boca, mas gos-taria de conhecê-la

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pessoalmente. E a ti envia todos os “grãos de terra” transformados em beijos e abraços.”

[23-02-1937]

(174) “ (...) vou indo pois tenho aula agora. Esto escrevendo da faculdade, sabe? Mande um

abraço a seus irmãos e amigos. Mando a voce um beijo, cheio de saudades. Escreva-me

se puder, tá?” [14-04-1977]

(175) “ (...) vou me despedindo, mandando mil beijos para você, e desejando que você seja

para sempre essa pessoa incrível que você é.” [??-03-1982]

O resultado observado para as demais seções confirmam o que tínhamos previsto: o

P.S. e as outras áreas da carta, diferentes das já assinaladas, assim como o núcleo, constituem

espaços de maior liberdade dentro da carta e, por isso, registram maior variação (encontramos

cinco das sete variantes em estudo nessas seções); a captação de benevolência é uma seção

fortemente marcada pelo uso de estruturas cristalizadas, que é evidenciado com o baixo grau

de variação (apenas três variantes ocorreram nesse contexto: te, dativo nulo e um dado de a

você). Reproduzimos em (176)-(179) a ocorrência de uma construção bem formulaica de

captação de benevolência, no interior da qual alternam-se o clítico te e o objeto nulo. Os

exemplos foram retirados de cartas do “casal dos anos 1930”:

Maria para Jayme:

(176) “Meu Queridinho Jayme Desejo-te muitas felicidades assim como aos teus eu e os meus

vamos muito bem graças a Deus (...)” [12-09-1936]

(177) “Desejo ø que esta te vá encontrar um pouco melhor do resfriado e que os teus vão bem,

os meus vão bem graças a Deus (...)” [11-10-1936]

(178) “Desejo-te que esta te vá encontrar em perfeita saúde assim como os teus eu e os meus

vamos bem graças a Deus (...)” [06-10-1936]

Jayme para Maria:

(179) “Desejo ø que esta te vá encontrar em perfeito estado de saúde assim como os teus, os

meus vão bem graças a Deus (...)” [06-10-1936]

Quanto à distribuição das variantes, não surpreende dizer que o clítico te foi

novamente a forma mais produtiva na maioria das seções. Essa forma ficou em segundo lugar

apenas nos P.S., em que o dativo nulo foi mais recorrente (por uma diferença mínima de um

dado, é preciso dizer). Além disso, o clítico te, o dativo nulo e o sintagma preposicionado a

você foram as três estratégias que contabilizaram ao menos um dado em cada seção, sendo os

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dois primeiros superiores em número de ocorrências. As outras quatro variantes foram mais

frequentes em seções não formulaicas, demonstrando maior ligação com o discurso do

missivista. É o que podemos ver, por exemplo, nas ocorrências do clítico lhe e do SPrep para

você nos P.S.; diferentemente dos exemplos mostrados para os dados de captação de

benevolência, vemos que essa seção da carta não apresenta uma estrutura cristalizada. É nesse

tipo de contexto, pois, que as variantes ilustradas foram identificadas.

(180) “P.S. O Espinola foi passar a Secretaria e disse-me que ia escrever-lhe, porém como ele

está sempre muito atarefado não sei se escreverá. [03-11-1874]

(181) “P.S. Peço-lhe que remeta a carta inclusa para Petrópolis, não querendo eu mandá-la

daqui diretamente com receio que extravie.” [12-02-1873]

(182) “P.S. Bia vou mandar prá você, como presente de aniversário, uma fita do grupo “Balão

Mágico”. Espero que você a curta bastante, ok?” [24-10-1985]

Nessa etapa de análise, de cunho panorâmico, não podemos afirmar com precisão se

alguma seção específica da carta favoreceu ou desfavoreceu o uso de alguma forma, haja vista

a diferença quantitativa acentuada entre os dados de te e dativo nulo de um lado, e os dados

das outras variantes de outro. Na rodada binária opondo o clítico te aos sintagmas

preposicionados, Esse grupo será retomado uma vez que foi considerado relevante pelo

programa estatístico.

- O período de tempo e as amostras

Os outros dois grupos de fatores extralinguísticos restantes – o período de tempo e a

amostra do corpus – serão apresentados em conjunto. Optamos por essa maneira de apresentá-

los a fim situar no tempo e no corpus os dados das variantes de dativo. O Gráfico 5.2 divide

as sete variantes em quatro períodos de 25 anos.

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Gráfico 5.2. Percentual de ocorrência das variantes

dativas na diacronia analisada (1880-1980)

Observando a distribuição percentual das variantes pelos períodos da diacronia

analisada, podemos notar que o clítico te, assim como verificamos no gráfico 5.1, representa

mais da metade da amostra em três quartos de século, sofrendo uma diminuição de percentual

de frequência apenas no 4º período (de 68,3% no período anterior para 30,0% no período em

questão). É também no último período que percebemos maior equilíbrio no emprego das

estratégias, especialmente entre o clítico te, o dativo nulo (32,5%) e o clítico lhe (24,5%). Os

sintagmas preposicionados a você e para você totalizam 13,0% (4,0% para o primeiro e 9,0%

para o último). A representação gráfica também nos possibilita visualizar claramente o

desaparecimento gradativo dos sintagmas preposicionados relacionados ao paradigma de tu

em cartas produzidas no Rio de Janeiro (a ti e para ti), acompanhado do aumento das taxas de

sintagmas preposicionados relacionados ao você (a você e para você).

Um esclarecimento: Por que não utilizar um gráfico de linhas para mostrar o

desenvolvimento da variação entre as formas ao longo do tempo? A resposta relaciona-se com

a natureza heterogênea da amostra; as ocorrências de cada período foram obtidas a partir de

missivas escritas por indivíduos com perfis sociolinguísticos diversificados. Em alguns

períodos, os missivistas são pessoas ilustres, enquanto que em outros não o são. Como

veremos nas próximas linhas, essas diferenças influenciam tanto na quantidade como na

qualidade dos dados. Projetar os resultados com o avanço/retrocesso das variantes em linha

0%

20%

40%

60%

80%

100%

69,6% 59,8% 68,3%

30,0%

14,5% 25,6% 17,1%

32,5%

10,3% 10,1% 0,5%

24,5%

3,3% 0,5% 7,0%

0,0%

1,4% 2,5% 2,5%

4,0%

0,0% 1,0% 4,0%

9,0%

para você

a você

para ti

a ti

lhe

zero

te

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produziria uma leitura ilusória, na medida em que os dados do clítico lhe que aparecem no 2º

e no 4º período, por exemplo, foram obtidos de informantes com características socioculturais

diferentes.

Passamos a apresentar, nas tabelas subsequentes, a distribuição das variantes de

acordo com as amostras do corpus utilizadas. Cada tabela representa um quarto de século

analisado.

- 1º período (1880-1905): a supremacia do tratamento de 2P tu

1º período

(1880-1905)

te zero lhe a ti para ti a você TOTAL

Cruz 73 6 - 2 - 1 82

89,1% 7,3% - 2,4% - 1,2% 38,5%

Pedreira 17 7 2 - 1 - 27

63,0% 25,9% 7,4% - 3,7% - 12,7%

Rui Barbosa 46 8 3 5 - - 62

74,2% 12,9% 4,8% 8,1% - - 29,1%

Penna Jr. 3 1 - - - 1 5

60,0% 20,0% - - - 20,0% 2,3%

Cupertino 10 9 17 - - 1 37

27,0% 24,3% 46,0% - - 2,7% 17,4%

TOTAL 149 31 22 7 1 3 213

69,9% 14,6% 10,3% 3,3% 0,5% 1,4% 100%

Tabela 5.7. Distribuição das variantes dativas

entre as amostras do 1º período (1880-1905)

Cinco das dez amostras utilizadas para este estudo nos renderam dados de pronomes

dativos de 2ª pessoa do singular: a amostra do médico Oswaldo Cruz, a coleção da Família

Pedreira Ferraz – Magalhães, a amostra de cartas endereçadas a Rui Barbosa, a coleção de

missivas da família do ex-presidente Afonso Penna e a amostra da família Cupertino do

Amaral. Percebemos o predomínio das formas relacionadas ao paradigma de tu, já que, nesta

época, a forma você ainda não havia adquirido o estatuto de pronome pessoal, e, portanto,

ainda apresentava um uso respeitoso como pronome de tratamento (cf. RUMEU, 2008).

Neste período, o dativo nulo já constitui a segunda variante mais produtiva, sendo

contabilizado nas cinco amostras do período. O clítico lhe ocorre com mais frequência nos

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dados da Família Cupertino, como consequência de um tratamento mais respeitoso e

distanciado entre os escreventes. O sintagma preposicionado a ti é mais recorrente do que o

para ti, como atestam os dados da família Cruz e das cartas a Rui Barbosa. Expomos alguns

exemplos dessas ocorrências:

(183) “(...) as tempestades que a muito tempo se desencadearão sobre esta terra tenho fé em

Deus andem passar, tudo voltará a seus eixos, espero ainda ver-te grande, feliz,

estimado e muito contente no seio de tua família, o futuro a ti pertence, os dias felizes

virão, tenha confiança no teo destino” [05-03-1895]

(184) “Tenho te escripto muitas cartas, tenho tirado dos jornaes tudo que diz respeito a ti e

que te pode enteressar, tenho remettido (...)” [05-03-1895]

(185) “Peço-lhe que remeta a carta inclusa para Petrópolis, não querendo eu mandá-la daqui

diretamente com receio que extravie.” [12-02-1873]

(186) “Peço-lhe que me responda sobre isto e também me diga quanto lhe devemos das duas

publicações que o Espinola mandou fazer.” [14-11-1874]

- 2º período (1906-1930): o início do espraiamento de você como variante de tu

2º período

(1906-1930)

te zero lhe a ti para ti a você para você TOTAL

Cruz 30 - - 1 1 - - 32

93,8% - - 3,1% 3,1% - - 16,1%

Pedreira 17 5 8 - - - 1 31

54,8% 16,2% 25,8% - - - 3,2% 15,6%

Avelar 49 41 9 - - 5 - 104

47,1% 39,4% 8,7% - - 4,8% - 52,3%

Penna Jr. 23 5 3 - - - 1 32

71,9% 15,6% 9,4% - - - 3,1% 16,1%

TOTAL 119 51 20 1 1 5 2 199

59,8% 25,6% 10,1% 0,5% 0,5% 2,5% 1,0% 100%

Tabela 5.8. Distribuição das variantes dativas

entre as amostras do 2º período (1906-1930)

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Integram o 2º período dados das Famílias Cruz, Penna e da Pedreira Ferraz-

Magalhães. Além dessas, que já figuravam no 1º período, contabilizamos ainda dados

retirados de cartas da Família Land Avelar. Chama a atenção o aparecimento mais expressivo

da forma lhe em três das quatro amostras em questão. Qual seria a razão? Acreditamos, por

hipótese, que, nesse momento, a entrada do você no sistema desencadeia uma profunda

instabilidade no uso dos pronomes, já que agora contamos com um sistema mesclado na

posição de sujeito (cf. RUMEU, 2008; LOPES, 2011). Detectamos sete variantes de dativo

(frente às cinco do período precedente). Sendo assim, parece que o clítico lhe torna-se mais

recorrente, estabelecendo a simetria formal entre as posições de sujeito e objeto.

Embora verifiquemos o acréscimo de lhe, o clítico te continua sendo a estratégia

preferida. Não podemos mais dizer, contudo, que os dados de te ocorram apenas relacionados

ao pronome-sujeito tu, tendo em vista que encontramos exemplos da combinação “você-

sujeito + te-dativo”. O dativo nulo mantém-se também como a segunda variante mais

recorrente em duas das quatro amostras do período, ficando atrás do lhe na amostra da

Família Pedreira Ferraz, que, no 1º período, registrava aquela estratégia como a segunda mais

frequente. Seguem exemplos desse período:

(187) “Diga ao Edgard que recebi a carta dele que não respondo porque a resposta é a que

agora dou a você.”[13-05-1917]

(188) “O dicionário serviu bem e mamãe mandou pelo Tito agradecer a você, bem como tudo

que mandou-lhe.” [08-06-1917]

(189) “Visto que o retrato lhe agradou, vou ver si tiro outro com o rabut francez; mandarei

logo para você e para os outros irmãos.” [10-04-1921]

(190) “Você querendo me favorecer, compra para você e só será meu quando eu te pagar.”

[12-02-1909]

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- 3º período (1931-1955): variação tu e você consolidada

3º período

(1931-1955)

te zero lhe a ti para ti a você para você TOTAL

Casal 122 30 1 13 1 4 8 179

68,2% 16,8% 0,5% 7,3% 0,5% 2,2% 4,5% 90,0%

Pedreira 14 4 - 1 - 1 - 20

70,0% 20,0% - 5,0% - 5,0% - 10,0%

TOTAL 136 34 1 14 1 5 8 199

68,3% 17,2% 0,5% 7,0% 0,5% 2,5% 4,0% 100%

Tabela 5.9. Distribuição das variantes dativas entre as amostras do 3º período (1931-1955)

Para o 3º período, apenas duas amostras renderam dados: as cartas trocadas entre o

“casal dos anos 1930” e entre alguns membros da Família Pedreira Ferraz. A amostra do casal

registra ao menos um dado de cada uma das sete variantes do complemento dativo, o que

evidencia uma acentuação da variação. O clítico lhe, que no 2º período teve uma frequência

expressiva, praticamente desaparece. Em contrapartida, o clítico te segue com uso

hegemônico (68,3%), seguido do dativo nulo (17,2%). Torna-se mais claro do que no período

anterior que o pronome você na posição de sujeito passou a se combinar livremente com o te

em posição dativa, derrubando qualquer possibilidade de evidência de uniformidade de

tratamento. Os exemplos comprovam as ocorrências dessa combinação:

(191) “Muito te agradeço tudo que Você fez por nossa irmasinha; coitada; tenho tanta pena; e

isto de longe que seria vêr de perto como ella está.” [28-11-1933]

(192) “Muitas penas passa minha alma – em um papelilho te conto e Você responde tambem

não na carta, senão a parte.” [01º-02-1948]

(193) “(...) eu fiquei triste de você brigar no escritório eu peço-te para ficares mais calmo,

manda-me dizer por que você brigou com Senhor Mario.” [22-09-1936]

(194) “eu escrevo para minha casa depois o Antoninho te entrega e de pois você rasga ou

manda para mim.” [19-01-1937]

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Cabe destacar ainda a elevação inusitada do sintagma preposicionado a ti. A

justificativa, como já dissemos ao comentar a Tabela 5.5, é o tom lírico-romântico das cartas

amorosas, principalmente daquelas escritas pelo remetente Jayme.

- 4º período (1956-1980): generalização de você

4º período

(1956-1980)

te zero lhe a você para você TOTAL

Brandão - 2 34 5 - 41

- 4,9% 82,9% 12,2% - 20,5%

Lacerda 15 27 1 3 3 49

30,7% 55,1% 2,0% 6,1% 6,1% 24,5%

Cartas

Cariocas

45 36 14 - 15 110

41,0% 32,7% 12,7% - 13,6% 55,0%

TOTAL 60 65 49 8 18 200

30,0% 32,5% 24,5% 4,0% 9,0% 100%

Tabela 5.10. Distribuição das variantes dativas

entre as amostras do 4º período (1956-1980)

São representativos do 4º período dados da Família Brandão, da Família Lacerda e

dos “cultos cariocas”. A combinação dos dados presentes nessas amostras proporciona um

painel curioso quanto às ocorrências das variantes. Em primeiro lugar, o resultado peculiar na

amostra de cartas da Família Brandão deve-se ao estilo extremamente informal adotado na

escrita do seu remetente, que se coloca a todo tempo em condição de respeito e apreço para

com seu destinatário, o “embaixador”. Cumpre ressaltarmos que dessa amostra advém mais

da metade dos dados do clítico lhe (69,4%, ou seja, 34 dos 49 dados dessa variante).

Em relação ao informante da Família Lacerda, temos um fato curioso: essa é a única

amostra em que a frequência de dativo nulo (55,1%, isto é, 27 dos 49 dados) superou a

frequência do clítico te (30,7%, ou seja, 15 dos 49 dados). Contabilizamos, todavia, pelo

menos uma ocorrência de cada uma das cinco estratégias presentes no 4º período na amostra

dessa Família.

Entre os dados extraídos das “cartas cariocas”, vemos que o te persiste como

estratégia preferida (41,0%, 45 dos 110 dados obtidos), seguido do dativo nulo (32,7%, 36

ocorrências). Os índices de lhe e para você são praticamente iguais. Os dados dessa amostra

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são os que mais se aproximam ao que, de fato, encontramos hoje na variedade carioca –

falada e escrita – ao menos naquela utilizada pelos indivíduos usuários da norma culta: um

uso indiscriminado do clítico te, seguido da não realização formal (o dativo nulo); em menor

escala, o emprego do clítico lhe, restrito a situações de maior formalidade, e do sintagma

preposicionado para você (como um uso enfático ou expressivo, principalmente). Vejamos

alguns exemplos desse período:

(195) “O Academico Ministro Hermes Lima tambem está escrevendo suas memorias, devem

sair este ano (...), si ele não lhe oferecer um livro, que aliás disse-me que ia lhe oferecer

eu lhe enviarei. “[20-04-1971]

(196) “(...) você pediu ao Roberto um retrato de Tio Martinho, Roberto prometeu mas nunca

lhe deu, você contou isto ao Visconde, o Visconde escreveu-me e eu lhe enviei, um

“negativo” por carta, você agradeceu, ai começou o “bate bola”. até hoje.”

(197) “Quero saber o que se passa por essa cabecinha oca ai. O que voce pensa de mim agora?

Peço ø tambem respostas sinceras.” [14-04-1977]

(198) “Fiquei preocupado quando disse que não recebeu ainda nenhuma outra carta, mas eu ø

mandei uma com algumas fotos minhas e com uma foto que gosto muito, de Guarapari

na qual estava junto com voce.” [15-08-1978]

(199) “Então te pergunto. Se você puder comprá-lo e me enviar, não seria mais barato? Ou

melhor ainda, se você pudesse fotocopiá-lo (xerocá-lo) acho que seria ainda mais

barato.” [??-07-1983]

(200) “Há dois anos atrás se ele te proposse casamento você nem piscaria, garanto.” [??-03-

1982]

À primeira vista, poderíamos pensar em uma redução do uso de te; entretanto, o que

parece ter ocorrido, na realidade, foi um aumento das demais variantes. A orientação

normativa em relação à uniformidade de tratamento parece ser, sem dúvida, a grande

responsável pelo “reaparecimento” dos clíticos lhe nas cartas do 4º período, já que as

amostras são formadas por indivíduos com maior domínio sobre os modelos de escrita. Vale

ressaltar, por fim, que, ainda assim, entre os informantes das “cartas cariocas”, o te continuou

sendo a forma mais frequente, revelando certa “imunidade” ao paradigma adotado pelo

remetente (tu, você ou tu~você). O te é uma marca legítima de 2ª pessoa do singular, sempre

apresentou altos índices de uso e seu uso “não uniforme” não gera estigma social. A

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combinação desses fatores pode ser a resposta para a “persistência”, “sobrevivência”,

“permanência” de tal clítico no sistema pronominal do PB.

5.3. Análise variável do fenômeno

A partir dos resultados globais, que forneceram um panorama descritivo das

variantes de dativo de 2SG ao longo de um século, foram realizadas rodadas binárias que

opunham o clítico te às demais formas menos produtivas, mas presentes na amostra de cartas

analisadas. O intuito da análise estatística era identificar os contextos linguísticos e

extralinguísticos favorecedores das estratégias dativas em competição. Tais análises parciais

também se justificam pelo fato de o clítico te ter sido a variante majoritária, como vimos, em

todos os grupos de fatores analisados. Tornou-se premente, desse modo, relativizar as

frequências brutas para identificar a força de cada restrição – linguística ou social – em

relação ao fenômeno variável, e os ambientes mais favoráveis à aplicação da regra (no caso, o

clítico te).

Como apresentado no quadro a seguir, foram realizadas três rodadas binárias: te vs.

dativo zero; te vs. lhe e te vs. SPreps. No primeiro caso, analisamos as formas mais produtivas

no corpus, no segundo, contrapomos dois clíticos (o te original de 2P e o lhe que migrou da

3P). Por fim, contrapomos o clítico mais produtivo aos sintagmas preposicionados, sejam eles

do paradigma de tu (a ti, para ti), sejam do paradigma de você (a você, para você). O quadro

5.2 indica, ainda, quais grupos de fatores foram selecionados em cada uma das rodadas:

Grupos de fatores te x ø te x lhe te x SPreps

(1) Forma do sujeito X X X

(2) Estrutura argumental do verbo X

(3) Tipo semântico do verbo X

(4) Forma do OD X

(5) Período X

(6) Subgênero da carta X X

(7) Seção da carta X

(8) Amostra do corpus X Quadro 5.2. Grupos de fatores selecionados nos cruzamentos

entre o clítico te e as demais variantes

Todos os oito grupos de fatores elaborados para a pesquisa foram selecionados em

pelo menos uma das três rodadas estatísticas feitas. O grupo de fatores da forma do sujeito, de

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natureza linguística, foi selecionado pelo programa de regra variável nos três casos. O

subgênero da carta, de natureza extralinguística, foi selecionado nas rodadas te x ø e te x lhe.

Os outros seis grupos foram selecionados uma única vez. Inicialmente, podemos dizer que o

Quadro 5.2 revela que a forma de 2P utilizada na posição de sujeito (tu, você e tu/você) exerce

influência sobre as variantes dativas empregadas, com exceção do observado com o clítico te,

que é produtivo nos 3 subsistemas.

5.3.1. Variantes dativas mais produtivas: clítico te vs. dativo ø

A Tabela 5.11 reúne os grupos de fatores selecionados na rodada que contrapôs o

clítico te ao dativo zero. Como mencionado, foram selecionados os seguintes grupos: a

amostra do corpus, a forma de 2P empregada na posição de sujeito, a estrutura argumental do

verbo predicador e subgênero da carta pessoal:

Grupo de Fatores Fatores Nº/T Frequência P.R.

i) Amostras Cupertino 10/19 52,6% .242 Land Avellar 49/90 54,4% .480 Família Cruz 103/109 94,5% .860 Família Penna 26/32 81.2% .694 Rui Barbosa 46/54 85,2% .369 Pedreira Ferraz 48/64 75% .585 Casal 1930 122/152 80,3% .489 Família Lacerda 15/42 35,7% .144 Cariocas 1980 45/81 55,6% .212 ii) Forma utilizada na posição

de sujeito

Tu 194/229 84,7% .525

Você 85/165 51,5% .417

Tu/Você 184/234 78,6% .595 iii) Estrutura argumental do

verbo predicador

Verbos de 2 lugares 24/25 96% .948

Verbos de 3 lugares 440/620 71% .471 iv) Subgênero da carta

pessoal

Pessoal 91/127 71,7% .679

Familiar 180/263 68,4% .400

Amorosa 193/255 75,7% .512 Tabela 5.11. Análise multivariada das formas dativas te x zero (Valor de Aplicação: clítico te)

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Em termos dos fatores linguísticos, a forma empregada na posição de sujeito foi o

primeiro a ser selecionado. Esse resultado corrobora algo que já havíamos afirmado na análise

geral dos resultados: o emprego do clítico te é “imune” à forma pronominal adotada na

posição de sujeito. Dito de outro modo, o uso de te não está condicionado ou correlacionado

ao pronome de 2ª pessoa do singular presente na posição de sujeito. Embora apresente

frequências desiguais – 84,7% em cartas com uso exclusivo de tu, 51,5% em cartas com uso

exclusivo de você e 78,6% em cartas com alternância entre tu e você –, os índices verificados

no peso relativo demonstram que há certa regularidade no favorecimento dessa variante em

relação ao grupo de fatores em questão, predominando nas cartas com uso exclusivo de tu

(0.525) e com alternância entre tu/você (0.595). Com relação ao dativo nulo, notamos o seu

favorecimento sobre o clítico te quando o missivista utiliza somente a forma você na posição

de sujeito:

(201) “E eu ø peço que você não compre muito para as crianças que eu estou num esforço de

valorizar o que eles têm. Se você me aparecer com muita coisa por aqui eu não vou

deixar você lhes dar. Eles só saberão o valor das coisas se não as tiverem com total

facilidade.” [31-08-1980?]

Outro grupo de fatores linguísticos selecionado foi a estrutura argumental do verbo

predicador. Os resultados demonstram que, na oposição entre o clítico te e o dativo nulo,

houve favorecimento para o clítico com verbos de dois lugares (0.948), ao passo que o dativo

zero foi favorecido com verbos de 3 lugares. Esse resultado confirma o que foi observado na

análise geral dos dados. Há uma tendência ao “apagamento” de um dos argumentos internos

do verbo, “adequando” a estrutura sintática das sentenças ao padrão geral mais simples e

básico: Sujeito-Verbo-Objeto. Neste caso, o dativo realiza-se como objeto nulo, enquanto que

o complemento acusativo realiza-se na forma sintagmática:

(202) “Pensei em telefonar-te mas fiquei com medo de voce querer me dar um soco pelo

telefone (...)” [19-09-1977]

(203) “Recebi a sua carta e não ø mandei a procuração porque pensava subir sábado (...)”

[29-11-1915]

No que tange aos fatores extralinguísticos, a amostra do corpus e o subgênero da

carta pessoal foram os grupos selecionados pelo programa estatístico. A amostra na qual os

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dados foram encontrados foi o primeiro grupo selecionado. Os resultados dos pesos relativos

mostram um favorecimento do clítico te nas amostras das famílias Cruz (0.860), Penna

(0.694) e Pedreira Ferraz-Magalhães (0.585). Destas, as duas primeiras utilizam

majoritariamente as formas de 2ª pessoa relacionadas ao paradigma de tu, o que pode

justificar esse resultado. O fato interessante é o da família Pedreira Ferraz-Magalhães, na qual

há ampla utilização do pronome você em posição de sujeito com a forma clítica dativa te. Em

outras palavras, esse resultado significa que, excetuando as amostras que apresentam um uso

exclusivo das estratégias ligadas ao paradigma de tu, a amostra imediatamente seguinte, na

qual o clítico te foi mais utilizado, é justamente aquela que reúne grande número de casos de

assimetria formal (você-sujeito correlacionado ao clítico dativo te), como ilustram os

exemplos:

(204) “Muito te agradeço tudo que Você fez por nossa irmasinha (...)” [28-11-1933]

(205) “Por favor cuide de tua saúde, sobre tudo dos olhos, e mande-me noticias, se Você não

pôde escrever, peça a alguma alma bôa, estou certa que te fará ese favor.” [01-02-1948]

Invertendo o ponto de vista, vemos que, nas amostras da Família Cupertino do

Amaral, da Família Lacerda e dos Cariocas da década de 1980, houve o desfavorecimento da

ocorrência de te; ou melhor, nessas amostras, o clítico te aparece com menor força em relação

ao dativo zero. No caso das duas amostras do 4º período – Família Lacerda e Cartas Cariocas

de 1980 –, esse resultado confirma o que foi observado na etapa de análise geral: a afirmação

do você como pronome pessoal na posição de sujeito eleva os índices de dativo nulo de 2P;

sendo assim, é evidente que o clítico te apresentaria menor força nesse material. Quanto ao

peso relativo verificado para a Família Cupertino do Amaral, a justificativa é um pouco

diferente: nessas cartas, pertencentes ao 1º período, temos um uso do você ainda com caráter

de pronome de tratamento, conforme mostrou Lopes (2009). Isso parece desfavorecer a

ocorrência da variante te, em detrimento do dativo nulo. A seguir, um exemplo extraído de

uma missiva de Cupertino do Amaral à esposa, Elisa:

(206) “Eu devo formar-me como já ø disse na segunda-feira, se Deus quiser (...) Assim, pois,

vou a festa. Você me espere. Quando ø digo que me espere não quero dizer que guarde

jantar, porque jantarei na Barra.” [12-03-1886]

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Quanto ao subgênero de carta particular, quarto e último grupo de fatores

selecionado na análise binária entre te e dativo nulo, percebemos maior probabilidade de

aplicação da regra em dois dos subgêneros controlados: cartas pessoais (0.679) e cartas

amorosas (0.512). As cartas familiares favoreceram o emprego do dativo nulo. Esses

resultados podem ser relacionados, dentre outras coisas, com as peculiaridades das relações de

parentesco, ora simétricas, ora assimétricas. As cartas amorosas e as pessoais não familiares,

trocadas principalmente entre amigos, apresentam um caráter mais íntimo, o que propiciaria,

em alguns casos, o emprego de formas do paradigma de tu. A variante nula, devido ao seu

caráter neutro, não compromete o remetente ao se referir ao destinatário. É o que atestam os

exemplos a seguir, extraídos de uma carta amorosa trocado entre o casal dos anos 1930 e de

uma carta familiar da amostra Land Avellar, respectivamente:

(207) “Minha querida tu sabes perfeitamente que toda a oportunidade que posso aproveitar é

somente para escrever-te, porque não me saes, um único segundo da lembrança (...)”

[16-03-1937]

(208) “ (...) ficamos sabendo que você estivera doente, o que mamãe já desconfiava por falta

de cartas suas. Estimamos que agora esteja bom e ø pedimos notícias.” [08-06-1917]

Em síntese, observando somente as formas variantes de dativo mais frequentes no

corpus (clítico te vs. dativo nulo), verificamos que o clítico te mostrou maior favorecimento

nas amostras de cartas pessoais (não-familiares) e amorosas do fim do século XIX e início do

XX (Família Cruz, Penna e Pedreira Ferraz). Em termos estruturais, notamos a maior

probabilidade de aplicação da regra variável (uso do te) em missivas com uso exclusivo de tu

e nas cartas sem uniformidade de tratamento (uso de tu e você) na posição de sujeito. Os

verbos de dois lugares (SU V OI) também favoreceram o emprego do clítico original de 2P.

Em contrapartida, os ambientes que se mostraram mais propícios ao emprego do dativo nulo

foram: as amostras de cartas familiares produzidas principalmente a partir da segunda metade

do século XX, em que se empregava predominantemente você na posição de sujeito e em

estruturas verbais de 3 lugares (SU V OD OI).

5.3.2. Variantes dativas de origens distintas: clítico te vs. clítico lhe

Vejamos agora os grupos de fatores selecionados na rodada que contrapôs o clítico te

ao clítico dativo lhe em referência à 2PSG. Opomos, nessa análise binária, dois clíticos

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originados de paradigmas distintos, que apresentam valores funcionais igualmente distintos:

segundo o que pudemos observar na rodada geral dos dados, as formas pertencentes ao

paradigma do pronome tu são mais íntimas, enquanto as formas do paradigma do você são

mais formais. Na Tabela 5.12, são apresentados os grupos selecionados: A forma de 2P

utilizada na posição de sujeito, o período de tempo e subgênero da carta pessoal:

Grupo de Fatores Fatores Nº/T Frequência P.R.

(i) Forma utilizada na posição

de sujeito

Tu 194/195 99,5% .942

Você 83/158 52,5% .028

Tu/Você 184/191 96,3% .598 (ii) Período

1º (1880-1905) 149/171 87,1% .093

2º (1906-1930) 117/137 85,4% .683

3º (1931-1955) 136/137 99,3% .932

4º (1956-1980) 60/109 55,0% .334 (iii) Subgênero da carta

pessoal

Pessoal 91/136 66,9% .366

Familiar 178/223 79,8% .231

Amorosa 193/195 99,0% .853 Tabela 5.12. Análise multivariada das formas dativas te x lhe (Valor de Aplicação: clítico te)

O primeiro grupo de fatores selecionado pelo programa na análise binária te x lhe foi

a forma pronominal de 2P empregada na posição de sujeito. Os índices registrados são, em

alguns casos, previsíveis, visto que o te é altamente favorecido nas cartas com uso exclusivo

de tu na posição de sujeito (0.942), seguido das cartas com uso variável de tu e você como

sujeito (0.598). Esses resultados são semelhantes ao que foi observado na rodada anterior em

que se opôs tu e dativo nulo. Dois índices, contudo, precisam ser analisados atentamente. Em

cartas com uso exclusivo de você na posição de sujeito, o clítico te foi fortemente

desfavorecido (0.028). Esse resultado foi influenciado pelas missivas do primeiro e quarto

períodos: nas primeiras, temos um uso do você ainda com caráter de pronome de tratamento;

nas últimas, o uso “simétrico” do você com o clítico lhe aparece em cartas de escreventes com

alto domínio dos modelos de escrita e que, portanto, seguem, em boa medida, a uniformidade

de tratamento. Nessas últimas, temos ainda a interferência do subgênero da carta, que será

comentado mais adiante.

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145

(209) “Anexo mando-lhe uma carta de Hélio Tellegrino e gostaria que você refletisse sobre o

que ele fala, tá?” [??-03-1982

(210) “Você disse que encontrou com o Pieroni, não é? Devo lhe confessar que sinto um

carinho muito grande por ele.” [??-03-1982]

O período foi o segundo grupo de fatores selecionado na presente rodada. É

interessante observar que, no 1º período (1880-1905), em que há o maior número de

ocorrências do clítico te (149 dados), essa variante apresentou o peso relativo mais baixo

(0.093). Conforme comentamos na análise geral, isso decorre do fato de, nesse período, o

pronome você ainda atuar como um pronome de tratamento propriamente dito; a

representação da 2ª pessoa do singular estava a cargo, portanto, apenas das formas

pertencentes ao paradigma do pronome tu (cf. RUMEU, 2008). Os usos do pronome lhe

observados no 1º período acompanham pronomes de tratamento você e senhor/senhora.

Sendo assim, não podemos dizer que havia uma concorrência direta das formas clíticas em

foco, visto que cada uma atuava em contextos funcionais distintos.

Nos outros três períodos, a situação se modifica e já podemos considerar que te e lhe

passam a disputar a mesma posição, ou seja, a posição de complemento dativo de 2ª pessoa.

Nos 2º e 3º períodos, notamos um favorecimento do clítico te, (0.683 e 0.932

respectivamente). Esses índices, principalmente no 3º período, confirmam a preferência pelo

clítico te em contexto de variação. Os dados das cartas trocadas pelo casal da década de 1930

são, sem dúvida, os grandes responsáveis para o elevado peso relativo do referido pronome

clítico, que obteve um percentual de frequência de 99,3%. Embora seja necessária muita

cautela ao fazer certas afirmações a respeito das modalidades falada e escrita para sincronias

passadas, podemos considerar o material do casal como o mais representativo daquilo que,

por hipótese, estaria ocorrendo no português brasileiro em sua vertente popular da época (cf.

SILVA, 2012). A variação na representação da 2PSG verificada nas cartas desse período se

assemelha bastante ao sistema encontrado atualmente em diversos dialetos do português

brasileiro, observados em estudos sincrônicos (cf. OLIVEIRA SILVA, 2011).

No 4º período (1956 e 1980), há uma queda nas ocorrências do clítico te, refletida no

percentual de frequência de 55%. Em termos relativos, isso se confirma com o índice de

0.334, indicando um favorecimento do clítico lhe. Esse favorecimento resulta do caráter da

amostra da qual os dados foram extraídos: o informante da Família Brandão apresenta um uso

categórico do clítico lhe para a representação do dativo 2SG; além disso, alguns missivistas da

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amostra de cartas cariocas da década de 1980 adotam tal variante em cartas com uso exclusivo

de você na posição de sujeito:

(211) “O cartão que lhe enviei é da efigie do Conde de Pinhal, com o sêlo comemorativo do

Centenario de São Carlos (do Pinhal)” [17-02-1973]

(212) “(...) fiquei com a impressão de que você não está gostando muito e de que o lugar é

uma Nova Iguaçú metida a besta (...). Aproveite ao máximo o que há de bom (...). Estou

daqui lhe dando a maior força via ondas telepáticas.” [31-08-1980?]

No último grupo de fatores selecionado na análise binária “te x lhe”, o subgênero da

carta particular confirma o que verificamos na rodada anterior. Nas cartas de cunho amoroso,

o te foi largamente favorecido, como comprovam o número de ocorrências (193 dos 195

dados analisados nessa rodada), o percentual de frequência (99%) e o peso relativo (0.853). Já

nas cartas trocadas entre familiares e pessoais, embora o te registre percentuais de frequência

consideravelmente altos (79,8% e 66,9%, respectivamente), a variante foi desfavorecida, com

peso relativo de 0.231 para as missivas familiares e de 0.366 para as missivas pessoais. A

associação das formas do paradigma do pronome tu com as cartas de tom lírico-amoroso

explica os resultados obtidos nessa rodada e corrobora o que discutimos na apresentação dos

resultados gerais, ao comentarmos a Tabela 5.5.

Nos dois subgêneros referidos anteriormente, houve claro favorecimento ao emprego

do clítico dativo lhe. Tal afirmativa pode ser ilustrada com as ocorrências dessa variante, já

expostas na Tabela 5.5: dos 92 dados de clítico lhe, apenas 2 foram registrados em cartas

amorosas; os outros 90 dados dividem-se igualmente entre as cartas pessoais e familiares.

Retomando as assertivas de Gomes (2003) e de outros estudiosos quando afirmam que, no

dialeto da área do Rio de Janeiro, o pronome lhe teria adquirido caráter de formalidade,

nossos resultados parecem estender essa colocação: na área do Rio de Janeiro, o clítico lhe

sempre deteve, na realidade, um traço pragmático associado à formalidade. Percebemos que,

em diversas missivas familiares e pessoais, remetentes e destinatários de diferentes décadas i)

não possuíam alto grau de intimidade, ou ii) tratavam de assuntos financeiros e/ou políticos,

que exigiam um tom de maior seriedade na escrita. Um número expressivo de clítico lhe

aparece justamente nesses casos, motivados pelo caráter [+formal] dessa variante. Os

exemplos abaixo ilustram essas ocorrências:

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(213) Alarico Land Avellar para o pai: “Bom é, todavia, que ele se lembre que já possuo 5/7

do negócio e que, de nenhum modo, me fará de tolo. Agora, em vez de histórias do

José, peço-lhe que procure o rapaz e fale-lhe diretamente, pondo o negócio em pratos

limpos.” [09-09-1916]

(214) Anna Espínola ao primo Cupertino: “Já tive notícia de ter João recebido os 100$, o que

de novo lhe agradeço. Porém o que ainda não sei é que quantia Maninha estregou-lhe,

porque eu mandei dizer a ela que entregasse 200$. Peço-lhe que me responda sobre isto

e também me diga quanto lhe devemos das duas publicações que o Espinola mandou

fazer.” [14-11-1874]

(215) Francisco Soares Brandão ao “Embaixador”: “(...) não ofereça, mais livros, venda, na

cérta não lhe escrever, mostrando interesse em possuir o livro, não ofereça diga que está

a venda em tal livraria e envie o endereço (...)” [25-06-1972]

Em suma, analisando especificamente as formas clíticas de dativo de 2PSG presentes

no corpus (clítico te vs. clítico lhe), concluímos que a variante te foi favorecida nas missivas

em que se utilizava somente o pronome tu na posição de sujeito e naquelas em que havia

alternância entre tu e você na posição de sujeito. Além disso, o te esteve amplamente presente

nos documentos da primeira metade do século XX. Quanto ao subgênero da carta particular,

as missivas amorosas favoreceram mais intensamente o uso da variante. Por outro lado,

constatamos que o emprego do clítico lhe foi propiciado pelas cartas familiares e pessoais

escritas na virada do século XIX para o século XX e na segunda metade do século XX em

diante, nas quais se empregava majoritariamente você em posição de sujeito.

5.3.3. Variantes conservadoras e inovadoras: clítico te vs. sintagmas preposicionados

Após analisarmos a aplicação da regra variável do dativo de 2SG opondo a variante

te ao dativo nulo e ao clítico lhe, restaram ainda outras quatro variantes preposicionadas: de

um lado, a ti e para ti, formas ligadas ao paradigma de tu; de outro, a você e para você,

ligadas ao paradigma do você. Optamos por reuni-las em uma rodada binária com o clítico te

por duas razões: primeiramente, devido à baixa produtividade dessas formas em todo corpus,

que impossibilitaria o cálculo do peso relativo entre, por exemplo, te x para você. Além disso,

acreditamos que os fatores que condicionam o aparecimento dessas formas sejam

semelhantes, tendo em vista que as quatro são introduzidas por preposição marcadora de caso.

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Expomos na Tabela 5.13 os quatro grupos de fatores selecionados na rodada: a forma do

objeto direto, a seção da carta, a forma utilizada na posição de sujeito e a categoria semântica

do verbo predicador.

Grupo de Fatores Fatores Nº/T Frequência P.R.

(i) Forma do objeto direto Clítica 3/6 50,0% .032 Sintagmática 202/245 82,4% .391 Oracional 128/130 98,5% .874 Nula 105/116 90,5% .380 (ii) Seção da carta Capt. de benevolência 21/22 95,5% .692 Núcleo 393/441 89,1% .563 Despedida 23/41 56,1% .125 P.S. 3/6 50,0% .031 Outra 24/28 85,7% .255 (iii) Forma utilizada na

posição de sujeito

Tu 194/211 91,9% .733 Você 85/120 70,8% .147 Tu/Você 184/205 89,8% .500 (iv) Categoria semântica do

verbo predicador

T. material 145/172 84,3% .348 T. verbal/perceptual 261/282 92,6% .656 Mov. físico 36/43 83,7% .554 Mov. abstrato 7/17 41,2% .032 Interesse 9/17 52,9% .137 Mov. Psicológico 6/7 85,7% .703

Tabela 5.13. Análise multivariada das formas dativas te x SPreps (Valor de Aplicação: clítico te)

O primeiro grupo de fatores selecionado, de caráter linguístico, corresponde à forma

do objeto direto nas estruturas ditransitivas. A ocorrência do clítico dativo te com um objeto

direto também sob a forma clítica é bem restrita, como indica o baixíssimo peso relativo

(0.032). No entanto, isso não significa que as formas preposicionadas sejam favorecidas nesse

caso, visto que só registramos, também, 3 ocorrências do a ti com clítico acusativo. Vários

estudos sobre o PB já demonstraram a baixa produtividade do clítico acusativo, especialmente

o de 3ª pessoa do singular, que tem sido substituído, tanto na fala quanto na escrita, pelo

objeto nulo ou pelo pronome lexical (cf. FREIRE, 2000, 2005).

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149

O segundo dado importante diz respeito à forma oracional do objeto direto, que

favorece a variante clítica em questão. Embora não tenha sido o contexto mais frequente de

aparecimento do clítico te na amostra – 128 dados com OD oracional contra 202 dados com

OD sintagmático –, essa forma pronominal marca 0.874 de P.R. nesse tipo de predicado.

Consoante afirmamos na seção de análise geral, esse elevado índice resulta da larga

ocorrência de verbos dicendi em nosso corpus, fato que justifica a presença maciça de OD

oracionais. Fazendo a leitura inversa dos pesos relativos, podemos inferir que o espaço

ocupado pelos sintagmas preposicionados nas estruturas ditransitivas seria, preferencialmente,

em predicados com objeto direto nulo ou sob a forma de sintagma (nominal ou pronominal).

Retomamos, a seguir, 2 exemplos já apresentados anteriormente do clítico te ocorrendo com

OD oracional. Ilustramos, ainda, a ocorrência das formas preposicionadas em sentenças com

objeto direto nulo e sintagmático:

(216) “Ontem à noite te prometi que iria hoje à casa de Dona Arminda, porém veja, meu

bem, que minha dignidade manda que eu lá não vá (...)” [21-10-1889]

(217) “Esqueci de te dizer que o ballet ‘Gabriela’ foi transferido para mais tarde. Quem sabe

estão te esperando?” [25-03-1983]

(218) “São 11 horas preciso dormir, se não fosse isso seria capaz de ficar a noite toda

escrevendo ø para ti” [02-03-1937]

(219) “Já não aguento mais falar com voce pela caneta. Não que não goste de escrever ø para

voce mas porque prefiriria não precisar escrevê-las mais sim ditá-las ou dizê-las.” [27-

09-1978]

(220) “Brevemente iremos á Santa Fé. Tua vovó é que talvez, não possa ir desta vez. Quando

eu for levarei alguma lembrança para ti e teus maninhos.” [08-07-1895]

(221) “Foi de uma alegria imensa saber que os tempos que passamos juntas ainda trazem boas

recordações pra você e inclusive pra mim.” [??-03-1982]

A seção da carta foi o segundo grupo de fatores selecionado na análise binomial te x

SPreps. A forma clítica te registra maior probabilidade de ocorrer na captação de

benevolência (0.692) e no núcleo da carta (0.563). Segundo o que já expomos na seção de

análise geral, atribuímos o alto índice verificado para a seção de captação de benevolência à

tradição discursiva de carta pessoal. Em nosso corpus, as missivas apresentaram, na seção de

captação de benevolência, formas discursivas cristalizadas que preservam o clítico te,

desfavorecendo o emprego das formas preposicionadas. Os exemplos comprovam a existência

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dessa construção formulaica em cartas de diferentes missivistas das amostras Land Avellar,

Casal dos anos 1930 e Afonso Penna Júnior:

(222) Edgard Land Avellar: Que você esteja gozando saúde é o que te desejo. (01-06-1913)

(223) Alexandre Penna: Desejo-te muita saúde em companhia de todos aí. (04-10-1915)

(224) Casal dos anos 1930: Desejo-te muitas felicidade assim como aos teus eu e os meus

vamos bem graças a Deus (23-09-1936)

(225) Casal dos anos 1930: Desejo-te que esta te vá encontrar em perfeita saúde assim como

os teus eu e os meus vamos bem graças a Deus (06-10-1936)

As seções de despedida e post scriptum (P.S.), entretanto, desfavoreceram a

ocorrência do te, segundo indicam os pesos relativos (0.125 e 0.031, nessa ordem). Vale

comentar que o P.S. é a seção da carta na qual, por vezes, encontramos as variantes

inovadoras a você e para você na escrita de remetentes que registram menor uso variável das

formas pronominais. Dito de outro modo, essa seção, prototipicamente destinada a anotações

repentinas e informações julgadas como relevantes pelo missivista que, por descuido ou

esquecimento, não as incluiu no corpo da carta, parece ser a “porta de entrada” da variação

pronominal de 2ª pessoa: sob a pressão do tempo para a finalização do texto, o grau de

monitoramento da escrita parece diminuir e, informantes como Emília Fonseca, esposa do

médico Oswaldo Cruz, deixam escapar o uso de pronomes que não corresponde ao padrão

utilizado no núcleo da carta:

(226) P.S. Papae esteve hoje com o Hilario De Gouveia elle perguntou muito por voce e disse

que ia te nomear para uma comissão contra a tuberculose e que pedia a voce para

acceitar e apparecer. Elle parte para a Europa no dia 26 d’este mez (18-10-1899)

Quanto à forma pronominal utilizada na posição de sujeito, terceiro grupo de fatores

selecionado, observamos que, novamente, o clítico te apresenta um peso relativo elevado nos

contextos em que há o uso exclusivo de tu (0.733) e nas cartas com alternância entre você e tu

na posição de sujeito (0.500). Nos contextos em que temos o uso exclusivo do pronome você

na posição de sujeito, o emprego da variante te é fortemente desfavorecido, segundo indica o

peso relativo de 0.147. Mais uma vez, interpretando os valores por uma ótica invertida, somos

conduzidos a pensar que esse é um contexto favorecedor aos sintagmas preposicionados,

especialmente a você e para você. O fato de essas duas variantes corresponderem à forma

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você acompanhada de preposição atribuidora de caso descarta a questão da uniformidade de

tratamento. Em outras palavras, se o clítico lhe não é utilizado, pois ele pode gerar

ambiguidade referencial, e se o clítico te não deve ser empregado, já que ele rompe a simetria

formal entre os pronomes de 2ª pessoa, então os missivistas lançam mão dessas estruturas

preposicionadas, que podem ser vistas como um tratamento neutro. Acrescentemos a isso, o

fato de o pronome você não dispor – ao menos no estágio da língua estudado – de formas

clíticas próprias do seu paradigma; sendo assim, quando o indivíduo não agrega o clítico te ao

você, a forma esperada seria, por conseguinte, um dos sintagmas preposicionados

mencionados.

Outro índice de peso relativo que merece comentário é o verificado para a mescla de

tratamento na posição de sujeito: nesse contexto, a variante te registra 0.500, ou seja,

exatamente 50% de chances de ocorrer. À primeira vista, isso parece não significar muito;

porém, vale lembrar que estamos focalizando o binário te x SPreps, no qual opomos o clítico

a quatro variantes (a ti, para ti, a você e para você). Assim sendo, o peso relativo observado

significa que, na disputa com as formas preposicionadas, a probabilidade de ocorrer o clítico

te em contexto de variação entre tu e você na posição de sujeito é de 50%.

Quarto e último grupo de fatores selecionado, a categoria semântica do verbo

predicador nos permite traçar observações interessantes. De acordo com os índices de peso

relativo, os verbos de movimento psicológico (0.703), transferência verbal e perceptual

(0.656) e de movimento físico (0.554) são os que mais favoreceram o uso da forma te.

Conforme mostramos na análise geral ao discutir os resultados da Tabela 5.3, obtivemos 9

ocorrências de dativo de 2PSG com esse tipo de verbo, dentre os quais seis delas foram com o

clítico te.

(227) “(...) acredito que na occasião te faltará a coragem e a ellas tambem (...)” [05-03-1895]

(228) “(...) nesta carta vou renovar o pedido que constantemente te faço, e, peço que em meu

nome o faças à tua boa Mãe, que, boa como ela é com certeza te atenderá: volta, meu

anjo, volta, querida, porque do contrário eu não resisto mais (...)” [16-04-1891]

O peso relativo também alto dos verbos que veiculam a noção de transferência verbal

e perceptual (0.656) confirma o favorecimento da forma te, já observado na alta frequência de

92,6%. Os verbos de movimento físico também confirmaram o favorecimento dessa variante

frente aos sintagmas preposicionados (0.554), já percebido no elevado percentual de

frequência de 83,7%. De maneira geral, podemos dizer que os índices verificados confirmam

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nossa hipótese de que o clítico te, por ser a estratégia mais produtiva, vincula-se aos verbos

com a noção semântica básica do dativo (polo de orientação para o qual tendem as

ações/processos expressos pela predicação da sentença). Seguindo a tipologia de dativo

adotada nesta dissertação e discutida no capítulo 2, os verbos de transferência verbal e

perceptual estão bem próximos ao núcleo de significação básica, atrás somente dos verbos de

transferência material. Podemos afirmar, pois, que a alta frequência do clítico te com esses

verbos relaciona-se, de fato, com uma “hierarquia semântica”, na qual a variante mais

frequente é favorecida pelos verbos “prototípicos” do caso dativo.

(229) “(...) fato que aqueles dois dias em que saimos fez-me ver que sempre gostei de voce.

Posso te provar que muita da minha alegria com que me despedi de voce era falsa.” [02-

08-1978]

(230) “Na Faculdade você vai conhecer milhões de pessoas, boas ou más, mas que a cada dia

te ensinarão lições de vida, porque é vivendo que se aprende a viver melhor.” [??-03-

1982]

As categorias semânticas que mais abriram espaço para as variantes preposicionadas

foram os verbos ditransitivos de movimento abstrato e os transitivos de interesse. Os índices

da Tabela 5.13 precisam com maior clareza os valores absolutos obtidos para as formas

preposicionadas em relação a esses verbos. Na seção de análise geral dos dados, os pronomes

dativos preposicionados registraram maior frequência entre os verbos de transferência

material. Atribuímos esse registro aos 17 dados de para você que apareceram relacionados ao

verbo mandar. Confrontando os números da Tabela 5.3 e os apresentados na Tabela 5.13,

com os valores absolutos relativizados pelo programa, vemos que essa categoria semântica

verbal favorece a ocorrência dos sintagmas preposicionados, embora não tenha sido a mais

propícia ao aparecimento dessas variantes (lendo os pesos relativos de maneira inversa,

percebemos que os índices de 0.032 dos verbos movimento abstrato, e de 0.137 dos verbos de

interesse são maiores do que o índice de 0.348 registrado para os verbos de transferência

material).

(231) “(...) tu sabes que só a ti é que pertenço, tu é a dona do meu coração, és a eleita de meus

sonhos, és a rainha de meu pensamento (...)” [19-01-1937]

(232) “Quando estivermos juntos de contarei o procedimento de certa gente, cuja posição vida

e fortuna a ti devem, são uns miseraveis, de alguns terás já noticia, de outros ficarás

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admirado, tempo ao tempo, nunca imaginei tanta pervesidade Deus He grande.” [15-11-

1893]

Em resumo, ao verificarmos o clítico te em oposição às quatro variantes

preposicionadas de dativo 2PSG, constatamos que a presença de um objeto direto oracional,

as seções de captação de benevolência e núcleo das cartas, o uso exclusivo do pronome tu e o

uso variável tu/você na posição de sujeito e a presença dos verbos de transferência verbal e

perceptual favorecem mormente a ocorrência do clítico te. Outrossim, a ocorrência de objeto

direto nulo ou sintagmático, as seções de despedida e P.S. das cartas, o uso exclusivo do você

na posição de sujeito e a presença dos verbos de movimento abstrato e de interesse atuam

favoravelmente ao aparecimento dos dativos de 2PSG sob a forma preposicionada.

5.4. A Uniformidade de tratamento: retornando à questão

Nos capítulo 3 desta dissertação, dedicamos alguns parágrafos à questão da

uniformidade de tratamento pronominal na 2ª pessoa do singular. Salientamos, dentre outras

coisas, o conservadorismo exacerbado que, ainda hoje, está presente nas gramáticas

tradicionais que, ao tratarem do quadro de pronomes pessoais, desconsideram a existência de

novas formas atuantes na representação das diferentes pessoas discurso; ao ignorarem, por

exemplo, a inserção do você no sistema pronominal do português utilizado no Brasil, acabam

por reproduzir um quadro de formas pronominais muito distante da nossa realidade, já que,

segundo os compêndios gramaticais, o pronome clítico te só se combinaria com o pronome tu

na posição de sujeito, de maneira que uma construção do tipo “você leu o livro que eu te dei?”

é rechaçada por romper a uniformidade de tratamento; formas de 2P só devem se combinar

com formas de 2P, assim como formas de 3P só podem se combinar com formas de 3P.

A combinação de pronomes de 2P com pronomes oriundos de 3P, mas que passam a

funcionar como referência à 2P, seria uma ruptura da simetria formal que o indivíduo não

deve cometer, sobretudo na língua escrita. Diante dessa prescrição recorrente nos manuais de

gramática, resolvemos atestar a validade dessa regra em nosso corpus, que, como foi

apresentado no capítulo 4, é formado por textos escritos no período de um século, período

esse que recobre a época em que o você implementou-se no sistema do PB, segundo os

estudiosos já referidos.

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Os resultados obtidos, ilustrados e comentados em 5.2 e 5.3, mostraram que a plena

correlação entre a forma pronominal utilizada na posição de sujeito e a forma do pronome

dativo (nosso objeto de estudo) não ocorre na diacronia analisada, sobretudo após a inserção

do você. Na etapa da análise variável, contudo, vimos que o grupo de fatores “forma utilizada

na posição de sujeito” foi selecionado nas três rodadas feitas entre o clítico dativo te e as

demais variantes do corpus (o dativo nulo, o clítico dativo lhe e os Spreps). Argumentamos,

sem nos aprofundarmos, que o fato de esse grupo de fatores ter sido selecionado como

relevante relacionava-se mais com as demais variantes do que com a forma te em si, pois essa

seria “imune” a praticamente todos os grupos de fatores elaborados para esta pesquisa; em

outras palavras, o te não parece ser nem favorecido e nem desfavorecido por nenhuma

variável independente controlada, pelo fato de ser a estratégia dativa mais frequente no corpus

em todos grupos de fatores.

Dentre todos esses pontos já expostos, uma pergunta ainda precisa ser respondida:

afinal, a uniformidade de tratamento, diferentemente do que acontece na variedade europeia

do português, é algo completamente falso para o português brasileiro? Todas as sete variantes

estudadas são permutáveis entre si, podendo ocupar quaisquer contextos para representar a 2ª

pessoa do singular na posição de dativo? Objetivando averiguar essa questão com mais

detalhamento, apresentamos os gráficos a seguir.

- A Variante te ao longo do século: mudança de paradigma

Gráfico 5.3. A frequência do clítico te nas cartas segundo a forma pronominal

do Sujeito na diacronia analisada (1880-1980)

67,8%

49,0%

25,8%

0,0% 0,0%

17,8%

11,8%

81,6%

32,2% 33,2%

63,2%

18,4%

0%

20%

40%

60%

80%

100%

1880-1905 1906-1930 1931-1955 1956-1980

Tu

Você

Mescla

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155

No Gráfico 5.3, distribuímos as frequências do clítico dativo te em nosso corpus

entre os quatro períodos de tempo analisados, tendo em vista o tratamento na posição de

sujeito. Em cada período, subdividimos as frequências do te entre as formas pronominais

utilizadas na posição de sujeito – somente tu, somente você e alternância tu/você. O resultado

revela-se bastante interessante: conforme indicam as linhas de tendência, ao longo da

diacronia considerada, o clítico te desassocia-se do pronome tu na posição de sujeito,

passando a combinar-se com o você. Se no 1º período, que compreende o intervalo de tempo

entre 1880 e 1905, quase 70% dos dados da forma te ocorriam em cartas cuja forma na

posição de sujeito era o pronome tu, no último período, entre 1956 e 1980, esse clítico dativo

aparece plenamente associado ao você (mais de 80% dos dados). Vale ressaltar também o

“encontro” entre as linhas de tendência da forma tu-sujeito e da forma você-sujeito no 3º

período (1930-1956): justamente na época da inserção do você no sistema.

Diante do gráfico, podemos afirmar que a uniformidade de tratamento não se aplica

aos nossos dados do clítico dativo te, que paulatinamente passou a associar-se ao você.

Precisamos, entretanto, verificar se combinações dessa natureza ocorrem livremente com as

demais variantes. Passemos ao Gráfico 5.4:

- A Variante lhe ao longo do século: manutenção do paradigma

Gráfico 5.4. A frequência do clítico lhe nas cartas segundo a forma pronominal

do Sujeito na diacronia analisada (1880-1980)

4,5% 0,0% 0,0% 0,0%

72,7%

91,0%

0,0%

100,0%

22,8%

11,0%

100,0%

0,0%

-20%

0%

20%

40%

60%

80%

100%

1880-1905 1906-1930 1931-1950 1956-1980

Tu

Você

Mescla

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156

Ao controlarmos os mesmos parâmetros em relação ao clítico dativo lhe, percebemos

que a situação modifica-se drasticamente: embora seja apenas a 3ª estratégia de dativo de 2ª

pessoa mais frequente na nossa amostra, conforme já demonstramos nas seções anteriores

desse capítulo, o clítico lhe, quando ocorreu em nosso corpus, estava fortemente associado à

forma você presente na posição de sujeito, como evidenciam as barras vermelhas do gráfico.

No primeiro período, cerca de 70% das ocorrências do clítico lhe estavam relacionadas ao

você na posição de sujeito; no último período, todas as ocorrências obtidas pertenciam a esse

contexto.

Combinações entre o pronome tu na posição de sujeito e o clítico dativo lhe

praticamente foram inexistentes, visto que a frequência desse tipo de ocorrência é irrisória, se

consideramos toda a diacronia. Corroborando o que já havíamos dito em 5.3.2, podemos

afirmar que o clítico lhe é condicionado pela forma pronominal na posição de sujeito e, nesse

contexto morfossintático, pelo menos na escrita epistolar do período analisado, a

uniformidade é respeitada. Analisemos, por fim, mais uma variante dativa, o sintagma

preposicionado para você.

- A Variante para você ao longo do século: emergência no sistema

Gráfico 5.5. A frequência do sintagma preposicionado para você

segundo a forma pronominal do Sujeito na diacronia analisada (1880-1980)

0,0% 0,0%

12,5%

0,0% 0,0%

100,0%

0,0%

94,0%

0,0% 0,0%

87,5%

6,0%

0%

20%

40%

60%

80%

100%

1880-1905 1906-1930 1931-1955 1956-1980

Tu

Você

Mescla

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157

No Gráfico 5.5., notamos que essa variante está, de fato, associada à implementação

do você no sistema de pronomes pessoais, haja vista que sua frequência de uso aumenta

gradualmente do primeiro ao último período, acompanhando a forma pronominal você-

sujeito. Entre os dados de 1880 e 1905, não houve um único registro do para você; este

aparece sempre associado, nos três períodos subsequentes, ao você (vale lembrar que no

contexto de alternância, pressupomos que as duas formas em variação credenciam suas

respectivas variantes). As linhas de tendência confirmam esse comportamento regular e

uniforme.

Diante das informações colocadas pelos três gráficos precedentes, podemos tirar uma

conclusão: a representação pronominal da 2ª pessoa do singular na posição de complemento

dativo no português brasileiro não é absolutamente caótica; 5 das 7 variantes registradas

possuem condicionamentos linguísticos e extralinguísticos bem demarcados, dentre os quais

destacamos a forma pronominal do sujeito. Parece que a entrada do você no sistema foi um

fator decisivo na “vida” das formas pronominais na posição de complemento. Vimos que, em

um período consideravelmente curto, os sintagmas preposicionados a ti e para ti

desapareceram da escrita epistolar de indivíduos situados na cidade do Rio de Janeiro e esse

desaparecimento, evidentemente, está ligado ao gradativo desuso do pronome-sujeito tu. Em

detrimento disso, emergem duas novas formas preposicionadas associadas ao pronome você,

como uma maneira de compensar as outras duas que se perderam. O objeto nulo, uma

estratégia neutra e não associada ao paradigma de nenhuma forma pronominal, manteve altos

índices de frequência, acentuados no período em que a variação entre as formas foi mais

intensa. O clítico lhe, forma que tem sofrido diferentes mutações, não desaparece por

completo – pelo menos no que diz respeito à escrita –, estando, contudo, fortemente

condicionado por diferentes fatores (grau de formalidade, subgênero da carta, forma

empregada na posição de sujeito). Em meio a essas perdas, ganhos e modificações, continua a

prevalecer o clítico dativo te, com uma “força de uso” tão grande que, como vimos, foi capaz

de desassociar-se de seu paradigma original, o do pronome tu, associando-se à nova forma

inserida, o pronome você.

Essa “recombinação” certamente não se deu de maneira tão simples como os

resultados numéricos e os gráficos podem sugerir. Acreditamos que outros processos tenham

ocorrido em torno desse item gramatical; alterações de ordem semântica, gramatical e

discursiva foram, sem dúvidas, decisiva para a “sobrevivência” da forma te. Essa análise, no

entanto, ultrapassa os limites desta dissertação e merecerá atenção especial em trabalhos

vindouros.

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6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com base nas discussões apresentadas e a partir dos resultados obtidos pela análise

empreendida acerca da representação da 2ª pessoa do singular na posição de dativo em cartas

particulares escritas entre as décadas 1880 e 1980 por cariocas e fluminenses, podemos

sumarizar alguns aspectos sobre o assunto, descritos e/ou comprovados ao longo desta

dissertação.

Em primeiro lugar, cabe resgatar a questão teórico-metodológica levantada no

capítulo 4 acerca da aplicação do modelo de trabalho da sociolinguística laboviana aos dados

de sincronias passadas. Dada a natureza e especificidade do corpus histórico, vimos que

analisar os dados obtidos a partir de fatores como gênero, faixa etária ou classe social seria

inviável, pois as informações disponíveis sobre os informantes do passado são, em geral,

incompletas, fragmentárias e escassas. Em contrapartida, procuramos demonstrar a

possibilidade de analisar a variação em perspectiva histórica, ao realizar uma série de

procedimentos metodológicos necessários. Diante disso, foi possível observar a dinâmica das

variantes de dativo de 2PSG na diacronia carioca/fluminense e obter resultados valiosos para

o estudo da variação pronominal no português brasileiro.

Verificamos que o clítico te era, de fato, a forma pronominal de complemento dativo

mais frequente na escrita dos informantes da diacronia estudada. Um fato curioso que pôde

ser evidenciado na análise dessa variante foi sua “aparente imunidade” à estratégia utilizada

na posição de sujeito. Isso significa dizer que, independentemente do subsistema de

tratamento empregado nessa posição – exclusivamente tu, exclusivamente você ou mescla

entre tu e você –, o clítico te ocorria e com produtividade relativamente alta em quase todas as

amostras apreciadas, podendo combinar-se com o pronome você.

Outra constatação feita em nossa pesquisa diz respeito ao dativo nulo. Conforme

indicaram os resultados quantitativos, esta parece sempre ter sido a segunda variante de

complemento dativo mais empregada. Além disso, os dativos nulos sofrem uma elevação de

frequência notável após os anos 1930, ou seja, no período indicado pelos estudiosos em que a

forma você começa a ser utilizada em textos escritos com estatuto de pronome pessoal.

O clítico lhe figurou no corpus analisado como uma variante de frequência irregular,

cujo uso apareceu extremamente condicionado a variáveis de ordem linguística e

extralinguística. A referida estratégia não sofreu aumento significativo de recorrência após a

gramaticalização do você. Dito de outro modo, o pronome você, ao passar a ser utilizado

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como pronome pessoal, não trouxe consigo em grande intensidade a forma de 3ª pessoa do

singular lhe. Esta atua como dativo na escrita carioca/fluminense em contextos bem definidos,

associado, principalmente, a cartas com menor grau de intimidade entre remetentes e

destinatários conferindo caráter de formalidade.

Os sintagmas preposicionados, conforme colocamos por hipótese, registraram baixos

índices de frequência em todos os períodos analisados. Ao traçarmos um paralelo com o

resultado obtido por outros trabalhos (GOMES, 2003; OLIVEIRA SILVA, 2011; LOPES &

CAVALCANTE, 2011), podemos perceber que a distribuição das três estratégias principais

de realização do dativo – clítico, objeto nulo e sintagma preposicionado – corresponde a uma

organização estrutural do próprio sistema linguístico, diferente daquela observada para os

complementos de 3SG, em que os índices das formas preposicionadas superam os índices de

clíticos. Portanto, a baixa frequência dos complementos dativos preposicionados em

referência à 2SG não é consequência da variação focalizada por esta dissertação, mas antes da

configuração do sistema pronominal do português brasileiro. Interessante foi observar, ao

longo do século investigado, o desaparecimento gradual de a/para ti seguido da emergência

de a/para você na variedade do Rio de Janeiro.

No âmbito das Tradições Discursivas, constatamos que os subgêneros do gênero

carta particular influenciaram diretamente a ocorrência das variantes em análise. De maneira

geral, os resultados indicaram que o clítico lhe relacionava-se diretamente ao baixo grau de

intimidade entre missivista e destinatário e, por isso, foi mais frequente em cartas trocadas

entre amigos ou pessoas próximas dentro de um dado círculo de convivência social. Por outro

lado, os sintagmas preposicionados a/para ti foram registrados, em sua grande maioria, nos

dados extraídos das cartas amorosas, com um traço lírico-romântico marcante.

A uniformidade de tratamento não se revelou, na amostra, como uma realidade

linguística concreta na escrita epistolar de fins do século XIX e quase todo o século XX.

Encontramos, em boa medida, a combinação Você-sujeito com te-dativo nos dados de

indivíduos com diferentes graus de domínio de escrita (inclusive entre os “cultos”). Sendo

assim, adotando os resultados dessa pesquisa, não haveria uma motivação/herança de cunho

histórico para a preservação nos compêndios gramaticais e escolares de uma lição na qual é

prescrito o uso uniforme dos pronomes de referência à segunda pessoa.

O núcleo social ao qual pertenciam os missivistas demonstrou ser um fator

extralinguístico determinante para a escolha das variantes dativas. Baseando-nos na

heterogeneidade dos perfis sociolinguísticos encontrados no corpus, tornou-se evidente que

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escreventes de diferentes categorias sociais não utilizavam sempre as mesmas formas

pronominais para a representação do complemento dativo.

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