entre arte e documento: a fotografia pública de niterói ... · fotos de alto contraste em preto e...

9
17 Aurora, ano 1, n. 1, jan./jun, 2018 Entre ae e documento: a fotografia pública de Niterói pelas lentes de Zalmir Gonçalves Marina da Rocha Marins Licencianda em História pela Universidade Federal Fluminense RESUMO Partindo do conceito de fotografia pública, o trabalho tem como objetivo explorar a trajetória profissional do fotojornalista Zalmir Gonçalves na cidade de Niterói, localizando-o entre duas esferas: a fotografia artística e a fotografia documental. Na primeira delas, Zalmir teria atuado durante a maior parte de sua vida. O trabalho como fotógrafo de jornais teria o colocado em contato com um tipo de registro fotográfico que dialoga diretamente com a ideia de prova, onde o fotógrafo objetiva aproximar o espectador ao acontecimento. Já a fotografia artística, ainda que busque convencer o espectador, está mais próxima da imaginação. Nela estão em jogo outros fatores, comuns ao mundo da arte, como levar o espectador a lugares inexistentes, de prazer e abstração. Entre esses dois mundos também há muito em comum, essa relação fica ainda mais clara ao conhecer as fotografias de Zalmir. FOTOGRAFIA PÚBLICA - HISTÓRIA ORAL SOCIEDADE FLUMINENSE DE FOTOGRAFIA HISTÓRIA PÚBLICA - FOTOGRAFIA DE NITERÓI ARTIGO

Upload: vothuan

Post on 25-Jan-2019

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Entre arte e documento: a fotografia pública de Niterói ... · fotos de alto contraste em preto e branco, ... Com esse dinheiro mais a rifa de sua antiga câmera, Zalmir conseguiu

17

Aurora, ano 1, n. 1, jan./jun, 2018

Entre arte e documento: a fotografia pública de Niterói pelas lentes de Zalmir Gonçalves

Marina da Rocha MarinsLicencianda em História pela Universidade Federal Fluminense

RESUMO Partindo do conceito de fotografia pública, o trabalho tem como objetivo explorar a trajetória profissional do fotojornalista Zalmir Gonçalves na cidade de Niterói, localizando-o entre duas esferas: a fotografia artística e a fotografia documental. Na primeira delas, Zalmir teria atuado durante a maior parte de sua vida. O trabalho como fotógrafo de jornais teria o colocado em contato com um tipo de registro fotográfico que dialoga diretamente com a ideia de prova, onde o fotógrafo objetiva aproximar

o espectador ao acontecimento. Já a fotografia artística, ainda que busque convencer o espectador, está mais próxima da imaginação. Nela estão em jogo outros fatores, comuns ao mundo da arte, como levar o espectador a lugares inexistentes, de prazer e abstração. Entre esses dois mundos também há muito em comum, essa relação fica ainda mais clara ao conhecer as fotografias de Zalmir.

FOTOGRAFIA PÚBLICA - HISTÓRIA ORALSOCIEDADE FLUMINENSE DE FOTOGRAFIAHISTÓRIA PÚBLICA - FOTOGRAFIA DE NITERÓI

ARTIGO

Page 2: Entre arte e documento: a fotografia pública de Niterói ... · fotos de alto contraste em preto e branco, ... Com esse dinheiro mais a rifa de sua antiga câmera, Zalmir conseguiu

18

Aurora, ano 1, n. 1, jan./jun, 2018

Um jogo internacional entre o Fluminense e o Peñarol, do Uruguai. O Peñarol era a base da seleção do Uruguai que foi campeã em 50 no Brasil. Então eu fiquei muito entusiasmado ao chegar no meio do jogo, eu assistia lá os fotógrafos, o movimento dos fotógrafos. E aí eu falei pro meu tio: "Quem são aqueles caras que tão ali de câmera?" Aí ele disse: "São os fotógrafos, os repórteres fotográficos que vão sair amanhã nos jornais, nas revistas. Vão publicar as fotos que eles estão fazendo no campo." Aí eu falei pra ele: "Um dia eu vou ser um desses aí, eu tenho vontade de ser fotógrafo pra trabalhar em jornal." Aí ele disse: "Bom, é um pouco difícil."1

Nascido em 1938 na cidade de Niterói, Rio de Janeiro, no bairro do Fonseca, Zalmir Gonçalves ficou conhecido por seu trabalho como repórter fotográfico atuando nos jornais de maiores circulações das cidades de Niterói, São Gonçalo e Rio de Janeiro. Como grande admirador de Cartier Bresson, Zalmir é conhecido por suas fotos de alto contraste em preto e branco, seguindo a estética do seu grande ídolo. Zalmir começou suas atividades como fotógrafo ainda bem jovem. Conta-nos que foi numa partida de futebol que descobriu aos 12 anos o que queria ser quando crescesse. “Um dia eu vou ser um desses aí” dizia ao observar os repórteres fotográficos durante uma partida de futebol entre Fluminense e Peñarol no estádio do Maracanã.

Dois anos depois, aos 14 anos, Zalmir ganhou sua primeira câmera fotográfica, presente de sua mãe, uma Penguin de fole, “com poucos recursos”, nos conta.2 Dali em diante ele sai em campo, fotografando com os amigos, na praia, aniversários, sempre praticando por onde ía. Aos 17 anos, Zalmir fica sabendo, através de um amigo, que a Sociedade Fluminense de Fotografia ofereceria um curso de fotografia para amadores. Aquela seria a oportunidade de aperfeiçoar a técnica que tanto o fascinava. Zalmir e outros três amigos se inscreveram no curso da SFF, mas dos quatro apenas ele seguiu pelo caminho da fotografia. Na época (1955), a Sociedade Fluminense de Fotografia tinha 11 anos de existência e figurava um dos mais importantes fotoclubes brasileiros, vivia em constante comunicação com outros clubes deste estilo nas Américas, Europa e Ásia através dos chamados Salões Mundiais Fotográficos. A Sociedade Fluminense de Fotografia teria ditado toda uma estética da arte fotográfica na época, lida no exterior como uma estética nacional. Operou como um lugar para se pensar, produzir e reproduzir e consumir fotografia. Contava, desde a sua

1 Trecho da entrevista realizada com o fotógrafo em 11 de dezembro de 2015. Disponível no acervo de entrevistas do LABHOI/UFF, sob o número 54-21-01-2017. Daqui em diante, o documento será referido como "LABHOI/UFF, 54-21-01-2017".2 LABHOI/UFF, 54-21-01-2017.

FigurA 1: entrevistA com o FotógrAFo ZAlmir gonçAlves. guilHerme ribeiro de brito, 2016.

Page 3: Entre arte e documento: a fotografia pública de Niterói ... · fotos de alto contraste em preto e branco, ... Com esse dinheiro mais a rifa de sua antiga câmera, Zalmir conseguiu

19

Aurora, ano 1, n. 1, jan./jun, 2018

3 Sociedade Fluminense de Fotografia. Estatutos. Imprensa Estadual, Divisão de Obras. 1950.4 Blog Sobre o que vi. Cinemas de rua de Niterói. Disponível em <https://sobreoquevi.wordpress.com/2014/05/16/cinemas-de-rua-de-niteroi/comment-page-1/>. Acesso em: 30 de janeiro de 2018.5 PEREGRINO, Nadja Fonseca; MAGALHÃES, Angela. Fotoclubismo no Brasil: o legado da Sociedade Fluminense de Fotografia. Rio de Janeiro: Senac Nacional, 2012.6 LABHOI/UFF 54-21-01-2017.

fundação, com cursos voltados para a prática fotográfica equipados com laboratórios de revelação, além de uma biblioteca construída com o objetivo de incentivar o consumo e a produção de fotografias, função prevista em estatuto desde a sua fundação.3

Durante os anos 1950 e 1960, a Sociedade Fluminense de Fotografia vivia seus anos dourados, participando sistematicamente de exposições mundiais de arte fotográfica. Localizada próxima geograficamente da Guanabara, sede do Distrito Federal, a cidade de Niterói e capital fluminense, àquele tempo vivia uma posição privilegiada no cenário cultural brasileiro. Nesse período, a cidade presenciou um intenso processo de modernização com a construção de praças, parques, estação hidroviária, redes de esgoto, alargamento das ruas e avenidas principais, a Criação da Universidade Federal Fluminense (1960), a criação da Caixa Econômica do Estado do Rio de Janeiro (1939), o Museu Antônio Parreiras (1941), a construção do Hospital Antônio Pedro (1944), do Estádio Caio Martins (1950) além da expansão da malha rodoviária e da inauguração do serviço de trolleybus (1951). Essa modernização foi muito positiva para o crescimento da cidade, especialmente no que diz respeito ao campo da cultura e das artes, como a fotografia e o cinema. Naqueles anos, Niterói contava com mais de 10 cinemas espalhados pela cidade, a maioria deles com ingressos a preço popular.4

A criação da Sociedade Fluminense de Fotografia coincide com esse momento de efervescência na cena cultural niteroiense. Criada em 1944, a Sociedade Fluminense de Fotografia ocupou um lócus privilegiado na produção da arte fotográfica brasileira, atuando tanto na difusão do conhecimento fotográfico, através de cursos diversos que promovia, quanto na circulação, no agenciamento e no consumo da fotografia artística

amadora, a partir dos Salões aos quais participava.5

Foi graças à Sociedade Fluminense de Fotografia que Zalmir teve seu primeiro contato com as técnicas de fotografia. Após realizar curso de fotografia na Sociedade Fluminense de Fotografia, Zalmir serviu o exército, onde conseguiu juntar algum dinheiro trabalhando durante três anos para uma empresa marítima do Rio de Janeiro. Com esse dinheiro mais a rifa de sua antiga câmera, Zalmir conseguiu comprar uma câmera Flexaret, com flash, com a qual começou a fotografar eventos sociais, casamentos e aniversários. Mas confessou em entrevista que essa não era a sua praia. Ele queria mesmo era ser fotojornalista, trabalhar como fotógrafo de jornais. Após realizar o curso de fotografia na SFF, Zalmir foi apresentado ao fotógrafo Walter Quintino, da Revista Atualidade e Ultima Hora, que disse que havia uma vaga para trabalhar como repórter fotográfico na Revista Atualidade: “Ó, vai ter agora uma saída agora pra Cordeiro no final de semana, a Exposição Agropecuária de Cordeiro. Você quer ir? Você pode ir? Tem máquina?”. Zalmir responde: “Tenho, tenho máquina, tenho flash, tenho tudo."6 Assim ele foi, ocupou a vaga de repórter fotográfico da Revista Atualidade, onde ficou durante três anos num processo de imersão na fotografia profissional. Com sua entrada na Revista Atualidade, Zalmir abre sua carreira no fotojornalismo, registrando diversos momentos importantes da cidade de Niterói e Rio de Janeiro. Trabalhou em jornais do Rio de Janeiro com sucursais em Niterói, como o Diário Carioca, O Jornal Última Hora, O Dia e o Diário de Notícias. Entre 1968 e 1983 trabalhou no Jornal O Fluminense, posteriormente teve uma trajetória como freelancer durante alguns meses no Jornal O Globo.

Page 4: Entre arte e documento: a fotografia pública de Niterói ... · fotos de alto contraste em preto e branco, ... Com esse dinheiro mais a rifa de sua antiga câmera, Zalmir conseguiu

20

Aurora, ano 1, n. 1, jan./jun, 2018

Sua atuação nos jornais do Rio de Janeiro não está desvinculada de sua prática artística. Desde que participou do curso fundamental de fotografia na Sociedade Fluminense de fotografia, Zalmir não cortou sua relação com o fotoclube. Participou de alguns Salões Fotográficos realizados no âmbito da instituição, tendo algumas de suas fotos jornalísticas presentes em Salões. Zalmir ganhou prêmios de melhor fotógrafo, além de outras premiações de melhor fotografia. Em sua trajetória como fotógrafo é responsável por 29 exposições individuais com o seu nome e outras 47 coletivas. Ao longo de sua carreira no fotojornalismo, Zalmir registrou através de suas lentes, momentos de importância histórica para a cidade, como por exemplo, a construção da ponte Rio-Niterói:

Desde o princípio da fundação até a inauguração... Por incrível que pareça não fiz as fotos da inauguração. Nesse dia eu tava de folga aí não fiz. Mas eu acompanhei os acidentes, corria todo dia, pegava um barco lá na Ponta d'Areia e ia todo dia até lá perto do Vão Central fazer o Vão Central subindo.7

FigurA 2: subidA do vão centrAl dA Ponte rio-niterói. ZAlmir gonçAlves, 1973.

Zalmir foi um dos primeiros fotógrafos a registrar a Ponte Rio-Niterói ainda em construção. Sua foto foi publicada na capa do jornal Fluminense na época e republicada tempos depois no Jornal O Globo em comemoração aos 40 anos de construção da Ponte.8 A fotografia da Ponte de Zalmir registrou um dos mais importantes acontecimentos da Cidade, daquela construção que ligaria Niterói ao Rio de Janeiro. Quem quisesse fazer a travessia de carro não precisava mais enfrentar quilômetros de engarrafamento para pegar a barca. A ponte estreitaria a distância entre as duas cidades, facilitando a vida de muitos trabalhadores que faziam o movimento pendular entre as cidades. Em sua fala, Zalmir comenta dos acidentes, nos lembrando que a construção da Ponte teve também uma face cruel com relação aos diversos trabalhadores que morreram durante o processo de construção da mesma. Nos jornais da época, o número de mortos durante a construção da Ponte não passava de 30. Muitos casos, entretanto, passaram pelo crivo da censura, não sendo publicadas nos jornais, o que nos leva a acreditar que o número de mortos tenha ultrapassado o número registrado.9

As fotografias de Zalmir Gonçalves circularam por todo o estado do Rio de Janeiro através dos Jornais onde trabalhou. E também mundialmente através dos Salões Mundiais Fotográficos dos quais participou enquanto sócio-membro da Sociedade Fluminense de Fotografia. Zalmir também teve trabalhos importantes na documentação de atividades de preservação de patrimônios históricos pela Prefeitura de Niterói, como os registros da restauração do Museu Solar do Jambeiro, no bairro do Ingá, e da Igreja de São Sebastião dos Índios, em Itaipu - duas importantíssimas construções

7 LABHOI-UFF 54-21-01-2017.8 O Globo. Ponte 40 anos. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/rio/bairros/ponte-40-anos-envie-fotos-historias-para-globo-niteroi-11612643> Acesso em: 30 de janeiro de 2018.9 Diário do Rio. História da Construção da Ponte Rio-Niterói. Disponível em: <https://diariodorio.com/historia-da-construcao-da-ponte-rio-niteroi/> Acesso em: 30 de janeiro de 2018.

Page 5: Entre arte e documento: a fotografia pública de Niterói ... · fotos de alto contraste em preto e branco, ... Com esse dinheiro mais a rifa de sua antiga câmera, Zalmir conseguiu

21

Aurora, ano 1, n. 1, jan./jun, 2018

10 Entrevista com Zalmir Gonçalves. In: Revista Mosaico, Niterói. 2001.11 Idem.12 Idem.

históricas niteroienses. O trabalho de Zalmir, transitava por entre esses dois mundos um tanto distintos, porém igualmente importantes do ponto de vista histórico: o mundo da fotografia artística e da fotografia documental. Essas duas práticas, entretanto, são bastante permeáveis dentro do trabalho de Zalmir. A vivência que teve como aluno e sócio da Sociedade Fluminense de Fotografia influenciou diretamente sua forma de pensar a fotografia como repórter fotográfico. Cada clique era mais do que um registro documental, pois revestido de valores estéticos próprios de um individuo que teve sua cultural visual construída entre grandes nomes do movimento fotoclubista. Zalmir nos conta que descobriu seu lado artístico certa vez quando trabalhou para a prefeitura de Niterói como fotógrafo durante a restauração do Solar do Jambeiro, um museu localizado no bairro do Ingá:

FigurA 3: tributo à monet. ZAlmir gonçAlves, 2001.

A fotografia artística surgiu depois que fui trabalhar no Solar do Jambeiro e comecei a fazer fotos da restauração. Um dia fiz uma foto de uma lama que tinha uma flor caída. Um amigo viu a foto e me comparou a Monet. Disse que eu estava pintando com a máquina. Apesar de nunca ter gostado de fazer foto de flor, acabei fazendo mais fotos nesse estilo, o que rendeu até exposições. Mas o que me dá, e sempre me deu prazer, foi o fotojornalismo.10

Zalmir foi contratado para registrar todo o processo de restauração do Casarão desde o estado em que

foi encontrado, completamente abandonado e desgastado pelo tempo, às obras de restauração minuciosas realizadas por uma equipe de restauração, até o momento final, quando a casa foi aberta ao público e tornada equipamento cultural da cidade. Distraído entre os jardins do antigo Palacete Barthold, como fora conhecido o Solar do Jambeiro no tempo em que serviu de residência para a nobre família de dinamarqueses, Zalmir teria se aventurado a fotografar a flora nativa daquele espaço, o jardim que sobreviveu ao tempo, entre espécies de plantas em suas diferentes formas e cores, que despertaram em Zalmir um olhar diferente daquele que tinha ao fotografar nos jornais. Ali sentiu que, diferente dos registros nos jornais, fazia fotografia artística.

Foi no Solar do Jambeiro que fui descobrindo coisas que já existiam, mas que tinham passado despercebidas ao meu olhar (...) Sem usar nenhuma técnica especial fui fotografando o desconhecido da natureza, usando um pouco de imaginação e retratando literalmente a vida orgânica, com formas abstratas, com imagens submersas em lagos e poças d'água, texturas de troncos de árvores e palmeiras com formas flutuantes. Sutilezas nunca reveladas, impressões sensíveis e efeitos de cores surpreendentes.11

O “abstrato”, a “imaginação”, as “cores”. Palavras usadas pelo fotógrafo para tentar aproximar o espectador da experiência sensorial que teve ao fotografar aquele jardim e descobrir ali, sua vertente artística. Durante a experiência Zalmir percebeu que podia fazer fotografia artística, segundo suas próprias palavras. Mas o que fazia Zalmir até então quando com a câmera na mão fotografava o dia-a-dia carioca? Do seu ponto de vista, fazia história. Segundo Zalmir, “uma fotografia que se destrói é um pedaço da história que se perde”.12

Page 6: Entre arte e documento: a fotografia pública de Niterói ... · fotos de alto contraste em preto e branco, ... Com esse dinheiro mais a rifa de sua antiga câmera, Zalmir conseguiu

22

Aurora, ano 1, n. 1, jan./jun, 2018

FigurA 4: restAurAção do solAr do JAmbeiro. ZAlmir gonçAlves, 2001.

FigurA 5: PintAndo As AlturAs. ZAlmir gonçAlves, 2001.

FigurA 6: restAurAção do solAr do JAmbeiro. ZAlmir gonçAlves, 2001.

Page 7: Entre arte e documento: a fotografia pública de Niterói ... · fotos de alto contraste em preto e branco, ... Com esse dinheiro mais a rifa de sua antiga câmera, Zalmir conseguiu

23

Aurora, ano 1, n. 1, jan./jun, 2018

13 LE GOFF, J. História e Memória. São Paulo: Ed. Unicamp, 1996.14 MAUAD, Ana Maria. Fotografia Pública e Cultura Visual em perspectiva histórica. Revista Brasileira de História da Mídia, Porto Alegre/São Paulo, vol. 2, nº 2, p.11-20, jul/dez., 2013.15 Entrevista com Zalmir Gonçalves. In: Revista Mosaico, Niterói. 2001.

Do ponto de vista historiográfico, a fotografia não pode ser tomada como objeto direto da História; deve ser vista como um suporte de relações sociais. O objeto da História é sempre a sociedade. Para usar as fotografias de Zalmir como documentos históricos, devemos seguir a lógica de Le Goff, tomando o documento como verdadeiro e falso, como documento/monumento, no sentido de que um monumento é, em primeiro lugar, uma roupagem, uma aparência enganadora; e que é preciso começar a demolir esta montagem, desestruturar esta construção e analisar as condições de produção dos documentos como monumentos.13

Zalmir não estava enganado quando dizia que a fotografia é um “pedaço” da história, pois é a fotografia que desperta no historiador a curiosidade de perguntar e investigar a respeito das determinantes que culminaram naquele registro imagético. Afinal, quem a produziu? Por que produziu? Quando a produziu? Em que contexto produziu? Quem a agenciou? Por que agenciou? Quem as viu? Onde viu? Essas são algumas das perguntas que o historiador deve fazer ao se deparar com as imagens na história. A fotografia pública, como se sabe, surge para exercer função política; e, dentro de sua função política, obviamente ocorrem juízo de valores e ainda o uso do poder por parte daqueles que a agenciam.14

Assim, as fotos ditas “artísticas” de Zalmir assumem para a História uma significação mais do que puramente sensorial, pois o historiador olha através das imagens. Um espectador qualquer que visualize a fotografia de Zalmir dos jardins do Solar do Jambeiro poderá dizer que se trata puramente de uma fotografia artística, representação clara da natureza; mas a importância que essas fotos assumem quando se visita hoje o Museu Solar do Jambeiro é de caráter indiscutivelmente documental e

histórico - desde as espécies de plantas que já não existem mais à composição do jardim que em tudo diz respeito à história da casa e daqueles que ali viveram. Sabe-se que como fotógrafo, Zalmir é sujeito social e histórico, com sua cultura própria e seu jeito de ver e representar o mundo. Portanto, uma análise das fotografias de Zalmir lidas no contexto da Fotografia Pública, e ainda da História Pública, deve acompanhar não apenas seus registros, mas suas práticas sociais, seus vínculos institucionais e suas experiências de ver e compor narrativas que se conjugam de modo a construir um pedaço da História. A fotografia pública como se sabe, está dada na associação entre os movimentos de produção, circulação, consumo e agenciamento, sem as quais a história, contada através das imagens, não seria possível. Desse modo, as fotografias de Zalmir se inserem dentro dessa perspectiva, onde se entende por agência: a) os diversos jornais nos quais trabalhou; b) a própria Sociedade Fluminense de Fotografia, que teria impulsionado em grande medida a difusão de suas fotografias vistas como arte fotográfica por diversos países; e c) o Estado, através dos governos e prefeituras onde trabalhou, registrando atividades e execução de políticas públicas.

Considero fotografia uma arte, embora acredite que no dia-a-dia do repórtes fotográfico, não há tempo para pensar em fazer algo mais ou menos artístico. Não me considero artísta. Resisto a esse título, apesar de apreciar o trabalho de vários colegas que fazem do clique uma verdadeira obra de arte. De fato agora é que estou pensando em fazer algo que se aproxime desta qualificação, montando uma série de fotos feitas com macros, ampliando elementos mínimos da natureza, como cascas de árvores e folhas.15

Page 8: Entre arte e documento: a fotografia pública de Niterói ... · fotos de alto contraste em preto e branco, ... Com esse dinheiro mais a rifa de sua antiga câmera, Zalmir conseguiu

24

Aurora, ano 1, n. 1, jan./jun, 2018

FigurA 7: sem título. ZAlmir gonçAlves, 2001.

FigurA 8: sem título. ZAlmir gonçAlves, 2001.

FigurA 9: sem título. ZAlmir gonçAlves, 2001.

Page 9: Entre arte e documento: a fotografia pública de Niterói ... · fotos de alto contraste em preto e branco, ... Com esse dinheiro mais a rifa de sua antiga câmera, Zalmir conseguiu

25

Aurora, ano 1, n. 1, jan./jun, 2018

A fotografia documental dialoga diretamente com a ideia de prova, onde o fotógrafo objetiva aproximar o espectador ao acontecimento. Já a fotografia artística, ainda que busque covencer o espectador, está mais próxima da imaginação. Nela estão em jogo outros fatores, comuns ao mundo da arte, como levar o espectador à lugares inexistentes, de prazer e abstração. Durante muito tempo a historiografia manteve uma crença de que a fotografia se valia como prova do acontecimento. Entretanto, esse status de documento fora aos poucos sendo questionado pelas novas historiografias, dando espaço para outras nuances dessa prática, que levam em conta outros aspectos da fotografia, como a subjetividade do autor e o processo fotográfico. De fato, a linha que divide a fotografia artística da fotografia documental é muito tênue. Apesar de não se considerar de fato um artista, Zalmir circulou por esse universo diversas vezes através de suas fotografias. Quando questionado sobre a diferença entre a fotografia artística e a fotografia jornalística, Zalmir parece ter uma resposta na ponta da língua:

A foto jornalística é momentânea, ela não requer um trabalho mais elaborado posteriormente, já a foto artística é mais elaborada, trabalha-se a luz, a cor, os efeitos. Se não ficou bom,

você modifica e elabora mais ainda. Os temas também são escolhidos ao seu gosto. São trabalhos diferentes, mas isso não quer dizer que um repórter fotográfico esteja impedido de fazer arte de um acontecimento rotineiro, de uma paisagem. A maioria das minhas fotos foram tiradas em momentos comuns.16

Em seguida, acrescenta:

A arte ajuda em todos os sentidos, não só na fotografia. Uma foto bonita pode ser colocada numa revista e também ser pendurada na parede. A única foto especialmente para jornal é aquela que trabalha dentro de um contexto. Ao mesmo tempo, todas as fotos dessa exposição foram tiradas de coberturas jornalísticas.17

Por vezes, uma foto de Zalmir publicada em jornais também ocupou um espaço nas galerias de arte dentro e fora da cidade de Niterói - o que nos leva a crer que o que separa a fotografia artística da fotografia documental não são os valores meramente estéticos da fotografia, mas o uso que se faz dessa fotografia e a função que ela desempenha num determinado espaço. Sabe-se que a fotografia possui um corpo e a localização desse corpo determina sua representação no espaço. Uma mesma foto publicada no jornal pode ser considerada documental e exposta em uma galeria de arte, vista como artística. Segundo Zalmir, “tudo depende da interpretação de quem está vendo ou analisando a foto.”18

16 Exposição Orla Marítima de Niterói. In: Jornal da Semana, Niterói, 1994.17 Idem.18 LABHOI/UFF 54-21-01-2017.