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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
ENTRE IDENTIDADE E DESLOCAMENTO: RELAÇÕES ENTRE PRÁTICAS DE
DESIGN E O FAZER ARTESANAL FEMININO
Viviane Mattos Nicoletti1
Ana Julia Melo Almeida2
Bruna Ferreira Montuori3
Resumo: O artigo tem como intuito revelar como práticas do design deslocam o fazer artesanal
feminino de seu contexto original, sob pretexto de alteridade, mas contribuindo para a redução de
autonomia que as artesãs detêm sobre os artefatos. Como método, o artigo analisará duas imagens
de divulgação de trabalhos produzidos após algumas intervenções brasileiras pré-selecionadas, com
base em três conceitos teóricos: (1) dialética da alteridade, (2) apropriação do artesanato e (3)
deslocamento. Acreditamos que uma crítica da prática de design atual possa levantar aprendizados e
novos caminhos para o campo, considerando o design para além do objeto.
Palavras-chave: Design. Comunidades artesanais. Produção feminina. Alteridade. Apropriação.
Deslocamento.
Introdução
O presente artigo tem como objetivo revelar como práticas atuais do design brasileiro,
realizadas com comunidades artesanais presentes no Nordeste do país, têm impactado o fazer
artesanal e vernacular, deslocando seu contexto e foco a fim de atender a demandas mercadológicas
e tendências da moda. Tal investigação vem tomando corpo nos últimos dois anos por meio das
pesquisas de mestrado e doutorado das autoras deste artigo, que buscam constantemente por ações
projetuais no campo do design mais balanceadas e recíprocas.
Neste sentido, o artigo enfoca a relevância não apenas de trocas horizontais entre diferentes
atores, mas a preservação de patrimônios materiais e imateriais ameaçados no território brasileiro.
Vale ressaltar que a intenção deste trabalho não é de criticar a atuação de designers brasileiros, mas
lançar luz, em uma perspectiva panorâmica, ao que ocorre nas entrelinhas, quando políticas
orientadas para uma ação de âmbito unicamente produtivo e mercantil, atropelam aspectos sociais,
culturais e históricos de comunidades tradicionais nacionais. Atenta-se aqui que é papel do campo
do design refletir sobre as ações já realizadas e levantar questões para práticas mais coerentes.
1 Mestranda, bolsista CAPES, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), São
Paulo, Brasil. 2 Doutoranda, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), São Paulo, Brasil. 3 Mestranda, bolsista FAPESP, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), São
Paulo, Brasil.
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O conhecimento de feitura do artesanato tem sua gênese intimamente enraizada na relação
de pertencimento, identidade e memória de seu local de origem. A prática artesanal, quando
feminina, usualmente é tida como um passatempo dentro da própria comunidade, e quando
mercantilizada é vista como um complemento da renda familiar, reforçando a marginalização do
trabalho artesanal feminino, altamente qualificado.
Os saberes artesanais inseridos na dinâmica capitalista resultam em produtos que servem ao
mercado, e por isso, deslocam-se para atender aos anseios de seus consumidores. Em contrapartida,
para muitas artesãs, o fazer artesanal representa uma perspectiva de vida mais digna e a
possibilidade de maior empoderamento no lar e na comunidade em que vivem. Desta forma,
milhares de mulheres têm o artesanato tradicional popular, tal como o bordado, a costura, a trança
de palhas e muitas outras atividades, como sua subsistência e orientação de vida cotidiana.
Neste contexto, desde que o Programa de Artesanato Brasileiro (PAB) passou a subordinar-
se ao Ministério da Indústria Comércio e Turismo, em 19954, especialmente com a intensificação da
atuação do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae)5, o design autoral,
em parceria com governos e prefeituras onde estão localizadas algumas comunidades artesanais
brasileiras, vem se inserindo localmente a fim de promover e estimular a produção artesanal por
meio dos vieses de empreendedorismo e estética. Desta maneira, o papel de designers insere-se
como mediador na relação entre artesãs e mercado, podendo portar-se ora a privilegiar os
significados sociais do trabalho artesanal, ora a beneficiar o mercado.
Para tanto, fugindo do aprofundamento de um cenário de marginalização crônica, que
desloca o cerne deste artigo, serão apresentadas duas imagens que ilustram como esta relação tem
caminhado de forma assimétrica, apresentando-se de maneira a valorizar a artesã e o significado
social do seu trabalho, mas que acabam por utilizar a sua imagem para agregar valor a produtos,
inserindo-a em uma lógica de mercado que não é habitual ao seu contexto e dinâmica cotidiana.
Desenvolvimento
O mercado, para satisfazer seus anseios, apropria-se não somente dos saberes artesanais,
mas principalmente da identidade do produto artesanal, que constitui-se de um imaginário
4 Decreto nº 1.508 de 31 de maio de 1995. 5 Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas. Disponível em: https://www.sebrae.com.br/sites/
PortalSebrae.
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territorial. É possível perceber a apropriação deste imaginário por meio de algumas imagens que,
muitas vezes, modificam a identidade e memória originais vernaculares, deslocam a relação de
pertencimento entre a artesã e o objeto produzido, e ainda promovem uma espécie de autonomia e
direitos limitados a produção.
Apresenta-se as duas imagens de uma só vez, visto que o intuito não é apontar a qualidade
do trabalho colaborativo desenvolvido, mas o modo de apresentação da figura da mulher artesã,
enquadrada a lógica produtiva e efêmera da moda. A primeira imagem (figura 1) apresenta a figura
de uma artesã de cestos de palha do povoado de Várzea Queimada, no Piauí, vestindo em sua
cabeça um cesto, como máscara de palha, fabricado no local. Já a segunda imagem (figura 2)
apresenta a figura de uma mulher rendeira da região do Cariri, na Paraíba, desfilando em uma
passarela de um evento de moda, utilizando vestido de renda produzido localmente.
Figura 1. Artesã do povoado de Várzea Queimada. Fotografa Tatiana Cardeal. Fonte: Projeto Rosenbaum ®_ A gente
transforma. Várzea Queimada: Espírito, Matéria e Inspiração. São Paulo, 2016, p.146-147.
Figura 2. Rendeira paraibana desfilando no São Paulo Fashion Week. 2015. Fotógrafo Zé Takahashi. Fonte:
http://tambau247.com.br/noticia/cidades/rendeiras-da-paraiba-desfilam-no-sao-paulo-fashion-week.html. consulta em
junho 2016.
A seguir abre-se espaço para a análise das imagens apresentadas acima com base em três
conceitos teóricos: (1) dialética da alteridade, (2) apropriação do artesanato e (3) deslocamento. Os
conceitos foram levantados, a fim de embasar e justificar porque as imagens acima reduzem a
verdadeira potência do artesanato popular tradicional brasileiro e o delegam como um instrumento
para o mercado de moda/design brasileiro.
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1. Dialética da alteridade
“Quem define o lugar? Quem fala por ele? (…) É possível redefinir e reconstruir o mundo a
partir da perspectiva de múltiplas práticas culturais, ecológicas e econômicas da alteridade
existentes em muitos lugares do mundo?”. É por meio de tais perguntas que o antropólogo
colombiano Arturo Escobar (1999, p. 30, tradução nossa) aborda a relação entre a cultura local do
‘outro’, sua dimensão política e territorial em face à hegemonia neoliberal ocidental.
O artesanato tradicional não pode ser excluído deste debate. Sua cultura autóctone passada
por gerações, carrega, como colocam os antropólogos Tim Ingold e Elizabeth Hallam (2007), a
chave para o aspecto relacional da improvisação como ato natural na vida do ser humano. Para eles
(Ibid., p. 7) seguir a “tradição não se trata de replicar comportamentos padronizados, mas dar
continuidade a de seus antecessores”. Neste sentido, compreender e reconhecer a prática artesanal
como autônoma e possuidora de sua própria narrativa, identidade e memória é imprescindível para
atividades compartilhadas entre profissionais do campo do design e da moda e os próprios artesãos.
Para tanto, ‘dialética da alteridade’ é abordada aqui com a intenção de lançar luz à
necessidade de valorização e visualização da cultura do ‘outro’ como paralela e horizontal àquela
que possui hegemonicamente o lugar de fala. O termo, extraído de textos das arquiteta Paola
Jacques e Fabiana Britto (2015), refere-se a capacidade de estabelecer relações de tradução e
interpretação entre diferentes atores de contextos e culturas distintos, de forma que ocorra a
assimilação simultânea das narrativas da figura do outro horizontalmente. Para o designer Gui
Bonsiepe (2011, p. 38), alteridade é a “palavra que significa colocar-se no lugar do outro na relação
interpessoal, com respeito e consideração, valorização etc. É um princípio filosófico que significa
trocar seu próprio ponto de vista pelo do outro”.
Compreende-se a dificuldade em apreender o sentido de alteridade, uma vez que estamos
diante de um complexo sistema baseado no progresso desenvolvimentista creditado na produção
desenfreada tecnocrática. Para Escobar (1999, p. 43), as ordens de cunho europeu deveriam admitir
a instabilidade presente em seus fundamentos com relação às diferentes culturas, ainda que se
esforcem para eliminar ou domesticar os fantasmas da alteridade. Considerando ainda o âmbito
patriarcal em que a maior parte das comunidades de artesãs estão envolvidas, valorizando “a
competência, as hierarquias, o poder, o crescimento, a procriação, a dominação dos demais e a
apropriação de recursos em nome da racionalidade” (Id., 2016, p. 37), visualizar o desequilíbrio de
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instâncias sociais no intuito de promover uma perspectiva da alteridade apresenta-se como um
desafio.
Embora a instabilidade paire justamente pelo fato de que muitas comunidades artesanais já
não conseguem se manter com sua própria autonomia social, cultural e econômica, e exercem seu
papel com a mera intenção de sobrevivência, acredita-se que o entendimento e a leitura sobre suas
linguagens e o seus próprios modos de fazer e usar, sem olhares impositivos, faz-se extremamente
necessária no cerne das atividades artesanais colaborativas. Por este caminho busca-se um
entendimento mais democratizado sobre a noção de alteridade, focado em relações menos
instrumentalizadas, que evitam práticas modernizantes, “de modo hierárquico e de controle
patriarcal, objetivador e individualizador” (Ibid., p. 238), para trocas baseadas em conhecimentos
relacionais, históricos e culturais.
No que se refere às imagens apresentadas, em ambos casos a alteridade é deslocada por
meio do modo como o objeto produzido localmente perde sua função principal. Nos dois casos, o
trabalho original é imposto a outra posição de fala, não aquela tradicional, abrindo margem para
uma perspectiva fetichizante e objetificadora. O cesto, utilizado por décadas como ferramenta de
transporte de alimentos e objetos locais, ao esconder a face da artesã, retira sua autonomia sobre o
que ela mesma produziu, reduzindo a sua identidade e escondendo seus valores, sua cultura e
história. Com relação à mulher rendeira desfilando, observa-se que o trabalho e a autoria são
primordialmente voltados para atender ao campo da moda, mais uma vez instrumentalizando a
figura da artesã. Ainda sobre o conceito de alteridade, Bonsiepe afirma que este
pressupõe a disposição de respeitar outras culturas projetuais com seus valores inerentes, e
não vê-las com o olhar de exploradores em busca da próxima moda de curta duração. Essa
virtude pressupõe a disposição de resistir a qualquer visão messiânica etnocentrista. (Ibid.,
p. 38)
Por fim, o autor (2011, p. 18) deixa explícito que “(…) o design se distanciou (…) da ideia
de <solução inteligente de problemas> e se aproximou do efêmero, da moda, do obsoletismo rápido
(…) do jogo estético-formal, da glamourização do mundo dos objetos”. Em razão disso, acredita-se
na importância de uma postura de alteridade dos profissionais envolvidos no processo de
mercantilização dos artefatos artesanais.
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2. Apropriação do artesanato
O lugar ocupado pelo artesanato na sociedade atual é reflexo de sua trajetória e das
significações adquiridas por essa atividade ao longo do tempo. As transformações ocorridas na
divisão social do trabalho acarretaram uma nova organização caracterizada pela separação das
etapas de concepção e produção dos objetos. Esse processo impactou e influenciou o próprio
conceito de trabalho artesanal, evidenciando os possíveis fatores de sua condição social e
econômica nos dias de hoje.
Segundo Canclini (1983, p. 83), não se deve estudar o artesanato como um objeto final, mas
sim como um produto inserido em relações sociais; é preciso entendê-lo como um processo. Isso
significa, sobretudo, que os elementos mobilizados pelos produtos artesanais expressam diretamente
o que se passa no contexto social e cultural no qual se inserem e revelam delicadas conexões com
seus produtores.
No que se refere, especificamente, ao contexto brasileiro, Bardi escreve que o artesanato se
assemelha mais a um estado de “pré-artesanato”. O entendimento da autora (1994, p. 16) acerca do
conceito dessa atividade está atrelado à organização social das corporações de ofício que
caracterizava o modo de produção artesanal europeia.
Segundo a autora (1994, p. 28), as corporações de ofício não entram na formação histórica
do Brasil. “A organização social artesanal pertence ao passado, o que temos hoje são sobrevivências
naturais em pequena escala, como herança de ofício” (Ibid., p. 26). O estado de “pré-artesanato”, a
que Bardi se refere, é argumentado por conta de sua produção doméstica e rudimentar. A autora
enfatiza ainda a vulnerabilidade social e econômica das atividades artesanais no Brasil e ressalta
nossa capacidade inventiva para driblar as condições mais adversas, as barreiras de pobreza em
favor de sua sobrevivência.
Por mais que o artesanato utilize técnicas tradicionais, o que confere a ele uma impressão de
prática do passado, essa atividade se modifica e se reconfigura ao longo do tempo. Canclini (1983,
p. 51) afirma que os produtos artesanais se reestruturam nos dias de hoje devido às “transformações
de significado das culturas populares segundo três dimensões correlacionadas entre si, isto é,
enquanto processos sociais, culturais e econômicos contemporâneos”.
Dessa maneira, o artesanato não retrata apenas os objetos, mas também as práticas sociais,
os processos envolvidos e seus produtores. Por essa razão, não é uma atividade estática, um
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conjunto de repertórios fixos e imutáveis; é fruto de uma experiência coletiva, da forma como as
pessoas se ligam entre si, com os artefatos e com o contexto social e cultural a que pertencem.
Os processos artesanais, bem como os da cultura como um todo, modificam-se pelos seus
próprios agentes e pelos contextos sociais aos quais pertencem. Estas são questões que vão além do
objeto; elas indagam sua permanência no tempo e no espaço, pensam sua resistência e a forma de
produção desses saberes. Nesse sentido, pensar esse artefato requer, essencialmente, conhecer quem
o faz, onde e como é feito.
Nas últimas décadas o design e o artesanato brasileiro têm se aproximado de forma bastante
frequente. Essa aproximação levanta questionamentos significativos no que se refere à forma como
esses campos interagem, a situação de vulnerabilidade social que contorna as produções artesanais e
as práticas projetuais de atuação do design no âmbito social.
Podemos levantar alguns questionamentos a respeito dessa interação: de que forma a
produção artesanal se relaciona com o campo do design? Qual é o papel do design nessa relação?
Quais são as repercussões desse processo nas comunidades artesanais?
Para Cardoso (2013, p. 249-250), nos últimos quinze anos os termos “responsabilidade
ambiental” e “inclusão social” são bastante utilizados no discurso político das práticas de design. O
autor pondera, no entanto, que “o risco maior é permanecerem apenas no âmbito do discurso, como
belas palavras de ordem apensadas à prática projetual de modo mais decorativo do que efetivo”.
Segundo Leon (2007, p. 66), um dos pressupostos básicos da produção artesanal é que ela
envolve a reunião de saberes manuais e intelectuais. A autora questiona a validade dos projetos que
envolvem design e artesanato, realizados no Brasil, pelo fato de que muitas vezes se mantém a
separação desses saberes. Além disso, “um programa de design e artesanato deve criar condições e
autonomia projetual para os artesãos”.
Em relação às imagens apresentadas neste artigo, a apropriação do artesanato somente como
mão de obra gera uma ruptura dessas habilidades e não cria condições de autonomia, pois o trabalho
artesanal reúne saberes manuais e intelectuais. Para Sennett (2013), este é um ponto crítico: ao
separar cabeça e mãos, separamos o trabalho não só intelectualmente, mas também socialmente.
3. Deslocamento
Apropriado pelo mercado e mediado pelo design, o artesanato desloca-se de seu ambiente de
origem e passa a circular por arenas desconhecidas. Por muitas vezes o contexto social no qual o
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artesanato tem um sentido próprio é descartado e impõe-se uma lógica incompatível com o sistema
de produção do artefato artesanal em seu local de origem.
A busca comunitária por soluções para problemas cotidianos de ordem imediata, como
questões alimentares, de vestimentas ou ainda ritualísticas, é propulsora para o desenvolvimento de
conhecimentos coletivos aplicados. Essa busca por soluções, que encontram sua matéria prima
disponível localmente e que aprimoram seus saberes geracionalmente, pode ser chamado de design
vernacular resultando no artesanato tradicional.
A diretriz estatal brasileira que trata do artesanato denominada Programa do Artesanato
Brasileiro (PAB), através da portaria SCS/MDIC nº29, de 5 de outubro de 2010 define o artesanato
tradicional sendo aquele que resulta em artefatos que são produzidos comunitariamente e que são
“parte integrante e indissociáveis dos seus usos e costumes” e tem suas técnicas e seus processos
transpassado geracionalmente e por isso são portadores da memória cultural de seu povoado de
origem.
Assim, o design vernacular, como ato de busca para solucionar problemas cotidianos, insere-
se na rotina de sua comunidade originária, acomodando-se intimamente aos processos vitais
mantenedores da vida em sociedade. Seu resultado, o artesanato tradicional, tem seu fazer
consumido em totalidade: utiliza-se de matéria prima local, tem sua técnica de feitura dominada
localmente e seu resultado é utilizado para um fim imediato. O cesto quando confeccionado por
fibras providas pela flora local, feito a partir de uma técnica dominada localmente e utilizado para
fins imediatos, como carregar ou guardar o resultado da colheita, configura-se como um artesanato
tradicional. Essa configuração de produção, que não gera excedentes, consumindo-se em sua
totalidade é caracterizado por Arendt como labor:
[...] é típico de todo o labor nada deixar atrás de si: o resultado do seu esforço é consumido
quase tão depressa quanto o esforço é despendido. E, no entanto, esse esforço, a despeito de
sua futilidade, decorre de enorme premência; motiva-o um impulso mais poderoso que
qualquer outro, pois a própria vida depende dele. (ARENDT, 2007, p. 98)
A autora aponta que nos cenários modernizantes, a economia se pauta na produção de
excedentes, o que corrompe a lógica do labor. A artesã, ao ter sua prática tradicional deslocada para
atender a demanda de mercado, tem sua prática de labor corrompida para atender a lógica da
produção para além de suas necessidades imediatas, tendo sua produção orientada por compradores
alheios à sua rotina. A aplicação de seus saberes passa a servir uma arena diferente da que
tradicionalmente se construiu, o mercado passa a reger aspectos de seu conhecimento.
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A intervenção do design se faz presente quando o artefato artesanal precisa se adequar a uma
nova arena de comércio, anseios e necessidades. O designer, como um agente no processo de
mercadorização do artesanato, pode se portar ora de maneira a ser pouco invasivo aos saberes
tradicionais, ora privilegia anseios do mercado, mas como ressaltado por Granovetter (2007) em
seu conceito de imersão, análises que subsocializem as relações extremando os ganhos próprios ou
que as supersocializem colocando-as à mercê de padrões interiorizados pela socialização, podem
não revelar a complexidade do estudo do comportamento econômico, por isso é importante ressaltar
que as intervenções não adotam uma única postura mas alternam entre ganhos e perdas para as
comunidades.
Há uma faceta do design institucional que se dedica a forjar significados nos objetos,
servindo a interesses mercadológicos, num contexto de “astúcia e fraudes” como indica Flusser
(2007, p. 182). Já Bonsiepe (2011, p. 18), indica que o desgaste do termo design fez com que o seu
significado tenha se descolado de seu referencial de prática projetual e tenha se submetido a servir
interesses mercadológicos.
Portanto, quando o design se apresenta ao artesanato como seu mediador e o mercado, o
objetivo primário é a adequação dos artefatos às exigências dos consumidores. Por isso, as
intervenções podem tanto referentes a aspectos formais, incluindo questões estéticas e adequação de
dimensões para facilitar o transporte ou ainda intervenções no modo de produção para otimizar o
processo de confecção dos artefatos artesanais. Nas figuras apresentadas no início deste artigo, é
possível observar como o cenário territorial e as imagens das artesãs foram transformados em
argumentos de venda, deslocando seus significados sociais para atender ao apelo publicitário do
mercado.
O enfoque nas exigências de mercado, por vezes acabam desconsiderando a totalidade dos
processos envolvidos na produção artesanal. Tony Fry (2009, p. 143-173) indica que a falta de
consideração da complexidade dos sistemas sociais, ambientais, econômicos e políticos, em todas
as esferas de ação humana, acaba gerando um desequilíbrio de impactos imediatos e profundos:
Comunidades se fragmentam, economias vão à falência, a pobreza se aprofunda. Da mesma
forma o medo se espalha, a depressão se intensifica, a omissão se generaliza – assim, a
incapacidade de debelar a crise se transforma em crise. (FRY, 2009, p.146)
Por outro lado, o autor sugere uma postura reguladora ao design. Ela é holística e considera
a complexidade dos sistemas interferidos/mediados pelo design que abrange as “relações de
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ecologias biológicas, sociológicas e psicológicas” (2009, p. 145). Considera que a modernidade,
provoca a perda das significações sociais, mas que o estabelecimento de fatores sagrados antes e
além da produtividade imposta colabora para manter a coerência das relações localmente.
Portanto, quando o artesanato deixa de atender a necessidades locais e imediatas e é
deslocado para atender ao mercado, para evitar reforçar um cenário de crise, no qual a lógica
produtiva insere o trabalho artesanal, o design deve se posicionar de maneira a considerar a
complexidade do sistema das relações para manter o equilíbrio comunitário.
Conclusão
Neste artigo, buscamos analisar de que forma as práticas atuais do campo do design
deslocam o fazer feminino artesanal para contextos fora do domínio das comunidades de origem.
Ao fazê-lo, a autonomia que artesãs têm sobre o seu trabalho se torna menor, pois se altera a lógica
de produção e comercialização, compreendendo o seu ofício unicamente como mão de obra.
É importante reiterar que não se pretendeu abordar a atuação dos designers envolvidos em
tais projetos, mas sim analisar e aprofundar uma visão crítica ao campo em uma perspectiva mais
ampla, investigando de que maneira as políticas na área ainda são orientadas para um desempenho
de mercado, deixando à margem aspectos sociais, culturais e históricos de comunidades tradicionais
nacionais.
O pensamento do design foi posto para preencher uma lacuna entre o que existe e o que
pode ser possível. A crítica do campo atual se apresenta como um meio para levantar aprendizados
e novos caminhos para práticas mais coerentes e equilibradas, considerando o design para além de
seus objetos. Acreditamos que a aproximação entre o design e o artesanato acarreta diversos
questionamentos e revela situações delicadas, por serem campos social e economicamente distintos.
Portanto, é importante refletir como o design é compreendido e praticado em tais contextos, os
desdobramentos e impactos de suas atividades, repensando a prática para além de uma visão
orientada aos objetivos do mercado e evidenciando a função social como parte fundamental para o
pensamento sobre o papel do design hoje.
Referências
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Between identity and displacement: relations among design practices and the female
craftwork
Abstract: This article aims to reveal how design practices displace the handicraft making by female
artisans from its original context. Despite the claim for otherness, these practices contribute for the
reduction of these artisans autonomy when it comes to artifacts production. As method, this paper
will analyse published images of design practices developed in a few Brazilian interventions. The
analysis will be sustained by three theoretical concepts: dialectics of otherness, high quality
craftwork appropriation and displacement. As stated, we believe that making critics of current
design practices could unveil apprenticeships and new paths for the field, thus consider design as
beyond the object.
Keywords: Design. Crafts communities. Women's production. Otherness. Appropriation.
Displacement.