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Entre a assimilação e a resistência: a questão linguística como indicador da imigração latina nos Estados Unidos Resumo O presente trabalho procura fazer uma investigação sobre a imigração latino- americana nos Estados Unidos, apontando seus possíveis efeitos causais de natureza socioeconômica e as consequências culturais derivadas do fenômeno. Como um aspecto bastante ilustrativo da sociedade multicultural que os Estados Unidos vêm se tornando, foi escolhida a questão do idioma. Os Estados Unidos são, hoje, o segundo país com maior número de falantes de espanhol, atrás apenas do México. Palavras-chave: migrações internacionais, língua espanhola, Estados Unidos. Resúmen El presente trabajo busca hacer uma investigación sobre la inmigración latinoamericana en Estados Unidos, apuntando sus posibles efectos causales de naturaleza socioeconómica y las consecuencias culturales derivadas del fenómeno. Como un aspecto bastante ilustrativo de la sociedad multicultural en que se viene volviendo Estados Unidos, fue elegido el tema del idioma. Estados Unidos son, hoy, el segundo país con mayor número de hablantes del español, detrás solamente de México. Palabras clave: migraciones internacionales, lengua española, Estados Unidos. Introdução O fenômeno migratório nos Estados Unidos constitui, hoje, uma das pautas de maior destaque dentro da política internacional, como pôde ser visto através do peso

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Entre a assimilação e a resistência: a questão linguística como indicador da

imigração latina nos Estados Unidos

Resumo

O presente trabalho procura fazer uma investigação sobre a imigração latino-

americana nos Estados Unidos, apontando seus possíveis efeitos causais de natureza

socioeconômica e as consequências culturais derivadas do fenômeno. Como um

aspecto bastante ilustrativo da sociedade multicultural que os Estados Unidos vêm se

tornando, foi escolhida a questão do idioma. Os Estados Unidos são, hoje, o segundo

país com maior número de falantes de espanhol, atrás apenas do México.

Palavras-chave: migrações internacionais, língua espanhola, Estados Unidos.

Resúmen

El presente trabajo busca hacer uma investigación sobre la inmigración

latinoamericana en Estados Unidos, apuntando sus posibles efectos causales de

naturaleza socioeconómica y las consecuencias culturales derivadas del fenómeno.

Como un aspecto bastante ilustrativo de la sociedad multicultural en que se viene

volviendo Estados Unidos, fue elegido el tema del idioma. Estados Unidos son, hoy, el

segundo país con mayor número de hablantes del español, detrás solamente de

México.

Palabras clave: migraciones internacionales, lengua española, Estados Unidos.

Introdução

O fenômeno migratório nos Estados Unidos constitui, hoje, uma das pautas de

maior destaque dentro da política internacional, como pôde ser visto através do peso

que o assunto teve na última campanha eleitoral. Aproximadamente metade desses

imigrantes tem origem latino-americana, principalmente mexicana.

O presente trabalho procura fazer uma investigação a respeito do assunto,

iniciando pela conceitualização e características sociológicas do fenômeno migratório

como um todo e sua relação intrínseca com a globalização e o desenvolvimento do

capitalismo. A seguir, faremos o recorte geográfico entre Estados Unidos e América

Latina, apontando uma série de dados estatísticos extraídos, sobretudo, da

Organização dos Estados Americanos (OEA). Dentre as diversas nacionalidades que

compõem esse todo abstrato denominado América Latina, daremos especial atenção

aos mexicanos. Os números por si só justificam a escolha; o México é, de longe, o

país que mais envia concidadãos ao vizinho nortista. Por fim, como aspecto altamente

ilustrativo do choque cultural pelo qual passa os Estados Unidos, abordaremos a

questão idiomática. Embora o inglês permaneça sendo a única língua oficial, o uso do

espanhol já é uma realidade latente no país, com destaque para os estados do Novo

México e Califórnia.

1. Sociologia da migração: globalização e capitalismo

A Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL) define

migração como um

Término genérico que se utiliza para describir un movimiento

de personas en el que se observa la coacción, incluyendo la

amenaza a la vida y su subsistencia, bien sea por causas

naturales o humanas. (Por ejemplo, movimientos de refugiados

y de desplazados internos, así como personas desplazadas por

desastres naturales o ambientales, desastres nucleares o

químicos, hambruna o proyectos de desarrollo). (CEPAL, 2017)

Este não é um fenômeno circunscrito a uma determinada conjuntura histórica.

Pelo contrário, o nomadismo que caracteriza a espécie humana em seus primórdios

pré-históricos nos prova que o evento migratório é muito mais antigo do que as

próprias ideias de propriedade, sedentarismo e, principalmente, nacionalidade. No

entanto, é inegável que o advento do aumento do fluxo de transportes e comunicações

imprimiu outra dimensão ao fenômeno. A simples migração entendida como

deslocamento pela busca de recursos essenciais à sobrevivência caracterizou-se,

durante a maior parte do tempo, por distâncias curtas e médias. É fato que se podem

notar causas políticas desde a Antiguidade, como os deslocamentos causados pela

expansão romana ou a Reconquista cristã na Península Ibérica, que levou à saída dos

mouros. Porém, podemos falar de migrações intercontinentais a partir das grandes

descobertas dos séculos XV e XVI, quando os mares deixam de ser um grande

obstáculo.

Outro advento que mudará a natureza sociológica do fenômeno é o surgimento

e posterior mundialização do Estado-nação. Se antes as causas políticas das

migrações tinham uma natureza essencialmente bélica, agora a forma de organização

política que ganha o mundo imprime certo status jurídico à situação do migrante. Com

o reconhecimento da soberania de um Estado sobre determinado território, reconhece-

se que, por mais que se tente alcançar um consenso por meio do Direito Internacional,

é permitido a cada país, agora reconhecidamente soberano, proceder com autonomia

no trato dos seus residentes não cidadãos. Equivale a dizer que as possibilidades

jurídicas de um migrante podem ser tão múltiplas quanto for o número de países sobre

o globo.

Buscando as raízes históricas do fenômeno, encontraremos a sua

correspondência com outro conceito, a saber, a globalização. Se tem como lugar

comum dois momentos em que houve uma explosão quantitativa nos fluxos

populacionais em relação aos períodos imediatamente anteriores, que são

coincidentes com dois momentos de criação de novas tecnologias que permitiram

ditos deslocamentos. São estes a já citada expansão marítima da qual deriva a

colonização americana, e a intensificação de fluxos transnacionais sem precedentes

que se iniciou nos anos 1970 e dura até a atualidade. Ora, chegamos então aos dois

momentos onde os teóricos da globalização disputam a sua origem. Temos, então,

que a globalização, além de capitais, bens e serviços, desloca indivíduos. Examinando

mais a fundo estes dois marcos, encontramos, também, a mundialização do

capitalismo ainda em sua fase mercantilista (no caso das grandes navegações) e a

imposição também mundial de um neoliberalismo desenfreado que antecedeu o fim da

Guerra Fria (no caso das décadas de 1970 e 1980). Encontramos, então, uma relação

intrínseca entre o trinômio capitalismo – globalização – migração. Constatamos,

portanto, qual a particularidade do fenômeno migratório nas eras moderna e

contemporânea que deve orientar as pesquisas na área a diferenciá-lo de suas

versões cronologicamente mais distantes. Insistir que as migrações acontecem desde

a pré-história equivaleria a cair em um positivismo anacrônico e fugir às raízes mais

profundas que, de fato, levam alguém a trocar o seu país por outro hoje.

Existe uma variada gama de correntes de pensamento que tentam explicar o

fenômeno migratório, como a funcionalista, microeconômica, institucionalista etc.

Porém, se pensamos em uma intersecção entre a Sociologia das Migrações e as

teorias de Relações Internacionais, encontraremos uma vertente comum às duas

ciências, a do sistema-mundo, tributária da obra de Immanuel Wallerstein (2004).

Entendemos, aqui, essa teoria como condizente com nossa linha argumentativa, no

sentido em que prioriza como unidades analíticas com potencial explicativo dos

fenômenos de caráter internacional ou transnacional o capitalismo e a divisão

internacional do trabalho por ele gerada. Para Massey (1994), as migrações são

(...) resultado de la globalización económica-cultural y de la

penetración del capitalismo (empresas multinacionales, gracias

al apoyo de gobiernos neocoloniales) en todos los países

buscando materias primas, tierras, trabajadores y

consumidores. (MASSEY apud LÓPEZ, sem data)

A teoria do sistema-mundo apropria-se dos termos cunhados na América

Latina de centro e periferia e inaugura a categoria de semiperiferia. Ao fazê-lo, objetiva

mapear o fluxo e o papel de cada Estado-nação no jogo do comércio internacional,

tipificando, por exemplo, seus produtos de importação e exportação. Mas, analisando

os dados da Divisão de População das Nações Unidas (2009), podemos enxergar

como a divisão internacional do trabalho rege também os deslocamentos

populacionais. A terminologia primeira, que ignorava o papel da semiperiferia, nos

permitia fazer uma análise das relações norte – sul. Se utilizamos essa divisão dual do

globo, que equivale a dizer que o mundo está dividido entre ricos e pobres, verificamos

que houve, no ano citado, um contingente de 62 milhões de migrantes que se dirigiram

da periferia para o centro, contra apenas 14 milhões que percorreram o caminho

contrário. A importância do conceito de semiperiferia está justamente em compreender

como, no sul global, existem países que exercem o papel de “amortecedores sociais” e

alimentam, em relação à periferia, o sonho da ascensão, fazendo-o parecer viável por

menor que seja o nível de mobilidade dentro da pirâmide social. Portanto, a

semiperiferia é uma categoria imprescindível para o estudo das relações sul – sul, tão

em voga desde a ascensão dos governos progressistas na América Latina. Ao

aplicarmos esse recorte às migrações internacionais, encontramos, para 2009, 61

milhões de migrantes, número quase equivalente aos que se deslocaram para o

centro.

Figura 1 – Migrações internacionais em 2009

Embora não tenha elaborado, stricto sensu, um conceito de globalização,

Milton Santos (2000) aponta para o seu fracasso em sua tentativa homogeneizadora.

Paradoxalmente, segundo o autor, tal tentativa tem justamente o efeito inverso, ou

seja, reforça e alimenta as disparidades entre as diversas áreas do globo. Ainda que

haja uma tentativa de homogeneização do modelo econômico, a figura acima deixa

claro que os resultados sociais ainda se verificam de maneira gritantemente distintas.

A globalização pretende ser homogeneizadora, como presença

obrigatória em todos os continentes e lugares. E a promessa

de construção de um mundo só estaria incluída nesse

movimento. Todavia, tal pretensão até agora apenas renova

disparidades e cria novas desigualdades, o que é devido à

violência dos seus processos fundadores, todos praticamente

indiferentes às realidades locais. A aplicação brutal de

princípios gerais a situações tão diversas é criadora de

desordem. Por isso mesmo, a globalização beneficia apenas

uma parcela limitada de atores, enquanto causa transtornos e

danos à maioria das empresas e das pessoas. (SANTOS,

2000)

2. Em busca do sonho americano: a imigração latina nos Estados Unidos

A América Latina e o Caribe são, hoje, a região que mais envia emigrantes a

demais países do globo, aparecendo na frente até mesmo de locais com guerra

declarada. Entre os anos de 2009 e 2012, partiu do subcontinente um contingente de

6,5 milhões de pessoas, o que equivale a um cidadão a cada sete nos países de

origem (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 2015).

O principal destino continua sendo os Estados Unidos, que, juntamente com o

Canadá, acolhem metade dos imigrantes latino-americanos. É certo que, com a crise

econômica decorrente da irresponsabilidade creditícia das instituições bancárias do

país, houve um significativo decréscimo no número de deslocamentos, registrando-se

em 2012 uma movimentação 4% menor que em 2009 (OEA, 2015). No entanto, essa

já é uma realidade por demais significativa e vem chamando cada vez mais a atenção

da vida política estadunidense.

Não é de se estranhar que, como maior potência global, os Estados Unidosa

atraiam pessoas do mundo todo. Seria um exagero sem respaldo estatístico reduzir os

imigrantes residentes no país a uma única origem. No entanto, os números mostram

que a América Latina tem um papel gigantesco na composição dessa população

estrangeira. Em 2013, viviam no país 45.785.090 estrangeiros, representando 14,3%

da população. Destes, praticamente 22 milhões possuíam origem latina (OEA, 2015).

Como podemos observar na tabela abaixo, o país que mais envia pessoas é,

disparadamente, o México, seguido por El Salvador, Cuba e Guatemala.

Tabela 1

A seguir, faremos uma análise mais detalhada da imigração mexicana.

2.1 “Tan lejos de Dios y tan cerca de Estados Unidos”1: a migração

mexicana

O estudo de um caso migratório concreto e bilateral exige o cuidado especial

de se investigar as relações causais tanto na realidade do país de origem como no de

destino, sem que isso implique, necessariamente, em dissimular uma espécie de “via

de mão dupla” onde ambos os atores tenham o mesmo poder de voz.

O caso mexicano é bastante peculiar. Nos últimos anos, a migração tem se

tornado um tema de cada vez mais destaque na realidade internacional, e o imaginário

popular cada vez mais associa os países expulsores a tragédias como guerra, fome,

generalização da violência e do desemprego etc. ... ou ao fato de ser vizinho do país

mais rico do mundo. Ou seja, embora o México seja, sem dúvida, um dos primeiros

países quando se pensa em emigração, ele não é associado às causas que

comumente geram estes fluxos populacionais. É fato que, nas últimas duas décadas, e

em especial depois da assinatura do NAFTA (sigla em inglês para Acordo de Livre

Comércio da América do Norte), a situação social no México tem se deteriorado em

um nível alarmante. Mas, ainda assim, essa degradação não é comparável aos

eventos que assistimos em alguns países do Oriente Médio e da África.

Seguindo aqui a interpretação derivada do sistema-mundo, o México pode ser

enquadrado como um país semiperiférico, sendo a segunda maior economia latino-

americana. Portanto, contrasta com os demais casos acima citados, onde as

populações fogem de países pertencentes à periferia. Essa situação, por si só,

concede um especial peso á situação interna dos Estados Unidos. Ela induz ao

reducionismo da explicação unilateral. Na realidade, existem teorias que sustentam

justamente a propensão de lugares assim, com dinamismo econômico e um

capitalismo punjante, mas sem a devida evolução social e repartição das riquezas,

como propícios à evasão de pessoas. Por um lado, esse desenvolvimento gera em

uma parcela da população as condições materiais para emigrar. Segundo Durand,

Malone e Massey (2009), ao contrário do que se imagina, é justamente das zonas

mais dinâmicas do país, e não das mais pobres, de onde derivam a maior parte dos

migrantes. Ainda assim, segundo os mesmos autores, as

1 Frase conhecida no México, costumeiramente atribuída ao ex-presidente Porfirio Díaz. Na

realidade, foi proferida pelo intelectual Nemesio García Naranjo. (OPINIÓN, 2013)

transformaciones sociales, económicas y políticas que

acompañan la expansión de los mercados. [...] La entrada de

mercados y sistemas de producción que exigen inversiones

intensivas de capital en las sociedades donde el desarrollo del

capitalismo es incipiente, afectan los pactos sociales y

económicos existentes y producen desplazamiento de la gente

y de sus medios de vida trasnacionales, dando origen así a una

población móvil de trabajadores que buscan, de manera activa,

nuevos modos de subsistência. (DURAND, MALONE e

MASSEY, 2009)

A emigração no México carrega consigo, portanto, todas as contradições da

realidade semiperiférica. Seu papel de amortecedor social pode ser verificado, por

exemplo, na maneira como, ante o recrudescimento de políticas migratórias por parte

dos Estados Unidos, a tendência mexicana é a replicação de tal recrudescimento em

relação aos seus imigrantes centro-americanos (CANTO, 2011).

Destarte o peso da realidade socioeconômica do México no fenômeno, em

termos de definição de políticas públicas concretas, o poder decisório se encontra

majoritariamente (para não dizer quase que exclusivamente) no governo

estadunidense. Os momentos históricos em que o México teve algum poder de

barganha coincidiram com necessidades conjunturais da economia estadunidense.

Especialmente em momentos de conflito armado, onde a economia estadunidense

tendeu ao crescimento, como a Segunda Guerra Mundial e a Guerra da Coreia

(SÁNCHEZ, 2004), o governo mexicano teve a oportunidade de exigir tratamento

digno aos seus concidadãos.

Em 1942, portanto às vésperas da Segunda Guerra Mundial e do boom dos

Estados Unidos como potência mundial, os dois governos firmam o programa

Braceros, que durará até 1964, mas terá o seu auge nos anos 1940. O grande

desenvolvimento tecnológico dos Estados Unidos na época cria um déficit em

determinados tipos de emprego, de baixa remuneração e baixo prestígio social. Na

década de 1960, passado o auge do aceleramento econômico, o programa perde

fôlego, até se extinguir. Já nos anos 1970, quando da crise petroleira, inicia-se a era

das deportações em massa.

Conforme aumenta el nivel de calificación de los nativos en una

economía pujante, se registra una excedente demanda laboral

en las ocupaciones de baja calificación. La tendencia es clara:

cuando se requiere mano de obra extranjera de baja

calificación se flexibilizan las políticas de inmigración: al

momento en que la situación económica cambia, las políticas

se vuelven más restrictivas: aquellos que antes eran

bienvenidos se vuelven repudiados. (CANTO, 2011)

É importante notar que essas políticas estão permeadas por um forte caráter

de classe. Especialmente os grandes proprietários agrícolas foram beneficiados na

época dos acordos bilaterais que favoreceram o fluxo migratório entre os dois países,

já que estes necessitavam de uma mão-de-obra que a população local não era capaz

de preencher totalmente. No entanto, o mito do interesse nacional, que ainda permeia

uma parcela considerável das Relações Internacionais, cai por terra quando

analisamos a dura oposição sindical a essa onda migratória. O imigrante mexicano

passou a ser visto, pelas organizações de representação trabalhista, como o ser

exógeno que viria “roubar o emprego” do trabalhador estadunidense. Dentro deste

conflito de interesses, prevaleceu, portanto, a vontade do proprietário rural sobre a do

trabalhador organizado.

Também no momento em que o acordo se desfaz e a perseguição à imigração

se torna uma política de Estado, com critérios cada vez mais restritivos, há aí o

atendimento de uma nova demanda dos proprietários: a criação do mercado do

imigrante ilegal, sem garantias trabalhistas e com baixíssimos salários. Embora, desde

1986, a Immigration Reform and Control Act (IRCA) tenha se proposto a punir,

também, o contratante da mão-de-obra que esteja irregular no país, o que se verificou

na prática, de lá até os dias de hoje, é a entrada massiva de não documentados e um

mercado altamente lucrativo para o empresariado que absorve esses trabalhadores.

3. O aspecto linguístico como indicador do fenômeno migratório: entre a

assimilação e a resistência

O idioma exerce, desde a formação do Estado moderno, um papel de

homogeneização seletiva bastante forte. Por um lado, é o distintivo mais facilmente

perceptível de determinada nacionalidade. No século XIX, quando a ideologia

nacionalista toma conta da Europa (HOBSBAWN, 1987), falar uma língua passa a

significar uma reafirmação identitária. Por outro lado, esse processo de

homogeneização foi marcado por uma boa dose de violência simbólica e, não raras

vezes, pelo etnocídio de culturas locais. A construção do “ser francês”, por exemplo,

implicou na extinção do idioma galego, e a supremacia de uma língua sobre a outra

tornou-se uma forma de dizer qual dos dois grupos deteria o poder naquele novo

aglomerado político que se estava formando.

Pois bem, saindo da realidade europeia e estudando o processo de formação

dessa tal identidade nacional na construção do Estado americano, não poderíamos

deixar de mencionar a sigla WASP (White, Anglo-Saxon and Protestant – em

português, Branco, Anglo-Saxão e Protestante), que, apesar de hoje ter uma

conotação bastante pejorativa, carrega consigo toda a síntese do que seria o cidadão

do país. Toda uma mitologia de “povo eleito” e “missão civilizatória”, carregada de

todos os preconceitos possíveis, foi criada em torno desse tipo ideal.

Uma vez convertida em grande potência e em país de destino de um grande

fluxo de imigrantes, a sociedade estadunidense se viu diante de uma heterogeneidade

cultural que resultou em uma gama de reações conservadoras e xenófobas. E,

voltando às origens do nacionalismo, o idioma volta com força como forma de exercer

poder.

Que el lenguaje sea el utensilio que media entre el hombre y el

mundo –con el que se otorga sentido y se lee la realidad

circundante– y la lengua una institución social de elevada carga

emblemática convierten a ésta en un instrumento – práctico y

simbólico – de poder. (CRIADO, 2004).

Dentro da variada gama de línguas trazidas aos Estados Unidos com os

imigrantes, destacam-se o espanhol, o chinês e a versão haitiana do francês. O

espanhol é, de longe, o idioma mais falado depois do inglês. Tal fato constitui não só

um destaque a nível interno, mas também global, uma vez que os Estados Unidos

tornaram-se, somando os hispanos nativos aos descendentes bilíngues, o segundo

país com maior população hispanofalante do planeta, perdendo apenas para o México

e superando a Colômbia e a Espanha (INSTITUTO CERVANTES, 2010).

Gráfico 1

Ainda que, aparentemente, esses dados propaguem o auge da língua

espanhola nos Estados Unidos, nunca a reação conservadora midiática e política foi

tão forte. Um indicador importante desta reação são as políticas educacionais. Desde

a década de 1980, existe um movimento intitulado English-Only que defende políticas

de assimilação linguística nas escolas, radicalmente contrário à educação bilíngue e

com um projeto que ofereça, o mais rápido possível, a “possibilidade” de o estudante

hispanofalante cursar classes em inglês, livrando-se logo deste “problema”. Ainda as

ditas escolas bilíngues abandonaram há muito tempo a perspectiva da manutenção de

dois idiomas e passaram a focar na gradual substituição acadêmica do espanhol pelo

inglês. Temos, portanto, que ambas as posições, aparentemente antagônicas, partem

da perspectiva da “lengua como problema” (RUIZ, 1984).

A associação que se faz entre o domínio pleno do inglês e as possibilidades de

ascensão social geram, muitas vezes, uma oposição entre os próprios pais latino-

americanos à educação bilíngue. E foi justamente um boicote a uma escola desta

modalidade em Los Angeles, cidade com maior número de hispanofalantes do país

(40%, segundo Criado), que permitiu a explicitação do discurso da vertente English-

Only. A partir daí, o espanhol sofreu sucessivas derrotas legais, sendo a educação

bilíngue proibida na Califórnia, Arizona e Massachussets. Os projetos de lei aprovados

nos três estados previam que, no prazo máximo de um ano, o estudante deveria estar

apto para frequentar aulas integralmente em inglês, e incluía inclusive punições aos

docentes que insistissem nos métodos antigos.

Temos, então, que na mesma medida em que o espanhol se torna uma língua

não oficial falada nos Estados Unidos, criam-se políticas de reafirmação da língua

inglesa e nota-se uma diferenciação de prestígio social baseada na fala, herdada do

nativismo intrínseco à cultura de colonização inglesa que deu origem ao Estado

americano. E a tendência é que esse debate se torne cada vez mais acalourado. As

projeções indicam que, até 2050, haja um total de 138 milhões de hispanofalantes em

território estadunidense, e que o país supere o México no ranking de utilização da

língua (SPUTINIK, 2015). Por outro lado, a educação tem se tornado o aspecto político

prioritário para a comunidade latina, sendo citado como tal por 60% destes, ficando

amplamente a frente da economia (39%) e saúde (23%). Em nenhum outro segmento

da população, a educação aparece como uma preocupação tão proeminente

(CRIADO, 2004).

Conclusão

Através deste estudo, pretendemos contribuir para a análise e interpretação da

migração latino-americana nos Estados Unidos, através das estratégias de

contextualização e exemplificação de aspectos práticos. Pudemos notar que a história

da humanidade é marcada por grandes deslocamentos, mas que o fenômeno

migratório da maneira como acontece hoje é tributário de fluxos de expansão do

capitalismo, acompanhados também da processo de globalização.

No caso dos Estados Unidos, o seu status de maior potência lhe transforma em

destino prioritário. Este recebe imigrantes de múltiplos lugares, mas praticamente

metade, provavelmente em função da proximidade geográfica, vem da América Latina.

O México é o principal destaque. Em relação a este país, pudemos usá-lo como o

principal exemplo de emigração a partir de um país semiperiférico, com todas as

contradições de um capitalismo dinâmico, porém concentrado e sem correspondente

desenvolvimento social.

Por fim, verificamos a importância da questão idiomática decorrente deste

movimento. pudemos, através de dados estatísticos, verificar que os Estados Unidos,

ainda que tendo o inglês como língua oficial, tem o segundo maior número de falantes

de espanhol hoje. Por fim, foi feita uma análise de políticas públicas referentes ao

idioma, em especial na área de educação. O tema suscita importantes debates e uma

reação conservadora bastante agressiva, que defende a assimilação como necessária

para a manutenção de um imaginário de identidade nacional.

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