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Overbulding é a expressão em estrangeiro que designa o excesso da oferta construtiva em função da procura potencial.

Os “mercados”, essa entidade mais esfumada que D. Sebastião, são tudo menos invisíveis, pelo menos nos seus efeitos. Na foto existe uma rua impecavelmente pintada, passeios iluminados

Porém, se é verdade que escrutínio de exemplos na história de Braga possam evidenciar antecedências que justifiquem o enraizamento e a continuidade do sempre a crescer, não é me-nos certo, que o mito se consubstanciou nestas últimas quase quatro décadas, quando se descobriu que a área privilegiada de expansão da cidade (1970/80) incorporava terrenos cujo subsolo continha testemunhos patrimoniais de valor arqueológico, datá-veis ao tempo de Bracara Augusta.

Como já tivemos oportunidade de abordar em anterior traba-lho, a tensão crescente entre os interesses do sector imobiliário e o dos defensores do património cultural, que se lhes opuseram, de algum modo recuperaram um tipo de debate político que tinha já os seus antecedentes na cidade do início século XX. Deu-se como que uma miscigenação dos referentes, onde os devotos do património, apologistas do valor sacralizado dos testemunhos romanos, enfrentaram os politeístas do pragmatismo político. Estes últimos, contudo, rapidamente deixaram de se sustentar na resposta social que era reivindicada no início do novo regime com a prioridade dada à habitação, para passar à tentação utilitária, e algumas vezes totalitária, de responder à sociedade de consumo que despontava. Num certo sentido, assistir-se-ia ao contraste discursivo balanceado entre um certo intelectualismo moralizan-te e um populismo imediatista, predador, sendo que ambos, em simultâneo, para o melhor e para o pior, ajudaram a fixar uma imagem nova da cidade.

Ponto de situaçãoComo não nos cansamos de notar - porque entendemos não ser um mero acaso - entre as boas-vindas da placa da auto-estrada que acena aos que nos visitam com a imagem do principal ícone religioso — a Sé — subordinado ao epíteto de Cidade do Barroco, e a saudação dos mortos pratrimonializados (ou esquecidos) das necrópoles à entrada da cidade romana, detectamos de imediato a indistinção do tempo, o poderoso postal que atravessa a his-tória da urbe, que ora opõe, ora confunde, o cristão e o pagão em Braga. Sobre isso encontramos muitos exemplos. Do mesmo modo que o monumental novo Estádio Municipal, do laureado arquitecto Souto Moura, sendo uma obra de referência do regime, é Barroco por exaltar a grandiosidade principesca e absoluta do autarca, ele é também, simultaneamente, pagão pela natureza da finalidade que lhe está destinada. São os jogos do povo, con-sagração Clássica que se faz dos ídolos da contemporaneidade, os futebolistas, os semi-deuses de um cristianismo ausente. Uma vez mais e sempre a imagem hodierna de Braga confronta-nos com essa tensão permanentemente entre o Barroco e o Romano, entre o cristão e o pagão.

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entRe a agRos Pagã e a civitas cRistã A etimologia do pagão, do pagus latino, a marca de demarcação da aldeia, isto é o camponês que nos remete para o oposto de cidade. É ainda, e de facto, neste caso a urb de Bracara Augusta, indexada a esse imperador bimilenário e distante. A cidade sinóni-mo de civilização, da romanização que, com Constantino, depois do primeiro quartel do século IV, passará a ser sinónimo de cris-tianização. A cidade urbanizada, luzeiro de cultura por oposição ao campo, ao agros, bárbaro e rústico, mais próximo das forças da natureza do que da revolução do redentor, Deus feito homem. Tudo isto pode ser um lugar-comum, quiçá a preservação retórica de imagens persistentemente trabalhadas, enfunadas de mito, de lugares-comuns, mas certamente amplamente reconhecíveis no tempo e no espaço. Contudo, a urbanidade clássica de Braga, desde as suas origens esteve sempre subordinada ao campo, a uma matriz rural. Significado mais profundo de terra, telúrico, que se associa ao espírito rústico do campo, pagão (paganum), isto é, bárbaro e não urbano, Politeísta por provir de muitos deuses.

A dramaturgia da imagem da cidade de Braga articula com rara reciprocidade a Semana Santa e o Barroco. Mais não fosse, a referência comunicacional síntese e oficiosa da urbe afirma e revê-se nesta associação.

Para melhor compreendermos este epíteto teremos de recuar um pouco e, antes de mais, recordar que o movimento mental da Contra-Reforma na Igreja teve num dos Arcebispos de Braga – D. Frei Bartolomeu dos Mártires (1514-1590) - um dos modelos uni-versais de pastor saídos do Concílio de Trento (3op. 1562/63). No período que se seguiu a cidade refulgiu a sua idade de ouro, onde o seu Príncipe, governava indistintamente o húmus do Reino ce-leste e a República bracarense. De facto, o mitrado de Braga além de Primaz das Hespanhas dirigia politicamente uma vasta dioce-se e governava uma cidade que prosperava pelo que se designou chamar indústria do culto (sedas, sinos, velas, paramentarias, vestuário, artes decorativas e do espectáculo, etc.).

De facto, se há perenidade do Barroco bracarense que se pro-jecta nos dias de hoje, é certamente, as festividades da Semana Santa (Bandeira, 2003). No plano subsistente das imagens mais fortes e intensas são precisamente as procissões e os préstitos litúrgicos, os eventos onde se testemunha essa tensão entre o religioso e o profano. A atmosfera de contrição e a penitência que se anuncia já sob os aromas primaveris, convoca igualmente uma outra tensão latente na Semana Santa, de novo indexada à dicotomia do cristão e o pagão, simbolicamente transfigurado no préstito dos farricocos embuçados. Isto é, o momento de pro-miscuidade entre o público e o privado. Há como que um natural contraimento, consciente da condição universal da fragilidade humana, que é inerente ao luto pela paixão de Cristo em simul-tâneo com a ressurreição expectante. O triunfo da evangelização romana sobre o transe promissor da estação que se anuncia.

Porque o desencanto se tornou crónico ele não merece a nossa angústia. A continuação salutar do caminho, quiçá, está em resgatar a infância que conservamos dentro de nós

Vivemos tempos de transição que justificam um sentimento de dupla perda, vaticina-nos João Ferrão – ex-secretário de Estado do Ordenamento do Território e das Cidades (2005-2009) – no seu mais recente livro1 a propósito, da perda de um passado cada vez mais longínquo e que já não é possível prolongar; e, ao mesmo tempo, a perda de um futuro imaginado que, por boas e más ra-zões, já não é possível cumprir. Porquê então, chegados a este es-gotamento existencial, ainda continuamos a saber tão pouco sobre aspectos decisivos para tornar mais eficiente e qualificada a política pública de ordenamento do território? E que domínios merecem a nossa atenção? Questiona-nos e desafia-nos o autor logo a abrir.

Fazendo uso da linguagem, que sempre nos põe em esforço de comunicação, ainda que falemos diversas línguas, temos vin-do a insistir no trilhar da semiologia urbana como método, neste caso, para relembrarmos a nossa infância [do território]. Isto é, para nos compreendermos melhor a nós próprios, para melhor contemporizarmos com essas angústias todas que andam por aí, com todo esse chorrilho de metáforas sobre a ansiedade de permanentes prospectivas para o território, pretensamente re-volucionárias ou regenerativas, a maior parte delas dirigidas à cidade das nossas melancolias colectivas.

Achamos, porém, que não nos devemos cingir ao simbólico, ou meramente ao emotivo, como uma elucubração pessoal, procu-rando a alternativa de sempre vasculhar a essência de um espaço vivido. Os seus sinais, os códigos, os símbolos, a semântica de um rasto que nos solidariza, que nos identifica, nos proporciona um sentimento de irmandade, cooperante e cosmopolita.

Nesta circunstância o nosso desafio está em tentar fixar alguns dos sulcos mais decisivos e duradoiros do território bra-carense, curiosamente, um dos mais concentracionários da ur-banidade dispersa do Entre Douro e Minho, onde esta se integra. Certamente um pretexto para tocar a reunir.

Mais velh[a e fecunda] do que a Sé de Braga foi aforismo mítico nacional, que traduz a elevada antiguidade da urbe. Tão antiga que, sendo das primeiras catedrais peninsulares, é o epicentro de um culto mais antigo do que aquele que foi votado a Santa Maria de Braga, a matriarca, ao que se supõe, herdeira da Ísis “lactans”, amamentando o enigmático Horus. Formalmente cristianizada há mais de 900 anos atrás, constituiu um foco irradiador de fé para toda a cristandade, desde essa que era então a finisterra oriental do império romano, bastando para tal avocar o autor da Historiæ ad-versum Paganos, Paulo Orósio (séculos IV e V), natural de Bracara.

A Sé-Catedral através da sua poderosa força gravítica será a mesma que constituirá uma espécie de repositório privilegiado das prelaturas dos princípes-arcebispo. Cada um dos Primaz das Hespanhas a usará como uma expressão dos seus desíginios. D. Rodrigo da Moura Teles (1704-1728) irá revestir a fachada do aparato barroco que ainda hoje ostenta.

A Sé de Braga tornou-se assim geradora da centralidade medieval da urbe, ao ordenar um raio sensivelmente constante ao perímetro amuralhado, sem, todavia, escamotear a evidência ancestral, pré-existente, dos núcleos bárbaros dos arredores, o suévico S. Martinho de Dume (Séc. VI) e o visigótico S. Frutuoso de Montélios (Séc. VII), evidências atractoras da fertilidade do Cávado.

As figuras alegóricas jamais deixarão de povoar o imaginário bracarense, de que é exemplo a cibele coroada (R. Morais, 2010) antropomorfização da urbe de Bracara, que votaremos encontrar no frontão do Arco da Porta Nova, no salão nobre dos Paços do Concelho, ou no púlpito da Igreja do Recolhimento da Penha de França. A perenidade da simbologia feminina de representação da cidade manter-se-á, inclusive, na sua própria heráldica, conforme se pode constatar no brasão de armas da cidade, enquadrada por um misto da fachada da Sé com a as muralhas da cidade.

Talvez por isso mesmo também se possa compreender que a Sé Catedral de Braga, embora desprovida de todo o arrojo gótico, alheia às acentuações românticas daquelas ousadias arquitec-tónicas que incidiram sobre as catedrais europeias do século XIX, permaneça algo voluntariamente equívoca no seu referente temporal. A Sé conserva a aura mística e mítica do eterno retorno ao lugar mágico, ou sagrado, do nascimento, quiçá de ambos, da fertilidade do ventre materno, do locus das origens, enfim, do re-duto profusamente desenhado, fotografado, que serviu de motivo imagético privilegiado da urbe, como se de facto quisesse ilustrar o lugar onde tudo começou.—

sulcos PRofundos da uRbanidade bRacaRense: o Pagão e o cRistãoDeambulações urbanológicas pela geografia cultural De braga —miguel sopas De melo banDeira

1 Ferrão, João – O Ordenamento do Território como Política Pública – Fund. Calouste Gulbenkian, SEB, Lisboa 2011

Buscamos então uma série de mensagens que se podem consubstanciar em ideias. Elementos de representação que pos-sam identificar o território como tal, de preferência que sejam reconhecidos por todos, tanto interna como externamente. Não precisam de ser conceitos axiológicos ou sistémicos, carregados de armaduras quantitativas e municiados de erudição, podem bem até ser somente imagens, fragmentos dispersos de ditos populares, até mitos, na mesma perspectiva com que R. Barthes (1956) afirmou não haver limites para tal, porque o universo é infinitamente sugestivo. Todavia, têm de demonstrar alguma robustez. Para persistir têm de ter atravessado os tempos incó-lumes às transformações mais profundas, dir-se-ia até, às rup-turas historiograficamente mais determinantes e consagradas (M. Bandeira, 2009).

De facto, glosando de uma afirmação anterior, reiteraríamos que o território é também uma superfície de inscrição comuni-cativa, diríamos hoje, um écran de manifestação de intensidades humanas, cada vez mais rápidas, cada vez mais alternas, cada vez mais alheias entre si.

Para lá da vertigem, recuperemos então a metáfora do pa-limpsesto, um elemento artesanal e um factor de comunicação oposto, de longo rasto, é certo, superfície de transmissão de men-sagens, que ora se interpenetram, sobrepõem, cruzam, chocam, ora contradizem, identificando e identificando-se, afirmando-se e, naturalmente, extinguindo-se.

Retomando o ensaio reflexivo iniciado em “três mitos visu-ais de Braga” (M. Bandeira, 2009), onde discorremos sobre a representação e a permanência de alguns sulcos enraizados que têm contribuído para construção da identidade bracarense, centramo-nos agora na perspectiva dupla e interactiva de uma mundividência entre o pagão e o cristão, como, p. ex., também é o romano e o barroco, dois filões identitários que acenam as mais diversificadas encenações da imagem de Braga.

A cidade de Braga, a Roma portuguesa, como foi reiterada-mente propagandeada durante o Estado Novo (1933-59) atribuiu a Braga uma imagem nacional de senso comum fundamental-mente eclesiástica e conservadora. Recorde-se, também que, certamente não foi por acaso, que a revolta militar de 28 de Maio de 1926 partiu de Braga, ou que A. Oliveira Salazar (1889-1970), celebrando-o, escolhesse o varandim do Convento (então quartel) do Pópulo para daí proferir o seu célebre Deus, Pátria, Autoridade e Família.

Este discurso e a imagem de quem o proferiu ainda hoje res-soam nas referências à cidade de Braga. No entanto, para lá de uma religiosidade formal esmorecente, já notória desde os mea-dos de 1960, mas que, todavia, se acentuou com o forte pendor secularista que resultou à revolução dos cravos, pode-se hoje dizer, está quase ausente da própria imagem pública.

Não fosse ainda a tremenda força das frontarias e dos retábu-los do Rocaille bracarense, divulgadas ao mundo por um historia-dor de arte americano, que simultaneamente fazia espionagem no quadro da guerra fria, ou, de um modo publicamente mais vivencial e telúrico, pela persistência sentida das celebrações pascais da Semana Santa, e arriscaríamos mesmo dizer que uma certa imagem de marca da cidade não passaria mesmo de um equívoco, já que até alguns dos ícones religiosos dominantes cor-rem hoje o risco de se confundirem com um novo tipo de idolatria. Mas essa é outra história.

Será, ainda assim, pelo caso concreto da Semana Santa que desfrutamos hoje de um dos postais mais potentes da cidade, que atrai vagas de fotógrafos na esteira do último reduto do Barroco vivo entre nós. Busca-se, algo freneticamente, o material expres-sionista das faces dos celebrantes, os contrastes de iluminação, a imagem omnipresente do Cristo Redentor das nossas infâncias. As celebrações oferecem-se mesmo como um último bastião de autenticidade e de espontaneidade facial da massa humana assistente. Vezes há que até surgem enfunadas de tragicomédia, filtradas no halo da luz das velas ou da chama das tochas, tendo por pano de fundo as trevas nocturnas das procissões.

Ao mesmo tempo confrontamo-nos perante o prosaísmo dos néons e das pipocas e o anacronismo dos pés descalços dos pe-nitentes. É a verdadeira assunção do preto e branco, de rostos reveladores de boçalidade e de delicadeza, de sofrimento e de esperança, de uma beleza que desponta ou até pelo desajuste que se revela. A cidade cheira a incenso como uma imensa sacris-tia ao mesmo tempo que se sente o crepitar das farturas. Braga come, bebe e se diverte, sem dever nada à folia dos eventos do recomeço pagão que subsistem de outras eras.—

Do Bom Jesus do Monte evidencia-se a escala da paisagem urba-na concebida como tal. Isto é, para se ver e ser vista. Demasiado distante para ser considerado uma janela sobre a cidade, mas suficientemente cercano para constituir um ponto de compo-sição do horizonte urbano, o Bom Jesus cedo ocupou um lugar proeminente no imaginário colectivo dos bracarenses. Primeiro foi a perspectiva deliberadamente cristã de conceber um santu-ário para ser observado a partir da cidade, depois veio a estância turística, valorizar a função de miradouro, de vista sobre a cidade. Por um lado, o critério de uma geografia sagrada, como nos pro-põe Portocarrero (2010), o claramente visto do ponto de fuga eu-clidiano, ou o axis mundi, que constitui o escadório do Bom Jesus do Monte, programado para ser enquadrado a partir da Arcada, testemunho evidente da recriação dramática de uma via crucis, motivo exaltante de projecção visual de um sacro monte, dir-se--ia de uma espécie de altar sobre a nave a céu aberto da Avenida Central. Por outro lado, foi, com a invenção da Braga Pitoresca ou a Verdadeira Cyntra do Norte, que se começou a construir uma das primeiras visões modernas de Braga.

Embora o Bom Jesus nunca deixando de ser meta de peregrino e lugar de oração, foi e é, também, o primeiro grande destino tu-rístico de referência do oitocentismo local.

Desde sempre santuário cristão e, ou à vez, instância de repou-so para os lídimos herdeiros do tour, essa expressão, chamar-lhe--íamos, do paganismo moderno, reconheceu seguramente, de há três séculos a esta parte, uma crescente ambivalência da função de arrabalde divino e de mundano destino de férias, onde não fal-tou mesmo o parque de diversões, os botequins de circunstância e até um dito casino. Entre todas as iniciativas a mais paradigmática

para o ilustrar da presente dicotomia, já o dissemos, foi a criação da Casa das Estampas (1926), do arquitecto Raul Lino (1879-1974), marco testemunho da permanente imanência da imagem no Bom Jesus do Monte, instrumento de fixação das pulsões entre o humano e a natureza, num sítio que se pretendeu sempre único.—

Do continuum urbanizado que hoje se estende pela encosta aci-ma, ou abaixo, conforme a perspectiva em que nos colocamos, deparamo-nos com um espaço urbano indiferenciado e fragmen-tado, por um processo intensivo de loteamento realizado à escala do parcelário das antigas quintas rurais.

Um pouco ao critério de R. Barthes, é Braga sempre a crescer. Trata-se do mais recente mito urbano. Retirado do slogan central de uma campanha eleitoral passada. Para além do detalhe dos números, são conhecidos alguns referentes correlacionados, tais como a terceira cidade do País e a cidade (das) mais jovem da Europa, motivo publicamente invocado no desígnio de candidatu-ra de capital europeia da juventude (2012).

Saídos de mais um recenseamento da população, Braga conta hoje com 181 474 habitantes (2011), reunindo o limite da cidade canónica mais de 70% deste valor. São conhecidas as elevadas taxas de crescimento, especialmente no âmbito do desfasamento com o número alojamentos, cujos valores oficiais, francamente conservadores, reconhecem mais de 20 mil devolutos. Isto é, Braga, tecnicamente, se imaginada numa situação de requisição civil para fazer face a uma qualquer catástrofe, teria a possibili-dade de alojar, sem violentar a intimidade dos seus residentes, uma população entre 30 a 40 mil pessoas…

“Século Ilustrado”João Abel Manta – Cartoons (1969-1975), Lisboa, O Jornal, 1975, p. 95

viveR entRe o Rio e a cidade—Álvaro Domingues

“Viver entre o rio e a cidade” é o que se pode ler em grandes car-tazes onde o mapa de uma freguesia convive com a publicidade a uma cidadela electrónica. O rio é o Cávado, a cidade é Braga, a freguesia é Palmeira, e a cidadela electrónica é um negócio de electrodomésticos com dois anos de garantia (o que não é nada mau e é obrigatório por lei).

Assim é a realidade e a sua geografia complexa. Por terras de Palmeira e da veiga do Cávado existe de tudo: vias rápidas com ca-libre de auto-estrada; estradas transformadas em rua da estrada; caminhos transformados em ruas dos caminhos (em Real existe o Caminho dos Quatro Caminhos que liga à Avenida S. Frutuoso); avenidas que são arruamentos de loteamentos (muitos deixados ao abandono da crise); centros comerciais gigantescos e vazios; estádios magníficos; aeródromos; zonas industriais; campos (mais ou menos abandonados ou cultivados), ruínas e casas por todo o lado.

É a simultaneidade das coisas, o cruzamento dos tempos no território, a instabilidade, ou as rupturas bruscas que verdadei-ramente nos confunde entre a “cidade e o rio”. Nem cidade, nem campo - o que se vê é paisagem transgénica. Não vale a pena aprofundar os conteúdos das taxionomias habituais sobre a “ci-dade” e o “campo” porque a realidade ultrapassou as palavras/conceitos que a designavam. Para além disso, essa demanda mais se parece a um rol interminável de perdas de supostos mun-dos perfeitos entretanto desgovernados, mas que nada explica acerca do que verdadeiramente se passa ou está para vir.

O que de facto se passa é um duplo processo: a desruralização e a urbanização extensiva.

A desruralização assinala a desconstrução dupla da ruralida-de: da agricultura enquanto economia e da cultura camponesa tradicional enquanto cultura. Perdida a centralidade das duas, a metamorfose da paisagem assinalará a transformação da produção agrícola (transformação em resíduo ou intensificação tecnológica) ou o seu desaparecimento. Quando a economia não é agrícola e a cultura não é camponesa, “rural” é uma palavra sem sentido, porque habitada pelos vários sentidos que perdeu.2

A urbanização extensiva3 corresponde ao mosaico diverso e des-limitado da urbanização “fora” da cidade (a representação convencional que associa às formas construídas a existência de um limite, de um centro e de uma legibilidade formal). A deno-minada “expansão” urbana (estritamente tida como expansão contígua a partir de um aglomerado pré-existente), dá lugar a uma diversidade de processos/padrões de colonização do terri-tório e dos suportes sócio-técnicos da infraestruturação (energia eléctrica, água, esgotos, estradas, gáz, fibra óptica, etc.). A mo-bilidade – das pessoas, dos bens, da informação, da energia - e a acessibilidade resolverão o que antes só a aglomeração e a proxi-midade física viabilizavam.

Fontes Pereira de Melo, o político liberal e empreendedor do final do séc. XIX, deixou o seu nome ligado a um período de intenso investimento nas obras públicas – o fontismo -, através de em-préstimos junto da banca o que arrastou o país para a falência (parece familiar..)4. Desse tempo ficou uma rede ferroviária desmedida (hoje a ser desmantelada), portos, redes de tele-grapho e estradas. Nas fontes bebiam os homens e as bestas e a mobilidade era difícil e cara. Hoje não é assim. A mobilidade democratizou-se e o atrito do território diminuiu drasticamente. Em qualquer lugar onde haja acessibilidade, electricidade, teleco-municações, estradas, etc., a urbanização pode ocorrer em forma de casa, prédio, fábrica e tudo o mais que lhe pertence5.

A Bracara Augusta pode expandir-se pela estrada fora.

O sino grande (de Tibães), consagrado a S. Bento, tem gravada a imagem do santo e uma grande cruz. Foi construído por Manuel Ferreira Gomes, em 1673. Tem a seguinte inscrição: «retirai-vos inimigos, porque Jesus, o Leão da Tribo de Judá, triunfou da morte, Aleluia».1

Dolce Vita é o grande edifício do Centro Comercial apanhado nas malhas da crise: “Este espaço comercial de grande dimensão nos arredores de Braga já concluiu a construção e representa um investimento de 153 milhões de euros. Conta com 165 lojas, 2.750 lugares de estacionamento e 70 000 metros quadrados de área disponível”7. Na geografia relacional dos Centros Comerciais, o Dolce Vita abrange uma área potencial de mercado de cerca de 200 000 pessoas num espaço/tempo de uma viagem de 20 minutos, e 360 000 numa viagem de 30.

Mais do que um lugar, o Dolce Vita é um site. Quando o es-paço/tempo é comprimido pela velocidade, não é a proximidade física que é importante; o importante é acessar, houvesse po-der de compra. Na velha cidade, a aglomeração e a diversidade funcionais eram o garante da centralidade e o mais poderoso argumento para juntar multidões. Hoje, e no limite, as pessoas juntam-se na sociabilidade facebook, nos estádios, nas praias, nos centros comerciais ou nos festivais de Verão. Simplesmente, deslocam-se segundo o objectivo da deslocação e respectivos raciocínios de custo/benefício; nas espacialidades baratas do low cost o zapping territorial pode envolver distâncias imensas. Nas viagens casa-trabalho, quando não há trabalho por perto, emigra-se, como se sabe. Circular é viver. A diferença está entre os que circulam à força e os que circulam porque assim o desejam e os que não podem ou não sabem como circular. Desigualdade e injustiça são realidades sociais e pontos obrigatórios do discurso politicamente correcto.

Neste espaço hipertexto da urbanização, os objectos arqui-tectónicos – contentores de funções, ambiências, usos, modos de apropriação, etc. – dispõem-se como colagem, junto a exter-nalidades que viabilizam uma acessibilidade fácil. Auto-estradas e estacionamento grátis são constituintes obrigatórios que dimi-nuem esses custos de contexto. O resto é o que há por todo o lado, como a disponibilidade de energia, telecomunicações, água, ou saneamento. Para além do espaço “real” onde se exibem ar-quitecturas vistosas de grande volume, há ainda a possibilidade de expandir a presença social/territorial no espaço virtual da internet. Está tudo ligado!

Os espaços e as actividades de excepção são poderosos marcadores das velhas e das novas geografias. Quando o futebol – um mundo de intensa sociabilidade, visibilidade mediática e de elevado es-pectro sócio-cultural – se junta com arquitecturas extraordinárias, os referentes elitistas e massificados, locais ou globais, genéricos ou especializados, etc., combinam-se poderosamente nos locais intensos da cultura-mundo8. Literalmente, o fenómeno move montanhas e pedreiras na construção deste outro site.

Em volta pode existir tudo, desde profundas transformações aceleradas pela nobilitação e pela visibilidade que estas pre-senças e ambiências induzem, até à inércia das coisas antes já existentes: campos, vinhas, socalcos, casas e casotas. Na cerimó-nia de entrega do prémio Pritzker 2011 a Eduardo Souto Moura, Barack Obama afirmou que o arquitecto “teve grande cuidado para posicionar o Estádio de maneira a que quem não possa ter bilhete pudesse ver o jogo dos montes circundantes.” O monte circundante é o Monte Castro onde existem arqueologias de um povoado fortificado proto-histórico9 (outros futebóis), mas quem gere estádios e negócios de futebol não poderá deixar ninguém ver sem bilhete, só se for na televisão depois do canal ter pago o que paga (e não é pouco).

A desruralização mobiliza, de facto, uma questão poliédrica que aparece enunciada de diferentes formas consoante o modo de pro-blematização. Apesar dessa diversidade, existem pelo menos duas faces distintas que interessa iluminar para que se perceba melhor a profundidade das transformações em causa: a transformação ou desaparecimento da agricultura enquanto economia de referência (produção, distribuição, consumo, sistemas e tecnologias de pro-dução, produtos, preços, mercados, etc.); e a transformação da cultura rural enquanto modo de vida, visão do mundo, sistema de hábitos, crenças, tradições ou comportamentos.

Rural – relativo à paisagem, à economia, à cultura, às tradi-ções, aos modos e estilos de vida, etc. –, designa convencional e indistintamente sociedades e territórios marcados pela activida-de agrícola. Estas complicações terminológicas e semiológicas, para além de serem confusas como todas as complicações, são ao mesmo tempo claras como o nevoeiro: designam realidades esfumadas onde cultura e agricultura se desencontram10.

À clássica oposição cidade/campo, sobrepõe-se esta convi-vência: mato, ruínas e cidadelas electrónicas. No mundo internet poderá ser o encontro entre a SimCity e a (ex)FarmVille.

Nunca S. Martinho de Dume terá pensado nas suas pregações aos rústicos - De Correctione Rusticorum (c.a. 572-574)11 -, o que se iria passar nas terras do seu mosteiro. Os rústicos – assim trata-dos por não (re)conhecerem a verdade dos livros sagrados e se entregarem às idolatrias do panteão romano ou dos deuses das nascentes e das árvores ou a outro qualquer espírito do lugar -, parece que debandaram para outras paragens e o pastor da igreja ficou sem o seu rebanho.

Agora o genius loci da crise é esta natureza aparentemente contra naturam, i.e. contra a ordem natural das coisas de que se ocupam as Ciências da Natureza12.

A inocência da natureza na sua versão de Adão e Eva no Paraíso antes da serpente, perde-se, revelando um sem número de realidades e de representações, de práticas multiculturais e multinaturais e de híbridos natureza/cultura.13

Entre “ o rio e a cidade” nada tem descanso. Um desassosse-go, como diria qualquer pessoa.

11 Tradução consultada e revista de Rosario Jove CLOLS (1981), Martin de Braga, Sermon Contra las Supersticiones Rurales, Ediciones El Albir S.A., Barcelona

Ver também : José Francisco MEIRINHOS (2006) “Martinho de Braga e a com-preensão da natureza na alta Idade Média (séc. VI): símbolos da fé contra a idolatria dos rústicos”, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/4867.pdf

12 SWYNGEDOUW, E. (2011), “La Naturaleza no existe!”, Urban NS01, Departamento de Urbanística Y Ordenación del Territorio, Universidad Politecnica de Madrid, Madrid, pp. 22-66.

13 Bruno LATOUR (2004), The Politics of Nature: How to Bring the Sciences into Democracy, Trans. Catherine Porter, Cambridge: Harvard UP

noua BRACARAE AUGUSTE descriptio, Civitates Orbis Terrarum, Braun & Hogenberg, c. 1594

1 José Carlos G. PEIXOTO, http://historiaporumcanudo.blogspot.com/ 2007/10/os-sinos-de-tibes.html

2 Cf. DOMINGUES, A. (2012), Vida no Campo, ed. Dafne, Porto.3 Cf. PORTAS, N.; DOMINGUES, A.; CABRAL, J. (2011), Políticas Urbanas II,

Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa.Fontismo - Chafariz da Ponte do Bico

Campo d’Aviação

Quando o campo se transformou em campo d’aviação, estavam iniciados os tempos modernos. As veigas, como a do Cávado, sendo planas, também se prestam ao descolar e ao pousar das aeronaves.

Descolado da sua condição rural, o campo d’aviação situa-se entre a antiga estrada romana para Lucus Augusti e uma nova auto-estrada (trata-se de uma variante da N101, entretanto rebap-tizada com o nome de Avenida do Cávado). No nó da auto-estrada, existe um motel: “todos os quartos possuem garagem privativa com acesso directo ao quarto (…). Cores quentes e intensas onde predominam o vermelho, cor da paixão...”6. Doce vida.

6 http://www.moteishorly.pt/

Horly

Doce Vida

Pedreira

Desruralização

7 Notícia de Novembro de 2011 consultada em http://economico.sapo.pt/noticias/crise-obriga-dolce-vita-braga-a-adiar-abertura-para-2012_132271.html (Janeiro de 2012)

Ver tb. : www.dolcevita.pt/centro_homepage

Overbuilding

8 Gille LIPOVETSKY; Jean SERROY ( 2010) A Cultura Mundo, Ed. 70, Lisboa9 http://www.geira.pt/arqueo/html/sitio15.html

4 Luís Aguiar SANTOS (2001), “A crise financeira de 1891: uma tentativa de ex-plicação”, Análise Social, vol. XXXVI (158-159), pp.185-207; Maria Filomena MÓNICA (1997), “Um político, Fontes Pereira de Melo”, Análise Social, vol. XXXII (143-144), 1997 (4.º-5.º), Lisboa, pp. 731-745.

5 Cf. DOMINGUES, A. (2010), Rua da Estrada, ed. Dafne, Porto.

Wilderness

10 Cf. Álvaro DOMINGUES (2012), Vida no Campo, ed. Dafne, Porto

em vias de ocupação pela máquina da natureza, caixas brancas vandalizadas (armários para ligação à rede eléctrica, e telecomu-nicações) pelos assaltos do gangue do cobre, campos a monte, ruínas de casas agrícolas, oficinas mais ou menos assucatadas, blocos de habitação deixados em tosco pela falência do negócio imobiliário, grandes blocos de apartamentos vendidos e por ven-der, ocupados e desocupados.

Terrenos vagos, como diz Solà Morales, e no entanto tão cla-ros na sua linguagem acerca de um tempo em suspenso onde se cruza a simultaneidade das coisas e dos acontecimentos.

MIguEL BAnDEIRAÁLvARO DOMInguEs—eDitor #1josé maRtins—coorDenaDores #1luís vidalRui gonçalves—fotografia“viveR entRe o Rio e a cidade” de álvaRo domingues—fotografia De capaálvaRo domingues—impressão e acabamentonoRPRint—tiragem100 exemPlaRes

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