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Pontes ENTRE O COMÉRCIO E O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL Julho 2010 Vol.6 No.2 ISSN: 1813-4378 Para receber o PONTES via e-mail, favor escrever uma mensagem para [email protected], informando seu nome e profissão. PONTES está disponível on-line em: www.ictsd.org/news/pontes/ Você sabia? 1 Eleições na América do Sul: que impactos sobre a integração regional? 4 Potenciais impactos da Rodada Doha no mercado mundial de algodão Mário Jales 6 Financiamento climático e suas condicionantes Carolina Lembo, José Luiz Pimenta Junior, Walter Figueiredo De Simoni 8 A proposta brasileira na OMPI sobre exceções e limitações ao direito de patente e a Agenda do Desenvolvimento Joana Varon Ferraz 10 Crise e protecionismo de resgate: algumas tendências Diana Tussie, Linda Currán 12 Desvalorização cambial na Venezuela: efeitos sobre o comércio e a integração na América do Sul 14 Acesso a recursos genéticos e repartição de benefícios no Brasil Eduardo Vélez Fonte: Germanwatch, 2010. Disponível em: <http://www.germanwatch.org/klima/ccpi2010.pdf> Que, segundo estudo produzido pela organização alemã Germanwatch, o Brasil obteve o melhor desem- penho entre os países que têm se esforçado em adotar ações de mitigação e adaptação às mudanças climáticas? Contudo, o documento considera que nenhum país está empreendendo esforços suficientes nesse sentido, motivo pelo qual as três primeiras posições do ranking não foram ocupadas. Eleições na América do Sul: que impactos sobre a integração regional? Diante do agitado calendário eleitoral na América do Sul entre 2010 e 2011, o Pontes debate os possíveis impactos da escolha de novas lideranças na região sobre as negociações comerciais. Neste artigo, são identificadas as principais alterações nos padrões de associação da região, com vistas a traçar perspectivas para a integração comercial na América do Sul no contexto da emergência de novas lideranças. Os calendários de 2010 e 2011 serão marcados pela emergência de novos líderes em sete dos dez países que compõem os principais projetos de integração na América do Sul. Chile, Colômbia e Uruguai elegeram recentemente seus novos presidentes, e a escolha do novo mandatário brasileiro será conhecida em finais deste ano. Em 2011, Argentina e Peru terão eleições pre- sidenciais. O agitado calendário eleitoral nesse biênio reacende o debate acerca dos possíveis impactos da emergência de novas lideranças políticas na região sobre as negociações de comércio internacional. Mais do que isso, as recentes alterações no mapa da integração sul- -americana chamam a atenção para as perspec- tivas dos principais blocos regionais da América do Sul no contexto das eleições presidenciais. Em muitos dos países dessa região, a temática da integração tem ocupado posição de destaque nas estratégias de governo dos candidatos. Por exemplo, no Brasil, o Mercado Comum do Cone Sul (Mercosul) constituiu recentemente objeto de debates entre os dois principais candidatos à corrida presidencial. O presidente recentemente eleito no Uruguai, José Mujica destacou, em seu discurso de posse, a importância do Mercosul para o país, ao mesmo tempo em que exigiu maior reciprocidade dos países membros do bloco. Mais precisamente, a ênfase do mandatário uruguaio tem sido a redução de assimetrias entre os integrantes do Mercosul. Como candidato nas eleições no Chile, Sebastián Piñera assegurou que direcionaria atenção ao estreitamento dos laços do país com a América do Sul e a Ásia. O novo mandatário criticou, entretanto, a carência de um objetivo claro nas iniciativas de integração em andamento na América do Sul. Ranking Tendência País Pontuação Tendência Nível Política Brasil Suécia Reino Unido Pontuação Parcial

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PontesENTRE O COMÉRCIO E O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

Julho 2010

Vol.6 No.2

ISSN: 1813-4378

Para receber o PONTES via e-mail, favor escrever uma mensagem para [email protected], informando seu nome e profissão. PONTES está disponível on-line em: www.ictsd.org/news/pontes/

Você sabia?

1 Eleições na América do Sul: que impactos sobre a integração regional?

4 Potenciais impactos da Rodada Doha no mercado mundial de algodão Mário Jales

6 Financiamento climático e suas condicionantes

Carolina Lembo, José Luiz Pimenta Junior, Walter Figueiredo De Simoni

8 A proposta brasileira na OMPI sobre exceções e limitações ao direito de patente e a Agenda do Desenvolvimento

Joana Varon Ferraz

10 Crise e protecionismo de resgate: algumas tendências

Diana Tussie, Linda Currán

12 Desvalorização cambial na Venezuela: efeitos sobre o comércio e a integração na América do Sul

14 Acesso a recursos genéticos e repartição de benefícios no Brasil Eduardo Vélez

Fonte: Germanwatch, 2010. Disponível em: <http://www.germanwatch.org/klima/ccpi2010.pdf>

Que, segundo estudo produzido pela organização alemã Germanwatch, o Brasil obteve o melhor desem-penho entre os países que têm se esforçado em adotar ações de mitigação e adaptação às mudanças climáticas? Contudo, o documento considera que nenhum país está empreendendo esforços suficientes nesse sentido, motivo pelo qual as três primeiras posições do ranking não foram ocupadas.

Eleições na América do Sul: queimpactos sobre a integração regional?Diante do agitado calendário eleitoral na América do Sul entre 2010 e 2011, o Pontes debate os possíveis impactos da escolha de novas lideranças na região sobre as negociações comerciais. Neste artigo, são identificadas as principais alterações nos padrões de associação da região, com vistas a traçar perspectivas para a integração comercial na América do Sul no contexto da emergência de novas lideranças.

Os calendários de 2010 e 2011 serão marcados pela emergência de novos líderes em sete dos dez países que compõem os principais projetos de integração na América do Sul. Chile, Colômbia e Uruguai elegeram recentemente seus novos presidentes, e a escolha do novo mandatário brasileiro será conhecida em finais deste ano. Em 2011, Argentina e Peru terão eleições pre-sidenciais. O agitado calendário eleitoral nesse biênio reacende o debate acerca dos possíveis impactos da emergência de novas lideranças políticas na região sobre as negociações de comércio internacional. Mais do que isso, as recentes alterações no mapa da integração sul--americana chamam a atenção para as perspec-tivas dos principais blocos regionais da América do Sul no contexto das eleições presidenciais.

Em muitos dos países dessa região, a temática da integração tem ocupado posição de destaque

nas estratégias de governo dos candidatos. Por exemplo, no Brasil, o Mercado Comum do Cone Sul (Mercosul) constituiu recentemente objeto de debates entre os dois principais candidatos à corrida presidencial.

O presidente recentemente eleito no Uruguai, José Mujica destacou, em seu discurso de posse, a importância do Mercosul para o país, ao mesmo tempo em que exigiu maior reciprocidade dos países membros do bloco. Mais precisamente, a ênfase do mandatário uruguaio tem sido a redução de assimetrias entre os integrantes do Mercosul.

Como candidato nas eleições no Chile, Sebastián Piñera assegurou que direcionaria atenção ao estreitamento dos laços do país com a América do Sul e a Ásia. O novo mandatário criticou, entretanto, a carência de um objetivo claro nas iniciativas de integração em andamento na América do Sul.

RankingTendência

P a í s PontuaçãoTendência Nível Política

Brasil

Suécia

Reino Unido

Pontuação Parcial

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Pontes Julho 2010 Vol.6 No.2

2 www.ictsd.org/news/pontes/

Espaço aberto

EditorialEstimado(a) leitor(a),

Diante da temporada de eleições presidenciais no biênio 2010-2011, o Pontes debate os possíveis impactos da emergência de novas lideranças sul-americanas sobre as perspectivas dos projetos de integração regional. Esse artigo inaugura uma série de análises a respeito de problemáticas pertinentes à América do Sul no contexto das eleições.

Voltando o olhar às negociações de liberalização comercial da Rodada Doha, um dos pontos mais sensíveis encontra-se na concessão de subsídios para o setor agrícola realizada pelos países desenvolvidos (PDs). Um exemplo emblemático é a política de apoio dos Estados Unidos da América (EUA) aos cotonicultores. Apesar da condenação de tal prática no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC), os programas de subsídios estadunidenses continuam em vigor. Diante disso, Mário Jales traça projeções de diferentes cenários para a solução da questão dos subsídios ao algodão. O autor estima os impactos para os preços mundiais, a produção e o comércio do produto no caso de um acordo em Doha ou da implementação das recomendações feitas aos EUA pelos painéis da OMC.

Ainda na esfera multilateral, uma proposta apresentada pelo Brasil busca introduzir reformas ao regime de propriedade intelectual negociado e administrado sob os auspícios da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI). Joana Ferraz discute os principais elementos da proposta brasileira e como ela pode contribuir para a incorporação de flexibildades aos direitos de propriedade intelectual nas políticas públicas nacionais.

Entre as questões ambientais, o Pontes destaca os debates realizados no âmbito da última reunião preparatória para a 16ª Conferência das Partes (COP) da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC, sigla em inglês), realizada em Bonn, em junho. Em sua análise, os autores Carolina Lembo, José Pimenta e Walter Figueiredo buscaram aprofundar os aspectos relacionados ao financiamento, tema cada vez mais nevrálgico para as negociações climáticas.

Nesta edição, a série sobre biodiversidade prossegue com uma análise dedicada ao tema de Acesso a Recursos Genéticos e Repartição de Benefícios (ABS, sigla em inglês). Como um dos principais países detentores de biodiversidade, o assunto é particularmente sensível ao Brasil, que lidera o grupo de países megadiversos em busca de fortalecer o regime de ABS na Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB). Diante desse cenário, Eduardo Velez discute a legislação brasileira que disciplina o tema, os resultados alcançados até o momento, bem como os pontos sensíveis e as iniciativas de reforma.

Esperamos que aprecie a leitura.

A Equipe Pontes

A análise das perspectivas para a integração na América do Sul passa necessariamente pela identificação de padrões nas negociações comerciais dos países da região. A partir desses elementos, é possível observar mudanças na trajetória de determinado país em matéria comercial. Cabe destacar, contudo, que a relação dessas alterações com a eleição de um novo mandatário deve ser analisada com a devida ponderação, haja vista a miríade de fatores envolvidos nas escolhas de políticas comerciais.

Padrões de negociação comercial na América do SulDiante da diversidade de experiências de integração na América do Sul, uma forma de definir padrões de atuação na esfera comercial envolve refletir sobre o nível de desenvolvimento dos parceiros que o país tem buscado – se países desenvolvidos (PD) ou em desenvolvimento (PED) –, bem como no foco geográfico da busca por parcerias comerciais – intra ou extrarregional.

Colômbia e Peru, por exemplo, são países que há tempos buscam uma aproximação com os Estados Unidos da América (EUA). O Peru assinou acordos de livre comércio com Canadá, China, Cingapura, Tailândia, além dos EUA. Destes, todos tiveram suas negociações iniciadas durante a gestão de Alan García, à exceção daqueles celebrados com a Tailândia e os EUA, cujas tratativas começaram, respectivamente, em 2002 e 20041. Cabe destacar, ainda, que o atual presidente peruano deu início à negociação de acordos de livre comércio com Coreia do Sul, Japão e México, bem como de um acordo Transpacífico. É notória, portanto, a atenção deste país às relações bilaterais com os EUA e extrarregionais, com especial ênfase na Ásia.

Ao longo do mandato de Álvaro Uribe, a Colômbia negociou um acordo de livre comércio envolvendo El Salvador, Guatemala e Honduras, em vigor desde 2009, além de iniciar diálogos com Coreia do Sul (2009) e Panamá (2010). Essa gestão também tratou de dar andamento à vigência do acordo com o Chile. Na Colômbia, é possível identificar uma alteração substancial na condução da política comercial após meados da década de 1990, quando o país deixou de empreender esforços para a consecução de arranjos deste tipo na América do Sul2 e passou a privilegiar o aprofundamento dos laços com América Central, Ásia e EUA.

Tais opções extrarregionais foram buscadas isoladamente por tais países muito em parte devido ao fracasso da integração andina. As divergências políticas entre os membros da Comunidade Andina de Nações (CAN) forçaram a marginalização do projeto, a qual foi agravada em 2006, com a retirada da Venezuela e as constantes ameaças de deserção por parte de Bolívia e Equador. Os motivos para essa ruptura estão diretamente relacionados aos países e blocos com os quais alguns membros da CAN decidiram negociar.

O alinhamento estreito entre Colômbia e EUA constituiu o principal argumento de Hugo Chávez para justificar a retirada da Venezuela do bloco andino. Para o presi-dente venezuelano, a influência dos EUA na região era demasiada. O mandatário não se referia apenas à opção da Colômbia, mas também do Peru, pela negociação do tratado de livre comércio com a potência norte-americana.

Ademais, Bolívia e Equador mostraram insatisfação com relação ao curso tomado pelas tra-tativas do acordo bilateral envolvendo a CAN e a União Europeia (UE), iniciadas em 2007. Os dois países optaram pelo abandono das negociações devido às profundas divergências entre as Partes andinas em matéria de propriedade intelectual, proteção da biodiversidade e tarifas sobre a banana. Com isso, seguiu-se a adoção de um novo modelo de diálogos fun-dado na adaptação às necessidades de cada Parte. Sob esta nova dinâmica, Colômbia e Peru finalizaram as negociações antes dos demais membros, em março de 2010.

Se considerarmos que as próximas eleições na Bolívia, no Equador e na Venezuela estão distantes, é difícil imaginar que o panorama comercial observado na região andina seja significativamente modificado. Isso porque a vitória recente de Juan Manuel Santos na Colômbia, candidato apoiado por Álvaro Uribe (2002-2010), aponta para a continuidade da preferência pelo alinhamento aos EUA.

No Peru, os baixos índices de aprovação do atual presidente Alan García3 tornam provável o surgimento de novas propostas políticas e econômicas nas campanhas eleitorais de 2011, inclusive na esfera comercial. Contudo, na trajetória política peruana, insatisfações de ordem econômica e social conduziram à alteração do partido governante, mas não da política comercial do país.

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Espaço aberto

Um outro padrão de associação comercial observado entre os países sul-americanos tem nos PEDs os principais interlocu-tores das negociações. O grupo que inclui Bolívia, Equador e Venezuela tem buscado uma forma diferenciada de integração, na medida em que articula uma agenda pautada primordialmente na coordenação política e social entre os países membros, como nos casos da Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América (Alba) e da União de Nações Sul-Americanas (Unasul). Cabe destacar que os governos de Hugo Chávez, Evo Morales e Rafael Correa representaram pontos de inflexão na condução da política comercial de seus países, sendo a mudança mais significativa a ruptura das relações amistosas com os EUA.

Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai também têm privilegiado associações comerciais envolvendo PEDs. Embora as negociações com a UE possam ser consideradas um desvio em relação a essa tendência geral, as perspectivas para um acordo entre os dois blocos não parecem positivas à luz dos recentes desdobramentos. Na última rodada de negociações, a delegação europeia criticou a imposição, pela Argentina, de barreiras comerciais a produtos agrícolas da UE. Mais do que colocar em questão o curso das tratativas com o bloco europeu, tais práticas protecionistas desafiam a coesão interna do Mercosul.

Desde a sua criação, este bloco constitui o principal sujeito das negociações de comércio internacional envolvendo os países mem-bros. De modo geral – e principalmente no contexto mais recente –, o Mercosul tem buscado aprofundar as relações com o eixo Sul-Sul, bem como os países da CAN. Em ambas as frentes, os resultados foram pouco expressivos: no eixo Sul-Sul, foi celebrado apenas um acordo, com Israel (2010); e, no que toca aos diálogos junto à CAN, a fragilidade desta dificultou a observação de avanços significativos.

O principal desafio do Mercosul parece residir no âmbito interno. As críticas à estrutura decisória do bloco e à falta de prioridade ao objetivo de reduzir assimetrias já constituíam o foco das críticas das lideranças no Paraguai e Uruguai desde início dos anos 2000. Estas objeções foram acentuadas com a eleição de Fernando Lugo (2008-atual) no Paraguai e de Tabaré Vázquez (2005-2010) no Uruguai. A ascensão de José Mujica à Presidência uruguaia veio acentuar tais demandas.

De outro lado, a relação comercial entre os dois principais sócios do Mercosul encontra-se desgastada desde a crise econômica de 2008, contexto em que a Argentina suspendeu licenças automáticas às importações brasileiras. Como resultado disso, no primeiro semestre de 2009, as exportações brasileiras à Argentina sofreram queda de 43%. As medidas adotadas pelo Brasil em retaliação afetaram 9% das exportações argentinas, prejudicando a entrada de produtos como frutas, alho, vinho, queijo, cosméticos e farinha de trigo.

Esse quadro tem sido alvo de críticas no setor privado brasileiro. Para o diretor de comércio exterior da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Roberto Fonseca, o Brasil deveria abandonar a estratégia de negociação em bloco, “dar um passo atrás e reinventar o Mercosul como área de livre comércio”.

A proposta do setor privado é apoiada pelo candidato José Serra, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), que recen-temente defendeu a flexibilização do Mercosul. Para Serra, o bloco deveria ter sido anteriormente fortalecido como área de livre comércio, para que então se tornasse uma união aduaneira.

Diferentemente, a principal opositora, Dilma Rousseff, do Partido dos Trabalhadores (PT), acredita no fortalecimento do Mercosul como alternativa às dificuldades enfrentadas pelo bloco. A depen-der dos resultados nas eleições do Brasil, a temática do Mercosul poderá entrar com maior força na campanha eleitoral argentina.

Quanto ao Chile, apesar de sublinhar a integração com a América do Sul como uma de suas prioridades, o novo mandatário Sebastián Piñera encontrará dificuldades de ordem política para empreender um aprofundamento das relações do Chile com a região. Tendo em vista a orientação à direita de seu governo, o alinhamento com países como Equador, Bolívia e Venezuela parece pouco provável. No âmbito do Mercosul, essa dificuldade persiste, na medida em que avança o processo de adesão da Venezuela ao bloco. Assim, o aprofundamento das relações com a Ásia – outra região que se encontra entre as prioridades da gestão Piñera – será, possivelmente, favorecido nesse contexto. Um primeiro sinal disso foi a recente conclusão das negociações de um tratado de livre comércio entre o país sul-americano e a Malásia. Ao ser ratificado, este tratado será somado aos demais que o Chile já possui com países asiáticos – China, Coreia do Sul e Japão.

Dessa forma, a atual gestão pode representar um afastamento em relação ao Cone Sul – ou mesmo à região como um todo –, uma vez que sua antecessora, Michelle Bachelet, privilegiara o retorno ao que acreditava ser a “vocação latino-americana” do Chile.

Considerações finaisA análise dos padrões gerais de negociação dos países sul-ame-ricanos revela a predominância de uma tendência centrífuga de associação comercial: alguns países voltados aos EUA, uns mais enfáticos ao aprofundamento das relações com a Ásia e outros que defendem arranjos com PEDs da própria região. O único projeto de integração comum a todos os países sul-americanos é a Unasul, a qual, entretanto, não se pauta nas relações comerciais.

Assim, embora conste nas campanhas presidenciais de parcela significativa dos países da região, a integração na América do Sul parece representar mais um elemento retórico. Mesmo nos países vinculados a blocos subregionais, é possível questionar o alinhamento de seus Estados membros, como no caso da CAN e do Mercosul.

É preciso ressaltar que esse quadro não resulta unicamente de escolhas realizadas nas eleições. Em alguns casos, como Colômbia, Peru e Uruguai, a emergência de novas lideranças significou mais uma mudança em termos de intensidade do que de orientação da política comercial. Em outros países a alteração desta mostrou-se mais significativa, como nas experiências de Bolívia, Equador, Paraguai e Venezuela.

De todo modo, a crescente visibilidade adquirida por temas de política externa nas agendas eleitorais incrementará o debate em torno dessas temáticas. Entretanto, a distância entre a retórica da agenda e a prática política na região deixa em suspenso as expectativas por alterações substanciais em um contexto pró-ximo. Se não significar a revisão, no curto prazo, da tendência centrífuga na integração sul-americana, que a maior visibilidade desta realidade contribua, ao menos, para o amadurecimento do debate em torno de propostas nesse sentido.

1 O acordo com a Tailândia entrou em vigor em 2005. Já aquele com os EUA passou a vigorar somente a partir de 2009. Ver: <http://www.mincetur.gob.pe/newweb/Default.aspx?tabid=127>.

2 Um exemplo emblemático desse período constitui o acordo de livre comércio assinado entre Colômbia, México e Venezuela, em 1994, em vigor desde 1995.

3 Em abril de 2010, registrou-se apenas 26% no nível de aprovação ao presidente peruano. Ver: <http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/ internacional/2010/04/05/lula-e-segundo-governante-mais-bemavaliado-do-continente-diz-levantamento.jhtm>. Cabe destacar, de todo modo, que a Constituição peruana permite que um candidato seja eleito mais de uma vez ao cargo presidencial, mas proíbe a reeleição imediata.

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OMC em foco

Potenciais impactos da Rodada Doha no mercado mundial de algodão1

A Rodada Doha de negociações comerciais pode produzir impactos positivos sobre os preços mundiais do algodão e sobre a produção e exportação dos países em desenvolvimento (PEDs). Contudo, a probabilidade desse resultado depende dos limites adotados pelos membros da Organização Mundial do Comércio (OMC) para o apoio doméstico direcionado a produtos específicos.

Os subsídios ao algodão têm sido uma das questões mais sensíveis da Rodada Doha, do ponto de vista político. O substancial apoio concedido aos produtores domésticos pelos países desenvolvidos (PDs) continua a depreciar o preço internacional do algodão e a minar a competitividade de produtores dos PEDs. Exportadores tradicionais como Benin, Burkina Faso, Chade e Mali – que integram o grupo conhecido como Cotton Four (C-4) – denunciaram os efeitos dos subsídios sobre a pobreza e a insegurança alimentar no setor agrícola. O grupo também demandava a criação de um mecanismo para a eliminação gradual dos subsídios ao algodão. Diante da reação apática por parte dos países que concedem estes subsídios, tais apelos perderam força.

Um estudo divulgado recentemente pelo International Centre for Trade and Sustainable Development (ICTSD) avalia as implicações de um acordo sobre o algodão, dentro do regime multilateral de comércio, para países exportadores e importadores. O estudo estima os efeitos sobre o preço, a produção e o comércio que um acordo para redução de subsídios e tarifas ao algodão poderia produzir, com foco primário na Rodada Doha. Para cada cenário, o modelo simula os preços e quantidades que teriam sido obtidos em um ano-base, caso as reformas atribuídas neste cenário fossem aplicadas retroativamente àquele ano. As simulações cobrem dez anos-base (1998-2007), o que permite apreciar uma grande variação nos preços e níveis de subsídios, bem como refletir as tendências recentes de oferta e demanda.

CenáriosOs dois primeiros de cinco modelos alternativos de reforma são colocados no contexto da Rodada Doha. Os três modelos seguintes consistem em medidas que podem ser contrastadas aos possíveis desfechos da Rodada.

O cenário A modela o esboço revisado de modalidades, de dezembro de 2008, que contém diversas provisões específicas sobre o setor de algodão. Dentre estas, destacam-se os limites rigorosos sobre medidas de suporte agregadas (AMS, sigla em inglês) para produtos específicos, apoio da caixa azul e extensão de acesso livre de cotas e tarifas para exportadores de algodão de países de menor desenvolvimento relativo (PMDRs).

O cenário B também baseia-se no esboço de modalidades, porém se distingue do anterior por submeter o algodão à disciplina geral aplicável aos demais produtos agrícolas. Considerando que a Conferência Ministerial de Hong Kong (2005) estipulou que os subsídios ao algodão deveriam sofrer redução superior à fórmula geral alcançada, o desfecho da Rodada Doha deve ser mais ambicioso do que o descrito no cenário B.

Por sua vez, o cenário C simula a implementação, pelos Estados Unidos da América (EUA), das recomendações feitas pelo Órgão de Solução de Controvérsias (OSC) no contencioso do algodão, quais sejam: (i) retirada das garantias de crédito à exportação e dos pagamentos à comercialização; e (ii) remoção dos efeitos prejudiciais dos pagamentos do programa de empréstimo para comercialização (MLP, sigla em inglês) e dos pagamentos anticíclicos (CCP, sigla em inglês).

Já o cenário D simula as medidas insuficientes tomadas pelos EUA em resposta às recomendações do OSC. Embora o país tenha retirado parte dos subsídios proibidos, não reverteu os efeitos prejudiciais dos MLP e CCP.

Por fim, o cenário E afasta-se das negociações multilaterais e litígios para concentrar-se nas reformas internas dos EUA e da União Europeia (UE). As projeções baseiam-se em alterações introduzidas pela Lei Agrícola dos EUA de 2008 e pela Política Agrícola Comum (PAC) europeia para o biênio 2003-2004.

Impactos sobre os preçosDe acordo com os dados levantados, os impactos sobre os preços são moderados ou elevados no cenário A, baixos nos cenários B e C e desprezíveis nos cenários D e E. A variação substancial nos resultados em relação ao ano considerado deve-se em grande parte à natureza anticíclica de parte considerável dos subsídios ao algodão notificados. Os efeitos estimados para os preços são mais altos em anos nos quais os preços mundiais estiveram abaixo da média ou a concessão de apoio doméstico foi mais alta, como em 1999 e 2001.

Se as tarifas e os subsídios tivessem sido reduzidos entre 1998 e 2007, conforme descrito no cenário A, o preço mundial do algodão teria aumentado em média 6% – variando entre 2% e 10%. Contudo, se o algodão tivesse recebido tratamento como produto agrícola padrão (cenário B), o preço médio teria sido elevado em apenas 2,5%. Essa diferença decorre principalmente do limite dos subsídios domésticos distorcivos concedidos pelos EUA em cada cenário: US$ 510 milhões no cenário A e US$ 2,24 bilhões no cenário B. Uma vez que o nível médio de apoio concedido aos produtores estadunidenses de algodão entre 1998 e 2007 equivale a aproximadamente US$ 2,25 bilhões, é natural a constatação de que os cortes nos subsídios não são significativos no cenário B. A remoção das provisões relativas ao algodão do texto de modalidades reduziria a possibilidade de que a Rodada Doha resultasse em níveis baixos de subsídios e em preços mais elevados de algodão no mundo.

Mário Jales*

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OMC em foco

Comparativamente, caso os EUA tivessem implementado as recomendações do painel no contencioso do algodão (cenário C), os preços mundiais do produto teriam aumentado em média 3,5% entre 1998 e 2007. A implementação das recomendações, ainda que insuficiente (cenário D), teria resultado em elevação de 0,7% na média do preço mundial. Caso as reformas recentes nos EUA e na UE tivessem vigorado durante todo o período de 1998 a 2007 (cenário E), o preço mundial teria sido incrementado em 0,7%, em média. A PAC da UE teria sido responsável por toda essa elevação, enquanto a Lei Agrícola dos EUA não teria causado qualquer impacto no preço mundial do algodão.

Impactos sobre a produçãoOs efeitos sobre a produção apresentariam variação significativa de acordo com os países e cenários considerados. A produção teria sido reduzida em países que diminuíssem os níveis de subsídios concedidos e tarifas aplicadas. Sob outras hipóteses, a produção teria aumentado.

No cenário A, as produções estadunidense e europeia teriam diminuído em 9% e 24%, respectivamente. Nos anos em que se verificou baixa recorde nos preços mundiais, o declínio na produção dos EUA teria sido superior à média de 15%. Em 2001, a produção estadunidense teria decrescido 680 toneladas métricas, quantidade superior à soma produzida pelos países do C-4 naquele ano. A queda na produção de EUA e UE teria sido praticamente compensada pela expansão em outros países. Em média, a produção teria sido 2% maior na Austrália, Brasil, Paquistão, Turquia e em países da Ásia Central e do C-4. Na Índia e na China o acréscimo corresponderia a 1%. Porém, esse resultado seria devido principalmente ao aumento no valor da produção desses países, o qual seria elevado entre 6% e 8%, em média, e 11% e 13% em anos de pico no nível dos subsídios.

O impacto sobre a produção teria sido sensivelmente menor no cenário B. Em média, os volumes produzidos seriam reduzidos em 4% nos EUA e não seriam alterados na UE. O aumento médio em outros países seria limitado (entre 0,8% e 0,3%). No cenário C, a produção nos EUA diminuiria em 7%, em média. Como reflexo disso, a produção cresceria 1% em Austrália, Brasil, Paquistão, Turquia e em países da Ásia Central e do C-4, bem como 0,5% na China e na Índia. Nos cenários D e E, a produção não seria relevantemente afetada em nenhum país, à exceção da UE, que, no cenário E, teria redução de 14%.

Impactos sobre o comércioEntre os países exportadores, os volumes exportados teriam diminuído nos EUA e crescido em Austrália, Brasil, Índia e em países da Ásia Central e do C-4. Os incrementos simultâneos nas quantidades exportadas e nos preços mundiais teriam causado elevações no valor das exportações para todos os países, exceto os EUA. As alterações no nível de exportações seriam maiores no cenário A, moderadas nos cenários B e C e insignificantes nos cenários D e E. Os países com setores desenvolvidos de manufatura têxtil seriam os maiores beneficiários.

Entre os maiores importadores – Bangladesh, China, Indonésia, Paquistão e Turquia –, os volumes importados teriam decrescido em todos os cenários analisados, em razão da expansão da produção e retração da demanda doméstica. Uma vez que as reduções das quantidades importadas sobrepujam as elevações nos preços, os custos estimados das importações também são reduzidos. A extensão das alterações segue o mesmo padrão observado para as exportações. Os custos e as quantidades importadas pela UE seriam elevados substancialmente nos cenários em que a produção do bloco diminui (A e E), e não se alterariam nos demais cenários.

Subsídios versus tarifasOs benefícios para o setor de algodão de um desfecho na Rodada Doha decorrerão principalmente da redução nos subsídios. Há duas razões pelas quais o acesso a mercado desempenhará um papel marginal. Em primeiro lugar, o setor algodoeiro já desfruta de um patamar baixo de tarifas aplicadas. Em segundo lugar, apenas dois membros da OMC – EUA e Omã – terão que reduzir as tarifas atualmente aplicadas como resultado das negociações. Os demais países proveem acesso livre de tarifas, desfrutam de larga margem tarifária ou usufruem de tratamento preferencial.

A extensão de acesso livre de tarifas aos exportadores de PMDRs terá pequeno ou nenhum impacto sobre as oportunidades de acesso a mercado a estes países. Todos os PDs, exceto os EUA, já concedem esse benefício aos produtores de algodão de PMDRs. Além disso, como o consumo dos EUA despencou nos últimos anos, sua participação nas importações mundiais restringiu-se a 0,05%. Ademais, as cotas concedidas pelos EUA não são preenchidas, apesar do baixo nível de tarifas aplicado dentro deste limite (entre 0% e 3%).

Por sua vez, os PEDs respondem por 95% das importações de algodão. Dos 15 maiores importadores no mundo em desenvolvimento, todos oferecem acesso indiscriminado e livre de tarifas para todas as importações do produto, à exceção da China. A Rodada Doha também não produzirá alterações significativas nas condições de acesso ao mercado da China, uma vez que Pequim provavelmente excluirá o algodão das reduções tarifárias e expansão de cotas, ao selecioná-lo como produto sensível. Mesmo que este não fosse caso, a margem tarifária adotada seria suficiente para prevenir qualquer redução na tarifa aplicada.

Ao final, os subsídios sempre ocuparão o cerne das negociações em matéria de algodão. Permanece a necessidade de reequilibrar as regras comerciais vigentes, que permitem os PDs subsidiarem a produção doméstica, depreciarem os preços mundiais, minarem a competitividade dos cotonicultores estrangeiros e prejudicarem o potencial de crescimento dos PEDs. A adoção de reformas nos regimes de apoio doméstico para o algodão por meio das negociações da Rodada Doha constituiria um passo importante para o estabelecimento de um sistema de comércio justo e orientado ao mercado.

* Doutorando no Departamento de Economia Aplicada e Administração da Universidade de Cornell, nos EUA.

1 O autor baseou este artigo no estudo intitulado How would a trade deal on cotton affect exporting and importing countries?, disponível em <http://ictsd.org/i/publications/77906/>.

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Financiamento climático e suas condicionantes

Um dos objetivos das negociações internacionais sobre mudanças climáticas consiste em estabelecer compromissos de longo prazo que relacionem o desenvolvimento sócio-econômico dos países às ações de mitigação e adaptação, garantindo crescimento sustentável, preservação do meio ambiente e conformidade com as regras internacionais de comércio. Para que esses novos compromissos sejam alcançados, as bases do Acordo devem estabelecer mecanismos de financiamento efetivos, que ajustem os sistemas produtivos dos países em desenvolvimento (PEDs) a uma economia de baixo carbono.

Carolina Lembo*José Luiz Pimenta Junior**Walter Figueiredo De Simoni***

Por serem considerados fatores essenciais na transição para uma economia global de baixo carbono, os mecanismos de financiamento ocuparam posição de destaque desde a entrada em vigor da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC, sigla em inglês), em 1993. Tais mecanismos buscam engendrar em seu escopo fontes públicas e privadas, o que influencia diretamente a estrutura produtiva dos países, principalmente dos PEDs.

Nesse contexto foram estabelecidas, por meio do artigo XI da Convenção, diretrizes básicas para a criação de um mecanismo que gerenciasse políticas e programas relacionados às mudanças climáticas nos PEDs. Em 1996, com a assinatura do memorando de entendimento entre a Conferência das Partes (COP, sigla em inglês) e o Global Environmental Facility (GEF, sigla em inglês), este passou a constituir o mecanismo oficial da UNFCCC para o financiamento de projetos. Dessa forma, o GEF passou a admi-nistrar dois importantes fundos de financiamento direcionados ao mundo em desenvolvimento: o Fundo dos Países de Menor Desenvolvimento Relativo, responsável pela implementação de projetos de caráter imediato nesta categoria de países; e o Fundo Especial para a Mudança do Clima, criado em 2001 para projetos ligados a adaptação, transferência de tecnologia, capacitação, energia, transporte, agricultura, entre outros.

Desde então, o tema vem-se tornando cada vez mais crucial para alcançar metas ambiciosas de combate efetivo às mudan-ças climáticas. Nesse contexto, a COP 13, realizada em Bali (Indonésia), em 2007, culminou com um plano de ação que visava à implementação efetiva da Convenção por meio de compromissos de longo prazo, sendo um de seus objetivos principais a ação reforçada sobre a provisão de recursos financeiros e investimentos para apoiar ações de adaptação, mitigação e cooperação tecnológica. Por meio de publicações realizadas pelo Secretariado, a UNFCCC estima que, para alcançar uma meta agregada de redução de 25% abaixo dos níveis de 2000 até 2030, seriam necessários investimentos de aproximadamente US$ 200 bilhões. Em matéria de adaptação, o cálculo chega a centenas de bilhões de dólares anuais, o que exige um esforço grandioso não somente relacionado ao financiamento, mas também à criação de uma estrutura financeira que facilite e fomente esse processo.

As negociações em torno desse controverso tema ocorrem na UNFCCC no contexto dos compromissos de longo prazo e são coordenadas pelo Grupo de Trabalho Ad Hoc sobre Medidas de Cooperação de Longo Prazo (AWG-LCA, sigla em inglês). Os principais temas em discussão envolvem: (i) previsibilidade, transparência e sustentabilidade dos recursos financeiros; (ii) a forma de transmissão desses recursos aos PEDs (por meio de fundos multilaterais, ações bilaterais ou mecanismos de mercados); e (iii) a criação de uma nova estrutura de finan-ciamento no âmbito da Convenção, com novas entidades, fundos e órgãos subsidiários.

Esse tema foi bastante discutido na COP 15, ocasião em que se cogitou a criação do chamado Green Climate Fund. Embora seja mencionado no Acordo de Copenhague, esse Fundo não possui validade jurídica no âmbito da Convenção. Os países debateram as possíveis regras de implementação e uso do Fundo, como se sua criação fosse certa. Por um lado, isso ajuda a nortear as discussões; por outro, pode viciar os pontos de vista e limitar a criação de outras ferramentas para tratar do assunto de financiamento no âmbito da UNFCCC.

Durante as negociações de Bonn (Alemanha), ocorridas entre 1º e 11 de junho de 2010, foi possível observar uma clara dicotomia entre as expectativas e prioridades dos países desenvolvidos (PDs) e dos PEDs. Os primeiros condicionam esse novo e adi-cional financiamento a uma efetiva mensuração, reportagem e verificação (MRV) das ações implementadas pelos PEDs. Em contraposição, estes últimos são resistentes em aceitar certas diretrizes de MRV, por acreditarem que estas podem vir a comprometer o conceito fundamental de “responsabilidades comuns porém diferenciadas”, consagrado pela Convenção.

Cabe destacar que os PDs alcançaram um desenvolvimento econômico baseado em uma matriz energética essencialmente composta por combustíveis fósseis. O estabelecimento de restrições comparáveis aos PEDs limitaria seu potencial de desenvolvimento no longo prazo. Aceitar diretrizes de MRVs comparáveis àquelas dos PDs poderia impor barreiras aos PEDs; ao mesmo tempo, é fundamental encontrar um equilíbrio entre as responsabilidades comuns porém diferenciadas e as diretrizes de transparência fundamentais para o combate às mudanças climáticas.

Dessa forma, os PEDs reivindicam maior transparência, precisão e previsibilidade na alocação dos recursos. Tanto PDs como PEDs concordam com a criação de uma entidade que dê maior coerência ao sistema e de um novo fundo (não necessariamente o Green Climate Fund).

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* Mestre em Direito do Estado pela USP e especialista em Direito Econômico Internacional pela Universidade de Barcelona. Coordena a área de Mercado Internacional de Energia da FIESP.

** Bacharel em Relações Internacionais pela UNESP, especialista em negociações internacionais pelo Programa San Tiago Dantas. É coordenador de Negociações Internacionais da FIESP.

***Economista e cientista Ambiental formado pela Tufts University em Boston. É coordenador técnico do grupo de mudanças climáticas da FIESP e trabalha como consultor de estratégia de mudanças climáticas na Keyassociados.

Os três autores deste artigo fazem parte da delegação da FIESP para as Negociações de Mudanças Climáticas em Bonn.

1 Para se ter ideia da importância desse programa, em 2008, somente as importações estadunidenses no âmbito do SGP representaram US$ 31 bilhões.

As atenções, durante essa rodada de negociações também se voltaram à União Europeia (UE), que anunciou o lançamento de um compromisso – o Fast Start Funding Commitment – de empreender anualmente, até 2012, €2,4 bilhões em projetos de mitigação (63% do total) e adaptação (37% do total) em PEDs. Contudo, não houve transparência quanto aos critérios de alocação e distribuição de tais recursos.

Deve-se ressaltar, ainda, que a natureza dos investimentos de mitigação e adaptação é fundamentalmente diferente. Por lidarem em grande parte com o setor produtivo, os projetos de mitigação atraem financiamentos que operam sob a lógica da geração de lucros; já os projetos de adaptação não oferecem incentivos financeiros tão claros. Projetos de adaptação são ligados a pesquisas, mudanças na infraestrutura local e outras atividades mais atreladas a investimentos a fundo perdido, uma vez que não oferecem retorno financeiro claro. Isso sugere que grande parte do volume de financiamento deve ter origem em fontes públicas, tanto para adaptação quanto para mitigação, o que pode gerar problemas para a efetiva implementação dos projetos.

Tais investimentos possuem um objetivo claro e específico: o combate às mudanças climáticas, no âmbito da Convenção. O sucesso dos financiamentos depende de sua efetividade, da verdadeira contribuição mensurada, que deriva dire-tamente do conceito de integridade ambiental. Para que sejam efetivos e duradouros, os mecanismos financeiros devem ser baseados em credibilidade e legitimidade. Por isso, a necessidade de altos níveis de transparência e de diretrizes bem definidas dentro de um escopo global dos fluxos de financiamentos e estruturação dos projetos.

Os atuais mecanismos de mercado indicam como esses fato-res podem atuar de forma complementar à busca por maior transparência e credibilidade na alocação desses recursos. As questões de integridade ambiental e de MRV devem con-tinuar presentes no contexto das regulações previstas pela Convenção. O Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) também pode servir como um exemplo nesse sentido, já que sua efetividade está atrelada às diretrizes e metodologias aprovadas pelo Comitê Executivo, órgão responsável pela regulamentação do MDL. No entanto, questões específicas de condicionantes financeiras dos projetos são, em última instância, de responsabilidade dos financiadores. Portanto, é vital criar incentivos para os atores financeiros, não limitando suas opções ou atrelando-as a questões que não estejam condicionadas à integridade ambiental. É essencial que o objetivo principal desses investimentos seja alcançado, qual seja, promover ações que viabilizem a economia de baixo carbono em PEDs.

No tocante à transparência, conforme exposto pela delegação chinesa durante a primeira plenária da reabertura das negocia-ções do AWG-LCA, em Bonn: “os fundos devem ser gerenciados pela Administração da Conferência e não podem ser uma forma de condicionar os países em desenvolvimento às exigências dos países desenvolvidos”. Essa preocupação é transversal e relaciona diretamente comércio, desenvolvimento e mudanças climáticas, uma vez que a adequação dos PEDs a uma economia de baixo carbono não pode ser utilizada como pretexto para que condi-cionantes comerciais sejam impostas pelos países doadores. É imprescindível que os mecanismos de financiamento da Convenção do Clima definam diretrizes específicas – mas não restritivas –, que incorporem essa premissa de “não condicionamento” dos PEDs aos empréstimos dos PDs para não padecer dos mesmos vícios de origem do Sistema Geral de Preferências (SGP).

O SGP estabelece a possibilidade de que os PDs reduzam unilateralmente suas tarifas de importação aos PEDs, com a finalidade de promover as relações comerciais Norte-Sul e reduzir as desigualdades entre nações1. No entanto, os PDs são dotados de um alto grau de discricionariedade ao estabelecerem as condições de acesso ao sistema, ou seja, delimitam quais PEDs desfrutarão de redução tarifária. No SGP dos Estados Unidos da América (EUA), por exemplo, os PEDs que não cumprem com as regras estabelecidas no programa dos EUA em matéria de propriedade intelectual perdem seu acesso preferencial ao mercado estadunidense.

Já no caso do SGP europeu, além do estabelecimento de uma condicionante, os países que têm acesso ao regime especial de acesso a mercado são selecionados. Um grupo de PEDs, classificados pela UE como vulneráveis, gozam de maiores pre-ferências, desde que implementem convenções internacionais em matéria de desenvolvimento sustentável e boa governança.

É imprescindível que, no caso dos mecanismos de financia-mento do clima, esse processo de condicionamento externo ao desenvolvimento do país – tal qual ocorre no SGP – não seja implementado, já que o cerne da questão climática deve somente considerar a efetividade desses financiamentos, ou seja, até que ponto eles se traduzem em projetos efetivos de mitigação e adaptação. Deve-se salientar, ainda, que diretrizes e processos que visam a um bem comum são fatores totalmente diferentes de interesses nacionais específicos do mundo desenvolvido.

Os financiamentos devem zelar, em última instância, pela promoção da economia de baixo carbono. Isso só será viável a partir do momento em que as questões de integridade ambi-ental forem traduzidas em diretrizes de MRV condizentes com o grau de desenvolvimento dos PEDs, o que torna improvável a criação de outras condicionantes. Outro benefício seria a criação, nos países que elaboraram o projeto, de estruturas para recepção dos investimentos atreladas às diretrizes da Convenção, já que uma grande variação nas regras dificultaria o fluxo de investimento e aumentaria os custos de adequação dos criadores de projetos. No entanto, deve-se ratificar que todo financiamento climático advindo de fontes públicas está necessariamente atrelado às regras estabelecidas dentro da Convenção, promovendo o desenvolvimento e a manutenção da integridade ambiental com transparência.

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A proposta brasileira na OMPI sobre exceções e limitações ao direito de patente e a Agenda do DesenvolvimentoJoana Varon Ferraz*

Na última reunião do Comitê Permanente de Direito Patentário (SCP, sigla em inglês) da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), a Missão Permanente do Brasil em Genebra submeteu proposta para a realização de estudo sobre meca-nismos de exceções e limitações ao direito de patente. A utilização desses é fundamental para planejar estratégias de desenvolvimento no contexto atual da Economia do Conhecimento, mas o tema é objeto de grandes controvérsias entre países desenvolvidos (PDs) e em desenvolvimento (PEDs).

O pressuposto de que apenas um sistema rígido de proteção à Propriedade Intelectual (PI) – ou Industrial, no caso das patentes – conduziria à inovação e ao investimento estrangeiro tem- se mostrado questionável, seja pela emergência de novos modelos de negócios que funcionam de maneira independente da proteção conferida pela PI1, ou por debates que apontam controvérsias internas ao próprio sistema. Cada vez mais evidencia-se que alguns mecanismos de proteção são utilizados de maneira distorcida, prolongando um monopólio indevido de exploração2, ao invés de fomentar a pesquisa e o desenvolvimento. Nos foros internacionais, são crescentes as indagações quanto aos diferentes estágios de desenvolvimento dos países, bem como as críticas aos possíveis impactos negativos que um sistema rígido traz àqueles mais dependentes tecnologicamente. Nesses casos, há risco de se limitar o acesso ao conhecimento, uma vez que tais países não são proprietários significativos de PI e se veem obrigados a transferir montantes expressivos em royalties para PDs.

Nesse contexto, a proposta brasileira é positiva, pois apresenta uma forma de discutir os usos possíveis dos mecanismos de exceção e limitação inerentes ao próprio sistema. Se melhor entendidos e aplicados, tais mecanismos poderiam contornar parte das falhas do sistema internacional de PI, cujas bases fundamentam-se no Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPs, sigla em inglês).

Ao estabelecer um patamar mínimo de proteção à PI, o TRIPs impediu normatizações fortemente baseadas nos níveis de desenvolvimento locais, contudo, previu algumas flexibilidades ao reconhecer que os direitos assegurados ao detentor da PI devem ser balanceados com obrigações que favoreçam a implementação de políticas públicas nacionais. Entre essas flexibilidades, destaca-se a possibilidade de previsão de limites e exceções ao direito de patente, ou seja, exceções ao monopólio temporário de exploração concedido ao detentor da carta patente. Assim, o artigo 30 dispõe que “os membros poderão conceder exceções limitadas aos direitos exclusivos conferidos pela patente, desde que elas não conflitem de forma não-razoável com sua exploração normal e não prejudiquem de forma não-razoável os interesses legítimos de seu titular, levando em conta os interesses legítimos de terceiros”.

O dispositivo mencionado deixa margem a muitas interpretações, na medida em que não especifica atos que podem ser objeto de exceção. No entanto, estabelece três condições para tal interpretação: (i) que a exceção seja limitada; (ii) que não entre em conflito não-razoável com a exploração normal da patente; e (iii) que não prejudique de forma não-razoável os interesses legítimos. Diante de conceitos amplos como “exceção limitada”,

“não-razoável”, “exploração normal”, “entrar em conflito”, “interesses legítimos” e de visões controversas sobre se tais condições devem ser interpretadas de forma cumulada, o texto do artigo 30 consiste apenas em uma regra geral. Dessa forma, o escopo de aplicação das exceções varia significantemente nas legislações nacionais, de acordo com os objetivos das políticas de cada país.

Com base na permissão estabelecida nesse dispositivo – e indiretamente ressaltada nos artigos 6 e 31 –, foram estabelecidos alguns mecanismos de exceções ao direito de patente, dentre os quais se destacam: o uso experimental, a importação paralela, a exceção bolar e a licença compulsória. O uso experimental permite que o conhecimento protegido e revelado pela patente seja utilizado para fins de investigação científica, com intuito de promover desenvolvimento científico e tecnológico. Já a importação paralela diz respeito à importação de produto patenteado, manufaturado no exterior, sem o consentimento do detentor da patente. Por sua vez, a exceção bolar consiste em permissão para que uma invenção patenteada seja utilizada para a realização de testes3, sem permissão do detentor da patente, ou antes de expirado o prazo da proteção. Por fim, a licença compulsória é expedida independentemente da vontade do detentor da patente, geralmente estabelecida em condições em que a exploração da patente por terceiros é de interesse público, constitui emergência nacional ou quando houver falta de exploração da patente.

No caso do Brasil, a legislação nacional incorporou o uso experimental no artigo 43 da Lei de Propriedade Industrial (LPI, Lei no 9.279/1996) e, nesse mesmo artigo, a exceção bolar passou a ser prevista com emenda à Lei no 10.196/2001. A licença compulsória está prevista nos artigos 68 a 74 da LPI e é aplicada a casos de abuso de poder econômico, não-exploração – ou insuficiência desta –, interesse público e/ou emergência nacional e em casos de patentes dependentes (ou seja, patentes de aperfeiçamento de outras patentes). Na legislação brasileira, não existe dispositivo específico sobre importação paralela, embora, muitas vezes, este constitua um procedimento decorrente da licença compulsória.

Como é possível observar, a previsão e as condições de utilização desses mecanismos dependem da maneira como foram adaptados às legislações nacionais. A incorporação desse tipo de flexibilidade nas legislações nacionais é crescentemente interpretada como uma janela de oportunidade para o estabelecimento de salvaguardas para tentar diminuir o efeito negativo da proteção patentária sobre o acesso ao conhecimento e sobre os custos dos produtos e serviços mais intensivos em conhecimento.

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A proposta brasileira: objetivos e repercussõesA proposta da delegação brasileira foi idealizada no âmbito do Grupo Interministerial de Propriedade Intelectual (GIPI), criado na década de 1980 para coordenar as posições do governo para atuação nas negociações relativas à PI, com vistas às negociações da Rodada Uruguai do Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio (GATT, sigla em inglês). O Grupo tem desempenhado papel relevante em balizar obrigações internacionais e interesses nacionais; mais precisamente, na adequação da legislação nacional, como foi o caso da reforma da Lei de Propriedade Industrial (Leis no 9.279/1996 e no 10.196/2001).

Em 2001, o GIPI foi consolidado por decreto e, atualmente, é composto por representantes da Casa Civil e dos Ministérios da Ciência e Tecnologia; da Cultura; do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior; das Relações Exteriores; da Justiça; do Meio Ambiente; da Saúde; e da Fazenda. O GIPI encontra-se no âmbito da Câmara de Comércio Exterior (Camex), órgão de assessoramento direto à Presidência da República.

Identificada como documento oficial SCP/14/74, de 20 de janeiro de 2010, a proposta brasileira traz um programa de trabalho que possibilite maior compreensão dos Estados membros sobre como as exceções e limitações ao direito de patente têm sido incorporadas em suas legislações e, mais importante, como têm sido ou podem ser utilizadas na execução de metas de políticas públicas. Cabe lembrar que a utilização desses mecanismos possui repercussões políticas delicadas, como foi o caso do licenciamento compulsório de patentes de medicamentos feito pelo Brasil. Portanto, não basta analisar o tema apenas com enfoque na incorporação desses mecanismos nas legislações nacionais.

O documento reconhece a importância do tema dos limites e exceções ao direito de patente, bem como o problema da falta de conhecimento sobre os processos de adaptação da legislação nacional e sobre o uso desses mecanismos. De maneira bastante propositiva e prática, o documento divide o programa de trabalho em três fases:

i) mapeamento: troca de informações detalhadas sobre as previsões legais que tratam do tema e sobre experiências de implementação dessas previsões, incluindo jurisprudência. Nessa etapa, deverão ser abordadas as razões e formas com que os países usam ou vislumbram a possibilidade de utilizar as limitações e exceções previstas em suas legislações;

ii) análise: investigação sobre que exceções e limitações são eficientes para questões de desenvolvimento e quais as condições para sua implementação; e

iii) disseminação, cujo objetivo final é a produção de um manual.

A princípio, o objetivo não seria elaborar outras normas, mas fazer um estudo empírico, baseado na troca de experiências concretas, para conhecer como esses mecanismos têm sido implementados. Assim, haverá base para melhor avaliar como utilizar tais mecanismos de maneira condizente com o estágio de desenvolvimento dos países.

De acordo com o sumário da sessão e o relato de José Estanislau do Amaral5 – chefe da área de PI da Missão do Brasil junto à Organização Mundial do Comércio (OMC) e outras organizações econômicas, que apresentou a proposta no SCP –, no momento da exposição, houve grande apoio dos PEDs, inclusive de China e Rússia. O Grupo B, composto por PDs,

não se opôs, mas argumentou que precisava de tempo para reagir. Diante dessas considerações, a análise da proposta foi adiada para o próximo encontro do SCP, a ser realizado em novembro de 2010. Nessa ocasião, também está prevista na pauta a apresentação de um grande estudo coordenado pela Universidade de Cambridge, com participação do jurista brasileiro Denis Borges Barbosa. Para o representante da Missão do Brasil, será ainda mais interessante debater a proposta tendo por base o referido estudo.

Kenneth Félix Haczynski da Nóbrega6, chefe da Divisão de Propriedade Intelectual do Ministério de Relações Exteriores (DIPI-MRE), ressalta que a proposta está alinhada à estratégia diplomática do país de difundir as recomendações da Agenda do Desenvolvimento nos Comitês da OMPI. O Brasil tem buscado apresentar propostas que tenham como pano de fundo a implementação da Agenda em cada comitê da Organização, de forma que esse debate não se restrinja apenas ao Comitê sobre Desenvolvimento e Propriedade Intelectual (CDIP, sigla em inglês).

Segundo Kenneth, deve-se ter em mente o objetivo de calibrar o sistema existente com as recomendações da Agenda do Desenvolvimento, e não renegar o sistema, que, apesar de criticado, é bem definido e ancorado em acordos multilaterais apoiados pela OMPI e pela OMC. Os questionamentos sobre os limites da proteção da PI e sobre os impactos para terceiros devem ser vistos como formas de harmonização do sistema atual com as recomendações da Agenda do Desenvolvimento, com base em discussões de casos concretos, levantando pontos mais pragmáticos.

É fato que o uso desses mecanismos de exceções e limitações possui implicações sociais e econômicas sobre diversas esferas, tais como a transferência de tecnologia e o acesso a medicamentos. No contexto atual da Economia do Conhecimento, essas implicações podem afetar em grande medida o desenvolvimento dos países. A exceção bolar, por exemplo, tornou-se ponto estratégico e de grande interesse, sobretudo para PEDs, na medida em que possibilita o lançamento de um medicamento genérico imediatamente após expirado o prazo da patente. A possibilidade de emissão de licença compulsória também é estratégica para políticas de saúde que visem à redução no preço dos medicamentos. Como não existem estudos empíricos de relevância sobre o tema, persistem indagações. Assim, é perpetuada a situação atual, na qual o equilíbrio entre direitos do titular e interesse público se encontra deteriorado face às pressões internacionais orientadas para incrementos excessivos à proteção dos titulares, sem levar em conta a necessidade de acesso aos avanços obtidos e a existência de diferentes níveis de desenvolvimento.

* Pesquisadora e coordenadora do projeto A2K Brasil no Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getulio Vargas (CTS/FGV).

1 Este é o caso do open business, negócio em que a proteção da PI não constitui o incentivo primordial ou a fonte principal de remuneração. Esse modelo inclui, por exemplo, a possibilidade de disponibilizar conteúdo intelectual ou serviços de maneira gratuita. O valor de negócio desse modelo fundamenta-se em rendimentos obtidos por serviços associados ou valor adicionado ao serviço ou produto-base disponibilizado gratuitamente.

2 É o caso, por exemplo, de pedidos de patentes que não revelam a invenção de forma compreensível para que possa ser reproduzida no final do prazo de validade da proteção; ou ainda dos inúmeros pedidos de extensão do prazo de validade de patentes de medicamentos com base apenas em alterações na dosagem.

3 No caso dos fármacos, normalmente as legislações nacionais dispõem sobre a necessidade da realização de testes para a obtenção de registro sanitário junto às agências reguladoras.

4 Disponível em: <http://a2kbrasil.org.br/OMPI-apresentada-proposta>.

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Crise e protecionismo de resgate: algumas tendênciasLinda Curran*Diana Tussie**

Diante da desaceleração da atividade econômica mundial, os governos dos países desenvolvidos (PDs) e em desenvolvi-mento (PEDs) recorreram a medidas anticíclicas em uma espécie de “protecionismo de resgate”. Isso deu origem a novas tendências e padrões protecionistas.

A crise transcendeu o âmbito financeiro e estendeu-se à economia dos PDs e PEDs. Apesar de alguns sinais de recuperação, ainda não está claro se a economia mundial se consolidará no curto prazo. Com vistas a superar o impacto negativo sobre a economia, os governos recorreram à implementação de medidas anticíclicas, em uma espécie de “protecionismo de resgate”. Tais medidas provocaram uma cadeia de medidas de retaliação.

Este artigo delineia algumas tendências nas respostas dos governos à crise econômica. Na primeira parte, são apresentados quatro tipos de medidas protecionistas configuradas no contexto da crise: trabalhista, financeira, cambiária e comercial1. Na segunda parte, são analisadas algumas tendências referentes a este último tipo de protecionismo. Para tanto, serão utilizadas informações produzidas pelo Global Trade Alert (GTA), projeto lançado em junho de 2009 com o objetivo de quantificar as medidas comerciais, implementadas a partir da crise, que apresentam potenciais efeitos protecionistas.

Quatro tipos de protecionismoO protecionismo trabalhista prioriza o acesso ao trabalho aos próprios cidadãos e manifesta-se na forma de restrições migratórias ou de subsídios orientados a priorizar o conteúdo do emprego local. A Lei Buy American, exemplo emblemático de protecionismo trabalhista, é aplicada sobre todas as aquisições de bens avaliados acima de um patamar mínimo de valor, efetuadas por qualquer agência do governo federal estadunidense. A norma prevê que todos os bens de uso público que superem o piso mínimo de preço definido devem ser produzidos nos Estados Unidos da América (EUA). Da mesma forma, os bens manufaturados devem utilizar matérias-primas nacionais2.

O protecionismo financeiro, motivado em grande parte pela queda na taxa de juros e pela grande liquidez injetada nos PDs, abrange um leque de medidas que incluem maior regulamentação sobre os bancos transnacionais, apoio às entidades locais e controles cambiários ou a regulamentação dos fluxos de capitais. Um exemplo recente desse tipo de protecionismo consiste na contrapartida adotada pelo Brasil frente à queda na taxa de juros nos mercados centrais: um imposto de 2% sobre o ingresso de fluxos de capital dirigidos a investimentos de renda fixa e ações e considerados especulativos.

Muitos países também recorreram ao protecionismo cambiário, ou seja, desvalorizaram sua moeda ou resistiram às pressões de apreciação cambiária. O último caso dessa categoria de protecionismo foi o desdobramento do tipo de câmbio e a implementação de uma drástica desvalorização pela Venezuela no início deste ano, a qual depreciou o bolívar venezuelano entre 17 e 50%.

Por fim, a necessidade de divisas e de preservação do emprego incitou o recurso a medidas clássicas de protecionismo comercial. Na próxima seção, serão apresentadas algumas tendências observadas nesta categoria de amplo alcance.

Algumas tendências de protecionismo comercial As respostas comerciais apresentam ao menos quatro tendências: i) uma marcada polarização entre medidas de fronteira versus pacotes de estímulo segundo o nível de desenvolvimento do país que impõe a medida; ii) o recurso frequente ao “protecionismo legal”; iii) a reaparição das clássicas – e o surgimento de novas – “válvulas de escape”; e iv) o protecionismo regional.

Tendência i): medidas de fronteira versus pacotes de estímulo

As respostas dos PDs às demandas internas por proteção ocorreram principalmente mediante a outorga de subsídios a diversas indústrias em situação de vulnerabilidade. Os PEDs, em contrapartida, privilegiaram o uso de medidas de fronteira (tanto tarifárias quanto não tarifárias) sobre os subsídios. Esta preferência obedece à menor disponibilidade de recursos financeiros para subsidiar diretamente os setores produtivos.

Com efeito, a base de dados do GTA revela que, dentre 146 medidas de apoio estatal contabilizadas de junho de 2009 até 15 de janeiro de 2010, 106 (aproximadamente 75%) foram implementadas por países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Os PEDs não foram totalmente alheios a essa tendência. O setor automotivo, por exemplo, parece ter recebido ajuda estatal neste grupo de países. No Brasil, o governo federal implementou, em conjunto com o estado de São Paulo, um pacote de US$ 4 bilhões em medidas financeiras destinadas ao fortalecimento do setor. PEDs como China e Rússia também utilizaram pacotes de estímulo de dimensões consideráveis.

Tendência ii): protecionismo legal

O sistema multilateral de comércio foi criado para evitar escaladas protecionistas como aquelas que caracterizaram a década de 1930. Para tanto, foi estabelecida uma série de regras e disciplinas destinadas a impedir o surgimento de guerras comerciais. Contudo, dentro dos parâmetros legalmente permitidos, os países mantiveram uma margem de manobra considerável. Sempre existe, portanto, a possibilidade de adoção de medidas classificadas como “protecionismo legal”.

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Outros temas multi laterais

Nesse sentido, os PDs gozam atualmente de um espaço considerável para o aumento de seus programas de subsídios agrícolas, seja pela diferença existente entre os níveis consolidados de apoio doméstico e aqueles efetivamente aplicados, ou pela existência de uma série de subsídios considerados permitidos – conhecidos como medidas de “caixa verde”.

A recente reativação da outorga de subsídios à exportação de laticínios na União Europeia (UE), nos EUA e na Suíça – conhecida como “a guerra de subsídios no setor de laticínios” – é um claro exemplo das espirais de protecionismo e discriminação comercial que podem ocorrer devido à ampla margem de manobra com que contam os países centrais.

Outro exemplo paradigmático de protecionismo legal constitui o amplo espaço para o aumento das tarifas aplicadas de nação mais favorecida (NMF) sem que sejam superados os limites consolidados. Todavia, este tipo de medida – que parece estar ao alcance de qualquer governo – está longe de ser a ferramenta mais utilizada na prática. De um total de 588 medidas classificadas na base do GTA2 como distorcivas ou potencialmente distorcivas, somente 76 (ou seja, 13%) correspondem a aumentos existentes nas tarifas de importação ou à imposição de tarifas a produtos anteriormente isentos.

Tendência iii): ressurgimento das clássicas (e surgimento de novas) “válvulas de escape”

As medidas de defesa têm por objetivo permitir aos países suspender compromissos em caso de risco de dano ao setor industrial por conta de um aumento repentino das importações ou de práticas comerciais desleais.

Dentre as 588 medidas distorcivas ou potencialmente distorcivas contabilizadas na base de dados do GTA até 15 de janeiro de 2010, 221 correspondem a medidas de defesa comercial. Ou seja, uma em cada três medidas discriminatórias adotadas até o momento são salvaguardas, direitos compensatórios ou medidas antidumping. Cabe destacar que estas últimas são as mais recorrentes e representam aproximadamente a metade do total de medidas de defesa comercial adotadas no período estudado4.

A defesa comercial exige, entretanto, o cumprimento de uma série de padrões legais nem sempre compatíveis com a urgência dos setores afetados em um contexto de crise internacional. Esse processo deu origem ao surgimento de outras válvulas de escape no cenário internacional – questionáveis quanto à sua compatibilidade com as normas da Organização Mundial do Comércio (OMC) –, que proporcionam uma resposta muito mais rápida e efetiva que as medidas de salvaguarda ou antidumping. Este é o caso das licenças não-automáticas.

Argentina e Indonésia são alguns dos países que mais utilizam esse tipo de medida. Atualmente, a Argentina requer licenças não-automáticas sob 17 regimes distintos para a importação de aproximadamente 400 produtos – das quais quase a metade foi implementada a partir de outubro de 2008. A Indonésia, por sua vez, regulamentou licenças não-automáticas a cerca de 500 produtos5. Por fim, um caso atípico, mas de grande repercussão em termos de protecionismo legal, foi a imposição, por parte dos EUA, em setembro de 2009, de uma tarifa punitiva de 35% sobre os pneus provenientes da China.

Tendência iv): protecionismo regional

A possibilidade de aumento nas tarifas encontra-se em certa medida limitada pelos compromissos acordados pelos países sob os diversos acordos regionais e bilaterais de preferências comerciais. Se levarmos em conta o fato de que, em virtude dos acordos de integração econômica, o comércio intrarregional encontra-se mais liberalizado que o comércio em escala global, é possível prognosticar que o viés da proteção também será direcionado ao comércio intrarregional.

Essa hipótese parece ser confirmada na prática. De um total de 44 medidas classificadas como distorcivas ou potencialmente distorcivas impostas pela Argentina, 16 afetam seus parceiros do Mercado Comum do Cone Sul (Mercosul) – em especial o Brasil. Além disso, das 22 medidas desse tipo introduzidas pelo Brasil, 6 afetam seus sócios no bloco sul-americano.

Uma tendência similar foi confirmada em pesquisa recente do GTA sobre as medidas protecionistas implementadas por países da Ásia-Pacífico. Segundo este estudo, existe uma forte correlação nesta região entre a quantidade de medidas protecionistas e a participação em um mesmo bloco regional ou acordo de comércio preferencial6.

Considerações finais A desaceleração da atividade econômica mundial pressionou os governos a protegerem suas indústrias e seus trabalhadores. As reações anticíclicas começaram a aparecer ao redor do mundo, com distintas formas e intensidades.

Carecemos ainda de uma conceitualização que permita distinguir o presente ciclo de proteção dos anteriores. Nesse sentido, é imprescindível desenvolver novas ferramentas para dar conta das especificidades desse protecionismo de resgate. O presente artigo delineou algumas categorias que possibilitam agrupar as reações dos governos e mostrou alguns padrões que permitirão encontrar certa regularidade na multiplicidade de medidas de autoajuda.

Tradução de artigo originalmente publicado em Puentes Bimestral Vol. 11, No. 1 - mar. 2010.

* Consultora do GTA e integrante do Departamento de Relações Internacionais da Flacso-Argentina.

** Diretora da Latin American Trade Network e integrante do Departamento de Relações Internacionais da Flacso-Argentina.

1 Ver: Carrera, Jorge. ¿Qué podemos esperar del G-20? In: La crisis y el G20: perspectivas latinoamericanas? LATN Nexos, Ed. No. 7, 2009. Disponível em: <http://www.latn.org.ar/principal/home/latnnexos.php?mod=nexos_actual>.

2 Ver: Tussie, Diana; Trucco, Pablo. ¿Invitados o colados en la elite global? - el G20 y la robustecida influencia de los mercados emergentes. Flacso, 2009. Disponível em: <http://www.flacso.org.ar/rrii/publicaciones.php>. Ver também: Código de los Estados Unidos, Título 41, Sección 10 (a-d).

3 As medidas na base de dados do GTA são classificadas como verdes, amarelas ou vermelhas. A cor vermelha identifica as medidas que muito provavelmente afetarão interesses comerciais estrangeiros. Por sua vez, a cor amarela corresponde às medidas já implementadas que podem apresentar efeito distorcivo sobre o comércio global, bem como àquelas anunciadas ou em processo de consideração e que, se implementadas, poderiam afetar negativamente os interesses comerciais estrangeiros. O GTA refere-se às medidas vermelhas e amarelas como “distorcivas ou potencialmente distorcivas”.

4 Cabe destacar que a base de dados do GTA registra toda a atividade em matéria de antidumping, não somente o início de novas investigações. Assim, é registrada também a imposição de direitos antidumping provisionais, definitivos, revisões ou “sunset reviews” etc.

5 Ver: Doporto Miguez, Ivana; Fossati, Verónica; Galperín, Carlos Galperín. Crisis y medidas comerciales: ¿regreso al proteccionismo? In: Revista del CEI. Buenos Aires, No. 15 (ago. 2009), pp. 89-123.

6 Ver: Mikic, Mia. Crisis-Era State Measures and Asia-Pacific Economies. In: Evenett, Simon (ed.). The Unrelenting Pressure of Protectionism: the 3rd GTA Report. Centre for Economic Policy Research, Londres, 2009.

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Análises regionais

Desvalorização cambial na Venezuela: efeitos sobre o comércio e a integração na América do SulO panorama econômico e comercial da Venezuela foi alterado, em janeiro de 2010, com a adoção de uma política de câmbio para valorizar o bolívar em relação ao dólar estadunidense. A esta medida, soma-se a criação de novos controles sobre o mercado monetário, decorrentes da Lei sobre Crimes Cambiais, aprovada recentemente. As novas reformas levantam uma dúvida central: a valorização da moeda venezuelana favorece ou prejudica o comércio regional?

As opções pela valorização e adoção de mecanismos de con-trole monetário são justificadas como forma de estimular a indústria venezuelana por meio da substituição de importa-ções, incremento na receita estatal, estabilização cambial e melhoria no controle do mercado paralelo.

A implementação das medidas ocorre em um cenário de crescente estagflação1. Segundo dados do Banco Central da Venezuela (BCV), o Produto Interno Bruto (PIB) registrou queda pelo ter-ceiro semestre consecutivo e a taxa de inflação atingiu 2,6% no mês de maio, o que elevou a projeção do índice anual desta a 31,2%. O BCV aponta como causa deste quadro a escassez de moeda para as importações, a diminuição do consumo e do investimento, além do plano de redução do consumo energético.

As autoridades estatais acreditam que as medidas aplicadas contribuirão para manter a taxa de inflação entre 20% e 22%, o que importaria em considerável redução em relação a 2008 e 2009, quando as taxas alcançaram 30,9% e 25,2%, respecti-vamente. Em função destes últimos resultados, a Venezuela possui atualmente a maior inflação da América Latina.

A desvalorização do bolívar: promovendo a substituição de importaçõesOs anos de 2003, 2008 e 2010 constituíram pontos de inflexão na história recente da política monetária venezuelana. Ao longo deste período, foi estabelecido o câmbio fixo e criada a Comissão de Administração de Moedas (Cadivi, sigla em espanhol), com o objetivo de supervisionar a compra e venda de moedas estrangeiras. Em 2007, houve um processo de reconversão, por meio do qual o bolívar passou de US$ 2.150 para US$ 2,15. Com essa operação, pretendia-se combater a inflação, recuperar o poder aquisitivo da moeda e fortalecer as finanças do país.

Em janeiro de 2010, as autoridades venezuelanas decidiram desvalorizar o bolívar mediante dois tipos de câmbio. A cesta da Cavidi inclui um câmbio de 2,60 bolívar por dólar para importações prioritárias – tais como alimentos, medicamentos e equipamentos médicos –, e 4,30 para importações não-essenciais.

Como resultado desta política, os importadores de produtos não-essenciais enfrentam maiores custos, pois precisarão desembolsar mais bolívares para cada dólar, o que causará aumento no preço dos produtos importados na Venezuela. Assim, a estratégia do governo desestimula as importações e fortalece a indústria local, além de gerar incentivos iniciais para que outros setores passem a exportar.

Com este objetivo – e a fim de criar condições para o desen-volvimento de novos setores da indústria doméstica –, o governo estabeleceu o Fundo Bicentenário Socialista com vistas a financiar iniciativas dos setores de têxteis, calçados, químicos, peças, medicamentos, insumos agrícolas, alimentos e bebidas. Com esse instrumento de crédito, busca-se promover as exportações, revigorar médias e pequenas indústrias, bem como incorporar novos empresários. Em junho, 142 iniciativas contaram com financiamento desse fundo, o que significou um investimento governamental de 765 milhões de bolívares2.

Diante de tais políticas de estímulo a uma nova onda de substituição de importações, seria natural uma redução do comércio bilateral com os principais parceiros da Venezuela, uma vez que as importações deste país passaram a envolver custos mais altos, concorrentemente à redução no preço de produtos locais e ao aumento da produção interna.

Efeitos sobre o comércio regionalO processo de desvalorização foi acompanhado pela aprova-ção, em maio de 2010, de uma reforma parcial na Lei sobre Crimes Cambiais3, que buscou regular a atividade especulativa no mercado de trocas. Esta medida foi implementada em um momento no qual o dólar paralelo alcançou a cotação de 8,2 bolívares, muito distante das taxas fixadas em janeiro.

Os impactos da desvalorização cambial e do processo de substi-tuição de importações sobre o comércio exterior são distintos dos efeitos projetados pela nova lei de crimes cambiais sobre esta esfera. As primeiras prejudicam a comercialização de alguns pro-dutos do Chile e da Colômbia, para citar os casos mais evidentes.

Diferentemente, a reforma da lei de crimes cambiais, ao atribuir às autoridades locais o poder de excluir parcialmente os intermediários das operações monetárias, dificulta a liqui-dação da dívida no exterior por parte dos empresários. Nesse sentido, estes recorriam a serviços de corretagem como forma de efetuar essas operações frente à morosidade característica da Cadivi. Apesar de implicar uma perda com a taxa de 8,2 bolívares por dólar, o recurso às corretoras de ações para adquirir moedas estrangeiras constituía uma alternativa para realizar o pagamento dos fornecedores externos, de forma não-oficial.

Tendo em vista tais considerações, a projeção dos efeitos das medidas mencionadas sobre o comércio regional passa pela identificação de impactos em relação a três tipos de parceiros comerciais: i) países com os quais as trocas comerciais tendem a sofrer deterioração parcial; ii) países com os quais a balança

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Análises regionais

comercial não deve sofrer modificações; e iii) países com os quais o fluxo de comércio pode ser incrementado. Chile, Colômbia e Bolívia podem exemplificar cada um desses casos.

Cabe destacar, ainda, que o impacto da desvalorização dependerá do volume de exportações dirigidas ao mercado venezuelano e da porcentagem correspondente de bens sensíveis e não--essenciais, pois o conjunto destes fatores definirá o tipo de câmbio e as liquidações, bem como as perdas e os ganhos.

Com a desvalorização, a relação comercial entre Venezuela e Chile pode ser afetada de forma negativa. Segundo estudo do Escritório Comercial Pró-Chile, 45% dos prin-cipais produtos exportados à Venezuela terão direito ao câmbio preferencial de 2,6 bolívar por dólar, enquanto 51% empregarão o tipo de câmbio denominado “petroleiro”, que corresponde a 4,3 bolívares por dólar4.

Tomando como base as principais exportações chilenas para a Venezuela em 2009 e considerando a modificação na lista de produtos que desfrutam de acesso às moedas oficiais, determi-nou-se que o câmbio para produtos sensíveis seria aplicado a 73 dos 162 itens da lista aduaneira, enquanto o câmbio de 4,30 bolívares por dólar incidiria sobre 83 bens. Entre os itens que constam desta última categoria, encontram-se vinho, polpa de fruta e suco em pó. Além disso, há cinco códigos tarifá-rios que não foram classificados em qualquer uma das listas, como toalhas demaquilantes, inseticidas e papel higiênico.

A Argentina também encontra-se entre os países que teriam o comércio prejudicado pelas modificações na política venezue-lana. Os principais setores afetados entre os exportadores argen-tinos são: automotivo, manufaturas de ferro, medicamentos, aparelhos elétricos e plásticos. A estes, seria aplicado o câmbio pretoleiro. De acordo com autoridades argentinas, a desvaloriza-ção resultará em perdas de aproximadamente US$ 500 milhões5.

No que toca ao comércio com a Colômbia, o cenário apresenta peculiaridades em comparação aos demais países. Em um contexto de extrapolação das divergências políticas bilaterais para a esfera comercial, a desvalorização do bolívar vem com-pletar um ciclo de deterioração das relações comerciais entre os dois países, o que vem ocorrendo há quase dois anos (ver Puentes Bimestral, Vol. 10, No. 5, Nov. 2009, disponível em: <http://ictsd.org/news/puentes/?volume=10&number=5>).

De 2008 a 2009, as exportações venezuelanas à Colômbia passaram de US$ 1 bilhão a US$ 605 milhões6, redução de aproximadamente 40%. Contudo, o comércio bilateral entre os países tem sido enfraquecido mais por um distanciamento comercial do que pela desvalorização da moeda venezuelana. Assim, os países têm recorrido à diversificação de parceiros comerciais para suprir a demanda por produtos, prejudicada pela queda no volume de comércio colombo-venezuelano. Na Colômbia, as exportações venezuelanas foram paulatinamente substituídas pelos mercados chileno, chinês, brasileiro e cana-dense. Da parte da Venezuela, as exportações colombianas têm sido supridas pelos mercados de Brasil, China, Estados Unidos da América (EUA) e pelos países da Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (Alba).

Para a Bolívia, o mercado venezuelano possui valor estraté-gico, uma vez que se tornou um dos principais destinos dos produtos têxteis bolivianos. Esta aproximação foi acentuada

em vista da suspensão, em junho de 2009, dos benefícios tarifários concedidos pelos EUA à Bolívia, por meio da Lei de Promoção Comercial Andina e Erradicação de Drogas (ATPDEA, sigla em inglês). Apesar das incertezas no início do ano quanto ao tipo de câmbio que seria aplicado às exportações bolivianas de têxteis, o desempenho destes produtos foi positivo. Diante disso, em março, a adminis-tração Chávez decidiu aplicar tratamento preferencial às exportações da Bolívia, que passaram a utilizar o câmbio de 2,60 bolívares por dólar. Este favorecimento revela a importância atribuída ao mercado boliviano, bem como à afinidade nas relações políticas entre os dois governos.

Integração regional e diversificação comercialCom todas as reformas efetuadas na Venezuela, a integração regional foi fortalecida, porém entre os grupos que apresentam maiores afinidades. Esse é o caso dos países que compõem a Alba, os quais constituem parceiros comerciais prioritários.

De outro lado, as políticas implementadas pela Venezuela têm gerado impactos negativos sobre o fluxo de comércio com Argentina, Colômbia e Peru. Contudo, cabe ressaltar que o redirecionamento do comércio também influencia esse quadro. No caso da Argentina, por exemplo, o país foi indiretamente favorecido pelas disputas entre Venezuela e Colômbia, na medida em que passou a desfrutar de benefícios tarifários antes gozados pelos exportadores colombianos. A isso, soma-se a compra de produtos como carne e leite da Argentina, anunciada pelo governo venezuelano.

A desvalorização também favoreceu as exportações em novos setores. Nesta dinâmica, buscou-se estimular a diversificação de parceiros comerciais, não apenas na região, mas especialmente nos mercados asiáticos, como China, Cingapura e Japão. Como resultado desse esforço, entre os dez principais países de destino das exportações venezuelanas, apenas três são latino-americanos.

Por fim, a recente implementação das reformas não permite alcançar conclusões definitivas em relação aos efeitos da desvalorização do bolívar ou dos demais controles monetários sobre o comércio e os investimentos entre a Venezuela e seus parceiros. Resta a promessa de que as medidas resultarão em crescimento econômico e ganhos para o bem-estar da população.

1 N.E.: estagflação é um conceito empregado na Economia para fazer referência a um quadro típico de recessão – redução do crescimento econômico e aumento nos índices de desemprego –, somada à inflação.

2 Dados disponíveis em: <http://es.comunicas.org/2010/06/09/proyectos-financiados-por-fondo-bicentenario-generan-mas-de-6-mil-empleos/>.

3 A Lei foi publicada no diário oficial La Gaceta No. 5975.

4 Ver: Pro Chile. Venezuela vuelve a modificar listado de productos con acceso a divisas oficiales. (10/05/2010). Disponível em: <http://rc.prochile.cl/noticia/25595/1>.

Venezuela vuelve a modificar listado de productos con acceso a divisas oficiales (2010, 10 de mayo) http://rc.prochile.cl/noticia/25595/1

5 Ver: El Universal. Devaluación afecta exportaciones de Argentina por unos $500 millones. (12/01/2010). Disponível em: <http://www.eluniversal.com/2010/01/12/eco_ava_devaluacion-afecta-e_12A3278531.shtml>.

Devaluación afecta exportaciones de Argentina por unos $500 millones (2010, 12 de enero) http://www.eluniversal.com/2010/01/12/eco_ava_devaluacion-afecta-e_12A3278531.shtml

6 Dados disponíveis em: <http://www.bancoex.gov.ve/pdfestadisticas/BALANZA%20COMERCIAL%20VENEZUELA%20-%20COLOMBIA.pdf>.

Tradução de artigo originalmente publicado em Puentes Bimestral, Vol. 11, No. 2 - jul. 2010.

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Brasil

Acesso a recursos genéticos e repartição de benefícios no BrasilEduardo Vélez*

Embora recente, a trajetória do Brasil em matéria de Acesso a Recursos Genéticos e Repartição de Benefícios (ABS, sigla em inglês) tem apresentado avanços, principalmente no que tange à estrutura institucional. Persiste, no entanto, uma nítida disparidade entre os resultados atingidos e o fato de o Brasil ser um dos países mais ricos em biodiversidade. Este artigo apresenta algumas perspectivas para a redução da assimetria mencionada acima.

A ausência de regulação no acesso a recursos genéticos e a repartição desigual dos benefícios gerados caracterizam o modo com que a biodi-versidade e os associados conhecimentos tradicionais têm sido utilizados. Somente a partir de 1993, com a entrada em vigor da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), esse panorama passou a ser modificado. Isso se deu graças ao reconhecimento da soberania nacional sobre os recursos genéticos, bem como da necessidade de uma justa contrapar-tida pelas assimetrias entre usuários e provedores de biodiversidade. O tratamento do ABS é, portanto, recente, sendo poucos os países que já estabeleceram leis e políticas específicas nessa temática .

O Brasil tem feito progressos na regulamentação dessa maté-ria, embora a experiência do país com o tema seja incipiente. Anteriormente à consolidação da regulamentação sobre ABS, houve grande desconfiança por parte de diferentes grupos envol-vidos. Exemplo disso foi a repercussão negativa dos termos resul-tantes da negociação entre a empresa multinacional Novartis e a organização social ligada ao Governo Federal Bioamazônia .

A atual legislação brasileira sobre ABS (MP No. 2.186-16) entrou em vigor em abril de 2002. A referida medida criou o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), órgão colegiado integrado por outros nove ministérios e outras dez entidades federais, com funções normativa e deliberativa. Cabe ao CGEN autorizar e editar atos normativos complementares em matéria de ABS . O Departamento do Patrimônio Genético (DPG), do Ministério do Meio Ambiente (MMA), hoje secretaria os trabalhos do CGEN e é responsável por analisar as solicitações de acesso. A partir desse arranjo, o Brasil tem procurado definir uma estrutura institucional mínima e estável de gestão, dotada de técnicos especializados no tema. Formam-se, assim, espaços de discussão e documentação que possibilitam o exercício de gestão sobre o complexo cenário do acesso e uso dos recursos genéticos.

A lógica da lei brasileira é muito similar àquela já estabelecida em outros países. Aproxima-se, por exemplo, daquela da Costa Rica em aspectos sobre concessão de autorizações de acesso para atividades de pesquisa científica ou bioprospecção para instituições nacionais.

No caso do Brasil, essas autorizações são emitidas: i) pelo CGEN, quando se considera que a finalidade do acesso possui potencial econômico; ou ii) pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) ou pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), em casos de fins exclusivamente científicos.

Um dos requisitos para a concessão da autorização de acesso para bioprospecção no Brasil é a assinatura prévia de um Contrato de Utilização do Patrimônio Genético e de Repartição de Benefícios, no qual os benefícios da exploração econômica do produto ou processo desenvolvido deverão ser repartidos de forma justa e equitativa entre as Partes contratantes. Cada contrato tem como Partes o proprietário da área ou o representante da comunidade indígena ou tradicional, em função da procedência geográfica das amostras dos recursos

genéticos, e o interessado em comercializar o recurso genético. A MP no 2.186-16 estabelece que os benefícios podem ser monetários ou não-monetários, conforme livremente acordado entre as Partes.

Esses contratos somente possuem eficácia após serem submeti-dos à anuência e registro do CGEN. Se o contrato não envolver recursos genéticos provenientes de áreas públicas federais, o Conselho não entra no mérito da repartição de benefícios, tam-pouco acompanha a execução dos contratos. Nesses casos, o CGEN apenas verifica se os requisitos formais foram atendidos.

Até março de 2009, o CGEN anuiu e registrou 22 contratos. Embora até o momento não tenha havido uma aferição do valor total dos benefícios já repartidos, vários provedores foram efetivamente beneficiados com esse sistema.

Pontos críticos da regulamentação no Brasil e suas alternativasEmbora o Brasil tenha as condições legais e institucionais mínimas para que projetos de bioprospecção sejam realizados e que a repartição de benefícios seja materializada, permanece uma notável disparidade entre os resultados pouco expressivos alcançados até o momento e o fato de o país ser um dos mais ricos em biodiversidade. As causas disso estão vinculadas aos problemas do atual marco legal e à ausência de mecanismos de cumprimento da lei de ABS nos países usuários.

Desde a sua aprovação, a legislação de ABS no Brasil tem sido muito criticada. A falta de participação da sociedade no CGEN, o excessivo controle sobre pesquisas sem fins comerciais e o alto custo de tran-sação gerado pelos instrumentos e regras previstas para garantir a repartição de benefícios são alguns exemplos de suas fragilidades. Aspectos práticos dificultam a operacionalização de alguns instrumentos, como o caso da demora ou impossibilidade de firmar contratos pela dificuldade em identificar o titular da área em que será realizada a coleta dos recursos genéticos; ou porque a coleta foi realizada no passado sem a identificação precisa da origem geográfica do recurso genético – o que inviabiliza a anuência prévia e, consequentemente, o contrato e a concessão de uma autorização –; ou, ainda, porque os recursos genéticos foram coletados em inúmeros locais – o que poderia gerar a celebração de dezenas a centenas de contratos.

Alternativas à legislação atual de ABS procuram adotar uma nova perspectiva. Nos termos do atual projeto, apresentado pelo Governo Federal, os contratos com os provedores de recursos genéticos deixam de existir para usuários com sede no país. Estes terão de contribuir com um fundo público de repartição de benefícios baseado em um percentual fixo, a ser estipulado na futura lei, sobre a venda de pro-dutos comerciais ou sobre o licenciamento de patentes. No projeto, os contratos permanecem somente para usuários estrangeiros, que devem negociar os benefícios com o CGEN. Todos os recursos do fundo devem fomentar a execução de ações de conservação e uso

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Pontes

PONTES tem por fim reforçar a capacidade dos agentes na área de comércio internacional e desenvolvimento sustentável, por meio da disponibilização de informações e análises relevantes para uma reflexão mais aprofun-dada sobre esses temas. É também um instrumento de comunicação e de geração de idéias que pretende influenciar todos aqueles envolvidos nos processos de formulação de políticas públicas e de estratégias para as negociações internacionais.

PONTES foi publicado pelo Centro Internacional para o Comércio e o Desenvolvimento Sustentável (ICTSD).

Equipe editorial

Michelle Ratton Sanchez Adriana VerdierManuela Trindade VianaDaniela Helena Oliveira Godoy

ICTSD

Diretor executivo: Ricardo Meléndez-Ortiz7, chemin de Balexert1219, Genebra, Suíç[email protected]

As opiniões expressadas nos artigos assinados em PONTES são exclusivamente dos autores e não refletem necessariamente as opiniões do ICTSD, ou das instituições por ele representadas.

sustentável da biodiversidade, sejam estas iniciativas de órgãos públicos, instituições privadas, organizações indígenas ou comunidades tradicionais.

No entanto, além da implementação de instrumentos operacionais com menor custo de transação, é preciso repensar a lógica da gestão de ABS nos níveis nacional e internacional. A prática tem demonstrado que os usuários estrangeiros não cumprem as leis nacionais de ABS dos países de origem para ter acesso a seus recursos genéticos. Para dar conta disso, é urgente a implantação de um regime internacional de ABS, no qual os usuários, sediados fora das jurisdições nacionais dos países de origem dos recursos genéticos, tenham a obrigação de cumprir com as leis de ABS correspondentes.

Com a globalização da economia e o incremento do comércio internacional e do transporte de mercadorias entre os continentes, as oportunidades de acesso foram facilitadas. As amostras de recursos genéticos necessárias para a busca de princípios ativos podem ser facilmente obtidas em matérias-primas exportadas comercialmente (folhas, cascas, raízes, sementes etc.), em produtos para consumo in natura (frutas tropicais, por exemplo) ou com finalidade ornamental (árvores, arbustos, ervas, flores, peixes tropicais etc.), agrícola (cultivares) ou de silvicultura (árvores para exploração de madeira ou produção de óleo). Em síntese, não é mais necessário ir ao país de origem para ter acesso a seus recursos genéticos. Isso explica em parte por que países que já dispõem de leis nacionais de acesso – como o Brasil – são pouco procurados para negociar contratos de repartição de benefícios com instituições estrangeiras. Nesses casos, o regime internacional de ABS obrigaria as instituições usuárias a identificar o país de origem do recurso genético utilizado, entrar em contato com a autoridade nacional de ABS e cumprir com as regras de repartição de benefícios.

Outra medida importante para diminuir a burocracia na gestão dos recursos genéticos é direcionar os controles para o final da cadeia de agregação de valor, quando a intenção de explorar economicamente o recurso genético é identificada. A visão de que a bioprospecção com finalidade comercial começa sempre pela floresta tem direcionado inadequadamente o controle sobre as atividades de coleta e remessa de amostras biológicas com outras finalidades – como as pesquisas científicas sem fins comer-ciais, com evidente prejuízo para a comunidade acadêmica em função das novas obrigações legais.

Um exemplo positivo de controle no final da cadeia de agregação de valor é a exigência, no processo de concessão de direitos de propriedade intelectual, da revelação de procedência legal dos recursos genéticos ou dos conhecimentos tradicionais associados. Com isso, todo solicitante de patente de invenção deve demonstrar que o processo de inovação respeitou o sistema de ABS do país de origem antes que este direito lhe seja concedido. Se implementada – especialmente pelos países majori-tariamente usuários –, essa vinculação reforçaria em grande medida as leis nacionais de ABS. Essa lógica poderia ser aplicada também a produtos sem proteção de propriedade intelectual, mas que demandam algum tipo de registro antes de serem comercializados. Neste caso, o registro poderia ser vinculado à comprovação do cumprimento da lei de ABS do país de origem correspondente.

A conexão entre as leis de ABS e de propriedade intelectual não tem por objetivo prejudicar a concessão de patentes ou inibir a inovação tecnológica, mas permitir a convergência entre os sistemas, melhorando a sua implementação e confiabilidade. A revelação de procedência legal nos pedidos de patente é um mecanismo que vem sendo aplicado no Brasil desde o final de 2006. A Resolução no 34 do CGEN e a Resolução no 207 do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) tratam dos procedimentos a serem cumpridos pelos solicitantes de patentes. Com isso, evita-se a concessão de uma patente àquele que descumpriu a lei de ABS, assegura-se mais tempo para que eventuais pendências com a legislação de acesso sejam resolvidas e cria-se uma situação jurídica na qual o eventual descumprimento da lei de acesso se materializa na forma de informação falsa prestada pelo solicitante – o que pode inclusive justificar o cancelamento da patente dentro das regras do próprio sistema de propriedade intelectual.

Existem diversas alternativas para superar os desafios e as dificuldades atuais na gestão de ABS no Brasil. Já tivemos a oportunidade de aprender nesses últimos anos sobre o que funciona e o que deve ser modificado. Falta, no entanto, que o tema receba a devida prioridade por parte dos poderes Executivo e Legislativo e que integre a agenda política dos diversos setores da sociedade brasileira para que as mudanças necessárias sejam efetivamente implementadas.

* Doutorando em Ecologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e ex-secretário-executivo do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (2003-2007).

1 Ver a base de dados da CDB sobre medidas em ABS, disponível em: <www.cbd.int/abs/measures/groups.shtml>.

2 Tal fato fez com que o Governo Federal optasse, em 2000, por editar a Medida Provisória No. 2.052, com o objetivo de distanciar esse debate do processo legislativo em ABS, em andamento no Congresso Nacional à época.

3 Informações sobre os membros e a estrutura do CGEN estão disponíveis em: <http://www.mma.gov.br/sitio/index.php?ido=conteudo.monta&idEstrutura=222>.

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PontesENTRE O COMÉRCIO E O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

EVENTOS PUBLICAÇÕES

JULHO

21-22 APEC - Reunião de Ministros de Comércio.

Cingapura.

26-28 OMC - Reunião do Órgão de Revisão de Políticas

Comerciais: Gâmbia. Genebra, Suíça.

29-30 OMC - Reunião do Conselho Geral. Genebra,

Suíça.

AGOSTO

11-13 CDB - Seminário de capacitação sobre CDB para

comunidades indígenas e locais da América

Latina. Cidade do Panamá, Panamá.

15-27 UNEP - Curso sobre Acordos Multilaterais sobre

Meio Ambiente. Joensuu, Finlândia.

14–29 II Conferência Internacional sobre Clima,

Sustentabilidade e Desenvolvimento em Regiões

semi-áridas. Fortaleza, Brasil.

22–25 11ª Conferência Bienal da Sociedade

Internacional para Economia da Ecologia:

Avançando Sustentabilidade em Tempos de

Crise. Oldenburg-Bremen, Alemanha.

31 Conferência “Brazil Windpower 2010”. Rio

de Janeiro, Brasil Seminário sobre Gestão de

Florestas, Descentralização e REDD na América

Latina. Oaxaca, México.

SETEMBRO

5-11 Semana Mundial da Água 2010. Estocolmo,

Suécia.

2-3 CEPAL - Seminário sobre a Vulnerabilidade

do Comércio Internacional sobre Pegadas de

Carbono. Santiago, Chile

15-17 OMC - Fórum Público. Genebra, Suíça.

29 OMC - Órgão de Revisão de Políticas Comerciais

- Estados Unidos da América. Genebra, Suíça.

Bloem, Hans et al. Renewable Energy Snapshots 2010. Bruxelas: European Commission, jun. 2010. Disponível em: <http://re.jrc.ec.europa.eu/refsys/>.

Häsner, Cecília. Plano estratégico de negócios ambien-tais amigáveis com o clima. Vitória: Ideias, jul. 2008. Disponível em: <http://www.institutoideias.com.br/negociosambientais/downloads/planoestrategico.pdf>.

Icone. Agricultura, Mudanças Climáticas e Comércio - Artigos Selecionados. São Paulo: Icone, jan. 2010. Disponível em: <http://www.iconebrasil.org.br/arquivos/noticia/1944.pdf>.

IICA. Una Mirada a experiencias exitosas de agroindustria rural en América Latina. San José: IICA, 2009. Disponível em: <http://www.iica.org.br/Docs/Publicacoes/PublicacoesIICA/UnaMiradaExperienciasExitosasAgroindustriaRural.pdf>.

Medaglia, Jorge Cabrera. The Political Economy of the International ABS Regime Negotiations:Options and Synergies with Relevant IPR Instruments and Processes. Genebra: ICTSD, jun. 2010. Disponível em: <http://ictsd.org/downloads/2010/07/cabrera_1_web_5.pdf>.

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