entre a lança e a prensa conhecimento e realidade no discurso do jornal o povo (1838-1840

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO SOCIAL CAMILA GARCIA KIELING ENTRE A LANÇA E A PRENSA: CONHECIMENTO E REALIDADE NO DISCURSO DO JORNAL O POVO (1838-1840) Porto Alegre 2010

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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE COMUNICAO SOCIAL PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM COMUNICAO SOCIAL

CAMILA GARCIA KIELING ENTRE A LANA E A PRENSA: CONHECIMENTO E REALIDADE NO DISCURSO DO JORNAL O POVO (1838-1840)

Porto Alegre 2010

CAMILA GARCIA KIELING

ENTRE A LANA E A PRENSA: CONHECIMENTO E REALIDADE NO DISCURSO DO JORNAL O POVO (1838-1840)

Dissertao apresentada como requisito para obteno do ttulo de Mestre pelo Programa de Ps-Graduao Faculdade de Comunicao Social da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul.

Orientador: Professor Dr. Antonio Hohlfeldt

Porto Alegre 2010

K47e

Kieling, Camila Garcia Entre a lana e a prensa: conhecimento e realidade no discurso do jornal O Povo (1838 - 1840) / Camila Garcia Kieling. 2010. 249f. ; 27 cm. Dissertao (mestrado) Programa de Ps-Graduao em Comunicao Social da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul, 2010. 1. Comunicao. 2. Jornalismo impresso. 3. Imprensa Brasil histria. 4. O Povo anlise do discurso. 4. Revoluo Farroupilha imprensa histria. I. Ttulo. CDU 070(091)(043.3)

Catalogao na fonte: Paula Pgas de Lima CRB 10/1229

CAMILA GARCIA KIELING

ENTRE A LANA E A PRENSA: CONHECIMENTO E REALIDADE NO DISCURSO DO JORNAL O POVO (1838-1840)

Dissertao apresentada como requisito para obteno do ttulo de Mestre pelo Programa de Ps-Graduao Faculdade de Comunicao Social da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul.

Aprovada em____de__________de________.

BANCA EXAMINADORA Prof. Dr. Antonio Hohlfeldt PUCRS ______________________ Prof. Dr. Moacyr Flores FURG ______________________ Prof. Dr. Juremir Machado da Silva PUCRS ______________________

Dedico este trabalho aos meus pais, Delmar e Vera.

RESUMO

Nossa pesquisa apresenta uma anlise das relaes entre conhecimento e realidade atravs do discurso do jornal O Povo, o primeiro peridico oficial da Repblica Rio-Grandense, que circulou de 1838 a 1840, na cidade de Piratini e depois em Caapava, no Rio Grande do Sul. A publicao do jornal est inserida no contexto da Revoluo Farroupilha, uma das revoltas provinciais que marcaram o perodo regencial brasileiro. Para tanto, nossos referenciais tericos so a Sociologia Fenomenolgica de Alfred Schutz, em seu interesse nas relaes entre conscincia e realidade, a noo de dispositivo, apresentada por Maurice Mouillaud, e a Anlise do Discurso de Patrick Charaudeau, atravs da sua teoria da enunciao. Aplicada ao campo da Comunicao, a Fenomenologia v os fenmenos miditicos como mediadores das subjetividades, reforando ou confrontando os significados construdos na vida cotidiana. Atravs dos meios de comunicao, possvel entrar em contato com as relevncias e tipificaes presentes em determinada sociedade. Nosso objeto de anlise foi o discurso presente no jornal, visto como uma situao de comunicao, ou seja, o encontro de quatro sujeitos da fala submetidos a um contexto de expectativas, onde determinados contratos e estratgias esto em jogo. As 160 edies dO Povo, jornal Poltico, literrio e ministerial da Repblica Rio-Grandense, permitem analisar alguns dos significados partilhados pelos revolucionrios republicanos na vida cotidiana, como a questo da legalidade, a influncia do pensamento liberal, a participao dos escravos, a constituio dos smbolos ptrios, a viso do papel feminino na sociedade. Alm disso, a pesquisa revela procedimentos e caractersticas especficos dos jornais brasileiros da primeira metade do sculo XIX, um momento em que houve, nas palavras de Morel (2003), uma verdadeira exploso da palavra pblica. Palavras-chave: Comunicao, Histria da imprensa brasileira, Revoluo Farroupilha, O Povo, Anlise do Discurso, Sociologia Fenomenolgica.

ABSTRACT

Our research is an analysis of the relations between knowledge and reality, using the discourse of newspaper O Povo, the first official newspaper of the Rio-Grandense Republic, which circulated from 1838 to 1840, first in Piratini and afterwards in Caapava, cities of the state of Rio Grande do Sul. The publication of O Povo was inserted into the context of the War of the Farrapos, one of the provincial rebellions that marked Brazils regency period. In order to accomplish this analysis, we used as theoretical references Alfred Schutzs Sociological Phenomenology on account of its interest in the relations between consciousness and reality, the concept of device, as it was presented by Maurice Mouillaud, and the enunciation theory in Patrick Charaudeaus Discourse Analysis. Phenomenology, as applied to the field of Communication, understands mediatic phenomena as mediators between subjectivities, reinforcing or confronting the meanings constructed in daily life. It is possible, through the media, to come into contact with the relevancies and typifications present in a particular society. Our subject of analysis was the discourse practiced by O Povo seen as communication situation, that is, the meeting of four discourse subjects inside an expectational context, where certain contracts and strategies are at play. 160 issues of the political, literary and ministerial newspaper O Povo, allowed us to analyse some of the meanings shared by republican revolutionaries in their daily lives, such as the question of legality, the influence of liberal thought, the participation of slaves, the establishment of patriotic symbols, the opinion on womens role in society. Moreover, this research revealed procedures and characteristics particular to Brazilian newspapers in the first half of the nineteenth century, a time when there was, in the words of Morel (2003), a true explosion of the public voice. Keywords: Communication, History of Brazilian press, War of the Farrapos, O Povo, Discourse Analysis, Sociological Phenomenology.

SUMRIO

INTRODUO ............................................................................................................. 09 1 A IMPRENSA OITOCENTISTA EM PERSPECTIVA ............................................... 13 1.1 O Perodo Regencial: um laboratrio de prticas polticas e sociais .......... 16 1.2 Sculo XIX: jornalismo, poltica e opinio ................................................... 23 1.3 Imprensa na Histria e Histria na Imprensa: modos de ler ....................... 30 2 AS MLTIPLAS HISTRIAS DA REVOLUO FARROUPILHA .......................... 37 2.1 A historiografia sul-rio-grandense e a Revoluo de 1835 ......................... 38 2.2 O Cotidiano na Repblica Rio-Grandense .................................................. 49 2.3 A Revoluo Farroupilha: momentos decisivos .......................................... 55 3 A SOCIOLOGIA FENOMENOLGICA E A ANLISE DO DISCURSO COMO LENTES ....................................................................................................... 71 3.1 Fenomenologia Schutziana: uma ponte entre o conhecimento e o mundo da vida............................................................................................. 73 3.1.1 Traos biogrficos .............................................................................. 73 3.1.2 A sociabilidade na obra de Schutz ..................................................... 75 3.1.3 Husserl, Weber, Bergson: trs influncias ......................................... 77 3.1.4 A atitude natural, o mundo da vida e seus significados ..................... 81 3.1.5 Relevncia e Tipificao: Conceitos-chave ....................................... 86 3.1.6 A Fenomenologia Social e a Teoria da Comunicao ....................... 91 3.2 A Anlise do Discurso como tcnica ........................................................... 96 3.2.1 A Anlise do Discurso de Patrick Charaudeau ................................ 100 3.2.2 O discurso nos textos miditicos...................................................... 106 4. NAS VEREDAS DA OPINIO, O JORNALISMO.................................................. 114 4.1 O Povo e seu dispositivo........................................................................... 114 4.2 O Povo e a situao de comunicao....................................................... 125 4.3 Mundo da vida, relevncias e tipificaes no cotidiano da Repblica Rio-Grandense .................................................................... 135 4.3.1 Os Brasileiros Americanos ............................................................... 138 4.3.2 A Galegalidade versus a Repblica de Pilha-tinim ..................... 141 4.3.3 O que pode e o que no pode: eis a questo da legalidade............ 146 4.3.4 Os smbolos da Revoluo .............................................................. 151 4.3.5 Mulheres: o belo sexo entre os farroupilhas .................................... 158 4.3.6 Os escravos do Imprio e os escravos de cor ................................. 163 4.3.7 Os planos para o futuro atravs dos textos de doutrina .................. 170 4.3.8 O Povo e seu status miditico ......................................................... 175 CONCLUSO............................................................................................................. 184 REFERNCIAS .......................................................................................................... 191 APNDICE A Tabela do jornal O Povo ................................................................ 195

INTRODUO

Esta pesquisa teve incio com a vontade de estudar os discursos jornalsticos e literrios do sculo XIX que tivessem como tema a Revoluo Farroupilha, interesse surgido durante as aulas de um ps-graduao em Literatura Brasileira. A idia era realizar um estudo interdisciplinar, j que nosso campo de origem a Comunicao, com o objetivo de entender as relaes entre os modos de produo e os efeitos discursivos nas manifestaes jornalsticas e literrias sobre o tema. O primeiro passo foi pesquisar o corpus, e ento entramos em contato com o jornal O Povo, primeiro peridico oficial da Repblica RioGrandense. Com as aulas e a convivncia no programa de Ps-Graduao da Famecos, e tambm com a necessidade de reduzir o foco do trabalho, a pesquisa mudou, principalmente porque uma dificuldade mostrou-se constante: justificar o estudo de um objeto que no se insere na perspectiva de comunicao de massa. Afirmao controversa, que fez surgir outras perguntas: o que se produziu nos peridicos da primeira metade do sculo XIX pode ser classificado como jornalismo ou constitua-se apenas de opinio e propaganda poltica? Quais parmetros podem ser utilizados para essa definio? Ao aprofundar o contato com o jornal O Povo, surgiram ainda outras dvidas: qual o papel de um peridico oficial naquele momento histrico? Como o discurso oficial foi articulado com as idias e com a realidade cotidiana da poca? Centrando-nos nesses questionamentos, optamos por deixar de lado o cruzamento com a literatura, pois entendemos que a j estava estruturada a

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pesquisa. Com a reviso bibliogrfica, descobrimos outros pesquisadores interessados em um olhar cultural sobre jornais do sculo XIX, e que circulam com naturalidade pela Comunicao e pela Histria, como Ana Paula Goulart, Marcello Basile, Marco Morel, Marialva Barbosa e Tnia Regina de Luca. Estes primeiros referenciais tericos foram essenciais no delineamento da pesquisa, j que nos permitiram entender que nossas desconfianas e perguntas tinham fundamento e relevncia cientfica. A partir desse momento, foi possvel, em conjunto com nosso orientador, definir os referenciais metodolgicos e a teoria, alm montar o sumrio que serviu de meta para as leituras e para a produo do texto da dissertao. Das perguntas iniciais, mais genricas, centramos nossa pesquisa nos seguintes problemas: Como articular Jornalismo e Histria de forma a perceber os peridicos em sua dimenso cultural, e no entend-los apenas como uma fonte da verdade ou apenas reflexo de uma infraestrutura scio-econmica? De que forma o dispositivo do jornal O Povo revela noes de procedimentos jornalsticos caractersticos da primeira metade do sculo XIX? Em vista do referencial metodolgico de Alfred Schutz, de que forma o discurso presente no jornal O Povo desempenha um papel de articulador entre conhecimento e realidade? Estimulados por esses questionamentos, nossos objetivos so: Tensionar alguns conceitos que articulam Jornalismo e Histria, buscando entender de que forma esses discursos so construdos no intuito de produzir palavras para crer, na expresso de Pesavento (2006); Elaborar um levantamento acerca da Sociologia Fenomenolgica de Alfred Schutz e descrever a tcnica de Anlise do Discurso de Patrick Charaudeau;

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Promover um levantamento histrico e historiogrfico a respeito da Revoluo Farroupilha (1835-1845); Conectar o jornal O Povo ao seu dispositivo e a sua situao de comunicao, de acordo com as teorias de Maurice Mouillaud e Patrick Charaudeau, a fim de analisar as particularidades da construo de um peridico da primeira metade do sculo XIX; Examinar de que forma conhecimento e realidade, e as relevncias e tipificaes esto articuladas nos textos do jornal. A fim de atingir esses objetivos, estruturamos nosso trabalho em quatro captulos: trs deles tericos, e um ltimo, de anlise. No primeiro captulo, dedicamo-nos contextualizao histrica do perodo regencial, destacando o preponderante papel dos peridicos nessa etapa da histria brasileira. Tambm aprofundamos algumas caractersticas dos jornais da primeira metade do sculo XIX e, finalmente, tensionamos a relao entre Jornalismo e Histria, em suas semelhanas e diferenas na ligao com o tempo e os fatos. So referenciais importantes para este captulo os autores interessados no olhar cultural sobre os peridicos do sculo XIX, citados anteriormente. No captulo 2, apresentamos um panorama da vasta produo historiogrfica sobre a Revoluo Farroupilha, apoiando-nos, principalmente, nas obras de Ieda Gutfreind e Moacyr Flores. Este ltimo tambm a fonte principal de um breve levantamento de caractersticas do cotidiano da Repblica Rio-Grandense. Na etapa final, elencamos alguns dos principais episdios da Revoluo Farroupilha (1835-1845), trazendo a perspectiva de diferentes historiadores, como Alfredo Varela, Dante de Laytano, Sandra Pesavento e Moacyr Flores. No captulo 3, realizamos a descrio das opes tericas e metodolgicas que norteiam nossa pesquisa. A Sociologia Fenomenolgica, sedimentada por Alfred Schutz, serve de guia, preocupada com o terreno da sociabilidade, da intersubjetividade e da ao da conscincia na interpretao do mundo cotidiano. Essa abordagem, aplicada pelo autor portugus Joo Carlos Correia (2005) no terreno da comunicao, v os discursos miditicos como mediadores das subjetividades e articula noes da teoria do jornalismo,

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como os valores-notcia, com o sistema de relevncias e tipificaes de Schutz. O discurso presente nas pginas do jornal a ponte para entender a provncia de significados dos republicanos rio-grandenses e, para acess-la, optamos por utilizar como tcnica a Anlise do Discurso, tal como proposta por Patrick Charaudeau. No captulo 4, chegamos anlise propriamente dita, onde discutimos em profundidade as principais caractersticas do dispositivo do jornal O Povo, enquadrando-o em uma situao de comunicao e destacando algumas das principais relevncias e tipificaes presentes em suas pginas. Destacamos, nesta etapa, a realizao de um levantamento, em forma de tabela, de todas as 160 edies do jornal, apresentada no Apndice A. Por fim, articulamos o levantamento realizado na anlise dO Povo com seus status miditico, procurando desvendar seu sistema de relevncias e seu papel como mediador de subjetividades, cumprindo, finalmente, os objetivos de nossa pesquisa.

1 A IMPRENSA OITOCENTISTA EM PERSPECTIVAUma Repblica no pode existir sem um povo virtuoso1

A afirmao que utilizamos como epgrafe fala da relevncia da educao para o processo republicano, afirmativa expressa nas pginas do jornal O Povo, nosso objeto de estudo. A educao seria parte de um processo, onde o povo reconhece suas necessidades e procura entender o melhor jeito de remedi-las. Esse ideal demonstra com propriedade a relao complexa entre o mundo das idias e a vida cotidiana: preciso conhecer para experimentar e experimentar para conhecer. Nosso estudo concentra-se na anlise das relaes entre conhecimento e realidade atravs do jornal O Povo, publicado de 1838 a 1840. Trata-se do primeiro peridico oficial da Repblica Rio-Grandense, o governo que dominou parte do territrio da Provncia de So Pedro do Rio Grande do Sul, entre 11 de setembro de 1836 e 1 de maro de 1845, durante a Revoluo Farroupilha (1835-1845), conflito que surge no contexto de diferentes revoltas das provncias perifricas durante o perodo regencial. O confronto entre farrapos e legalistas deu-se para alm dos campos de batalha, refletindo-se tambm nos jornais. Apesar de incipiente (o primeiro jornal da provncia, o Dirio de Porto Alegre, data de 1827), a imprensa sul-rio-grandense tambm representou a grande agitao poltica do perodo regencial brasileiro: As publicaes peridicas serviam ento s duas causas em conflito, pois tanto farroupilhas quanto legalistas organizaram umaO Povo, n. 155, p. 654. Todas as referncias ao jornal tm como base a edio fac-similada publicada pelo Museu e Arquivo Histrico do Rio Grande do Sul, em 1930.1

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srie de peridicos atravs dos quais defendiam suas idias e atacavam-se mutuamente (ALVES, 2000, p.19). O Povo foi o mais longevo peridico oficial da Repblica RioGrandense. Circulou entre 1838 e 1840, e comeou a ser editado na cidade de Piratini, somando 160 edies. Os equipamentos necessrios para a impresso foram comprados pelo Ministro da Fazenda Domingos Jos de Almeida, com o produto da venda de 17 escravos (HARTMANN, 2002). O primeiro redator dO Povo foi Luiz Rossetti, um italiano refugiado no Brasil, partidrio do movimento Jovem Itlia2, que pretendia a unificao de seu pas. De acordo com Riopardense de Macedo (1994), autor do precioso levantamento Imprensa farroupilha, o italiano ajudou a produzir uma propaganda republicana de bom nvel que j ensaiava crticas aos processos prprios da burguesia (p. 7). luta poltica, econmica e militar, somou-se a peleja simblica, provocadora de grandes gestos e paixes, os quais repercutiram de diversas formas na vida cotidiana da sociedade sulina, incluindo a imprensa. Se Napoleo Bonaparte dizia que trs pasquins raivosos so mais perigosos que mil baionetas (BONES, 1996, p. 122), parece que os farroupilhas entenderam bem o recado, tratando de produzir suas prprias verses dos fatos. Acessvel de forma completa atravs da edio em fac-smile produzida em 1930, pelo ento Museu e Arquivo Histrico do Rio Grande do Sul (hoje Museu Julio de Castilhos), O Povo vem sendo utilizado como uma rica fonte para o estudo histrico da Revoluo Farroupilha, pois, como jornal poltico, literrio e ministerial da Repblica Rio-Grandense, registrou em suas pginas uma grande quantidade de informaes, como decretos, ofcios e manifestos da poca. O que nos interessa nessa dissertao, porm, a dimenso simblica do discurso produzido no jornal, visto com olhos do pesquisador no tempo presente, lacuna j assinalada por Riopardense de Macedo, no seu Imprensa farroupilha, ao comentar as apagadas cores das comemoraes do sesquicentenrio da Revoluo, em 1985:

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O movimento Jovem Itlia foi fundado por Giuseppe Mazzini, em 1831, em Marselha. Dissidente da Carboneria, sua inteno era promover a insurreio popular republicana, com a participao do povo, que os liberais evitavam (BONES, 1996, p. 82). Em 1832, passa a publicar um jornal homnimo ao movimento, onde afirma: As revolues tm que ser feitas pelo povo e para o povo. No podem ser mera substituio de uma aristocracia por outra (BONES, 1996, p.82-83).

15 Faltou, no entanto, um novo trabalho de interpretao de fontes primrias, um mergulho na grande Revoluo com as preocupaes do presente, uma monografia que recuperasse a informao, especialmente aquelas experincias para os dias de hoje; enfim, faltou um trabalho de recriao de documentos para a realidade presente (MACEDO, 1994, p. 15).

O historiador Nelson Werneck Sodr, autor do clssico Histria da imprensa no Brasil (1999), tambm aponta a importncia do uso dos jornais como fonte de pesquisa no estudo da Revoluo:

Sem a leitura de O Povo, que circulou de 1838 a 1840, de O Mensageiro, que circulou de 1842 a 1843, da Estrela do Sul, que circulou em 1843 e uns poucos mais, a histria farroupilha incompleta. Nessas folhas, impressas quase sempre sob condies extremamente difceis, o movimento ficou espelhado, em todos os seus traos, os gerais e os particulares (SODR, 1999, p. 131).

Longe de querer suprir a ausncia apontada por Riopardense de Macedo, nossa inteno contribuir para a discusso, utilizando instrumentos do campo da Comunicao. Desta forma, acreditamos cooperar para um movimento de renovao do olhar sobre os peridicos produzidos na primeira metade do sculo XIX. Ao iniciar essa jornada, torna-se necessrio entender mais a fundo o perodo regencial no Brasil, que se destaca pela riqueza de confrontos e de alianas entre grupos de interesses diversos, o que foi vivido de forma intensa pela imprensa da poca. Utilizamos, para este fim, o trabalho de historiadores que se preocuparam em valorizar os jornais como fonte de pesquisa, em adequao ao propsito do nosso estudo.

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1.1 O PERODO REGENCIAL: UM LABORATRIO DE PRTICAS POLTICAS E SOCIAIS

As regncias no Brasil tm comeo com a abdicao de D. Pedro I, em 7 de abril de 1831. A renncia do monarca, que havia proclamado a independncia do pas nove anos antes, em 7 de setembro de 1822, foi o ponto alto de uma srie de fatores, entre eles a inflao e o aumento no custo de vida que colocaram elites, classe mdia e o povo em geral do mesmo lado. A incipiente imprensa brasileira, que havia desembarcado no pas em 1808, junto com a Famlia Real portuguesa, teve um papel decisivo na derrocada do Imperador. De acordo com Silva (1992), os jornais, em sua maioria de oposio, atacavam violentamente D. Pedro I e o assassinato do jornalista opositor Lbero Badar3 funcionou como plvora para agitaes, passeatas, discursos, quebra-quebras e ataques generalizados aos portugueses. No campo poltico, a monarquia, recm-instalada aps a independncia, encarava enfrentamentos externos e internos. A Guerra Cisplatina colocava Brasil e Argentina em confronto pelo territrio que hoje corresponde ao Uruguai. Em 1826, a Assemblia Geral Legislativa do Imprio do Brasil, que correspondia Cmara dos Deputados, e o Senado comeavam suas atividades, abrindo um canal para a manifestao dos diversos interesses polticos em jogo, o que se refletiu tambm na imprensa (MOREL, 2003). Em termos econmicos, a situao tambm no era fcil. A inflao onerava cada vez mais a populao e, alm disso, uma das principais fontes de renda do governo monrquico, a cobrana de impostos sobre produtos importados, enfrentava o descontentamento dos fornecedores no contemplados com a taxa diferencial oferecida Inglaterra. O Tratado de Aliana e Amizade com este pas foi renovado em 1827, o que garantia uma taxa de 15% sobre os produtos ingleses, em detrimento dos 24% cobrados sobre os derivados de outros pases (MOREL, 2003). Com a presso externa, o que preponderou foi o nivelamento por baixo, causando uma forte queda de arrecadao. As tentativas de aumentar os impostos sobre os produtos3

Giovanni Battista Lbero Badar escrevia no jornal O Observador Constitucional, surgido em 1829.

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internos eram barradas na Cmara dos Deputados, o que causou ainda mais desgaste poltico entre o governo monrquico e as lideranas das provncias. Nesse cenrio, os produtores de caf do Rio de Janeiro e do Vale do Paraba representavam 44% do total das exportaes, nmero que explicita a sua relevncia poltica (SILVA, 1992). A grave crise econmica e financeira fez com que o Brasil buscasse ainda maiores emprstimos com a Inglaterra (que comearam em 1824), o que agravou a dvida externa. Entre a populao em geral, acirravam-se os nimos entre brasileiros e portugueses, revelando-se um acentuado anti-lusitanismo. As relaes com a Europa pareciam mesmo estremecidas. Morel (2003, p. 1415) destaca a relevncia dada pelos jornais da poca a um caso de troca de agresses entre um fazendeiro brasileiro e marinheiros franceses em setembro de 1830. O incidente, divulgado com detalhes de cunho xenfobo (brasileiro de merda e mulato tem que baixar a cabea para os franceses, entre outros insultos, fizeram parte do entrevero), beirou o incidente diplomtico. O antilusitanismo passa a fazer parte de um sentimento de repulsa generalizada contra o Velho Mundo, num processo de afirmao da identidade brasileira como Americana. Em meio a essa polmica, continua Morel (2003), aportam no Brasil navios franceses tremulando a bandeira azul, branca e vermelha da Revoluo Francesa e no mais o pano branco com a flor-de-lis, smbolo da monarquia restaurada. So reflexos dos levantes ocorridos em Paris, em julho de 1830, conhecidos como as Trs Jornadas de Julho, que depuseram o rei Carlos X e coroaram o Duque Lus Felipe de Orlans, conhecido como rei cidado. O fato provocou uma rpida (e conveniente) mudana de referncia em relao Frana:

A Frana passou a ser designada pela mesma oposio liberal como a Ptria das Luzes, da civilizao, e exemplo de liberdade para o mundo. A assimilao Carlos X Pedro I foi imediata. Nas cidades brasileiras ocorreram festejos pela queda do monarca... francs, com aluses pouco sutis ao imperador do Brasil. A oposio subia de tom (MOREL, 2003, p. 16).

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Atravs da anlise da imprensa da poca, Morel (2003) mostra esses episdios e pondera as interpretaes historiogrficas tradicionais, que afirmam ser o liberalismo na Frana mais avanado que o do Brasil, e que teria influenciado o fim do Primeiro Reinado. O autor destaca que, pela palavra da imprensa, as propostas liberais entre os brasileiros mostravam-se mais ousadas, mesmo em relao soberania do monarca e ao direito de resistncia dos povos: os influenciados acabaram escolhendo, por seus prprios critrios e interesses, que tipo de influncia valorizar (p. 17). Cada vez mais isolado politicamente em um crculo conservador, D. Pedro I passa a enfrentar a insurreio civil e militar. Entre os dias 11 e 14 de maro de 1831, ocorrem no Rio de Janeiro violentos confrontos entre portugueses e brasileiros, episdio conhecido como Noite das Garrafadas. Aconselhado por Benjamin Constant, o monarca busca a sada da abdicao em nome do prncipe herdeiro, colocando em seu lugar uma Regncia, no dia 7 de abril de 1831. De abril a junho desse ano, o comando da Nao esteve a cargo da Regncia Trina Provisria, composta pelos senadores Nicolau de Campos Vergueiro e Jos Joaquim Carneiro de Campos, e pelo brigadeiro Francisco de Lima e Silva (SILVA, 1992). Entre as suas primeiras resolues, ocorrem alguns avanos liberais, como a suspenso temporria do Poder Moderador, e o ato que proibia os regentes de dissolver a Cmara dos Deputados. A abdicao movimenta a engrenagem das foras polticas, fazendo andar o carro da revoluo, na expresso de Bernardo Pereira de Vasconcelos (MOREL, 2003). Os interesses se dividiam sobre como dar continuidade ao processo poltico no Brasil: Havia basicamente trs respostas [para a revoluo]: negar (absolutistas ou ultramonarquistas), completar e encerrar (vertente conservadora do liberalismo) e continuar (vertente revolucionria do liberalismo (p. 21). Para este autor, tratar o perodo regencial apenas como uma troca do poder entre as mos da elite uma viso empobrecedora. O poder centralizador estava enfraquecido, e o que aconteceu foi uma exploso da palavra pblica como nunca ocorrera no territrio (que se pretendia) brasileiro (p. 24). O poder de deciso passaria a ser visto como o resultado da negociao entre foras polticas e no apenas pela vontade de um soberano. Frente aos sinais de fraqueza da monarquia, emergem os partidos

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polticos no perodo regencial. importante destacar que, nesta poca, a noo de partido poltico diferente daquela consolidada durante o sculo XX, no tipo ideal de partido-mquina. Num momento de integrao nacional, de consolidao do Brasil como ptria independente, a formao partidria remetia a uma separao, a uma diviso no seio de foras que deveriam lutar conjuntamente por uma identidade brasileira. Morel (2003) explica o significado de um partido poltico naquele perodo:

Um partido poltico, na primeira metade do sculo XIX, era mais do que tomar um partido e constitua-se em formas de agrupamento em torno de um lder, atravs de palavras de ordem e da imprensa, em determinados espaos associativos ou de sociabilidade e a partir de interesses ou motivaes especficas, alm de se delimitarem por lealdades ou afinidades (intelectuais, econmicas, culturais, etc.) entre seus participantes (p.32).

Estabelecida essa noo, a historiografia assinala, grosso modo, a existncia de trs partidos que disputavam entre si o poder: Partido Restaurador (ou Caramuru), que defendia a volta de D. Pedro I e a instalao do absolutismo; Partido Liberal Moderado (Chimango), representante da aristocracia rural, que defendia a monarquia escravista, ou seja, o liberalismo moderado das elites; e o Partido Liberal Exaltado (Jurujubas ou Farroupilhas), que propunha de forma mais veemente a liberdade das provncias (SILVA, 1992). O historiador Marcello Basile (2006), ao analisar a imprensa publicada na Corte durante o perodo regencial, busca matizar a questo do separatismo na viso desses trs grandes grupos polticos, entendendo que, pelos jornais, as intenes manifestadas eram muito mais dirigidas ao intuito de reforar os laos nacionais do que promover a separao entre as provncias. Assim, traou um panorama do posicionamento pblico de moderados, exaltados e caramurus. Entre os moderados, atravs da leitura de jornais como Aurora Fluminense, O Independente e O Homem e a Amrica, Basile (2006) entende que se situavam entre o absolutismo e a democracia, defendendo algum tipo de limitao ao poder dos governantes atravs da participao do povo. E a

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noo de povo, que divergia da plebe, era entendida atravs do princpio da maioria dos capazes de Guizot, ou seja: os indivduos deveriam ter condies jurdicas e oportunidades iguais, mas, no campo poltico, a representao deveria ficar a cargo dos homens interessantes por suas luzes e talentos, ou por suas riquezas4 (p. 63). Ao mesmo tempo, deixavam claro que essa distino nada tinha a ver com a cor da pele, e os direitos de cidadania poderiam ser estendidos a homens negros e mulatos livres. Apesar de terem apoiado a Revoluo de 7 de Abril ao lado dos exaltados, rechaavam o regime republicano, entendendo-o como anrquico e fragmentrio da nao. J os exaltados, atravs da Nova Luz Brasileira, O Filho da Terra, O Repblico e Sentinela da Liberdade, entre outros, defendiam o liberalismo radical. A igualdade social seria um dos pilares da construo da nao, donde manifestavam uma forte postura anti-aristocrtica. Tambm utilizavam a diviso povo e plebe, mas, neste caso, a plebe era constituda pelos aristocratas e os ricos ociosos. O povo seria constitudo por todas as pessoas livres, independente de cor, renda, instruo ou sexo, abarcando, aqui a concepo de cidado. Ao defender a incluso das mulheres entre os participantes da vida pblica, foram alm das propostas polticas da poca, incluindo a Revoluo Francesa, como assinalou Morel (2003). Defendiam tambm a imediata incluso dos negros e mulatos livres e libertos nao, mas nem por isso defendiam a imediata abolio da escravatura. Apesar do veio inclusivo, uma das principais caractersticas do discurso expresso nos peridicos exaltados era um agressivo anti-lusitanismo. Em sua maioria republicanos e federativos, os exaltados viam na revoluo o meio justo e legal de garantir a liberdade da nao (embasados teoricamente pelo direito de resistncia dos povos tirania e opresso, preconizado por Locke e Rousseau), mas sem cunho separatista. Pelo contrrio, a revoluo era antes vista como uma forma de regenerar a nao e mant-la integrada (BASILE, 2006, p. 78 grifo do autor), atravs da noo de soberania. Os caramurus posicionavam-se entre o liberalismo clssico e o4

O Independente, n. 64, 14 mar. 1832. Apud BASILE, Marcello. Projetos de Brasil e contruo nacional na imprensa fluminense (1831-1835). In: NEVES, Lcia Maria Bastos, MOREL, Marco e FERREIRA, Tania Maria Bessone (Orgs.). Histria e Imprensa Representaes culturais e prticas de poder. Rio de Janeiro: DP&A / Faperj, 2006.

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absolutismo, atravs das pginas de jornais como A Trombeta, Caramuru e O Carij. A viso de cidadania era bem similar dos moderados, distinguindo povo e plebe. Apesar da posio conservadora, posicionavam-se contra a discriminao dos negros e pardos, mas ignoraram solenemente, em seus peridicos, a questo da abolio. Quanto s mulheres, os caramurus preferiam sua atuao no apoio aos cidados, e no uma participao efetiva na vida poltica. Para eles, o governo ideal e as bases da unidade da nao estavam representados, respectivamente, no primeiro reinado de D. Pedro I e na Constituio de 1824. O Carij afirmava que o 7 de abril foi um dia de luto e trouxe ao Brasil a sua maior catstrofe5 (BASILE, 2006, p. 85). O embate de idias travado atravs dos peridicos no deixa dvidas de que o debate poltico na nova cena pblica passou a extrapolar o mbito das elites. As temticas tambm revelam diversidade: discutia-se a abolio da escravatura e a redistribuio de terras. A esfera pblica cultural e literria se amplia com o aumento do pblico leitor e da circulao de impressos. De 1831 a 1835, durante a Regncia Trina Permanente, o poder ficou com os liberais moderados que, se por um lado esmagaram as agitaes civis e militares que pipocavam pelo pas, atravs do mando do autoritrio padre Diogo Feij, ministro da Justia e criador da Guarda Nacional, por outro promoveram algumas reformas liberais atravs do Ato Adicional de 1834. O Ato foi, na verdade, um acordo entre os trs partidos e acabou por conceder maior autonomia s provncias, mas no avanou no sentido de reforma tributria, ponto central das divergncias, uma vez que a gesto dos recursos continuou centralizada nas mos do governo imperial. Os Caramurus sofreram forte abalo com a morte de D. Pedro I neste mesmo ano, enfraquecendo o partido. A aproximao no durou muito e, j na primeira eleio para regente uno, em 1835, os liberais moderados racham com a indicao do radical Feij ao cargo. Feij vence as eleies com uma margem pequena de votos, ao mesmo tempo que importantes revolues, como a Farroupilha (Rio Grande do Sul 1835-45), a Cabanagem (Gro-Par, 1835-39), a Sabinada5

O Carij, n. 6, 21 mar. 1832. Apud BASILE, Marcello. Projetos de Brasil e contruo nacional na imprensa fluminense (1831-1835). In: NEVES, Lcia Maria Bastos, MOREL, Marco e FERREIRA, Tania Maria Bessone (Orgs.). Histria e Imprensa Representaes culturais e prticas de poder. Rio de Janeiro: DP&A / Faperj, 2006.

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(Bahia, 1837-38) e a Balaiada (Maranho, 1838-41) estouram no pas. O descontentamento generalizado, e as sedies fundavam-se nas mais diversas bases sociais, desde abastados estancieiros at escravos. Com o racha dos moderados, os polticos se reagruparam no Partido Progressista (criado por Feij, numa tentativa de golpe) e Partido Regressista (cujo nome dispensa maiores explicaes) que, com a inevitvel renncia do ex-Ministro da Justia, chega ao poder atravs do regente Pedro de Arajo Lima, em 1838, que, conseqentemente, revisa as reformas liberais de 1834 (SILVA, 1992). No final das contas, regressistas e progressistas queriam a volta do Poder Moderador, o que significava o restabelecimento da ordem. Em 1840, um novo acordo (o Golpe da Maioridade) levou ao jovem D. Pedro II um pedido para que assumisse o trono, o qual foi prontamente atendido. O mesmo ano marca o fim do jornal O Povo e o incio, no Brasil, do Segundo Reinado. A Provncia de So Pedro do Rio Grande do Sul, apesar de perifrica (tanto poltica quanto geograficamente) em relao Corte, experimenta de forma intensa esse grande laboratrio de formulaes e de prticas polticas e sociais que constitui o perodo regencial brasileiro, nas palavras de Morel (2003, p. 9). Durante nove anos (de 1836 a 1845), instituiuse em parte do seu territrio o governo da Repblica Rio-Grandense, que teve que se sustentar de forma financeira, poltica, militar, moral e simblica. Conforme o levantamento de Flores (2004), so muitas as justificativas fornecidas pela historiografia para o gesto extremado de separarse do Imprio, como veremos mais adiante, no captulo 2. O fato que, no dia 11 de setembro de 1836, o general Antonio de Souza Neto proclamou:

Camaradas! Ns que compomos a 1 Brigada do exrcito liberal, devemos ser os primeiros a proclamar, como proclamamos, a independncia desta provncia, a qual fica desligada das demais do Imprio e forma um Estado livre e independente, com o ttulo de Repblica RioGrandense e cujo manifesto s naes civilizadas se far oportunamente. Camaradas! Gritemos pela primeira vez: Viva a Repblica Rio-Grandense! Viva a Independncia! Viva o exrcito republicano rio-grandense! (FLORES, 2004, p. 63)

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Em uma provncia afastada das decises do poder central e palco de conflitos de fronteira permanentes (a formao militar de Bento Gonalves, um dos maiores lderes da Revoluo Farroupilha, deu-se dentro da Guarda Nacional, criada pelo Ministro da Justia e regente Diogo Feij), Flores (2002) explica que a idia de formar uma nova Nao tinha razes de existir, pois s a obedincia ligava os Rio-Grandenses ao poder central. Da mesma maneira que o Brasil se separou de Portugal em 1822, os Rio-Grandenses queriam se separar do Brasil, em 1836 (p. 10). Houve ento uma ruptura, que teve de ser mantida atravs do uso de diversas armas, entre elas a prensa tipogrfica. Assim, acreditamos que O Povo, como primeira experincia de comunicao impressa do governo da Repblica Rio-Grandense, tem muito a nos dizer, tanto no plano discursivo, como em relao aos fazeres e saberes do jornalismo da poca. Para tanto, torna-se necessrio mergulhar mais a fundo na imprensa oitocentista, em como se deu o nascimento da imprensa no Brasil e sua articulao com os eventos polticos da poca.

1.2 SCULO XIX: JORNALISMO, POLTICA E OPINIO

Ao mesmo tempo fascinado por ela e seu crtico mordaz, o escritor Honor de Balzac deixou em seus escritos um relato passional, mas contundente, sobre a imprensa francesa moderna. L, o jornalismo desabrochou de forma progressiva durante a Restaurao da monarquia (1814-1830), aps a queda de Napoleo Bonaparte, e culminou com as revolues de 1830, que aconteceram na Europa como um todo e, como vimos, provocaram reflexos na opinio pblica e nos caminhos polticos do Brasil. Em 1836, mile de Girardin lana o jornal La Presse e inova a forma de viabilizar financeiramente o jornalismo, ao diminuir pela metade o valor da assinatura para aumentar a circulao do jornal e, conseqentemente, ganhar mais dinheiro com publicidade e anncios. De acordo com a nota da edio francesa de Os jornalistas, esses fatores levam a imprensa a um salto no s quantitativo, mas tambm permitiram-lhe

24 [...] exercer uma influncia que ela jamais havia conhecido anteriormente. Os jornalistas, verdadeiros reizinhos adulados, fazem tremer os governos, fazem e desfazem as reputaes, suscitam invejas e rancores. E, mais freqentemente do que se imagina, transformam sua influncia em vantagens materiais da forma mais abjeta (2004, p. 18 grifo no original).

Parece que, mesmo na longnqua Repblica Rio-Grandense, a pecha de vendido ou interesseiro, em relao aos jornais e jornalistas, est mesmo imbricada com a gnese da profisso. O prprio prospecto de apresentao dO Povo traz o seguinte questionamento:

E agora perguntamo-nos: todos esses jornais sem vida, e sem alvo, a no ser aquele vergonhoso do lucro, verdadeiras torres de Babel, onde se v a soberba, e a confuso; e que saem corajosamente, para todo o Imprio, a cada dia, no sei se, mais para experimentar a constncia, do que para cansar a excessiva vontade dos assinantes, cumpriro eles a santidade de seus deveres? (O Povo, n. 1, p. 2)

Assim, ao analisar o comportamento dos jornalistas da primeira metade do sculo XIX, Balzac (2004) cataloga-os como um botnico, separando os tipos em gneros, sub-gneros e variedades. Usa o termo publicistas para caracterizar o primeiro gnero de homens que compem as redaes, definindo-os da seguinte forma:

Publicista, este nome outrora atribudo aos grandes escritores como Grotius, Puffendorf, Bodin, Montesquieu, Blackstone, Bentham, Mably, Savary, Smith, Rousseau, tornou-se o de todos os escrivinhadores que fazem poltica. De generalizador sublime, de profeta, de pastor de idias que era outrora, o Publicista agora um homem ocupado com os compassos flutuantes da Atualidade. Se alguma espinha aparece na superfcie do corpo poltico, o Publicista a coa, a desdobra, a faz sangrar e tira dela um livro que, quase sempre, uma mistificao. O publicismo era um grande espelho concntrico: os publicistas de hoje o quebraram e tm todos um pedao que eles fazem brilhar aos olhos da multido (2004, p. 31).

O grande espelho concntrico que foi quebrado pelos novos publicistas pode ser entendido como uma metfora das transformaes que

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aconteciam na sociedade francesa da poca e tambm pode ser comparada, mutatis mutandis, com as agitaes do perodo regencial brasileiro. Se, antes, apenas os grandes generalizadores sublimes tinham a palavra, a imprensa torna pblica a expresso de diferentes vises polticas, os compassos flutuantes da Atualidade, o que no ocorre sem conflitos. Jos Marques de Melo (2006), ao comentar a questo da objetividade jornalstica, explica que ela se faz presente desde o momento em que o jornalismo adquiriu autonomia social, processo que se deu com as revolues burguesas na Europa e com a Independncia Americana. A idia de que todos os homens pudessem ter acesso s informaes e tambm tornarem-se seus divulgadores foi um importante passo para as noes de liberdade individual e de democracia. A famosa primeira emenda Constituio Americana, de 1791, afirma: O congresso [...] no limitar a liberdade de palavra nem de imprensa. O artigo 11 da Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado, aprovada em 1789 pela Assemblia Nacional Constituinte da Frana, tambm declara: A livre comunicao de idias e opinies um dos direitos mais preciosos do homem. Todos os cidados podem, dessa forma, falar, escrever e imprimir com liberdade. A comunicao social massiva est relacionada, ento, com o processo de urbanizao acelerado durante o sculo XIX (HOHLFELDT, 2002). Nesse primeiro momento, a prtica do jornalismo na Europa assume duas caractersticas distintas: na Frana, predominou a face opinativa e, na Inglaterra, firmou-se um jornalismo objetivo (MARQUES DE MELO, 2006). Na matriz inglesa, fincou-se a noo de que os fatos so sagrados e que os jornais e jornalistas tm o dever de primar pela fidedignidade, exatido e preciso na narrativa dos mesmos. A opinio pode existir, desde que em um espao demarcado no jornal (MARQUES DE MELO, 2006). Com o passar do tempo, ambas as vertentes, francesa a inglesa, sofreram mutaes. O jornalismo pasquineiro, repleto de adjetivos e com linguagem virulenta foi a grande influncia dos primeiros jornais brasileiros. Mas a matriz objetiva acabou se sobrepondo e deu origem grande imprensa diria que conhecemos hoje, onde informao e opinio tm seus espaos delimitados; porm, cada vez mais cresce o posicionamento que considera essa objetividade um mito.

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Podemos afirmar, ento, que um dos principais impulsos iniciais da atividade jornalstica foram as disputas polticas, o que, na Provncia de So Pedro, no foi diferente. O processo de independncia e a consolidao do Estado Nacional brasileiro foi combustvel para a solidificao e a diversificao das publicaes no Brasil. Os grupos polticos passam a perceber e a utilizar a relao entre os peridicos e a opinio pblica, fomentando a atividade. Na Provncia de So Pedro do Rio Grande do Sul, o primeiro jornal, O Dirio de Porto Alegre, surge em 1827, patrocinado pelo presidente da Provncia, Salvador Jos Maciel e, de acordo com Francisco Rdiger (1998), a folha constitua no mximo um boletim oficial, que servia basicamente publicidade governamental e publicao dos atos da administrao. Para este autor, que entendemos compartilhar do olhar de Nelson Werneck Sodr, a doutrina e a opinio foram preponderantes na imprensa desde seu nascimento at a dcada de 30 do sculo XX, o que retardou, at essa data, a formao de um estatuto prprio para os jornalistas e jornais. Eles s conquistaram uma autonomia do processo poltico ao integrarem-se ao processo capitalista, ou seja, quando as redaes tornaram-se verdadeiras empresas, com carter lucrativo. Assim, para fundamentar seu estudo sobre a histria do jornalismo sul-rio-grandense, Rdiger (1998) tensiona, apoiando-se em Habermas, as concepes marxista e weberiana sobre a imprensa. A primeira a considera um produto direto do capitalismo; a segunda, um instrumento no processo de construo do Estado moderno. Habermas, aparentemente, combinou as duas concepes no clssico Mudana estrutural da esfera pblica (1962) (p. 14), ao afirmar que tanto a revoluo comercial quanto a ascenso da sociedade burguesa foram influncias decisivas para a publicao sistemtica de informaes. De forma que o Estado, com o intuito de se comunicar com a classe ascendente, foi o patrocinador dos primeiros jornais, gerando um processo de politizao da burguesia que fomentou o desenvolvimento de [...] uma imprensa crtica e independente que, no contexto mais geral de formao do capitalismo industrial, acabaria sendo pea essencial no ciclo das revolues burguesas (RDIGER, 1998, p. 14). No Brasil, o nascimento da imprensa ocorre sob esse mesmo modelo, ou seja, atravs da promoo do Estado, em

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1808, com a chegada de D. Joo VI ao pas, que passa a publicar, em setembro desse mesmo ano, a Gazeta do Rio de Janeiro. Mas o ttulo de primeiro jornal do Brasil do Correio Brasiliense, editado por Hiplito Jos da Costa, em Londres, e lanado em 1 de junho de 1808. Este objeto de diferentes interpretaes entre os estudiosos da imprensa brasileira. importante salientar que, nesse momento, e at 1821, quando Dom Pedro I decreta o fim da censura prvia, o uso da tipografia era uma prerrogativa oficial do Estado, o que justifica a sede inglesa do Correio. A ttulo de ilustrao, destacamos aqui as vises de Sodr (1999) e Juarez Bahia (1990) sobre nossos peridicos de estria. Para o primeiro autor, o Correio Brasiliense representava o ponto de vista da burguesia inglesa (SODR, 1999):

Representavam [refere-se ao Correio e Gazeta], sem a menor dvida, tipos diversos de periodismo: a Gazeta era embrio de jornal, com periodicidade curta, inteno informativa mais do que doutrinria, formato peculiar aos rgos impressos do tempo, poucas folhas, preo baixo; o Correio era brochura de mais de cem pginas, geralmente, 140, de capa azul escuro, mensal, doutrinrio muito mais do que informativo, preo muito mais alto. [...] Trata-se [referindo-se especificamente ao Correio], assim, de uma finalidade moralizadora e no modificadora, tica e no revolucionria (p. 22-23).

Bahia (1990) revela uma viso divergente de Sodr:

[...] durante quase quinze anos, Hiplito da Costa edita o Correio Brasiliense ou Armazm Literrio, em Londres, onde vive como exilado. Seu jornal moderno, dinmico, crtico. Mensrio, impe-se pela opinio e pela informao poltica. Costa tornou-se patrono da imprensa brasileira (p. 9). [...] [...] a Gazeta vai publicando interminveis relatos dos sucessos nas frentes portuguesa e espanhola, relacionando cansativos feitos dos valeroros soldados de Sua Majestade, pouco se dando vida local, enquanto o Correio Brasiliense exprime uma aguda viso crtica dos fatos polticos, econmicos e sociais que envolvem o Brasil (p. 14).

Essas amostras so indcio das diferentes interpretaes s quais a imprensa oitocentista no Brasil d a ler, o que provoca uma pergunta essencial

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para nossa dissertao: afinal, em que medida a relao dessas publicaes com os movimentos polticos poda a sua representatividade da realidade cotidiana6? Em outras palavras: ser que o discurso oficial, ou poltico, ou opinativo, ou publicista desses jornais, impediu que fossem representantes do cotidiano da sociedade em que estavam inseridos? No nosso entendimento, no. Na Provncia de So Pedro do Rio Grande do Sul, Rdiger (1998, p. 18-19) informa que, no curto espao de oito anos, entre o aparecimento do Dirio de Porto Alegre, em 1827, e o incio da Revoluo Farroupilha, em 1835, foram lanados 32 jornais. De forma generalizada, esses peridicos caracterizavam-se por um tamanho pequeno (28 X 18 cm), tiragem em torno de 400 exemplares, circulao de duas a trs vezes por semana, e venda feita atravs de assinaturas ou direto na tipografia. O contedo dos jornais era eminentemente poltico-partidrio e de linguagem [...] extremamente virulenta, no poupando idias, nem pessoas (p. 18). O autor informa que os homens de imprensa da poca no so propriamente os polticos, mas os donos de tipografia, que reuniam mltiplas funes (muitas vezes, todas as funes) na feitura dos jornais. Francisco das Neves Alves (2000) traz outros detalhes da figura que comandava a produo dos impressos:

Os escritores pblicos responsabilizavam-se por praticamente todas as tarefas ligadas elaborao dos peridicos, j que redigiam a notcia, selecionavam a transcrio, revisavam as provas, gerenciavam a tesouraria e a distribuio da folha e, em alguns casos, faziam mesmo, s vezes de tipgrafo, no intento de manter acesa a flama jornalstica que acompanhava as disputas polticas (ALVES, 2000, p. 19-20).

Os jornalistas (ou escritores pblicos, ou publicistas) movimentavamse de acordo com oportunidades de negcio, sem ter ligao poltica definitiva:

De fato, esses homens, como seu prprio tempo, no tinham um conceito preciso de jornalismo, restringiam sua atividade direo dos6

No sentido da Sociologia Fenomenolgica de Alfred Schutz, que aprofundaremos no captulo 3.

29 peridicos, confundiam as prticas editoriais com prestao de servios grficos e assim reduziam o periodismo transmisso de contedos com os quais propriamente no tinham preocupao (RDIGER, 1998, p. 22).

Baseando-nos

nas

caractersticas

apontadas

pelos

autores,

podemos afirmar que parte da historiografia no concede imprensa oitocentista o estatuto de jornalismo, assentando-o na noo de literatura pblica; e nem o ttulo de jornalista aos que a elaboraram, prevalecendo as noes de publicista ou escritor pblico. Essa abordagem apontou aspectos importantes da imprensa oitocientista, ao relacionar sua estreita vinculao com os modos de produo econmica e fazeres polticos da poca. Sem negar a precariedade tcnica e nem o contedo eminentemente poltico desses jornais, parece-nos que a leitura da imprensa oitocentista, de forma menos generalizada, pode levar a um novo tensionamento da abordagem do tema. Nesse sentido, o pesquisador admite que os jornais eram, sim, tribunas ampliadas, na expresso de Benjamin Constant (BAHIA, 1990, p. 36), mas conectados com a realidade social cotidiana na qual eram produzidos. O lugar da imprensa foi privilegiado nas discusses sobre os rumos da nao durante o perodo regencial. Como indica a anlise de Basile (2006), a virulncia da linguagem e a firmeza das posies polticas dos diferentes grupos que se manifestaram atravs da imprensa no foram capazes de calar uma vontade de integrao nacional e de reconhecimento e compartilhamento da heterogeneidade da nao brasileira. Assim, em sua feitura, tanto na forma quanto no discurso, esses impressos so portadores de vestgios da realidade cotidiana que d acesso ao pesquisador a uma certa sensibilidade, como afirma Pesavento (2008):

Capturar as razes e os sentimentos que qualificam a realidade, que expressam os sentidos que os homens, em cada momento da histria, foram capazes de dar a si prprios e ao mundo, constituiria o crme de la crme da histria, a meta buscada por cada pesquisador! Funcionaria como o reduto mais ntimo da enargheia, essa impresso de vida ou fora vital deixada pelos homens no mundo (p. 185-186).

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Os grandes feitos e os protagonistas j foram, de alguma forma, privilegiados, destacados das fontes primrias para a narrativa histrica. Resta, como aponta Barbosa (2004), abordar os annimos, as particularidades, o comezinho, os vestgios, os restos que o passado legou ao presente e que podem ilumin-lo.

1.3 IMPRENSA NA HISTRIA E HISTRIA NA IMPRENSA: MODOS DE LER

A imprensa, como fonte de conhecimento, vem sendo abordada de diferentes formas pelo campo cientfico. Passou de matriz da verdade falsificadora da mesma: em um momento de cunho historicista ou positivista da historiografia tradicional, os peridicos foram tratados como fontes privilegiadas, por constiturem uma porta de acesso do pesquisador verdade. Mais tarde, os estudos crticos enxergaram nos jornais a questo ideolgica e suas imbricaes socioeconmicas, abordando-os como reflexo de uma infra-estrutura e falsificadores da verdade (MOREL e BARROS, 2003, p. 8). Na atualidade, ocorre a renovao da importncia da imprensa como referencial interativo na complexidade de um contexto (MOREL e BARROS, 2003). Ela passa a ser considerada fonte documental (na medida em que enuncia discursos e expresses de protagonistas) e tambm agente histrico que intervm nos processos e episdios, em vez de servir-lhes como simples reflexo (p. 9). As pesquisas renovam, ento, o modo de ler os peridicos e sua relao com o contexto. O atual estudo dos primeiros jornais brasileiros, a partir da chegada da Famlia Real ao pas, em 1808, faz-se atravs de um olhar cultural, que serve tanto para o campo da Comunicao quanto o da Histria, ao redimensionar o objeto como fonte para as memrias de um tempo escoado7, apresentando vises distintas de um mesmo fato e despontando

7

Tempo escoado, na expresso de Sandra Pesavento: PESAVENTO, Sandra Jatahy. Fronteiras da histria: Uma leitura sensvel do tempo. In.: SCHLER, Fernando, AXT, Gunter e SILVA, Juremir

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como agente histrico que intervm nos processos e episdios, e no mais como um simples ingrediente do acontecimento (NEVES, 2006, p. 10). A historiadora e pesquisadora da Comunicao, Marialva Barbosa (2007), ao comentar a relao entre meios de comunicao e a histria, aponta um eixo de anlise que contempla, numa perspectiva histrica, as dimenses interna e externa do processo comunicacional, considerando a dimenso processual da histria e a comunicao como sistema, no qual ganha relevo o contedo, o produtor das mensagens e a forma como o pblico entende os sinais emitidos pelos meios (p. 16). Nessa perspectiva, o discurso da imprensa oitocentista passa a ser visto como um universo de possveis (BARBOSA, 2007, p. 15). Riopardense de Macedo (1994) percebeu e destacou esse universo sistmico, ao estudar a imprensa farroupilha:

fcil perceber que a imprensa, mesmo que esta seja oficial, rgo vinculado administrao, fornece tambm informaes de carter no administrativo. E entende-se que o peridico, mesmo quando propriedade de um indivduo ou grupo oligrquico, est envolvido por posies contrrias em relao a outros peridicos; alm disso, pela riqueza de informaes que obrigado a fornecer, no pode fugir ao clima geral dominante na poca. Porque, em verdade, o peridico vive realmente o clima, reproduz, mesmo que no queira, o calor dos acontecimentos, de vrios acontecimentos que se cruzam e se inter-relacionam em um sistema de informaes (p. 23-24, grifo do autor).

Assim, a nfase no atraso, na censura e no oficialismo como fatores explicativos dos primeiros tempos da imprensa, no parecem suficientes para explicar a complexidade e compreender as caractersticas de tal imprensa, gerada numa sociedade em mutao, do absolutismo em crise (MOREL, 2008, p. 1). Desta forma, entendemos que o nascimento dos peridicos no Brasil deuse em um rico caldo de cultura social, poltico, econmico e cultural, que teve como impulso inicial a chegada da Famlia Real portuguesa ao pas. Da para diante, os jornais, mesmo que de propriedade de governos ou representantes declarados de ideais polticos, sempre estiveram imbricados com a circulaoMachado da (Orgs.). Fronteiras do Pensamento Retratos de um mundo complexo. So Leopoldo: Ed. Unisinos, 2008.

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das idias e com a realidade cotidiana da sociedade, atravs de artigos de opinio, notcias, crnicas, poesias, anncios. Os papis incendirios8 foram constantemente alimentados pela lenha dos extraordinrios do dia-a-dia, e tambm pelas grandes transformaes sociais, como os movimentos pela independncia ou, mais tarde, a peleja entre o Imprio e os movimentos republicanos. No campo da Comunicao, o olhar mais abrangente sobre os jornais do sculo XIX, alm de permitir novas abordagens em relao ao discurso, ao texto que est posto, traz em si desafios epistemolgicos e metodolgicos relativos materialidade e organizao dos contedos dos impressos. Entre eles, est a questo: como definir parmetros tericos para analisar textos que so anteriores consolidao da Comunicao como disciplina cientfica e que, grosso modo, no se encaixam nas categorias do jornalismo tal como o conhecemos hoje? Tnia Regina de Luca (2008) cita, como exemplo dessas dificuldades, a consulta s edies em fac-smile do Correio Braziliense, jornal fundado por Hiplito Jos da Costa, de circulao mensal (entre junho de 1808 e dezembro de 1822):

O leitor acostumado aos matutinos atuais talvez se surpreenda com o formato, mais prximo de um livro, com o nmero de pginas, que podia chegar a 150, com a extenso dos artigos, que se prolongavam por vrios nmeros, e com a diviso interna da matria, que podia incluir as seguintes sees: poltica; comrcio e artes; literatura e cincias; miscelnea e correspondncia. H mesmo dvidas a respeito da melhor forma de caracterizar o Correio, no faltando aqueles que consideram mais apropriado cham-lo de revista (LUCA, 2008, p. 131).

Em vista desse estranhamento, produzido pelas distncias culturais e temporais entre o pesquisador e o objeto da pesquisa, pretendemos que um dos exerccios desta dissertao seja o tensionamento das categorias relativas materialidade e organizao dos contedos presentes no jornal O Povo. Ao

Referncia s primeiras manifestaes impressas ou manuscritas que, desde o sculo XVIII, na Frana, causavam comoo e disse-que-disse na vida urbana, manifestando uma noo de opinio pblica, na viso da historiadora Arlette Farge (Morel, 2003, p. 12).

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mesmo tempo que problematiza a questo, Luca (2008) apresenta alguns caminhos para elabor-la: [...] as diferenas na apresentao fsica e estruturao do contedo no se esgotam em si mesmas, antes apontam para outras, relacionadas aos sentidos assumidos pelos peridicos no momento de sua circulao (p. 132). Assim, torna-se importante, na anlise de um peridico da primeira metade do sculo XIX, de forma ainda mais profunda do que se tratssemos de um veculo contemporneo ao tempo vivido pelo pesquisador, o deslindamento das condies tcnicas de produo desses jornais e de sua funo social, dentro de aspectos como

[...] a forma como os impressos chegaram s mos dos leitores, sua aparncia fsica (formato, tipo de papel, qualidade da impresso, capa, presena/ausncia de ilustraes), a estruturao e diviso do contedo, as relaes que manteve (ou no) com o mercado, a publicidade, o pblico que visava atingir, os objetivos propostos (LUCA, 2008, p. 138 grifos da autora).

Esses elementos, entre tantos outros, contribuem para dotar o objeto de sentido, a fim de que se esclarea o lugar que o peridico ocupa em seu tempo, mas, tambm, para relativiz-lo em relao s perguntas desde o lugar do pesquisador. Da mesma forma, a questo da neutralidade e da objetividade permeia o uso dos textos de imprensa como fonte de pesquisa. No campo da Comunicao, como indica Marques de Melo (2006), a questo da objetividade da imprensa contempornea j no a mesma que se pretendia na modernidade inglesa ou francesa, pois parece estar restrita ao domnio de uma tcnica e, portanto, vive como que num campo apriorstico da atividade jornalstica. Sabemos que a neutralidade e a imparcialidade podem e/ou devem fazer parte do texto do jornalista, mas, em sua totalidade, so uma quimera. Assim, ao estudar qualquer tipo de texto ou discurso, devemos ter em mente que as ferramentas de anlise do pesquisador devem instrumentaliz-lo para lidar com essa realidade:Pode-se admitir, luz do percurso epistemolgico da disciplina [Histria] e sem implicar a interposio de qualquer limite ou bice ao uso

34 de jornais e revistas, que a imprensa peridica seleciona, ordena, estrutura e narra, de determinada forma, aquilo que se elegeu como digno de chegar ao pblico. O historiador, de sua parte, dispe de ferramentas provenientes da anlise do discurso que problematizam a identificao imediata e linear entre a narrao e o prprio acontecimento, questo, alis, que est longe de ser exclusiva do texto da imprensa (LUCA, 2008, p. 139 grifos da autora).

De forma que as noes de narrativa e de interpretao mostram-se essenciais no jornalismo e na histria. Pesavento (2006), ao analisar os discursos da histria e da memria, afirma que eles criam imaginrios de sentido a partir do real. Fices plausveis, verossmeis, socializadas, temporalizadas na sua feitura e na sua recepo. Palavras para crer (p. 6 grifo nosso). Da mesma forma, o discurso jornalstico configura, em seus modos de feitura e de leitura, palavras para crer, ou seja: aquilo que est posto nesse tipo de texto quer, sob uma srie de circunstncias, referir o real. E ele tambm lido de forma a referir o real e, nesse momento, tambm submetido a outras circunstncias que o recriam, torcem, ampliam, ficcionalizam, num processo catrtico (PESAVENTO, 2006). Barbosa sintetiza esse pensamento ao afirmar:

a partir de convenes culturais que classificamos os textos com pretenso verdade e os textos ficcionais. Devemos considerar, portanto, que todo texto estruturado de modo narrativo e, como tal, sujeito ao regime de interpretao que se aproxima das narrativas cotidianas com as quais estruturamos a nossa vida (2007, p. 20-21).

Assim, a histria ou o jornalismo, na medida em que esto impregnados pela ao humana, pelos contextos, pelos resultados, pelas finalidades, no podem romper com a narrativa. Tanto o passado longnquo, quanto os acontecimentos cotidianos de uma contemporaneidade, ao serem narrados, esto, irremediavelmente, no passado e no podem ser revividos, seno de forma discursiva. E ao terem contato com o leitor, esses discursos so novamente protocolados em uma tradio: as regras e os sentidos lingsticos, a cultura, o contexto, as experincias individuais.

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Marialva Barbosa e Ana Paula Goulart Ribeiro (2005), no artigo O que a histria pode legar aos estudos de jornalismo, realizam uma articulao entre as disciplinas, entendendo que elas, mesmo em suas diferenas, complementam-se. Os textos do jornalismo, em sua temporalidade, esto encharcados de conscincia do presente e, portanto, da conscincia da universalidade refletida (BARBOSA e RIBEIRO, 2005, p. 3). Nesse sentido, as autoras postulam que uma das maiores contribuies que a teoria da histria pode dar aos estudos de jornalismo o uso da viso crtica, que seria capaz de transformar sua teoria em uma ponte para o entendimento dos problemas do presente, assim como a histria o faz com os problemas do passado: A mesma viso crtica, se aplicada aos estudos do jornalismo, pode transformar sua teoria numa espcie de mdium para lidar com os problemas do presente (BARBOSA e RIBEIRO, 2005, p. 6). Assim, histria e jornalismo atuam num processo simbitico em que, para entender o passado, desvela-se, atravs dos peridicos, o que era presente; e para orientar o presente, busca-se no passado o caminho traado at aqui. Histria e jornalismo iluminam-se mutuamente. O leitor-pesquisador tambm faz parte desse jogo das narrativas e das interpretaes. J mencionamos que os peridicos assumiram diferentes funes em diferentes linhas de pesquisa cientfica. Da mesma forma, os impressos servem para responder perguntas distintas, localizadas no tempo em que o pesquisador vive. Percebemos que h, ento, um cruzamento de perspectivas temporais que devem ser consideradas pelo pesquisador ao estudar o tipo de narrativa jornalstica como o que nos propomos aqui, situada na primeira metade do sculo XIX: o tempo histrico em que o discurso foi produzido; o tempo escoado em que ocorreram os fatos que ele descreve (lembramos, os eventos no podem ser revividos); e o tempo da leitura do pesquisador, que abre a narrativa a todo um novo mundo de significados. Sobre este ltimo, Riopadense de Macedo (1994) afirma haver trs tipos de comportamento temporal do historiador: o tempo dos anais, em que o autor procura de todas as formas no ultrapassar as dimenses do fato histrico; o tempo do cronista, em que o autor acrescenta seu prprio conhecimento sobre os fatos; e o tempo histrico, quando levado em considerao o conhecimento sobre o que se passou depois dos eventos, estudando-os em

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uma perspectiva temporal. Barbosa (2004), ao indicar alguns caminhos para a escritura de uma histria da imprensa, toma de Paul Ricoeur a noo de que o passado tinha um futuro, e acrescenta que ns somos o futuro desse passado (p. 7). Assim, no cabe ao pesquisador cobrar, do alto do seu conhecimento posterior, um certo comportamento de suas fontes. Ao contrrio, a riqueza da contribuio da histria para o jornalismo, como j foi dito, reside na viso crtica que ilumina o presente e no no movimento inverso, que usa o presente para olhar o passado e encerrar os peridicos do sculo XIX no julgamento da censura, do oficialismo e da falta de objetividade. A autora sintetiza essa constatao em uma simplicidade cortante: Para eles, ns ramos o desconhecido, o futuro, o inteligvel. E eles para ns mortos que transformamos em vivos continuaro sendo sempre o passado, o desconhecido, o inteligvel (p. 10).

2 AS MLTIPLAS HISTRIAS DA REVOLUO FARROUPILHADe hoje em diante os Boletins das operaes de Campanha sero dados neste Jornal e s sero avulsos quando a matria ou circunstncias assim o exigirem; no s pela economia de papel e servios, como ainda para conhecimento de nossa Histria Militar, visto ser mais fcil a conservao de colees do jornal que a de 9 avulsos destacados.

A Revoluo Farroupilha, como episdio icnico da formao cultural, poltica e econmica de nosso estado, destaca-se pela multiplicidade de relatos e pelas diferentes metodologias utilizadas no tratamento das fontes. Como depreendemos da epgrafe, O Povo tinha noo de sua relevncia documental para o labor histrico. Em vista da vastido do tema, nosso objetivo, neste captulo, traar um panorama conciso do episdio, destacando aspectos do cotidiano da Repblica Rio-Grandense, alm de apontar algumas das abordagens para as quais ele j serviu de tema. Essa escolha se justifica pelo fato de que nosso objeto de anlise, o jornal O Povo, abordado aqui pelo vis da comunicao e seu discurso conectado com o cotidiano. Isso faz com que nossa anlise remeta reiteradamente a diferentes episdios que so, do ponto de vista do pesquisador, histricos, mas a busca de esclarecimento para esses eventos aparece a partir do prprio texto, em outras palavras, quando o texto pede. Assim, deixamos de lado o confronto de verses e optamos por basear este levantamento principalmente no trabalho de historiadores contemporneos no-filiados perspectiva tradicionalista (ou ao seu combate declarado) como: Sandra Pesavento (1985 e 1997), Moacyr Flores (1989, 1990, 2000, 2002 e 2008) e Ieda Gutfreind (1998), sem deixar de lado o9

O Povo, n. 67, p. 286.

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consagrado Histria da grande revoluo, obra em seis volumes publicada em 1933 pelo historiador Alfredo Varela e que ainda hoje considerada obra essencial para o estudo do conflito; alm do acessvel Histria da Repblica Rio-Grandense (1936), de Dante de Laytano. Em um primeiro momento, dedicaremo-nos a um levantamento de diferentes tendncias da historiografia sul-rio-grandense, dando destaque aos historiadores que se preocuparam com a Revoluo Farroupilha. Em seguida, contextualizaremos alguns detalhes da realidade cotidiana da provncia de So Pedro do Rio Grande do Sul, na primeira metade do sculo XIX (geografia, comrcio, dados populacionais, educao etc.), apoiando-nos, principalmente, na obra Repblica Rio-Grandense: Realidade e utopia, de Moacyr Flores (2002). Finalmente, estabeleceremos uma breve cronologia dos principais fatos que marcaram a Revoluo.

2.1 A HISTORIOGRAFIA SUL-RIO-GRANDENSE E A REVOLUO DE 1835

Combinando os trabalhos de historiografia de Gutfreind (1998) e Flores (1989), possvel produzir um sinttico, porm eficiente, panorama de algumas das tendncias de maior relevo daquilo que j se escreveu sobre a Revoluo Farroupilha. Gutfreind (1998), entendendo que o discurso histrico integrado s caractersticas de seu momento de produo e orientao intelectual, observa pelo menos duas grandes matrizes ideolgicas na historiografia rio-grandense: a platina e a lusitana. Na primeira, situam-se os historiadores que do nfase s relaes e influncias ibricas da regio do Prata na formao histrica da provncia, dando destaque importncia da rea das Misses Orientais e seus povoados jesuticos no sculo XVII. A matriz lusitana tende a minimizar a influncia platina, defendendo a supremacia da cultura portuguesa. Flores (1989), por sua vez, procura sistematizar as tendncias da elaborao do pensamento histrico (p. 11). Nesse sentido, divide a produo

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historiogrfica nas categorias: liberalismo, positivismo, determinismo sociolgico, historicismo, regionalismo e tradicionalismo, histria cultural, e materialismo histrico e situa, dentro de cada uma delas, os autores que julgou de maior destaque nessas determinadas tendncias. Duas grandes obras, consideradas de orientao lusitana por Gutfreind (1998), so as pioneiras da historiografia sulina. As Memrias ecnomo-polticas sobre a administrao pblica no Brasil, de Antnio Jos Gonalves Chaves, vieram a pblico em 1822. J Jos Feliciano Fernandes Pinheiro, o Visconde de So Leopoldo, publicou em 1839 os Anais da Provncia de So Pedro, considerada a primeira obra escrita sobre o Rio Grande do Sul. A matriz lusa, que se fortificou a partir dos anos 1920, retomou e reforou a tinta da maioria dos pontos de vista deste autor, exaltando as caractersticas de valentia e audcia dos conquistadores das Misses, ao mesmo tempo em que esmaecia as relaes com a rea platina. Outras publicaes marcantes so os relatos de viajantes, como o botnico e naturalista francs Auguste de Saint-Hilaire, que esteve na Provncia de So Pedro entre 1820 e 1821; Nicolau Dreys, que viveu como comerciante na regio, entre 1817 e 1825, e publicou, em 1839, Notcia descritiva da Provncia do Rio Grande de S. Pedro do Sul; e Arsne Isabelle, com o seu Viagem ao Rio Grande do Sul (1833-1834), publicado em 1835. Os relatos no constituem uma matriz historiogrfica, tal como a situa Gutfreind (1998), j que apresentam impresses pessoais desses viajantes europeus, os quais, na maior parte das vezes, tendem a analisar os fatos partindo dos estranhamentos oriundos do contraste com sua prpria cultura, e no do rigor da anlise de fontes primrias. Mesmo assim, oferecem ainda hoje, para os historiadores, muitos elementos para o entendimento da vivncia cotidiana na provncia e suas implicaes com o contexto, dando acesso a uma sensibilidade de poca. Saltando no tempo, a valorizao historiogrfica da ligao com o Prata ocorre a partir do final do sculo XIX, com a publicao de obras motivadas pelo esprito republicano (GUTFREIND, 1998): em 1882, vm a pblico Histria popular do Rio Grande do Sul, de Alcides Lima e Histria da repblica rio-grandense, de Joaquim Francisco de Assis Brasil. Em 1897, aparece Rio Grande do Sul: Descrio fsica, histrica e econmica, de Alfredo Varela. Em comum, os escritos apresentam a nfase na especificidade

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do Rio Grande do Sul, justificando a necessidade de um regime republicano e de laos federativos entre as provncias e, em graus diferenciados, destacavam relaes com a rea platina (GUTFREIND, 1998, p. 19). Alcides Lima defendeu as qualidades do povo sul-rio-grandense, salientou a influncia aoriana na composio da populao, alm de apresentar o ncleo social da estncia como o primeiro passo para a democracia. Assis Brasil aplicou o Mtodo de Taine (do influente historiador francs Hippolyte Taine, que viveu entre 1828 e 1893)10, produzindo sua anlise histrica atravs dos elementos meio, raa e momento. Destacou o carter altivo e corajoso do povo, determinado por elementos que vo da alimentao (a carne e o chimarro) at a influncia espanhola e a independncia econmica da provncia nas guerras de fronteira. Flores (1989) posiciona esses dois autores na tendncia liberal. O terceiro autor que d flego matriz platina, Alfredo Varela, destacado por Gutfreind (1998), por situar-se no momento em que o regime republicano j constitua uma realidade no Brasil, e fica clara, como aponta Flores (1989), a influncia positivista que se desenvolvia, em especial no governo do Rio Grande do Sul. Polemizou, ao defender a tese de que a Revoluo Farroupilha estava ligada aos movimentos platinos, afirmao que seus contemporneos rebatiam, localizando a inspirao dos farrapos na Revoluo Francesa. Deu nfase s biografias dos heris Bento Gonalves, Tito Livio Zambecari e Giuseppe Garibaldi, lanando mo de abundante documentao e do testemunho de descendentes dos farrapos. Tal como Alcides Lima e Assis Brasil, ressaltou a branda mistura racial na regio e a ntida diferena da paisagem sulina em relao ao restante do Brasil. Flores (1989) faz o seguinte comentrio sobre a obra de Varela:O texto em todas as obras confuso e descontnuo, a linguagem de epopia torna a leitura cansativa, as citaes fragmentadas de documentos nem sempre correspondem ao verdadeiro texto, pois o historiador muda palavras ao seu bel-prazer. As citaes de clssicos da literatura e da histria greco-romana quebram a continuidade, dando apenas demonstrao de erudio vazia. A grande utilidade de suas obras est na citao de documentos ao p da pgina, que paradoxalmente s vezes no correspondem interpretao dada por Varela (FLORES, 1989, p. 30).

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No Brasil, uma exemplar aplicao deste mtodo a obra Os sertes, de Euclides da Cunha (FLORES, 1989).

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Mesmo tecendo essa crtica, Varela uma das referncias bsicas de Flores, autor que se destaca pelo aprofundamento dos diversos significados da Revoluo Farroupilha, atravs de uma criteriosa e contextualizada anlise de fontes primrias. Entendemos, pelo olhar proporcionado atravs da nossa metodologia e tcnica de pesquisa, que ser discutida no captulo seguinte, que um texto comporta diversos possveis interpretativos e, por isso, consideramos importante ressaltar que, atualmente, a obra de Varela tem embasado um grupo de estudos de cunho separatista, chamado Pampa Livre, que se ocupou de digitalizar e disponibilizar na Internet11, de forma gratuita, todos os seis volumes da Histria da Grande Revoluo. Gutfreind (1998) identifica que as obras de Alcides Lima, Assis Brasil e Varela so marcadas pela influncia poltica do Partido Republicano RioGrandense e nota que, a partir de 1920, a orientao historiogrfica volta-se ao sentimento de brasilidade (p. 23), que demonstra um esforo para criar uma imagem do Rio Grande do Sul que se assemelhe do Brasil (p. 24). Nesse contexto, destaca-se o interesse dos historiadores pela renovao do olhar sobre o perodo da Revoluo Farroupilha, dada a relevncia do conflito na definio (ou na falta dela) da identidade rio-grandense frente s influncias platinas e brasileiras. Esse foco justificado, de acordo com Gutfreind (1998), pela luta do Rio Grande do Sul por um espao na poltica nacional, culminando com a Revoluo de 1930 e a chegada de Getlio Vargas ao poder. Os anos 1920 foram marcados pela refundao do Instituto Histrico e Geogrfico do Rio Grande do Sul (IHGRS), da qual participaram, entre outros, Florncio de Abreu e Silva, Emlio Fernandes de Souza Docca, Joo Pinto da Silva, Alcides Maya e os autores j citados: Alcides Lima, Joaquim Francisco de Assis Brasil e Alfredo Varela. Naquele perodo, fica clara a influncia do pensamento positivista entre os membros do Instituto, mas Gutfreind (1998) esclarece que

a caracterizao mais correta que se pode dar produo historiogrfica dos seus membros a do ecletismo terico, sem uma discriminao de filosofia especfica, comum a todos (...). Recusa-se a nomeao de11

No endereo www.pampalivre.info/alfredovarela/historia_da_grande_revolucao__alfredo_varela.htm.

42 historiadores positivistas para os membros do IHGRS, pois uma expresso homogeneizadora de um grupo que apresenta diversidades internas (p. 29).

Ainda de acordo com a autora, se no possvel aproximar a produo historiogrfica dos membros do IHGRS em torno de uma filosofia especfica, factvel agrup-los no esforo de projetar o Rio Grande do Sul no Brasil e na relevncia dada ao espao geogrfico na formao do estado sulino. Ao lado de Alfredo Varela, Rubens de Barcellos e Joo Pinto da Silva so autores que do espao influncia platina na constituio do Rio Grande do Sul, e isso foi suficiente para criar polmica com a matriz lusitana. Joo Pinto da Silva, autor de Histria literria do Rio Grande do Sul (1924) e de A Provncia de So Pedro (1930), coloca a situao de fronteira como decisiva na fisionomia histrica do Rio Grande e, assim como Varela, v o embrio de uma sociedade democrtica no nas estncias (como afirmou Alcides Lima), mas nos acampamentos militares. Considerou o separatismo apenas terico e viu no gacho sul-rio-grandense semelhanas e diferenas em relao ao gacho platino, principalmente no que diz respeito ao caudilhismo, prtica que considerou inexistente no Rio Grande. Flores (1989), insere o trabalho de Rubens de Barcellos na linha do determinismo sociolgico, com influncia do pensamento de Durkheim, o que trouxe poucas mudanas ao fazer histrico: a influncia do meio geogrfico passou a ser substituda pelo determinismo dos fatos sociais (FLORES, 1989, p. 41). A obra de Barcellos tambm confere forte valor situao de fronteira e ressalta a predominncia da ascendncia aoriana sobre a populao. Nesse sentido, destaca a existncia de uma dicotomia entre a campanha e a cidade: a primeira aproximando-se do Prata e a segunda dando continuidade aos laos portugueses. Essa comparao entre a cidade e o campo bastante caracterstica do pensamento da poca, quando se destaca a obra Facundo, do argentino Domingo Sarmiento (GUTFREIND, 1998). Barcellos tambm minimiza o separatismo, considerando-o apenas um expediente para o alcance da Repblica: a Revoluo Farroupilha no difere dos demais levantes das provncias perifricas durante o perodo regencial. Em 1925, atravs dos

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peridicos, Barcellos polemizou com Paulo Arinos, pseudnimo de Moyss Vellinho, a respeito da obra literria de Alcides Maya, o que provocou tomada de posies entre os intelectuais, e mostra a forte efervescncia nas discusses sobre a cultura rio-grandense. Mansueto Bernardi, jornalista, poeta e funcionrio da Livraria do Globo, foi um expoente dessa conscientizao sobre a importncia do debate acerca dos temas regionais e, ainda mais, da tomada de uma posio mais efetiva do Rio Grande do Sul no panorama brasileiro (GUTFREIND, 1998), fato que, discursivamente, apontou para textos polticos e histricos de cunho conciliatrio. Esse panorama deu fora matriz lusitana, que teve como expoentes Aurlio Afonso Porto, Emlio Fernandes de Souza Docca, Othelo Rosa, Moyss Vellinho, Dante de Laytano e Walter Spalding. Aurlio Porto, em seus primeiros escritos, filia-se matriz platina, destacando essa influncia na Revoluo Farroupilha. A partir da segunda metade dos anos 1930, dedicando-se ao estudo da regio das Misses, o autor parece mudar de opinio e passa a afirmar que o ponto em comum entre platinos e rio-grandenses era a presena indgena, suficiente para explicar as semelhanas entre os dois povos. Sobre a Revoluo Farroupilha, destacou o sentimento de brasilidade dos rio-grandenses, decisivo para a assinatura da paz com o Imprio. As pesquisas de Aurlio Porto resultaram na publicao de comentrios junto aos trs volumes do Processo dos farrapos e nos quatro volumes dos Anais do Itamaraty, que, somados, compem a srie Farrapos. No plano nacional, o autor contou com a grata contribuio de Alcides Bezerra, que tratou de aproximar a Revoluo Farroupilha dos levantes ocorridos no nordeste, integrando-a a uma perspectiva de construo da Repblica brasileira e redirecionando os valores que indicavam o separatismo, apontando-os para um patriotismo profundo (GUTFREIND, 1998). Porto, apesar de afirmar como seu intento a divulgao de um Rio Grande do Sul culto, cavalheiresco e elevado culturalmente, acabou por oferecer, em sua obra, uma imagem bastante tradicional, a do gacho da campanha: cavaleiro, belicoso, destemido. Em 1937, faz outra importante contribuio para o registro da histria do estado, com a publicao de dois grandes volumes intitulados

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Terra farroupilha, onde, mais uma vez, procura destacar os aspectos lusitanos e brasileiros de nossa formao. O militar Emlio Fernandes de Souza Docca foi contemporneo de Aurlio Porto e compartiu com ele a viso abrasileirada da histria sul-riograndense. Sobre o tema da Revoluo Farroupilha, polemizou com Alfredo Varela, que lanou a sua Histria da grande revoluo em 1933, s vsperas do centenrio do conflito e concomitantemente ao governo do gacho Getlio Vargas, provocando artigos assinados por Docca na revista do IHGRS que condenavam a viso separatista e platina da histria do Rio Grande do Sul (GUTFREIND, 1998). Publicou, em 1935, O sentido brasileiro da Revoluo Farroupilha, onde afirmou que os revolucionrios sul-rio-grandenses foram inspirados pelo processo de independncia norte-americano. Nas tendncias apontadas por Flores (1989) foi classificado como positivista, o que se justifica pelo uso da trade de Taine e a crena absoluta nos documentos como fonte da verdade, mas apresentou em sua obra um forte ecletismo, aproximando-se, inclusive, da psicologia e da hereditariedade de Gustave Le Bon. A peleja entre Varela, Souza Docca e Othelo Rosa (outro historiador da vertente lusitana) foi forte, pois, apesar de todos serem homens de seu tempo e influenciados por uma mesma gama de fatores (classe social, orientao filosfica, contexto poltico, fontes), as concluses de Varela no eram convenientes aos interesses do Rio Grande do Sul da poca. O momento histrico exigia outras respostas, e estas foram dadas por Aurlio Porto, Souza Docca, Othelo Rosa e Moyss Vellinho (GUTFREIND, 1998, p. 169). Essa resposta era a total coeso entre a identidade sul-rio-grandense e a identidade brasileira. O pice da matriz lusa aconteceu atravs do trabalho de Moyss Vellinho. Supera a viso de seus colegas Aurlio Porto e Souza Docca, ao afirmar que o Rio Grande do Sul no se tornara brasileiro por opo, mas sim por vocao histrica (GUTFREIND, 1998). Em Captania DEl-Rei, publicado pela primeira vez em 1964, e dedicado a Othelo Rosa (companheiro de IHGRS e de lusitanismo), Vellinho (1970), em um texto claro e bem articulado, volta o componente militar-fronteirio da Provncia de So Pedro, mesmo durante a

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Repblica Rio-Grandense, para um sentimento agregador, e no separatista, em relao ao Imprio:

Encarados os fatos substancialmente e no apenas em suas aparncias, o Rio Grande do Sul nunca se sentiu em si prprio uma unidade, uma circunscrio desgarrada do corpo nacional. Nem mesmo, como j foi demonstrado tantas vezes, durante a vigncia da Repblica de Piratini. Uma coisa, com efeito, nunca foi possvel erradicar do corao dos Farrapos: o sentimento de sua condio de Brasileiros, condio to marcada pela presena de uma fronteira que havia cem anos vinha sendo asperamente disputada palmo a palmo. Por isso mesmo deixa de soar como um paradoxo a observao de que entre os rebeldes eram mais agudas que entre os responsveis pela defesa das armas imperiais as suscetibilidades em face dos vizinhos. Ao que o governo do Centro no recuou de contratar mercenrios para o exrcito de represso, indo mesmo ao lamentvel extremo de tentar uma aliana com Rosas contra o Rio Grande rebelado, os Farrapos preferiram depor as armas ao aceitar, mesmo na desgraa, a ajuda que lhes oferecia o tirano argentino. E a recusa foi formalizada sob a expressa e solene invocao de que seus sentimentos de brasileiros primavam sobre quaisquer consideraes de carter ideolgico (VELLINHO, 1970, p. 717-172, grifo nosso).

Flores (1989) destaca outras importante caractersticas da obra de Vellinho, a quem classifica como determinista sociolgico: a excluso do captulo das redues jesuticas como parte da histria sul-rio-grandense, considerando-as um embrio de imprio teocrtico (p. 49); a omisso da participao do negro ou do ndio na formao do Rio Grande do Sul; a inexistncia de oposio entre a cidade e o campo (ou entre a barbrie e a civilizao), especialmente durante a Revoluo Farroupilha, dada a relevncia da pecuria como atividade econmica. Vellinho foi um intelectual bastante ativo, participando da Revoluo de 1930 e da poltica, em nvel estadual e federal, ocupando-se de levar seus textos ao grande pblico: foi criador e dirigiu a revista Provncia de So Pedro e colaborou regularmente com textos para o jornal Correio do Povo. Envolveu-se em acalorados debates com historiadores de matriz platina sobre a pertinncia do tratamento de Sep Tiaraju como heri rio-grandense, ocasio na qual se manifestou veementemente contrrio a essa perspectiva, tanto pelo seu lusitanismo, quanto por suas convices anticlericais.

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Acumulando a funo de crtico literrio, Vellinho conviveu, ao mesmo tempo em que procurava defender uma viso otimista do gacho riograndense (e importante diferenci-lo do gaucho malo, ou do gacho platino12), com um intenso movimento literrio que abordava, justamente, a decadncia do gacho da Campanha. o caso de Cyro Martins e a sua trilogia do gacho a p: Sem rumo (1937), Porteira fechada (1944) e Estrada nova (1953):

Relacionando a literatura e a histria, pode-se afirmar que nunca a literatura foi to histrica quanto neste momento, no sentido de aproximao com a realidade concreta sulina. Enquanto a preocupao de Moyss Vellinho e de seus colegas historiadores se limitava a diferenciar o gacho rio-grandense de seu congnere platino, invocando suas origens, a realidade presente vivida por essa populao estava sendo trabalhada na literatura (GUTFREIND, 1998, p. 128).13

Sobre a Revoluo Farroupilha, Vellinho considerava a rebelio como um ato de desespero da Provncia, circunstancial, totalmente enquadrado no contexto das revoltas que ocorreram em outras regies abandonadas pela Corte, durante o perodo regencial. No dedicou estudo especfico ao tema, tratando com naturalidade a abordagem j consolidada por seus companheiros de frente lusitana (GUTFREIND, 1998). Sobre o consagrado Varela, o autor reconhecia sua obra pela importncia quantitativa, demonstrada pela enorme quantidade de dados levantada, mas, qualitativamente, estava seguro de que poucos teriam lido a obra pelo seu pssimo estilo (GUTFREIND, 1998, p. 144). Por sua extenso e diversidade, a obra de Vellinho permeada por algumas contradies ou idiossincrasias, pois, como aponta Gutfreind (1998): dizia-se contrrio ao positivismo, mas continuou o discurso de Othelo Rosa, notrio positivista; criticou Varela, mas o usou como fonte; negava determinismos geogrficos, mas valorizava o papel da fronteira na histria.Augusto Meyer, no ensaio Gacho: Histria de uma palavra, aponta com estranhamento a ausncia do termo gacho no cancioneiro farroupilha. Gomes (2009) dedicou-se a entender os diferentes significados atribudos a esta palavra atravs da literatura e dos relatos de viajantes do sculo XIX, concluindo que, at a publicao de O gacho, de Jos de Alencar, em 1872, o uso do termo era tomado em sentido pejorativo, sendo mais comum o uso da expresso monarca das coxilhas para o gacho altivo e corajoso que entendemos na contemporaneidade. No perodo da Revoluo Farroupilha, o gacho era o vagabundo dos campos, ladro, homem rude e selvagem, o inimigo do Prata. 13 Essa constatao j havia sido colocada por HOHLFELDT (1982), na obra O gacho: Fico e realidade, onde afirma que Cyro Martins completou a (in)voluo do mtico personagem gacho.12

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Nenhum desses fatores minora sua obra, apenas nos fazem entender, mais uma vez, o quo variados so os fios tramados no tecido da historiografia sulrio-grandense. A questo da influncia platina, esmaecida durante algum tempo, voltou a ter espao atravs do trabalho de Manoelito de Ornellas, com a obra Gachos e bedunos (1948), na qual enfatizou a interpenetrao lusoespanhola no territrio do pampa, colocando o gacho como um ser supranacional, alm de destacar a influncia rabe que, atravs da Espanha e de Portugal, espalhou-se pelo Brasil, traando um paralelo entre o gacho e o beduno. A hiptese conciliadora, influenciada por Gilberto Freyre, sofreu diversas crticas, entre elas, alguns textos de Moyss Vellinho na Provncia. At aqui, pelo panorama apresentado por Gutfreind (1998) e Flores (1989), a produo historiogrfica sul-rio-grandense foi fortemente marcada por uma discusso de cunho nacionalista: parece-nos que o grande desafio foi definir uma identidade, ao povo do sul, que correspondesse mais ou menos identidade brasileira. O tema do separatismo, que teve na Revoluo Farroupilha seu maior destaque e foco de discusso (ao lado da questo missioneira, que tambm teve grande relev