entre adesões e rupturas projetos e identidades políticas na bahia

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA ELISA DE MOURA RIBEIRO ENTRE ADESÕES E RUPTURAS: PROJETOS E IDENTIDADES POLÍTICAS NA BAHIA (1808-1824) Salvador 2012

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Entre Adesões e Rupturas Projetos e Identidades Políticas Na Bahia

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

    FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA

    ELISA DE MOURA RIBEIRO

    ENTRE ADESES E RUPTURAS: PROJETOS E IDENTIDADES POLTICAS NA BAHIA

    (1808-1824)

    Salvador 2012

  • ELISA DE MOURA RIBEIRO

    ENTRE ADESES E RUPTURAS: PROJETOS E IDENTIDADES POLTICAS NA BAHIA

    (1808-1824)

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria, Universidade Federal da Bahia, como requisito para obteno do grau de Mestre em Histria Social. Orientador: Prof. Dr. Dilton Oliveira de Arajo

    Salvador 2012

  • __________________________________________________________________________________ Ribeiro, Elisa de Moura. R484 Entre adeses e rupturas: projetos e identidades polticas na Bahia (1808-1824) / Elisa de Moura Ribeiro. Salvador, 2012. 168 f. Orientador: Prof. Dr. Dilton Oliveira de Arajo. Dissertao (mestrado) Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas, 2012.

    1. Brasil Histria Joo VI, 1808-1821. 2. Cultura poltica Bahia. 3. Brasil Histria Independncia nas provncias, 1821-1824. I. Arajo, Dilton Oliveira de. II. Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas. III.Ttulo.

    CDD 981.42

    __________________________________________________________________________________

  • ENTRE ADESES E RUPTURAS: PROJETOS E IDENTIDADES POLTICAS NA BAHIA

    (1808-1824)

    Elisa de Moura Ribeiro

    BANCA EXAMINADORA:

    _______________________________________________________________ Prof. Dr. Dilton Oliveira de Arajo (orientador) UFBA

    _______________________________________________________________ Prof. Dr. Lina Maria Brando de Aras UFBA

    _______________________________________________________________ Prof . Dr. Maria Aparecida Silva de Sousa UESB

  • A Vinha, Dona Lourdes, que se dizia amante da liberdade por ter nascido em 2 de julho.

  • AGRADECIMENTOS

    Expresso aqui a minha mais alta gratido pelas respectivas contribuies ao trabalho

    desenvolvido na presente dissertao:

    Agradeo ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico

    (CNPq) pelo apoio e financiamento pesquisa.

    Agradeo ao Programa de Ps-graduao em Histria da Universidade Federal da

    Bahia por acreditarem na qualidade do trabalho e na sua validade para a comunidade

    acadmica.

    Meu sincero obrigado aos queridos professores do Departamento de Histria da

    Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da UFBA por terem participado da minha

    formao, de que me sinto muito orgulhosa. Destaco os professores Antnio Fernando

    Guerreiro Moreira de Freitas, Maria Jos Rapassi Mascarenhas e Lina Maria Brando de

    Aras. Igualmente menciono as professoras que participaram da banca do Exame de

    Qualificao, Maria Aparecida Silva de Sousa e Maria Hilda Baqueiro Paraso.

    Agradeo equipe de funcionrios do Arquivo Pblico do Estado da Bahia, sempre

    solcitos e bem capacitados, apesar das condies precrias que se encontra a estrutura fsica

    da instituio.

    Minha gratido aos funcionrios da Fundao Biblioteca Nacional que fizeram da

    minha estadia no Rio de Janeiro a mais proveitosa possvel pesquisa. O mesmo digo s

    equipes do Arquivo Nacional e do Arquivo do Itamaraty.

    Com toda doura agradeo a minha me Lavnia, a maior responsvel por quem sou e

    que minha maior referncia de vida. Igualmente, agradeo aos demais familiares, Roslia,

    meu pai Nilton, minha av Lourdes, meu tio Lus, meu padrasto Denis, meus irmos Maria e

    Maurcio, meu sobrinho Guilherme e minha cunhada Kelly. Eles me apoiaram e me

    incentivaram com uma corrente de pensamentos positivos em todo o processo deste trabalho.

    Agradeo aos meus sogros Aidi e Zilmar e aos demais entes das famlias Melo e

    Jones, os quais cito meus cunhados Gizele e Cleber, tio Antnio, tia Terezinha e meus

    sobrinhos Gabriel e Clara, os quais sempre me aceitaram participante legtima em sua famlia.

    Agradeo aos meus grandes amigos Aguirre e Beto, pessoas a quem pude encontrar

    um estoque interminvel de pacincia e de carinho, ambos me ouviram falar, inmeras vezes

    sem reclamar, sobre os rumos da minha pesquisa.

    Um grande obrigado aos colegas da graduao e da ps-graduao, os jovens

    historiadores Marcelo Siquara, Vinicius Mascarenhas, Carla Corte, Rafael Sancho e Mariana

  • Seixas, entre outros, queridos amigos que contriburam com comentrios sempre pertinentes e

    afetuosos ao meu trabalho.

    Agradeo aos colegas do Colgio Estadual Sete de Setembro, os quais no poderia

    deixar de citar os professores Digenes Ribeiro, Marineuza Nascimento e Deyse Luciano,

    amigos to recentes, mas no menos afetuosos.

    Ao meu professor, orientador e amigo, Dilton Oliveira de Arajo, referncia mais

    concreta da minha formao acadmica, agradeo pelo carinho, pela pacincia e por todas as

    inmeras contribuies ao trabalho. Sentirei eterno orgulho por t-lo como orientador, este

    que para mim modelo de profissionalismo e carter.

    Por ltimo, minha gratido a Cleiton Melo Jones, meu companheiro, meu melhor

    amigo. O primeiro leitor de tudo que escrevo, meu suporte de todas as aventuras que

    permearam esse trabalho. Com ele pretendo seguir aprendendo no cotidiano do trabalho e da

    casa. Que nossos livros e nossos dias continuem a se misturar pelas estantes da vida!

    Espero no ter esquecido ningum. Se por acaso o fiz, sirva de consolo que este no

    ser o ltimo dos meus trabalhos. Como Gabriel Garcia Mrquez deu voz a seu personagem

    em Cem Anos de Solido, repito: Afastem-se, vacas, que a vida curta.

  • RESUMO

    Teria sido a independncia do Brasil construda passo a passo na Bahia, em uma

    trajetria gradativa e unvoca desde a transferncia da Corte portuguesa ao Brasil? Ou, do

    contrrio, ela teria sido uma escolha um tanto incerta, culminada ante um contexto muito

    especfico do ano de 1822, j que mesmo nos anos seguintes sua formalizao sobravam

    hesitaes quanto aos rumos do futuro do recente pas? Diante desses imperativos, a presente

    dissertao pretende analisar os projetos e as identidades polticas formulados na Bahia desde

    a chegada da famlia real portuguesa em 1808 at o ano de 1824, durante as repercusses do

    fechamento da Assembleia Constituinte brasileira por ordem do Imperador D. Pedro I.

    Sobretudo, intento questionar se haveria um processo cumulativo de expectativas quanto

    ruptura com o Imprio luso-brasileiro.

    Palavras-chave: Independncia do Brasil; Bahia; Projetos polticos; Identidades polticas.

  • ABSTRACT

    The independence of Brazil would have been built step by step in Bahia, in a single and

    gradually trajectory since the transfer of the Portuguese Court to Brazil? Or, otherwise, it

    would have been a choice somewhat uncertain, culminating in a context very specific to the

    year 1822, because even in the years following its formalization there were many hesitations

    regarding the trends of the future of the recent country? In face of these imperatives, this

    thesis intend to analyze the poltical projects and identities formulated in Bahia since the

    arrival of the Portuguese royal family in 1808 until the year 1824, during the repercussions of

    the closing of the Constituent Assembly brazilian by order of the Emperor D. Pedro I. Above

    all, the intention is to question if there would be a cumulative process of expectations of the

    rupture with the Portuguese-brazilian Empire.

    Keywords: Independence of Brazil; Bahia; Political projects; Political identitys;

  • SUMRIO

    INTRODUO ......................................................................................................

    10

    CAPTULO 1

    ENTRE A TRANSMIGRAO DA CORTE E A CONSOLIDAO DO

    REINO UNIDO DE PORTUGAL, BRASIL E ALGARVES

    Uma vinda inopinada ......................................................................................... 22

    Ainda hei de aproveitar ...................................................................................... 32

    A emancipao poltica do continente Brasileiro .............................................

    46

    CAPTULO 2

    ENTRE O CONSTITUCIONALISMO E A ADESO AO PRNCIPE D.

    PEDRO EM CACHOEIRA

    Heris da Bahia, levantai vossas cabeas ......................................................... 61

    Nossa feliz poca Constitucional ....................................................................... 65

    Entre a reconciliao geral e a diferena de opinio poltica ..................... 72

    No so esses os modos de conciliao .............................................................. 86

    Um comeo fatal de anarquia e guerra civil .....................................................

    94

    CAPTULO 3

    ENTRE A INDEPENDNCIA E A DISSOLUO DA ASSEMBLEIA

    CONSTITUINTE

    A verdadeira regenerao .................................................................................. 110

    Debaixo dos auspcios do grande Pedro I ......................................................... 131

    A profunda mgoa dos Baianos .........................................................................

    140

    CONCLUSO .........................................................................................................

    143

    FONTES ..................................................................................................................

    147

    REFERNCIAS ...................................................................................................... 154

  • 10

    INTRODUO

    Arrisco dizer que as anlises de fundo teleolgico caracterizam parte das narrativas

    sobre a histria da independncia, constituindo-se em abordagens nas quais a causalidade

    entre 1808 (transmigrao da Corte portuguesa ao Brasil) e a ruptura formal em 1822 se

    tornou tradicional. Ainda que no haja grande originalidade nesta afirmao,1 percebo que

    esta tendncia aparece mais ou menos forte em grande parte das abordagens

    Talvez seja vlido aqui relatar um pouco da minha trajetria com a independncia do

    Brasil enquanto objeto de pesquisa histrica para que seja compreensvel como cheguei a tal

    constatao. H quatro anos decidi estudar a respeito da instalao da Corte e da famlia real

    portuguesa no Brasil em 1808, no sentido de pensar as consequncias desse grandioso fato

    para a Capitania da Bahia. Durante esse percurso, verifiquei que o cerne de grande parte da

    produo historiogrfica permanece ligada a um iderio nacionalista, que construiu a

    independncia enquanto uma trajetria unvoca e ufanista, para a qual o processo histrico

    real tornara-se mero elemento coadjuvante.

    Desde ento percebi a necessidade de repensar os acontecimentos polticos que

    permearam esse perodo tais quais a Abertura dos Portos (1808), a elevao do Brasil

    categoria de reino (1815), unido a Portugal e Algarves, o Movimento Constitucionalista

    baiano (1821) e a prpria independncia (1822) questionando se na Bahia estava em curso

    um processo de construo, com origens mais ou menos remotas distantes, de identidades e

    projetos polticos que intentavam a ruptura com Portugal. Ou, de outra maneira, se a

    independncia somente tenha se tornado uma possibilidade factvel na Bahia no contexto

    muito prprio do ano de 1822. E, talvez, mesmo nos anos seguintes, faltassem Provncia

    algumas definies quanto aos rumos polticos que o Brasil tomava sob a Monarquia

    Constitucional fundada em torno da autoridade do imperador D. Pedro I.

    Portanto, dedico esta introduo a compartilhar parte das anlises que fiz at ento dos

    estudos a respeito da independncia na Bahia. Acredito que elas sejam essenciais para iniciar

    a presente dissertao, tendo alguma nitidez do alcance que as narrativas causais sobre a

    independncia ainda possuem sobre a historiografia baiana, mesmo nos trabalhos mais

    recentes.

    ***

    Um dos primeiros historiadores baianos a se preocupar com este tema, Braz do 1 V. RIBEIRO, Gladys Sabina. A liberdade em Construo: identidade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro Reinado. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 2002.

  • 11

    Amaral, em Histria da independncia na Bahia, veria no Movimento Constitucionalista

    baiano a materializao de aspiraes antigas, com origens na Revolta dos Alfaiates.

    Fecundada em meio s emancipaes subseqentes chegada da Famlia Real, como a

    Abertura dos Portos (1808) e a elevao do Brasil categoria de Reino, para este autor, a

    mudana constitucional que se realizou na Bahia, em 10 de fevereiro de 1821, foi ao mesmo

    tempo um pronunciamento e uma revoluo, porque o esprito do povo estava para ele

    preparado, desejava-o, tinha-o como uma aspirao sua.2

    Em trabalho anterior, este para a Revista do Instituto Geogrfico e Histrico da Bahia,3

    novamente se percebe em Braz do Amaral raciocnios baseados na causalidade, dessa vez de

    forma mais explcita: O decreto [...] que abriu os portos do Brasil ao comrcio do mundo e civilizao de todas as naes, quase o decreto da independncia do Brasil. Da em diante ela se tornara um acontecimento inevitvel e fatal, porque, uma vez feita to grande brecha no sistema absolutista e colonial, no seria mais possvel voltar atrs e to poderosos iam ser os interesses ligados ao povo brasileiro que este no pode mais perder a vantagem ganha.4

    A independncia ganha contornos bastante ntidos de fatalismo na anlise de Amaral,

    tornando-se um acontecimento necessrio ao curso da histria da Bahia, e mais amplamente

    do Brasil. No obstante, talvez no seja errado dizer que essa lgica dos acontecimentos

    compe mesmo de forma basilar a identidade nacional e baiana, esta ltima no que diz

    respeito mais aos eventos exclusivos provncia.

    Exemplo de uma anlise fatalista contida em das edies da Revista do IGHB, Jayme

    de S Menezes escreve: [D. Joo] chega ao Brasil, onde ergueria um novo imprio, que nos

    levaria independncia poltica. E a esta precederia a nossa independncia econmica,

    assegurada pela Carta Rgia de 28 de janeiro de 1808, aqui na Bahia assinada, e que abriu os

    portos do Brasil.5 J Antonieta de Aguiar Nunes, em artigo mais recente, no intuito de

    elaborar uma cronologia seqenciada dos episdios que levaram a uma efetiva luta popular

    pela libertao da Bahia do jugo portugus, enumera a Conjurao dos Alfaiates de 1798

    2 AMARAL, Braz do. Histria da Independncia na Bahia. Salvador: Livraria Progresso Editora, 1957, p. 21. 3 O Instituto Geogrfico e Histrico da Bahia foi fundado em 1894, no contexto do recente regime republicano, proclamado em 1889. quele momento, segundo Aldo Silva, a construo de um acervo documental que servisse de base para a construo da histria do Estado, buscando afirmarem-se como agremiaes republicanas, comprometidas com os ideais e a viso de sociedade prprios ao regime. SILVA, Aldo Jos Morais. Instituto Geogrfico e Histrico da Bahia: origem e estratgias de consolidao institucional, 1894 1930. 2006. Tese (doutorado em histria). Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas, Universidade Federal da Bahia, 2006, p. 102. 4 AMARAL, Braz do. 1808-1823. Revista do IGHB. Salvador: n 34, 1907, p. 2 (grifos meus). 5 MENEZES, Jayme de S. A ao de Jos Bonifcio, a independncia e a Bahia. Revista do IGHB. Salvador: n 86, 1976, p. 215 (grifos meus).

  • 12

    como o fato primeiro nesta trajetria, pela suposta pretenso do movimento independncia

    de Portugal, formao da repblica baiense e libertao da escravatura.6

    O equvoco desse tratamento ao tema que medida que a independncia se constitui

    enquanto evento condicionado de forma determinante e inequvoca a fatos anteriores o

    movimento de 1798 ou a Abertura dos Portos esvazia-se o contedo histrico do seu

    processo. A inevitabilidade retira dos sujeitos histricos o papel de agentes de transformao,

    o que significa privar da histria o sentido imprevisvel da vivncia humana. O historiador

    possuiu o privilgio de ser conhecedor dos acontecimentos passados e, por isso, atribui-se o

    direito de estabelecer relaes entre os fatos histricos; deve, contudo, ter em vista que o

    futuro sempre elemento desconhecido aos indivduos. Do contrrio, como bem afirma

    Joseph Miller, perde-se de vista as contingncias, as eventualidades, os dilemas [...], e no

    vemos todos os dramas humanos e as tenses que isto implica, nem as construes mentais ou

    os mal-entendidos que prevaleceram.7

    Igualmente, os estudos sobre a histria da independncia na Bahia adotaram outro

    vis entre os textos da Revista do IGHB, tambm deveras disseminado. Assumiram quase

    sempre a funo de exaltar os eventos da libertao de Salvador, culminados em dois de julho

    de 1823, e glorificaram a participao baiana no movimento de autonomizao do Brasil

    como passo decisivo para a independncia do Brasil. Novamente, destaca-se Braz do Amaral,

    quando analisa que... Entre 28 de Janeiro de 1808 [assinatura da lei de Abertura nos Portos na Bahia] e 2 de Julho de 1823 se desenrolou o grande drama poltico e histrico de que devia sair constituda uma grande nacionalidade livre, prspera, nobre e poderosa pela sua unio e pelas suas qualidades de resistncia: A nacionalidade brasileira!8

    Dito de tal forma, a independncia do Brasil, um processo necessrio, teria comeado e

    terminado na Bahia, tornando-se, portanto, territrio privilegiado na consolidao da nao

    brasileira. Acredito que essa afirmao no descende de dados da pesquisa histrica; provm

    de um ufanismo que, de certa maneira, compe o conjunto identitrio baiano at hoje, afinal,

    como atenta Joo Reis A Bahia tem a personalidade de um pas e o Dois de Julho seu

    principal mito de origem.9 As lutas que marcaram a entrada da Provncia para o Imprio do

    6 NUNES, Antonieta Aguiar. O processo da independncia na Bahia. Revista do IGHB. Salvador: n 90, 1992, p. 213 (grifos meus) 7 Uma valorosa contribuio metodolgica: MILLER, Joseph. O Atlntico escravista: acar, engenhos e escravos. In: Afro-sia. 1997, n 19/20, p. 10. Disponvel em: . Acesso em: abril 2011. 8 AMARAL, 1907, op. cit., p. 13 (grifos meus). 9 REIS, J. Jos. O jogo duro do dois de julho: o partido negro na independncia da Bahia. In: REIS, J. J.

  • 13

    Brasil acrescentam a esse argumento notas hericas, se no picas, que distinguem ainda mais

    os episdios baianos. Abaixo, as palavras quase poticas de Menezes a respeito da guerra na

    Bahia: E a campanha da independncia na Bahia, a mais bela, a mais nobre, a mais empolgante que o Brasil presenciou alastrava-se e difundia-se, eletrizando os espritos, pelo serto, pelo Recncavo, aqui e ali encontrando os seus denodados servidores, aqueles que aliceraram e nutriram a peleja, unidos todos no mesmo ardor patritico, na mesma cvica nos mesmos anseios de emancipao.10

    Desse peridico cito mais um trecho.11 Este, curiosamente, pde reunir as duas

    principais caractersticas citadas anteriores, o ufanismo e causalidade enunciadas comumente

    em estudo sobre a independncia na Bahia. Em Afrnio Peixoto a exaltao ao patriotismo

    baiano, assim como as relaes de fundo teleolgicas esto presentes e so dignos de ateno: Ao Sul, fizera-se uma evoluo, ns tivemos de fazer uma revoluo [...]. L a adeso, aqui a guerra. Por isso, chegamos tarde, fora de hora, eles a 7 de Setembro de 22 [sic], ns s a 2 de Julho de 23 [sic]... Mas, s depois de 2 de Julho, foi o Brasil realmente independente... Para chegarmos mais tarde, pois tivemos guerra de permeio, havamos de comear mais cedo. Tivemos a nossa Inconfidncia Baiana... mais grave que a Mineira, a conjurao para proclamar a repblica na Baa, a 12 de Agosto de 1797.12

    O desfecho da independncia na Bahia, como se percebe nas palavras de Peixoto, avaliado

    como tardio, se comparado ao conjunto das provncias do Brasil. Contudo, essa possvel

    falta seria compensada pelo motivo de ter sido a Bahia predecessora entre as regies do

    Brasil no movimento de independncia do Brasil, e mais, por ter consolidado a ruptura no

    pas em dois de julho de 1823. Assim como os demais autores citados, que escreveram para

    Revista do IGHB h aqui a exaltao dos feitos baianos, constitudos em uma linha evolutiva,

    prescindindo do contedo histrico do processo.

    O trecho de Afrnio Peixoto interessante para demonstrar que o Movimento

    Constitucionalista de 1821 tambm foi marcado na historiografia pelo suposto engano dos

    baianos quanto s proposies das Cortes. Explico: os habitantes baianos teriam jurado

    lealdade nao portuguesa sem saber de suas reais intenes, movidos pelo desgosto a

    SILVA, E. Negociao e Conflito A Resistncia Negra no Brasil Escravista. So Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 79. 10 MENEZES, op. cit., p. 229. 11 Outros estudiosos presentes na Revista do IGHB podem ser citados enquanto colaboradores dessas construes. Destaco aqui Pinto de Aguiar, Frederico Edelweiss, Pedro Toms Pedreira, entre outros. AGUIAR, Pinto. A campanha da independncia, n 86, 1976; EDELWEISSS, Frederico, A Antroponmia patritica da independncia, n 86, 1976; PEDREIRA, Pedro Toms. Um revolucionrio baiano da independncia: Padre Francisco Agostinho Gomes, n 86, 1976; BARBOSA, Manuel A. O Clero e a Independncia, n 86, 1976; GOES, Inocncio. Um veterano da Independncia, n 32, 1905. 12 PEIXOTO, Afrnio. A Causa do 2 de Julho. Revista do IGHB. Salvador: n 67, 1941, p. 192 (grifos meus).

  • 14

    uma poltica centralizadora da Corte, do ponto de vista poltico e tributrio. A desiluso viria

    um ano depois, com a posse do brigadeiro portugus Igncio Madeira de Melo para o cargo de

    Governador das Armas, representante do poder executivo e militar da provncia,

    desautorizando as decises da Cmara e do ento responsvel por esta funo, o brigadeiro

    Manoel de Freitas Guimares. Assim, a partir de fevereiro de 1822 se veria, com clareza, os

    verdadeiros interesses dos portugueses, como coloca Wanderley Pinho: [...] havia, no movimento, um frisante matiz europeu. Alm da idia constitucional, antiabsolutista e liberal bandeira defendida com ardor por brasileiros e portugueses estes mal disfaravam intuitos econmicos ou comerciais, inspirados em ressentimentos que exatamente visavam ao Brasil. Tarde o perceberam os baianos; e poucos meses bastaram para as foras armadas [...] se desvairem no conflito que separou lusos e americanos, nos chamados motins de Manoel Pedro, em fevereiro de 1822.13

    Estudos mais recentes acabam por diluir esse pensamento. Segundo Joo Reis, Inicialmente,

    a revoluo constitucional do Porto criou expectativas entre os coloniais de que a periferia do

    Imprio seria agraciada com um grau maior de autonomia, mas, com a posse de Madeira de

    Melo terminava a efmera iluso de autonomia colonial vivida pelos baianos.14 A

    princpio, a hiptese da desiluso est descartada pela presente dissertao, afinal, acredito

    que possuam plena conscincia da conjuntura e das suas prprias escolhas quando do

    Movimento Constitucionalista baiano.

    De fato, diferentes projetos quanto aos pactos polticos e econmicos dividiram os

    portugueses da Amrica e da Europa nas Cortes ao longo do ano de 1821, e, sobretudo, em

    1822; contudo, acredito que tais projetos foram construdos no decorrer deste tempo, e no

    dispostos de antemo, assim como, de outro modo, aconteceu com as expectativas acerca do

    constitucionalismo na Bahia. A Regenerao constituiu-se, durante este processo, enquanto

    um quadro em negociao, obviamente, j que cada grupo poltico possua demandas

    especficas. Creio, inclusive, que a caracterizao da adeso baiana Revoluo Portuguesa

    como um episdio de engano tenha sido uma construo da poca.

    Todavia, h divergncias historiogrficas a respeito do processo de independncia na

    Bahia, e elas se do em termos da nfase no carter predominante, ou especfico, do

    movimento se conservador ou se questionador da ordem poltica, alternando-se tambm a

    uma terceira interpretao, que visa conciliar ambos. Tendo em vista a importncia deste

    13 PINHO, Wanderley. A Bahia, 1808-1856. In: HOLANDA, Srgio Buarque de (direc.). Histria da Civilizao Brasileira. O perodo monrquico: Disperso e unidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, tomo II, v. 4, 3 edio, 1976, p. 246. 14 REIS, op. cit., p. 81 (grifos meus)

  • 15

    marco para a histria da independncia do Brasil na Bahia, identificar as especificidades dos

    projetos polticos que se uniriam em 1821 significa ter em vista tambm as disputas travadas

    durante o perodo constitucional, que levariam ruptura com Portugal em 1822.

    Lus Henrique Dias Tavares seria uma das excees de uma tradio que localiza o

    Dez de Fevereiro como desencadeador da ruptura do reino do Brasil para com Portugal na

    Bahia. Para o autor, quanto ao carter do Movimento Constitucionalista, no haveria em 1821

    quaisquer planos separatistas, tendo em vista o vis conservador da contestao baiana. V-se

    isso em trecho abaixo: [...] o fato que foi a maior autoridade na Bahia, o conde de Palma, quem se colocou numa das janelas da Cmara Municipal e dali proclamou a adeso da Bahia s Cortes. Mais que isso: indicou os membros do Governo Provisrio que passou a responder pela provncia da Bahia naquele mesmo dia.15

    Pensar a respeito do vis conservador do Movimento Constitucionalista de 1821

    possibilita refletir acerca de uma no-linearidade entre a chegada da Famlia Real portuguesa,

    o Dez de Fevereiro e a ruptura em 1822. Ora, admitir que o intuito de regenerar o Imprio e a

    nao portuguesas consistia como um dos objetivos principais entre os baianos naquela poca,

    questionaria uma formao anterior de supostos sentimentos/projetos separatistas, em uma

    trajetria inexorvel que levaria independncia. Talvez esta seja a chave para que a histria

    no seja escrita em vias de enxergar as origens pregressas do que s foi possvel vivenciar em

    um momento posterior especfico.

    A tese de que o conservadorismo prevaleceu no Dez de Fevereiro tem, possivelmente,

    a mais notvel defesa em The Conservative Revolution of Independence: economy society and

    politics in Bahia (1790-1840), de Frederic Morton. Para ele, haveria na Bahia daquela poca a

    atuao de quatro partidos este termo utilizado aqui no sentido de faco, utilizado no

    sculo XIX: a aristocracia conservadora, os republicanos, os federalistas e os radicais. A

    experincia constitucional seria marcada, alm da influncia dessas quatro partidos, pela

    dissenso das duas supostas nacionalidades latentes na provncia: a brasileira e a portuguesa.

    Contudo, teria sido o partido conservador dito brasileiro, atravs da Cmara municipal, que

    tomou o protagonismo nos posteriores acontecimentos, liderando o movimento pela

    independncia atravs das vilas do Recncavo em 1822. [] the role of city concil in preserving a semblance of legality and continuity should not be overlooked. Used in the capital to paper over the divisions in the constitutionalist movement, in the Recncavo the anciant civic institution was to be the vehicle of an essentially nationalist uprising. Its position as the only

    15 TAVARES, 2003, op. cit., p. 153.

  • 16

    representative institution in the captaincy was the key factor in either case.16

    Indo por esta mesma vertente, Ubiratan Arajo compreende os anos posteriores

    chegada da famlia real portuguesa, em 1808, fruto do que chama poltica de acomodao,

    promovida pelas autoridades baianas. Em suas palavras, os homens bons do Brasil

    preferiram o caminho da acomodao e do compromisso com a Metrpole, o que certamente

    retardou e alterou a qualidade do processo de independncia do Brasil.17 Sua referncia seria

    as aspiraes tidas como democrticas na chamada Revolta dos Alfaiates, quando, em sua

    opinio, as classes populares esboaram seu projeto de estado e nao para o Brasil na

    Capitania.

    No estou certa de que na Sedio Intentada houve a formulao de projetos que

    englobassem o Brasil, uma entidade poltica carente de definies naqueles fins do sculo

    XVIII. Todavia, posso concordar com Arajo quando pensa que, no sentido contrrio s

    propostas que emergiram em 1798, os grupos dominantes locais no fariam do processo de

    separao em 1822 um momento de conquista da cidadania para negros e pardos, muito

    menos hesitariam em manter a estrutura do regime poltico herdado do Imprio portugus.

    Assim, o Dez de Fevereiro (diferentemente de 1798, quando parte dos baianos formulariam

    projetos de mudanas na ordem reinante) se insere no compromisso dos chamados homens

    bons de aderir s transformaes polticas sem promover mudanas radicais nas estruturas da

    sociedade.

    De outro lado, a coletnea 1822: dimenses referncia para grande parte dos

    historiadores que enfatizam o significado da independncia do Brasil enquanto ultimato ou

    ruptura do Antigo Sistema Colonial, tendo como base a anlise macroestrutural dos processos

    histricos. De grande importncia para a historiografia da independncia, tem como proposta

    uma abordagem da independncia, primeiramente, enquanto um processo, e, segundo, dentro

    de uma compreenso da passagem do Antigo Sistema colonial para o sistema mundial de

    dependncias, como est posto na introduo de seu organizador, Carlos Guilherme Mota.18

    Nota-se por esse trecho que, de forma geral, a independncia para esta obra representaria o

    16 MORTON, Frederic W. O. The Conservative Revolution of Independence: Economy society and politics in Bahia (1790-1840). Oxford: University of Oxford, 1974, p. 329. Em uma traduo livre: [...] o papel da Cmara na preservao de uma fisionomia de legalidade e continuidade no deve ser menosprezada. Usada na capital para encobrir as divises no Movimento Constitucionalista, no Recncavo a antiga instituio cvica seria o veculo de uma revolta nacionalista essencialmente. Sua posio como a nica instituio representativa da capitania foi o fator chave em qualquer caso. 17 ARAJO, Ubiratan Castro de. A Guerra da Bahia. Salvador: CEAO, 2001, p. 25. 18 MOTA, Carlos Guilherme. Introduo. In: MOTA, Carlos Guilherme (org.). 1822, dimenses. So Paulo: Perspectiva, 1972, p. 10

  • 17

    golpe final sobre o sistema colonial na Amrica portuguesa. Seria, portanto, um divisor de

    guas na histria, de ruptura da Idade Moderna e introduo da Idade Contempornea, ainda

    que se conserve o carter de subordinao do Brasil, antes enquanto colnia de Portugal,

    depois no papel de nao sujeita diretamente ao imperialismo ingls.19

    No artigo da coletnea que trata especificamente da Bahia, a autora Zlia Cavalcanti

    discute a adeso da capitania s Cortes de Lisboa: do ponto de vista da populao colonial,

    aderir ao sistema constitucional significava destruir o poder absoluto da Coroa e assim anular

    as medidas restritivas ao livre comrcio.20 Mais adiante, ela afirma que ainda no haveria

    uma deciso formal pela ruptura em 1821, mas que Sendo, no entanto, um dado estrutural

    crise do sistema, no tardaria a se manifestar, o que qualificaria o movimento enquanto

    anunciador da separao que viria posteriormente, apesar de ainda no ter sido sentenciada

    pelos diversos atores que viveram o Dez de Fevereiro. A crise, para a autora, necessariamente,

    levaria independncia.

    exceo dessa leitura talvez um tanto proftica de Cavalcanti, o carter questionador

    da ordem colonial do Dez de Fevereiro e o conceito de crise como baliza terico-

    metodolgico, desenvolvidos em 1822: dimenses, foram aprofundados por outro autor, o

    Istvn Jancs. No artigo em co-autoria com Joo Paulo Pimenta, Peas de um mosaico (ou

    apontamentos para o estudo da emergncia da identidade nacional brasileira), a Bahia tida

    como referncia para uma anlise das transformaes responsveis pela construo da

    identidade e do Estado brasileiros. Para os autores, A complexidade do quadro poltico baiano emergente da adeso da provncia s Cortes Constituintes revela que um quarto de sculo de experincia poltica acumulada no enfrentamento da crise do Antigo Regime portugus, at ento represada, estava profundamente enraizada na mente dos homens que a viviam. Essa experincia, eventualmente de contedo revolucionrio, [...] quando derivava de prticas contrapostas ao absolutismo, passou a constituir-se [...] num dos instrumentais ao qual recorreram as elites da Bahia [...] .21

    Aqui, a crise no aparece apenas enquanto contexto essencial para o entendimento dos

    acontecimentos polticos que definiram o Dez de Fevereiro: a vivncia dessa crise pelos

    homens baianos, mais que isso, fornece os recursos para o combate s relaes coloniais.

    19 Id. Europeus no Brasil poca da independncia. In: MOTA, Carlos Guilherme (org.). 1822, dimenses. So Paulo: Perspectiva, 1972, pp. 50-62 (grifo do autor). 20 CAVALCANTI, Zlia. O processo de independncia na Bahia. In: In: MOTA, Carlos Guilherme (org.). 1822, dimenses. So Paulo: Perspectiva, 1972, p. 236. 21 JANCS, Istvn; PIMENTA, Joo Paulo G. Peas de um mosaico (ou apontamentos para o estudo da emergncia da identidade nacional brasileira). In: MOTA, Carlos Guilherme (org.). Viagem Incompleta. A experincia brasileira (1500-2000). Formao: histrias. So Paulo: SENAC, 2000, p. 162 (grifos meus).

  • 18

    Assim, h de se distinguir a crise em seu enfrentamento e a crise cujo desfecho no tardaria a

    se manifestar. Neste ponto residem as diferenas de abordagem de Jancs e Pimenta para a de

    Cavalcanti a nfase na crise vivida e em seu processo em contraponto quela anunciada a

    posteriori, no qual um suposto desfecho apreendido rigidamente como definidor de

    trajetrias anteriores, com origem em 1808 e/ou 1798. Quando tais trajetrias no podem ser

    analisadas independentes da ruptura com Portugal, ou seja, sem a sombra do que viria a

    acontecer em captulos seguintes, de fato reproduz-se, mesmo que de forma diluda, aquele

    iderio nacional o qual a independncia do Brasil se torna acontecimento necessrio no

    quadro da histria nacional.

    Fazendo uso do repertrio legado por Istvn Jancs e Joo Paulo Pimenta, cito

    trabalhos mais recentes, como o de Maria Aparecida de Sousa: [...] existia um ambiente de fermentao poltica represada em decorrncia do controle exercido pelas autoridades realistas. No momento em que as condies propcias para a sua liberao foram dadas, essa ebulio no tardou em vir tona. [...] A partir de ento [do Movimento Constitucionalista baiano, de 1821], uma nova dinmica poltica estabeleceu-se propiciando a dilatao do aprendizado poltico e, como corolrio, a expresso de conflitos individuais e coletivos caractersticos de perodos de profunda crise. Era preciso no perder de vista o rumo das alteraes pretendidas.22

    Assume a autora que o Movimento Constitucionalista, pondo em prtica uma suposta agenda

    revolucionria reprimida e no aparente por fora da coao do Estado portugus, controvertia

    a estrutura colonial a qual fazia parte a capitania da Bahia. De fato, na Bahia havia demandas

    polticas mais ou menos antigas, ligadas a setores especficos da sociedade. Acredito tambm

    que a grifos meus proporcionou aos baianos a possibilidade de que suas demandas fossem

    legtimas para a construo de novos pactos para o Imprio luso-brasileiro.

    No mais, parece-me difcil presumir, que em dcadas anteriores, no sculo XIX,

    haveria significativamente na Bahia a maturao de projetos que visavam a independncia,

    sequer uma vivncia ampla de rebeldia ou de questionamentos ao status quo. Portanto (e

    utilizando-me novamente das palavras destacadas em Jancs e Pimenta e em Cavalcanti),

    talvez seja possvel perceber indcios de uma crise do Antigo Regime portugus em seu

    enfrentamento durante o ps-1808, embora nada anunciasse que a ruptura com este no

    tardaria a se manifestar.

    Todavia, no h dvidas de que, no sentido das discusses empreendidas aqui, os

    22 SOUSA, Maria Aparecida Silva de. Bahia: de capitania a provncia, 1808-1823. Tese (Doutorado em Histria Social) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, 2008, pp. 208; 215, passim (grifos meus)

  • 19

    trabalhos so bastante relevantes, pela nfase ao cunho questionador da ordem poltica

    colonial para a anlise do Movimento Constitucionalista.23 No caso do texto de Istvn Jancs

    e Joo Paulo Pimenta, o processo de ruptura com o Sistema Colonial no Brasil no teria

    provocado uma dissenso imediata com a identidade nacional portuguesa. Afinal, para estes, o

    Brasil era uma entidade poltica emergente que ainda no era depositria de adeso

    emocional, de algum tipo de patriotismo a ele referido.24 Ou seja, haveria nos anos da

    experincia constitucional luso-brasileira, o correr de processos paralelos: a ruptura com o

    Sistema Colonial e o reforo da identidade portuguesa. Ao final, os laos luso-brasileiros no

    teriam sido suficientemente rgidos a ponto de conter os conflitos internos do Reino Unido,

    que em ltimo caso provocariam a independncia.

    Esta trajetria ambivalente, como mencionei, pode ser encontrada tambm em Thomas

    Wisiak. Mais especificamente, o movimento de 1821 na Bahia demonstraria para esse autor

    dois aspectos da cultura poltica baiana de ento: o primeiro diz respeito s novas idias em

    voga, valores predominantes daqueles tempos constitucionalismo e representao nacional

    combinados com a manuteno da monarquia;25 o segundo aspecto afirma que tal

    movimento teria o apelo da identidade nacional portuguesa, o que tambm dizia respeito

    Bahia, evidentemente, para o restabelecimento da boa ordem.26 Embora se constitusse em

    movimento de cunho conservador da boa ordem, como bem define este ltimo autor, a

    experincia constitucional se deu em meio a ideais liberais, concernentes s mudanas que

    ocorriam contemporaneamente nos antigos territrios espanhis na Amrica e no continente

    europeu.

    Portanto, a adeso ao movimento vintista em 1821 pela Bahia envolveria expectativas

    de mudanas, mas tambm de continuidades. Em termos histricos, essa tese pode ser

    contextualizada na tentativa proposta pela Regenerao luso-baiana, de rediscutir a posio

    central assumida pelo Rio de Janeiro no Imprio ps-1808, embora sem ultrapassar os limites

    do mundo luso-brasileiro, o que significou descartar, a princpio, a via pela independncia,

    que s viria diante das intensas transformaes em 1822.

    23 Ainda que no se chegue, em nenhum dos casos, ao extremo da anlise de Marco Morel do movimento baiano: com trs dcadas de atraso, a Queda da Bastilha parecia chegar a Salvador MOREL, Marco. Cipriano Barata na Sentinela da Liberdade. Salvador: Academia de Letras da Bahia: Assemblia Legislativa do Estado da Bahia, 2001, p. 120. No livro do qual se retirou este trecho, Morel discute a trajetria pblica de Cipriano Jos Barata de Almeida, baiano taxado de radical sua poca, mas que, segundo Tavares, no obteve expressiva correlao de foras entre os demais polticos defensores da autonomia do Brasil. TAVARES, 2003, op. cit. 24 JANCS; PIMENTA, op. cit., p. 166. 25 WISIAK, Thomas. A nao partida ao meio: tendncias polticas na Bahia na crise do Imprio luso-brasileiro. Dissertao (Mestrado em Histria Social) Faculdade de Filosofia, Letras, e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, 2001, 36-37. 26 Ibid., ibid.

  • 20

    Penso at que esta ambiguidade tenha sido uma caracterstica que conseguiu perpassar

    o universo dos projetos polticos baianos desde os fins do sculo dezoito, quando h, em uma

    expresso muito vlida de Istvn Jancs, a eroso de velhas certezas e que, certamente,

    estar presente no perodo posterior independncia.27 Ela era produto da convivncia entre

    um conjunto de prticas e culturas polticas bastante recentes, filhas das aspiraes

    ideolgicas do liberalismo e das transformaes polticas europeias desencadeadas pela

    Revoluo Francesa, com os velhos paradigmas que aliceravam as monarquias absolutistas e

    a dominao colonial.

    Por isso, parece-me complicado caracterizar em linhas to somente conservadoras ou

    to somente radicais as identidades e os projetos polticos formulados desde ento. Abro mo,

    enfim, de compreender o processo entre 1808 e 1824 enquanto unvoco, ou mesmo necessrio

    para a construo de uma nao que suposta preexistisse formao do Estado brasileiro. Em

    outras palavras, acredito mesmo que as tendncias polticas na Bahia no permaneceram

    slidas neste percurso e (quaisquer que fossem as suas intenes) foi entre adeses e rupturas

    que os grupos ao longo dessa trajetria formulariam seus respectivos projetos para o futuro do

    Brasil. Ora coincidentes uns com os outros, ora divergentes entre si, esboaram seus

    interesses polticos em um processo talvez errtico, alis, como qualquer outro na histria.

    ***

    Dividi os captulos seguindo uma ordem cronolgica dentro dos marcos temporais

    escolhidos. No primeiro captulo, discuto o processo de autonomizao do Brasil enquanto

    uma entidade poltica com contornos mais ou menos ntidos. Tenho em vista alguns marcos

    nesta trajetria, como a transferncia da Corte portuguesa ao Rio de Janeiro (1808), a

    Abertura dos Portos (1808), a elevao do Brasil categoria de reino, unido a Portugal e

    Algarves (1815) e a Insurreio Pernambucana de 1817. So fatos que se toraram referncia

    aos baianos para a construo das identidades polticas e para a formulao de projetos de

    futuro. Defendo que neste perodo, os projetos polticos formulados na Bahia eram pautados

    pelo crescente otimismo de que a era inaugurada pela estadia da famlia real no Brasil seria

    capaz de suprir parte das demandas polticas na Capitania, algumas delas mais ou menos

    populares.

    No segundo captulo, reflito a respeito da trajetria iniciada pela adeso baiana s

    27 JANCS, Istvn. A seduo da liberdade. In: SOUZA, Laura de Melo e (org.). Histria da vida privada no Brasil. Cotidiano e vida privada na Amrica portuguesa. (Coleo dirigida por Fernando A. Novais). So Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 392.

  • 21

    Cortes de Lisboa, proclamadas em 1820. O Sistema Constitucional adotado na Bahia em 1821

    estava intimamente associado a propostas de redefinio do Reino Unido de Portugal, Brasil e

    Algarves, no sentido de retomar ao reino lusitano prerrogativas de centro do Imprio luso-

    brasileiro. Diante dos ideais de preservao da integridade do Reino do Brasil e da garantia s

    suas provncias da autonomia para legislar sobre os rumos polticos do Imprio, D. Pedro se

    torna o representante capaz de agregar a causa que ficou conhecida como brasileira.

    Somente nomeao pelas Cortes de Lisboa do general Incio Lus Madeira de Melo para

    governador da armas da Bahia, desautorizando algumas das antigas instituies locais, tornou-

    se no primeiro semestre de 1822, o fator preponderante para que parte dos baianos se unisse

    Corte do Rio de Janeiro em torno da autoridade do prncipe-regente D. Pedro.

    No terceiro captulo, analiso os desdobramentos da ruptura do Brasil com Portugal na

    Provncia da Bahia. A partir da adeso a D. Pedro nas vilas do Recncavo e da instalao de

    uma sede de governo alinhado Corte do Rio de Janeiro na vila de Cachoeira, o governo das

    armas comandado pelo general Madeira de Melo empreende uma srie de ofensivas

    responsvel por introduzir o estado de guerra na Provncia da Bahia. Paralelo a esse processo,

    a independncia do Brasil passo a passo consolidada no eixo Centro-Sul, medida tambm

    que parte dos deputados brasileiros nas Cortes de Lisboa se negam a assinar a constituio ali

    formulada. A identidade brasileira era pouco e pouco forjada com fins a sedimentar as

    tendncias que se aglutinavam em favor da sustentao da autoridade do prncipe regente na

    Corte: o que significava, a priori, na Bahia a organizao de uma resistncia ao governo de

    Madeira de Melo na Capital baiana transforma-se em uma guerra de independncia que durou

    pouco mais de um ano. Contudo, a trajetria posterior, de consolidao da independncia, no

    seria menos simples na Provncia, portando tantas indefinies polticas quanto no perodo

    mais agudo da guerra.

    Asseguro que outras discusses sero empreendidas no decorrer da dissertao,

    medida que couber anlise histrica. Tais consideraes possuem aqui o intuito de mediar o

    estudo das fontes, em vias de alcanar, afinal, aquele que acredito ser o objetivo primordial

    deste trabalho: estudar sobre os projetos e as identidades polticas no Brasil no intervalo entre

    1808 e 1824. De maneira subjacente, pretendo avaliar se haveria expectativas que visavam ao

    rompimento com o Imprio luso-brasileiro antes de 1822, quando de fato a independncia

    ocorreu ou se, do contrrio, a ruptura constituiu-se como um projeto pensado diante do

    contexto especfico do ano de 1822, visto que nos anos seguintes ruptura havia muito mais

    de vacilaes do que de certezas quanto aos limites do que significavam a independncia e a

    identidade brasileira.

  • 22

    CAPTULO I

    ENTRE A TRANSMIGRAO DA CORTE E A CONSOLIDAO DO REINO

    UNIDO DE PORTUGAL, BRASIL E ALGARVES

    Uma vinda inopinada

    O desembarque da coroa portuguesa em Salvador, a 22 de janeiro de 1808, guardou, aos

    observadores da poca, diversas representaes. Imaginar o que sentiram no tarefa difcil

    uma mistura de espanto, exaltao, apreenso... Afinal, era fato indito a presena de uma

    famlia real europeia em solo americano. Mas, acho impossvel reconstituir o quanto de

    encanto e expectativa que pairava na atmosfera da Cidade desde que se tomou conhecimento

    da mudana da capital do Imprio, em finais do ano de 1807 quando do decreto real que

    decidiu a partida da Corte. As palavras de Incio Accioli de Cerqueira e Silva, cronista luso-

    brasileiro que viveu entre os anos de 1808 e 1865, talvez precisem um pouco dos sentimentos

    envolvidos naquele momento: Esta vinda inopinada [ou seja, no prevista] produziu

    extraordinrio prazer aos habitantes desta capital, que ansiosos aguardavam o momento de

    verem desembarcar as pessoas da famlia reinante.1

    Pelo que ansiavam os baianos? Como relata Accioli, por verem pessoalmente a rainha

    D. Maria I, o ento prncipe-regente seu filho, D. Joo enfim, aqueles cuja soberania

    fornecia materialidade nao portuguesa e constituam a liga entre os habitantes do reino e

    do alm mar. Contudo, talvez esta ansiedade fosse alm: quem sabe pressentissem que uma

    nova era os aguardava, tempo novo, quando a secular condio de colnia, submissa poltica e

    economicamente metrpole, seria por fim modificada. Evidentemente, essas so suposies

    possveis, o que no as torna isentas de equvocos; como ter certeza sobre o que imaginavam

    os seres que assistiram a tamanha alterao da ordem? Certeza mesmo que (ainda) est alm

    das capacidades humanas prever o futuro, o que significa que por mais que aos baianos fosse

    perceptvel a viragem que viviam, era impossvel que pudessem antecipar os acontecimentos

    que viriam. Concordo com Istvn Jancs e Joo Paulo Pimenta, quando dizem que viviam o encerramento de uma modalidade multissecular de dependncia, protagonistas de uma ruptura histrica que reconheciam como profunda e cujos desdobramentos eram imprevisveis.2

    1 AMARAL, Braz do; SILVA, Igncio Accioli de Cerqueira e. Memrias Histricas e Polticas da Provncia da Bahia. Salvador: Imprensa Oficial do Estado, v. 3, 1919-1940, p. 47. 2 JANCS, Istvn; PIMENTA, Joo Paulo G. Peas de um mosaico (ou apontamentos para o estudo da

  • 23

    No era toa que os sentidos da vinda da Corte portuguesa pudessem ser amplamente

    inteligveis j naquela ocasio. O mundo ocidental parecia mudar a galope desde 1776 (a

    Revoluo Americana) e mais precisamente desde 1789, a Revoluo Francesa ambos os

    movimentos partcipes do que Jaques Godechot denominou de Revoluo do Ocidente.3 Os

    significados polticos dessas mudanas eram profundos, sabia os baianos. Eles mesmos os

    viveram, na dcada de noventa dos setecentos, quando o ideal de liberdade foi assumido em

    diversos discursos, desde aquele que pregava o aumento de soldos at no questionamento ao

    poder real portugus sobre a capitania. A este movimento, a historiografia reputou diferentes

    nomenclaturas: Revolta (ou revoluo) dos Alfaiates, dos Bzios, das Argolinhas e, o mais

    especfico e menos popular deles Sedio Intentada. Essa ltima expresso ser bastante

    repetida durante a presente dissertao; por hora, voltemos a 1808.

    Pois a trajetria histrica que facultou a chegada da Corte portuguesa ao Porto da Barra

    quela poca era relativamente recente: uma retirada estratgica em vista da crise na Europa

    provocada pela guerra entre a Inglaterra e a Frana napolenica, retomada desde 1803.4 Na

    tentativa de no suspender a valiosa e secular parceria com a Gr-Bretanha, Portugal rompe o

    Bloqueio Continental, determinao francesa que proibia as naes europias de comerciarem

    com a Ilha, ao mesmo tempo em que [a Frana] firmava um acordo secreto com a Espanha

    para conquista, ocupao e partilha do seu Imprio.5 No meio de duas grandes potncias e

    suas respectivas pretenses imperialistas na Europa ficou o pequeno (em extenso e em

    importncia) reino de Portugal, e a imagem da sada encontrada para esse dilema me vem

    mente na forma de um conhecido ditado cobrir um santo para descobrir o outro. A

    soluo para resguardar a casa real portuguesa da eminente invaso do exrcito de Bonaparte

    foi transferir a capital do Imprio para o Brasil sob a proteo da marinha inglesa.

    Logicamente, tamanha astcia no foi obra de mpeto qualquer, como s vezes faz crer

    certas verses da fuga da Corte de D. Maria I retratadas na literatura e na filmografia

    recentes. Nem a transferncia da sede do Imprio se deu da maneira inopinada como

    pensaram os baianos, nas palavras de Accioli. O trabalho de Maria de Lourdes Viana Lyra

    revela que a transferncia da sede do Imprio j havia sido pensada em ocasies anteriores,

    emergncia da identidade nacional brasileira). In: MOTA, Carlos Guilherme (org.). Viagem Incompleta. A experincia brasileira (1500-2000). Formao: histrias. So Paulo: SENAC, 2000, pp. 148-149 (grifos meus). 3 GODECHOT, Jaques. A independncia do Brasil e a Revoluo do Ocidente. In: MOTA, Carlos Guilherme. 1822: dimenses. So Paulo: Perspectiva, 1972, p. 27. 4 LYRA, Maria de Lourdes Viana. A utopia do poderoso imprio: Portugal e Brasil: bastidores da poltica, 1798-1822. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1994, pp. 110-116. 5 Ibid., p. 107.

  • 24

    por exemplo, em 1580, quando da invaso espanhola e da formao da Unio Ibrica.6 Em

    outro momento, no reinado de D. Joo V (1707-1750), a vinda da Corte para o Brasil seria

    sada para suprir a falta de vigor do Reino, com objetivo de aqui ser fundado uma espcie de

    Imprio do Ocidente.7 Em suma, resume Lyra: Recorrer colnia do Brasil, como refgio seguro em situaes limites, j ocorrera outras vezes a Portugal, mas s no momento de extrema debilidade do Reino frente aos interesses de contendores mais fortes, a deciso saa do campo da sugesto remota para o da imposio inadivel.8

    Entre sugesto e imposio, no contexto do incio do sculo XIX, de ameaa napolenica s

    monarquias europeias, em 27 de novembro de 1807 o regente D. Joo expede o Decreto Real

    decidindo pela moradia de sua Corte no Rio de Janeiro.9 O estudo de Lyra redimensiona o que

    se conhece da relao colnia-metrpole, assentada na historiografia muitas vezes atravs do

    nexo da explorao vertical, de Portugal para o Brasil.10 Em outras palavras, se a

    possibilidade de mudana da sede, como de fato se concretizou em 1808, era j h muito

    cogitada entre os estadistas portugueses, as hierarquias polticas entre as partes do Imprio

    poderiam no ser to rgidas quanto talvez largamente se acredite quem sabe o Novo Mundo

    guardasse potencialidades as quais Portugal se apoiasse na construo de um projeto de um

    poderoso Imprio?11 Est claro que entre o reino de Portugal e o vice-reinado do Brasil

    haveria nveis distintos: mas, h de serem matizadas as cores dessa primazia e os pactos

    polticos a que ela estava submetida. De certo, a transferncia da coroa portuguesa subverteu

    os princpios coloniais, gerando novas conformaes polticas.

    Aps o embarque no porto de Belm e antes do seu destino final, por mais de um ms

    a Corte permaneceu em Salvador: tempo suficiente para tornar sua estadia memorvel por

    fixar uma nova poca nos anais do comrcio deste pas.12 A citao se trata, novamente, do

    relato de Accioli e remete Carta Rgia de 28 de janeiro de 1808 Abertura dos Portos do

    Brasil. Pelo contedo da Carta, era um procedimento em resposta representao feita pelo

    governador da Capitania, o Conde da Ponte, a respeito de se achar interrompido e suspenso o

    comrcio desta capitania, com grande prejuzo dos meus vassalos e da minha Real Fazenda,

    6 LYRA, op. cit., p. 107. 7 Ibid., p. 108. 8 Ibid., p. 107 (grifos meus). 9AMARAL; SILVA, op. cit., p. 48. 10 Para um exposio deste profcuo debate v. SOUZA, Laura de Mello. O sol e a sombra: poltica e administrao na Amrica portuguesa do sculo XVIII. So Paulo: Companhia das Letras, 2006, principalmente o captulo Poltica e administrao colonial: problemas e perspectivas, pp. 27-77. 11 LYRA, op. cit. p. 22. Para um balano historiogrfico ver: HESPANHA, Antnio Manuel. Depois do Leviatan. Revista Almanack Brasiliense. N. 05, maio de 2007. Disponvel em: http://www.almanack.usp.br/PDFS/5/05_artigo_1.pdf. Acesso em: set. 2012. 12 Ibid., ibid.

  • 25

    em razo das crticas e pblicas circunstncias da Europa.13 Em um primeiro momento, era

    uma medida de carter provisrio, urgente em meio situao imposta pela invaso francesa

    em Portugal. Braz do Amaral, em artigo escrito para a Revista do Instituto Geogrfico

    Histrico da Bahia, h mais de um sculo, defende que a medida parecia certamente urgente,

    cujos significados econmicos eram bastante explcitos: com a invaso napolenica a

    Portugal, este ficara impossibilitado de servir de entreposto comercial para o abastecimento e

    a exportao do Brasil, que, agora, com a estadia da Corte, possua necessidades ainda

    maiores.14 Seria inevitvel abrir esta concesso a outras naes.

    A Abertura dos Portos, portanto, dependeu das novas exigncias do Imprio e da

    reivindicao do governador, pressionado pelos comerciantes da Bahia; o destaque, no

    entanto, dado pela historiografia baiana e mesmo nacional foi para Jos da Silva Lisboa.15

    Porta-voz dos interesses locais, Lisboa advogou em defesa do livre comrcio e da reduo dos

    impostos de importao e, possivelmente exerceu certa presso para que a Carta de 1808

    acabasse por dilatar as concesses previstas pela Corte antes de sua partida.16 Atender aos

    anseios dos colonos, no apenas daquela Capitania, mas de todas aquelas que dependiam do

    comrcio exterior para o escoamento de suas produes, visou tambm afastar o perigo das

    radicalizaes diante de to profundas mudanas. O objetivo foi buscar meios promotores do

    progresso sem alterar a estrutura do poder e da ordem social, caminho normalmente cursado

    pela poltica portuguesa.17

    Vejamos outro trecho da Carta. Segundo ela, tornava-se permitida a entrada de... todos e quaisquer gneros, fazendas e mercadorias transportadas em navios estrangeiros das potncias que se conservam em paz e harmonia com a minha Real Coroa, ou em navios dos meus vassalos.18

    Em tempos de guerra, era necessrio ressalvar a que potncias se destinariam tal prerrogativa.

    Vale dizer que a Inglaterra figurava entre as principais dentre elas, antiga parceira de Portugal

    durante anos a fio, e mais especificamente quando da sua retirada para a Amrica. A Gr-

    Bretanha a partir de ento desempenharia o papel de reexportar os produtos brasileiros, como

    o acar, o cacau e o caf.19 H de ser confirmada tambm sua participao na deciso por

    13 Carta Rgia de 28 de janeiro de 1808, apud. AMARAL; SILVA, op. cit., p. 49. 14 AMARAL, Braz do. 1808-1823. Revista do IGHB. Salvador: n 34, 1907, p. 11. 15 V. principalmente: PINHO, Wanderley. A Abertura dos Portos na Bahia Cairu, os inglses, a independncia. Salvador: Secretaria de Cultura, Edio comemorativa do bicentenrio da Abertura dos Portos do Brasil (1808-2008), 2008. 16 ALEXANDRE, Valentim. A carta rgia de 1808 e os tratados de 1810. In: OLIVEIRA, Lus Valente; RICUPERO, Rubens. A Abertura dos Portos. So Paulo: Editora SENAC So Paulo, 2007, pp. 110-111. 17 LYRA, op. cit., p. 133. 18 Carta Rgia de 28 de janeiro de 1808, In: AMARAL; SILVA, op. cit., p. 49. 19 ALEXANDRE, op. cit., p. 113.

  • 26

    franquear o comrcio no Brasil, j que est assentada a crena do quanto lucraram as casas

    comerciais inglesas a partir deste ato um lucro imenso nos termos de Amaral.20 Mas,

    arrisco-me em dizer que, de maneira geral, a Abertura beneficiou maior parte dos

    negociantes da Bahia, como lembra Accioli a respeito das vantagens resultantes ao Brasil da

    extino do sistema colonial, mesmo aps 1810 quando as tarifas alfandegrias dariam

    claramente vantagens aos produtos ingleses o que significa que no apenas os ingleses

    tenham lucrado nos anos imediatos aps Abertura, j que incluiu pauta de importaes da

    Bahia uma mirade de pases, cujos produtos no haviam chegado a esta praa antes pelos

    meios legais.

    A Abertura dos Portos representou o marco de redefinio do Imprio portugus, j que

    a roupagem colonial do Brasil ento esvaziada em grande parte por essa medida. Contudo, a

    vinda da Corte portuguesa poderia significar tambm oportunidades inditas de prover

    favorecimentos Capitania. Por exemplo, sua estadia na Bahia manifestou-se como

    oportunidade de recoloc-la na hierarquia poltica do Imprio portugus, concretizando-se em

    tentativas de talvez recuperar Cidade sua antiga posio de sede administrativa da colnia,

    exercida at 1763. Como se sabe, em decreto de novembro de 1807 j era sabida a deciso

    pela residncia da Corte no Rio de Janeiro. No entanto, a Ordem Rgia no impediu que o

    Senado da Cmara da Bahia e o corpo de comrcio apelassem Majestade para que a Corte

    permanecesse em Salvador.21

    O contedo desses pedidos evidenciaria o caminho escolhido por estas instituies,

    smbolos de poder da sociedade colonial. Se o futuro era impreciso, fica claro que a escolha

    revelada pelos peticionrios no foi pelas vias da sedio, caminho j conhecido e percorrido

    na Bahia, possibilidade factvel visto os exemplos contemporneos e, mesmo, os projetos

    pensados em 1798, na Sedio Intentada.22 Pois, quando ambos, o Senado da Cmara e o

    corpo do comrcio, insistiram na Bahia como melhor opo para sediarem a Coroa

    defendendo ser esta Cidade mais bem posicionada geogrfica e estrategicamente

    reafirmaram os laos polticos para com o Imprio portugus, demonstrando-se, alm da

    imensa vontade de usufruir das benesses provenientes da instalao da Corte, lealdade e

    fidelidade coroa portuguesa. 20 AMARAL, op, cit., 1907, p. 12. 21Carta do Senado da Cmara da Bahia a Majestade. In: APEB/ Seo de Arquivo Colonial e Provincial, Livro 132, Registro de Correspondncias, cartas do Senado da Cmara ao Rei (1801-1823), sem data, folhas 220-222. Splica que mandou-se da Cidade da Bahia pedindo que fosse transferida para aqui a sede da Corte estabelecida no Rio de Janeiro, 1808. In: AMARAL; SILVA, 1919-1940, pp. 231 e 232. 22 JANCS, Istvn. A seduo da liberdade. In: SOUZA, Laura de Melo e (org.). Histria da vida privada no Brasil. Cotidiano e vida privada na Amrica portuguesa. (Coleo dirigida por Fernando A. Novais). So Paulo: Companhia das Letras, 1997, pp. 388-389.

  • 27

    O pedido do corpo do comrcio relativamente conhecido, foi reproduzido por Accioli

    e, mais recentemente, pela historiadora Maria Aparecida de Sousa.23 um documento que

    ressalta, em suma, as riquezas naturais que favorecem a Cidade e as suas potencialidades

    econmicas, que a tornariam prprias para abrigar o trono lusitano. Seriam inmeras as

    vantagens alegadas pelos comerciantes. Elenco aqui algumas: a posio geogrfica,

    desenhada pela natureza, estratgica, pela sua natural elevao, mas tambm tanto para

    segurar a conservao das [...] colnias do Par, e Maranho, por se encontrar no centro

    das colnias, quanto pela comunicao tanto mais fcil e breve com a sia [...] e Europa; a

    extenso do porto da Baa de Todos os Santos, onde podem ancorar todas as armadas do

    mundo; a variedade dos gneros da agricultura, produzidos no Recncavo, que produzem a

    abastana dos gneros de primeira necessidade, e de luxo, e lhe asseguram uma riqueza

    inexaurvel.24

    Dois outros aspectos foram eleitos pelos comerciantes peticionrios para a Bahia se

    tornar sede da Corte, estes de ordem menos natural, talvez mais sentimental. Primeiro,

    Salvador seria favorecida historicamente para a sede do trono, por ter sido a primeira terra a

    ser povoada pelos colonizadores, a primeira sede do governo colonial e a primeira Cidade a

    ver desembarcar a famlia real. O segundo argumento diz respeito sua gente, caracterizada

    pela... ndole suave, gnio ardente por tudo quanto do servio do seu Soberano, de coraes puros, que s anhelam [anseiam] toda a glria de V. A. e que fazem contnuos votos pela sua conservao e felicidade, enlutem seus muros lavados em lgrimas e cobertos de dor.25

    Este trecho foi retirado das ltimas linhas do documento, isolado de todas as outras alegaes

    e, por isso, deduzo que no foi construdo enquanto argumento central da splica. Os aspectos

    econmico-comerciais receberam toda a nfase do pedido, o que parece lgico, j que foi

    arquitetado por um grupo que possua ntidos interesses nessas disposies.

    Outro pedido que trago aqui se encontra no acervo do Arquivo Pblico da Bahia, no

    livro de registros de correspondncias entre o Senado da Cmara da Bahia e a Majestade.

    Encontrei este carta tambm em uma coleo de documentos das Cmaras municipais,

    23 ACCIOLI; SILVA, op. cit., pp. 231-232. SOUSA, Maria Aparecida Silva de. Bahia: de capitania a provncia, 1808-1823. Tese (Doutorado em Histria Social) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, 2008, pp. 32. 24 Splica que mandou-se da Cidade da Bahia pedindo que fosse transferida para aqui a sede da Corte estabelecida no Rio de Janeiro, 1808. In: AMARAL; SILVA, 1919-1940, pp. 231 e 232. 25 Ibid., ibid.

  • 28

    publicada pela Imprensa Nacional (1973),26 mas, com uma referncia que presumo ser

    equivocada, atribuindo-a a Cmara da Vila de Maragogipe, entre outras correspondncias que

    remetem ao perodo da aclamao do Imperador D. Pedro, em 1822. O texto em si tem marcas

    que negam essas informaes, no que diz respeito ao remetente da carta, o Senado da Cmara,

    e ao seu destinatrio, Vossa Alteza Real, tratamento dispensado aos prncipes, neste caso o

    prncipe regente D. Joo. Devo dizer que no corpo da carta no h registro da data de sua

    escrita, informao no disponvel tanto no acervo do APEB, quanto na coleo publicada

    pela I.N. um documento bastante interessante, acho-o at melhor construdo e mais

    elucidativo do que a splica do corpo do comrcio, trazido por Accioli, decerto pela escrita

    rebuscada e detalhada do Senado. Transcrevo-o na ntegra, dividindo-o em partes para que

    possamos discutir cada um dos aspectos que considero mais importante: Senhor O Senado da Cmara desta Cidade por si, e por todos os Habitantes Suplica a Vossa Alteza Real, que haja de preferir para o Seu Real Estabelecimento esta Cidade do Rio de Janeiro. Nesta Splica no se lembram da posio geogrfica desta Cidade, mais vantajosa para o Comrcio, e expedio de todos os negcios internos, e externos: No se lembram da facilidade da construo de Vasos, que oferece a grande cpia de Suas madeiras, capacidade para imensos Arsenais, e peritos, que em breve tempo nos por a par das maiores foras navais; nem da grandeza de Sua povoao, abundncia, e melhoria dos seus gneros de exportao, e do natural privilgio da rica produo do Tabaco, nem da soma de toda a sorte de valores, que constituindo-a incomparavelmente mais rica que a Cidade do Rio de Janeiro, a torna mais apta para quaisquer regressos s precises de Vossa Alteza Real, e do Estado.27

    A splica do Senado comea com os mesmos argumentos que o corpo do comrcio

    constituiu a sua prpria. Mas aqui h um diferencial que merece considerao diferente dos

    comerciantes, os vereadores entendem que no so os seus diversos recursos e potenciais

    (comerciais, econmicos, naturais...) que favorecem a Cidade para sediar a Corte, apesar de

    no serem condies que devam ser exatamente excludas da apelao. Adiante, os

    peticionrios expem o cerne do seu raciocnio: [...] Mas [a splica] se funda, Senhor, na conscincia e notoriedade do carter sensvel e extremamente afetuoso, que distingue os seus Habitantes. No so as fortificaes, que seguram os Imprios. Os trabalhos de muitos tempos caem ao ataque de poucos dias. O carter porm de um Povo no se

    26 As Cmaras municipais e a independncia. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1973, 2v., pp. 146-148. 27 Carta do Senado da Cmara da Bahia a Majestade. In: APEB/ Seo de Arquivo Colonial e Provincial, Livro 132, Registro de Correspondncias, cartas do Senado da Cmara ao Rei (1801-1823), sem data, folhas 220-222.

  • 29

    muda facilmente. Sentimentos afetuosos so os baluartes inexpugnveis do Trono.28

    Ora, os motivos alegados da sede ter sido levada ao Rio de Janeiro (e no a outra parte das

    colnias da Amrica) foram relativos s condies de segurana que esse stio proporcionaria

    Coroa em vista do no-apoio ao bloqueio napolenico e sua ameaa de invaso, situao

    que a fizera migrar de Portugal. J os sabiam os vereadores baianos; divergem, contudo, se

    esse carter seria suficiente para assegurar a integridade tanto da real famlia quanto do

    Imprio em si. Os baianos se distinguiriam por seus sentimentos, pelas suas qualidades

    morais. Vejamos melhor de que se trata:

    A experincia tinha j desenganado a Europa das quimricas idias de fazer conquistas nesta longnqua e vasta Regio, antes que Vossa Alteza Real lhe pusesse a Planta, e a recente desgraa experimentada em Buenos Aires pelas armas Inglesas, que tem a sua merc as mars, acabou de confirmar aquele desengano.29

    Confesso que considerei esse trecho um pouco confuso. Mas, se bem o entendi, falam aqui

    dos episdios de 1806 e 1807, as invases inglesas capital do vice-reinado do Prata, Buenos

    Aires.30 Essa outra marca textual que confirma a periodizao deste documento, (certamente

    escrito em 1808, no mximo 1809) ainda que ele explicitamente no o faa. Voltemos carta: [...] Se, porm houvesse ainda Nao, que se deixasse iludir com tais projetos, e se aproximasse a estas Costas, nossa coragem, e nossos esforos recresceriam com a Presena de Vossa Alteza Real. E quando se pudesse presumir algum infortnio, decerto efmero, este Senado, Senhor, levaria em seus ombros a Vossa Alteza Real, e Sua Augusta Famlia, no interior destas terras e Sertes inacessveis a todo poder humano. E que Povo, Senhor, ser mais digno de presenciar, e de admirar cada dia a Bondade Paternal de Vossa Alteza Real?31

    Neste pedao, os vereadores chegam ao clmax do argumento central da carta, quando os tais

    sentimentos exaltados anteriormente so aqui esmiuados. A lealdade para com a famlia

    real a coroa em termos gerais seria a caracterstica mais profunda desse povo. Contudo

    haveria certas condies para a intensidade desses sentimentos: a Bondade Paternal de

    Vossa Alteza Real seria como combustvel da afeio dos baianos, e com isso vale dizer

    que todas as possveis benesses concedidas em funo de uma definitiva instalao da Corte

    28 Carta do Senado da Cmara da Bahia a Majestade. In: APEB/ Seo de Arquivo Colonial e Provincial, Livro 132, Registro de Correspondncias, cartas do Senado da Cmara ao Rei (1801-1823), sem data, folhas 220-222. 29 Carta do Senado da Cmara da Bahia a Majestade. In: APEB/ Seo de Arquivo Colonial e Provincial, Livro 132, Registro de Correspondncias, cartas do Senado da Cmara ao Rei (1801-1823), sem data, folhas 220-222. 30GODECHOT, Jacques. As revolues: 1770-1799. So Paulo: Pioneira, 1976, p. 121. 31 Carta do Senado da Cmara da Bahia a Majestade. In: APEB/ Seo de Arquivo Colonial e Provincial, Livro 132, Registro de Correspondncias, cartas do Senado da Cmara ao Rei (1801-1823), sem data, folhas 220-222.

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    na Bahia seriam recompensadas com coragem, dedicao, fidelidade... Mais seguro que as

    fortificaes, um carter aguerrido poderia livrar a coroa de qualquer invaso e nada mais

    protegido que os sertes do continente, onde a mais insigne potncia europeia sucumbiria nos

    primeiros dias.

    Obviamente, tratava-se de ofertas deveras abstratas e suponho insuficientes na lgica

    de qualquer poltica de Estado. Mas o que tinha a Bahia para oferecer quela altura, quando as

    circunstncias para a escolha da sede a segurana facultada pelo posicionamento geogrfico

    da Cidade do Rio de Janeiro era um impedimento impossvel de ser revertido? A Baa de

    Todos os Santos, de fato, tem um posicionamento estratgico em termos de defesa, entretanto,

    sua qualidade de ancoradouro natural para navios de todas as partes e a relativa facilidade que

    h para cercar a capital da Capitania, tanto por terra quanto por mar, devem ter sido

    caractersticas fundamentais para que no sediasse a Corte. Outrossim, a splica continua,

    embora com argumentos pouco fundamentados. Vejamos: [...] Nem os Suplicantes podem calar seus justos receios da diminuio da feliz Sade de Vossa Alteza Real e deixar de afirmar, que a Cidade do Rio de Janeiro famosa pela sua atmosfera quase sempre anuviada, por trovoadas horrorosas, por enfermidades endmicas.32

    O Senado a recorre a um expediente mais inusitado, diria at cmico. No saberia dizer ao

    certo se procede a fama que a atriburam Cidade, sobre as condies naturais a que famlia

    real estaria submetida. O certo que o Rio de Janeiro se constituiu como Corte portuguesa e

    seguiu sendo sede do governo central depois da independncia, da monarquia repblica, at

    o ano de 1960. Entendo que, de fato, no contexto do regime monrquico, assistir sade da

    famlia real implicava garantir a governabilidade e todo o arcabouo que embasava o Estado.

    De qualquer maneira, acredito que no importava ao Senado o quo incomum a argumentao

    pudesse parecer se, ao fim, ela rendesse aquilo que se esperava, a escolha da Bahia para sede

    do Imprio uma merc incalculvel cujas consequncias, ainda que imprevisveis,

    imaginava-se magnficas quaisquer que fossem.

    Chegamos ao fim da carta: [...] Demais esta a Cidade Metropolitana, aqui foi a Residncia do Vice-Reinado, e as consideraes que exigiram outrora a sua mudana, ficam destrudas pela Presena de Vossa Alteza Real. Enfim, Senhor, a Providncia Divina que guiou Vossa Alteza Real a este porto, pareceu pressagiar-nos, que Vossa Alteza Real atender aos justos motivos da nossa Splica, e desde logo esta Cidade concebeu a firme confiana de recobrar a

    32 Carta do Senado da Cmara da Bahia a Majestade. In: APEB/ Seo de Arquivo Colonial e Provincial, Livro 132, Registro de Correspondncias, cartas do Senado da Cmara ao Rei (1801-1823), sem data, folhas 220-222.

  • 31

    sua primazia incomparavelmente melhorada. Prostrados, pois aos Reais ps de Vossa Alteza Real, imploramos com as mais vivas, e respeitosas instncias a concepo de uma Graa, que tem por si o Cu, a Justia, e Paternal Amor com que Vossa Alteza Real costuma atender os seus fiis Vassalos. Esperam Receber Merc Lus Pereira Sodr Escrivo do Senado a fez escrever. Presidente Joo Homem de Carvalho Antnio Silvares de Souza e Andrade Antnio Muniz Barreto e Arago Francisco Elesbo Pires de Carvalho e Albuquerque Jos da Silva Maia.33

    A carta termina em argumento do tipo histrico/teleolgico, tambm lanado pelo corpo

    de comrcio. Contudo, a splica do Senado menciona um passado da Capitania no

    especificado pelos negociantes, visto que retorna perda do status de sede do Governo Geral

    da colnia do Brasil para o Rio de Janeiro. Alegam que as consideraes que exigiram a

    mudana se tornariam nulas frente presena da coroa. No entanto, algumas das

    circunstncias existentes em 1763 ainda demandavam ao Rio de Janeiro a funo de capital. A

    Cidade seguia exercendo, assim como no princpio do sculo XVIII (antes mesmo de ser a

    sede da colnia) a funo de lcus articulador do territrio centro-sul da Amrica e do

    espao aterritorial do Atlntico.34 Em outras palavras, alm de representar o mais importante

    porto do Atlntico Sul, era tambm um ponto estratgico na defesa dos territrios meridionais

    da colnia, elementos que possivelmente avalizaram para a sua escolha como assento do

    Imprio em 1807.35 Portanto, mesmo discutvel a primazia da Cidade da Bahia

    defendida pelos vereadores do seu Senado se ser primognita entre as colnias do Brasil

    no bastara outrora para assegur-la enquanto sede do Governo Geral, muito menos seria

    suficiente para torn-la o espao para a instalao da Corte portuguesa.

    Em sete de maro de 1808 a Corte Real chega ao Rio de Janeiro, tornando esta Cidade

    centro dos territrios portugueses e frustrando os projetos dos comerciantes e vereadores36

    baianos. Contudo, estava implcito que sua presena no Brasil traria consigo inmeras

    possibilidades aos negociantes e homens bons da Bahia, em vias de obterem para a

    Capitania benefcios que, por sua vez, influssem em suas empresas e aumentassem suas 33 Carta do Senado da Cmara da Bahia a Majestade. In: APEB/ Seo de Arquivo Colonial e Provincial, Livro 132, Registro de Correspondncias, cartas do Senado da Cmara ao Rei (1801-1823), sem data, folhas 220-222. 34 BICALHO, Maria Fernanda. O Rio de Janeiro no sculo XVIII: A transferncia da capital e a construo do territrio centro-sul da Amrica portuguesa. Disponvel em: www.ifch.unicamp.br/ciec/revista/artigos/dossie1 .pdf. Acesso em quatro de jun. de 2012, p. 1. 35 Ibid., ibid. 36 SOUZA, Avanete Pereira. Poder local e autonomia camarria no Antigo Regime: o Senado da Cmara da Bahia (sculo XVIII). In: BICALHO, Maria Fernanda; FERLINE, Vera Lcia Amaral. Modos de Governar: idias e prticas polticas no imprio portugus Sculos XVI-XIX. So Paulo: Alameda, 2005.

  • 32

    riquezas. A breve estadia da Corte na Bahia j possibilitara diversas mercs. Segundo Accioli,

    todos os membros do Senado receberam condecoraes do prncipe regente e os negociantes

    foram agraciados com a criao de uma companhia de seguros, a Comrcio martimo o que

    significa que suas respectivas splicas no foram inteiramente em vo.37 Outros pedidos

    foram atendidos pelo regente: a criao de uma escola de cirurgia, que se ensinasse anatomia

    e a arte obsttrica, a primeira do Brasil, proposta pelo Dr. Jos Corra Picano, hoje

    conhecido como patriarca da medicina no Brasil; a permisso para a construo de uma

    fbrica de vidros, concedida a Francisco Igncio de Siqueira Nobre, prometendo auxili-

    lo.38

    Enfim, assistir desembarcar as pessoas da famlia reinante trouxe consequncias

    imediatas aos habitantes desta capital, na avaliao de Accioli sem contar os significados

    polticos que a transferncia da sede da coroa em si j oferecia. Nosso cronista fala do

    extraordinrio prazer produzido por esta vinda; acrescentaria que no se tratava de uma

    satisfao gratuita. Ansiava-se (e muito!) pelas distines auferidas atravs dela. Se o Imprio

    passava por redefinies imprevistas talvez este fosse o momento de tambm rediscutir os

    pactos polticos e, sobretudo, o papel que a Bahia ocupava em sua hierarquia tratava-se,

    portanto, de ocasio nica. Naquele ano de 1808 tudo parecia bastante incerto, desde a

    situao em que vivia a Europa, quanto os rumos a que levaria a instalao da Corte

    portuguesa na Amrica. Pergunto-me sobre quantos quela altura duvidaram se era mesmo

    real aquilo que vivenciavam. No h como negar a aura de fantasia e ternura que paira, at

    hoje, sobre este fato. Arrisco-me a afirmar que desde os memorveis tempos da conquista

    colonial, quase nunca se pde viver nesta Capitania tamanha sensao generalizada de f no

    futuro. Ingenuidade? possvel... Resta saber por parte de quem, da minha ou daqueles

    baianos, que viram passar sob seus olhos to inigualvel acontecimento.

    Ainda hei de aproveitar

    conhecido que a coroa portuguesa possua, desde os remotos anos do perodo

    colonial, uma espcie de tendncia a conferir aos seus sditos ultramarinos cargos e mercs.

    Essa seria uma forma de permitir a governabilidade em suas longnquas possesses, ao passo

    que, no sentido inverso, os colonos garantiam suas posies nas hierarquias poltico-sociais,

    reforando-se os laos e os sentimentos de pertena ao Imprio. Estes mecanismos de relao

    37 ACCIOLI; SILVA, op. cit., p. 51. 38 Ibid., ibid.

  • 33

    recproca, um processo de produo de sditos ultramarinos, so chamados por Joo

    Fragoso, Maria de Ftima Gouveia e Maria Fernanda Bicalho de economia poltica de

    privilgios.39 O Brasil possua, desde o sculo XVII, uma condio poltica diferenciada entre

    as demais possesses coloniais no Imprio e, em 1645, no contexto da Restaurao do trono

    portugus, fora elevado categoria de principado.40 Segundo Maria de Ftima Gouveia, em

    razo da importncia do complexo Atlntico-Sul o rei, embora ausente, esforava-se por

    manter os elos que os unia a seus vassalos ultramarinos.41

    Mantendo-se em tudo a cultura poltica do Antigo Regime, a poltica de conceder

    mercs enquanto dispositivo de se preservarem os laos de identidade entre colonos e

    metrpole se conservava mesmo com esta sediada no Rio de Janeiro. Precisamente, acredito

    que desde a transferncia da Corte ao Brasil esta poltica tenha se aprofundado ano a ano,

    ainda que a formalidade prpria do perodo colonial tenha sido um tanto esvaziada.42 Afinal, a

    maior proximidade ao monarca permitia maiores possibilidades de obteno de honras e

    mercs que poderiam ser cargos, sesmarias, patentes nas ordens militares e ttulos

    nobilirquicos.

    Mas, vlido salientar, 1808 no marca apenas a presena da famlia real em solo

    tropical. Como afirma Maria Odila da Silva Dias, houve a partir desta data o processo de

    interiorizao da metrpole no Rio de Janeiro, o que significa dizer a transposio do

    crebro estatal portugus com suas respectivas funes poltico-administrativas, de onde

    emanariam as decises para as capitanias do Brasil, as provncias de Portugal e os demais

    territrios ultramarinos.43 Se a produo de sditos tivera sido um dos focos da

    administrao colonial (visto que tinha como referncia primeira a poltica exercida no Velho

    Mundo, dentro do territrio do reino lusitano) este mecanismo se impe com mais fora ante a

    necessidade de estabelecer estruturas polticas at ento inexistentes em territrio colonial.44

    No seria como partir do zero, evidentemente, j que a instalao da sede pressups tambm a

    migrao de boa parte do aparato administrativo que outrora funcionava na Europa. 39 FRAGOSO, Joo; GOUVA, Maria de Ftima S.; BICALHO, Maria Fernanda B. Uma Leitura do Brasil Colonial: bases da materialidade e da governabilidade no Imprio. Penlope. N. 23, 2000, p. 67. Rodrigo Ricupero lembra que nem sempre os vassalos esperavam retornos materiais para os seus servios. Geralmente, a ambio maior eram ser agraciados pela Coroa atravs de ttulos nobilitantes. RICUPERO, Rodrigo. A formao da elite colonial. So Paulo: Alameda, 2008, p. 47. 40 GOUVA, Maria de Ftima S. Poder poltico e administrao na formao do complexo atlntico portugus (1645-1808). In: FRAGOSO, Joo R. et al. O Antigo Regime nos trpicos: a dinmica imperial portuguesa (sculos XVI a XVIII). Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2001, p. 294. 41 Ibid., ibid. 42 GOUVA, op. cit., p. 314. 43 DIAS, Maria Odila da Silva. A Interiorizao da Metrpole (1808-1853). In: MOTA, Carlos Guilherme. 1822: Dimenses. So Paulo: Perspectiva, 1972, pp. 173. 44 FRAGOSO, et al, op. cit., p. 67.

  • 34

    Era evidente que o Imprio assentava-se agora sobre bases diferentes e um dos indcios

    deste processo de redefinio foi a eliminao do exclusivo comercial, elemento

    predominante da velha ordem e um dos maiores smbolos das relaes entre Portugal e as

    colnias do Brasil. Seria preciso a criao de novos elos, que reafirmassem a identidade

    portuguesa e os laos com a coroa, no sentido de evitar em todos os aspectos qualquer ruptura

    poltica e territorial no Imprio. Portanto, em meio a to grandiosas mudanas, se vivia sob

    circunstncias que promoviam certa flexibilidade na renegociao dos pactos polticos e

    arrisco-me a dizer que este era um contexto que podia ser compreendido pelas diversas

    instituies e sujeitos histricos. J o sabia, por exemplo, o Senado da Cmara, cuja splica

    para o estabelecimento da Corte na Cidade foi demonstrado em pginas anteriores. A recusa

    do pedido, obviamente, no significava que nada mais haveria de mercs a serem oferecidas

    Capitania: gozava-se um perodo relativamente otimista e fazia-se necessrio tirar desta

    situao especifica o mximo de proveito, antes que imprevisveis conjunturas, talvez,

    impedissem a concesso de futuras mercs.

    Eis aqui um exemplo disso. Em carta ao prncipe regente D. Joo, em 16 de setembro de

    1809, o Senado da Cmara da Bahia solicitou que fosse mudada as adufas, gelosias e rtulas

    tipos de portas e janelas feitas de tbuas de madeira por serem estas incmodas e inteis,

    pois tornavam os edifcios pblicos fnebres, escuros e sombrios.45 Em troca delas,

    reivindicavam frontispcios envidraados, uma substituio que creditavam necessria... [...] para melhoramento e elegncia [...] das Praas e ruas com preferncia naquelas Cidades, que pela sua antiguidade, potncia se fazem mais expectveis e reconhecidas; acresce nestes ltimos tempos para chamar a este objeto, uma maior circunspeco, a nova ordem de populao, e polcia, que decididamente fazem reclamar, digo recomendar esta Cidade pela principal dos Estados do Brasil, depois da Corte do Rio de Janeiro, e primeira abundante, digo, absolutamente na ordem, pela memorvel sorte de preceder todo o Estado, em Celebrar e reconhecer em seu seio, a Rgia Famlia e Pessoa de Vossa Alteza Real Salvo e triunfante [...]. 46

    O Senado da Cmara pedia o rgio beneplcito para reformar a paisagem da Cidade e, para

    isso, utilizou o argumento cada vez mais recorrente em seus pedidos, a defesa de uma posio

    supostamente privilegiada ocupada por ela na hierarquia poltica do Imprio. Mas, aqui h

    algo diferente: pleiteiam tais melhoramentos em vista das circunstncias nicas inauguradas

    45 Carta do Senado da Cmara da Bahia a Majestade. In: APEB/S.A.C.P., Livro 132, Registro de Correspondncias, cartas do Senado da Cmara ao Rei (1801-1823), 16 de setembro de 1809, folhas 225 e 226 (grifos meus). 46 Carta do Senado da Cmara da Bahia a Majestade. In: APEB/S.A.C.P., Livro 132, Registro de Correspondncias, cartas do Senado da Cmara ao Rei (1801-1823), 16 de setembro de 1809, folhas 225 e 226 (grifos meus).

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    ps-1808 a nova ordem da populao e polcia neste caso, acredito que a palavra polcia

    assuma o antigo sentido de civilizao, cultura. A paisagem urbana precisava acompanhar o

    recente status adquirido, pois Salvador recebia correntes migratrias intensas, de Portugal e

    de naes estrangeiras. Outro motivo apontado pelo Senado era... [...] a franqueza do seu Comrcio com as Naes Aliadas, especialmente com a Gr-Bretanha, que sucessivamente estabelecendo-se nesta Cidade os seus Comissrios, e correspondentes tem escorado nas propriedades em que moram, o frontispcio a aformoseando-as do possvel modo, com gosto, a direo mais nobre e vistoria do que a fnebre e antiquada superfluidade das Adufas e Gelosias, incmodas e inteis aos inquilinos [...] e tristonhas ao prospecto pblico principalmente em correspondncia com as envidraadas [...].47

    Note-se a palavra antiquada, usada para definir o aspecto das casas, prdios e ruas da

    Cidade. Talvez os vereadores avaliassem que viviam em uma era moderna, por sua

    proximidade Corte e pela condio de fazerem parte de uma capitania cujo porto recebia

    representantes da maior potncia conhecida, smbolo de modernidade e civilizao. Nobres,

    formosas e (quem sabe?) ostentosas eram as moradias desses ingleses at fico a imaginar o

    quanto podiam se envergonhar as autoridades e mais pessoas da alta sociedade baiana de

    receb-los com uma infra-estrutura que consideravam inferior. Afinal, reconhecimento

    pblico, o que significava viver como nobre, fora sempre um valor bastante estimado entre