ensino jurídico faculdade de direito do recife

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Dos concursos, das faculdade particulares e do ensino jurídico 1. Introdução O tema do ensino jurídico, infelizmente, parece não figurar entre o rol dos temas mais relevantes na Academia brasileira. Tal estado-de-coisas deveria ser incompreensível para nós, já é notável a exagerada quantidade de cursos de Direito do Brasil e a baixa qualidade daquilo que se ensina e daquilo que se aprende. Segundo dados de 2010, o Brasil possui mais faculdades de Direito do que o resto do mundo [1] e, segundo a mesma pesquisa, há 800 mil advogados escritos na ordem e o impressionante número de 3 milhões de bacharéis que estão à margem da advocacia. Se fizéssemos uma pesquisa hoje em dia, certamente o número de bacharéis e advogados estaria ainda mais próximo ou já teria extrapolado a marca de 4 milhões de indivíduos com formação jurídica. Ter consciência de tais números é vital para termos consciência de onde parcela considerável de nosso capital humano se arvora. Como nosso assunto é o ensino jurídico, faz-se necessário indagar uma questão central: será que toda essa multidão de juristas foi plenamente capacitada durante os tradicionais cinco anos necessários à obtenção de um diploma em Direito? Tal pergunta desdobra muitas outras indagações, tais quais: por que há tantas faculdades de Direito no Brasil? O que leva tantas pessoas a procurarem por cursos jurídicos na educação superior? O Exame da Ordem é realmente necessário para filtrar os profissionais aptos a exercerem a profissão de advogado? As expectativas daqueles que pretendem seguir uma carreira jurídica estão sendo alcançadas durante a faculdade? De que forma professores, alunos e donos de instituições de ensino superior (IES) reagem aos estímulos e incentivos do governo e do mercado? Fazer uma análise refinada dos problemas da educação jurídica no Brasil é um objetivo que deve ser perseguido por especialistas de dentro e de fora do mundo do Direito. Os problemas que permeiam nossa área precisam ser estudados por economistas, sociólogos, pedagogos, cientistas políticos, administradores e profissionais de outros campos. Empreender um estudo exaustivo sobre todos os problemas que permeiam o ensino jurídico seria algo que vai além das considerações que podem ser feitas neste presente artigo. Por este motivo, serão limitados tanto o objeto de estudo quanto aquilo que será apontado como uma crítica. Não pretendo, no presente artigo, demonstrar todos os fatores que contribuem para a existência de tantos bacharéis em Direito, tantas faculdades de Direito e o modo precário em que se encontra nosso ensino. O escopo deste artigo é bastante restrito, sequer pretende ser científico e cumprirá seu papel se chamar atenção a um dos fatores que fazem pressão no sentido de empobrecer nosso quadro acadêmico. 2. O “problema” das faculdades particulares

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Brasil e o Ensino Jurídico

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Page 1: Ensino jurídico Faculdade de Direito do Recife

Dos concursos, das faculdade particulares e do ensino jurídico !!

1. Introdução!!

O tema do ensino jurídico, infelizmente, parece não figurar entre o rol dos temas mais relevantes na Academia brasileira. Tal estado-de-coisas deveria ser incompreensível para nós, já é notável a exagerada quantidade de cursos de Direito do Brasil e a baixa qualidade daquilo que se ensina e daquilo que se aprende. Segundo dados de 2010, o Brasil possui mais faculdades de Direito do que o resto do mundo [1] e, segundo a mesma pesquisa, há 800 mil advogados escritos na ordem e o impressionante número de 3 milhões de bacharéis que estão à margem da advocacia. Se fizéssemos uma pesquisa hoje em dia, certamente o número de bacharéis e advogados estaria ainda mais próximo ou já teria extrapolado a marca de 4 milhões de indivíduos com formação jurídica. Ter consciência de tais números é vital para termos consciência de onde parcela considerável de nosso capital humano se arvora. !

Como nosso assunto é o ensino jurídico, faz-se necessário indagar uma questão central: será que toda essa multidão de juristas foi plenamente capacitada durante os tradicionais cinco anos necessários à obtenção de um diploma em Direito? Tal pergunta desdobra muitas outras indagações, tais quais: por que há tantas faculdades de Direito no Brasil? O que leva tantas pessoas a procurarem por cursos jurídicos na educação superior? O Exame da Ordem é realmente necessário para filtrar os profissionais aptos a exercerem a profissão de advogado? As expectativas daqueles que pretendem seguir uma carreira jurídica estão sendo alcançadas durante a faculdade? De que forma professores, alunos e donos de instituições de ensino superior (IES) reagem aos estímulos e incentivos do governo e do mercado? !

Fazer uma análise refinada dos problemas da educação jurídica no Brasil é um objetivo que deve ser perseguido por especialistas de dentro e de fora do mundo do Direito. Os problemas que permeiam nossa área precisam ser estudados por economistas, sociólogos, pedagogos, cientistas políticos, administradores e profissionais de outros campos. Empreender um estudo exaustivo sobre todos os problemas que permeiam o ensino jurídico seria algo que vai além das considerações que podem ser feitas neste presente artigo. Por este motivo, serão limitados tanto o objeto de estudo quanto aquilo que será apontado como uma crítica. Não pretendo, no presente artigo, demonstrar todos os fatores que contribuem para a existência de tantos bacharéis em Direito, tantas faculdades de Direito e o modo precário em que se encontra nosso ensino. O escopo deste artigo é bastante restrito, sequer pretende ser científico e cumprirá seu papel se chamar atenção a um dos fatores que fazem pressão no sentido de empobrecer nosso quadro acadêmico.!!

2. O “problema” das faculdades particulares!

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!As faculdades particulares de Direito proliferam por todo o Brasil e atraem estudantes de

faixas etárias diversas e de rendas também diversas. Como dito na introdução, em 2010 tínhamos mais faculdades de Direito do que o resto do mundo: são 1.240 cursos de Direito em território nacional. No entanto, não é necessário sequer ter esta cifra em mente para afirmar que brotam instituições e mais instituições aqui e acolá, que são batizadas de “uniesquinas” por aqueles que pensam estudar em instituições de prestígio. !

De fato, há diversos cursos particulares de qualidade duvidosa e tal problema merece atenção. Os baixos custos de implementação de um curso de Direito (afinal, para se ensinar Direito Civil não há necessidade de laboratórios científicos, instrumentos tecnológicos e outras parafernálias técnicas); as mensalidades relativamente baixas; a procura por diplomas de fácil aquisição e o preconceito existente contra as qualificações técnicas são comumente citados como motivos dessa expansão desenfreada. Para muitos, o “empresário que transforma a educação em mercadoria e visa apenas o lucro” oferece um curso de baixíssima qualidade e contribui para o estado calamitoso em que se encontra nosso ambiente acadêmico e profissional. Não raramente, a solução apresentada para que haja um maior controle de qualidade nas IES são o fortalecimento das diretrizes básicas do MEC, padronização de requerimentos mínimos para abertura de cursos, maior fiscalização estatal etc. Dessa maneira, para os que defendem tais medidas, a oferta de cursos de baixa qualidade seria cortada pela raiz já que os donos de IES privadas teriam que se conformar aos mandamentos do Estado, sob pena de terem suas licenças revogadas. No entanto, esta visão preocupa-se apenas com o lado da oferta. E quanto à demanda?!

Sabemos que o mercado (trata-se de uma metáfora para indivíduos que, perseguindo seu próprio interesse, oferecem bens e serviços em troca de pagamento) pode simplesmente atender demandas vindas dos consumidores, criar demanda através da oferta de produtos inovadores e criar demanda através da publicidade e propaganda. Que fique claro que nem sempre os limites dessas três modalidades está bem definido, de modo que podemos encontrar em uma mesma empresa a presença das três, mas com uma ou duas se sobressaindo frente às outras. !

Apenas tendo em mente o porquê de tantos indivíduos estarem dispostos a pagar mensalidades e dedicarem cinco anos de tempo e energia em um curso de Direito é que será possível pensar em soluções para o problema do ensino jurídico. É aqui que entra a questão dos concursos públicos. !

A Constituição de 88 diz: !!

II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em

concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a

complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as

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nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração;

(art. 37, II, CF)!

Fica claro, então, que um grande número de vagas estaria disponível apenas para aqueles que fossem aprovados em uma prova. Esta inovação sem precedentes pretendeu consagrar o princípio da meritocracia no modo de aquisição de um cargo público. As vagas serão preenchidas apenas por aquele que obtiverem as melhores notas em um concurso público que requer conhecimento especializado. Tal medida foi tomada para diminuir os casos de nepotismo e outros meios escusos que eram utilizados para que muitos se tornassem funcionários públicos. Sem dúvidas, foi um avanço. O serviço público habita o imaginário do brasileiro: uma percepção de estabilidade e de pouco trabalho percorre o Brasil e aumenta a demanda por vagas. !

O atrativo do serviço público faz uma pressão sobre a quantidade de vagas ofertadas em cursos de Direito. Desde a expansão da oferta de vagas no serviço público foi criada uma verdadeira infra-estrutura de cursinhos preparatórios, professores de concurso e bibliografia para concursos. A quantidade de cursinhos e de livros “esquematizados” e “descomplicados” basta para atestar a força de atração exercida na população. Não se trata de dizer que todo aluno de Direito deseja se tornar juiz, promotor, analista, técnico do judiciário, oficial de justiça etc. Muitos podem desejar seguir carreira como advogados ou até como acadêmicos (esses são poucos!), e outros tantos podem estar atrás de um diploma ou completamente indecisos. Não obstante, a perspectiva de que um bacharel em direito sempre poderá contar com a aprovação em algum concurso (ainda que este não tenha ensino superior como pré-requisito) pesa, e muito, na hora de se escolher um curso. !

Diante de tal quadro, é quase inevitável que haja um aumento da procura por cursos de Direito. Ainda que não se almeje posições que figuram no topo da hierarquia (como a magistratura), ter cadeiras como “Direito Administrativo”; “Direito Constitucional”; “Processo Civil” e tantas outras que figuram nas provas da CESPE é incentivo suficiente para que muitos decidam fazer Direito. Esse é, incontestavelmente, um dos fatores que mais contribui para que a demanda seja criada. O número de vagas em universidades públicas é bastante limitado e o preço das mensalidades das faculdades particulares mais bem rankeadas é proibitivo para muitos. A quantidade de vagas nessas instituições “de prestígio” tornou-se insuficiente para atender a demanda e, então, foi criada a oportunidade de um mercado que atendesse aos indivíduos que ficaram de fora do vestibular e de faculdades particulares conhecidas e caras, mas que almejam ter um curso superior e aumentar sua renda.!

Uma vez estabelecida essa nova demanda, o mercado atua em supri-la. Não é surpreendente que o curso de Direito tenha sofrido essa expansão agressiva diante de um tal quadro. Como há crescente demanda, o mercado, valendo-se da facilidade e do baixo custo de se montar um curso de Direito, rapidamente aumenta a oferta de cursos jurídicos de baixo custo e causa essa explosão. !

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É importante chamar atenção para o fato de que que a criação de faculdades particulares de Direito também é impulsionada por ações estatais, como é o caso dos programas de financiamento educacional promovidos pelo Governo Federal. Em 2013, de acordo com dados oficiais [2], os cursos mais financiados pelo Fundo de Financiamento Estudantil (FIES), criado durante o período FHC e expandido durante a administração dos presidentes Lula e Dilma são: as engenharias, com 189 mil beneficiados; Direito, com 168 mil beneficiados; administração e enfermagem com 95 e 83 mil beneficiados, respectivamente. Fica claro que se o INEP distinguisse entre as variadas áreas das engenharias, o curso de Direito figuraria em primeiro lugar. !

No Programa Universidade para Todos (ProUni), que oferece oportunidade de bolsas integrais ou parciais aos estudantes de escola pública ou bolsistas da rede privada, constata-se também a forte presença do curso de Direito. Segundo dados de uma auditoria promovida pelo Tribunal de Contas da União em 2009, do total de bolsas fornecido pelo programa, 11% delas são destinadas ao curso de Direito [3]. Não discute-se aqui o mérito de tais programas, apenas busca-se apontar como estes atuam como foles no sentido de inflamar ainda mais a busca por cursos superiores oferecidos pela iniciativa privada e, consequentemente, sua oferta.!

Em síntese, a criação acelerada de cursos jurídicos particulares é uma consequencia da forte demanda por um diploma neste curso. A conveniência de se fazer um curso cujo objeto de estudo se confunde com as matérias cobradas em concursos públicos de menor porte e de, ao fim do curso, obter um diploma pré-requisito para muitos cargos prestigiosos e bem pagos exerce uma forte pressão para a criação de novos cursos. A solução para esse “problema” das faculdades particulares não pode ser tão somente o da diminuição da oferta através de medidas unilaterais tomadas pelos burocratas do Ministério da Educação. Artificialmente diminuir a oferta desses cursos provavelmente teria o efeito de inflar as mensalidades dos cursos remanescentes. O “problema” não está necessariamente na oferta abundante, mas na demanda insaciável. Não é de bom alvitre tratar do problema como uma simples questão de endurecimento das regras do MEC. Deve-se prestar atenção nos incentivos que a obtenção de um diploma em Direito oferece, e que causam essa demanda. No entanto, ainda precisamos relacionar este cenário com o ensino jurídico propriamente dito. A baixa qualidade do ensino não é exclusividade de faculdades privadas de menor porte, pois atinge também tradicionais redutos de formação de juristas.!!

3. O método de avaliação dos concursos públicos!!“Quando uma medida se torna uma meta, ela deixa de ser uma boa medida.” É nesses

termos que geralmente se formula a chamada Lei de Goodhart. O economista britânico, ao formular seu raciocínio, tinha em mente o modo como alguns governos transformam indicadores

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de certos fenômenos em metas a serem perseguidas. O professor de Relações Internacionais do Ibmec-MG, Diogo Costa, explica claramente o poder de síntese da Lei de Goodhart: !

“Por exemplo, se o governo brasileiro tenta controlar a inflação por meio do controle dos

preços de um indicador como o IPCA, esse indicador torna-se menos confiável. Se o

tomate se torna um proxy popular para a inflação, o governo tentará influenciar o preço

do tomate para que ele reflita ainda com menos precisão o aumento inflacionário.” [5]!!Ou seja: confundindo-se o mero indicador de um fenômeno com a meta a ser perseguida,

tem-se uma receita para a ineficiência. Mas o que isso tem a ver com o ensino jurídico, levando em consideração os efeitos causados pelos concursos públicos?!

Os concursos são realizados por meio de provas, geralmente de múltipla escolha mas às vezes também com questões abertas. Depois de corrigida a prova, atribui-se um número, a nota, que pretende ser o indicador de seu conhecimento jurídico testado pela prova. Está posto um dos fios condutores do problema do ensino jurídico.!

Quando um escritório decide abrir vagas para novos advogados, sempre tentará buscar o melhor profissional possível dentro do conjunto de advogados que se submeteriam a receber o salário inicial de um recém-contratado. A única maneira de encontrar o profissional correto para preencher a vaga aberta é obtendo e filtrando informações sobre os candidatos. Um currículo nada mais é do que uma síntese da carreira do candidato, um documento contendo informações a serem mapeadas e analisadas pela equipe de contratação. Se o candidato foi recomendado por alguém de confiança, ou se já tem sua habilidade reconhecida pelos sócios do escritório, certamente terá vantagem sobre seus concorrentes. O escritório particular tem a vantagem de possuir poder discricionário na escolha de seus empregados. Através de um processo de seleção (que pode ser rigoroso ou não), o empregador sempre estará em busca de indicadores que demonstrem o valor do candidato. É apenas para dar informação que servem cartas de recomendação, diploma de universidades prestigiosas, atestado de experiência prévia na área, certificados de proficiência em línguas estrangeiras e entrevistas de emprego. Tal processo não está livre de falhas, e muitos destes indicadores podem ser enganadores. Por exemplo, não é porque alguém ostenta o diploma de uma universidade reconhecida que este indivíduo seja competente. O empregador está ciente disto e procura sempre tentar suprir as lacunas de informação para que encontre o melhor candidato. Ele tem liberdade e poder discricionário para tal.!

A situação adquire novas cores ao se tratar da admissão de funcionários através de concursos de provas ou de provas e títulos. As provas são formuladas com a intenção única de testar os conhecimentos do candidato. Seguindo esta lógica, aquele que obtiver a melhor nota será, evidentemente, o candidato mais apto a ser escolhido para integrar o serviço público. O Estado não tem o poder discricionário de escolha, nem a liberdade de averiguar o histórico do candidato. Possuir x anos de atividade jurídica; ter título de mestre ou doutor; ter ensino médio

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completo; ter publicado x artigos etc são todos meios genéricos dos quais se valem a Administração na hora de escolher o candidato a ser investido do cargo público. Nesse ambiente de pouca liberdade de julgamento, ocorre um fenômeno curioso: equiparam-se as habilidades através da apresentação de um documento. Ter trabalhado por três anos como associado sênior de um escritório internacional de advocacia torna-se idêntico a ter trabalhado três anos como técnico. Ter um título de PhD. pela universidade de Harvard não é diferente de ter título de doutor por um dos cursos de “doutorado fast food” da Argentina [4]. Publicar um artigo em inglês num peer reviewed journal e ser citado em diversas revistas especializadas é idêntico a publicar um artigo num livro feito em conjunto com colegas da Faculdade e pago do próprio bolso, sem qualquer avaliação de qualidade.!

O ponto é simples: ao efetivar o princípio da impessoalidade, a Administração sacrifica a coleta de informações que indiquem quem parece ser, efetivamente, o melhor candidato ao cargo. Em Teoria dos Jogos há o conceito de “Min-Maxing”, foi criado para designar situações em que os atores do jogo procuram o meio mais fácil para maximizar seus resultados. Serve para explicar, em conjunto com a Lei de Goodhart a seguinte situação: visando prestar um concurso de provas e títulos, um determinado candidato começa a se preparar o quanto antes para atender às metas definidas pelo edital. O concurseiro percebe que ter publicado um artigo científico lhe confere pontos adicionais e aumenta suas chances de ser chamado para o cargo. Procede então a escrever, de forma displicente e desleixada, seu artigo e o publica através de um congresso qualquer. O artigo não será lido, não será citado, não será avaliado por acadêmicos especializados. O artigo serviu a um único propósito: satisfazer o requerimento formal e genérico que aparece no edital. Ao incluir a publicação de um artigo científico, a comissão do concurso buscou um indicador de conhecimento e o transformou em meta. O concurseiro identificou a meta e avaliou que não haveria qualquer juízo de valor sobre seu artigo. Logo, ele não precisaria se esforçar para escrever algo relevante, basta comprovar que o publicou, obedecendo à lei do menor esforço e maior recompensa. A comissão transformou um indicador em meta e fez com que o indicador se tornasse inútil. !

Não são só os títulos que podem ser analisados através da lente da Lei de Goodhart. As provas de múltipla escolha e escritas também sofrem do mesmo problema. A nota é o indicador de excelência e torna-se a meta ser perseguida pelo concurseiro. É óbvio que alguém que não acerta uma única questão da prova do concurso não está apto a exercer qualquer função dentro do mundo jurídico. O problema da captação de informação fica ilustrado quando aquele que tirou nota máxima, na prática mostra-se dotado de completa inépcia. !

As provas são formuladas reiteradamente por um conjunto restrito de bancas, buscando sempre aferir ao máximo os conhecimentos jurídicos dos candidatos. Por este motivo, o concurseiro, se quiser ter qualquer chance no certame, deverá buscar os meios mais efetivos para concretizar o objetivo de tirar a nota mais alta. A busca é pela nota na prova, não pelo

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conhecimento. Diante desse estado-de-coisas, há uma deformação no aprendizado. Quem visa passar num concurso público aprende a fazer provas, não aprende o Direito. Ao se folhear qualquer livro “esquematizado” ou “descomplicado”, percebe-se a existência de verdadeiros conselhos ao concurseiro sobre como proceder ao fazer a prova de diferentes bancas. É como se os autores desses livros compilassem verdadeiras “jurisprudências” do que é aceito pelas diferentes bancas. Tais livros também transbordam com siglas mnemônicas e outros meios de memorização de conceitos e de artigos. Seus quadros sinópticos são a verdadeira fonte formal do Direito, sintetizam os topoi aceitos pela banca e se apresentam de maneira “didática”. O concurseiro procede com seu método de aprendizado de como maximizar sua nota no concurso fazendo o menor esforço e consome jurisprudência e artigos e mais artigos conforme o que é pedido pelas bancas. Disciplinas que não são cobradas nas provas são deixadas de lado, e aquelas que são cobradas tornam-se simulacros do que é estudado. Não há espaço para a doutrina, não há espaço para soluções criativas ou pensamento conceitual. Tudo aquilo que se buscava medir através da nota é perdido quando ela se torna uma meta de contornos mais ou menos previsíveis.!

Os professores dos cursinhos preparatórios fazem o máximo para explicar conceitos espinhosos em algumas poucas sentenças. Se puder ser feita uma musiquinha para “fixar conteúdos”, tanto melhor. Recomendam sinopses jurídicas e repetem lugares comuns. Não te ensinam Direito, te ensinam a passar em concursos. !

Como ficou estabelecido, passar em um concurso público muitas vezes torna-se o objetivo principal de alunos de Direito. Como o método de avaliação transforma um indicador em meta, são inventadas ferramentas que servem para lidar com este método. O ensino jurídico sofre quando boa parcela dos alunos que se enfileiram nas salas de aulas vêem com bons olhos um ensino “esquematizado” do Direito. O incentivo para se aprender a passar em concursos é enorme e compete pela atenção dada pelos alunos a outras formas de conhecimento: você pode até estudar lógica jurídica ao invés de ler a sinopse de processo civil, mas só uma dessas opções vai te deixar mais perto do serviço público.!!

4. Os benefícios do serviço público!!Pergunte a estudantes de Direito o que eles querem fazer quando deixarem a faculdade e,

mais vezes do que não, escutará a resposta: “fazer concurso público”. Nesse caso, o aluno sequer diz se deseja ser promotor ou defensor público, escolhe sua função pelo regime jurídico, não pela carreira que deseja seguir. !

Os benefícios de se passar em um concurso são múltiplos, e tendem a ser vistos por parcelas da classe média e classe média-baixa como sendo muito superiores aos de engajar-se em algum emprego na iniciativa privada. Quem se torna servidor público tem garantida sua

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permanência naquele emprego se assim o desejar. No serviço público há o atrativo da estabilidade, citado universalmente por aqueles que desejam seguir carreira no setor. Só há desligamento do cargo através de sentença transitada em julgado ou de processo administrativo disciplinar. Como não há possibilidade real de se calcular eficiência, e são remotas as situações em que o servidor tem que se meter para ser desligado do cargo, há poucos incentivos para que haja um aumento de produtividade. Disto não se induz que todo funcionário público é ineficiente, tão somente se demonstra que não há incentivos concretos à produtividade (que pode existir, apesar de tudo). !

Os salários iniciais, muitas vezes mais altos do que os oferecidos pela iniciativa privada na advocacia e consultoria ou na área acadêmica também é fonte de cobiça dos concurseiros. As férias remuneradas com datas flexíveis, a falta de cobrança por resultados, desnecessidade de permanecer no local de trabalho depois do expediente, regime previdenciário diferenciado, progressão por tempo de serviço (sem qualquer critério de excelência) etc contribuem para que o serviço público seja tão ambicionado. Tais benefícios desmedidos exercem pressão sobre os alunos para que dividam seu tempo e energia estudando para os concursos ou para outras áreas do saber. O sistema de incentivos dado pelo mercado de trabalho para o bacharel em Direito favorece a existência de “min-maxers”.!!

5. Conclusão!!

Buscou-se, no presente artigo, analisar alguns dos efeitos que o atual sistema de concursos públicos exerce sobre o ensino jurídico e sobre as expectativas dos alunos. De modo algum pretendeu este artigo ser completo sobre todos os problemas que permeiam o ambiente acadêmico de Direito, tampouco apontar todos os efeitos que os concursos públicos produzem nos juristas. Tais efeitos não tem relação direta de causa e efeito. Conjugam-se com outros fenômenos e amplificam ou diminuem os problemas do ensino jurídico. No entanto, para que se possa ter uma ideia do todo, é preciso saber as partes que o compõem. !

Pode-se sintetizar de maneira clara a linha argumentativa aqui seguida: a) a oferta de concursos públicos entrou em expansão nos últimos anos; b) a quantidade de benefícios do serviço público é assimétrica em relação ao mercado de trabalho; c) a existência de um tal estado-de-coisas aumenta a demanda por cursos de Direito; d) o mercado supre essa demanda tentando oferecer aos alunos aquilo que eles querem e) como muitos alunos vêem na carreira pública uma opção viável de carreira, dedicam-se a passar em concursos públicos; f) os concursos tem um método “quebrado” de avaliação de competência; g) os alunos transferem suas energias e moldam suas rotinas de modo a privilegiar os estudos para concursos; h) reforçam o “pacto da mediocridade” na faculdade para que possam se dedicar ao estudo para concursos; i) paira um

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sentimento de que a faculdade é perda de tempo caso não o ajude a cumprir seu objetivo e o aluno fica desestimulado. !

Para que fique claro, nada disso ocorre de maneira de linear e sem outros obstáculos. A falta de sentimento de prestígio acadêmico, os estágios em escritórios desde o primeiro período, a desvalorização da pesquisa e da extensão, a falta de estímulo dos professores, a obrigatoriedade de uma grade curricular rígida, as técnicas (ou falta de) pedagógicas utilizadas em classe e muitos outros aspectos contribuem para o calamitoso estado em que se encontro o ensino jurídico no Brasil. Apenas estudando a fundo cada um desses aspectos é que se poderá empreender uma compreensão holística do problema, e assim poder se formular um prognóstico em larga escala. !

Na falta de planos para mudar esse quadro, devem ser empreendidas medidas de fortalecimento do ensino dentro das próprias faculdades. Os docentes e discentes devem fazer esforços para diversificar o aprendizado e melhorar o ambiente acadêmico dentro de sua própria instituição. Esperar mudanças estruturais no futuro próximo é desaconselhável. Ficar de braços cruzados seria ainda pior.!!

REFERÊNCIAS![1] http://www.oab.org.br/noticia/20734/brasil-sozinho-tem-mais-faculdades-de-direito-que-todos-os-paises!![2] http://download.inep.gov.br/educacao_superior/censo_superior/encontro_nacional/2013/palestra_censo_educacao_superior_evolucao_do_fundo_de_financiamento_estudantil.pdf!![3] http://portal2.tcu.gov.br/portal/page/portal/TCU/comunidades/programas_governo/areas_atuacao/educacao/Relat%C3%B3rio%20de%20auditoria_Prouni.pdf!![4] http://www.conjur.com.br/2012-jun-14/senso-incomum-alem-jeitinho-brasileiro-doutor!![5] http://www.capitalismoparaospobres.com/?p=782!![6] http://adonaisantanna.blogspot.com.br/2014/05/o-estado-da-educacao-nas-faculdades-de_8.html!!