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8565 ENSINO E RECUSA DOS DIREITOS HUMANOS NO BRASIL: A AMBIVALÊNCIA DAS ORIGENS, DOS FUNDAMENTOS E DA EFICÁCIA DOS DIREITOS HUMANOS * EDUCATION AND REFUSAL OF HUMAN RIGHTS IN BRAZIL: THE AMBIVALENCE OF THE ORIGINS, OF THE FOUNDATIONS AND OF THE EFFECTIVENESS OF HUMAN RIGHTS Arthur Roberto Capella Giannattasio RESUMO O presente trabalho investiga, a partir de uma postura zetético-crítica, a maneira pela qual a literatura jurídica brasileira tradicional discute a origem e os fundamentos dos Direitos Humanos. Partindo da distinção dicotômica dos Direitos Humanos em direitos do homem e direitos do cidadão, percebe-se que a Dogmática Jurídica tradicional compreende os Direitos Humanos apenas enquanto possibilidade de apropriação de parcelas do ordenamento jurídico por grupos particulares, de acordo com as singularidades específicas dos interesses destes. Tal postura ignora a outra face dos Direitos Humanos enquanto direitos cívicos, promotora da aproximação e da solidariedade entre os Homens, para, pelo agir em conjunto, permitir a contestação da ordem sócio-político-econômica vigente, propondo a alteridade nos destinos da Polis. Reduzidos à dimensão mera alocação superficial de direitos, os Direitos Humanos revelam estar desprovidos de efetiva capacidade mobilizadora, vertente geralmente relembrada apenas em momentos de profunda opressão totalitária. Para desocultar a face eclipsada dos Direitos Humanos, para além de uma dimensão meramente reivindicativa de direitos-privilégios, mostra-se necessário relembrar a importância da busca da realização da promessa da Política que, ao invés da promessa da Economia, pretende dissipar os antagonismos mútuos, viabilizando a preservação da comunidade geral dos homens. PALAVRAS-CHAVES: DIREITOS HUMANOS; EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS; RECUSA DOS DIREITOS HUMANOS; LIBERDADE CÍVICA; TOTALITARISMO ECONÔMICO. ABSTRACT This paper investigates, from a skeptical-critical posture, the perspective according to which brazilian traditional legal literature discusses the origins and the foundations of Human Rights. From the dichotomous distinction of Human Rights as rights of men and rights of citizens, it can be found that the traditional legal studies conceive Human Rights only as means to appropriate shares of the legal system by groups, according to their specific interests. This attitude ignores the other side of Human Rights as civil rights, which promotes the rapprochement and the solidarity among men to act politically, in order to challenge the socio-political and economic order by proposing an alter destination to their Polis. Merely reduced to a trivial distribution of rights, Human * Trabalho publicado nos Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em São Paulo – SP nos dias 04, 05, 06 e 07 de novembro de 2009.

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ENSINO E RECUSA DOS DIREITOS HUMANOS NO BRASIL: A AMBIVALÊNCIA DAS ORIGENS, DOS FUNDAMENTOS E DA EFICÁCIA DOS DIREITOS HUMANOS*

EDUCATION AND REFUSAL OF HUMAN RIGHTS IN BRAZIL: THE AMBIVALENCE OF THE ORIGINS, OF THE FOUNDATIONS AND OF THE EFFECTIVENESS OF HUMAN RIGHTS

Arthur Roberto Capella Giannattasio

RESUMO

O presente trabalho investiga, a partir de uma postura zetético-crítica, a maneira pela qual a literatura jurídica brasileira tradicional discute a origem e os fundamentos dos Direitos Humanos. Partindo da distinção dicotômica dos Direitos Humanos em direitos do homem e direitos do cidadão, percebe-se que a Dogmática Jurídica tradicional compreende os Direitos Humanos apenas enquanto possibilidade de apropriação de parcelas do ordenamento jurídico por grupos particulares, de acordo com as singularidades específicas dos interesses destes. Tal postura ignora a outra face dos Direitos Humanos enquanto direitos cívicos, promotora da aproximação e da solidariedade entre os Homens, para, pelo agir em conjunto, permitir a contestação da ordem sócio-político-econômica vigente, propondo a alteridade nos destinos da Polis. Reduzidos à dimensão mera alocação superficial de direitos, os Direitos Humanos revelam estar desprovidos de efetiva capacidade mobilizadora, vertente geralmente relembrada apenas em momentos de profunda opressão totalitária. Para desocultar a face eclipsada dos Direitos Humanos, para além de uma dimensão meramente reivindicativa de direitos-privilégios, mostra-se necessário relembrar a importância da busca da realização da promessa da Política que, ao invés da promessa da Economia, pretende dissipar os antagonismos mútuos, viabilizando a preservação da comunidade geral dos homens.

PALAVRAS-CHAVES: DIREITOS HUMANOS; EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS; RECUSA DOS DIREITOS HUMANOS; LIBERDADE CÍVICA; TOTALITARISMO ECONÔMICO.

ABSTRACT

This paper investigates, from a skeptical-critical posture, the perspective according to which brazilian traditional legal literature discusses the origins and the foundations of Human Rights. From the dichotomous distinction of Human Rights as rights of men and rights of citizens, it can be found that the traditional legal studies conceive Human Rights only as means to appropriate shares of the legal system by groups, according to their specific interests. This attitude ignores the other side of Human Rights as civil rights, which promotes the rapprochement and the solidarity among men to act politically, in order to challenge the socio-political and economic order by proposing an alter destination to their Polis. Merely reduced to a trivial distribution of rights, Human

* Trabalho publicado nos Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em São Paulo – SP nos dias 04, 05, 06 e 07 de novembro de 2009.

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Rights show their lack of effective mobilizing capacity, usually remembered only in times of deep totalitarian oppression. To discover the eclipsed face of Human Rights, surpassing the claim of rights-privileges feature, it is necessary to remember the importance of fulfilling the promise of politics, which, rather than the promise of Economics, seeks to dispel the mutual antagonism between men, in order to preserve the general community of men.

KEYWORDS: HUMAN RIGHTS; EDUCATION IN HUMAN RIGHTS; REFUSAL OF HUMAN RIGHTS; CIVIL LIBERTIES; ECONOMIC TOTALITARIANISM.

1 Introdução

O presente artigo remonta a um debate desenvolvido sobre o tema da recusa dos Direitos Humanos no Brasil, iniciado no curso “Ética e Filosofia Política: Polêmica sobre Direitos Humanos” do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), a partir da incitação à reflexão deflagrada por provocação feita em sala pelo Professor Milton Meira do Nascimento.

A discussão surgira a partir do convite à reflexão proposto sobre a seguinte frase, polêmica, supostamente proferida por um morador de rua: “Não quero a liberdade, nem a propriedade, nem a Segurança Pública. Recuso-me a aceitar todos esses direitos, e o faço em nome dos meus Direitos Humanos sagrados e inalienáveis”.

Em um primeiro momento, é possível entender que ela aparenta, por si só, trazer consigo um grande paradoxo, visto parecer direcionar seu autor à contradição, na medida em que proclama a negação, em nome de seus Direitos Humanos sagrados e inalienáveis, daquilo que comumente é entendido como a expressão por excelência dos Direitos Humanos.

No entanto, deve-se notar que essa construção possui uma profunda significação, perceptível apenas se se ultrapassar o mero exame superficial de seus elementos constitutivos. Se há uma tensão, por aparente contradição, deve ela ser superada por uma solução racionalmente construída, a fim de compreender, de modo ordenado, a condução do pensamento feita por aquele quem proferiu determinada sentença, visto que “[u]ma das lições de Auschwitz consiste precisamente em que entender a mente de um homem comum é infinitamente mais difícil que compreender a mente de Spinoza ou de Dante [...].” (AGAMBEN, 2008, p. 21).

Nesse sentido, deve-se pressupor, ainda mais no caso de uma sentença pronunciada por um homem comum – morador de rua -, a existência de verdadeiro encadeamento complexo de razões que motivaram um determinado discurso de sua parte. Singelas interpretações paternalistas, descritivas, ou ainda, meramente compreensivas, não são capazes de viabilizar o adequado entendimento acerca da complexidade reflexiva em torno das razões individuais que poderiam motivar um ser humano, em precárias condições, a recusar aquilo que é tido por mais sagrado por outros.

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Nesse sentido, para poder tentar compreender, minimamente, o significado subjacente ao polêmico discurso supostamente proferido pelo morador de rua, a investigação jurídica se pautará por critérios alicerçados na Filosofia do Direito, dentro daquilo que se propõe a zetética jurídica, recorrendo-se ao auxílio da Filosofia, na medida em que se preocupa com o Direito como objeto de investigação crítico-reflexiva (FERRAZ JR., 2001, p. 39-44; ROESLER, 2002, p. 82), exatamente por ser o instrumento adequado para “pensar em trinta páginas aquilo que foi dito em três palavras” (DEGUY, 2000, p. 9 apud MATOS, 2006, p. 24).

Sendo assim, para o desenvolvimento de um trabalho apto a compreender todo o complicado campo significativo passível de ser depreendido daquela frase dita pelo morador de rua, é necessário que sejam seguidas três etapas fundamentais, quais sejam, a de entender o que são historicamente os Direitos Humanos, e quais são eles, a fim de se poder divisar em nome do que, precisamente, o morador de rua recusa aquilo que, comumente, é percebido como Direito Humano Fundamental. É por esse motivo que o presente artigo, a fim de empreender um processo de tentativa de compreensão racional da construção discursiva proferida pelo morador de rua, estrutura-se em três partes distintas.

A primeira parcela se destina a desdobrar o paradoxo, revelando-o, a fim de tornar clara a tensão produzida a partir desse exame meramente superficial das palavras articuladas pelo morador de rua.

Para tanto, será consultada a bibliografia básica sobre Direitos Humanos Fundamentais, manualesca, comumente utilizada nos cursos de Direito. Perceber-se-á que o ensino irrefletido sobre os Direitos Humanos, destinado à formação das bases de compreensão sobre uma possível importância dos mesmos em sociedade, não está apto a fornecer elementos suficientes para superar a tensão revelada pela angústia do homem comum, reflexo da insuficiência cognitivo-explicativa da Dogmática Jurídica tradicional sobre os Direitos Humanos, enclausurada a qualquer espécie de questionamento ou de indagação mais aprofundada.

A segunda parte deste estudo, por sua vez, busca propor um desenho inicial de uma tentativa de solucionar, racionalmente, a tensão não respondida suficientemente pelo instrumental teórico fornecido pela Teoria sobre Direitos Humanos tradicionalmente ensinada.

Neste sentido, serão utilizadas referências bibliográficas de caráter crítico, buscando apontar possíveis resoluções para as aporias encontradas, constantes daquela Teoria romântica e edenizadora dos Direitos Humanos, tradicionalmente reproduzida nos cursos jurídicos sem qualquer crivo crítico. Pressupõe-se, deste modo, haver algum motivo que justifique uma recusa racional dos Direitos Humanos, apenas perceptível a partir de uma investigação de caráter crítico, próprio de uma postura afinada aos mandamento de uma zetética jurídica.

Pretende-se, deste modo, ao final desta segunda parte, esclarecer, adequadamente, a frase proferida pelo morador de rua. No entanto, uma dúvida ainda persistirá, a qual não poderá deixar de ser examinada, ainda que não se consiga encontrar uma resposta última e definitiva sobre a questão: o que restaria, ainda, dos Direitos Humanos? Haveria,

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ainda, algum sentido possível para essa expressão? Este será o centro de preocupação da terceira e última parte do presente estudo.

2 A Explicitação do Paradoxo pela Teoria Tradicional dos Direitos Humanos

A previsão dos direitos humanos fundamentais direciona-se basicamente para a proteção à dignidade humana em seu sentido mais amplo (MORAES, 2003, p. 22, grifos do autor)

A frase proferida pelo morador de rua, em termos de Teoria Tradicional sobre os Direitos Humanos, causa espanto, não apenas pela firmeza de suas palavras quando ditas por um morador de rua, o homem supostamente desprovido de direitos por excelência, mas, sim, porque, em nome dos Direitos Humanos, recusa todos aqueles direitos que são, comumente, percebidos como inerentes ao Homem, ou ainda, como fundamentais.

A declaração, à luz de uma concepção tradicional de Direitos Humanos, produz um sentimento inicial de estranheza, porque, afinal, como alguém, sem qualquer propriedade, sem qualquer segurança pública, ou mesmo sem efetiva liberdade, pode querer recusar tais direitos, em nome dos Direitos Humanos? “Como os homens desprovidos podem, assim, abster-se de aproveitar dos direitos que se mostram acessíveis, ou os recusar, mesmo quando lhes são oferecidos?” (D’HONT, 1986, p. 220, tradução nossa)[1].

A construção pareceria, realmente, paradoxal, e o fato de seu autor ser morador de rua não ameniza essa aparente contradição, afinal, “entender a mente de um homem comum é infinitamente mais difícil que compreender a mente de Spinoza ou de Dante [...].” (AGAMBEN, 2008, p. 21). Com efeito, é importante lembrar, inclusive, que

a recusa daquilo que se chama, hoje, de direitos do homem, foi tanto geral, durável e irredutível como sua reivindicação. Em todos os tempos, sobre todos os continentes, centenas de milhões de homens rejeitaram os “direitos do homem”, ou alguns desses direitos[, ainda que por] formas suaves, vagas, involuntárias, à meia consciência. (D’HONT, 1986, p. 217-8, tradução nossa)[2]

Os Direitos Humanos são vistos comumente, como instrumentos de limitação e de controle dos abusos do Poder estatal, bem como de suas autoridades constituídas, fundados nos princípios da igualdade, estando voltados à consagração do respeito à

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dignidade humana, à garantia da limitação do Poder, e ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e de suas capacidades (MORAES, 2003, p. 19-20). São, assim, “situações jurídicas, objetivas e subjetivas, definidas no direito positivo, em prol da dignidade, igualdade e liberdade da pessoa humana” (SILVA, 2005, p. 179).

Funda-se na idéia de os Homens são igualmente livres e independentes por natureza, com certos direitos inatos, dos quais não deve ser privado ou despojado (BASTOS, 2001, p. 177), na medida em que o objetivo dos direitos humanos é criar e manter os pressupostos de uma vida na liberdade e na dignidade humana (BONAVIDES, 2006, p. 560).

Nesse sentido, para tanto, o indivíduo deve ter garantida uma esfera de proteção individual onde sua liberdade deve estar protegida e assegurada de qualquer intervenção estatal, quem deve perceber a existência de limites a sua ação. Trata-se, assim, de uma prestação negativa do Poder Público estatal, ou ainda, de uma omissão de ofender interesses individuais como a vida, a liberdade e a propriedade. A proteção de interesses materiais, deste modo, incluir-se-ia dentre a proteção da incolumidade física dos homens (BASTOS, 2001, p. 173-4).

Deve-se notar, inclusive, que são a liberdade, a propriedade, a vida, a segurança e a resistência à opressão, os tradicionais direitos humanos, percebidos como inalienáveis, sagrados e naturais (BONAVIDES, 2006, p. 562). A idéia de Direitos Humanos, tendo por conteúdo os cinco direitos acima mencionados, deteria um caráter profunda e efetivamente revolucionário (SILVA, 2005, p. 172).

Os Direitos Humanos, ainda segundo essa concepção, seriam, basicamente, direitos (i) irrenunciáveis, ou seja, impassíveis de sofrerem renúncia, apesar de poderem deixar de ser exercidos; (ii) inalienáveis, porque intransferíveis e inegociáveis, sem conteúdo econômico-patrimonial, sendo, assim mesmo, indisponíveis; e (iii) universais, abrangendo todo ser humano, independentemente de sua nacionalidade, de seu sexo, de sua raça, de seu credo ou de sua convicção político-filosófica (MORAES, 2003, p. 41; SILVA, 2005, p. 181).

Enfim, se os irrenunciáveis Direitos Humanos têm por finalidade básica o respeito à dignidade, a proteção do indivíduo contra o arbítrio estatal, e o estabelecimento de condições mínimas de vida, para o desenvolvimento pleno da personalidade humana (MORAES, 2003, p. 39), como entender que o morador de rua pode renunciar, de fato, declarada e expressamente, aos Direitos Humanos e à realização de suas finalidades, se, ele mesmo, seria o representante, em mais alto grau, da condição de refugo, de ser redundante, enfim, de lixo humano, cuja vida é desperdiçada pela própria humanidade (BAUMAN, 2005, p. 17-45)? Como entender, enfim, que o ser humano mais desprovido de proteção, e de direitos realizados, pode cogitar e afirmar sua recusa, consciente, racional, lúcida e deliberada, aos Direitos Humanos Fundamentais?

Em outros termos, o aparente paradoxo decorrente da frase do morador de rua pode ser precisado em três grandes eixos:

(i) o morador de rua recusa seus Direitos Humanos, algo inconcebível a uma compreensão tradicional da literatura jurídica sobre este objeto de estudo, visto como imprescritível, irrenunciável, inalienável e indisponível;

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(ii) o morador de rua, geralmente concebido como ser humano em posição frágil por carecer de condições mínimas de subsistência, recusa os efeitos últimos por excelência dos Direitos Humanos, a saber, a dignidade, a proteção individual, a obtenção de condições mínimas de vida e o pleno desenvolvimento de sua personalidade: segundo uma percepção tradicional dos Direitos Humanos, aquele quem mais precisa deles, afasta-os, ou deles se alija, por deliberação consciente e racional; e

(iii) o morador de rua parece reconhecer alguma importância nos Direitos Humanos, qualificando-os como sagrados e como inalienáveis e, em nome destes, renuncia a outros direitos comumente vistos como constituindo o conteúdo principal dos Direitos Humanos: em nome dos sagrados e inalienáveis Direitos Humanos, o morador de rua rejeita os direitos tradicionalmente tidos como tais, atribuindo-lhes, parece, um grande ar de desprezo.

No entanto, a despeito do aparente paradoxo, é possível examinar o discurso do morador de rua a partir de uma óptica que pretenda dissipar essa contradição revelada pelos limites analíticos da compreensão da literatura jurídica tradicional. Seu arcabouço conceitual se mostra insuficiente para apreender, do modo coerente, o discurso do morador de rua que recusa os Direitos Humanos. Assim, mostra-se necessário direcionar a investigação a partir de um pensamento crítico sobre os Direitos Humanos, um que extrapole os limites cognitivos do pensamento jurídico corrente.

A zetética jurídica enfatiza a dimensão pergunta na solução dos problemas (FERRAZ JR., 2001; MATOS, 2006, p. 38; ROESLER, 2002, p. 80), coloca em dúvida determinados conceitos básicos, certas premissas, abrindo à reflexão os elementos que constituem a base de organização de um sistema vigente de enunciados jurídicos, reformulando parte da orientação dada pela teoria jurídica tradicional e dogmática.

A insuficiência e a exaustão da capacidade explicativa de determinado aparato conceitual do pensamento jurídico convida a uma postura jurídico-reflexiva renovada, questionadora, que parte do problema em busca do sistema explicativo, e não do sistema, para a solução do problema, por o sistema não poder mais deter possibilidade de atribuir significação coerente aos elementos constitutivos e solucionadores do problema. Trata-se, eminentemente, de um direcionamento zetético da perquirição jusfilosófica (ALVES, 2003, p. 373).

Desconstruções e reconstruções sígnico-lingüísticas, de caráter estipulativo (FERRAZ JR., 2001, p. 34-40; LOPES, 2004, p. 24-46) sobre aquilo que se deve entender, ou não, por jurídico abre nova série de possibilidade contingentes de formas de compreensão do mundo e de direcionamento deste, a partir de uma nova compreensão sobre o Direito, visto que o estudo de um objeto significa o construir (ALVES, 2003, p. 298); se o objeto é o Direito, uma compreensão renovada do Direito significa uma reestruturação da arquitetura institucional e social da realidade (LOPES, 2004).

É nesse sentido que se desenvolverá o tópico a seguir, na tentativa de fornecer uma possível solução a esse paradoxo a partir de uma compreensão jusfilosófica não tradicional dos Direitos Humanos, na linha de uma investigação de zetética jurídica, cuja finalidade última, comprometida com a busca incessante da verdade (FERRAZ JR., 2001), é constituir uma maneira diferenciada de concepção do objeto que, a final, é o

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próprio Direito e, indiretamente, a própria realidade, por o Direito constituir a realidade (LOPES, 2004).

3 O Homem e o Cidadão: a Ambivalência e o Eclipsamento dos Direitos Humanos

As normas pelas quais a sociedade funciona também moldam o caráter dos seus membros (caráter social). (FROMM, 1987, p. 82).

O aparente paradoxo, em torno de três grandes eixos principais, fundados na compreensão tradicional dos Direitos Humanos, é passível de solução a partir de uma compreensão crítica sobre os Direitos Humanos, cujo fundamento primordial pode ser encontrado nas reflexões de Karl MARX sobre as Declarações de Direitos dos Homens. Pode-se entender que a postura de morador de rua é, em muito, reflexo do juízo daquele pensador, a base do sentido de seu discurso.

De fato, é importante perceber que Karl MARX efetua uma distinção dentro da noção de Direitos Humanos, diferenciando entre os direitos do cidadão e os direitos do homem. Os primeiros seriam os direitos cívicos, de caráter político, apenas exercidos na comunidade com outros. Os ditos direitos do homem, por outro lado, se refeririam ao homem membro da sociedade civil (1997, p. 83-4).

É nesta distinção de base, fundante e primeira, que reside a possibilidade de resolução do paradoxo da frase proferida pelo morador de rua. Mais do que isso, esse paradoxo verificado em uma dimensão singular e microcósmica revela, na verdade, um importante problema fundamental em torno do tema dos Direitos Humanos que informa, não apenas a maneira como eles são compreendidos pelos discursos jurídicos tradicionais, inclusive por aqueles destinados à educação formativa em Direitos Humanos, mas também o sentido e a orientação da mobilização pública de caráter político-reivindicativo em nome dos Direitos Humano.

Com efeito, deve-se notar que a literatura jurídica tradicional sobre Direitos Humanos exposta no item anterior é ensinada, aprendida e repetida acriticamente nas Escolas de Direito pressupondo, enquanto fundamento teórico-metodológico da práxis dos Direitos Humanos, a concepção restrita e reduzida de Direitos Humanos enquanto direitos do homem.

Plenificada a noção dos Direitos Humanos por este conceito diminuto e limitado dos direitos do homem, promove-se o eclipsamento e o esquecimento da outra dimensão daqueles Direitos - salvo, talvez, em construções em torno de argumentos retóricos, eloqüentes, apaixonados e idealmente vazios -, a saber, a vertente que concebe os Direitos Humanos como direitos do cidadão.

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Isso porque, segundo Karl MARX, os direitos do homem são os direitos do membro da sociedade civil burguesa, ou ainda, mais especificamente, o direito do homem burguês, “egoísta, do homem separado do homem e da comunidade”, expressos, exatamente, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1793, em seu art. 2º, citado pelo mesmo autor: os direitos do homem, naturais e imprescritíveis, são a igualdade, a liberdade, a segurança e a propriedade (MARX, 1997, p. 85).

Por outro lado, os direitos do cidadão seriam os direitos cívicos, típicos de uma comunidade, em que se pressupõe o estar com o outro, agindo em conjunto, para a tomada de decisão política. Semelhante à liberdade dos antigos (BOBBIO, 2000, p. 104-5), a liberdade cívica seria a de participação política ativa na definição dos destinos da Pólis (políticos), admitindo-se a aproximação entre Direito e Política (LEFORT, 1987; MARX, 1997).

Esta é, na verdade, a essência da crítica marxista aos Direitos Humanos, e a base para compreender o discurso do morador de rua: aqueles direitos do homem especificados na Declaração blindaram a noção de Direitos Humanos à possibilidade de inserção de outra modalidade de compreensão dos mesmos. Em outras palavras, a concepção de Direitos Humanos enquanto direitos do homem, acriticamente repetida, implicou o preenchimento integral de todo o campo semântico de possível significação da expressão Direitos Humanos pela noção do “homem como bourgeois, [...] tomado por homem verdadeiro e propriamente dito” (MARX, 1997, p. 87, grifos do autor).

Historicamente, os Direitos Humanos se reduziram aos direitos do homem, bastando perceber que a Teoria Tradicional dos Direitos Humanos, ignorando a conclusão de Karl MARX de que tais direitos seriam privilégios burgueses com pretensões universalistas, compreende exatamente esses mesmos direitos como os Direitos Humanos por excelência – e, por que não, fundamentais? -: “[e]ste homem, o membro da sociedade civil, é agora a base, o pressuposto, do Estado político. É por ele reconhecido como tal nos direitos do homem” (MARX, 1997, p. 89, grifos do autor).

Nesse sentido, a liberdade protegida pelos direitos do homem consiste na liberdade de isolamento do indivíduo com relação aos demais homens, limitado a si, enquanto que a propriedade seria o direito de interesse próprio, sem referência a outros homens. Por outro lado, a igualdade defendida seria a de que os homens seriam igualmente livres para se voltarem sobre si mesmos, isolados, ao passo que a segurança seria a garantia pública do egoísmo humano: Direitos Humanos reduzidos aos direitos do homem não permitem ultrapassar, nunca, o homem egoísta, isolado da comunidade, remetido a si mesmo, a seus interesses privados e ao que é seu (MARX, 1997, p. 85-6).

Nesse sentido, é interessante notar que a sociedade constituída enigmaticamente sobre a noção de Direitos Humanos reduzida proclama sua legitimidade por meio do direito do homem egoísta, isolado de seu semelhante e da comunidade. O egoísmo e a lógica apropriativa se tornam o fundamento das relações sociais na esfera pública, privatizada, ou seja, fundariam uma sociedade eminentemente civil, desprovida de qualquer dimensão ou preocupação política da sociedade civil (MARX, 1997, p. 85-6): “[o] único vínculo que os mantém juntos é a necessidade de Natureza, a precisão [Bedürfnis] e o interesse privado, a conservação da sua propriedade e da sua pessoa egoísta.” (MARX, 1997, p. 86-7).

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Uma sociedade cujos princípios são a aquisitividade, o lucro e a propriedade enseja um caráter social orientado no sentido do ter, e uma vez que o padrão dominante seja estabelecido, ninguém deseja ser marginalizado; para evitar esse risco, todo se adaptam à maioria, que tem em comum apenas seu antagonismo mútuo. (FROMM, 1987, p. 113)

Trata-se da reprodução da lógica privatista, apropriativa, despreocupada com o bem e com a salvação públicos e com o outro, típico do modo ter de existência de caráter burguês, onde “meu relacionamento com o mundo é de pertença e posse, em que quero que tudo e todos, inclusive eu mesmo, sejam minha propriedade” (FROMM, 1987, p. 43); a “natureza do modo ter de existência decorre da natureza da propriedade privada. Nesse modo de existência, tudo o que importa é minha aquisição de propriedade e meu irrestrito direito de manter o adquirido. O modo ter exclui todos os demais.” (FROMM, 1987, p. 87).

Cingir a compreensão dos Direitos Humanos à noção dos direitos do homem é permitir, ao ignorar a dimensão dos direitos do cidadão, a constituição de um fundamento impolítico da percepção do indivíduo sobre si mesmo – porque incapaz de efetuar um exercício reflexivo de autocompreensão ético-política -, sobre a sociedade onde se insere, bem como de seu entendimento acerca dos produtos culturais e históricos de sua sociedade, como sua ordem jurídica, suas instituições e suas cosmovisões.

Tal sociedade passa a estar voltada à realização de um homem que não existe porque artificial, alegórico e moral, pretensamente universal (MARX, 1997, p. 90). Diz-se pretensamente, porque resultariam da consagração jurídica de noções particulares e específicas de uma formação cultural singular que pretende se travestir de totalidade, ou melhor, de universalidade. Os Direitos Humanos compreendidos como direitos do homem seriam os direitos do homem burguês, ou mesmo, os privilégios insertos no aparato estrutural jurídico estatal – e, hoje, também universal - de um homem singular, alçado à posição abstrata de homem universal (MARX, 1997, p. 91-7).

Nesse sentido, é interessante notar que toda a tradição teórica dos Direitos Humanos conhece, mas ignora, ou não consegue perceber criticamente, o fato de que a constituição fundamental dos Direitos Humanos é a noção de direitos do homem, reprodutora da lógica burguesa de apropriação de parcelas privilegiadas e estratégicas do Direito por meio da inserção de direitos singulares, verdadeiros privilégios pretensamente universais, no aparato estrutural de uma ordem jurídica.

Nesse sentido, basta mencionar, por exemplo, a referência constante à Magna Carta (Magna Charta Libertatum), outorgada, em 1215, na Inglaterra, pelo rei João Sem-Terra, consagrando, entre outros direitos, restrições tributárias aos senhores feudais, nobres vassalos do rei que lhe impuseram a confirmação de seus privilégios particulares por deterem, de fato, maior força militar (BASTOS, 2001, p. 174). Não se pode ignorar, inclusive, que ela foi “confirmada seis vezes por Henrique III, três vezes por Eduardo I, catorze vezes por Henrique V e uma vez por Henrique VI” (MORAES, 2003, p. 25).

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No entanto, não se pode deixar de notar que a idolatrada Magna Carta, percebida como Carta de Direitos, na verdade, constitui uma Carta de Privilégios, em uma tentativa de lançar, por força/imposição forçada, à totalidade, o ponto de vista da singularidade de determinado grupo, ou seja, uma tentativa de tornar universal o que é, efetivamente, particular. Nessa linha histórica de os Direitos Humanos serem a inserção de privilégios pretensamente atribuíveis a todos os homens, não se pode esquecer que a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão francesa detinha grande teor universalista; de fato, “[f]oi para ensinar o mundo que os franceses escreveram” (BOUTMY, 1907, p. 139-40 apud BONAVIDES, 2006, p. 562).

Os privilégios burgueses assim consagrados foram utilizados historicamente apenas para servir o Poder, perpetuando e aprofundando a lógica burguesa de dominação (FROMM, 1987, p. 43 e 87), ou ainda, da subordinação dos pobres aos ricos, e dos trabalhadores a seus patrões, nunca, de fato, universalizável, nunca, efetivamente, realizável para todos, sem promover a concretização da promessa de realização plena da dignidade da pessoa humana (VILLEY, 1986, p. 196-7). Nesse mister, o Direito deteve a capacidade de, retoricamente, ser instrumento legal de promoção do controle social (CUNHA, 1979), para tentar garantir a pacificação das convulsões e dos conflitos da sociedade (FERRAZ JR., 2001), um verdadeiro instrumento de violência simbólica – a violência dos signos do Direito – (FARIA, 1988) despreocupado com a efetiva eficácia dos mandamentos normativo-jurídicos insertos pela ação reivindicativo-apropriativa do Direito (NEVES, 1994).

Na verdade, o que parece ter sido universalizado, de fato, não foram os privilégios travestidos de direitos, por meio de sua efetiva concretização a todos os homens, mas, sim, a racionalidade de cada grupo com particularidades específicas buscar, incessantemente, a inserção desenfreada e contínua, na estrutura normativo-jurídica da ordem existente, de um ou de outro privilégio singular seu, conforme suas idiossincrasias, inflando o rol de Direitos Humanos enquanto direitos do homem egoísta e isolado de uma comunidade.

Isso porque, seguindo a lógica de que os Direitos Humanos são os direitos do homem, e que esses, na verdade, são apenas os privilégios inseridos em Direito, mais e mais grupos têm buscado participar do rol dos Direitos Humanos como promessa de algo a ser realizado, a fim de “abocanhar”, cada vez mais, individualmente, a sua parcela grupal individual “do bolo”.

O triunfo dos direitos do homem é a consagração do atrofiamento, em nós, do senso de justiça. A justiça tem um equilíbrio; ela não favorece ninguém, nem mesmo o pobre […]. Ela desconfia de batizar de direito nossas aspirações pessoais, quaisquer que sejam seus fundamentos. Não é mais justo lá onde a “cólera” dos viticultores, dos siderurgistas, ou de quem quer que seja, é, ipso facto, aclamada como “direito” – e suas necessidades qualificadas, automaticamente, como “reivindicações legítimas”. (VILLEY, 1986, p. 198-9, grifos do autor, tradução nossa)[3]

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Trata-se, nesse sentido, de uma política meramente afirmativa de direitos – e de reforço da racionalidade típica da ordem jurídico-política econômica vigente, conforme os mandamentos do modo de existência ter - destinada à correção de resultados indesejáveis sem o incômodo das estruturas geradoras das injustiças. Não tem, nesse sentido, um caráter transformativo, por não pretender corrigir os resultados injustos mediante a reestruturação das causas que os engendram.

Nesse sentido, ao invés de se pensar na prática de ações transformativas (i) redistributivas, em que há uma reestruturação profunda das relações de produção, eliminando diferenciações entre grupos, ou (ii) de reconhecimento, em que há uma desconstrução em razão de uma reestruturação profunda das relações de reconhecimento simbólico-cultural, desestabilizando as diferenciações entre grupos, os Direitos Humanos, enquanto direitos do homem, preocupam-se com ações afirmativas (i) redistributivas, em que se age para efetuar realocações superficiais de bens existentes, apoiando a diferenciação entre grupos, ou (ii) de reconhecimento, em que há a realocação superficial de respeito às identidades de grupos, também apoiando diferenciação entre grupos (FRASER, 2001, p. 265-73; HABERMAS, 2004a, 2004b).

Essa tendência, inclusive, é traduzida na Teoria Tradicional pela quarta fase do encadeamento acrítico, lógico e cronológico, das etapas de surgimento e de evolução dos Direitos Humanos, como Norberto BOBBIO as diferencia e as nomeia, na seguinte ordem “historicamente rigorosa”[4]: positivação, generalização, internacionalização e especificação. Esta última consistiria na preocupação com o ser em situação: idosos, mulheres, etc. (BOBBIO, 2004, p. 49-50, 54-6, 66-9 e 78-9).

No entanto, além dessa tendência à especificação de Direitos Humanos, ou melhor, à progressiva inclusão de privilégios grupais, específicos e singulares e, portanto, não universalizáveis, nas estruturas jurídicas estatais e internacionais, deve-se notar uma de suas graves conseqüências para além de seu mero incentivo à privatização do Direito, qual seja, a de promover a inflação normativo-jurídica, ou ainda, a hiperjuridificação descomprometida com a realizabilidade (FARIA, 1988, 1999).

Houve a ampliação histórica do rol dos direitos entendidos como Direitos Humanos, abarcando, agora, a característica de se centrarem também em questões socioeconômicas e culturais. Em outros termos, seguindo a Teoria Tradicional, surgem os direitos de segunda geração, fundados no princípio da igualdade (BONAVIDES, 2006, p. 564), buscando atender “aqueles que não são capazes de acompanhar a marcha do rumo da auto-suficiência e por razões diversas, como a idade, a doença, e muitos outros infortúnios, se vêem na necessidade de valer-se do socorro da sociedade” (BASTOS, 2001, p. 179).

Tais direitos, por outro lado, possuem “eficácia duvidosa”, motivo pelo qual “foram remetidos à chamada esfera programática, em virtude de não conterem para sua concretização aquelas garantias habitualmente ministradas pelos instrumentos processuais de proteção aos direitos da liberdade” (BONAVIDES, 2006, p. 564). São conteúdo, enfim, de norma programática, de eficácia limitada “e de aplicabilidade indireta [apesar de serem] tão jurídicas como as outras” (SILVA, 2005, p. 380).

Contudo, interpretar doutrinariamente as normas de Direitos Humanos sociais – ou ainda, frise-se, de direitos do homem, no sentido dado por Karl MARX – como normas

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programáticas é, na verdade, uma maneira, ainda que não intencional, de abrir um precedente conformista à não realização desses privilégios-direitos que se pretendem universais: “[n]orma programática passou a ser sinônimo de norma que não tem qualquer valor concreto [...]. Toda norma incômoda passou a ser classificada como ‘programática’.” (BERCOVICI, 2005, p. 40).

Essa ampliação de rol de privilégios-direitos efetivamente constituiu, a pretexto de realização universal de interesses egoísticos, econômicos, sociais e culturais, pretensamente universais, uma série de “promessas que não são mantidas, mas em toda parte irrealizadas, [que] deixa[m] as pessoas decepcionadas e amargas” (VILLEY, 1986, p. 196-7, tradução nossa) [5]. Enfim, “[u]ma sociedade cheia de direitos é uma sociedade vazia de justiça” (BITTAR, 2005, p. VIII).

Assim, permanecer aguardando a realização de direitos pela sociedade, em outros termos, significa acatar a ordem vigente das coisas de uma sociedade impolítica, egoísta, despreocupada com o bem e com a salvação públicos, muito menos com o outro. Contando com ela, pode-se esperar, seguramente, a não realização dos privilégios pretensamente universalizados e, portanto, a própria morte.

Constitui-se, em suma, uma situação semelhante à condenação de ser sagrado do Direito Romano, segundo o qual o homem declarado sagrado era enviado para a zona cinzenta em que não mais era homem, mas não era ser divino, matável a qualquer momento, por qualquer um. Sagrado e maldito. Fasto e nefasto (AGAMBEN, 2007, p. 89-90; NASCIMENTO, 2002, p. 2509). A diferença, hoje, reside no fato de o Homem não ser declarado sagrado, mas, sim, de ser submetido a algo tido por sagrado, inviolável e inquestionável, os Direitos Humanos. Contudo, padece dos mesmos males, por persistir sua situação de matabilidade em potencial.

Assim, o ser humano miserável (aquele morador de rua), sem condições para manter sua subsistência, está sujeito à tutela dos ineficazes e irrealizáveis privilégios-direitos sociais do homem. Persiste vagando entre os Homens, sem poder esperar qualquer possibilidade de destino melhor de sua situação, porque, de fato, ser unicamente humano, afinal, nada significa, porque “[p]arece que o homem que nada mais é que um homem perde todas as qualidades que possibilitam aos outros tratá-lo como semelhante” (ARENDT, 2004, p. 333-4).

Promove-se, assim, uma verdadeira promoção institucional de matança impune, uma exceção ao direito tipicamente humano de proibição do homicídio (AGAMBEN, 2007, p. 88-9), situação da qual todos permanecem como testemunha indiferente, acrítica e não indignada, e, por isso, tão carrascos quanto os executores - a banalidade do mal - (AGAMBEN, 2008, p. 27-31) enquanto persistirem presos às amarras de uma concepção Tradicional dos Direitos Humanos.

Enquanto os Direitos Humanos forem reduzidos a uma compreensão afinada ao modo ter de existência, meramente reivindicativa de (re)afirmação da lógica de apropriação privilegiada de parcelas da ordem jurídica, despreocupada com o bem público e com o outro, muitos persistirão na miserabilidade, a despeito de receberem a proteção universal dos privilégios grupais, e da possibilidade de, eventualmente, poderem inserir no Direito, normas irrealizáveis afeitas a suas específicas necessidades.

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Pode-se perceber, inclusive, que a inserção de tais normas programáticas sobre privilégios-direitos sociais em textos constitucionais possui, efetivamente, muito mais uma função simbólica de legitimação da ordem vigente do que, propriamente, ser a promessa de sua efetiva realização, ou seja, pretende-se pacificar a sociedade pelo compromisso dilatório de realização dos privilégios-direitos sociais, legitimando o regime jurídico-político vigente (descarregamento de tensões sociais), em detrimento do cumprimento da promessa de realização dos privilégios-direitos (NEVES, 1994).

Diante dessas considerações, é possível, agora, compreender a frase do morador de rua: ele se recusa a se submeter a uma vida sacrificável, a aguardar a tutela ineficaz e irrealizável dos sagrados, invioláveis e inquestionáveis (tabu) privilégios-direitos sociais do homem, tipicamente egoístas e isolados, próprios de uma particularidade social que pretende o explorar, que se traveste de pretensa universalidade, para fins de legitimação da ordem vigente.

O morador de rua não recusa a sua dignidade, nem a sua vida, mas, sim, a todos esses pressupostos implícitos que decorrem da aceitação dos Direitos Humanos enquanto direitos do homem. Prima, assim, pela solidariedade e pela sociabilidade, típicas de uma comunidade, em que a dignidade humana não esteja condicionada à auto-sujeição à exploração por outro homem, em que a injustiça não seja cristalizada pela progressiva inserção de privilégios transformados em direitos, e onde, enfim, não seja necessário aguardar qualquer tutela comiserada de sua situação, porque se manterá entre os homens, e não em zona cinzenta.

Em outros termos, rejeita a dimensão meramente apropriativa de parcelas do Direito por meio da inserção progressiva de privilégios-direitos na estrutura normativo-jurídica, em nome da preocupação com o bem e com a salvações públicos, e da consideração do outro. Rejeita o modo ter de existência, enfim, em nome dos Direitos Humanos que não sejam os direitos do homem, mas, sim, sua face eclipsada, os direitos do cidadão, promotores do exercício de uma reflexão autocompreensiva acerca da posição ético-política ocupada por cada indivíduo na comunidade.

4 O Que Resta dos Direitos Humanos

Só assim, por cima dos elementos particulares, [é que] o Estado se constitui como universalidade. (MARX, 1997, p. 75, grifos do autor)

Deste modo, retornando ao fundamento basilar de toda a discussão desenvolvida no item precedente, deve-se perceber que os Direitos Humanos, enquanto plenificados pela noção de direitos do homem, estão mais preocupados em promover a inserção de privilégios e do egoísmo na sociedade e em seu Direito, ignorando a dimensão política, cívica, dos Direitos Humanos, esquecida, talvez, pelo encantamento produzido pela

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garantia, ainda que frágil, dos interesses individuais próximos, autocentrados e autorreferenciais.

Constatada a insuficiência, ou mesmo a polêmica em torno dos Direitos Humanos, poder-se-ia perguntar: o que resta, afinal, dos Direitos Humanos?

Uma possível solução seria retomar a distinção de Karl MARX entre direitos do homem e do cidadão como os dois componentes originários dos Direitos Humanos, procurando ressaltar a importância dos direitos cívicos de participação política ativa na definição dos destinos da Pólis (políticos), na medida em que pressupõe um estar com o outro, agindo em conjunto com ele.

Direitos Humanos enquanto direitos cívicos apontam para a constatação de que, mais uma vez, Política e Direito devem se reaproximar: o pensamento reflexivo deve estar aberto a essa interrelação esquecida pelo eclipse promovido pelo modo ter de existência (LEFORT, 1987, p. 38). Em situações limite, como o advento de regimes totalitários, os Direitos Humanos enquanto direitos cívicos adquirem uma relevância fundamental para proteger o homem das agressões do Estado (LEFORT, 1987, p. 39), porque

[o] totalitarismo se edifica sobre a ruína dos direitos do homem. Entretanto, o homem se encontra sob esse regime, dissociado do homem e separado da coletividade como jamais estivera no passado. [...] [O] Estado supostamente detém o princípio de todas as formas de socialização e de todos os modos de atividade. [...]

Com efeito, o totalitarismo tende a abolir todos os signos de autonomia da sociedade civil, a negar as determinações particulares que a comporiam. (LEFORT, 1987, p. 44-5)

A experiência do totalitarismo, a da luta pela realização de direitos humanos e a do embate pela garantia de uma sociedade democrática, inclusive nos regimes comunistas e socialistas, tiveram a aptidão de demonstrar que os Direitos Humanos enquanto direitos dos homens são, muitas vezes, ineficazes; contudo, elas revelaram que tais direitos detêm efetivo potencial transformador se entendidos como direitos cívicos, de participação política ativa: quando compreendidos especificamente dessa maneira, os Direitos Humanos possuem profundo e intenso significado prático, promovendo penetrantes reviravoltas na vida social (LEFORT, 1987, p. 39-46).

[A] liberdade de opinião é uma liberdade de relações, [...] uma liberdade de comunicação. [...] [É] direito do homem, um dos seus direitos mais preciosos, sair de si mesmo e ligar-se aos outros pela palavra, pela escrita, pelo pensamento. [...] [D]á a entender que homem não poderia ser legitimamente confinado aos limites do seu mundo privado, que tem por direito uma palavra, um pensamento públicos. [...]. Na afirmação dos direitos do homem trata-se da independência do pensamento e da opinião face ao poder, da clivagem entre poder e saber e não somente, não essencialmente, da cisão

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entre o burguês e o cidadão, entre a propriedade privada e a política. (LEFORT, 1987, p. 48)

Entender, assim, dessa outra forma, o que resta dos Direitos Humanos permite vislumbrar neles um potencial emancipador que, não preocupado com a inserção de privilégios particulares, em tom universal, em determinada estrutura jurídica, pretende resgatar a solidariedade política entre os membros de uma comunidade, em que o estar com o outro retorna a ser importante. Os Direitos Humanos enquanto direitos do cidadão, promotores de uma interação ativa em conjunto com o outro da comunidade, na esfera pública, permite o resgate da ação tipicamente humana, qual seja, a ação política (AGAMBEN, 2004), que pressupõe a convivência solidária, preocupada com o bem e com a salvação públicos, bem como com o outro.

É, nesse sentido, que em momento de estado de exceção, em que a validade das leis é suspensa, e em que o arbítrio estatal elimina qualquer resquício de liberdade, que se revela a importância da dimensão cívica dos Direitos Humanos, acima de qualquer preocupação meramente distributiva de parcelas da ordem jurídica. Todo o potencial emancipador dos Direitos Humanos ressurge com intensa capacidade mobilizadora e transformadora, exigindo a presença do indivíduo na ação com o outro, para que pense o bem público publicamente, acima dos meros interesses produtivistas, individuais e particulares. Mais do que apropriação, a emancipação, pela ação política com os outros homens, mostra-se como instrumento de realização da humanidade em uma sociedade humana (CÍCERO, 1999, p. 24 e 8).

De fato, o que caracteriza o homem e a sociedade humana são a razão e a palavra, que conciliam e que agrupam os homens entre si, afastando-os da dimensão tipicamente animal da força (leão) e da solércia (raposa), desprovidas de razão e de linguagem (CÍCERO, 1999, p. 24-8). A palavra e o livre uso da voz se opõem à violência e ao antagonismo, é fundante da própria civilização, ou seja, da sociedade dos homens (MATOS, 2006, p. 37). A palavra assegura a sociabilidade humana por instaurar a necessidade de relação com o outro, considerando-o em sua peculiaridade, visando à conservação do mundo compartilhado, da coisa comum. Humanitas se refere ao cultivo da letra e da filosofia clássicas, ou ainda, da palavra e da razão políticas greco-romanas (MATOS, 2006, p. 39).

Manter continuamente os elos de solidariedade pública entre os homens, para que, em conjunto, em um agir político, com o outro, pela palavra, pensem os destinos da Pólis (políticos), significa manter a comunidade humana em sua condição natural de assegurar um agir preocupado com a honesta utilidade coletiva, por meio (i) do discernimento e da apreensão do verdadeiro (a busca da verdade); (ii) da manutenção da confiança (fides) em torno da palavra dada; (iii) da magnanimidade; e (iv) da garantia da ordem e da medida das coisas (moderação e temperança - as três últimas relacionadas à manutenção da sociedade humana pela justiça e pela benevolência (CÍCERO, 1999, p. 11-3).

Entender como necessária a manutenção de uma relação política, não auto-interessada nem pautada por antagonismos apropriativos mútuos, permite persistir a crença na promessa da política (ARENDT, 2008) de manutenção de uma dimensão humana,

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racional, aberta à compreensão do outro, plural (ARENDT, 2008, p. 144), e afeita aos interesses de salvação pública, na medida em que “de todos os vínculos sociais, nenhum é mais caro do que aquele que nos prende à república.” (CÍCERO, 1999, p. 30), garantindo a coexistência pacífica de homens diferentes associados entre si (ARENDT, 2008, p. 145).

Para tanto, é necessário resgatar a crença da esfera pública, e a credibilidade do agir político, porque a “indiferença e a descrença em instituições públicas resultam na perda da ‘dignidade da política’, o que abre espaço para diversas formas de totalitarismo – econômico, político e ao genocídio cultural” (MATOS, 2006, p. 12). Para evitar a desagregação da comunidade, a postura do homem deve ser a do cidadão, de tal modo que “na escolha dos deveres, sobressaia o tipo de dever para com a sociedade dos homens. [...]. Isso é tão notório que, na busca do dever, não é difícil perceber qual deve ser preferido a outro.” (CÍCERO, 1999, p. 77).

Verifica-se uma tendência de haver um progressivo encaminhamento das relações humanas pautadas por particularismos decorrentes de uma lógica concentracionista e centralizadora do capitalismo contemporâneo tardio. Há a dissolução da Política na Economia, com um fetichismo tecnológico e econômico que exclui o pensamento autônomo com relação à coisa pública, ou seja, com relação à Democracia e à República: há a valorização das relações privadas, em detrimento das de caráter público (MATOS, 2006, p. 13-4 e 36); mas “parcela alguma da vida, quer nos negócios públicos, quer nos privados, [...] pode prescindir do dever público. E não só no cultivá-lo reside toda honestidade da vida como, no negligenciá-lo, toda torpeza.” (CÍCERO, 1999, p. 5).

Deste modo, mais do que direitos do homem, os Direitos Humanos percebidos como direitos do cidadão, cívicos no sentido marxista, guardam, assim, alguma função importante, qual seja, a de permitir a ação política (em conjunto, com outros homens) para a influência na definição dos destinos da Pólis (políticos). Trata-se, enfim, de relembrar a necessidade de constante tentativa de cumprir a promessa da política, qual seja, a de garantir a subsistência da comunidade geral dos homens, enquanto homens, afastando qualquer dimensão de uma animalidade egoísta, nutriente daquele antagonismo mútuo estimulado pelo modo ter de existência. Apenas assim é possível “cultiv[ar], prote[ger] e preserv[ar] a paz e a unidade do gênero humano” (CÍCERO, 1999, p. 71).

Esquecido pela tradição teórica universalista, edênica, idílica e idealista dos Direitos Humanos, acriticamente reproduzida pela literatura jurídica tradicional utilizada para fundar a educação formativa em Direitos Humanos, esse outro campo significativo dos Direitos Humanos revitalizado atribui uma importância bastante relevante à mobilização em torno da reivindicação de Direitos Humanos, podendo-se compreender, ainda que em outro contexto, e em outro sentido, a intuição de Michel VILLEY (1986, p. 192, tradução nossa)[6]:

Não há fumaça sem fogo. A exaltação universal dos direitos do homem possui suas razões de ser. Eles devem encerrar alguma coisa de bom. Como todos os cultos, o dos

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direitos do homem está pavimentado por boas intenções. [É necessário] distigüir o bom grão do joio.

A luta pelos Direitos Humanos, agora, apenas ganha novo significado se ela voltar a se preocupar com a dimensão de participação política, própria de um pensamento que, ao aproximar, novamente, Direito e Política, compreende a relevância própria dos direitos cívicos. Quando todos os direitos são completamente anulados, o discurso dos Direitos Humanos enquanto direitos do cidadão irrompe com força profundamente preocupada com a ruptura da opressão estatal, para contestar a ordem vigente, “um dos princípios geradores da democracia” (LEFORT, 1987, p. 57), de modo a propor, de modo renovado, constantemente, a alteridade social.

É neste insaciável movimento de proposição política de um modo de vida alternativo, para além de uma preocupação individual meramente apropriativa, em nome da salvação e do bem estar públicos, que se pode encontrar algum resquício de um potencial emancipador, e efetivamente revolucionário-transformador, dos Direitos Humanos, não mais meros instrumentos promotores da apatia e da indiferença, “cúmplices da imoralidade deliberada” (MATOS, 2006, p. 19). Não apenas proteger o ser inerentemente político (ARISTÓTELES, 2002, p. 4-6) das tiranias de um Poder Público arbitrário, organizado estatalmente ou não, mas também da própria irracionalidade de se conceber a relação entre os Homens como norteada pelos critérios do modo de existência ter, voltada à apropriação de todo o entorno (de tudo e de todos).

Os Direitos Humanos, enquanto direitos do homem, não promove uma maior liberdade ou uma maior realização humana, mas, sim, pela quebra da solidariedade entre os Homens com relação ao bem público, a menor possibilidade de convivência social pacífica entre os Homens. Isso decorre da inserção da racionalidade da necessidade de preservação de antagonismos egoístas mútuos que fragmentam a sociedade em esferas privadas individuais, despreocupadas com a Política, mas, apenas, com a apropriação, estilhaçando o tecido social comum.

Não o livre mercado, onde os direitos-privilégios humanos conquistados por grupos particulares, por meio da apropriação de parcela da ordem jurídica, são livremente negociados sem qualquer impedimento ou barreira, é quem assegurará a honesta convivência humana útil ao bem comum, mas, sim, o livre Homem-cidadão.

Enquanto a literatura jurídica tradicional ignorar essas considerações, aos Direitos Humanos restará a única tarefa simbólica de legitimação da ordem sócio-política-econômica vigente pela pacificação das tensões sociais (NEVES, 1994), sem qualquer preocupação com a efetivação de lógica diversa que não seja a do antagonismo e da separação coletivos.

5 Conclusão

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O presente artigo pretendeu discorrer sobre a contraposição entre duas modalidades de compreensão dos Direitos Humanos, quais sejam, uma afinada aos ensinamentos tradicionais de uma literatura jurídica acrítica, cujo pensamento é utilizado para embasar a educação formativa em Direitos Humanos nos ensinos tradicionais do Direito, e outra de viés crítico, voltado à contestação e à fragilização de certezas, conforme os mandamentos de uma investigação tipicamente de zetética jurídica.

Para tanto, partiu-se da análise de uma frase proferida por um morador de rua, aparentemente contraditória, na medida em que, ao proclamar estar fundamentado em Direitos Humanos, expressamente negava alguns dos Direitos comumente percebidos como Direitos Humanos Fundamentais, em caráter universal.

Para compreender a complexidade significativa das palavras de seu autor, foi importante, em primeiro lugar, evidenciar, com base nos ensinamentos de Teoria Tradicional sobre Direitos Humanos, a tensão que decorria da aparente contradição, de modo a revelar as aporias e as limitações da educação jurídica restrita a essa visão romântica dos Direitos Humanos. Constata-se, assim, a insuficiência dessa modalidade de compreensão para fornecer arcabouço conceitual e teórico apto a compreender manifestações individuais que recusem os Direitos Humanos.

Em seguida, a partir de uma literatura não tradicional, de viés crítico, buscou-se demonstrar a não subsistência de uma contradição no discurso do morador de rua, que revela, muito pelo contrário, a impossibilidade de se admitir a suficiência desse um conhecimento tradicional sobre os Direitos Humanos. Percebe-se que, na verdade, muito menos do que Direitos Humanos, o comumente percebido como tal é série de privilégios não universalizáveis, despreocupados com sua própria eficácia, não necessariamente buscados por todo e qualquer ser humano: a distinção do pensamento crítico separa o que a Dogmática Jurídica tradicional sobre Direitos Humanos nivela, ignora ou menospreza.

Questionam-se, assim, os fundamentos vazios que sustentam o discurso apaixonado e idealista dos Direitos Humanos, revelando seu papel tipicamente apaziguador e pacificador de movimentos que, efetivamente, busquem solucionar as razões estruturais das injustiças da sociedade.

Por fim, a terceira parte pretendeu fornecer delineamentos iniciais sobre o que restaria, efetivamente, dos Direitos Humanos. Nesse sentido, desenvolveu considerações em torno da idéia de que haveria, ainda, alguma importância na idéia dos Direitos Humanos, mas que eles seriam, na verdade, evidenciados pelos direitos individuais e coletivos de se contrapor a um regime político opressor.

Tratam-se dos direitos cívicos, de atuação ativa, política, reivindicativa, preocupada com o bem e com a salvação públicos e com o outro, por estarem afinados à lógica de uma vida do indivíduo não isolado da comunidade em que se insere, sempre apto a exercer uma reflexão de autocompreensão éticopolítica acerca de si, dos outros, de sua comunidade, bem como de suas construções histórico-culturais (Direito, instituições e cosmovisões).

“[E]stamos de volta aos romanos [...] do tempo de Cícero” (MATOS, 2006, p. 29), em que, contra a despolitização do agir dos cidadãos, reduzidos a homens privados,

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preocupados com a dimensão meramente individual, produtivista e especialista, mostra-se necessária a reinstauração da sociabilidade destinada a promover a salvação do bem público comum em contraposição à perpetuação da lógica apropriativa do mundo, inclusive de parcelas do Direito. A sociabilidade ao invés do egoísmo auto-centrado do homem isolado da comunidade. A preservação da comunidade geral dos homens, em detrimento de esferas privadas particularizadas. Ser, e não ter. A Política, enfim, substituindo a Economia.

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VILLEY, Michel. Polémique sur les “Droits de l’Homme”, Les Études Philosophiques, Paris, p. 191-9, avril/juin 1986.

[1] “Comment des hommes déporvus peuvent-ils donc s’abstenir de profiter des droits qui sont à leur portée, ou les refuser, même quand on les leur offre?” (D'HONT, 1986, p. 220).

[2] “le refus de ce que l’on appelle maintenant les droits de l’homme a été tout aussi général, durable et opiniâtre que leur revedication. En tous les temps, sur tous les continents, des centraines de millions d’hommes ont rejeté les «droits de l’homme», ou certains de ces drois […bien que par] des formes douces, vagues, involontaires, à demi conscientes.” (D'HONT, 1986, p. 217-8).

[3] “Le triomphe des droits de l’homme est la marque de l’atrophie en nous du sens de la justice. La justice tient une balance; elle ne favorise personne, pas même le pauvre […]. Elle se garde de baptiser droits nos aspirations personelles, quelque fondées soient-elles. Il n’est plus de justice là ou la «colêre» des viticulteurs, sidérurgistes ou de quiconque est ipso facto sacréé «droit» – et leurs besoins qualifiés automatiquement de «legitimes revendications».” (VILLEY, 1986, p. 198-9, grifos do autor)

[4] Ainda que inconsciente e involuntariamente, tratar do processo histórico de formação e de afirmação dos Direitos Humanos (COMPARATO, 2001) com a pretensão de tentar constituir uma explicação lógica, coerente, sistemática e conceitualmente fechada dos Direitos Humanos (BOBBIO, 2004; BONAVIDES, 2006; MORAES, 2003), encontrando resquícios de Direitos Humanos na Antigüidade (entre outros, MORAES, 2003, p. 24-5), ao menos da maneira como é difundido, comumente, no ensino jurídico tradicional voltado à educação formativa em Direitos Humanos, é, na verdade, travestir de encadeamento histórico necessário inevitável um efetivo movimento de consolidação da ascensão da lógica do modo ter de existência. Ainda que involuntariamente, constitui um expediente ideológico que pretende naturalizar o advento dos Direitos Humanos enquanto direitos do homem (KASHIURA JÚNIOR, 2008), desvinculando-o do processo egoistico de busca constante de inserção, em aparatos jurídicos, de privilégios individuais. Pela naturalização, tornando os Direitos Humanos como evento histórico necessário em determinado sentido específico, há a neutralização ideológica que os imuniza à crítica por um processo de “blindagem histórica”.

[5] “promesses qui ne sont pas tenues, mais partout irréalisées, [qui] laisse[nt] les gens déçus et amers” (VILLEY, 1986, p. 196-7)

[6] “Il n’y a pas de fumée sans feu. L’ universelle exaltation des droits de l’homme a ses raisons d’être. Ils doivent receler quelque chose de bon. Comme tous les cultes, celui des droits de l’homme est pavé de bonnes intentions. [Il faut] distinguer le bon grain de l’ivraie” (VILLEY, 1986, p. 192).