entre a casa e a rua: cultura, espaÇo e consumo … · prof. dr. donaldo de souza dias...
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ENTRE A CASA E A RUA:
CULTURA, ESPAÇO E CONSUMO EM SHOPPING CENTERS
LUIZ ANDRÉ GAZIR MARTINS SOARES
UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro
COPPEAD - Instituto de Pós-Graduação e
Pesquisa em Administração
Orientador: Prof. Dr. Everardo Rocha
Rio de Janeiro
2000
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ENTRE A CASA E A RUA:
CULTURA, ESPAÇO E CONSUMO EM SHOPPING CENTERS
Luiz André Gazir Martins Soares
Dissertação submetida ao corpo docente da Universidade Federal do Rio de
Janeiro como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre.
Aprovada por:
_________________________________ Presidente da Banca
Prof. Dr. Everardo Rocha (COPPEAD/UFRJ)
_________________________________
Prof. Dr. Donaldo de Souza Dias (COPPEAD/UFRJ)
_________________________________
Prof. Dr. Jose Carlos Rodrigues (PUC-RIO)
_________________________________
Prof. Dra. Ana Carolina P. Duarte da Fonseca (FACC/UFRJ)
Rio de Janeiro, 2000
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SOARES, Luiz André Gazir Martins
Entre a Casa e a Rua: Cultura, espaço e consumo nos
shopping centers / Luiz André Gazir Martins Soares. Rio de
Janeiro: COPPEAD/UFRJ, 2000.
X, 120p. Il.
Dissertação - Universidade Federal do Rio de Janeiro,
COPPEAD.
1. Marketing. 2. Consumo. 3. Antropologia. 4. Tese
(Mestrado - COPPEAD/UFRJ).
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À Michele, pela cumplicidade a todo momento e pelo
sonho realizado de me fazer pai.
À Luiza, por trazer mais um sorriso para o nosso lar e
mais um ponto-de-vista para nossas vidas.
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AGRADECIMENTOS
Ao Professor Everardo Rocha, pelos conselhos amigos e prestativos sob a forma
institucional de orientação.
À Professora Heloísa Leite, da Coppead, por me fazer enxergar o shopping
como objeto e por explicitar, em todos os momentos, que doutores não se
formam necessariamente por titulação acadêmica.
À Professora Laura Graziela Gomes, da UFF, pelos valiosos bate-papos que me
auxiliaram a recortar melhor o objeto em questão.
Aos meus amigos Vitor Taublib, Chico Pires, Maurício Portela, Cíntia Soares e
todos os companheiros da Coppead, pelo período de convivência que trouxe
consigo "a dor e a delícia" de trabalhar e discutir a multidisciplinaridade.
À Cida, Eva, Carlos, Elza, Vera, Dilze e todos os outros que, meio que nos
bastidores, erguem a instituição Coppead.
À Marta, Rachel e a todo o pessoal da Cantina da Coppead, pelo sorriso
acolhedor no simples cotidiano de feijão com arroz e frango grelhado.
À minha família, Anamaria, Guto, Maria Edith e Orlando pelo carinho perene.
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SOARES, Luiz André Gazir Martins. Entre a Casa e a Rua: Cultura, espaço e
consumo nos shopping centers. Orientador: Everardo Rocha. Rio de
Janeiro: COPPEAD/UFRJ, 2000. Diss.
Esta dissertação procura compreender de que modo o espaço de
consumo shopping center no Brasil assume uma dinâmica espacial que pode
ser analisada à luz da clássica dicotomia estabelecida por Roberto DaMatta
entre casa e rua, compreendidas então como diferentes categorias morais no
estudo das especificidades da cultura brasileira.
O trabalho retrata algumas teorias que tratam o consumo e o espaço a
partir de uma perspectiva antropológica, assim como realiza um estudo a
respeito dos shoppings no Brasil. Foi realizada uma etnografia no Madureira
Shopping Rio, situado no Rio de Janeiro, com a finalidade de entender como a
percepção dos atores sociais, em especial os jovens, se mostrava influenciada
ou compatibilizada, mesmo que indiretamente, com a discussão casa e rua.
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SOARES, Luiz André Gazir Martins. Entre a Casa e a Rua: Cultura, espaço e
consumo nos shopping centers. Orientador: Everardo Rocha. Rio de
Janeiro: COPPEAD/UFRJ, 2000. Diss.
This dissertation tries to understand how can the shopping centers be
analysed according to Roberto DaMatta`s distinction between home and
street (casa e rua), important spacial and moral notions in the study of the
particularities of Brazilian culture.
It starts by reviewing some anthropological theories and concepts of
space, consumption and identity, considered as important ideas for the study os
shoppings in Brazil. An etnographic research took place in Madureira Shopping
Rio, in Rio de Janeiro, working with the perception of the social actors involved.
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"Há uma casa brasileira desenvolvida através do tempo que marca
a existência histórica do Brasil, que é muito menos criação de
arquitetos eruditos ou de artistas individuais do que expressão
coletiva, anônima"
Gilberto Freyre,
antropólogo
"Tem sentido não poder fotografar o shopping. Se alguém ficar
parado em frente a sua casa tirando foto, você não vai
desconfiar? Aqui é a mesma coisa."
Luiz Antônio de Mendonça Lopes,
supervisor do Madureira Shopping
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO .......................................................................... 1
2 PRODUÇÃO E CONSUMO: UMA PROBLEMÁTICA OCIDENTAL .......... 6
3 ANTROPOLOGIA E CONSUMO: POR TRÁS DAS COMPRAS ............... 18
4 SHOPPING E CONSUMO: ENTENDENDO O "TEMPLO" ................... 34
5 ESPAÇO E CONSUMO: A CASA, A RUA E O SHOPPING .................. 44
6 METODOLOGIA .......................................................................... 64
7 ESTUDO ETNOGRÁFICO: MADUREIRA SHOPPING RIO .................. 75
8 CONCLUSÃO E SUGESTÃO PARA PESQUISAS FUTURAS ................. 95
9 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................. 99
ANEXOS ............................................................................................. 105
Anexo 1: Localização do Madureira Shopping ...................................... 105
Anexo 2: Entrada principal .................................................................. 107
Anexo 3: Autorização para fotografar o Madureira Shopping ................ 109
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Anexo 4: Praça de Alimentação do 3º piso ............................................ 111
Anexo 5: Fraldário .............................................................................. 113
Anexo 6: Lanchonete no "Philadelfia Games" ........................................ 115
Anexo 7: "Labirintus", local de entretenimento para as crianças ........... 117
Anexo 8: Ficha da Campanha Publicitária do Madureira Shopping .......... 119
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1 INTRODUÇÃO
Esta dissertação tem por objetivo trazer evidências de que o
entendimento das questões culturais colabora em muito com o estudo do
comportamento do consumidor. Em nosso trabalho, especialmente,
compreendendo a forma pela qual os shopping centers engendram um novo
tipo de sociabilidade nas localidades em que surgem, os profissionais de
marketing têm um diferencial na análise da influência desses espaços na lógica
de consumidores de produtos tangíveis e intangíveis. Estamos voltados para o
entendimento das relações que se estabelecem no shopping center, bem como
para as disposições de significado que remodela e/ou inaugura, compreendidas
dentro de uma dinâmica de apropriação do meio ambiente.
Mais especificamente, nossa finalidade maior reside em entender
atualmente o espaço de consumo shopping center como uma oposição radical à
idéia original dos shopping centers norte-americanos, já que vem deixando de
ser encarado como um local onde consumir significa apenas uma atividade de
abundância ou uma mera prática física e passa a servir de palco para a
sociabilidade relacional e local. O que impulsiona grupos de jovens ou
"caminhantes solitários" sem dinheiro nos bolsos a observar no shopping um
local agradável e referencial?
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Desde o momento em que um shopping center começa a ser construído
até o momento em que efetivamente oferece seus produtos e serviços, uma
série de questões passa a merecer um cuidado mais detalhado.
A abordagem desse espaço como sendo um "templo" onde o consumo
implica em gastar ou esgotar recursos (posicionado como variável dependente
da produção) é insuficiente e, sobretudo, reducionista. Além disso, a pessoa
jurídica shopping center, com proprietários privados, enquadra-se de igual
maneira como um espaço público à medida que o acesso às suas dependências
é universal. Ressaltamos a observação de um novo tipo de consumidor, que
agora "vê a localidade" por outros olhos: os espaços públicos da cidade -
antigamente, as ruas e as praças - tidos como espaços de convivência coletiva
são substituídos por espaços privatizados. Acompanhando esses novos espaços,
uma nova constituição do meio urbano: o shopping center interioriza uma série
de comércios e serviços, o que implica em novas concepções de espaço e
sociabilidade. Nossa atenção se concentra especialmente no Madureira
Shopping Rio, situado na zona norte do Rio de Janeiro.
Analisando a partir da dicotomia estabelecida por Roberto DaMatta, o
espaço de consumo shopping center deixa de ser "rua" (dominado pelo
legalismo de mercado, expresso através da centralidade do consumo material)
para se tornar casa (familiaridade e pessoalidade expressas através da
centralidade lúdica do entretenimento). Nossa exploração parte da noção de
que esse novo conceito de shopping center representa uma projeção da casa
na rua, ritualizando o espaço público através dos significados de um ambiente
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caseiro. Ou seja, muito do que os shoppings apresentam como atributos de
atração ou retenção de freqüentadores podem obter sucesso por estarem
"funcionando" dentro do lógica cultural estabelecida pela casa e pela rua.
Algumas questões retratam bem as razões que nos motivaram a estudar
as ligações entre cultura, espaço e consumo em um shopping center, as quais
tratamos de maneira detalhada ao longo dos capítulos que compõem esse
estudo.
No segundo capítulo, damos uma atenção especial à separação histórico-
cultural que caracteriza o modo de vida das sociedades ocidentais. Falando
sobre produção e consumo, procuramos, ao invés de tratar unilateralmente
esses elementos como fases distintas e consecutivas de um processo racional
econômico, sobretudo discutir as razões culturais que nos motivaram a
considerá-los dessa forma.
O capítulo 3 apresenta parte da produção teórica da Antropologia que se
dedica ao estudo do consumo (ainda uma área com poucos estudos, dada sua
pouca idade em relação aos objetos "tradicionais"), procurando entendê-lo
como um fenômeno ligado à comunicação, classificação e/ou subjetividade.
Também confrontamos a perspectiva antropológica acerca do consumo com
outros tipos de construção do saber. É uma capítulo especialmente relevante
para os conhecimentos de marketing pois demonstra que o consumo é uma
atitude cultural.
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Nos capítulos 4 e 5, há uma dedicação específica ao estudo dos
shoppings enquanto espaços de consumo. Em primeiro lugar, levantamos as
noções do que vem a ser um shopping e como tem sido seu desempenho no
Brasil, atentando para as atuais tendências de reposicionamento em direção à
lazer e entretenimento; em seguida, analisamos o shopping a partir da
classificação espacial casa e rua e trazemos alguns estudos etnográficos já
realizados em shopping centers brasileiros.
Finalmente, o estudo particular do Madureira Shopping Rio encontra-se
nos capítulos 5 e 6; no primeiro, traçamos um histórico e discutimos a
importância da realização de uma etnografia, técnica emprestada da
Antropologia, para então demonstrá-la no capítulo posterior.
Trata-se de um estudo relevante para a produção do conhecimento em
Administração e Antropologia, pois submete o objeto ao campo da
interdisciplinariedade ao invés de "loteá-lo" como propriedade de uma área
específica do saber; de igual importância para a ABRASCE e para os
investidores, proprietários e construtores de shopping centers, uma vez que
lhes proporciona uma maior clareza a respeito dos possíveis problemas que
envolvem as noções de consumo, territorialidade e sociabilidade.
Por último, é relevante para todos aqueles que, estejam ou não na
academia ou em ambiente profissional, já se sentiram um dia atraídos pelos
shoppings ou por seus atributos simbólicos. Sem qualquer juízo ou
desmerecimento de outras áreas que também estudam o tema, esse estudo é
sobretudo um auxílio para que o assunto não seja tratado por perspectivas
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únicas. A lógica de funcionamento do varejo, por exemplo, é essencial para o
sucesso daqueles que se envolvem na gestão de shoppings, porém não é
suficiente. Da mesma forma, os antropólogos, em sua maneira de olhar para a
realidade, não podem gerir shoppings. Nossa intenção é demonstrar a
importância que o instrumento etnográfico possui sobretudo para uma melhor
compreensão da lógica dos consumidores e para uma melhor atuação gerencial
de seus gestores.
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2 PRODUÇÃO E CONSUMO: UMA PROBLEMÁTICA OCIDENTAL
Uma vez que determinados espaços são destinados à atividade de
consumo nas sociedades modernas, especialmente os shopping centers, torna-
se essencial o entendimento daquele fenômeno enquanto prática que se
comunica simbolicamente com o mundo no qual vivem os consumidores e que
sobretudo faz com que esses de alguma forma se relacionem. Assim sendo, por
trás das simples compras materiais e dos passeios descompromissados nos
shoppings, existe a contínua construção do "mundo do consumo", ou seja, um
universo de comunicação e classificação, motivado ou não por razões
subjetivas, que não pode ser meramente entendido como algo que represente
uma espécie de desdobramento do "mundo da produção". É a minha intenção
retratar aqui o consumo, tal como podemos entendê-lo com a ajuda particular
das lentes das ciências sociais, especialmente a sociologia e a antropologia.
É possível constatar que grande parte das narrativas sobre a sociedade
capitalista ocidental possui um elemento em comum: todas posicionam a
produção como sendo a razão maior de nossa existência, ocupando a posição
central em um sistema onde o trabalho é o elemento que enobrece e dignifica o
homem. Dessa forma, existe um vasto campo de produção do conhecimento
acerca do tema: uma historiografia da produção, uma ciência política da
produção, uma teoria econômica da produção. Através de um intenso processo
de valorização cultural da produção, justificada sempre com premissas
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racionalmente inquestionáveis, deixamos de lado um outro aspecto de igual
importância: o consumo, que assumiu durante o desenvolvimento do
capitalismo um verdadeiro caráter pejorativo. Em outras palavras, consumir
sempre foi visto como algo negativo, diminutivo e em contraposição ao
potencial produtivo que, até então, acreditava-se inerente ao próprio homem.
O contato de uma sociedade com essas características com outros tipos
de sociedade pode ser sintetizado historicamente como um contato de anulação
das diferenças, sempre de um ponto de vista destrutivo. Rocha (1995a, p.123),
analisando tal contato, acredita que existem certos pontos dos quais a
sociedade capitalista não abre mão quando cruza sua visão de mundo com
outras concepções; "(...) em outras palavras, é impossível negociar quando está
em jogo uma concepção que discorde de que a natureza (...) deva cumprir um
destino de se transformar em riqueza". Outros três elementos acompanhariam
e celebrariam uma versão completa da chamada "sociedade moderna-
industrial-capitalista": a existência do Estado como um poder separado da
sociedade civil, a preponderância do indivíduo como valor central, em
contraposição à coletividade, e uma concepção de tempo histórico linear.
É necessário ressaltar aqui o processo histórico-cultural de construção da
sociedade capitalista: seu mito de origem é a Revolução Industrial. É a partir
dela que passou a fazer sentido trabalhar e acumular e, consequentemente,
naturalizar essas duas atitudes como sendo as diretrizes básicas da vida
humana. São, entretanto, atitudes esperadas dentro de um contexto cultural
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específico. Não são retratadas da mesma forma central e nem mesmo implicam
invariavelmente em uma mesma racionalidade em todas as sociedades
humanas. Como descreve Sahlins (1979, p.188), "(...) a produção (...) é algo
maior e diferente de uma prática lógica de eficiência material. É uma intenção
cultural". Assim, a questão antropológica não está em ser ou não produtivista,
mas em assegurar que necessariamente não existem meios mais corretos ou
justos de se encarar a vida, apenas meios diferentes; a existência da vida é
sobretudo a existência contínua de uma produção simbólica e, nesse sentido, a
especificidade ocidental estaria na institucionalização do processo simbólico,
disfarçado na forma da produção.
A força do simbólico seria de tal tamanho que levou Sahlins (1988) a
relativizar os efeitos do capitalismo em outras sociedades. Pois, se é bem
verdade que historicamente é possível verificarmos a alta correlação entre
colonização e etnocídio, também é possível pensar que tais sociedades
ritualizaram o capitalismo de uma forma bastante singular, ou seja, realizaram
uma verdadeira leitura significacional das leis de dominação capitalista,
interpretando-as de acordo com uma rede própria de significação. Para Sahlins
(1988, p.53), "(...) os efeitos específicos das forças materiais globais dependem
dos diversos modos como são mediados em esquemas culturais locais". Assim,
explica-se a forma pela qual, no século XVIII, as mercadorias inglesas que
aportavam nas Ilhas Sandwich eram recodificadas como benefícios divinos,
criando não a esperada adjacência havaiana ao capitalismo, mas sim o
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fortalecimento da simbologia ligada às representações pertinentes ao sistema
local de trocas cerimoniais.
Essa ilustração evidencia, antes de mais nada, as causas pelas quais
somos inevitavelmente etnocêntricos: tendemos a ver a diferença sempre como
algo estranho e inesperado; não satisfeitos, ainda a interpretamos somente
dentro daquilo que nos é simbolicamente possível cogitar. Somente para nós,
ocidentais e produtivistas, faz sentido pensar que os índios que trocavam suas
valiosas madeiras por espelhinhos estavam perdendo; avaliando pelos valores
de uso e troca, noções moldadas pela economia ocidental, é claro que as
madeiras ocupam uma posição de destaque dentro da razão pela qual
racionalmente nós a utilizamos: tingir tecidos, gerar energia, enfim, vestir a
roupagem ocidental de natureza e dar continuidade à produção. Os índios, por
sua vez, encaram aquela troca por outro ângulo, pois atribuem diferentes
significados aos objetos em questão e têm outros modos de avaliar a troca, o
que não significa que sejam mais ou menos corretos, mais ou menos
vencedores, se é que pensam supostamente em correção e ganho econômico
nas trocas.
É nesse mundo produtivista porém que estamos nos propondo a estudar
o consumo. Tida como uma palavra pejorativa, "consumir" traz sempre consigo
uma série de significações catastróficas: esgotar, destruir, exaurir, terminar. A
imediata contraposição semântica sugerida por DaMatta (1995) entre os termos
"Revolução Industrial" e "Sociedade de Consumo" evidencia a preponderância
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de nosso lado produtivista, que sempre preferiu explicar os outros lados pela
irracionalidade não-utilitária. Para nós, a produção é a esfera determinante, já o
consumo é mero desdobramento, sempre subordinado à esfera de maior
expressão. Portanto, fica de mais fácil percepção a existência da economia
como uma área de conhecimento que regulamenta a produção através de leis,
relações e mecanismos e onde os fatos são validados ou não de acordo com o
posicionamento das variáveis e com as condições imponderáveis do mercado,
em contraposição ao consumo, facilmente elucidado no fator renda: quem tem
dinheiro, compra, logo consome.
Torna-se necessário aqui verificar o modo pelo qual a teoria econômica
produtivista conceitua o consumo. Para esse campo do conhecimento, consumo
é a utilização de bens econômicos para satisfazer necessidades humanas. Pois
bem, é a partir dessas idéias que foi possível conferir um tratamento ao
consumo enquanto fenômeno potencialmente expresso através de modelos de
otimização, lidando com parâmetros como preferência e/ou indiferença: todos
agem de acordo com a mesma premissa, da mesma forma maximizadora. Tal
fato permite pensar a economia como uma esfera autônoma da vida social, que
rege o comportamento dos indivíduos com leis próprias de funcionamento, e
formar, a partir dessas noções, uma série de categorizações econômicas como
tempo, trabalho, necessidade etc. Enfim, a proposição econômica tem como
pretensão reduzir a capacidade de manipulação simbólica do consumo sob a
forma de modelos prontamente aplicáveis.
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Em respeito a essa questão, Clastres (1982, p. 135) faz uma releitura
das sociedades tidas historicamente como "primitivas", dada a falta de uma
economia caracterizada pelos mesmos parâmetros funcionais ocidentais
(mercado, produtividade) e portadora dos mesmos desejos finalistas (lucro,
investimento):
"Isto quer dizer que o econômico, como setor que se
desenvolve de maneira autônoma no campo social, está ausente do
MPD [modo de produção doméstica]; este último funciona como
produção de consumo (garantir a satisfação de necessidades) e não
como produção de troca (realizar lucros comercializando os
excedentes). O que se impõe, no final das contas (...), é a
descoberta de que as sociedades primitivas são sociedades de
recusa da economia".
Não nos resta dúvidas a respeito da existência de diferentes formas
pelas quais o homem recodifica o meio e cria culturalmente seus processos de
organização social, o que assinala a própria diversidade cultural.
Um ponto importante é perceber que as premissas assumidas pelas
teorias econômicas clássica e neoclássica só fazem sentido quando apoiadas na
construção arbitrária de uma natureza humana. Essas teorias assumem os
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pressupostos de que todos os indivíduos possuem os mesmos desejos e as
mesmas necessidades. Sempre que possível maximizam o lucro e a utilidade de
maneira insaciável; em outras palavras, são intrinsecamente utilitaristas e
possuem um apetite crescente e voraz. Mais além, são homens que nascem
assim nas mais diversas possibilidades espaço-temporais, ou seja, são
naturalmente voltados para tais noções, assim como para o trabalho e para a
produção; é este o aspecto que valoriza o homo economicus e não apenas o
diferencia dos animais, mas sobretudo sintetiza uma ordem natural específica e
o caminho para a riqueza e a felicidade terrenas.
Em um ambiente construído de tal forma, passa a fazer sentido também
pensar o consumo a partir dos modelos microeconômicos, onde elementos
conceituais como curvas de indiferença e retas de restrição orçamentária
delimitam os prováveis e desejados pontos ou áreas de consumo; o que se
coloca portanto não é nem tanto a idéia de necessidade, mas a idéia de
abundância: quanto mais bens, quanto maior a utilidade propiciada, melhor.
Miller (1995, p.13) explicita essa associação histórica entre consumo e
maximização, sempre atrelando o aumento do primeiro à quantidade de bens
que o mercado deixa ou não de ofertar; através de uma pequena análise do
consumo, verifica que, ao invés de encará-lo como uma escolha, as sociedades
produtivistas sempre o negligenciaram, submetendo-o de forma unilateral à
produção realizada pela homo economicus: "ser consumidor ao invés de
produtor significa ter apenas uma relação secundária com os bens".
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Mais posteriormente, o keynesianismo acena com a possibilidade de uma
função consumo, isto é, os indivíduos se sentiriam atraídos para satisfazer suas
necessidades a partir de uma propensão a consumir. Segundo essa teoria, este
gasto em consumo depende essencialmente do montante de renda, mas
também sofre influências por parte de uma macroeconomia objetivamente
mensurada (inflação, nível dos salários) e das subjetividades dos compradores.
Há uma relação clara entre renda e padrão de vida, assim como entre consumo
e dispêndio monetário, na medida em que as propensões econômicas
determinam quanto de sua renda um indivíduo gastará e quanto ele reservará
para controlar seu consumo futuro. Há, segundo o economista Moggridge
(1982, p.82), um limite no jogo matemático que estipularia que, "no curto
período, as mudanças do consumo eram determinadas em primeiro lugar pela
renda mas que, em circunstâncias normais, o consumo muda menos que a
renda". Logicamente só é possível consumir se há quantidade monetária
suficiente para os bens desejados, mas não se pode encerrar o tratamento
somente a partir dessa variável.
Nesse sentido, vale relembrar aqui a clássica obra A ética protestante e o
espírito do capitalismo, do sociólogo alemão Max Weber, que apresenta um
claro exemplo de como a concepção de mundo pode alterar as condutas que as
escolas econômicas acreditavam serem logicamente racionais, portanto
imediatamente dedutíveis. Weber analisa o modo pelo qual a visão religiosa
calvinista fez com que homens ricos pelo êxito no trabalho cada vez mais
acumulassem e reinvestissem em seus ofícios.
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Na verdade, adotar como premissa que nascemos utilitaristas e com o
trabalho como vocação obrigatória é simplesmente imaginar que trazemos em
nossas cargas genéticas uma vontade irrefreável de produzir, contra a qual não
podemos lutar; em outras palavras, estaríamos biologicamente programados
para a execução do trabalho e, para tanto, poderíamos invariavelmente ter
nascido numa grande metrópole urbana nessa década, entre os Yanomami no
século passado ou na Inglaterra durante o limiar da Revolução Industrial. Se
isso for verdade, todos os homens e mulheres agirão da mesma forma, de
acordo com os mesmos desejos e necessidades, e isso implica que apenas uma
economia pode dar conta de todas as culturas, que poderiam ser agrupadas em
um imenso mercado global, funcionando com leis e modelos universais. Não é o
que há de fato, o que se torna facilmente comprovável pelos trabalhos de Karl
Polanyi: mesmo se imaginássemos que sempre houve um tipo de economia nas
sociedades, o fato é que apenas na época moderna surgiu a regulação via
mercado, bem como a salvaguarda individual de interesses; como descreve
Polanyi (1980, p. 55), "(...) em nenhum caso (...), podemos presumir sobre o
funcionamento das leis de mercado, a menos que se demonstre a existência de
um mercado auto-regulável".
Mesmo com o processo de colonização vivenciado por uma série de
culturas, é possível afirmar que os efeitos supostamente totalizantes do
capitalismo são passíveis de serem relativizados de diferentes maneiras em
várias delas. Para Sahlins (1979, p. 188), entender o produtivismo é sobretudo
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captar sua especificidade ocidental: "a produção, portanto, é algo maior e
diferente de uma prática lógica de eficiência material. É uma intenção cultural".
Somente porque vivemos em um universo centralizado pela economia é
que se torna possível acatar moralmente suas premissas, consideradas assim
inquestionáveis. Acabam surgindo e se estabelecendo com poder de verdades
absolutas que desconsideram, por exemplo, que o consumo é influenciado por
fatores como, por exemplo, a publicidade, verdadeiro instrumento de persuasão
simbólica capaz de influenciar interesses coletivos e individuais. É nesse mundo
historicamente construído pela produção que Miller (1995) identifica quatro
mitos do consumo, ou seja, idéias que culturalmente foram aceitas como
verdade e que assim se perduraram.
Primeiramente, há o mito moderno de que o consumo de massa causa
uma homogeneização global, assentado na idéia de que o fenômeno está ligado
intrinsecamente ao domínio capitalista global; dessa forma, o chamado "mundo
dos commodities" estaria destruindo as diferenças culturais. A homogeneização
poderia ser comprovada pela existência de marcas como a Coca-Cola. Miller
(1995, p.12) acredita que esse mito não considera a hipótese de que diferentes
culturas podem atribuir diferentes significados a uma mesma mensagem, não
havendo uma fórmula única para ordenar simbolicamente um determinado
bem. Mais além, pensa que o capitalismo é incrivelmente dominante no mundo
moderno, mas não a ponto de globalizar suas diretrizes, isto é, de ser encarado
como a única estrutura capaz de prover bens para consumo de massa, pois
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"existem sociedades onde não há grandes proprietários que demonstram um
desejo maior por bens do que o ocidente materialista", citando o exemplo da
China durante a Idade Média.
Outro mito diz que o consumo opõe-se a sociabilidade: suportado por
bases de materialismo e insaciabilidade, faz com que tenhamos nosso lado
humano cada vez mais esquecido pela nossa crescente preocupação com a
aquisição de bens. Miller (1995, p.24), em contraposição à idéia de que
seríamos meros manequins para o mundo dos objetos, ressalta a idéia da
reciprocidade para dizer que "em sociedades não-capitalistas a relação entre
pessoas e objetos é tão próxima que às vezes essa própria distinção fica
ofuscada"; como exemplo, em seu livro Ensaio sobre o Dom, o antropólogo
Marcel Mauss esclarece como um objeto trocado entre duas pessoas cria um
relacionamento obrigatoriamente recíproco. Mais além, Miller (1995) assinala
que o materialismo é apenas uma expressão das relações sociais resultante do
tipo de associação capitalista entre pessoa e objeto, capaz de gerar fenômenos
outros como narcisismo, fetichismo etc.
Um terceiro mito traria a noção do consumo como algo que se opõe à
autenticidade: a produção seria algo menos superficial do que o consumo, pois
este centra-se na idéia utilitária do ser; assim, no mundo do consumo, o
homem estaria preocupado com sua projeção moral. Miller acredita que esse
mito desconsidera o fato de que um maior envolvimento com o consumo não
implica em um menor envolvimento com a produção; além disso, o mito
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pressupõe que os homens só conseguem estabelecer uma relação utilitária com
a cultura material, isto é, que as premissas de utilidade e necessidades básicas
próprias do ocidente estariam presentes de um modo geral, o que o autor
contra-argumenta com exemplos de outras sociedades.
Finalmente, o consumo criaria tipos particulares de ser social, de acordo
com três principais tendências naturais: os consumidores inclinam-se para a
imitação, para a competição por prestígio social e para o individualismo. Há
uma grande confusão propiciada pela tentativa de generalizar como natural
uma situação particular de sociedade de consumo. Miller (1995) lembra que a
primeira imagem de uma sociedade de consumo não foi a dos Estados Unidos,
mas a da Noruega, onde não se verificaram as hipóteses acima descritas; ao
contrário, havia mecanismos culturais que evitavam a competição e que
caminhavam em direção oposta ao individualismo.
No próximo capítulo, estudaremos a contribuição de alguns sociólogos e
antropólogos no estudo do consumo, com visões bem diferenciadas daquela
tradicionalmente adotada pelos economistas. A intenção é entender que o
consumo não pode ser absolutamente compreendido através das propriedades
intrínsecas dos bens ou pelas variáveis quantitativas que os cerceiam.
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3 ANTROPOLOGIA E CONSUMO: POR TRÁS DAS COMPRAS
Para que se torne de mais fácil entendimento a abordagem que damos
ao consumo, recorremos ao auxílio teórico de uma série de autores que
contribuíram para que o fenômeno não se encerrasse meramente na variável
monetária. O objetivo é fazer com que visões ainda pouco difundidas sobre o
consumo ajudem a entender a simbologia que se esconde por trás do mero
desembolso, e dessa forma abra o caminho para entendermos melhor como se
comportam os consumidores em um shopping center.
Uma das primeiras teorias do consumo surgiram ainda no começo do
século na obra A teoria da classe ociosa, de Veblen (1980). Veblen foi um
economista que assistiu ao desenvolvimento econômico norte-americano no
começo do século XX. Criou a categoria classe ociosa ao verificar que havia um
grupo homogêneo de empresários bem-sucedidos que comunicavam sua
riqueza à sociedade através da prática de um consumo ostensivo. Eram os
fidalgos, cuja força pecuniária não os impulsionava obrigatoriamente ao
trabalho (o que, todavia, não os tornava improdutivos), mas ao ócio. Não
obstante, suas esposas e filhas não trabalhavam e viviam a consumir também
de modo ostensivo.
Segundo o autor, essa modalidade de consumo realizado com a
finalidade de demonstrar a condição e o posicionamento sociais tem um nome
específico: é o consumo conspícuo, manifestado socialmente pela classe ociosa.
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A diferenciação significativa entre as ocupações da classe ociosa e as demais
implicavam na hierarquia da sociedade. A solidificação do status tinha como
pano de fundo um contexto de rivalidade social, onde elementos como inveja e
ódio levavam a um outro tipo de consumo: o imitatório (emulação social).
A emulação social descrita por Veblen teria sido, para McKendrick
(1992), o motor para a revolução no consumo ocorrida no século XVII, na
Inglaterra. No então contexto de maior acessibilidade aos bens, quando a
necessidade e a raridade cederam lugar à moda e à cotidianidade, houve uma
série de mudanças significativas no pensamento, na ação e no estilo de vida
das pessoas, acarretando uma comercialização da sociedade. McKendrick
(1992, p.9) encara esse fenômeno como sendo algo complementar ao
produtivismo, ao afirmar que "a revolução no consumo foi o análogo necessário
à Revolução Industrial, a convulsão necessária pelo lado da demanda para
complementar a convulsão pelo lado da oferta".
Assim, para McKendrick, a revolução do consumo foi algo sempre
historicamente negligenciado e anterior à Revolução Industrial. Mais do que
isso, como afirma McCracken (1991, p.5), "(...) o ignorado foi a 'revolução do
consumo', que foi a companheira necessária da revolução Industrial". A
comercialização da sociedade não passa exclusivamente pelo critério de maior
aquisição de bens, mas sobretudo pela inauguração de um novo estilo de vida
onde as pessoas estabelecem novos relacionamentos através do consumo,
20
corroborado por novas técnicas comerciais, anúncios e propagandas sobre
diversos produtos e maior quantidade de estabelecimentos comerciais.
Veblen via na alimentação e no vestuário as formas explícitas do
consumo conspícuo: certas bebidas, assim como roupas dispendiosas,
desvinculadas do labor produtivo, eram a própria "insígnia do ócio", e mesmo a
perdularidade era usada como afirmação da condição social privilegiada. A
questão central, portanto, está na possibilidade do consumo firmar marcadores
visíveis que diferenciem determinados indivíduos do restante da sociedade. A
classe ociosa consumia de forma conspícua pois não tinha o status dos
aristocratas, reconhecidos socialmente como elite. Pontuavam então, através da
prática do consumo, um verdadeiro delimitador social, como aponta Veblen
(1980, p. 76):
"O princípio geral, mais ou menos rigorosamente observado,
é que a classe servil industrial deve consumir somente o que é
necessário à sua subsistência. Pela própria natureza das coisas, os
luxos e os confortos da vida pertencem à classe superior."
Mesmo tratando do consumo como um elemento de diferenciação social,
Veblen nos mostra que é possível fazer do consumo também uma forma de
comunicação social. Isso significa que podemos retirar uma série de
21
informações que ficam evidenciadas nas práticas de consumo. Se não podemos
utilizar uma linguagem verbal, podemos, no entanto, nos expressar a partir das
roupas que usamos, dos locais aos quais freqüentamos, justamente porque o
consumo tem a capacidade de materializar determinadas categorias sociais.
Essa idéia de consumo enquanto um instrumento de comunicação está
presente na obra The world of goods: toward an anthropology of consumption,
elaborada por Douglas e Isherwood (1980), considerada o marco de
inauguração dos estudos antropológicos sobre o fenômeno. Esse trabalho
enfatiza o modo pelo qual se demarcam determinadas fronteiras nas relações
sociais através do consumo. Haveriam três grandes conjuntos de bens, que
corresponderiam aos setores de produção: os de consumo geral (primário),
plano no qual se limitam as camadas mais pobres da população, os
tecnológicos (secundário) e os informacionais (terciário). Como relata
Featherstone (1995, p.37), a idéia dos autores é a de que "(...) para atingir o
topo das classes de consumo é preciso não somente um nível de renda mais
elevado como também uma competência para julgar (...), que é em si um
requisito para o uso". Douglas e Isherwood, entretanto, não creditam essa
competência a uma certa racionalidade econômica, já que a característica da
escolha do consumidor é, antes de qualquer outra, a liberdade: ele pode ser
irracional, supersticioso, tradicionalista ou experimental.
O esforço de Douglas e Isherwood (1980, p. 59) reside em estabelecer
uma relação entre consumo e identidade enquanto fatores ligados à cultura e à
22
comunicação social, uma vez que "(...) todo consumo de bens materiais traz
consigo significados sociais, concentrando grande parte da análise cultural em
sua utilização como comunicadores". É exatamente por esta razão que Douglas
e Isherwood sentem-se referenciados ao falar sobre um "mundo dos bens": há
uma possibilidade intrínseca de que as pessoas façam, entre si e a partir do
consumo, uma leitura de determinadas categorias sociais. Nesse sentido,
Douglas e Isherwood (1980, p. 65) argumentam que "(...) o objetivo mais geral
do consumidor só pode estar em construir um universo inteligível através dos
bens que escolhe".
Miller (1999, p. 23), a respeito das contribuições teóricas de Douglas e
Isherwwod, analisa a forma de construção da racionalidade a partir de
parâmetros sociais:
"Mary Douglas sugere que as identidades modernas são
constituídas através de nossos relacionamentos com o mundo
material (...). A racionalidade do consumidor, de acordo com
Douglas, emerge da visão do consumo como uma escolha não
apenas entre diferentes tipos de bens, mas entre tipos de
relacionamentos."
23
Sobre o tratamento do consumo enquanto comunicação, Campbell
(1995) alerta que é falha a pretensão de enviar mensagens ou significados
através do consumo, pois, se por um lado, não há maneira única de recodificar
uma mesma prática de consumo, por outro, significados podem ser "lidos" sem
que haja a pretensão por parte do consumidor.
Em outro estudo que articula o consumo à comunicação, Pierre Bourdieu
(1983) enfatiza sua análise no aspecto da distinção: o consumo tem o poder
classificatório de comunicar a diferença e se transforma assim em um meio
fundamental de relacionamento. Partindo da noção de gosto como sendo a
propensão de consumir determinadas categorias a partir de práticas sociais
classificatórias, como bem assinala Featherstone (1995, p.36), Bourdieu "(...)
examina as formas como os bens são usados para demarcar diferenças sociais
e transmitir mensagens (...)", a exemplo do trabalho de Douglas e Isherwood.
Assim, não apenas o gosto, mas também a capacidade de julgar e o capital
cultural são os elementos que capacitam determinadas camadas sociais a
classificar e usar de uma maneira singular determinadas mercadorias. Em
relação à arte, Bourdieu (1983, p.117) assinala que "a intenção artística não
pode senão contradizer as disposições do ethos ou as normas éticas que
definem a cada momento, para as diferentes classes sociais, os objetos e os
modos de representação legítimos, excluindo do universo do que pode ser
representado certas realidades e certas maneiras de representá-las".
24
É interessante ressaltar também o comentário que Lemos (1992, p. 103),
ao considerar sua experiência particular com um grupo de jovens que freqüenta
o McDonald`s no BH Shopping, tece a respeito daquele autor:
"Para Bourdieu, o estilo de vida de um grupo está
estritamente vinculado à sua posição no espaço social (...). Através
da observação de suas práticas e das entrevistas realizadas,
podem-se detectar os gostos, as posturas e o modo de vida que os
distinguem de outros grupos de capital social diferente. Essas
práticas não são mais que o produto de uma relação dialética entre
uma determinada situação e um certo habitus, sendo que este atua
como princípio que gera e unifica, funcionando como uma matriz de
percepções, apreciações e ações."
Partindo então da noção de habitus como sendo um sistema que
caracteriza uma classe ou grupo social em relação aos outros que não partilham
das mesmas condições, Bourdieu acredita que os indivíduos se orientam em um
certo espaço adotando práticas que estão de acordo com suas posições sociais.
Seguindo a linha do consumo como um elemento de diferenciação social,
temos a contribuição de Baudrillard (1997), que rejeita duramente as idéias de
satisfação de necessidades. Em ásperas críticas aos economistas, assume que o
25
consumo representa uma atividade que envolve manipulação simbólica, com
uma ênfase maior na expressividade e não em seus aspectos funcionais; mais
do que isso, a mercadoria é o próprio significado. Faria sentido, inclusive,
pensar o consumo não a partir das tradicionais categorizações econômicas, mas
de uma "economia política" do signo. Assim, Baudrillard (1997, p. 210) conclui
com algumas considerações:
"Isto explica que não haja limites ao consumo. Se fosse ele
aquilo que consideramos ingenuamente: uma absorção, uma
devoração, deveria se chegar a uma saturação. Se dissesse respeito
à ordem das necessidades, deveria se encaminhar para uma
satisfação. Ora, sabemos que não é nada disso: deseja-se consumir
cada vez mais. Esta compulsão de consumo não se deve a alguma
fatalidade psicológica (o que o berço dá, a tumba leva, etc.) nem a
uma simples coerção de prestígio. Se o consumo parece
irreprimível, é justamente porque constitui uma prática idealista
total que nada mais tem a ver (além de um certo limiar) nem com
a satisfação de necessidades nem com o princípio de realidade. É
que ela se acha dinamizada pelo projeto sempre frustrado e
subentendido no objeto (...). 'Moderar' o consumo ou querer
estabelecer uma grade de necessidades apta a normalizá-lo
depende pois de um moralismo ingênuo ou absurdo".
26
Encarando a publicidade como um exemplo prático dessa lógica, Rocha
(1995) assinala que, mesmo que o produto tangível não seja comprado por
todos que vêem ou assistem aos anúncios publicitários, a verdade é que
indistintamente uma série de produtos já foram consumidos: “hierarquias”,
“estilos de vida”, “visões de mundo” etc. Ainda portanto que o produto tangível
seja rigorosamente o mesmo, torna-se possível, a qualquer momento,
rearranjá-lo simbolicamente, isto é, ritualizá-lo: o exemplo marcante é o do
cigarro, que traduzia há algumas décadas uma escolha do aventureiro, e hoje
carrega uma simbologia contrária à esportividade da chamada “geração saúde”.
Ao tratar o consumo como algo diferente da mera satisfação de
necessidades, Baudrillard (1997, p. 206) entende o fenômeno como uma "(...)
atividade de manipulação sistemática de signos (...)" e configura um debate
aberto com Abraham Maslow, autor da famosa pirâmide de necessidades
humanas. Segundo Karsaklian (2000, p. 30), "Maslow apresenta as
necessidades do ser humano organizadas em prioridades e hierarquias. Essa
hierarquização obedeceria a uma escalonagem na qual se passaria de um nível
a outro mais alto, à medida que o anterior fosse satisfeito". Partindo do básico
(base), a pirâmide se formaria de acordo com a seguinte figura:
27
5. Necessidades de realização
4. Necessidades de estima
3. Necessidade de afeto
2. Necessidades de segurança
1. Necessidades fisiológicas
Teríamos as cinco necessidades, descritas por Karsaklian (2000, p. 31):
em primeiro lugar, as necessidades fisiológicas, consideradas básicas para a
sobrevivência, como fome, sede, sono etc. (somente com essas necessidades
satisfeitas nos seria possível perceber outros estímulos; as necessidades de
segurança, seja ela física (moradia, vestuário) ou psíquica (temor em relação ao
novo ou ao desconhecido); a seguir, teríamos as necessidades de afeto, ligadas
à emoção e à intimidade; as necessidades de status e estima, que
correspondem aos desejos de prestígio e de reputação; finalmente, as
necessidades de realização, quando o indivíduo sente a necessidade de
desenvolver suas potencialidades.
Embora reconheçamos o fator histórico e a situação sob a qual Maslow
arquiteta sua pirâmide, não podemos deixar de reconhecer também que fere
em muito o conhecimento antropológico ao tratar de um homem universal, e
não de valores culturais distintos. Assim, imagina que necessidades fisiológicas
serão sempre as primeiras a serem satisfeitas em busca de uma
28
"sobrevivência", ressaltando a noção de que o homem reage instintivamente
aos anseios biológicos. Os jejuantes religiosos são um claro exemplo de que
determinados valores podem subverter essa lógica. Mais além, entre o que se
considera instinto ou sobrevivência (natureza) e a pura satisfação de
necessidades, existe uma intermediação vital e inexorável conhecida como
cultura. Como diria Sahlins (1979, p. 187), "(...) os homens não 'sobrevivem'
simplesmente. Eles sobrevivem de uma maneira específica". Isso implica em
dizer que há uma predisposição cultural que avalia constantemente o que se
deve ou não comer.
Como exemplo ilustrativo, um programa televisivo denominado "No
Limite", que foi ao ar em agosto desse ano, levou 12 pessoas para viverem
conjuntamente em uma praia deserta, em condições totalmente distintas das
quais haviam se acostumado em termos de facilidades, estilo de vida e relação
com o meio; aquela que suportasse por mais tempo as adversidades ganharia o
prêmio maior do programa. Em determinado episódio, as pessoas já estavam
há cerca de 10 dias dormindo pouco e se alimentando mal, o que impulsionou
algumas delas a declarar, inclusive, que seriam capazes de comer qualquer
coisa que lhes fosse oferecida. Foi quando surgiram as seguintes iguarias: olho-
de-cabra, miolo de bode e chá de boldo com craqueja. As pessoas choraram,
pois tinham de comer para não serem eliminadas do programa, e só após
superar o impacto conseguiram, muito à contra-gosto, cumprir a tarefa.
29
Se analisarmos o ocorrido, veremos que a pirâmide de Maslow não é
capaz de explicá-lo pois, de acordo com ela, aquelas pessoas deveriam devorar
quaisquer alimentos que pudessem saciar suas necessidades fisiológicas. No
entanto, houve um freio cultural e instantâneo, ou seja, as pessoas
enfrentaram realmente dificuldades simbólicas em reconhecer as iguarias como
alimentos agradáveis, decentes ou corretos.
É possível perceber que a pretensa universalidade da pirâmide de
Maslow não se verifica na prática, posto que os seres humanos efetivamente
têm diferentes necessidades, diferentes modos de priorizá-las e diferentes
intermediadores culturais para percebê-las e saciá-las. Não é nada mais do que
etnocentrismo, portanto, categorizar determinadas necessidades ou denominá-
las "básicas" ou "supérfluas". É evidente que uma determinada ração alimentar
se mostra necessária para que as pessoas sobrevivam, mas é a cultura que faz
a intermediação entre o que comer, quando comer e como comer. Do mesmo
modo, se consumir envolve uma rede própria de significados, o mais
"supérfluo" dos objetos pode estar preenchendo uma função simbólica
essencial na percepção de determinados consumidores. Como exemplo da
relação cultural que permeia a alimentação, temos o canibalismo ou a
antropofagia, que nunca são praticados por fome, mas por atributos simbólicos.
Outro ponto que fica evidente é o fato das discussões sobre o consumo
em nossa sociedade terem assumido um caráter moralizante. Em virtude de
fazermos essa leitura de diferenciação através do consumo, criamos
30
autoritariamente categorias de pessoas que podem utilizar determinadas
categorias de bens; tais bens, quando usados por outras categorias de pessoas,
faz com que essas paguem uma espécie de tributo moral, tendo que passar por
crivos informais de aceitação. O exemplo mais claro disso está nos chamados
emergentes: embora possuam dinheiro para consumir, nunca serão pessoas da
alta sociedade, isto é, possuem a renda mas não o status. São comumente
retratados como pessoas que gastam dinheiro de maneira errada ou
extravagante, ressaltando uma idéia comum de que não basta consumir, é
preciso saber consumir, consumir da maneira adeqüada. Um exemplo disso
está em um famoso quadro humorístico televisivo, onde um casal de
emergentes, apesar de possuírem dinheiro, vivem a cometer gafes, falar
besteiras e trocar o nome das visitas que recebem em sua casa.
Entrando no campo do consumo como um elemento relacionado à
subjetividade das pessoas, o que equivale a dizer que pode ser explicado por
razões introspectivas, temos a contribuição de Campbell (1987, p. 76),
descrevendo a existência de um hedonismo moderno, baseado em emoções,
fruto do novo tipo de subjetividade gerado sobretudo pelo individualismo, em
contraposição ao hedonismo tradicional, calcado no prazer sensorial:
"O hedonismo moderno presenteia todos os indivíduos com a
possibilidade de ser o seu próprio tirano, exercendo total controle
sobre seus estímulos, portanto do prazer que recebem.
31
Diferentemente do hedonismo tradicional, entretanto, esse ganho
não é exclusivo ou primário, através da manipulação de fatos e
objetos, mas através do controle sobre seus significados."
Campbell (1997, p. 510) entende o consumo moderno como uma
conseqüência do padrão de gratificação das pessoas; assim, a insaciabilidade
existe justamente porque o consumo é alimentado por um "espírito romântico"
existente na associação de imaginários por parte dos consumidores (o que ele
chama de 'daydreaming'):
"Daydreaming é uma parte integral da vida psíquica da
humanidade moderna, embora haja uma tendência de ignorar sua
presença e/ou reduzir sua importância. Quase todos na sociedade
moderna fantasiam e tem o daydream; é uma atividade diária
regular, independente de sexo e idade (...). A experiência
imaginada representa caracteristicamente uma visão perfeita da
vida, e partindo usualmente de pequenos começos, os indivíduos
podem desenvolver daydreams que se tornam 'mundos
alternativos'."
32
Campbell (1998) analisa ainda que existem duas retóricas principais que
justificam as práticas de consumo: a retórica das necessidades, uma herança
utilitarista que visa o conforto e a satisfação, e a retórica dos desejos, fruto da
filosofia romântica da procura pelo prazer. A primeira é evocada quando há a
privação de algum bem, a ausência de algo considerado necessário para que se
mantenham as condições de existência; já a segunda retórica diz respeito ao
prazer, o que Campbell (1998, p.237) assegura "(...) não ser uma propriedade
intrínseca de qualquer objeto, mas um tipo de reação que os indivíduos têm
quando encontram certo estímulo".
Enfim, a antropologia acena com a possibilidade de compreensão do
consumo a partir de nossa própria condição cultural: enquanto seres humanos,
nossas vidas se traduzem na produção de uma existência simbólica. O consumo
não foge à regra: não pode ser definido materialmente em termos de desejos
ou necessidades estanques, mas a partir de uma série de significados que
fazem com que as pessoas se sintam atraídas a consumir, o que não significa
em última instância uma compra material. O espaço de consumo shopping
center é, por excelência, um espaço carregado do universo simbólico próprio do
consumo, e talvez por isso seja tão contagiante. Se por uma via produtivista
consegue agregar uma gama variada de produtos e serviços em um único
espaço, também consegue, pelo lado do consumo, representar um tipo de
sociabilidade capaz de atrair até mesmo, em certos contextos, pessoas sem
dinheiro.
33
Nosso próximo passo é penetrar no mundo social do espaço de consumo
conhecido como shopping center; faremos isso nos dois capítulos seguintes,
tratando primeiramente dos shoppings, com suas história e características
próprias, e em seguida nos referindo à questão do espaço, abrindo campo para
uma particularidade brasileira e para alguns trabalhos etnográficos realizados
em shopping centers brasileiros.
34
34
4 SHOPPING E CONSUMO: ENTENDENDO O "TEMPLO"
Existem várias definições do que vem a ser um shopping center. Estamos
aqui contemplando algumas delas, entre as quais a da ABRASCE - Associação
Brasileira de Shopping Centers (Apud Bienenstein, 1992, p. 12):
"Centros comerciais planejados, sob a administração única e
centralizada e que: seja composto de lojas destinadas à exploração
de ramos diversificados ou especializados de comércio e prestação
de serviços, e que permaneça, em sua maior parte, objeto de
locação; estejam os locatários sujeitos a normas contratuais
padronizadas, visando à manutenção do equilíbrio de oferta e da
funcionalidade, para assegurar, como objetivo básico, a convivência
integrada; varie o preço de locação, ao menos em parte, de acordo
com o faturamento dos locatários; e ofereça aos seus usuários
estacionamento permanente e tecnicamente bastante".
A Gazeta Mercantil, em sua publicação Panorama Setorial da Gazeta
Mercantil - Análise Setorial: Shopping Centers (2000), traz uma definição que
possui consonância com a anterior:
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"Empreendimentos do setor de serviços, com planos de mix
que agrupam conjuntos de lojas de ramos variados ou
especializados de comércio e algumas lojas com características
mercadológicas especiais, que exercem um forte poder de atração
sobre o público".
Compreendidas entre as lojas de forte atração, as lojas-âncora são
geralmente representadas pelas grandes lojas de departamentos e respondem
pela tarefa de atrair os consumidores. Ainda analisando esse formato especial
de varejo, Rocha e Christensen (1999, p. 143) dizem que:
"Shopping centers (literalmente, centros comerciais) são
uma aglomeração de lojas, planejada de forma a atender amplo
conjunto de necessidades do comprador. Contrapõem-se às
aglomerações espontâneas de lojistas. No shopping center, o
número, o tamanho e os tipos de lojas que irão compor o
complexo são cuidadosamente planejados, e não deixados ao
acaso como no centro comercial espontâneo. Da mesma forma,
planejam-se as áreas para tráfego de clientes e de serviço e as
áreas para estacionamento."
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Existe ainda uma classificação dos shopping centers brasileiros de acordo
como o tipo, segundo dados obtidos na ABRASCE. Em primeiro lugar, teríamos
o shopping regional como aquele que fornece mercadorias em geral e serviços
completos e variados e que tem como atrações principais os âncoras
tradicionais, lojas de departamentos de descontos ou hipermercados. Um
shopping regional típico é geralmente voltado para um mall interno.
O shopping comunitário oferece um sortimento amplo de vestuário e
outras mercadorias. Entre as âncoras mais comuns estão supermercados e lojas
de departamentos de descontos. Entre os lojistas, algumas vezes se encontram
varejistas de "off-price". Já o shopping de vizinhança é projetado para fornecer
conveniência na compra das necessidades do dia-a-dia dos consumidores.
Há também o shopping especializado, voltado para um mix específico de
lojas de um determinado ramo de atividades. Por último, o outlet center é
composto por lojas de fabricantes que vendem suas marcas com desconto,
além de varejistas "off-price", enquanto que o festival center é aquele
localizado em áreas turísticas e basicamente voltado para atividades de lazer.
Segundo pesquisa realizada pelo instituto Research International,
publicada na revista Shopping Centers, em junho de 2000, a indústria de
shopping centers no Brasil é extremamente promissora, apresentando um
notável crescimento: o número de unidades tem simplesmente dobrado a cada
cinco anos. As vendas dos shoppings representam cerca de 20% do
37
37
faturamento de todo o varejo nacional, excluído o setor automotivo (em 1999,
as cifras atingiram R$ 21 bilhões).
Embora a pesquisa tenha percebido uma tendência de interiorização (há
15 anos atrás, 83% dos shoppings estavam nas capitais e 17% no interior;
hoje, esses números são, respectivamente, 54% e 46%), os shoppings ainda
estão bastante centralizados na Região Sudeste, com 63% do total (apenas São
Paulo abraça 32% dos shoppings nacionais), enquanto que 17% estão no Sul;
11% no Nordeste; 7% no Centro-Oeste; e apenas 2% no Norte.
As características mercadológicas que definem os shopping centers estão
em consonância com a tradicional noção norte-americana de templos do
consumo: espaços monopolizados pela necessidade de reprodução de capital.
Assim, nos moldes norte-americanos, foram surgindo historicamente os
shoppings brasileiros. Embora o pioneiro tenha sido o Shopping Center do
Méier, construído em 1965, o Shopping Center Iguatemi, em São Paulo, é
reconhecido oficialmente como o primeiro shopping center brasileiro. Surgiu em
1966 e, conforme foram se seguindo os anos, surgiram outros no Distrito
Federal, no Paraná, em Minas Gerais, na Bahia.
Até que, em 1980, nasceu o primeiro shopping da Zona Sul do Rio de
Janeiro: o Rio Sul. A idéia já vinha sendo gestada desde 1972, originalmente
com um projeto bastante ambicioso: um centro comercial com 230 lojas
selecionadas de acordo com um tenant mix planejado (a seleção de lojas
obedecia, em primeiro lugar, ao critério de faturamento por metro quadrado) e
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distribuídas por quatro andares; mais além, haveria ainda uma torre de 44
andares que comportaria escritórios de empresas. O Rio Sul não fugiu à regra e
também nasceu como um templo do consumo. Nesse contexto, surgia a
concorrência do Barra Shopping que, embora situado em uma região distante,
havia saído na frente do Rio Sul na sinalização de sociabilidade, com agressivas
campanhas publicitárias.
Os problemas surgiram nos anos 80: os shopping centers se chocaram
com novas tendências no comportamento dos consumidores, mais conscientes
de seus direitos e preocupados com a qualidade de vida nas grandes cidades.
Os principais aspectos que passaram a ser levados em consideração nos
shoppings foram o conforto, o lazer e a sociabilidade. Portanto, essa mudança
de tendência nos anos 80 teve no Rio de Janeiro um grande palco.
Essa é uma questão que, apesar de negligenciada por algum tempo
pelos empreendedores do ramo, ganha relevância se pensarmos que há
majoritária e crescentemente um público que busca nos shoppings o consumo
intangível de lazer e sociabilidade. Não obstante, é possível perceber que em
muitos shoppings já está ocorrendo uma espécie de "divisão" da tarefa de
ancoragem: se antes isso era um atributo exclusivo das lojas de
departamentos, atualmente empresas e marcas de lazer e diversão vem
ocupando esse espaço (Playcenter, com a marca Playland; Game Works, marca
DreamWorks/Sega; Parque da Mônica; e outros).
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Nesse sentido, as praças de alimentação podem ser pensadas como
forma de ancoragem, dado que as mesas onde as pessoas se alimentam
representam um palco privilegiado de sociabilidade. Trata-se de uma radical
mudança em relação à idéia que se tinha desses espaços há algum tempo
atrás. Como exemplo ilustrativo, temos a publicação do ICSC - International
Council of Shopping Centers denominada "Como instalar uma praça de
alimentação no seu shopping center" (1987), onde o que prevalece é a noção
comercial das praças de alimentação como áreas onde o proprietário e o
empreendedor obtém aluguéis mínimos mais altos e percentuais mais elevados
do total bruto das vendas; por isso, houve paralelamente a tendência dessas
praças concentrarem, por conta da alta rotatividade, uma quantidade maior de
lanchonetes fast-food em detrimento de restaurantes.
Tem sido crescente a ênfase em lazer e diversão nos shoppings
brasileiros. Talvez o elemento que possa expressar essa mudança de modo
mais explícito seja o cinema. Embora esteja inerentemente atrelada a essa
tendência específica o problema da segurança pública (o que tem reduzido
drasticamente novos empreendimentos desse tipo nas ruas), havia 282 salas de
cinema nos shoppings brasileiros em 1995; esse número teve um brutal
aumento para 534 salas em 1999 (estima-se que já existam hoje por volta de
800 salas). Na já citada pesquisa realizada pela Research International, foi
constatado que 91% dos shoppings brasileiros possuem lojas de
entretenimento e lazer, desdobradas da seguinte maneira: 84% dos shoppings
possuem salas de cinema, dos quais 56% com salas convencionais, 21% com
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multiplex e 7% com ambos; 45 % dos shoppings possuem parques internos e
4% possuem parques externos; os jogos eletrônicos estão presentes em 38%
dos shopping centers, enquanto que apenas 6% possuem uma sala de teatro.
Há outro ponto importante que representa uma tendência em muitos
shoppings brasileiros: novos serviços nunca antes imaginados em um shopping
passam a ser reconhecidos como atividades cotidianas importantes: prática de
esportes, consertos de relógios, serviços médicos, cursos de idiomas,
vacinação, veterinários, caminhadas no shopping orientadas por profissionais de
educação física, espaço para grupo de orações e muitos outros, como relata a
matéria "Fora de hora: shoppings atraem freqüentadores até quando as lojas
estão fechadas", na revista Veja, de 16/12/1998:
"Nos chamados 'horários ociosos' do ABC Plaza, os
estacionamentos, devidamente demarcados, viram quadras de
vôlei, basquete e futebol de salão. Tudo grátis, já que o
investimento é irrisório e o retorno, potencialmente compensador.
No Minas Shopping, em Belo Horizonte, 200 pessoas lotam todo
começo de manhã o estacionamento para uma aula de ginástica e
alongamento (...). No Shopping Tatuapé, em São Paulo, o Projeto
Caminhada tem 900 participantes fiéis, que andam por uma trilha
marcada nos corredores, subindo e descendo as escadas de seus
quatro pisos (...). Bom para o carioca Barra Shopping, onde uma
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original e concorrida clínica médica funciona 24 horas por dia.
Melhor ainda para o shopping Rio Sul, em que o terraço coalhado
de bares e mesinhas lota de quarta a domingo."
Goss (1993) discute o shopping center como um espaço cívico, o que
significa ressaltar a vitalidade dos shoppings enquanto espaços públicos com
capacidade de gerar serviços à população. Não se trata apenas de serviços
ligados à finalidade dos shoppings, mas inclusive aqueles que não são em
última instância, promoção do consumo: correios, bibliotecas e outros serviços
governamentais são exemplos dessa possibilidade.
Talvez o que haja em comum entre as atividades usuais e não-usuais de
um shopping center é a procura, por parte dos consumidores, em realizá-las em
espaços reconhecidamente seguros, em contraposição à violência e à
criminalidade acentuadas nas ruas. Pensando no shopping como um lugar da
segurança, existe uma coleção denominada Recomendações do ICSC para
Administração de Shopping Centers (1997), traduzida pela ABRASCE, que é
dividida em áreas específicas: Finanças, Marketing e várias outras, entre as
quais uma particularmente voltada para o tópico "A segurança do shopping
center". Essa publicação prescreve que, entre as tarefas básicas a serem
desempenhadas pela equipe de segurança de um shopping center, estão a
segurança física dos clientes, a inibição dos crimes e a preservação dos bens
patrimoniais do shopping.
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Em outra obra do ICSC denominada "Guia para elaboração de um
manual de segurança de shopping centers" (1998), as políticas de segurança do
shopping devem atentar especificamente para as seguintes questões: uniforme
adeqüado; álcool e outras substâncias controladas; armas; conduta que inclui
vadiar; barulho; bicicletas, patins e skates; animais; regulamento dos
estacionamentos; veículos; panfletagem e publicidade; invasão; e mendicância.
Quando se trata de construir uma imagem de segurança para seus
consumidores, os shopping centers não economizam, conforme relatado pelo
jornal O Globo, de 25/08/99:
"Para reduzir a onda de assaltos aos templos de consumo
considerados ilhas de tranqüilidade, a Associação Brasileira de
Shopping Centers anunciou que está disposta a financiar a
instalação e manutenção de cabines da PM na porta dos principais
centros comerciais da cidade (...). O Barra Shopping, um dos
maiores do Brasil, foi cercado com 1500 metros de grades e
reforçou sua equipe de segurança, que hoje tem 210 pessoas (...).
O Norte Shopping, no Méier, investiu neste ano R$ 370 mil para
reforçar a segurança. Foram instaladas 50 câmeras no
estacionamento e os vigilantes passaram a andar de carros elétricos
e bicicletas."
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É forte a presença de consumidores atraídos pela segurança, mesmo
com a ocorrência pontual de assaltos que não deve ser desconsiderada, já que
no Rio de Janeiro, por exemplo, esses fatos obedeceram no ano passado a uma
média de um assalto por mês, segundo dados obtidos no jornal O Globo, de
24/11/1999, data em que ocorreu um assalto ao antiqüário Espaço Cultural,
localizado no Rio Sul.
Talvez o problema maior existente nos assaltos aos shoppings não esteja
na variável quantitativa, ou seja, não se trata de saber as estatísticas dos
crimes relacionados aos shopping centers; a preocupação maior é que, mesmo
quando eles acontecem pontualmente, podem danificar o signo de segurança
que caminha inerente aos shoppings na percepção dos consumidores. O caso
mais emblemático foi, sem dúvida alguma, o ocorrido no final de 1999 no
Morumbi Shopping, em São Paulo, quando um estudante de medicina entrou
em uma das salas de cinema com uma metralhadora e, no meio da sessão,
promoveu uma chacina, matando e ferindo várias pessoas, o que ganhou
grande impacto na mídia e lhe rendeu o apelido de maníaco do shopping.
A questão que parece surgir de imediato deriva justamente do
posicionamento do lazer nos shoppings: uma vez que são centros que surgem
com amplas e diferenciadas opções de consumo material, o que faz com que as
pessoas os freqüentem para buscar sociabilidade? No próximo capítulo,
discutiremos a influência da relação entre cultura, espaço e consumo nos
shopping centers.
44
5 ESPAÇO E CONSUMO: A CASA, A RUA E O SHOPPING
Os shopping centers são espaços de consumo característicos da vida
contemporânea. Como assinala Goss (1993), o que caracteriza a "prática" de
shopping é justamente o fato de ser uma atividade espacialmente localizada
(basta reparar que nunca pronunciamos a expressão "fazer shopping", mas sim
"ir ao shopping"; os americanos usam o termo "go shopping", o que demonstra
a importância da discussão acerca do espaço). Nesse sentido, o entendimento
das atividades de um shopping center e o tipo de relacionamento que o mesmo
manterá com seus consumidores passa inicialmente pela compreensão de sua
espacialidade.
Para o conhecimento geográfico, a territorialidade é algo que pode ser
encarado, conforme sacramenta Santos (1996, p. 61), como verdadeiro
sinônimo de cultura, posto que essa se apresenta como "um reaprendizado das
relações profundas entre o homem e o seu meio, um resultado obtido através
do próprio processo de viver. (...) É por isso que as migrações agridem o
indivíduo, roubando-lhe parte do ser, obrigando-o a uma nova e dura
adaptação em seu novo lugar". Embora exista a necessidade de relativizar tal
afirmação (os povos nômades, por exemplo, não se sentem agredidos pela
mudança espacial), ela enfatiza que a questão territorial se mostra essencial.
Podemos inclusive pensar na relação dialética entre cultura e espaço,
onde ambos são construídos e ganham significados a partir de um processo
45
histórico de interação. Assim, cultura e espaço teriam relações recíprocas de
constituintes e constituídos. Como assinala Hall (1989, p.15), "a relação entre o
homem e a dimensão cultural é de ordem a permitir que o homem e seu meio
ambiente participem da formação um do outro".
A ligação entre o homem e o espaço não se resume então a frios
mecanismos de adaptação, mas é um desdobramento da percepção que o
primeiro constrói a partir de sua experiência no segundo. Nenhum espaço se
apresenta de maneira neutra para seus atores ou freqüentadores, mas, ao
contrário, faz parte do emaranhado de relações sociais que constrói e pelas
quais é construído. Citando o exemplo da pessoalização do espaço em cidades
do interior do Brasil, DaMatta (1997, p. 30) afirma que "(...) o espaço se
confunde com a própria ordem social de modo que, sem entender a sociedade
com suas redes de relações sociais e valores, não se pode interpretar como o
espaço é concebido".
Em seu estudo sobre o Shopping Iguatemi de Porto Alegre, Rossari
(1992, p. 108) assegura a importância de se estudar o espaço como algo que
transcende a dimensão física:
"Portanto, vivida e significada, a espacialidade torna-se
objeto de investigação antropológica, já que se inscreve em uma
ordem cultural. É pressuposto antropológico que as culturas podem
ser descritas e interpretadas a partir de uma prática e de um
46
discurso; como dimensão cultural, o espaço apresenta esses dois
níveis."
Sobre o tratamento do espaço como elemento cultural, crucial é
entender a oposição estabelecida pelo antropólogo Roberto DaMatta (1997)
entre duas entidades morais no estudo das especificidades brasileiras. Mais do
que simples espaços físicos, casa e rua representam formas morais de
comportamento que se mostram antagônicas, o que equivale dizer que
configuram diferentes maneiras de se ordenar valores e atitudes. Essa questão
foi primeiramente explorada por Gilberto Freyre, autor do clássico Casa-Grande
& Senzala, reconhecidamente uma das obras que mais contribuem para
desvendar a sociedade brasileira.
Em sua obra denominada Oh de Casa!, Freyre (1979) já reconhece a
casa como lugar por excelência de uma série de rituais e sentimentos ligados à
acolhida, cortesia, hospitalidade, segurança, conforto. A casa é vista também
como um verdadeiro refúgio, representando para o homem o mesmo que um
ninho ou uma toca representam para os animais. Há para a antropologia muito
mais na casa do que um simples projeto de arquitetura ocupando o solo; o que
está em jogo, como ressalta Freyre (1979, p. 42), é uma articulação de práticas
que correspondem a determinados valores, já que:
47
"Dentro de um critério antropocultural, quem diz casa diz
projeção cultural de Homem - antes de ser de uma sociedade
específica - situado. Sua projeção sobre espaço e sobre o tempo."
Seguindo a trilha de Freyre, DaMatta (1997) afirma seu intuito de
trabalhar o espaço e as relações sociais através de uma perspectiva
antropológica, fazendo uma oposição entre dois domínios que coexistem na
cultura brasileira:
"Quando digo então que 'casa' e 'rua' são categorias
sociológicas para os brasileiros, estou afirmando que, entre nós,
estas palavras não designam simplesmente espaços geográficos ou
coisas físicas comensuráveis, mas acima de tudo entidades morais,
esferas de ação social, províncias éticas dotadas de positividade,
domínios culturais institucionalizados e, por causa disso, capazes de
despertar emoções, reações, leis, orações, músicas e imagens
esteticamente emolduradas e inspiradas."
A casa surge como um ambiente celebrado pela familiaridade de seus
componentes, unidos por laços relacionais que permitem dosar quantidades de
afeto. Em consonância com essa característica, a casa aparece como lugar da
hospitalidade e da segurança. Já a rua tem como um dos seus principais
48
elementos a normatização: trata-se de um espaço regrado, onde não há
brechas para a informalidade nem para tratamentos desiguais entre os
indivíduos, categorizados assim pelos parâmetros jurídicos.
Além da casa e da rua, haveria ainda um terceiro domínio conhecido
como outro mundo, descrito por DaMatta (1997, p. 48) como uma esfera que
"focaliza a idéia de renúncia do mundo com suas dores e ilusões e, assim
fazendo, tenta sintetizar os outros dois".
É também a rua o lugar da frieza e da crueldade, onde não há como
recorrer ou procurar abrigo mesmo diante da exposição às piores intempéries.
A rua é o lugar do "cada-um-por-si", ao passo que a casa é o local do
tratamento diferenciado, do conhecimento dos gostos e preferências de cada
um de seus membros. Por isso na casa todos são vistos como pessoas, ao
passo que na rua todos são vistos como indivíduos.
Também não é mera diferença de nomenclatura a oposição dos termos
pessoa e indivíduo, mas eles se contrapõem sobretudo sociologicamente:
enquanto o primeiro, por uma série de instâncias, tem condições de colocar-se
socialmente através de vínculos relacionais, o segundo elemento é visto como
apenas mais um cidadão frente às leis que deve invariavelmente seguir. Assim
como casa e rua, também pessoa e indivíduo são noções que coexistem no
Brasil, conforme conta DaMatta (1990, p. 194):
49
"As leis só se aplicam aos indivíduos e nunca às pessoas; ou,
melhor ainda, receber a letra fria e dura da lei é tornar-se
imediatamente um indivíduo. Poder personalizar a lei é sinal de que
se é uma pessoa."
É de grande importância a utilização de casa e rua como categorias de
entendimento pois, segundo DaMatta (1997, p. 48), esses espaços demarcam
socialmente uma forma de loteamento moral e estipulam uma certa
previsibilidade quanto aos códigos de conduta dos brasileiros:
"Embora existam muitos brasileiros que falam uma mesma
coisa em todos os espaços sociais, o normal - o esperado e o
legitimado - é que casa, rua e outro mundo demarquem fortemente
mudanças de atitudes, gestos, roupas, assuntos, papéis sociais e
quadro de avaliação da existência em todos os membros de nossa
sociedade. O comportamento esperado não é uma conduta única
nos três espaços, mas diferenciado de acordo com o ponto de vista
de cada uma dessas esferas de significação."
Fica evidente, após as contribuições de Freyre (1979) e DaMatta (1997),
que os espaços casa e rua não correspondem apenas a territórios fisicamente
mensuráveis, mas acima de tudo compreendem conjuntos diferenciados de
50
valores. Em outras palavras, fica pressuposto que as mesmas pessoas podem
variar em suas atitudes em função do espaço onde se situam.
Freyre (1979, p. 16) torna esse ponto mais claro quando vê na casa
também um ambiente de sentimentalidade, onde o amor duradouro da família
se materializa. Assim, não há qualquer possibilidade de acordo, por exemplo,
entre a casa e o mulherengo, posto que suas lógicas de conduta são
contraditórias:
"Ao que se junta a filosofia, sobre o assunto, desenvolvida por
certo tipo machista e até contraditoriamente domjuanesco e
monogâmico de brasileiro médio: 'posso ter vários casos, mas casa,
uma só'. E se 'quem casa quer casa'- outra expressão folclórica - é
que, para esse tipo de brasileiro, casamento e casa são instituições
que se completam. Sem casa não há casamento sólido: só aventura
com risco de logo dissolver-se."
Entretanto, não nos é difícil imaginar que o mesmo brasileiro que deixou
de ser um "Dom Juan" na casa, continue o sendo na rua. A contribuição de
Freyre e DaMatta vem no sentido de esclarecer que esse brasileiro não é
intrinsecamente um mau sujeito, que mexe libertinamente com as mulheres na
rua e não deixa as filhas falarem palavrão em casa; ele é apenas um brasileiro
51
que, como uma imensa maioria, convive com o paralelismo de condutas
opostas e regradas pelo espaço. É por conta de situações como essa que
DaMatta (1997) aponta a importância não de estudar a casa e a rua, mas a
casa & a rua.
Em se tratando da hipótese de nossa pesquisa, a de que o shopping
center se apresenta e comporta uma série de elementos que o aproximam do
ambiente da casa, DaMatta (1997, p. 20) antecipa a possibilidade desse espaço
se confundir com a rua, em que pese o fato de encararmos o fenômeno com
alguma dificuldade:
"Não somos efetivamente capazes de projetar a casa na rua
de modo sistemático e coerente, a não ser quando recriamos no
espaço público o mesmo ambiente caseiro e familiar."
E mais adiante, DaMatta complementa que a coexistência de espaços
morais opostos traz algumas conseqüências:
"Não posso transformar a casa na rua e nem a rua na casa
impunemente. Há regras para isso. Normas rituais importantes que
permitem essa relação realizam também uma esperada síntese de
52
todo o sistema (...). A rua pode ter locais ocupados
permanentemente por categorias sociais que ali 'vivem' como 'se
estivessem em casa'." (1997, p. 54-55)
As possíveis apropriações entre os espaços casa e rua são recorrentes no
Brasil. Santos (1985) organiza um trabalho no qual narra a apropriação de
determinados espaços públicos no Catumbi, bairro do Rio de Janeiro, através da
observação de uma série de elementos, dentre os quais as formas de lazer.
Uma vez que sentimentos da casa (por exemplo, o lazer) se misturam com o da
rua (no caso, o trabalho), há sentido falar em dificuldade ou conseqüência
quando ocorre a confusão entre esses dois espaços. Uma situação específica
vivenciada por Santos (1985, p. 108) e por ele exposta no esquema abaixo é
um exemplo disso:
Cabelereiro atende fregueses (Trabalho) Rapazes jogam bola (Lazer)
O jogo assume características
desapropriadas (palavrões) e
perigosas (boladas)
Cabelereiro faz reclamações e exigência de
parar o jogo (responsável pela segurança das
freguesas)
Jogo continua igualmente perigoso e
desapropriado (bola invade o salão)
(Freguesa atingida) o cabelereiro retém a bola
Os jogadores exigem a devolução dabola
O cabelereiro se recusa a devolver a bola
Os participantes do jogo insultam e
ameaçam o cabelereiro
53
O cabelereiro chama a polícia
Membros do grupo de jogadores pixam
o salão, acusando o proprietário de
"viado", "ladrão" e "galego"
Cabelereiro rebate os insultos (segundo ele,
todos "palavrões de alto calão") e torna achamar a polícia para abrir inquérito
Moradores da rua revelam mal estar ecomentam o desenrolar do incidente(exegese do sistema de regras)
Muitas ligações podem ser feitas se confrontarmos a classificação
espacial entre casa e rua exposta por DaMatta com os shopping centers.
Entretanto, uma pergunta é bastante emblemática para sintetizá-las: o que faz
com que um consumidor que vai ao shopping "se sinta em casa"?
Existe uma atmosfera nos shopping centers propícia à transformação de
meros espaços de consumo em espaços de sociabilidade. Não se trata de
anular a primeira possibilidade, pois é fato que os shoppings se apresentam
como elementos que impulsionam o desenvolvimento econômico nas
localidades onde se instalam; o que ressaltamos nesse estudo é que também
imprimem uma característica socialmente marcante: são espaços geradores de
sociabilidade, conforto e segurança e, nesse sentido, recriam um ambiente
moral bastante semelhante ao da casa. A compreensão da sociabilidade como
um atributo do shopping que deve ser colocado à serviço do consumo é um
elemento relevante para a formulação de suas estratégias de marketing.
Ao relembrarmos a já citada ligação entre casa e casamento realizada
por Freyre (1979), a utilização do espaço dos shoppings para serviços também
54
tem a finalidade de trazer alguns sentimentos ligados à casa, como mostra a
reportagem da Folha de São Paulo, do dia 17/11/92:
"A geração shopping center não precisa se distanciar de um
templo do consumo para se casar. O espaço ecumênico que ocupa
o lugar de uma loja na nova ala poderá ser reservado para
cerimônias, segundo a administração, (...) tem 28 cadeiras saídas
de antiquários, além de bancos nas laterais (...)."
Outro aspecto diz respeito à segurança: há uma preocupação por parte
das pessoas em se certificar de que o shopping é realmente um lugar seguro
para seus filhos, netos, familiares. Nesse sentido, é fiel a transposição da casa
na rua: há um lugar, em meio à rua que se mostra caótica, onde é possível
confiar a segurança de nossas pessoas queridas para que não fiquem
desprotegidas.
Alguns trabalhos etnográficos em shopping centers brasileiros parecem
corroborar que esse espaço representa uma projeção da casa na rua,
enfatizando sempre elementos como sociabilidade (amigos, grupos e família),
conforto e segurança .
Em sua dissertação de mestrado, Frugoli (1989) analisa determinadas
formas de sociabilidade que emergem a partir da experiência de três shoppings
55
em São Paulo: o Shopping Center Iguatemi, o Shopping Center Norte e o
Morumbi Shopping. Embora cada um desses espaços possua a sua
singularidade, Frugoli (1989, p. 10) percebe que os shoppings se revelam
enquanto espaços de lazer, sociabilidade e ócio, ou seja, "(...) abre-se espaço
para uma reflexão de como, mesmo nesses estabelecimentos onde a
destinação fundamental volta-se para o consumo, pode haver apropriações
voltadas para outros fins, feitas de formas surpreendentes, inusitadas,
recriadoras".
Posteriormente, Frugoli (1992) identifica uma característica essencial nos
shopping centers: eles são verdadeiras "cidades intramuros" remodeladas, ou
seja, constituem um contraponto às deficiências infra-estruturais das grandes
cidades. Não há nos shoppings buracos, chuva ou calor. Também, em sua
grande maioria, não apresentam relógios já que o ideal é a sensação de "não
sentir o tempo pssar", que não se apresenta como tempo histórico. Em outras
palavras, o shopping center representa um espaço onde é possível não
encadear os fatos em uma seqüência linear lógica: o tempo não é utilizado
funcionalmente como um sistema de medição ou contagem dos
acontecimentos, mas sobretudo apropriado pela lógica de descontinuidade do
flâneur de Walter Benjamin. Como assinala Rocha (1995a, p. 135), tanto a
concepção de tempo histórico quanto a de tempo totêmico (respectivamente,
segundo Lévi-Strauss, sociedades quentes e frias) coexistem em nossa
sociedade, onde o shopping seria um exemplo do segundo:
56
"Cada uma destas formas aparece apenas como dominante
em relação à outra em cada caso de adoção. Com isto, no fundo,
ambas acabam por estar presentes nos dois modelos de sociedade.
Acontece apenas que nas 'sociedades quentes' o tempo histórico é
o dominante e o totêmico é, por ele, encompassado"
Como ressalta Frugoli (1992, p. 77), também não existem "atores sociais
indesejáveis", como baderneiros, mendigos e outros. Enfim, o que se assiste na
arquitetura interna de um shopping é a recriação ideal de uma cidade. Tal fato,
se tomado em conjunto com a sociabilidade dos shopping centers, remete
diretamente a uma dicotomia entre a centralidade lúdica, entendida como a
atmosfera idealmente montada para o simbologia do passeio, dos encontros e
das paqueras, e a centralidade do consumo, tida aqui como o envoltório de
finalidade econômica que cerca os shoppings (afinal, investimentos são feitos
quando há certeza ou expectativa de retorno).
Esse ponto levantado por Frugoli é bastante esclarecedor se pensarmos
a recente incursão do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto ao Rio Sul, no
Rio de Janeiro, em agosto do corrente ano. Se o shopping fosse um mero
"templo do consumo", os sem-teto estariam importunando os transeuntes se os
impedissem de entrar nas lojas; o que acontece, porém, não é uma simples
agressão ao lado econômico dos shoppings, mas sobretudo uma maneira de se
57
fazer contrastar visualmente à formula estética idealizada dos shopping centers,
através da presença rara de "atores sociais indesejáveis". Embora imitem a
estrutura das cidades em suas praças, ruas e avenidas, os shoppings não o
fazem de maneira real, mas idealizada. Em outras palavras, representam as
cidades sem o que há de ruim em suas topografias, sem os buracos e sem a
possibilidade das chuvas que alagam ou do sol que desgasta.
Uma vez que DaMatta (1997, p. 55) afirma a necessidade de se observar
a complementariedade de casa e da rua, sob pena de que o entendimento
desses espaços contraditórios não se integralize, existe uma lógica (por trás de
um possível preconceito) quando os shoppings não apreciam em seus espaços
o ingresso de mendigos, baderneiros ou prostitutas: ao procederem dessa
forma, estão se afastando do ambiente da rua e, conseqüentemente, não
afetando os elementos que o remetem à casa, posto que:
"Não é preciso acentuar que é na rua que devem viver os
malandros, os meliantes, os pilantras e os marginais em geral."
Mais além, Frugoli (1992) observa em seu trabalho de campo uma
característica comum nos shopping centers: a formação de grupos de
referência. No caso do Shopping Iguatemi de SP, são os igua-boys, assim
retratados por Frugoli (1992, p. 81):
58
"A denominação, não por acaso, ressalta o radical de Igua-
temi e reforça a idéia de uma igualdade entre os membros desse
público restrito e diferenciado. O nome já diz: são grupos de iguais,
grupos cujos membros se extraem de uma mesma camada social, e
que, portanto, parecem dividir as mesmas expectativas."
Em outro estudo, Frugoli (1991, p. 40) sentencia que "o fato de os
shopping centers poderem vir a ser âncoras não somente de si mesmos, mas
de uma cidade, bairro ou região onde se situam, traria reformulações
importantes nas suas relações com o tecido urbano. Em outras palavras, a atual
tendência de 'isolamento' da cidade ou da realidade social (que vem sendo,
aliás, explorada em termos de marketing, uma vez que os shopping centers se
apresentam como contraponto aos aspectos negativos da realidade urbana)
poderia ser sobreposta por uma 'integração' mais dinâmica com o entorno".
Talvez um primeiro passo esteja sendo dado nesse sentido: está prevista
a inauguração, em setembro de 2001, do Shopping Center Metrô Santa Cruz,
um complexo de comércio, lazer e serviços integrado a uma estação de metrô.
Se, por um lado, o empreendimento é promissor para a lucratividade do
shopping (dada a ampliação natural da área de abrangência, resultado do fluxo
de milhares de pessoas), por outro lado, haverá uma preocupação com o
projeto urbanístico da estação, com substituição da antiga estrutura do metrô.
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Ressaltando o exemplo dos shoppings de Belo Horizonte, Lemos (1992,
p. 99) assinala que a "conversa de esquina" passou a ser realizada nos
shoppings, "anunciando uma nova experiência urbana e um novo imaginário
coletivo". Dessa forma, os espaços públicos da cidade que serviam como palco
para a convivência coletiva passam a ser substituídos pelos shoppings centers.
Lemos chega a afirmar que, no contexto de redefinição urbana do qual o
shopping é uma instituição privilegiada, as atividades comerciais e de lazer
descentralizadas estão se tornando cada vez mais "rarefeitas".
A proliferação dos shopping centers no meio urbano de Belo Horizonte
responde então a uma demanda de determinadas necessidades humanas que
surgem paralelamente ao próprio conteúdo funcional dos shoppings, a saber, as
vendas. Segundo Lemos (1992, p. 102), os shoppings apresentam novamente
um tipo específico de relacionamento com o próprio meio urbano:
"Esse 'santuário de mercadorias' não só é um fator atrativo,
como suas passagens e praças oferecem aos jovens a oportunidade
de entrar em contato com o espaço público. Uma vez que a vida
cotidiana desses grupos tem se limitado a uma experiência urbana
confinada em clubes, escolas, residências, condomínios, academias
e cursinhos, as passagens do shopping center sugerem o resgate
do domínio público."
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A sensação de viver ou possuir uma espécie de "propriedade" remete
diretamente à pessoalização (sentimento da casa) do meio público. Não se trata
de um fenômeno exclusivo de determinadas classes sociais. Lima (1979),
estudando o fenômeno de autoconstrução na Baixada Fluminense (construção
de casas pelos próprios moradores, auxiliados por amigos e familiares,
geralmente nos finais de semana e em comunidades de baixa renda), faz uma
alusão à possibilidade de garantir um espaço próprio em meio a um mundo que
é regrado pela incerteza:
"A insegurança, decorrente da não -propriedade da moradia,
é o principal motivo para adquirir um lote e construir ali a sua casa.
O sentimento de que a propriedade da moradia é uma necessidade
incondicional é generalizado entre os autoconstrutores, e ao se
referirem a essa necessidade expressam sempre a certeza de que a
casa própria é a única alternativa habitacional capaz de garantir a
proteção do grupo familiar nos momentos de crise." (p. 75)
Outro trabalho interessante que correlaciona espaço, consumo e
identidade é o realizado por Rossari (1992) no Shopping Iguatemi de Porto
Alegre. Rossari (1992, p. 111) identifica que as práticas sociais da rua são
61
vistas como "hábitos de antigamente", sendo sempre ecoadas com um certo
tom nostálgico que não retira, porém, sua dose ritualística: "A confeitaria, que,
com os cinemas, caracterizava o Centro como espaço de lazer das camadas
mais bem situadas, era um espaço onde se definia um ambiente de
sociabilidade. As pessoas iam lá para se encontrarem, conversarem, verem e
serem vistas, sentando-se às mesas, demorando-se, atendidas por garçons que
se esperava fossem atenciosos". Nesse ponto, a Rua da Praia, situada no centro
e em meio ao fervilhão social e comercial descrito, era vista como um local
limpo e "bem-freqüentado"(nivel sócio-econômico dos freqüentadores).
A partir da inauguração do Shopping Iguatemi, em 1983, houve uma
mudança na percepção que os habitantes de Porto Alegre tinham do Centro.
Com o Iguatemi, funcionando como um verdadeiro espaço da modernidade, o
qual exercia fascínio inerente sobre as pessoas, Rossari (1992, p. 115) observa
o "Shopping Center como privativo de setores de grupos de maior poder
aquisitivo, que usam a maior parte de sua área e funções (...), até mesmo o
equivalente simbólico de um clube social".
Embora fosse verificável que determinados pontos do Iguatemi
recebessem pessoas de classes sociais menos abastadas, Rossari (1992) traça
um paralelo onde expõe a "ressemantização" espacial a partir do shopping, ou
seja, a nova classificação que passa a operar na percepção dos porto-
alegrenses com a chegada do Shopping Iguatemi: a Rua da Praia (Centro) é
visto como um local arcaico, pobre, feio e perigoso, ao passo que o Iguatemi
62
traz consigo a modernidade, a beleza e a segurança. Por último, Rossari
percebe uma ritualização específica no Natal, período em que shopping está
extraordinariamente cheio e decorado; as famílias vão juntas para passear e
fazer compras:
"Essas festas simultaneamente familiares e comerciais
propiciam o reforço dos laços de família através da compra. É
comum que, para escolher presentes ou comprá-los, reúnam-se
pais, filhos, irmãos. Através do presente, todo um sistema de
valores sociais e psicológicos (relativos à instituição familiar) é
mobilizado e reatualizado (...)." (p.187)
O tipo de relacionamento entre shopping e consumidor elucida em muito
o valor moral que o primeiro passa a preencher na perspectiva do segundo. Se
é privilegiada uma ligação funcional, onde o shopping é o local onde as
compras materiais devem ser estimuladas e exacerbadas, fica aberto o espaço
para o raciocínio calculista (em detrimento da construção relacional) que toma
o rumo da rua; ao passo que ganha maior relevo o espaço casa todas as vezes
nas quais se estreitam os laços entre o consumidor e o shopping, que passa
então a ser visto não exclusivamente como o locus econômico das compras,
mas com novo realce significacional, através de fatores como lazer e
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entretenimento. Assim, poderíamos afirmar que a sociabilidade lúdica está para
a casa assim como a materialidade finalista está para a rua.
Finalmente, para efeito de melhor visualização, poderíamos trabalhar a
projeção da casa na rua através do seguinte esquema:
SHOPPING (CASA) RUA
! Sociabilidade (família e amigos) ! Individualização, solidão
! Sentimentalidade, relações ! Frieza, regras
! Lazer ! Trabalho
! Segurança, conforto, proteção ! Exposição às intempéries
! Hospitalidade, simpatia ! Conflito, antipatia
! Pessoa ! Indivíduo
Tal esquema nos será de grande valia para o prosseguimento do estudo,
uma vez que trata diretamente de algumas questões que formam o objeto de
investigação. Mais adiante, relatamos a metodologia aplicada no trabalho de
campo no Madureira Shopping Rio.
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6 METODOLOGIA
Nesse capítulo, discutiremos a metodologia utilizada em nossa pesquisa,
com a finalidade de melhor retratar os procedimentos adotados e de tornar
mais claras as etapas que compõem esse estudo.
A pesquisa é etnográfica; nesse sentido, toma "emprestado" da
antropologia um método que lhe é próprio. Nosso objetivo principal é captar o
significado que o Madureira Shopping possui na percepção de seus
consumidores, em especial os jovens e adolescentes, privilegiando a influência
de uma determinada relação com o espaço do shopping. Dessa forma, muito
pode ser descrito através das referências espaciais que tais consumidores
passam a assumir como naturalmente atreladas ao Madureira Shopping, o que
faz com que tenham um determinado comportamento, exerçam determinadas
práticas sociais e se organizem em determinados grupos.
A utilização do método etnográfico traz consigo a possibilidade de
manter uma relação de maior proximidade com o objeto, através de uma
técnica específica de interação conhecida como observação participante, cuja
intermediação permite compreender o significado da prática e do discurso dos
atores. Mais além, embora se trate de uma pesquisa descritiva, abre tanto a
possibilidade de moldar ou recortar empiricamente o objeto durante o trabalho
de campo, como a de enxergar novos recortes para um mesmo objeto. São
essas as duas razões principais que nortearam a escolha do método.
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65
Talvez esteja presente na etnografia a chance de separar minimamente
teoria e prática, dado que nesse método essas duas esferas podem ser
construídas dialeticamente, conforme aponta Vergara (1997, p. 14) em sua
definição:
"Etnográfico é o método que, apropriado da Antropologia,
exige do pesquisador contato direto e prolongado com seu objeto
de estudo. Vale-se, predominantemente, da observação
participante e da entrevista não estruturada para obter dados sobre
pessoas, espaços, interações, símbolos e tudo o mais que interessar
a sua investigação. Embora parta de algum referencial teórico, o
pesquisador não é a ele escravizado. Confronta teoria e prática o
tempo todo e vai reconstruindo a teoria."
Faremos um breve histórico da etnografia enquanto método de pesquisa,
com o auxílio do antropólogo Roque Laraia (1986). Devemos ressaltar, porém,
que a história do método etnográfico não é uma superposição à história da
antropologia, ou seja, nem sempre se trabalhou dessa forma. Em seu
surgimento enquanto disciplina específica, a antropologia classificava a
humanidade com outros olhos e com outros objetivos.
Os primeiros antropólogos foram os evolucionistas; as figuras de maior
expressão foram Lewis Morgan (1818-1881) e Edward B. Tylor (1832-1917).
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Respondendo pela legitimação das grandes empresas coloniais que dominavam
e escravizavam as culturas valoradas como "inferiores" ou "primitivas",
moldaram como objeto antropológico a construção de esquemas universais que
separavam os povos pela linha do tempo, como se a evolução cultural fosse
única para toda a humanidade e tivesse, necessariamente, que passar pelos
mesmos estágios da cultura européia, tida como a "superior" ou "civilizada
moderna". Não há, portanto, preocupação alguma em entender os elementos
simbólicos dos diferentes grupos culturais, apenas em torná-los dados
facilmente cadastráveis em um quadro da evolução histórica única da
humanidade, regida então pelo progresso linear.
Só a partir de Franz Boas (1858-1942) temos uma antropologia que
começa a não se preocupar verdadeiramente com esquemas universais, mas
sobretudo em perseguir a singularidade das culturas. Boas percebe que não há
nenhuma articulação rígida entre atributos como raça, cultura e linguagem e
que, pelo contrário, existe empiricamente a comprovação de que esses padrões
podem se configurar em diversas possibilidades; enfim, Boas descobre que não
há continuidade entre natureza e cultura.
Embora anteriormente alguns antropólogos, como o próprio Boas, já
tivessem realizado trabalhos de campo em outras culturas, sempre o faziam
através de questionários e em visitas breves e superficiais. Podemos atribuir a
"fundação" do método etnográfico ao antropólogo polonês Bronislaw
Malinowski (1884-1942), em sua clássica obra "Os Argonautas do Pacífico
Ocidental" (1922).
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A inovação vem com a observação participante: Malinowski é
efetivamente o primeiro antropólogo a conviver permanentemente com o
objeto de estudo, falar a mesma língua que os nativos e captar a riqueza de
significados que é específica das culturas. É a partir de Malinowski que o
entendimento da alteridade se traduz em assumir a perspectiva do outro.
A narrativa etnográfica de Malinowski caracteriza-se pela descrição total
dos fatos, de modo a inserir o leitor na cena. O que se tem então na descrição
é um verdadeiro exercício de intertextualidade, conforme alguns escritos
transcritos de Malinowski (1978, p. 21):
"No meu passeio matinal pela aldeia, podia observar
detalhes íntimos da vida familiar - os nativos fazendo sua toalete,
cozinhando, comendo; podia observar os preparativos para os
trabalhos do dia, as pessoas saindo para realizar suas tarefas;
grupos de homens e mulheres ocupados em trabalhos de
manufatura. Brigas, brincadeiras, cenas de família, incidentes
geralmente triviais, as vezes dramáticos, mas sempre significativos,
formavam a atmosfera de minha vida diária, tanto quanto a da
deles."
Posteriormente, em uma conferência editada pela Unesco em 1954,
Lévi-Strauss (1981, p. 394-395) comenta as diferenças existentes nos diversos
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países quanto ao tratamento antropológico, fazendo uma separação
metodológica entre etnografia, etnologia e antropologia, onde a primeira se
define de uma maneira muito simples:
"Todos os países, parece, concebem a etnografia da mesma
maneira. Ela corresponde aos primeiros estágios da pesquisa:
observação e descrição, trabalho de campo (field-work). Uma
monografia, que tem por objeto um grupo suficientemente restrito
para que o autor tenha podido reunir a maior parte de sua
informação graças a uma experiência pessoal, constitui o próprio
tipo do estudo etnográfico."
Geertz (1978, p. 20) trata a etnografia como um instrumento
antropológico que interpreta a cultura como uma rede de significados; assim,
interpretar uma cultura é apreender o sentido existente em suas práticas
coletivas através de uma "descrição densa":
"O ponto a enfocar agora é somente que a etnografia é uma
descrição densa. O que o etnógrafo enfrenta, de fato (...), é uma
multiplicidade de estruturas conceptuais complexas, muitas delas
sobrepostas ou amarradas umas às outras, que são
simultaneamente estranhas, irregulares e inexplícitas, e que ele tem
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que, de alguma forma, apreender e depois apresentar(...). Fazer a
etnografia é como tentar ler (no sentido de "construir uma leitura
de") um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses,
incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos(...)."
Roberto Cardoso de Oliveira, antropólogo brasileiro, assume que o
trabalho do antropólogo pode ser descrito como "olhar, ouvir e escrever":
"No que tange à antropologia (...), esses atos estão
previamente comprometidos com o próprio horizonte da disciplina,
em que olhar, ouvir e escrever estão desde sempre sintonizados
com o sistema de idéias e valores que são próprios da disciplina."
(1988, p. 32)
Há limites na pesquisa etnográfica. O primeiro deles diz respeito à
especificidade: não é possível ter quadros ou modelos abrangentes a partir de
estudos etnográficos (até porque não é essa a finalidade). Esse limite vem da
própria idéia segundo a qual a antropologia assume uma dimensão
interpretativa dos fatos sociais.
Em segundo lugar, quando interpretamos qualquer dado da realidade, é
culturalmente impossível fazê-lo de uma maneira neutra, pois já há um filtro
quando o percebemos. Passam a existir dois percalços principais para o
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etnógrafo: dificuldade de relativizar e possibilidade de banalizar o problema,
como adverte Oliveira (1988, p. 18):
"O olhar, o ouvir e o escrever podem ser questionados em
si mesmos, embora, em um primeiro momento, possam nos
parecer tão familiares e, por isso, tão triviais, a ponto de sentirmo-
nos dispensados de problematizá-los."
Ao contrário do que ficou categorizado pelos trabalhos antropológicos
tradicionais não se trata de um método empregado exclusivamente em
sociedades distantes, indígenas ou tribais. Temos a falsa impressão de que
somente aqueles que explicitamente se comportam de maneira diferente da
nossa seriam potencialmente objetos de uma etnografia; de fato, ser
culturalmente diferente não é um pré-requisito, basta que operem seus
cotidianos e se relacionem entre si e com os outros a partir de uma lógica
significacional própria. Assim sendo, podemos encontrá-los na mesma rua na
qual andamos, no mesmo prédio em que moramos, nos mesmos shoppings que
freqüentamos.
Mais além, o método etnográfico tem sido utilizado crescentemente pelo
marketing. A tarefa de exercer a chamada orientação para marketing,
possibilitada pela contribuição de Theodore Levitt em seu artigo "Miopia em
Marketing", parece ter ganho fôlego com a premissa etnográfica de assumir o
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"ponto-de-vista do nativo". Em contraposição às taxas de ocorrência das
compras expostas pelas pesquisas quantitativas, a etnografia em verdade se
comporta como um valioso recurso qualitativo para entender a perspectiva dos
consumidores.
As práticas de consumo, longe de serem integralmente interpretadas
pelos parâmetros clássicos (dinheiro, idade etc.), possuem inerentemente uma
intermediação simbólica, o que fez com que os estudos etnográficos ganhassem
fôlego entre os profissionais de marketing como verdadeiros referenciais para
melhor entender o significado do consumo. Um exemplo é a dissertação de
mestrado de Velho (2000, p. 85), onde a autora consegue identificar o
significado do Shopping Santa Clara 33, em Copacabana, através da percepção
de seus variados atores.
É preciso relatar algumas particularidades do nosso estudo etnográfico
no Madureira Shopping. Ao invés de privilegiarmos uma pesquisa sobre as
práticas administrativas do shopping, uma ênfase maior foi atribuída às
percepções sobre algumas características marcantes do Madureira Shopping
enquanto espaço de consumo.
Portanto, a intenção deste trabalho etnográfico não é focar diretamente
os aspectos administrativos do shopping center ou suas estratégias de
marketing, mas sobretudo analisar e descrever o campo de significados que
inaugura junto aos consumidores e que faz com que estes o freqüentem pelos
mais variados motivos, em especial aqueles ligados ao ambiente que reproduz
elementos ligados à casa; enfim, delimitamos nossa abordagem em torno do
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instrumental fornecido pela antropologia, no intuito de captar as impressões
que acabam delineando o chamado "ponto de vista do nativo", compreendido
como o consumidor do Madureira Shopping Rio.
Podemos afirmar que o marco inicial desse estudo etnográfico ocorreu
em setembro de 1999, durante o período no qual cursava a disciplina
"Comportamento do Consumidor", ministrada pela Prof. Heloísa Leite no
Programa de Mestrado em Administração da Coppead/UFRJ; naquela ocasião,
tive a oportunidade de realizar, com um grupo de colegas, uma visita
profundamente inspiradora e fecunda ao Madureira Shopping, posto que ali
surgia, com seus primeiros recortes empíricos, o objeto que ora se desenha
nessa dissertação. Desde então, realizei cerca de 15 visitas, em variados dias
da semana e também em datas e períodos especiais como o Natal e as férias
escolares, sempre com um pequeno bloco de anotações que se revelou um
verdadeiro caderno de campo.
Durante esse período de cerca de 11 meses de visitas ao shopping,
realizei também grande parte da pesquisa bibliográfica. A oportunidade de
confrontar a teoria com a vivência é, sem dúvida alguma, um diferencial
etnográfico em relação a outros métodos de pesquisa.
As visitas etnográficas apoiaram-se quase que integralmente na
observação participante, através do contato direto com os atores que, de
acordo com suas óticas, produzem os dados, sem qualquer outro tipo de
intermediação. Conversei informalmente com um bom número de
consumidores, sem qualquer espécie de questionário estruturado ou
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padronizado; uma vez que eu estava presente, minha intenção era tentar me
ausentar o máximo enquanto um elemento estranho. Assim, teria uma relação
menos artificializada e poderia obter, nos discursos desses atores, grandes
esclarecimentos sobre as proposições colocadas nessa pesquisa.
Também tive interação com vários lojistas e, em alguns casos, simulava
como se fosse um consumidor interessado nos produtos. A idéia era fazer com
que consumidores e lojistas agissem normalmente, sem saber que nossa
interação se dava por motivos outros (como uma pesquisa), como se
estivessem simplesmente se comportando da mesma forma no cenário social
do Madureira Shopping. Por fim, conversamos informalmente com o supervisor
do Madureira Shopping, sr. Luiz Antônio de Mendonça Lopes, e relatamos
durante a etnografia alguns pontos da discussão.
É necessário afirmar que a etnografia, embora despretensiosa em
relação a uma estruturação de questionários ou entrevistas, caminhou no
sentido de abarcar as questões abaixo propostas:
• Em termos gerais, quais os significados do Madureira Shopping para
seus consumidores, notadamente os grupos de referência formados
por adolescentes e jovens?
• O que esses consumidores encontram nele como algo importante,
que faz com que elas não visitem outros lugares ao invés do
Madureira Shopping?
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• Qual a dinâmica específica do Madureira Shopping, dada a clássica
oposição entre casa e rua formulada por Roberto DaMatta?
• De que modo tal distinção passa a fazer parte da ordenação espacial
local e da percepção dos consumidores e freqüentadores do
Madureira Shopping Rio?
• Em que elementos do shopping é possível encontrar paralelos com
casa e rua?
• É possível imaginar que o Madureira Shopping traz consigo alguns
elementos que faz com que nele as pessoas "se sintam em casa"?
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7 ESTUDO ETNOGRÁFICO: MADUREIRA SHOPPING RIO
Inaugurado em abril de 1989, o Madureira Shopping Rio é o 46º
shopping center a ser construído no Brasil (10º shopping do Rio de Janeiro),
filiado à ABRASCE e reconhecido como pessoa jurídica administrada pela
Brascan (empresa privada de gestão administrativa de shopping centers).
Localizado no bairro homônimo, habitado predominantemente pelas
chamadas classes média e baixa, O Madureira Shopping está situado à Estrada
do Portela, 222 (verdadeiramente incrustado no bairro). A vizinhança imediata
é composta por lojas comerciais e outras típicas de um bairro, como farmácias,
barbearias, livrarias e academias, além do famoso camelódromo de Madureira,
próximo à linha do trem. É possível ter uma noção da localização por
intermédio do mapa apresentado no Anexo 1.
O shopping fica quase que centralizado em uma área cujas ruas se
caracterizam pelo aspecto residencial, com muitas casas e edifícios; porém é
notória a proximidade em relação a zonas de cunho amplamente comercial,
onde coexistem lojas de departamentos, pequenos lojas ou centros de compra
e alguns "mercadões" (concentrações de ambulantes e comerciantes que
vendem uma vasta gama de produtos com preços mais baixos). Segundo
alguns comerciantes, antes do shopping, havia no local algumas lojas
comerciais e uma chácara residencial. A diferença, segundo um deles, é que:
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"Era uma tranqüilidade. Agora esses ônibus passam todos
por aqui, fica a marginalidade aí, a garotada não sabe se entra ou
se sai, essa bagunça."
Outro depoimento, de um senhor aposentado que mora no bairro há
quase 40 anos, em contraposição à opinião anterior, está abaixo retratado:
"Esse shopping deu outra cara para o bairro. Eu não quero
mais saber de ir a loja avacalhada, que não investe pra fazer uma
reforma."
Nossa primeira preocupação etnográfica ficou colocada nessa questão. O
importante não era saber com certeza o que havia ali antes, mas sim a imagem
que as pessoas tinham do local antes e depois do Madureira Shopping. O
primeiro trecho revela um fato verídico: por conta do shopping, a área
aumentou consideravelmente seu tráfego de pessoas e de automotivos
(algumas linhas de ônibus desviaram suas rotas, totalizando 12 linhas que hoje
circulam nas proximidades, além da estação de trem). A aglomeração de jovens
em frente ao shopping acontece predominantemente nos finais de semana:
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grande parte deles marcam de "se encontrar" na porta do shopping para então
entrar. Esse fato deu origem ao apelido de "Madureira Shopping Rua".
Em relação ao segundo depoimento, ficou revelado que o Madureira
Shopping representa um marco estético para a localidade, trazendo signos (que
depois foram recorrentes em várias conversações) como beleza e modernidade,
em contraposição ao "avacalhado", feio e antigo. É também o shopping
portador da imagem de um empreendedorismo na região, em oposição à falta
de investimento dos comerciantes tradicionais. No Anexo 3, registramos a
entrada principal do shopping, retrato da percepção de modernidade.
O Madureira Shopping é composto de seis andares, sendo que os três
primeiros concentram a grande maioria das lojas. Segundo dados da
administração, tem uma circulação diária média de 40 mil pessoas. É ancorado
pela Casa&Vídeo, Leader Magazine, Lojas Renner e Riachuelo, contando ainda
com participação dos locatários em cerca de 290 lojas, que obedecem a um
variado mix de produtos (moda feminina, masculina e infantil, decorações,
esportes, móveis, utilidades etc.). Além de um estacionamento compatível com
o tamanho do shopping (1500 vagas), possui uma área especiais de lazer e
entretenimento, quatro salas de cinema, três praças de alimentação (em pisos
diferentes) e uma série de serviços e atrativos que serão especialmente
abordados ao longo desse capítulo.
Podemos observar então que o Madureira Shopping não foge à regra
estabelecida por esse tipo de empreendimento no Brasil: iniciativa e
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administração privadas, planejamento e variedade no mix de lojas alugadas e
estacionamento próprio com capacidade de responder satisfatoriamente à
demanda dos consumidores.
A arquitetura interna do shopping também não se diferencia dos padrões
de outros shoppings situados em centros urbanos. É possível assistir à recriação
do ambiente urbano nos bancos em meio aos corredores e nas placas
apontando para as diversas áreas do shopping. No andar superior é utilizada
iluminação natural através de um telhado de vidro, ao passo que nos demais
andares a iluminação fluorescente é combinada com cores neutras como
branco, bege e cinza.
A estética do Madureira Shopping não foge substancialmente à regra
daquelas observadas em outros shoppings cariocas. Não seria absurdo pensar
que, com tal arquitetura, o shopping poderia estar muito bem situado na Zona
Sul do Rio de Janeiro. Na verdade, parece haver uma universalidade estética
em torno dos shopping centers: utilizam mais ou menos as mesmas colorações
em plasticidades semelhantes, articulam-se internamente copiando o modelo
das cidades em suas vias, ruas e praças, enfim, reproduzem um mesmo tipo de
apropriação no meio urbano. A questão então é: dada a generalidade física
desses espaços de consumo, por que as pessoas têm preferências por
determinados shoppings, ao mesmo tempo em que não se sentem à vontade
em outros?
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Começamos aqui a desdobrar nossas questões etnográficas, no sentido
de perceber como o Madureira Shopping exerce um fascínio sobre seus
consumidores ao se apropriar, mesmo que indireta ou inconscientemente, de
elementos da casa. Estamos centrados em alguns elementos em especial, a
saber: a sociabilidade, os serviços, a segurança e as lojas. De primordial
importância é a ligação que esses elementos mantém com outros esferas de
significação, traduzidas principalmente no conforto, na proteção e na família.
Nosso roteiro nesse relato etnográfico passa, nessa ordem, por cada um dos
elementos citados, embora seja evidente que , em não raros momentos, eles se
encontram intrinsecamente ligados.
O comportamento dos jovens, em determinados momentos, chegam a
nos fazer pensar que o shopping foi construído perfeitamente para eles. O
Madureira Shopping traz o cenário ideal para brincadeiras, encontros, paqueras
e "azarações". Alguns grupos ficavam encostados nas varandas observando as
pessoas passeando, tanto no andar em que estavam como no andar inferior.
Não foi difícil perceber que, para esses grupos de adolescentes, as escadas
rolantes possuem um papel estratégico nas brincadeiras entre andares
diferentes e, mais do que isso, desempenham um papel simbólico no momento
ritualístico de azaração, constituindo verdadeiro espaço de ansiedade e
observação contemplativa, algo que em hipótese alguma pode ser substituído
pelo elevador, conforme afirmou-nos um garoto:
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“Eu fico de bobeira aqui perto da escada, esperando
passar uma menina gatinha; se ela descer pela escada
rolante me olhando, vou atrás (...) porque é a hora do
vamos ver. ”
Acompanhamos, meses depois, uma outra aventura semelhante de
azaração entre andares que pode ser esquematizada através da seguinte
seqüência: um grupo de quatro rapazes observam duas moças descendo pela
escada rolante, azarando-as e esperando que uma delas devolva o olhar; a
moça, incentivada pela amiga, devolve o olhar e acrescenta um chamado com
uma das mãos, pedindo para o rapaz descer; o rapaz desce com felicidade e
entusiasmado com o também incentivo de seus colegas; então,o rapaz e a
moça conversam sorridentes (enquanto os colegas acompanham
atenciosamente com generosos gritos de "Se deu bem!", a colega da moça, no
mesmo andar, finge estar olhando para o ambiente do shopping); depois de
algum tempo, o rapaz sobe sorridente e é recebido pelos colegas, portadores
de grande expectativa quanto aos frutos do ritual, que exigem respostas para
suas ansiosas perguntas (as duas moças se perdem em meio aos outros
consumidores, no andar de baixo). O curioso é que, após maiores
esclarecimentos, os rapazes parecem se posicionar para repetir o
comportamento.
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Além de possuir um papel essencial na idéia de shopping enquanto
templo do consumo (já que as pessoas não precisam prestar atenção nos
degraus, liberando a visão para as lojas), as escadas rolantes revelaram-se
como pontos de observação estratégicos (ao lado das sacadas do shopping) e
elementos de vital importância no momento da azaração. Se imaginarmos que
o consumo, enquanto prática cultural, se mostra embebido em um mundo de
relações sociais, o que temos com as escadas rolantes é a recodificação de um
objeto de consumo. Se antes poderiam ser um artifício para que as pessoas
pudessem ver mais atenciosamente as lojas, no Madureira Shopping elas
passam a desempenhar um papel próprio.
A procura por lazer no Madureira Shopping também é bastante
acentuada. No subsolo, há uma área integrada de lazer, com máquinas de
diversão para crianças, além de uma lanchonete com uma máquina de videokê.
Existem ainda 4 cinemas, que se localizam no mesmo piso de uma das praças
de alimentação. Além disso, há algumas outras máquinas eletrônicas
espalhadas pelo shopping. A questão importante é que o próprio ato de visita
ao shopping representa um forte apelo ao lazer; já durante a visita realizada
em setembro de 1999, recebemos alguns depoimentos sobre a visita ao
shopping ao conversar com pessoas sentadas na praça de alimentação:
“Venho ao shopping para relaxar, ver pessoas,
esquecer meu trabalho um pouco – senão enlouqueço.”
82
“Aqui tem um monte de gente bem vestida,
bonita. Adoro ficar tomando um choppinho, sem me
preocupar com nada.”
O fato das atividades ligadas ao lazer e entretenimento ganharem
importância crescente (o que não é uma exclusividade do Madureira Shopping)
fez com que a administração se preocupasse em realizar eventos para esse
público que considera que a sociabilidade é um fim-em-si-mesmo no shopping.
Em atrativos como a Happy Hour (noites de quintas e sextas-feiras) e o Som na
Praça (aos domingos), artistas e bandas apresentam shows nas praças de
alimentação do Madureira Shopping, o que acaba funcionando para manter as
pessoas por mais tempo no shopping (existe uma relação diretamente
proporcional entre o tempo em que uma pessoa fica no shopping e a
quantidade de dinheiro que ela gasta no interior do mesmo).
Não obstante, existe uma série de atrativos e facilidades para que a
família venha inteira ao shopping. O empréstimo de carrinhos ("Amor e
Carrinho") e o serviço de fraldário não apenas ajudam a trazer a mãe ao
shopping, como também reproduzem, através da recriação de elementos como
afeto e proteção, os rituais domésticos do espaço da casa. As áreas de lazer
infantil no Madureira Shopping não são esquecidas: além de máquinas e
brinquedos espalhados pelo shopping, há uma área especial fechada no
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primeiro piso chamada "Labirintus" ou "CriançaMania", onde há uma piscina de
bolas, carrinhos, velocípedes e outros brinquedos educativos. Mais além, o
shopping faz campanhas específicas de atração da criança e da família em
períodos especiais como Natal (árvore e Papai Noel) e férias escolares (colônia
de férias).
O supervisor do Madureira Shopping, sr. Mendonça Lopes, nos afirmou
que o "fraldário não é atração, e sim retenção". Segundo ele, ninguém vai ao
shopping porque sabe da existência de um fraldário, mas esse serviço
sobretudo facilita a vida da mãe que vai ao shopping, uma vez que ela não
precisa se preocupar com essa necessidade do filho. Para Mendonça, o "Som na
Praça" é um atrativo para trazer as pessoas ao shopping aos domingos; para
ele, esse dia da semana é problemático:
"O lojista é cético, não gosta de investir. Para ele, é caro
abrir a loja no domingo e a gente não pode convencê-lo de um dia
para o outro. Por isso, a gente está investindo na programação
infantil, que ainda é pouca. Nossa intenção é buscar a família pela
criança."
Um outro ponto deve ser ressaltado, ainda sobre a sociabilidade: por que
esses jovens se dispõem a repetir nos finais de semana o mesmo procedimento
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de ir ao Madureira Shopping? Por que não se "cansam" desse espaço? As
respostas variaram em torno do que já havíamos recolhido anteriormente,
como a sensação de estar num lugar bonito e moderno, até o simples
posicionamento subjetivo de gostar do shopping; um tipo de resposta, creio,
merece uma atenção especial:
"Onde eu moro não tem nada pra fazer, eu venho pra cá".
Ouvimos essa frase de uma menina que se encontrava em um grupo de
cinco adolescentes vindos de Rocha Miranda. Percebemos, após algumas
conversas, que alguns consumidores não residem em Madureira, mas em
alguns "subúrbios" ou áreas sócio-economicamente desprivilegiadas adjacentes,
como Rocha Miranda, Cordovil e Irajá. Para a pergunta sobre a razão pela qual
eles freqüentavam o Madureira Shopping, foi recorrente a explicação de que
moravam em lugares onde não há nem o lazer, o que dirá os serviços
disponibilizados pelo shopping.
Para uma suposição inicial de que os shoppings recriam a cidade ideal
por uma questão estética, eis um achado: o Madureira Shopping recria a cidade
ideal não apenas estética mas sobretudo politicamente. Uma vez que o lazer e
os serviços públicos não são oferecidos para esses consumidores em suas
85
localidades de moradia, a procura pela cidadania é feita no espaço privado (de
acesso universal) do shopping.
De maneira análoga, podemos pensar acerca dos serviços oferecidos
pelo Madureira Shopping e que, durante muito tempo, poderiam ser
considerados como "não-tradicionais". Segundo a administração, dentre esses
serviços que devem ajudar a atrair os consumidores, encontram-se alguns
como bancos, cabeleireiros, academia de ballet, curso de idiomas e até mesmo
um posto de atendimento do Instituto Félix Pacheco.
Em relação à segurança, percebemos que ela está voltada para a
preservação dos bens e da harmonia no interior do shopping, em uma
concepção centrada na defesa patrimonial e não na resolução de conflitos.
Ainda na primeira visita ao shopping, realizada com colegas do mestrado,
conversamos sobre isso com um segurança, que alertou-nos que quaisquer
pesquisas sobre o shopping teriam que ser autorizadas pela supervisão:
“Vamos dizer que saia uma briga aqui. Eu não posso me
meter: pego o rádio, chamo a supervisão e, aí sim, se me
autorizarem, eu vou lá, separo e peço para se retirarem. (...) E
olha, infelizmente eu não posso responder mais nada, vocês têm
que ir falar com a administração do shopping para aplicar
questionário.”
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Os seguranças pertencem a uma empresa de terceirização e passam por
uma espécie de aprendizado sobre quais devem ser os procedimentos de
atuação nos mais diversos casos. Recebem instruções para evitar, mesmo na
dúvida, quaisquer situações que possam denegrir a imagem do shopping ou
constranger seus freqüentadores.
Durante a realização desse estudo, tiramos algumas fotografias do
shopping para anexar à etnografia. Como esse tipo de comportamento é
proibido, foi necessário uma autorização da administração do shopping,
conforme mostra o Anexo 2. Foi preciso cerca de duas horas, distribuídas em
dois dias consecutivos, para conseguir tal documento. Primeiramente, pela
escada de emergência, descemos até o subsolo, onde se localiza a
administração do Madureira Shopping. Passamos por diversos departamentos
até que a autorização foi obtida através do sr. Mendonça Lopes, sob a
justificativa de que se tratava de uma experiência acadêmica. Por último, em
cada um dos andares, pedimos autorização prévia para o segurança e
mostramos o documento para que, posteriormente, tirássemos as fotos.
Mendonça disse que a segurança precisa trabalhar na lógica da
ostensividade e da mediação. Também afirmou que não há nada de errado
quando um pai fotografa seus filhos no espaço interno do shopping; o problema
é fotografar sem uma finalidade explícita. Em seu comentário, percebemos que
a idéia de segurança pertencente ao domínio moral da casa se fez presente:
87
"Tem sentido não poder fotografar o shopping. Se alguém
ficar parado em frente a sua casa tirando foto, você não vai
desconfiar? Aqui é a mesma coisa."
A questão da segurança remete não apenas a sentimentos de conforto e
proteção próprios da casa, mas também a uma questão jurídica: embora seja
uma pessoa jurídica enquadrada em um espaço privado, o shopping prevê
acesso público e universal. No caso do Madureira Shopping, com atrações
infantis, existe a possibilidade do pai fotografar seus filhos, enquanto que outra
pessoa, se não tiver o mesmo "cenário", simplesmente não pode fazê-lo. Em
outras palavras, as regras passam a ser relativizáveis, pois são julgadas não
pelos fatos, mas sim pela situação; não são normais universais, mas apenas
normas como as da casa.
A chave para o entendimento de como funciona o esquema de
segurança no Madureira Shopping talvez seja concebê-lo como um sistema e
previsibilidade e prevenção contra quaisquer atitudes existentes ou potenciais
contra seus freqüentadores, seu espaço interno e suas lojas.
Em consonância com a noção de que, dentro da casa, existem espaços
reservados ou especializados (os quartos aparecem mais pessoalizados do que
a sala ou o corredor), as lojas também parecem funcionar como pequenas
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casas. Se imaginarmos o corredor do shopping como uma rua, as lojas
aparecem como micro-unidades, cada qual com sua maneira particular de
sinalizar hospitalidade para os consumidores.
Com uma força de vendas extremamente jovem (a maior parte
aparentava ter entre 18 e 25 anos) e vestida informalmente (ou com as roupas
da loja), a forma de abordagem dos lojistas reproduz o ritual doméstico da
acolhida. Mesmo sem entrarmos nas lojas, caso ficássemos mais do que 15/ 30
segundos observando a vitrine, éramos argüidos pelos vendedores sobre a
necessidade de informação.
A hospitalidade em relação aos compradores traz a idéia da casa tanto
quanto o tratamento diferenciado dado pelos lojistas. Em clara oposição às
lojas de departamento, onde existem poucos vendedores para muitos
compradores, as lojas de shopping trazem inerentemente consigo a
possibilidade de um comércio relacional, onde se discutem, através de bate-
papos informais descompromissados com o tempo, atributos de diferenciação
que vão desde o tamanho e a cor da roupa até a situação do namoro ou o
melhor programa do fim-de-semana. Enfim, o tratamento enquanto "indivíduo"
que as lojas de departamento conferem aos seus consumidores é radicalmente
oposto ao tratamento enquanto "pessoa" do shopping.
Notadamente nas lojas femininas, simulei por duas vezes uma situação
de "compra para minha mãe" para acompanhar de perto o desenrolar de uma
negociação; relato aqui o processo de uma delas:
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1. Duas amigas (talvez parentes) param em frente à vitrine de uma loja
feminina; vendedora sai da loja e se apresenta, oferecendo auxílio e
convidando-as para entrar;
2. As duas entram na loja após interesse despertado por saia na vitrine;
entro "à procura de presente para minha mãe";
3. Vendedora discute com elas as situações possíveis em que a moça
poderia "arrasar" com a saia (com um preâmbulo de intimidade,
questiona se o namorado é ciumento);
4. As três conversam animadamente até que a moça resolve
experimentar a roupa;
5. Moça sai da cabine para ouvir a opinião da amiga e da vendedora;
ambas aprovam a saia, porém a moça parece ainda em dúvida;
6. Rapidamente, a vendedora chama mais duas vendedoras para opinar;
forma-se uma pequena "cúpula" com pareceres diversos, porém
convergindo para a aprovação da saia.
7. Moça resolve efetuar a compra; após a mesma, troca dois beijos com
a vendedora.
Nesse processo de acolhida e hospitalidade, um elemento primordial foi a
capacidade de empatia da lojista. Ela rapidamente penetrou no mundo pessoal
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(até então anônimo) da cliente, fazendo com que esta se sentisse à vontade.
Através de um tratamento diferenciado e pessoalizado, a cliente teve a atenção
total da vendedora e, posteriormente, de várias outras que deram um aval a
respeito da roupa. O consumo naquele momento, muito mais do que um
desembolso monetário, foi uma prática coletiva e relacional.
O cotidiano de um lojista é bastante corrido. Muitas delas não tem tempo
para almoçar e, nesses casos, ou ficam sem comer ou pedem a alguma colega
que traga um lanche para comer na própria loja. Conversamos com várias
lojistas, que possuem histórias de vida bastante distintas: a maior parte, além
do trabalho no shopping, também estuda; das que apenas trabalham nas lojas,
existem aquelas que vivem sozinhas ou dividindo apartamento com amigas, as
casadas que auxiliam no orçamento doméstico, assim como as filhas que
ajudam ou sustentam a própria família com o dinheiro ganho (as comissões, em
média, ficam em torno de 4% das vendas).
É unanimidade entre os lojistas a idéia de que só vale realmente a pena
trabalhar no final do ano. Embora admitam que ganhem bem em algumas
datas especiais (como Dia das Mães e Dia das Crianças), reclamam do usual
pouco dinheiro. Eis o depoimento de uma lojista de 26 anos, há 11 meses
trabalhando em uma loja de roupas femininas:
"Trabalhar em shopping engana muito. Nem sempre tem
gente pra comprar. É porque a maioria vem mesmo pra olhar. Eu
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sei que o pessoal tá sem dinheiro, mas pra gente que passa o dia
esperando é ruim, né? (...) No Natal vale a pena, aí sim vale a
pena. Mas normalmente não, eu tô querendo arrumar outra coisa.
Aqui, até pra comer é caro, porque você não pode sair. Eu acabo
gastando R$ 5,00 todo dia pra comer."
Por último, dentro que nos propusemos nesse trabalho, visualizamos a
campanha publicitária do Madureira Shopping Rio, uma das poucas que fugiram
das tradicionais campanhas publicitárias natalinas em 1999, sempre com ênfase
em liquidações de fim-de-ano ou em figuras próprias dessa época, como Papai
Noel, renas, duendes e árvores de Natal. Tampouco foram utilizados jingles
natalinos ou execuções musicais cujas letras privilegiassem o Natal, mas em
ambos os casos procurou-se apostar em um determinado tipo de relação
estabelecida entre os shoppings e seus clientes: a inserção local e o sentimento
de pertencimento.
A campanha tem uma personagem-narrador que cresceu em Madureira,
acompanhando a vida como era antes e como é agora com os shoppings.
Trata-se de um senhor que cumpre no comercial o papel de atestar, através de
seus relatos e de suas memórias, que os shoppings não acabaram com a
socialização no bairro, apenas transformaram-na. Diz ele ao longo da
campanha:
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"No meu tempo era maravilhoso
As crianças ficavam soltas brincando pelo meio da rua
Esqueciam de ir embora pra casa
O papo na esquina ia até de manhã
Amizade era amizade sincera mesmo
Amigo era o amigo de hoje, de amanhã e de sempre
O melhor é que hoje continua tudo igualzinho."
As cenas do comercial enfocam as calçadas do bairro como o local onde
a vizinhança se reúne, seja para conversar na porta de casa, seja para uma
roda de música; como o local onde as moças passeiam alegremente e os
rapazes lavam seus carros; e como o local onde os meninos jogam bola
descalços e se esquecem da vida soltando pipa. O comercial é finalizado com
uma cena onde todos os acontecimentos são reunidos e o locutor diz:
"Madureira Shopping. Feliz Natal. Feliz Ano 2000".
Essa campanha publicitária representa uma oposição radical à idéia
original dos shopping centers americanos, como descrevemos no início do
trabalho. O shopping deixa de ser encarado como um local onde consumir
significa apenas uma atividade de abundância ou uma mera prática física e
93
passa a servir de palco para a sociabilidade relacional e local. Em outras
palavras, o espaço de consumo shopping center deixa de ser rua (dominado
pelo legalismo de mercado, expresso através da centralidade do consumo
material) para se tornar casa (familiaridade e pessoalidade expressas através
da centralidade da sociabilidade e do entretenimento). Esse pararelismo entre
shoppings brasileiros e norte-americanos pode ser entendido também através
da distinção entre pessoa e indivíduo, já recordada aqui. Ao contrário dos EUA,
onde a noção de indivíduo é predominante (pois também o é o universo
constituído de impessoalidade), destaca-se no Brasil o conceito de pessoa:
A campanha publicitária do Madureira Shopping, ao tratar o shopping
como um elemento que faz parte da vida das pessoas, acaba por reinventar a
familiaridade de um espaço íntimo, dominado pelas relações pessoais. O
shopping não é mais unicamente o local onde se fazem as compras materiais e
impessoais, mas sobretudo onde é possível levar amigos e parentes para ir ao
cinema, ver um show, conversar e "azarar".
Existe um outro elemento na campanha que comprova a projeção da
casa na rua: a amizade construída diariamente surge como o principal fator de
coesão entre os habitantes do bairro. Tal laço depende essencialmente de um
período de vivência cotidiana baseado na confiança recíproca, estabelecida
através de fortes relações pessoais; todos elementos do espaço casa. De modo
paralelo às campanhas, o Madureira Shopping tem procurado adotar práticas
que o colocariam como casa, dentro da já citada dicotomia do espaço brasileiro.
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O número crescente de lazer e serviços aos consumidores e à comunidade,
criando um ambiente acolhedor e de hospitalidade, é um dos exemplos que
sustentam essa idéia.
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8 CONCLUSÃO E SUGESTÃO PARA PESQUISAS FUTURAS
Discutir antropologicamente ou fazer a etnografia de um shopping center
enquanto espaço de consumo é entendê-lo dentro de uma rede de significados
que passa a influenciar a percepção de seus freqüentadores. Nesse sentido, é
preciso compreender os consumidores não como meros informantes ou atores
isolados nesse espaço, mas como peças-chaves participantes do processo de
consumo localizado nos shoppings.
Assim, a idéia de templo urge pela necessidade de relativização. Não
está em jogo a quantidade de camisas, relógios ou aparelhos eletrônicos, mas
sim o papel que os bens de consumo tem no jogo de interação entre as
pessoas. É no shopping center que estas atividades realizadas entre consumidor
e objeto não apresentam necessariamente na compra uma finalidade; pelo
contrário, os shoppings possibilitam justamente que o relacional se apresente
como um fim-em-si-mesmo, viabilizando o consumo em claros jogos de
comunicação e interação.
A importância de se recriar uma atmosfera simbólica de consumo
especialmente relevante para o consumidor brasileiro, onde é possível se sentir
protegido, confortável, envolto por sentimentos fraternos e por um tratamento
particularizado, tem encontrado tradução no reposicionamento dos shoppings
em direção ao lazer e entretenimento. Essa é uma importante idéia, pois
durante muito tempo a atração espacial dos shoppings era trabalhada apenas
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em elementos como beleza e modernidade; evidentemente, são atributos que
se mostram notórios, porém insuficientes para o entendimento do fascínio que
esses espaços exercem sobre as pessoas.
A apreciação do shopping como flanérie, associada a uma temporalidade
não histórica, é característica marcante desse espaço de consumo. A
sociabilidade descompromissada da casa projetada pelo shopping em muito se
parece com a idéia de daydreaming exposta por Campbell (1994), assim como
seu cenário se aproxima com o mundo de dentro da tela descrito por Rocha
(1995a); tanto no primeiro como no segundo, o mundo real aparece como um
conjunto de elementos insatisfatórios e desestimulantes, posto que reprimem
cotidianamente o prazer e a imaginação das pessoas. O shopping traz uma
arquitetura de sonho e fantasia em contraposição ao caos urbano e do ritmo
acelerado da rua, dando margem a distinção entre o mundo fora do shopping e
o mundo dentro do shopping; nesse sentido, tem a habilidade de recriar ilusão
para seus freqüentadores fazendo com que esses permaneçam por mais tempo
em seu interior; é uma verdadeira estratégia de marketing que surge, não raras
vezes, como uma conseqüência não-intencional.
Enfim, todos os esforços desse estudo caminham no sentido de
demonstrar que a classificação casa e rua elaborada por DaMatta "funciona"
para o consumo, em especial os shopping centers, mais especificamente em
nosso estudo o Madureira Shopping, que ora se apresenta como um elemento
constitutivo da identidade de alguns grupos de referência, ora se mostra como
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palco econômico privilegiado para uma série de comportamentos e sentimentos
específicos de natureza distinta da econômica. Essencial é perceber que a essa
disposição assumida pelo shopping não é apenas algo teoricamente
enquadrável, mas corroborado pela percepção e pelo discurso dos variados
atores que compõem o seu mundo particular.
É preciso entender que a lógica de ordenamento espacial, mais do que
uma medição física, obedece à cultura e representa, no caso brasileiro, a
oportunidade de criar fronteiras espaciais de acordo com determinadas
características morais. Tal noção, com certeza, pode servir de força-motriz para
impulsionar os desejos do consumidor, conferindo aos estudiosos e profissionais
do marketing uma ferramenta diferencial e uma nova perspectiva de análise
das relações de consumo.
Como contribuição para pesquisas futuras, sugiro o acompanhamento da
evolução do e-commerce nos shoppings. Ainda é um assunto meio nebuloso e
são raras as tentativas de empreendimento. Os shoppings falam em lançar sites
com links para suas lojas, assim como em descontos para quem acessá-los.
Muito se discute acerca de uma possível canibalização, partindo da idéia de que
são os mesmos consumidores. O sr. Mendonça Lopes, supervisor do Madureira
Shopping, acredita que a Internet "não substituirá o espirito lúdico das
compras". Em suma, é uma discussão que merece maior atenção.
Creio que outro ponto importante é entender até que ponto os shoppings
brasileiros podem apresentar as mesmas características. Se, por um lado,
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podem se valer dos mesmos atrativos e estratégias de marketing, também
podem, por outro, desenhar uma particularidade de acordo com o local onde se
situam, o perfil de seus freqüentadores ou outros atributos. De igual relevância
seria um estudo específico sobre a construção e inauguração de um shopping
em uma determinada região, analisando o ganho em desenvolvimento
econômico e comunitário.
Outra pesquisa poderia explorar a questão acerca das fronteiras entre o
que é público e o que é privado no shopping, já que se apresenta como um
espaço de acesso universal mas também possui restrições determinadas pela
pessoa jurídica privada que zela por sua administração.
Por fim, sugeriria um estudo comparativo entre shopping centers e lojas
de departamentos. Nesse sentido, uma série de variáveis poderia ser explorada,
como percepção e comportamento dos consumidores, relacionamento entre
consumidores e funcionários/vendedores ou uma comparação geral entre dois
casos específicos.
99
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Ponto f
inal de
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ibus
Entrada dos
fundos
Entrad
a
Principa
l
RedleyIgreja
Evan
gélica
Barbe
aria;
Farm
ácia;
Colch
ões
ESTRADA PORTELA
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"Autorizo o acesso de Luiz André Soares, da empresa COPPEAD, com a
finalidade de fotografar o shopping para uma pesquisa sobre espaço e
consumo em shopping centers. Sem mais para o momento, Luiz Antônio
Mendonça Lopes"
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MADUREIRA SHOPPING RIO
Título: "No meu tempo..."
Produto: Institucional
Anunciante: Associação dos Lojistas do Madureira Shopping
Duração: 60"
Agência: Salles D'Arcy Publicidade Ltda
Criação: Marcelo Giannini, Rodolfo Sampaio, Rodrigo Mendonça e Ricardo
Galhardo
Direção de Criação: Marcelo Giannini
Produtor Agência/RTV: Koca Machado
Atendimento Agência: Sérgio Malta, Darlene Oliveira e Nádia Delmar
Aprovação Cliente: Roberto Nepomuceno, Marcos Werneck e Janice Lana
Data da 1ª veiculação: Dezembro/99
Produtora do Filme: Conspiração Filmes
Produção: Lula
Direção: Carolina Jabor
Direção de Fotografia: Flávio Zangrandi
Pós-Produção/Finalização: Conspiração Filmes
Produtora de Som: Mr. Vox
Produtor de Som: Luiz Carlos Cortabitart (Gaúcho)