ensino de filosofia e...

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ENSINO DE FILOSOFIA E

INTERDISCIPLINARIDADE

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Comitê Científico da Série Filosofia e Interdisciplinaridade:

1. Agnaldo Cuoco Portugal, UNB, Brasil 2. Alexandre Franco Sá, Universidade de Coimbra, Portugal 3. Christian Iber, Alemanha 4. Claudio Goncalves de Almeida, PUCRS, Brasil 5. Danilo Marcondes Souza Filho, PUCRJ, Brasil

6. Danilo Vaz C. R. M. Costa (UNICAP) 7. Delamar José Volpato Dutra, UFSC, Brasil 8. Draiton Gonzaga de Souza, PUCRS, Brasil 9. Eduardo Luft, PUCRS, Brasil 10. Ernildo Jacob Stein, PUCRS, Brasil 11. Felipe de Matos Muller, PUCRS, Brasil 12. Jean-Fraçois Kervégan, Université Paris I, França 13. João F. Hobuss, UFPEL, Brasil 14. José Pinheiro Pertille, UFRGS, Brasil 15. Karl Heinz Efken, UNICAP/PE, Brasil 16. Konrad Utz, UFC, Brasil 17. Lauro Valentim Stoll Nardi, UFRGS, Brasil 18. Michael Quante, Westfälische Wilhelms-Universität, Alemanha 19. Migule Giusti, PUC Lima, Peru 20. Norman Roland Madarasz, PUCRS, Brasil 21. Nythamar H. F. de Oliveira Jr., PUCRS, Brasil 22. Reynner Franco, Universidade de Salamanca, Espanha 23. Ricardo Timm De Souza, PUCRS, Brasil 24. Robert Brandom, University of Pittsburgh, EUA 25. Roberto Hofmeister Pich, PUCRS, Brasil 26. Tarcílio Ciotta, UNIOESTE, Brasil 27. Thadeu Weber, PUCRS, Brasil

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Série Filosofia e Interdisciplinaridade - 3

Leno Francisco Danner (Org.)

ENSINO DE FILOSOFIA E

INTERDISCIPLINARIDADE

Porto Alegre

2013

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Direção editorial: Agemir Bavaresco

Diagramação e capa: Lucas Fontella Margoni

www.editorafi.com

Série Filosofia e Interdisciplinaridade - 3

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

DANNER, Leno Francisco

Ensino de filosofia e interdisciplinaridade [recurso eletrônico] /

Leno Francisco Danner (Org.) -- Porto Alegre, RS: Editora Fi,

2013.

433 p.

ISBN - 978-85-66923-13-1

Disponível em: http://www.editorafi.com/2013/12/lenodanner.html

1. Interdisciplinaridade. 2. Filosofia. 3. Educação. 4. Ciência. 5.

Direito. 6. Sociologia. I. Título. II. Série.

CDD-107

Índices para catálogo sistemático:

1. Educação, pesquisae tópicosrelacionados

107

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

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Considerações

Introdutórias à Coletânea

“Ensino de Filosofia e Interdisciplinaridade”

propõe-se pensar um ensino de humanidades em

perspectiva interdisciplinar e contextualizada, de modo a

fazer jus a dois pontos que considero fundamentais para o

sucesso desse mesmo ensino humanístico em particular e

da educação de um modo geral, a saber: (a) o diálogo

permanente com as disciplinas científicas e com os

problemas do cotidiano de vida, que permite enfatizar-se a

atualidade e a importância das humanidades no que tange à

formação crítica e criativa dos educandos (reforçando,

inclusive, o aspecto emancipatório da educação e da escola,

que é um de seus cernes); e (b), a partir da interação com as

disciplinas científicas e com o cotidiano de vida, a

possibilidade tanto de pensar-se sistematicamente sobre o

conhecimento quanto de aplicar-se prática e

localizadamente esse mesmo conhecimento

sistematicamente elaborado. Esses dois pontos, com efeito,

tornam o ensino de humanidades um rico campo de

valorização das disciplinas científicas (e de seus resultados)

em sua relação com a dinâmica – em termos de problemas

e de potencialidades – própria de nosso cotidiano, em seus

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múltiplos e interconectados vieses (social, político, cultural,

econômico etc.). Eles permitem relembrar e reforçar essa

encarnação das pesquisas científicas, ao mesmo tempo em

que valorizam a importância da abordagem científica do – e

sobre o – cotidiano, que, tanto quanto as abordagens

religiosas, filosóficas ou ligadas ao senso comum (que não

pode ser entendido, aqui, em um aspecto negativo,

desvalorizado frente à ciência), tem importância capital para

a conceituação e a transformação do mesmo.

Uma das mais ricas intuições da cultura racionalista

ocidental, conforme penso, reside nessa possibilidade de

estabelecer-se um status privilegiado às investigações

científicas sem esquecer-se, por outro lado, de emparelhá-

las e de submetê-las ao crivo da moralidade ligada ao

cotidiano, do qual essa mesma ciência faz parte. Nesse

quesito, o grande ponto de prova de qualquer concepção

científica ou mesmo filosófica sempre foi a qualidade da

relação entre teoria e prática que efetivamente dinamizou a

elaboração normativo-metodológica das teorias científicas e

filosóficas: aqui reside a vitalidade ou o fracasso das teorias,

sua atualidade ou seu anacronismo. Ora, isso não significa

outra coisa que, das teorias científicas e filosóficas, exige-se

um diálogo não apenas internamente aos campos de

saberes e destes entre si, mas também com o campo do

cotidiano que, em não poucas teorias filosóficas e

científicas, é percebido como estando de fora da abordagem

científico-filosófica. Essa lição foi aprendida a duras penas,

no Ocidente: o distanciamento da ciência frente à vida

cotidiana e sua submissão a interesses estatal-

administrativos e empresariais (pense-se na militarização da

ciência e em sua assimilação à dinâmica de acumulação

privada na economia capitalista, sob a forma de patentes,

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ou a utilização de sementes transgênicas que acabam

levando ao monopólio das mesmas por empresas privadas

etc.) demonstram o quanto o afastamento, por parte dos

filósofos e cientistas, do cotidiano como dando o

direcionamento normativo das teorias foi fatal para a

própria autonomia desses mesmos cientistas e filósofos:

sob a justificativa de afastarem-se do senso comum, para

ganharem objetividade analítica e imparcialidade política,

eles tornaram-se reféns da economia e da política

burocrática e militarista; sob a justificativa de auto

justificação interna à própria ciência, eles perderam o apoio

democrático que poderia viabilizar grande parte dessa auto

justificação, exatamente porque os indivíduos leigos

simplesmente não conhecem especificidades e a dinâmica

interna das ciências: no máximo, ficam com algumas

fórmulas abstratas e conceitos gerais, que não permitem-

lhes alcançar o âmago da dinâmica científica e filosófica. A

ciência e a filosofia, em muitas concepções, colocaram o

diálogo científico-filosófico como algo que é próprio

apenas dos especialistas e, por causa disso, simplesmente

estabeleceram o cotidiano de vida ligado ao senso comum

como estranho, como estando de fora no que tange às discussões

científico-filosóficas, de modo que dele poder-se-ia

prescindir em absoluto tanto na pesquisa científica quanto

na pesquisa filosófica.

Mas aqui começa o pathos (no sentido de doença

intelectual, como o estou usando) da ciência e da filosofia

acadêmicas: um cotidiano grandemente alheio e

desdenhoso dos resultados da ciência e das elucubrações

filosóficas reforça a exclusão das ciências e da filosofia da

vida corrente de nossa sociedade, enfraquece a autonomia

da ciência frente à economia capitalista e ao Estado

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burocrático e militarizado, torna ineficaz a força

emancipatória da ciência e da filosofia e, em muitas

situações, simplesmente consolida o pré-conceito de que a

ciência e a filosofia falam de conteúdos ininteligíveis e sem

sentido para a vida cotidiana. Quer dizer, o analfabetismo

científico e o preconceito contra as ciências e a filosofia são o

resultado, conforme penso, do enclausuramento das

disciplinas científicas e da filosofia em si mesmas, na

academia, em um processo de auto justificação interno a

elas mesmas, que confere o caráter de exterioridade ao

senso comum, à vida cotidiana, afastando-o do diálogo e da

cooperação com as ciências e a filosofia. Ora, é esse

processo que precisa ser revertido se quisermos que a

ciência e a filosofia, ao mesmo tempo em que têm suas

especificidades respeitadas, influam efetivamente nos

processos formativos e de evolução sociocultural e política,

ou seja, é importante que as ciências e a filosofia

promovam um processo de alfabetização científico-

filosófica da nossa vida cotidiana. Por esse processo, eu

entenderia, ainda que em linhas gerais, o fomento do

pensamento sistemático, da atitude de buscar-se evidências

empíricas para nossos juízos existenciais-morais, da leitura

politizada da realidade cotidiana, da desconstrução dos

fundamentalismos e a ênfase no diálogo e na cooperação

permanentes no que diz respeito à orientação da evolução

sociocultural e política, correlatamente à valorização do

pensamento cidadão, orientado pelo universalismo moral.

Nessa nova atitude das disciplinas científicas e da filosofia,

poder-se-ia superar os sectarismos, as informações

distorcidas sobre nossa vida cotidiana, a alienação política e

o analfabetismo científico que perpassam as nossas

sociedades – e, em particular, aquelas sociedades nas quais

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a educação pública apresenta graves déficits, como é o caso

da sociedade brasileira.

Ora, esse trabalho poderia ser pensado e efetivado a

partir da educação realizada em nossas escolas públicas

(mas certamente não somente nelas). A escola pública e a

educação universal substituíram gradativamente, desde o

século XIX, formas de individuação e de socialização

calcadas na afirmação de uma doutrina religiosa ou cultural

específicas, colocando em segundo plano, por conseguinte,

as igrejas e aquelas instituições que tinham por base o

nacionalismo como a ideologia básica de integração e de

formação de um povo. A escola universal, nesse sentido, é

dinamizada não apenas pela necessidade de formar e de

integrar indivíduos em uma coletividade, mas sim de

formá-los e de integrá-los com base em valores universais, para

além da religião e do nacionalismo (o que não significa a

negação destes), em uma atitude clara de universalismo

moral que a cultura humanista pode subsidiar

exemplarmente (não obstante suas contradições,

evidentemente). Na segunda metade do século XX, em

praticamente todos os países democráticos ou em vias de

democratização, a escola pública de educação

universalizada, com currículo nacional comum, tornou-se

instituição hegemônica no que diz respeito à coordenação

organizada em nível nacional para a orientação dos

processos de individuação e de socialização, embasados

tanto pela necessidade de formação técnica quanto pela

exigência da formação humanística. É aqui que a escola de

educação básica e a educação universalizada que ela

promove colocam-se como a instituição e a prática por

excelência para pensar-se e instituir-se um projeto

democrático emancipatório que permita a consolidação da

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democracia política por meio do reforço da participação e

da crítica cidadãs, a superação dos preconceitos, da

xenofobia, do chauvinismo, do racismo e dos sectarismos

de diferentes espécies por meio da desconstrução cultural-

religiosa e da promoção de processos de inclusão

sociocultural, bem como, para o que aqui me interessa

enquanto mote desta coletânea, a efetivação de um

processo de alfabetização científico-filosófica dos

educandos por meio do diálogo interdisciplinar entre as

disciplinas científicas, as humanidades e o cotidiano de

vida.

É interessante que (e isso não foi planejado!) o

consenso geral dos colaboradores e das colaboradoras desta

coletânea está em que é esse duplo movimento que deve

orientar normativa e metodologicamente o trabalho

educativo, lugar por excelência da tematização das relações

entre as disciplinas científicas, a filosofia e o cotidiano: por

um lado, o diálogo e a cooperação sistemáticos entre as

disciplinas científicas, as humanidades e o cotidiano de

vida, possibilitando tal processo de alfabetização científica,

que enfatiza a atualidade e a encarnação daquelas disciplinas

científicas e das humanidades neste mesmo cotidiano de

vida; por outro lado, a crença de que o diálogo e a

cooperação científico-filosóficos com o cotidiano exige que

se trabalhe na dinâmica da sistematização e da

especialização, da relação entre universal e particular, entre

normativo e empírico, na medida em que é nesta dinâmica

relacional que a crítica, a interpretação e a proposição de

ações realizam-se – uma das grandes lições, como já

mencionei acima, da filosofia e da ciência ocidentais.

O que resulta dessa coletânea é exatamente (a) o

aspecto moral-político das disciplinas científicas em sua

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relação com o cotidiano, aspecto esse que a reflexão

filosófica coloca como o cerne do aprendizado, da

interdisciplinaridade e da contextualização; e (b) a

necessidade de uma inter-relação fecunda entre teoria e

prática, bem como entre uma visão sistemática do

conhecimento e a aplicação particularizada do mesmo.

Como acredito, é tal dinâmica que pode representar um

poderoso diferencial para o reforço da capacidade de a

escola (e mesmo da universidade, das ciências, da filosofia)

de influir efetivamente na evolução social, em todos os

aspectos fundamentais para que a democracia e o

universalismo moral possam representar um verdadeiro

ethos, individual e socialmente falando. A escola pública

perdeu, em poderosa medida, seu papel de protagonismo

no que tange aos processos de individuação e de

socialização embasados no humanismo – tornou-se, muito

mais (principalmente na iniciativa privada), uma empresa

orientada para a preparação para a carreira e (em relação à

escola pública) uma instituição defasada em termos de

infraestrutura; e ela poderia retomá-lo e reforçá-lo seja a

partir dessa interação entre as disciplinas científicas, as

humanidades e o cotidiano de vida, seja a partir da ênfase

no trabalho de alfabetização científica dos educandos – daí

a importância da interdisciplinaridade, da contextualização

e da sistematização do conhecimento.

Leno Francisco Danner – Porto Velho (RO), 11 de

Junho de 2013

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Sumário

UMA PERSPECTIVA CONTEXTUALIZADA E

INTERDISCIPLINAR NO ENSINO DE

FILOSOFIA. ............................................................... 17

MARCOS ANTÔNIO LORIERI

A FILOSOFIA E A CIÊNCIA EM UMA

ABORDAGEM INTERDISCIPLINAR .................... 56

MARLY CARVALHO SOARES

A PEDAGOGIA DA SOLIDÃO: CONSIDERAÇÕES

A PARTIR DA FILOSOFIA DE NIETZSCHE ........ 81

JELSON R. DE OLIVEIRA

MICHEL FOUCAULT: SUBJETIVIDADE E

EDUCAÇÃO ............................................................. 105

FERNANDO DANNER

ENSINO DE FILOSOFIA E CULTURA

AMAZÔNICA: UMA APOLOGIA AOS SABERES

PERIFÉRICOS ......................................................... 124

ESTEVÃO RAFAEL FERNANDES

FÍSICA E RESPONSABILIDADE CIENTÍFICA: A

IMPORTÂNCIA DO DIÁLOGO ENTRE CIÊNCIA

E SOCIEDADE ........................................................ 149

ALEXANDRE LUIS JUNGES

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ALGUMAS POSSIBILIDADES DE INTERAÇÃO

ENTRE FILOSOFIA E BIOLOGIA ....................... 193

EDIOVANI A. GABOARDI

ENSINO DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA: UMA

PERSPECTIVA INTERDISCIPLINAR ................. 241

LENO FRANCISCO DANNER

UMA FILOSOFIA ÚTIL: ÉTICA PRÁTICA E

BIOÉTICA NO ENSINO DE FILOSOFIA ........... 274

LINCOLN FRIAS

DIREITOS HUMANOS E EDUCAÇÃO

FILOSÓFICA ........................................................... 312

PAULO CÉSAR CARBONARI

FILOSOFIA E ANÁLISE DO DISCURSO: UMA

QUESTÃO DE TRANSDISCIPLINARIDADE ..... 340

HELENA ZORAIDE PELACANI ALMADA

LITERATURA COMO PLANO DE IMANÊNCIA

PARA O ENSINO DE FILOSOFIA ........................ 356

VAGNER DA SILVA

O ENSINO DA FILOSOFIA NO CONTEXTO DE

UMA EDUCAÇÃO AMAZÔNICA .......................... 382

CLARIDES HENRICH DE BARBA

FILOSOFIA, CULTURA E DESPERDÍCIO:

ALGUMAS EXPERIÊNCIAS

INTERDISCIPLINARES DE ENSINO ................ 416

REJANE SCHAEFER KALSING

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Leno Francisco Danner (Org.)

Uma perspectiva

contextualizada e

interdisciplinar no

ensino de Filosofia.

Marcos Antônio Lorieri

Há diversos aspectos que podem ser tratados

relativos a metodologias para o ensino de Filosofia. Dois

deles, que se interligam, serão tratados aqui. O primeiro diz

respeito à necessidade da contextualização de qualquer

tema ou tópico programático que se queira trabalhar em

aulas ou em unidades de programação de ensino de

Filosofia. O segundo diz respeito à necessidade da

interdisciplinaridade no trato com os temas ou tópicos

dessa programação.

1. Perspectiva contextualizada no ensino de Filosofia.

Contextos são conjuntos de elementos relacionados

entre si constituindo uma significação. O todo, neste caso,

só tem esta significação devido aos elementos que o

compõem, às relações entre eles e às relações deles com o

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

próprio todo. Assim também, cada elemento apenas tem

significação naquele todo, com aquelas relações. Pense-se

no caso de uma pessoa que seja pai ou mãe. Apenas no

contexto da paternidade ou da maternidade alguém pode

dizer-se pai ou mãe ou filho. Por outro lado, apenas se

houver a junção dos elementos pais e filhos pode-se

entender a paternidade. Outro exemplo: aluno. A ideia de

aluno apenas pode ser compreendida no contexto da

relação professor-aluno. E este contexto apenas pode ter

significado se houver os elementos professor e aluno

relacionados entre si. No caso de aluno de alguma escola,

pode-se denominá-lo de “escolar”. Aquele jovem é um

escolar. Esta afirmação somente pode ser compreendida se

se tem em mente o contexto mais amplo de escola. E,

escola, por sua vez, apenas pode ser compreendida se há a

compreensão dos elementos que a compõem e das relações

desses elementos entre si. E mais: ela apenas pode ser

compreendida no contexto mais amplo de educação, o

qual, por sua vez, para ser compreendido, necessita da

compreensão dos vários elementos relacionados entre si

que compõem o universo educacional: escolas, por

exemplo, educação familiar, educação informal, educação

não formal, etc.

Outros exemplos de contextos: uma paisagem; uma

cidade; uma greve; uma escola; uma obra literária; uma obra

filosófica; textos grandes ou pequenos; contos; narrativas;

filmes; músicas; poesias; uma situação ocorrida; uma

situação noticiada; algo que tenha ocorrido na escola; uma

peça teatral; uma dramatização realizada em classe; uma

obra de arte, etc.

Em cada contexto, cada elemento tem significação

específica devida ao próprio contexto: nada tem significado

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Leno Francisco Danner (Org.)

isoladamente ou fora de algum contexto. Os contextos são

como que o "berço" das significações dos diversos

elementos: em contextos diferentes, os elementos ganham

significações diferentes. Um menino, numa sala de aula

numa escola, é um aluno; este mesmo menino, no contexto

de relações familiares, é um filho, ou um irmão, ou um

primo. Já no contexto de um time, ele é um jogador de

futebol, ou de voleibol, ou de outro tipo de jogo. Assim é

com as palavras: é preciso ter em mente os contextos nos

quais são empregadas, para se atinar com seus significados.

Há sempre duas exigências básicas: analisar e compreender

os contextos e atinar com os significados de cada elemento

dentro de cada contexto. Há uma terceira: compreender as

relações de contextos "menores" com contextos "maiores".

Nesse caso, os contextos menos amplos são elementos de

contextos mais gerais. Considere-se o exemplo acima de

escola e de educação. Ou: há sempre totalidades menores

que se inserem em totalidades maiores: na medida em que

compreendemos totalidades menores e as inserimos na

compreensão de totalidades maiores, fazemos o caminho

de compreensão da realidade por aproximações sucessivas.

Isso implica na compreensão por aproximações sucessivas,

tanto das totalidades "menores" quanto dos elementos de

cada uma das totalidades. O que parece não ser possível é a

compreensão de elementos isolados de qualquer totalidade

contextual e nem a compreensão, de uma só vez, de cada

contexto.

Estas considerações querem começar a indicar um

caminho, ou um método (um odós com vistas a uma

compreensão que está além (metá) da compreensão atual)

para o trato com temas ou conteúdos de ensino. No caso

deste texto, para o trato com conteúdos de ensino de

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

filosofia, para os quais há possibilidades diversas de

utilização de contextos para neles situar temas e problemas

com os quais se queira trabalhar nas aulas.

Julgo ser este um caminho promissor: tomar

contextos e, neles, auxiliar os alunos a identificar as

significações – tanto as significações dos diversos

elementos dentro do contexto tomado quanto a

significação do próprio contexto como uma totalidade. Isso

não se dá por um trabalho mecânico e fragmentário de

análises particularistas dos diversos elementos. Isso só é

possível num trabalho contínuo de idas e vindas do todo

para as partes e das partes para o todo, no qual,

dialeticamente, o todo ilumina a significação das partes, e as

partes e suas relações iluminam a significação do todo. Aos

poucos, progressivamente, a compreensão é obtida por

aproximações sucessivas. O que envolve, obviamente, a

compreensão de contextos cada vez mais amplos.

Daí a necessidade de saber escolher e de saber

planejar a utilização dos contextos para o trabalho

filosófico aqui proposto. Isto significa que não devem ser

tomados a esmo, e sim com intenções claras ligadas aos

objetivos presentes no projeto pedagógico da escola e aos

objetivos do plano de ensino elaborado no processo

conjunto de planejamento do ano e muito bem pensados

para aqueles alunos com os quais se está trabalhando. Quer

indicar, também, que são contextos nos quais os alunos

devem poder encontrar motivações para "boas questões"

que os envolvam no diálogo investigativo a respeito dos

temas. Contextos bem planejados são ocasiões de

sensibilização para as questões e para o trato filosófico com

elas e devem ser um caminho inicial para se chegar a certos

conceitos e entendimentos relativos aos temas e para

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Leno Francisco Danner (Org.)

propiciar, com o tempo, condições de leitura de textos dos

filósofos sobre os conteúdos trabalhados nas aulas.

Uma das queixas de estudantes é que certos

conteúdos não fazem o menor sentido para eles. Não têm

significação. Os contextos, ou a contextualização, ajudam a

atinar com o sentido de um dado: seja ele um objeto ou

uma parte de um objeto, seja uma ideia, ou uma ação, ou

um fato, etc. Os alunos poderão se sentir convidados a

examinar determinados conceitos, ou doutrinas, ou autores,

se forem apresentados em contextos nos quais eles surgem

ou ocorrem. Ou, então, se forem apresentados relacionados

a certas situações, como a ocorrências atuais ou já passadas,

a algum filme, a algum relato, a alguma narrativa, ou a

algum contexto mencionado em aulas das demais

disciplinas. Isso já remete a um procedimento que facilita a

interdisciplinaridade da qual se falará mais adiante.

O trabalho com temas e conceitos descolados de

contextos que possam torná-los minimamente

significativos não é proveitoso. Muitas vezes é necessário

buscar contextos muito próximos das vivências dos alunos

ou à sua experiência imediata. Não para aí permanecer, mas

para ir mais longe, mais "alto", de tal maneira que esta

experiência possa ser contemplada sabiamente – e

sabiamente interpretada. É preciso sair da pura

imediatidade e alçar voo ao conceito que possibilita, nas

suas mais diversas articulações pensadas, interpretar a vida

humana e lhe oferecer significados.

É tarefa primordial da filosofia conduzir o

homem para além da pura imediatidade e instaurar

a dimensão crítica. Superada a postura ingênua

diante da realidade é então possível assumir

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

responsavelmente a verdade como um todo. Pois

somente a perspectiva que abre o comportamento

filosófico é capaz de antecipar os limites e as

possibilidades das diversas áreas em que se move a

interrogação pela verdade. É por isso que o destino

do homem e da história depende da lucidez e

distância crítica que são o apanágio da filosofia1.

Infelizmente e não por acaso o tipo de vida no

mundo de hoje é tomado por grande movimentação

externa que acaba por inibir atividades que denominamos

de internas ao espírito, como as que dizem respeito ao

questionar, ao refletir criticamente, ao ponderar, ao buscar

razões, ao pensar mais detidamente no sentido do que

fazemos. Há uma quase exigência voltada para o imediato.

Tudo ocorre de maneira muito rápida, não permitindo

prestar atenção mais demorada e de maneira reflexiva e

crítica sobre aspectos fundamentais de nossas vidas. Aulas

de filosofia podem ser convites para esta maneira de pensar

que vai além da pura imediatidade, buscando situar os

aspectos parciais em contextos cada vez mais abrangentes.

2. Perspectivas interdisciplinares para o ensino de

Filosofia.

O ensino de Filosofia, assim como todo ensino,

pode e talvez deva ser interdisciplinar. Diversos autores

1 Estas palavras são de Ernildo Stein e constam em “Nota do tradutor”

no livro O que é Metafísica de Martin Heidegger, São Paulo, Livraria

Duas Cidades, 1969, p. 7.

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Leno Francisco Danner (Org.)

afirmam isso e apresentam razões, inclusive alguns dos que

escrevem neste livro. Algumas dessas razões e

entendimentos do que seja interdisciplinaridade são a seguir

apresentados resumidamente antes de algumas indicações

que se farão tendo em vista apontar perspectivas

interdisciplinares para o ensino de Filosofia.

2.1. Um entendimento de interdisciplinaridade

A ideia de interdisciplinaridade tem sua origem na

tomada de consciência de prejuízos à compreensão da

realidade provocados por certa maneira de pensar que se

desenvolve especialmente durante o século XIX e se

consolida no século XX, segundo diversos estudiosos. Esta

maneira de pensar denominada de fragmentária,

dissociativa e reducionista surge e se desenvolve com a

fragmentação das atividades produtivas humanas numa

busca de especializações destinadas a atender necessidades

de um modo de vida ou de um novo modo de produção

desenvolvido no mundo moderno. No bojo deste processo

ao mesmo tempo histórico, social, econômico, político, a

maneira de pensar não poderia deixar de ser afetada. Num

mundo de divisões, de fragmentação, de simplificações, de

reducionismos, o pensamento simplificador, fragmentador,

reducionista, afloraria por certo. Não apenas como

resultado, mas também como fator importante na

consolidação deste mundo. O pensamento nunca é só

resultado; ele é, também, resultador.

Japiassu (2006) aponta o século XIX como o marco

do nascimento da especialização no conhecimento e o

século XX como o tempo da hiperespecialização:

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

A especialização stricto sensu nasce apenas

no século XIX da aceleração galopante dos

conhecimentos e da sofisticação crescente das

novas tecnologias. Na segunda metade do século

XX, surge e rapidamente se impõe a

hiperespecialização, provocando a multiplicação

indefinida de disciplinas e subdisciplinas cada vez

mais focadas em reduzidos objetos de estudo. (...)

As disciplinas se tornam fechadas e estanques,

fontes de ciúme, glória, arrogância, poder e atitudes

dogmáticas (p. 21).

Para diversos autores, a origem desta maneira de

pensar disciplinar data de mais longe. Ela estaria no

segundo dos quatro preceitos do Discurso do Método de

Descartes (1987). Mais que do próprio preceito, julgamos, a

fragmentação e a simplificação vêm de sua absolutização

que parte de uma adesão acrítica e parcial às ideias nele

expressas. São estes os quatro preceitos enunciados por

Descartes:

O primeiro era o de jamais acolher alguma

coisa como verdadeira que eu não conhecesse

evidentemente como tal; isto é, de evitar

cuidadosamente a precipitação e a prevenção e de

nada incluir em meus juízos que não se

apresentasse tão clara e tão distintamente a meu

espírito, que eu não tivesse nenhuma ocasião de pô-

lo em dúvida.

O segundo, o de dividir cada uma das

dificuldades que eu examinasse em tantas parcelas

quantas possíveis e quantas necessárias fossem para

melhor resolvê-las.

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Leno Francisco Danner (Org.)

O terceiro, o de conduzir por ordem meus

pensamentos, começando pelos objetos mais

simples e mais fáceis de conhecer, para subir,

pouco a pouco, como por degraus, até o

conhecimento dos mais compostos, e supondo

mesmo uma ordem entre os que não se precedem

naturalmente uns aos outros.

Em último, o de fazer em toda parte

enumerações tão completas e revisões tão gerais,

que eu tivesse a certeza de nada omitir.

(DESCARTES, 1987, p. 37-38).

O segundo preceito aponta para os procedimentos

da análise, ou seja, para os procedimentos da divisão de

estudos ou pesquisas em partes reduzidas ao máximo

possível e para o aprofundamento desses estudos de tal

modo a dar conta do maior entendimento possível de cada

parte. Isso, se acoplado aos terceiro e quarto preceitos,

poderia ter levado à busca das sínteses que se constituiriam

em visões de conjunto. No entanto, a tradição ocidental

consagrou o segundo preceito como sendo a regra de ouro

das pesquisas. A análise ganhou proeminência em

detrimento da síntese, como afirma Morin: “Nossa

civilização e, por conseguinte, nosso ensino privilegiaram a

separação em detrimento da ligação, e a análise em

detrimento da síntese. Ligação e síntese continuam

subdesenvolvidas” (2002, p. 24).

Tributários dessa tradição disciplinar,

desenvolvemos uma atitude fragmentária, simplificadora e

reducionista no tocante ao entendimento da realidade. Ela é

contrária ao entendimento de que nada se dá isoladamente:

a compreensão correta e cada vez mais completa só é

possível se são apreendidas as relações e inter-relações nas

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

quais tudo se dá. É fundamental a apreensão clara dos

objetos de estudo nas suas especificidades, mas o é também

em suas relações constitutivas e nos contextos nos quais se

dão ou ocorrem. Contextos são conjuntos de elementos

relacionados entre si constituindo uma significação, como

já afirmado na primeira parte deste texto.

Não se negam os benefícios que advieram da

especialização dos conhecimentos. Recusa-se o fechamento

em que as especialidades, muitas vezes, se enclausuraram,

perdendo a necessária visão de conjunto.

[...] a hiperespecialização contribui

fortemente para a perda da visão ou concepção de

conjunto, pois os espíritos fechados em suas

disciplinas não podem captar os vínculos de

solidariedade que unem os conhecimentos. Um

pensamento cego ao global não pode captar aquilo

que une elementos separados. O fechamento

disciplinar, associado à inserção da pesquisa

científica nos limites tecnoburocráticos da

sociedade, produz a irresponsabilidade em relação a

tudo o que é exterior ao domínio especializado

(MORIN, 2005, p. 72-73).

Paulo Freire partilha das críticas a esta visão

reducionista da realidade ao afirmar: “Ao não perceber a

realidade como totalidade, na qual se encontram as partes

em interação, se perde o homem na visão "focalista" da

mesma. A percepção parcializada da realidade rouba ao

homem a possibilidade de uma ação autêntica sobre ela.”

(FREIRE, 1975, p. 34).

Partindo dessas ideias, surgem propostas que visam

à superação da hiperespecialização. Um marco inicial desse

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Leno Francisco Danner (Org.)

movimento no Brasil são as ideias de Hilton Japiassu em

Interdisciplinaridade e a patologia do saber (1976). Ideias que ele

retoma e amplia trinta anos depois em O sonho transdisciplinar

e as razões da Filosofia (2006), mostrando com mais peso as

críticas à fragmentação dos saberes. “De fato, tem se

tornado preocupante o estado lamentável do esfacelamento do

saber” (2006, p. 28). A este esfacelamento do saber Morin

denomina de hiperespecialização, como citado acima, e é

reforçado na seguinte passagem:

De fato, a hiperspecialização impede tanto

a percepção do global (que ela fragmenta em

parcelas) quanto do essencial (que ela dissolve). [...]

Entretanto, os problemas essenciais nunca são

parcelados e os problemas globais são cada vez

mais essenciais. Enquanto a cultura geral

comportava a incitação à busca da contextualização

de qualquer informação ou ideia, a cultura científica

e técnica disciplinar parcela, desune e

compartimenta os saberes, tornando cada vez mais

difícil sua contextualização (MORIN, 2000, p. 41).

Daí os problemas denunciados. Dentre eles a

dificuldade para superar a mentalidade voltada à

superespecialização. Isto se reflete na departamentalização

ou no departamentalismo das Universidades, nos currículos

disciplinares nas escolas primárias e secundárias, na

organização quase férrea dos Programas de Pesquisa da Pós

Graduação que se mostram na bitola das “linhas” de

pesquisa das quais nunca se pode escapar para interligá-los.

Uma dificuldade que precisa e pode ser superada no âmbito

dos sistemas educacionais.

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

Porque uma das coisas importantes que

devemos esperar de nosso sistema educativo é uma

formação que não seja mais um enclausuramento

disciplinar e um adestramento no pensamento

analítico, mas uma capacitação do ser humano para

a compreensão. Este fechamento em categorias quase-

estanques (estabelecidas há mais de século e meio)

impregna profundamente os organismos de

pesquisa e o ensino superior, condicionando e

mediocrizando nossas mais brilhantes inteligências.

(JAPIASSU, 2006, p. 38).

No Brasil, o movimento favorável à

interdisciplinaridade tem seus inícios na década de 1960 e,

em especial, na década de 1970, de acordo com Fazenda

(2007). Além da proposição de uma atitude interdisciplinar

nos processos de ensino, houve diversas discussões

relacionas à explicitação do significado de

interdisciplinaridade. “A necessidade de conceituar, de

explicitar fazia-se presente por vários motivos”

(FAZENDA, 2007, p. 18), pois, como acrescenta, houve

grande “repercussão dessa palavra que, ao surgir, anunciava

a necessidade da construção de um novo paradigma de

ciência, de conhecimento, e a elaboração de um novo

projeto de educação, de escola e de vida” (idem, 2007, p.

18). Esta autora publica em 1979 o livro Integração e

interdisciplinaridade no ensino brasileiro: efetividade ou ideologia, no

qual diz que a interdisciplinaridade é uma atitude ou busca

que permite restituir a unidade perdida do saber. Ela aponta

também que tem havido uma constante busca de

fundamentação teórica consistente para as propostas

interdisciplinares que se estende até nossos dias.

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Leno Francisco Danner (Org.)

Edgar Morin, em algumas obras, faz este esforço tanto de

elucidação deste conceito quanto de apresentação de argumentos para a

proposição da interdisciplinaridade juntamente com o que ele

denomina de transdisciplinaridade. Diz ele que busca a definição de

termos que “são polissêmicos e fluídos” (in: ALMEIDA E

CARVALHO, 2002, p. 48), tais como interdisciplinaridade,

multidisciplinaridade, polidisciplinaridade, pluridisciplinaridade e

transdisciplinaridade, além de apresentar uma concepção de disciplina.

Segundo ele, a disciplina é “uma categoria que

organiza o conhecimento científico e que institui nesse

conhecimento a divisão e a especialização do trabalho

respondendo à diversidade de domínios que as ciências

recobrem” (MORIN, in: ALMEIDA E CARVALHO,

2002, p. 37). Diz o mesmo em A cabeça bem feita (2002, p.

105). Por esta razão, as disciplinas tendem a fechar-se nos

seus domínios. Mas, alerta, elas pertencem a um mesmo

universo que é o do conhecimento científico e há razões

fortes que indicam a necessidade de elas ligarem-se umas às

outras. Têm um berço comum nas universidades e são

oriundas de contextos sociais e históricos também comuns.

Há entre elas laços que as unem como “uma unidade de

método, um certo número de postulados implícitos em

todas as disciplinas, como o postulado da objetividade, a

eliminação do problema do sujeito, a utilização das

matemáticas como uma linguagem e um modo de

explicação comum, a procura da formalização, etc.”

(MORIN, in: ALMEIDA E CARVALHO, 2002, p. 50)

Ora, em sendo assim, há de se concluir pela necessidade, ao

menos, de atenção a estas ligações, pois, afirma marcando

em itálico: “a ciência nunca teria sido ciência se não tivesse sido

transdisciplinar” (idem, p. 50).

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

Interdisciplinaridade, para ele, pode ter dois

sentidos. De um lado, encontro de disciplinas que marcam

seus territórios, ainda que dispostas a conversar. De outro,

“pode também querer dizer troca e cooperação e, desse

modo, transformar-se em algo orgânico” (idem, p. 48). Ela

é próxima da ideia de transdisciplinaridade que ele diz se

caracterizar “geralmente por esquemas cognitivos que

atravessam as disciplinas” (idem, p. 49), e que não é o caso

de explanar aqui.

No caso da interdisciplinaridade, as ideias fortes

são: troca, cooperação e busca de organicidade entre as

disciplinas ou entre os saberes que se comunicam entre si

ampliando o entendimento de qualquer objeto de

conhecimento. Tudo isso de tal maneira que se respeite a

necessária distinção entre as disciplinas. “Dividir

relativamente esses domínios científicos”, dirá Morin (1998,

p. 138), sem, porém, permitir a absolutização da divisão de

tal maneira que se “possa fazê-los se comunicarem sem

operar a redução” (idem, p. 138). Diz ele ser necessário

“um paradigma de complexidade que, ao mesmo tempo,

separe e associe, que conceba os níveis de emergência da

realidade sem os reduzir às unidades elementares e às leis

gerais” (idem, p. 138). Pois ambas as reduções são

simplificadoras: tanto a redução do entendimento do todo

ao entendimento de suas partes quanto a redução do

entendimento das partes ao entendimento do todo.

Pensar desta forma pode e necessita ser aprendido:

daí o papel importante da educação que pode ajudar nesta

direção de construção de uma nova história. Uma nova

história de construção de pontes entre as disciplinas, como

ele diz: “[...] hoje em dia emerge de maneira esparsa um

paradigma cognitivo que começa a estabelecer pontes entre

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ciências e disciplinas não comunicantes” (MORIN, 2002, p.

114), indicando a “possibilidade de começar a descobrir o

semblante de um conhecimento global”, pois “sem dúvida

é a relação que é a passarela permanente do conhecimento

das partes ao do todo, do todo às das partes” (MORIN,

2001, p. 491). A relação é a passarela das partes entre si,

entre partes e todo, entre todo e partes e talvez muito mais.

Deve-se, por isso, prender a construir passarelas relacionais

sem perder de vista as localidades. Há necessidade de

desenvolver um pensamento apto a perceber as ligações, as

interações, as implicações mútuas e, ao mesmo tempo, em

perceber a diferenciação, a oposição, a seleção e a exclusão.

Ambas as percepções são necessárias. Pois, como diz

Morin: “O processo é circular, passando da separação à

ligação, da ligação à separação e, além disso, da análise à

síntese, da síntese à análise. Ou seja: o conhecimento

comporta, ao mesmo tempo, separação e ligação, análise e

síntese” (2002, p. 24).

Talvez esteja aí a indicação da principal reforma do

pensamento que Morin propõe: a superação do

subdesenvolvimento da ligação e da síntese, religando os

saberes. Este é um programa e um desafio para a

organização dos currículos escolares e para a maneira como

se deve realizar o ensino nas escolas. Daí ele dizer,

escrevendo em itálico: “A partir daí, o desenvolvimento da aptidão

para contextualizar e globalizar os saberes torna-se um imperativo da

educação” (2002, p. 24). E, portanto, para o ensino de

Filosofia nas escolas.

Como fazê-lo? O primeiro passo é buscar

desenvolver em cada um de nós esta atitude religativa ou

intercambiadora de saberes presentes em cada disciplina

com o intuito de cada vez mais se poder iluminar os objetos

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

de conhecimento em todas as suas dimensões, vendo-os

contextualizadamente. Outro passo é pensar projetos

interdisciplinares e tentar colocá-los em prática no exercício

da docência, aprendendo, com essas experiências, a realizá-

las de maneira cada vez mais acertada. Com o intuito de

auxiliar a pensar projetos interdisciplinares no ensino de

Filosofia, são apresentados a seguir alguns exemplos

julgados possíveis.

2.2. Pensando projetos interdisciplinares em aulas de

Filosofia.

Inicialmente é necessário dizer que, se um professor

tem atitude interdisciplinar desenvolvida, ele pode ser um

convite vivo para que seus alunos desenvolvam esta atitude.

Para isso, precisa explicitá-la no tratamento que dá aos

diversos temas quando os apresenta, por exemplo, numa

aula expositiva. Se estiver expondo a respeito do que é o ser

humano, ele toma elementos de compreensão da Filosofia,

da Biologia, da História, da Geografia, da Sociologia, da

Psicologia, da Física, da Química ou da Bioquímica, da

Arte, das Religiões, da Matemática, da Literatura, etc.. Os

alunos estudam estas áreas do conhecimento e têm noções

específicas de cada uma delas: o professor, que também as

estudou no seu processo de educação escolar, pode

retomar algumas destas noções que se aplicam à

compreensão do ser humano e, com elas, tecer uma visão

articulada, interdisciplinar, que ilumina mais amplamente as

múltiplas relações que estão, de fato, presentes na

constituição deste ser. O mesmo se pode fazer no tocante à

Ética, à Teoria do Conhecimento, ao estudo da Sociedade e

do Poder, ao estudo da Arte, etc..

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Leno Francisco Danner (Org.)

A própria maneira interdisciplinar de o professor

tratar os diversos temas pode ser uma indicação deste bom

caminho de análise e compreensão da realidade sem,

contudo, perder o necessário enfoque específico de sua

disciplina. Os projetos interdisciplinares são chamadas

fortes para a atitude interdisciplinar. E vários deles podem

ser pensados.

Vejamos alguns exemplos.

Exemplo 1. Estudando o ser humano com diversos

olhares integrados entre si.

Primeiro anunciar o tema aos alunos dizendo

rapidamente de sua importância e situando-o na

programação da disciplina. Talvez anunciá-lo já com uma

pergunta como esta: "Como entender o ser humano no mundo e

com o mundo? Como entendê-lo, comparando-o aos demais seres do

mundo?".

Em segundo lugar, escolher um contexto significativo

para iniciar a provocação aos alunos para que comecem a

pensar sobre este tema: um filme; uma narrativa ou uma

história; uma poesia; um relato de uma situação; etc. Se o

objetivo é encaminhar um projeto interdisciplinar, este

contexto significativo já deve trazer elementos que

provoquem para isso. Por exemplo: em uma história ou em

um relato de uma situação, já deveriam estar presentes

conversas de personagens afirmando que o ser humano é

mesmo animal, como os outros, só que ele mora de forma

diferente, tem um corpo diferente, modifica a natureza para

sobreviver, faz isso utilizando planejamento, isto é, ele

pode pensar antes de fazer algo, faz coisas buscando não só

satisfazer necessidades básicas, mas também buscando

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

resultados expressivos através de produções artísticas,

organiza o seu trabalho junto com os outros, modifica, ao

longo do tempo, várias maneiras de organizar a sua vida,

utiliza remédios que são produtos químicos, o seu

organismo é um arranjo físico-químico, é um ser que

depende do meio ambiente e que se relaciona com os

espaços geográficos, que quantifica e calcula, que utiliza

linguagens, etc. Podem ser observados, aí, diversos

elementos de várias disciplinas escolares envolvidas.

Em terceiro lugar, é preciso conversar com os colegas

das várias outras áreas do currículo escolar, das várias

disciplinas, para que sejam estudadas formas de

organização de estudos que possam ser articulados, de

alguma maneira, tendo em vista construir a produção de

uma compreensão articulada do tema, pelos alunos. Nessas

conversas de planejamento devem ficar claros quais são os

objetivos deste trabalho: primeiro o de construir, com os

alunos, uma compreensão interdisciplinar sobre o ser

humano; segundo o de desenvolver nos alunos uma atitude

interdisciplinar. É importante lembrar que os dois objetivos

só devem ser assumidos como tais após todos estarem de

acordo quanto às razões, ou argumentos, para que sejam

buscados.

Em quarto lugar devem ser definidas as atividades que

serão desenvolvidas para atingir os dois objetivos, bem

como os recursos que serão utilizados. De um lado, as

atividades de cada disciplina, "em separado", mas tendo um

tratamento que não só aponta para as inter-relações

possíveis, senão que as realiza em cada espaço específico de

cada disciplina. De outro lado, as atividades a serem

realizadas por grupos de disciplinas, ou por todas as

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disciplinas, se possível: é preciso dar visibilidade concreta

da possibilidade de um trabalho interdisciplinar.

No caso específico deste tema, pode-se pensar em

atividades e recursos assim: nas aulas de Geografia, o ser

humano será visto no seu processo de ocupação dos

espaços geográficos em comparação com outros seres

vivos e na sua dependência em relação a fatores geográficos

como o clima, o solo, o ar, a água, etc. Será visto também

com relação à maneira como resolve essa dependência (por

exemplo, criando a agricultura, a pecuária, a indústria, o

estudo do clima). Nas aulas de História, o ser humano pode

ser visto como um ser que modifica a organização da

maneira de viver, da sociedade, dos regimes políticos, etc.,

diferentemente dos demais animais que sempre mantêm

sua maneira de ser e de viver, "colados" à natureza. Em

Língua Portuguesa, o ser humano pode ser visto como um

ser que produz linguagem, que se manifesta de diversas

formas, verificando-se se isto ocorre com os outros

animais; pode-se também, utilizar a literatura (romances,

contos, poesia) para trabalhar textos que discorrem de

forma reflexiva sobre os seres humanos. Em Ciências há

tanta coisa que pode ser estudada sobre o ser humano do

ponto de vista da Biologia, da Química, da Física, da

nutrição, etc.; estes estudos podem ser feitos comparando-

se o ser humano com outros seres, vivos ou não. Em

Educação Artística pode-se trabalhar a maravilhosa

capacidade que os humanos têm, e que outros animais não

têm, de produzir arte que expressa, desta maneira, a

sensibilidade em relação à natureza, aos outros animais e

seres, e ao próprio ser humano e seus diversos aspectos e

feitos. Em Educação Física pode-se, por exemplo, analisar

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

os movimentos que os seres humanos podem fazer e

aqueles que os demais seres não podem e pode-se

desenvolver uma reflexão sobre a motricidade humana e

sua importância para tudo.

Em quinto lugar, em atividades conjuntas, tudo isso

pode merecer formas de expressão inter-relacionadas: por

exemplo, utilizando-se painéis, peças teatrais, ou grandes

debates, ou conjuntos de apresentações, umas em seguida

às outras, nas quais os vários aspectos que manifestam o

que o ser humano é podem ser mostrados em sequências

bem planejadas. E outras.

Por último, no final de todo o processo, os alunos

podem ser convidados a escrever uma síntese na qual

digam tudo o que puderam constatar que constitui o ser

humano. O título desta síntese poderia ser: "A maravilhosa

complexidade do humano".

Em seguida, que tal, nas aulas de Filosofia, analisar

textos de Filósofos a respeito do ser humano. Há muitos e

podem despertar grande interesse nos alunos.

Trabalhoso? Por certo que sim. Mas pense-se na

qualidade dos resultados que se pode obter. Os benefícios

poderão compensar os custos, para utilizar uma linguagem

do economês.

Exemplo 2. Pensando um tema de Ética: "Por que

regras de conduta"?

Definido o tema e tendo-o apresentado rapidamente aos

alunos colocando a pergunta proposta, trata-se de pensar

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um contexto significativo a partir do qual se quer despertar

o interesse dos alunos. Um exemplo de contexto

significativo pode ser uma experiência a ser realizada em

uma ou duas aulas de Educação Física com a presença, ou

não, do professor de Filosofia. Os alunos são convidados a

participar de algum jogo (futebol, voleibol, basquetebol,

etc.). Antes da participação devem ser recordadas as regras

e deve-se insistir na necessidade de cumpri-las, dando-se

ênfase ao papel do juiz como vigilante do cumprimento

delas e de autoridade que pode punir pelo seu não

cumprimento. Realiza-se o jogo por mais ou menos 20

minutos. Em seguida, os alunos são reunidos no próprio

local do jogo e lhes é proposto que joguem novamente,

mas sem nenhuma regra: tudo o que cada um desejar

poderá ser feito, menos causar danos aos colegas e aos

equipamentos. Não haverá juiz, por razões óbvias. Este

jogo "sem regras" deverá durar pouco tempo, pois se

tornará inviável. Assim que for encerrada esta experiência,

pode-se pedir aos alunos que digam se a falta de regras foi

uma das razões que inviabilizou o jogo. Pode-se também

pedir a eles que pensem, numa das aulas, novas regras para

jogar aquele jogo, diferentes das regras existentes. Pode-se,

em outro dia, realizar um jogo com as regras criadas por

eles. Neste dia deverá haver um juiz. As três experiências

devem merecer uma análise comparativa por parte de

todos, em uma ou duas aulas de Filosofia e, se possível,

com a presença do professor de Educação Física. A análise

deve enfatizar o fato de haver regras em duas situações e o

fato de não ter havido regras em uma delas e deve enfatizar

o papel do juiz. Por que fiscalizar o cumprimento de

regras? Isso deve merecer um primeiro registro, por parte

dos alunos, no qual eles digam qual o papel das regras no

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

jogo realizado e em qualquer jogo. Algumas perguntas

podem ser colocadas para eles: é possível jogar algum jogo

sem regras? Neste caso, as regras ajudam ou atrapalham?

Elas podem ser modificadas? Por quem? Por que fiscalizar

o cumprimento de regras, por exemplo, com a presença de

um juiz? Em seguida, para completar o contexto

significativo, deve-se pedir a eles que façam um

levantamento de regras existentes para várias situações:

regras relativas ao meio ambiente e também relativas à

demarcação de fronteiras do Brasil com outros países

(buscar isso com os professores de Geografia); regras para

resolver problemas de Matemática (envolver os professores

desta disciplina); regras gramaticais (envolver os

professores de Língua Portuguesa e de outras línguas);

regras para lidar com certos produtos no laboratório de

ciências, para lidar com eletricidade, para utilizar alimentos

tendo em vista uma alimentação balanceada, regras de

higiene (obter isso nas aulas de Ciências); regras para a

escolha ou indicação de reis ou presidentes em algumas

sociedades em épocas diferentes (obter isso com os

professores de História); regras para obter determinadas

cores para pintura, ou regras para uso de pincéis ou telas

em pintura (verificar isso nas aulas de Educação Artística).

Elaborar, nas aulas de Filosofia, uma lista de regras de

conduta que normalmente são exigidas em casa, com

relação aos vizinhos, na escola, numa festa de aniversário e

numa cerimônia de casamento num templo de qualquer

religião.

Os alunos deverão organizar listas das regras coletadas e

apresentar os resultados de forma escrita em dois registros:

um com suas considerações relativas às regras nos jogos e

outro contendo o levantamento de regras nas várias

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situações acima indicadas. Decorrente do segundo registro

haverá um terceiro: escolher, dentre as regras levantadas,

aquelas que são regras de conduta e dois outros tipos de

regras. Nas aulas de Filosofia, os alunos devem ser

convidados a uma discussão sobre as regras de conduta: o

que elas efetivamente regulam; se são facilitadoras, ou não,

da convivência entre as pessoas; se sabem de outras

sociedades que têm as mesmas regras de conduta que a

nossa; quem elabora as regras; se podem ser modificadas; e

que razões enxergam para que estas regras sejam

cumpridas.

Nas demais disciplinas que participaram do

levantamento das outras regras, que não as de conduta,

uma conversa semelhante deve ser feita: em cada uma delas

deve-se buscar a razão das regras e se sua existência e

cumprimento facilitam, viabilizam ou dificultam algo

desejável.

Destas atividades pode resultar um trabalho em grupos

com um título assim: As regras em nossa vida. Será um

trabalho de constatação de algumas regras existentes, de sua

função e de registro de motivos para a existência delas. No

final, cada grupo deve ser convidado a manifestar o que

pensa a respeito. Ao invés de um trabalho escrito, pode-se

pensar em dramatizações sobre regras em nossas vidas, a

serem apresentadas pelas várias classes, seguidas de debates

com a plateia. Em qualquer dos casos todos os professores

envolvidos nas etapas anteriores devem apresentar as suas

avaliações.

Daí para frente, nas aulas de Filosofia, os demais itens

da programação sobre Ética devem ser desenvolvidos,

tomando como referência o primeiro trabalho feito. Caberá

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

ao professor de Filosofia propor, nestas aulas, aos alunos,

que estabeleçam relações com as demais disciplinas

servindo-se de conhecimentos nelas obtidos ou

construídos. Esta atividade interdisciplinar pode ser um

excelente ponto de partida para a leitura, interpretação e

discussões de textos de Filósofos a respeito deste tema.

Há diversas variações possíveis deste projeto. Que cada

professor as pense e crie.

Exemplo 3. Como pensamos e como produzimos

conhecimentos

A ideia básica é a seguinte: todos nós podemos pensar a

respeito de qualquer coisa, fato ou situação. Podemos

pensar de maneira rápida, sem preocupação com alguma

sistematização e profundidade a respeito de vivências já

tidas ou nas quais estamos envolvidos. Ou sobre algo que

observamos ou a respeito do qual ouvimos falar. Pensar

desta maneira produz em nós algum conhecimento.

Pergunta-se: este conhecimento é igual ou diferente de um

conhecimento que se pode obter fazendo, a respeito desses

objetos, fatos ou situações, uma investigação metódica,

profunda, bem analisada? E mais: pela nossa sensibilidade,

podemos produzir uma forma de conhecimento que não só

se expressa criativamente, mas que pode criativamente nos

oferecer aspectos da realidade que não captamos pelas

vivências mais rotineiras. É o caso do conhecimento

artístico. Como entender estas formas de conhecimento?

Os professores de todas as disciplinas devem participar

de um primeiro momento no qual conversam um pouco a

respeito destas questões. O professor de Filosofia os

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Leno Francisco Danner (Org.)

convida a perceber que estas questões estão encaminhando

uma discussão sobre a diferença entre o conhecimento do

senso comum e o conhecimento científico e também para

uma consideração a respeito do conhecimento artístico que

decorre também de um pensamento criativo. Um pequeno

texto sobre isso pode ser lido e discutido por todos os

professores numa reunião de estudos. Cada professor deve

ter bem claro que o tratamento dado pela sua disciplina a

certos aspectos da realidade é um tratamento científico. Ele

é um tratamento diferente do tratamento dado pelo

conhecimento do senso comum. Na escola, a pretensão (ou

o objetivo) é que os alunos tenham acesso a conhecimentos

científicos sobre certos aspectos da realidade e que

aprendam a produzir seus próprios conhecimentos de

maneira também científica. Isso inclui ajudá-los a

desenvolver um pensamento crítico. É objetivo também

que eles entendam as produções artísticas e desenvolvam

ainda mais sua criatividade. E mais: pretende-se que eles

sejam iniciados no tratamento das temáticas filosóficas e na

maneira reflexiva e crítica de a Filosofia tratá-las. Isto

assentado passa-se aos momentos seguintes do projeto.

Em cada disciplina, os alunos são convidados pelos

professores a trabalhar algum assunto da programação

procurando diferenciar a maneira como o referido assunto

é tratado nas conversas em casa ou nos grupos de amigos, e

a maneira como é tratado no livro didático ou em algum

texto de algum especialista. Os alunos devem ser ajudados a

perceber as diferenças metodológicas, as diferenças em

termos de profundidade das análises e em termos da maior

ou menor segurança dos conhecimentos produzidos.

Devem discutir se uma eventual maior segurança do

conhecimento científico o torna um conhecimento

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

absoluto, isto é, que seja garantido para sempre, ou não.

Em Educação Artística pode-se conversar sobre a

importância de um conhecimento cada vez mais amplo da

produção artística e, principalmente, sobre o papel da arte

enquanto propiciadora de entendimentos sobre a realidade.

Veja-se, por exemplo, o quanto a Literatura pode auxiliar

na compreensão do ser humano. Na aula de Filosofia pode-

se discutir o que significam estas formas de conhecimento e

o que elas podem trazer para as pessoas.

Importante: em todas as disciplinas todos os professores

devem provocar os alunos para que comparem os

conhecimentos de uma disciplina com os conhecimentos

das demais em termos da maneira como são produzidos

(metodologia) e em termos de relações que cada conteúdo

de cada disciplina tem com os conteúdos das demais.

Depois de um tempo previamente combinado para este

trabalho em cada disciplina, deverá haver o momento de se

mostrar a todos as relações mais evidentes entre as várias

disciplinas, bem como se há alguma vantagem em que as

pessoas dominem a maneira de produção de conhecimento

própria das ciências. Por que não ficar apenas com o senso

comum? Pode-se pensar numa série de três palestras: uma

de uma pessoa que exponha aos alunos as vantagens do

conhecimento científico e o papel da escola na ajuda ao

acesso ao mesmo; outra em que um artista apresente a

importância da arte na vida das pessoas e como a escola

pode ser uma boa oportunidade para as pessoas

conhecerem mais a respeito desta importante produção

humana; outra de um filósofo que apresente seus

argumentos sobre a necessidade de todas as pessoas terem

acesso a esta forma de conhecimento e em que ela ajuda no

entendimento da existência humana e de certos aspectos

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Leno Francisco Danner (Org.)

dessa existência. Os alunos devem tomar conhecimento

previamente do conteúdo básico de cada palestra e devem

preparar perguntas a serem feitas aos palestrantes. Cada

palestra deve ter a duração máxima de 30 minutos e deve

ser reservado um tempo suficiente para as perguntas dos

alunos e para as respostas dos conferencistas. Todos os

professores devem estar juntos com os alunos nas três

palestras.

Nas aulas seguintes, especialmente nas aulas de

Filosofia, tudo isso deve merecer novas considerações. Se

o processo tiver sido bem conduzido, não faltarão

conteúdos para as aulas de Filosofia. Cada aluno deve ser

convidado a fazer um registro escrito de algumas

conclusões a que chegou. Isso pode ser um dos elementos

para compor a avaliação do seu aproveitamento.

Aqui, de novo, a indicação de que, nas aulas de

Filosofia, sejam oferecidas aos alunos oportunidades de

conhecerem o que pensaram alguns filósofos sobre estas

questões.

Exemplo 4. A Arte em nossas vidas

Um interessante projeto interdisciplinar pode ser

desenvolvido com este tema. Pode-se tomar como ponto

de partida uma "feira de artes" organizada por toda a

escola. Neste evento, os alunos terão contato com várias

produções artísticas: artes plásticas (o que for possível);

artes cênicas (alguma peça teatral, por exemplo: na própria

escola ou em algum espaço fora da escola); música (que tal

ir a um concerto; ou trazer um coral para se apresentar na

escola; ou realizar oficinas nas quais possam ser

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

comparados diversos tipos de produção musical; etc.); um

bom filme em um dos dias da feira (nada mal pensar em

um filme de conteúdo histórico e que envolva a vida de um

grande artista); uma apresentação de poesias e de contos,

com exposição de livros; sessões de vídeos ou de "slides"

mostrando esculturas e exemplares da arquitetura.

Todo o material conseguido deve ser conhecido por

todos os professores antes do evento para que organizem

roteiros de atividades para os alunos. Assim, por exemplo:

em História pode-se pedir aos alunos que identifiquem

relações das obras de arte com características da época em

que foram produzidas; em Geografia pode-se pensar na

relação das obras de arte com o meio físico, ou com o tipo

de atividade econômica da região ou da época; em Ciências

pode-se pedir que sejam observados aspectos relativos a

técnicas empregadas que utilizam processos químicos, por

exemplo, ou nas quais são aplicados princípios da Física, ou

cujos temas digam respeito a aspectos da natureza, ou a

tipos de alimentação, etc.; em Língua Portuguesa e em

Línguas Estrangeiras pode-se pedir identificação de estilos

literários, de escolas, ou de outros aspectos; em Filosofia

pode-se propor análises relativas a concepções do ser

humano presentes nas produções artísticas ou, mais

especificamente, análises sobre os critérios pelos quais as

pessoas apontam como belas, ou não, tais produções.

Após, ou mesmo durante a realização da feira, muitas

atividades podem ser desencadeadas: pequenos seminários

juntando duas ou mais disciplinas (pense-se na riqueza de

um seminário no qual participem as disciplinas de História

e Filosofia, ou Filosofia e Língua Portuguesa, ou Filosofia e

Educação Artística); trabalhos a serem feitos pelos alunos

nos quais sejam convidados a abordarem alguma produção

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Leno Francisco Danner (Org.)

artística do ponto de vista da Filosofia, da História e da

Literatura: ou outras combinações.

A partir daí, nas aulas de Filosofia acessar com os alunos

textos de Estética de alguns filósofos e com eles elaborar

reflexões a respeito.

Exemplo 5. Cidadão: aquele que faz parte da

"cidade"

A "cidade" é, num sentido amplo, a "pólis",

ou seja, a sociedade, o lugar das pessoas de um mesmo

grupo com modos de viver semelhantes, falando uma

mesma língua, produzindo artes com características

próprias, com ideias parecidas, valores próximos, costumes

quase iguais, mesmas raízes culturais e necessidades

comuns, além de um mesmo espaço e uma mesma história.

Ao mesmo tempo a cidade, especialmente hoje, é um

espaço onde convivem pessoas com costumes diversos,

maneiras de falar próprias, origens também diferentes. Ser

cidadão é ser membro dessa sociedade compartilhando

direitos e deveres, além de muitas outras coisas, dentre elas

o direito a uma vida boa que inclua alimentação suficiente,

moradia decente, educação de boa qualidade, assistência à

saúde, acesso à justiça e outros. Há muito em comum na

constituição de uma sociedade e, por isso, há muito que

entender para que se possa compreendê-la e para que cada

um possa compreender-se como cidadão.

Um trabalho interdisciplinar de estudos

visando aproximar, cada vez mais, os alunos de uma

compreensão da complexidade do social, cabe bem em

qualquer momento de sua formação e em especial no

Ensino Médio. A disciplina Filosofia pode ser uma boa

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

articuladora de projetos nessa direção. Pode-se, por

exemplo, pensar o seguinte:

Tomando como ponto de partida um bom texto que,

além de trabalhar alguns conceitos relacionados ao tema,

apresente aspectos diversos da vida social e situações nas

quais muitas pessoas não participam, de fato, dos bens

produzidos na sociedade em que vivem e, portanto não têm

direitos básicos respeitados, pode-se propor um estudo

com a colaboração de diversas disciplinas.

Assim, à Filosofia caberá estudar de maneira mais

específica, o que são direitos e deveres e porque devem

existir; além disso, deve proporcionar o entendimento

inicial e uma compreensão possível do que é uma

organização social e política, do que são sistemas de

governo, do que é política, do que é poder, do que é justiça.

Pense-se, neste aspecto, nas contribuições da Sociologia.

À História poderá caber identificar formas de governo

que ocorreram ao longo da história do Ocidente e, em

especial, ao longo da história do Brasil. No caso do Brasil

dar ênfase à compreensão sobre o que foram dois regimes

ditatoriais e como, em ambos, os direitos foram

brutalmente desrespeitados (as novas gerações devem ser

informadas sobre isso, para que a memória histórica seja

um fator que ajude para que estes fatos não se repitam).

Deve-se constatar como é, hoje, organizada a sociedade

brasileira, do ponto de vista institucional e o muito que

ainda falta para que tenhamos uma vida inteiramente

democrática.

À Geografia pode caber um estudo que identifique a

configuração do espaço onde se localiza esta sociedade

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Leno Francisco Danner (Org.)

brasileira e como é, deste ponto de vista, o entendimento

de soberania territorial e como se dá a relação dessa

soberania com outras soberanias. É interessante discutir

com os alunos em que consiste o direito de ir e vir neste

território e como é regulado o direito de ir para outros

territórios nacionais. Ou discutir sobre direitos cidadãos

relacionados ao meio ambiente ou sobre ocupação de

terras.

À disciplina Ciências pode caber um estudo das

características raciais presentes em nossa sociedade e uma

discussão a respeito do direito das pessoas de não serem

discriminadas por serem descendentes de uma etnia ou

outra. Um bom estudo poderia ser feito relativamente à

falta de base científica para esse tipo de discriminação, bem

como para as discriminações por razões de gênero.

Independentemente da raça e do gênero e de outras

características, todas as pessoas de uma sociedade devem

ser tratadas igualmente como cidadãos. E isto significa o

quê? Há um bom impacto nos jovens quando um professor

de Ciências faz esta discussão. A Biologia pode trazer

grandes contribuições, assim como a Física e a Química.

À Educação Artística pode caber estudar as mais

diversas manifestações artísticas que nos identificam como

brasileiros e, portanto, nos caracterizam como tais. Aí cabe

um trabalho de convite à valorização deste aspecto de

nossa cultura, bem como reflexões sobre o direito das

pessoas (cidadãos) manifestarem livremente suas produções

artísticas e o direito de todos terem acesso aos bens

artísticos. Pessoas sem arte são cidadãos menores.

À Matemática pode caber um trabalho de expressão, na

sua linguagem, quantificando e calculando a quantidade de

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

pessoas que não têm vários de seus direitos de cidadãos

respeitados ou atendidos, por exemplo. Ou o quanto é

prejudicial às pessoas não terem acesso aos conhecimentos

matemáticos na escola, o que as leva a não poderem

perceber prejuízos que levam em compras, pelos altos juros

embutidos e disfarçados, por não poderem calcular

orçamentos domésticos e outros, etc.

Em Língua Portuguesa pode-se fazer uma leitura de

algum romance de fundo social e político e, junto com

Educação Artística, pode-se pensar em uma representação

do mesmo, seguida de debates que levem em conta tudo o

que foi estudado em cada disciplina.

Em Sociologia um bom estudo realtivo à ideia de classes

sociais e como esta divisão em classes surge na história

humana e uma boa discussão sobre se isso é bom: bom

para quem?

É importante enfatizar que não basta que cada disciplina

faça estudos sobre cada um destes aspectos: a

interdisciplinaridade só acontece se, em cada disciplina,

cada professor convidar os alunos a realizarem,

explicitamente, relações do que estão estudando nas demais

disciplinas com o que estão estudando na sua disciplina. E

mais: deve haver momentos de reunir professores e alunos

para que intercambiem os estudos particulares feitos. Estes

projetos demandam todo um processo que não é muito

simples: ele é complexo, como complexa é a realidade que

sempre estamos procurando entender. É realmente muito

mais simples cada disciplina fazer seus estudos particulares

em cada aula: mas isso leva a simplificações na

compreensão do real. E estas simplificações trazem

consequências funestas para a vida das pessoas.

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Leno Francisco Danner (Org.)

Exemplo 6. Identificando e avaliando atitudes

A proposta, aqui, é identificar, nas várias

disciplinas do currículo, textos ou passagens de textos nos

quais haja exemplos de atitudes e, de preferência, avaliações

destas atitudes apresentadas pelos autores. Isso feito, pedir

aos alunos que organizem, em grupos, uma pasta ou um

fichário que tenha como título: "Posicionamentos éticos

nas diversas disciplinas". Nesta pasta haverá uma seção

para cada disciplina, na qual serão colocados os textos

selecionados pelos alunos com a ajuda de seus professores.

Nesta mesma seção, em seguida ao texto (ou textos) de

cada disciplina, cada grupo acrescentará um texto no qual

os membros do grupo devem indicar, após uma discussão

entre eles, ao menos três atitudes mencionadas nos textos

que selecionaram de cada disciplina e também a posição

dos autores a respeito destas atitudes. Numa segunda seção,

da mesma pasta, cada grupo deve apresentar a posição do

grupo sobre o que dizem os autores dos textos

selecionados relativamente às atitudes por eles

mencionadas.

Deverá haver um trabalho inicial no qual o professor de

Filosofia exporá aos colegas o trabalho a ser feito e seus

objetivos dentro da temática de Ética que está

desenvolvendo com as classes.

Num segundo momento, e com prazo combinado, cada

disciplina realizará seu trabalho de pesquisa dos textos,

escolha dos mais apropriados, comentários dentro de cada

disciplina e algum posicionamento de cada professor.

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

Num terceiro momento, nas aulas de Filosofia, os

alunos, em grupos, deverão organizar a pasta acima

mencionada, com as suas seções.

Num quarto momento pode-se organizar um seminário

conjunto do qual participam todos os alunos e todos os

professores de cada classe ou até de todo o ensino Médio.

Neste seminário, cada agrupo apresenta o seu trabalho e

defende suas posições a respeito de uma ou duas atitudes.

Em seguida, o plenário apresenta suas questões ao grupo,

que as responde. Ao final, os professores, numa espécie de

júri, apresentam sua avaliação a respeito do trabalho e da

apresentação de cada grupo. Esta avaliação pode ser

expressa em notas ou conceitos, e deve ser agregada como

um dos itens da avaliação geral dos alunos.

Algumas sugestões: em Língua Portuguesa pode-se

tomar algum texto de algum autor que esteja sendo

trabalhado com os alunos e, neste texto, auxiliar os alunos a

identificar a menção a atitudes e ao posicionamento do

autor a respeito. Em Matemática pode-se buscar algum

texto no qual estejam explicitados, por exemplo, índices

relativos a pessoas que se utilizam de bebidas alcoólicas, de

fumo, de outras drogas, ou índices de roubos, ou de

assassinatos, ou de pessoas de governos ou de empresas

que desviam dinheiro, ou de empresas que falsificam pesos

ou outras medidas em embalagens de produtos. Podem-se

tomar textos que apresentam tabelas relativas a índices de

pessoas que morrem de fome, de doenças que poderiam ser

evitadas por ações dos governos e que não o são. Ou textos

com outros dados quantificados e calculados, mas que se

refiram a atitudes e que tragam alguma avaliação dos

autores a respeito. Em Ciências, pode-se tomar algum texto

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Leno Francisco Danner (Org.)

que comente atitudes de cientistas que declaram sobre suas

atitudes em relação à sociedade ou às demais pessoas. Há,

por exemplo, relatos de, ou sobre, Oswaldo Cruz, Albert

Sabin, Einstein, Oppenheimmer, Jacques Monod, Vital

Brasil, Mário Shemberg e outros. Neles podem ser

encontrados relatos sobre atitudes de compromisso com a

humanidade, de solidariedade, de honestidade intelectual,

de respeito aos colegas, de cumprimento da palavra dada,

etc. Importante tomá-los e verificar se são apresentadas

justificativas para os comportamentos tidos ou para o que

se afirma sobre tais comportamentos. Em Educação

Artística pode-se trabalhar com depoimentos de artistas

famosos que se apresentam em filmes, no teatro, ou na

televisão, ou que sejam grandes cantores, ou músicos

intérpretes ou compositores, ou artistas plásticos, ou de

poetas, ou de romancistas, etc. Em Geografia pode-se

buscar textos de autores que apresentem análises de

atitudes consideradas irresponsáveis com relação ao meio

ambiente, à vida em geral, à ocupação das terras produtivas,

etc. Em História pode-se tomar textos que analisem

atitudes como justas, ou não, corretas ou não, de pessoas,

de governos, de povos, etc. Em Sociologia pode-se buscar

textos que tratem de atitudes consideradas anti-sociais e

nos quais sejam apresentadas razões para estas

considerações. Em Filosofia não faltam bons textos a

respeito: é uma boa oportunidade para que os alunos leiam

e analisem alguns textos de filósofos e neles encontrem o

que é aqui pedido. Podem também ser obtidos textos com

estas características em alguma Língua Estrangeira

Moderna que conste do currículo da escola.

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

Considerações para finalizar.

Vale aqui lembrar o que já foi dito anteriormente:

primeiro, que estas atividades propostas podem ser

desenvolvidas com muitas variações, com grupos menores

de disciplinas, com outras temáticas, etc.; segundo, que, se

o que se deseja é um trabalho interdisciplinar, todos os

professores envolvidos devem tratar o tema em suas aulas e

devem saber apontar as inter-relações realmente existentes

nas várias disciplinas para que os alunos mais facilmente as

percebam (é o trabalho de ajuda educacional de cada

professor nesta direção) e para que tenham exemplos vivos

de atitudes interdisciplinares.

Há muitas possibilidades de elaboração e de

execução de projetos interdisciplinares. Eles são

importantes e são interessantes como oportunidades de

desenvolvimento desta necessária atitude nos alunos. Mas

talvez mais importante que projetos especiais seja a atitude

interdisciplinar de todos os dias que os professores devem

mostrar, em si mesmos, aos seus alunos e que devem neles

incentivar e deles solicitar. E isso sem descaracterizar o

tratamento específico que cada disciplina deve também dar

aos diversos temas e assuntos. Se não houver disciplinas

com clareza de seus conteúdos e métodos, não haverá

como relacioná-las entre si de uma maneira enriquecedora

da compreensão: não existe o interdisciplinar se não houver

o "disciplinar"; como também o interdisciplinar não

ocorrerá se não houver o "entre" a ser buscado nas relações

que sejam identificadas e representadas no processo de

conhecimento.

Uma última observação: muitos entendimentos e

conceitos são pressupostos nas diversas áreas curriculares

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Leno Francisco Danner (Org.)

como: o que é o ser humano; o que é um animal racional; o

que é natureza; o que é cultura; o que é linguagem; o que é

pensamento; o que é conhecimento; o que é conhecimento

verdadeiro; o que é ciência; o que é sociedade; o que é

poder; o que é justiça; o que é liberdade; o que é história; e

tantos outros.

Ao trabalhar estes temas, as aulas de Filosofia

podem propiciar aos alunos uma maior compreensão

destes conceitos. Isso os auxilia na melhor compreensão de

todas as áreas curriculares. Há uma função ou papel

interdisciplinar da filosofia, neste particular. Além disso, há

o "bom papel", para todas as áreas curriculares, do

desenvolvimento do pensamento reflexivo, crítico,

rigoroso, profundo e abrangente. A Filosofia é, por sua

natureza, participante de todos os esforços de

conhecimento de todas as disciplinas. Ela é naturalmente

interdisciplinar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

ALMEIDA, Maria da Conceição de e CARVALHO, Edgar

de Assis. (Orgs). Edgar Morin. Educação e complexidade: Os sete

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Gérard Lebrun; tradução de J. Guinsburg e Bento Prado

Júnior. 4ª ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Os

Pensadores).

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

FAZENDA, Ivani. C. Arantes. Interdisciplinaridade: história,

teoria e pesquisa. 14ª ed. Campinas: Papirus, 2007.

________________ Integração e interdisciplinaridade no Ensino

Brasileiro: efetividade ou ideologia. 4. ed. São Paulo: Edições

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_________________ (Org.). Práticas Interdisciplinares na

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FREIRE, Paulo. Extensão ou comunicação? 2. ed. Rio de

Janeiro: Paz e Terra, 1975.

JAPIASSU, Hilton. Interdisciplinaridade e patologia do saber. Rio

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_______________. O sonho transdisciplinar e as razões da

Filosofia. Rio de Janeiro: Imago, 2006.

MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Trad.: Maria D.

Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória. 2a ed. Rio de

Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.

__________ Os sete saberes necessários à educação do futuro.

Trad.: Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaia. São

Paulo: Cortez, 2000.

__________ A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o

pensamento. Trad.: Eloá Jacobina. 7a ed. Rio de Janeiro:

Bertrand Brasil, 2002.

__________ O Método 6: Ética. Trad. Juremir M. da Silva.

Porto Alegre: Sulina, 2005.

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Leno Francisco Danner (Org.)

__________, A religação dos saberes: o desafio do Século XXI.

Trad. Flávia Nascimento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,

2001.

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

A Filosofia e a Ciência em Uma

Abordagem Interdisciplinar

Marly Carvalho Soares

No desenvolvimento deste tema, deparamo-nos,

logo de início, com a necessidade de precisarmos

suficientemente os sentidos de “Filosofia” e de “saber” e,

como pressuposto desta compreensão, o sentido do

homem e da ciência. Parte-se, então, do caráter

antropológico, desembocando-se no campo da sabedoria,

que implica vários tipos de conhecimento, entre os quais o

científico e o filosófico. O saber é construído por várias

vias, desde o saber espontâneo ou do homem comum,

passando pelo do cientista, do filósofo, até o saber de bem

viver. Da ciência pode-se extrair de sua prática a criação de

tecnologias; e da filosofia talvez a sua praticidade esteja em

formar homens sensatos e coerentes.

Entre as inúmeras definições e explicações do

homem, da ciência e da filosofia elaboradas pelos filósofos

Professora titular do curso de filosofia da Universidade Estadual do Ceará. Este capítulo foi extraído e elaborado a partir de uma palestra sobre a identidade da filosofia e a história no Congresso Internacional em Eric Weil, realizado em Lisboa no ano de 2012.

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Leno Francisco Danner (Org.)

ao longo da história das ideias, a definição de Eric Weil

sempre me impressionou, não só pela sua síntese, clareza e

abrangência de sentidos e conteúdos, mas também pelo seu

conhecimento da tradição filosófica, pelo seu diálogo com

as demais ciências e, mais importante, pela sua preocupação

com a significação da filosofia e com o ato de filosofar em

uma sociedade pluralista, tecnológica e hedonista, também

contemplada pela filosofia. Assim, Weil define a filosofia,

dialogando com as demais definições, como uma nova

maneira de viver a razão. A filosofia como opção, uma vez

que o homem é um ser razoável, que pode escolher a razão

ou a violência. A violência é o outro da filosofia. Daí o seu

esforço titânico em dizer novamente o que é a filosofia em

relação à ciência e à sabedoria, lançando mão de diversos

métodos, processos e projetos utilizados pela ciência e pela

filosofia. Seguiremos, na estrutura do texto, a metodologia

do próprio autor, que consiste em um processo contínuo

de retomadas de antigas e novas categorias – atitudes na

tentativa de dizer: o que é homem, a ciência e a filosofia.

Por todas essas razões acima, torna-se necessário o

ensino da filosofia, não só pela legalidade promulgada na

legislação brasileira, que reconhece o direito de todos2 a

desenvolver o seu pensar, característica inata do ser

humano, como já reconhecia o próprio Aristóteles na sua

metafísica. Para tanto, é necessário que professores,

2 A respeito do direito à Filosofia, veja-se o artigo de DERRIDA, J. “O Direito à Filosofia do Ponto de Vista Cosmopolita” (Trad. De J. Guinsburg), na coletânea: A Paz Perpétua: Um Projeto para Hoje, São Paulo: Perspectiva, 2004. Veja-se também a legislação brasileira da obrigatoriedade da disciplina da filosofia no ensino médio, a partir de 02 de junho de 2008 e o Portal G1, 21/07/2008 – “a carência de professores de filosofia e sociologia”.

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

imbuídos e conscientes dessa realidade, do sentido e dos

impactos da filosofia ao longo dos tempos tanto na sua

dimensão teórica quanto prática, bem como na sua

interdisciplinaridade, possam comprometer-se com esta

nobre missão: emancipar o homem pela filosofia é ensinar

a filosofar. Como já dizia Kant, “não se ensina Filosofia,

ensina-se a filosofar”.

O propósito principal deste capítulo, que vem

juntar-se a outros, é servir de estímulo à reflexão de jovens

e de docentes que têm garantido o seu direito a filosofar,

ou melhor, o seu direito a refletir. Mas não basta só a lei, é

preciso disposição, disciplina, leitura e pesquisa, movidas

pela curiosidade e paixão em busca do saber, como tantos

outros conseguiram na história do ato de filosofar.

A pedagogia, ou melhor, a didática que se aplica a

todas as ciências, terá como finalidade facilitar o

movimento interdisciplinar3 na própria filosofia, que é por

sua natureza interdisciplinar, e com as demais disciplinas

curriculares. A interdisciplinaridade foi a característica

marcante da metodologia weiliana, como mostraremos na

elaboração do texto.

1. O Interesse pelo Homem

Na primeira parte da Introdução da sua obra Lógica

da Filosofia, Eric Weil (1985) mostra um interesse

antropológico, pelo motivo de refletir sobre o sentido das

diversas definições do homem apresentadas ao longo do

desenvolvimento da história, visto então pela ciência, pelo

3 Cf.: FAZENDA, Ivani. Interdisciplinaridade: qual o Sentido? São Paulo: Paulus, 2003.

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homem comum e pela filosofia. Em uma sociedade

pluralista, tecnológica e informacional, marcada pela

revolução biológica, pela revolução moral e pela revolução

antropológica, nada mais urgente que refazer este reencontro

com Weil analisando as antigas e atuais definições a respeito

da especificidade do homem.

Weil (1985) começa seu discurso antropológico

incentivado pela quantidade existente de definições a

respeito do sentido das definições do homem em relação a

qualquer outro animal, quantidade essa que cada dia cresce

mais no cenário do saber. Uma das justificativas

apresentadas por Weil (1985) consiste em que o homem é

justamente o autor das múltiplas e diferentes definições,

sendo, assim, ao mesmo tempo, objeto e sujeito do

conhecimento.

Vejamos o que diz o homem no campo do saber,

uma vez que o saber se refere a tudo que se conhece através

de várias vias: saber comum, saber científico e saber

filosófico. Neste contexto do saber, quem fixará limites? Em

nome de que critérios? Segundo que processos? Trata-se,

em geral, de colocar o homem como objeto de estudo no

contexto geral do saber. Ele é um animal? Um ser

histórico? Um ser humano? Um ser pensante? Um ser

violento? Um ser livre? Um ser religioso?

Weil, na herança de Aristóteles4, retoma a concepção

clássica que foi consagrada pela tradição filosófica e religiosa

4 A respeito da reflexão antropológica no sistema aristotélico, ver o comentário de Weil, que insiste em dizer que a Antropologia não é só possível, mas é, enfim, necessária. Qual é o conteúdo da Antropologia? Qual é a sua função no sistema? Que coisa é o homem? A Retórica, a Ética, a Política, a Psicologia falam do homem – enquanto ser que age como ser pensante e como ser dotado de paixões – WEIL, Eric. Aristotélica, a Cura de Livio Sichirollo, Concordanze 4, Millano,1990

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

e que constitui o fundo da nossa civilização ocidental: “o

homem é um animal dotado de razão e de linguagem” (LP,

p.3). É a definição mais popular e evidente na história

porque toca o nosso pensamento e até os nossos

sentimentos. Essa definição nos remete, no passado como

no presente, a dois aspectos originais do ser humano: a

palavra e a razão, que em síntese formam o conceito de

homem. A dúvida que se apresenta é como identificar

exatamente esses aspectos como sinais distintivos do ser

humano em uma cultura de massas tecida pela violência.

Weil também chama atenção para a concepção

científica5 do homem, tão evoluída na atualidade: “o homem

é um animal em que as extremidades anteriores são

formadas de maneira tal que um dos dedos se opõe aos

outros; dizer que o homem é o animal que ri, que, entre os

seres superiores, ele é o animal cujo sentido do tato

desenvolveu-se de maneira predominante, não é mais

científico e mais prudente?” (LP, p.3). Os homens de ciência,

presos nos seus laboratórios, com seus métodos e

experiências, têm um valor indispensável na sociedade e no

conhecimento, porém ainda é um conhecimento limitado,

pois não atinge e nem responde à totalidade do ser humano.

Mas o cientista, hoje como antes, já reconhece a parcialidade

do seu conhecimento. Ele não nega os demais

conhecimentos, filosóficos ou religiosos, mas não cabem a

ele a reflexão e o uso de tais conhecimentos. Daí a

5 A respeito da complexa relação da filosofia com a ciência, em especial a biologia, veja-se o livro de FERRY, L.; VINCENT, D. J. O que é o Ser Humano? Trad. Lúcia Matilde Endlich Orth. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.

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necessidade do diálogo entre as ciências6. Para o homem

cientista, falar de outras experiências radicadas para além dos

fenômenos naturais não cabe a ele, mas ao filósofo.

Weil, participando do debate entre o cientista e o

filósofo clássico, acrescenta mais uma definição, que creio

que contentaria tanto ao filósofo como ao cientista: "os

homens não dispõem de ordinário da razão e da linguagem

razoável, mas eles devem dispor destas para serem homens

plenamente" (LP. p 05). A partir desta definição, fundamenta

toda a sua filosofia, tentando, através de um sistema

filosófico - que compreende uma lógica da filosofia, uma

filosofia política e uma filosofia moral –, esclarecer este

dualismo presente no homem: razão e violência. O que é

essencial na sua definição a respeito das demais é que o

homem não é razão, mas ele pode ser razão, e, por outro

lado, o não ser razão implica ser violência. O homem é por

opção razão e violência.

O homem natural é um animal e, para ser homem

plenamente, deve optar por ser razoável. "A definição do

homem não é um dado para reconhecê-lo, mas a fim de que

ele possa se realizar" (LP, p.05) – é um dever ser opcional. O

sentido da definição do homem como razão somente se

mostraria na realização da razão. Só podemos confirmar que

o homem é esta contradição – destinado sempre a escolher.

O homem sabe que ele não é definível em nível de uma coisa

– que se diz: isto é uma rosa. Nós não sabemos dizer o que é

a razão, nem o que é ser razoável, mas nós descobrimos o

6 Sabemos que a filosofia e a ciência sempre andaram juntas e cultuadas pelas mesmas pessoas. Mas, ao mesmo tempo, no caminhar da história, cada um procura o seu objeto de conhecimento e, hoje, na era da técnica, há quase uma concepção absolutista da ciência.

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

que o ser razoável não é – ele não é uma coisa, um objeto

como as demais coisas que se jogam no mundo.

A razão não se descreve do exterior, como

algo exterior - ela se descreve a si mesma - ela é

movimento - que se engendra e se produz. Ela não é

objeto - porque é sujeito e é sujeito quando se opõe

a tudo que é objeto (LP, p. 06).

Não se pode acrescentar um predicado à razão,

porque implicaria acrescentar algo fora do sujeito, mas se

pode desenvolver todo o seu processo imanente - porque é

ato.

A definição do homem, se é que a podemos

entender, vai se tornando mais concreta: "O homem é o ser

que, com a ajuda da linguagem, da negação do dado,

procura a satisfação, porque não tem a menor ideia do que

poderia ser a satisfação" (LP. p. 08). Ele procura libertar-se

do seu descontentamento. "Seu nome não é mais homo

sapiens, mas homo faber, não o ser que sabe, mas o ser que faz"

(LP. p. 09). A linguagem só é razoável enquanto permite esta

intervenção do homem na natureza. O que conta agora é a

eficiência. Ser razoável significa, então, não somente dizer

não ao que é, mas produzir isto que ainda não é: um novo

objeto, um novo método e um novo procedimento.

Weil (1985) prossegue na completude da verdadeira

definição do homem, enquanto possível, recorrendo a todas

as definições passadas, e acrescenta: é necessário se

perguntar ainda: "o que é o homem?". Não é somente o

animal dotado de "linguagem razoável"; de "órgãos

sensitivos", não é "faber" no sentido da abelha, senão que ele

é "razão" – não somente "razoável” –, "mas uma razão em

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um corpo animal, pleno de necessidades, desejos e paixões"

(LP. p.10-11). O trabalho agora é transformar este ser

dividido para que, todo inteiro, seja razão. Ele não

conseguirá ser totalmente razão, porque está sempre preso

ao resto da natureza, mas o será muitas vezes razoável, livre,

em qualquer hora, em qualquer instante, em qualquer tempo

(LP. p. 10-11).

A racionalidade é uma possibilidade que, no

momento que, por um lado, se torna realidade, ao mesmo

tempo o incomoda, devido à animalidade que também é

uma possibilidade – e, portanto, se torna também realidade:

o homem é, com efeito, animal (violência) razoável.

Quando o homem se declara razoável, ele exprime o

último desejo: "o desejo de ser livre não das necessidades,

mas do desejo mesmo" (LP. p.11). É o homem que o

homem deve transformar pela razão e em vista da razão. E a

quem cabe esta missão? Diria eu, em primeiro lugar, a todo

homem, porque todo homem pode ser razoável e, enquanto

razoável, é capaz de mudar o homem. Mas cabe particular-

mente ao filósofo, não devido a sua profissão, mas pelo fato

que ele decidiu viver pela razão e, por outro lado, ao político,

que na busca do bem comum, renuncia à sua animalidade

particular, para efetivar uma vida sensata e digna para todos

os homens, pelo menos ao nível das necessidades.

A razão não dá satisfação porque é contentamento –

e é comprovado, no dia a dia do homem, que não basta

somente satisfazê-lo através de suas necessidades materiais,

mas tornar o homem consciente. Por isso, "o homem é homo

faber para tornar-se homo theoreticus" (LP, p. 11), ser que não

somente faz, mas ser que vê para além do fazer, procurando,

através desta visão, perceber a unidade de todas as coisas,

unidade essa que, em outras palavras, é desvendar o sentido

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

de tudo e de todos. Esta é a força que se mantém e que se

lança para além do papel negador da linguagem.

2- O Interesse pela Filosofia e o Ato de Filosofar

Uma ideia particularmente notável em Eric

Weil e que constitui a característica principal do seu modo de

proceder é a sua preocupação com a natureza e a significação

do ato de filosofar, quer na sua dimensão teórica, quer na

sua dimensão prática. É a busca de uma nova radicalização

da consciência filosófica - ou seja, o resgate do pensamento

crítico do homem, isto é, a ação da filosofia na sociedade.

Isso significa perguntar: os filósofos ainda têm uma função a

desempenhar na sociedade? Qual é o específico da filosofia?

Há algum lugar ainda para o saber responsável, que esteja

além das ciências? Por que o homem atual recusa a filosofia?

E, afinal, quem é o filósofo? Todas estas perguntas

implicam ou obrigam a filosofia a legitimar sua tarefa, na

pessoa daquele que optou pela filosofia, isto é, o filósofo.

Podemos dizer que a filosofia só terá sentido se for capaz de

justificar seu ser, seu sentido, na vida do homem situado no

mundo7.

Esta preocupação encontra-se concentrada na

segunda parte da Introdução8, que explica o caminho da

reflexão da filosofia através dos mais diferentes pensadores

com o objetivo de elaborar uma nova História da Filosofia,

captando o essencial e o inessencial de cada discurso

filosófico em busca da verdade, do sentido e da coerência

7 Para explicitar melhor esta postura do filósofo, conferir: SOARES, Marly. O Filósofo e o Político, pp.17-47

8 LP, pp. 3-86.

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em detrimento da violência. Em síntese, Weil nos propõe

uma reflexão sobre a filosofia e, consequentemente, sobre o

filósofo que quer desenvolver o pensamento na sua

totalidade e visa compreender-se na infinitude do discurso

filosófico. Nossa questão seria, então, saber por que Weil

inicia o seu discurso filosófico refletindo e questionando a

própria filosofia já constituída na história. Esta é a

característica de seu modo de filosofar? Qual seria, então, o

novo acrescentado ao estatuto do filosofar?9

O filósofo é o indivíduo finito e razoável que visa

compreender o infinito do discurso - fundado em uma

decisão livre. E esta vontade leva à criação de um discurso

sistemático e crítico sobre a ciência, a história e o todo da

realidade. A filosofia quer ser uma interrogação sobre o

sentido na sua afirmação como na sua negação. E por isso

"ela é eminentemente científica"10, está para além do

necessário e racional, uma vez que o racional é fundado na

opção livre do homem e nem todo homem é filósofo. Todo

ato humano tem lugar na filosofia, embora nem todos sejam

racionais, porém devem ser compreensíveis, porque todos

são interessantes.

A filosofia é a busca exauriente da coerência e,

portanto, mais científica que tudo. Procura um sentido aos

fatos parciais e particulares que a ciência e a experiência,

muitas vezes, não revelam, porque esta não é a sua

especialização. A filosofia tem a ver com o todo real. Nada é

9 Para fundamentar esta nossa reflexão, tomamos como ponto de referência o artigo intitulado “Philosophie et Realité”, que nos dá a chave de compreensão para esta problemática, fornecendo-nos, assim, o objetivo da filosofia, sua identidade e diferença com a ciência e a história, e sua relação com o todo da realidade.

10 DEC., p. 24.

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

mais comum e solidificado na história da filosofia que dizer

que a filosofia tem a ver somente com o necessário11, o

ontologicamente necessário, com o que é real e que é o

fundamento das ciências. Todas estas afirmações têm o seu

valor – porém, o filosofar nos impulsiona a ver mais longe,

questioná-las e superá-las. Neste caso, pode-se dizer: "a

filosofia é concebida como um discurso formalmente

coerente, cuja tarefa é separar o essencial do que não é,

lançando o inessencial ao reino das ilusões, dos erros e

opiniões"12.

Acontece que, na história, existe uma pluralidade de

discursos e que nenhum é refutado pelos outros e nem

contraditório em si mesmo. Não existe nenhum juiz que

possa arbitrar entre eles. Isso mostra que a necessidade

interior do discurso e dos discursos não é de modo algum

universal. Ora, eu sou livre para aceitar as regras do jogo,

mas "se eu aceito - eu sou obrigado a me abster da

incoerência"13. As regras são aceitas, mas a sua aplicação

permanece aberta, indeterminada e muitas vezes arbitrária.

A filosofia é posta sobre o todo da realidade e não

sobre o necessário e muito menos sobre o plausível - que

pertence ao hipotético-dedutivo. O necessário se refere

como necessidade de coerência ao discurso, e não à realidade

11 Quanto ao seu caráter de necessidade, tão defendido na filosofia, pelo menos depois de Platão, e com exceções e matizes diferentes como Aristóteles, Epicuro e Kant, persiste ainda esta concepção com denominações diferentes, como o ideal e o real, o concreto e o abstrato, o mundo do inteligível e o mundo dos fenômenos, épistéme e dóxai. Há ainda algo como ideal e medida de todo conhecimento.

12 WEIL, E. Philosophie e Réalitè: Derniers Essais et Conférences, Paris, Beauchesne, 1982, p. 26.

13 DEC, p.27

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- ela não me porta sobre os acontecimentos e as coisas, de

que fala o discurso. Não existe nada que eu possa elevar à

realidade. Tudo é real. A filosofia se obriga não a uma

coerência do que é necessário, mas à coerência do que é.

Além do mais, o conceito de necessidade não é

primeiramente afirmado nas coisas ou nos acontecimentos.

Nós falamos daquilo que é necessário e que nós julgamos

necessário. Mais uma vez ela é fundada no discurso. Existe

no discurso do qual as coisas dependem necessariamente.

A necessidade não é jamais relativa e a

necessidade absoluta não é jamais afirmada, nem

demonstrada e nem demonstrável, desde que ela não

se define no interior de um discurso - que pode

tornar-se um outro14.

Se a ciência é considerada segundo esse aspecto, a

filosofia não é uma ciência e passa a ser a vítima que deve ser

julgada dentro deste parâmetro. Esta é outra interrogação

que perpassa na história até aos nossos dias na cabeça dos

que já optaram pela filosofia ou dos pretendentes à filosofia.

Nada mais divertido, nos livros de introdução à filosofia do

que a defesa desta tese: a filosofia é ou não é uma ciência? É

o fundamento das ciências? É poesia? É religião? Precisa-se

ter coragem para tratar desta relação. Eric Weil é consciente

desta realidade e afirma: "a filosofia não é propriamente uma

das ciências; mas ela é científica como esforço para

compreender a universalidade do sentido da realidade

concreta"15.

14 DEC, pp. 29.

15 WEIL, E. "La Philosophie est-elle Scientifique?" in: Archives de Philosophie, 33(1970): p. 353.

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

Portanto a filosofia está para além do padrão

considerado pelo estatuto da ciência. A ciência é um sistema

de preposições desenvolvidas segundo certas regras - que

possui o seu domínio e seu método próprio. Quais serão,

então, o domínio e o método da filosofia?

O domínio será a realidade concreta e o seu método

será a lógica do diálogo. Uma lógica mais simples e mais

comum que a lógica das ciências sob a influência das

matemáticas - uma lógica que leva ao diálogo, falando a

linguagem de tudo e de todos – uma linguagem saída do

discurso vivo, onde os homens se contradizem e se opõem,

e não a uma linguagem do monólogo, que se concretiza nas

diversas especialidades, as quais se permite cada vez mais o

distanciamento dos diversos discursos, isolando-os nos seus

pequenos mundos16. Mas estas características ainda não

confirmam o seu caráter científico, o que leva a filosofia a

procurar ainda um método e um domínio próprio como as

demais ciências.

A história não deixa de repetir que todas as ciências

são nascidas da filosofia e como pode acontecer que os

filhos reneguem os pais? Esta é uma prova que a filosofia

precisa ser ordenada. Compreende-se muito bem e se

justifica melhor ainda, porque existe uma variedade de

ciências e não se compreende porque há várias filosofias e

cada filósofo, malgrado tudo que aprendeu dos seus

predecessores, começa sempre de novo. Lá onde se emprega

a lógica do diálogo não se pode atingir resultados certos,

uma vez que o que parece evidente para um, representa para

16 WEIL, E. "La Philosophie est-elle Scientifique ?". In: Archives de Philosophie, 33(1970): p. 355.

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o seu interlocutor um resultado de eterna contradição. A

contradição pertence à filosofia:

Os sistemas filosóficos não são equivalentes

e nem querem ser. Cada um é formalmente coerente

a seu modo e, no entanto, se contradizem

reciprocamente. Contradizem-se no sentido de que

todos afirmam qualquer coisa de diferente17.

O que é decisivo para um filósofo pode não ser real

para outro e a hipótese científica estabelecida pela

observação e experimentação não tem absolutamente lugar

no domínio da filosofia, que não possui uma esfera

determinada, método de pesquisa e decisão. A filosofia não é

uma ciência, mas ela poderia ser científica pelo seu caráter

explicativo, o que vem a ser também ciência.

Há outras ciências que partem de certos princípios

fundamentais que não podem ser demonstrados, mas, no

entanto, apresentam um discurso coerente. Estas ciências

não são consideradas "um gênero de poesia", como se diz às

vezes da filosofia, a não ser também que as matemáticas

sejam acontecimentos históricos e que tudo que não pode

ser contado empiricamente, mas constitui um discurso

coerente pertença à história científica e, neste caso, seria

coerente. Portanto mais uma vez salvamos a filosofia. A

cientificidade está no discurso coerente, e não na sua

demonstrabilidade. A filosofia não é particular, mas

absolutamente universal e se estende sobre o todo da vida

humana, compreendendo, assim, qualquer atividade

científica e pensante. O domínio da filosofia, ou seja, a sua

17 WEIL, E. "La Philosophie est-elle Scientifique?". In: Archives de Philosophie, 33(1970): p. 357.

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

particularidade, é a universalidade. Ela se preocupa de tudo

em certo sentido, porque se preocupa com cada sentido.

"Assim o que distingue os sistemas é a maneira e o modo

como cada um aborda e percebe este todo. Eles querem a

mesma coisa, mas a partir de pontos de vista diferentes"18.

Aparece aqui a perspectiva do interesse, porque o

sentido de cada sistema, ciência ou filosofia vai depender do

interesse que o impulsiona a fazer ou a pensar. O sentido é o

seu interesse. O homem pode se interessar somente em

dominar a natureza, tem o bloco das ciências que

desempenham bem esse interesse. Quem não se interessa

neste domínio, procura outro interesse que caracteriza outro

domínio. A filosofia trata do "interesse fundamental

enquanto tal"19. Indica um sentido segundo o qual ela avalia

toda e qualquer coisa: julga-a e coloca-a no seu devido lugar.

Compromete-se com o todo e com o sentido. Não é mais

possível distinguir domínios particulares a fim de descobrir

métodos e critérios que garantam que as questões recebam

uma resposta positiva e que as preposições não sejam

contraditórias: "entre diferentes maneiras de ver e de

compreender o todo, entre diferentes formas de sentido,

nenhum juízo e nenhum critério pode decidir e se pode

apenas encontrar o conflito ou a ignorância recíproca"20.

O desafio ao início da reflexão era provar por todos

os meios a desclassificação da filosofia como ciência. Porém

o caminho que percorremos nos confirma que ela é mais

ciência que todas as ciências - uma vez que só ela coloca em

18 WEIL, E. "La Philosophie est-elle Scientifique?" in: Archives de Philosophie, 33(1970): p. 360.

19 WEIL, E. "La Philosophie est-elle Scientifique?" art. cit., p. 361.

20 Weil, E. "La Philosophie est-elle Scientifique?" art. cit., p. 361.

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questão - "interrogando-se sobre o sentido de todo interesse

evidente e na incoerência destes múltiplos interesses”21.

Convém que interroguemos a filosofia: qual é o seu

interesse próprio? Por que a filosofia não interessa a muitos

homens? Esta é a questão propriamente filosófica para o

filósofo. Porque, não satisfeito de compreender os interesses

de todos os outros homens, ele quer compreender sua

própria empresa e compreender-se. Ele quer "compreender

porque os homens recusam de querer compreender"22.

O interesse - como já falamos anteriormente - é a

condição de possibilidade do pensar e do agir. Eu faço

qualquer coisa, porque esta coisa me interessa, embora este

interesse seja muitas vezes inconsciente. Eu não sei por que

quero e por que faço. O fazer precede a consciência.

Quando o homem tenta compreender a natureza e o

sentido do seu interesse, quando submete ao juízo de sua

vontade de razão e coerência, torna-se então o homem-

filósofo. "Ele se encontra, assim, obrigado a submeter ao

critério do universal, todas as atitudes, todos os discursos

que encontra"23. Este encontra a felicidade no interesse

intelectual, na reflexão intelectual. Esta é a sua felicidade,

ligada à felicidade do filosofar. Este é o interesse do filósofo.

Mas o interesse do filósofo se presta aos outros homens?

As coisas não são interessantes, elas não aceitam e

nem recusam, são indiferentes. O que existe é que há

homens que são interessados pela filosofia. São os homens

que têm interesses e não as coisas que são interessantes. Por

isso a filosofia, no geral dos homens, não serve a nada e nem

21 WEIL, E. "La Philosophie est-elle Scientifique?" art. cit., p. 362.

22 WEIL, E. "La Philosophie est-elle Scientifique?" art. cit., p. 363.

23 DEC. p. 34.

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

diz nada, a não ser para os homens que optaram pela

filosofia, isto é, para os filósofos.

De modo que é evidente e racional a recusa e o

questionamento da filosofia em toda a história, assim como é

evidente e racional a recusa e o questionamento de qualquer

ciência ou coisa. A coisa só vale para aquele que tem

interesse, seja intelectual ou prático. A utilidade não é o fim

da filosofia e, se esta passa a ser o seu objetivo, torna-se uma

má filosofia. “Não existe uma philosophia perennis, ainda que

os filósofos visem sempre o mesmo objetivo, a mesma coisa:

a compreensão do mundo e da própria vida, a partir de um

sentido e em vista da realização deste sentido"24. Os filósofos

não se encontram fora da história e do tempo, eles

caminham para o mesmo ponto de chegada, porém por

estradas diferentes. O que existe de comum entre eles é a

vontade de atingir este ponto de chegada. Eles se

compreendem, mas se compreendem enquanto diversos a

partir da condição que lhes permite de refletir sobre eles

mesmos e sobre o mundo. A compreensão é o ponto de

chegada dos filósofos.

A filosofia não é um saber acumulado no sentido de

doxagrafia, porém isto não nega que a sua história tenha

importância para aquele que quer filosofar. Pode ser que

todas as respostas tenham sido dadas no passado, porém

restará sempre por escolher aquela que nós faremos nossa,

não porque ela nos apareça atraente, mas porque conforme

às nossas convicções, com conhecimento de causa. Somos

responsáveis pelo nosso juízo diante do tribunal da razão. É

o interesse livre que dá vida aos esqueletos do passado, a fim

de evitar que a filosofia se torne doxagrafia. Aquilo que é do

24 DEC, p. 34.

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passado só me atinge quando me diz alguma coisa - quando

eu tenho interesse.

A filosofia é essencialmente histórica, não no sentido

de uma história explicativa, nem no sentido de um

historicismo e muito menos no sentido de introduzir um

determinismo. Ela é o chão no qual o homem se

compreende como livre e condicionado, determinado e

superior a toda condição. Daí resulta que a filosofia é

tomada de consciência da ação humana, uma tomada de

consciência que é verdadeira, uma vez que, no passado,

como hoje e certamente no futuro, será sempre posta a

questão da filosofia, sem que nenhum homem seja forçado a

pô-la.

Esta tese vai certamente contra o historicismo,

porque não é a condição que determina a filosofia, não se

trata de reduzi-la às suas condições, às circunstâncias do

tempo, em que nasce qualquer filósofo. A filosofia é

concretamente "reflexão sobre uma situação histórica, mas

reflexão livre e a história são refletidas e se refletem nela"25.

De fato, seria absurdo querer demonstrar que é necessário

filosofar. Uma vez escolhido o discurso, eles são obrigados

pela sua coerência a justificar a sua opção, mas não antes da

escolha.

A filosofia é ainda histórica enquanto ação na

história e sobre a história. Ela não está no além e nem nos

seres sobre-humanos. Ela age no aqui e agora, é ação que

transforma e que a transforma, porque, quando o homem

intervém na história, é modificado por esta mesma história.

Há uma relação dialética, afastando todo caráter de

necessidade ou determinismo.

25 DEC, p. 36

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

O que distingue a filosofia de outras ciências é que

ela chega a descobrir esta relação fundamental de liberdade e

não somente como em outras atividades humanas onde se

descobre como estrutura subjacente e se mantém subjacente.

Isto não impede que, a qualquer momento da história, a

filosofia possa ser tomada como simples saber, como um

saber dos objetos e, neste caso, deixa de ser filosofia e se

transforma em ciência inconsciente de seus fundamentos,

isto é, do interesse que a move e a inspira, tornando-se,

assim, um discurso vazio. Também a filosofia corre o perigo

de desaparecer e entrar no subconsciente das atividades

incoerentes e arbitrárias. Mas, por outro lado, isto não é uma

desfortuna, pois a filosofia só aparece como grande filosofia

nos tempos de crises, como bem já mostrou Hegel.

2. O Ensino da Filosofia

A filosofia é precisamente um discurso coerente e

exaustivo, portanto eminentemente ensinável, ainda que não

transmissível. O filósofo só fala da realidade e ele só quer

falar de uma maneira coerente, o que o faz apropriar-se da

realidade, sendo esta unicamente o seu outro. A realidade é a

condição da existência do filósofo, o que implica que este

deve estar atento a sua dinamicidade e estabilidade. Esta

necessidade de coerência com a realidade não é a

necessidade do que é necessário, isto é, das leis da natureza e

da história, mas é a necessidade do próprio filósofo de

compreender a realidade. Nesta mesma realidade, ele se

depara com determinismos, porém esta não é a realidade da

qual se ocupa o filósofo. Ele não despreza as ciências; ao

contrário, vê aí a expressão mesmo da liberdade encarnada.

Elas fazem parte da realidade que o filósofo quer

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Leno Francisco Danner (Org.)

compreender, o que justifica o caráter interdisciplinar da

filosofia.

A filosofia não é estranha à ciência, e isto é tão real

que toda revolução filosófica, constituindo uma reflexão

sobre o interesse do homem, produz novas ciências ou

transforma ciências já existentes. Porém isto não significa a

cientificidade da filosofia, esta é "scientifique eminenter" pela

sua recusa à incoerência. E, nesta busca de coerência, deixa

na história sedimentações, conhecimentos, "que devem ser

submergidos no rio do discurso da liberdade que se quer

universal e que se quer compreender compreendendo

tudo"26. De sorte que tudo o que contribui para a

constituição deste discurso universal é de um valor

inestimável a quem busca este discurso, na sua situação, no

seu tempo e na sua linguagem.

"A filosofia é eminentemente comunicável"27, mas

somente àquele que está preparado a receber a comunicação

viva, àquele que quer viver compreendendo e que quer viver

na sua vida. Esta não é transmissível à maneira das ciências,

por uma equação ou por uma técnica de conhecimento. Não

se aprende a filosofia, pode-se tão somente filosofar com os

filósofos, como já dizia Kant.

Um fato último e curioso para aquele que só

conhece como ideal aquele da ciência particular reside no

fato que a filosofia tem a ver simplesmente com a realidade,

sem nenhuma exclusão ou preocupação do que seja elevar

ao necessário, ao fundamento, ao real, ao absoluto, uma vez

que ela é este fundamento, este absoluto, posto em sua

26 DEC, p. 38.

27 DEC, p. 38.

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

liberdade decidida a ver sempre de novo, a realidade na

coerência do seu discurso.

Não se pode demonstrar o todo. Este é sem

hipótese, sem experimentação, sem fundamento, sendo ele

mesmo o fundamento de toda necessidade e possibilidade.

Não existe nada fora do todo. Não há ilusão, nem erros,

nem primitivismo ou loucura para a filosofia, ainda que ela

compreenda que tudo isto existe em tal perspectiva, em tal

época, para tal homem. Ela somente quer compreender o

que é, porque isto existiu e existe, não é seu projeto

demonstrar porque isto parece absurdo. Ela age

simplesmente no todo, nem acima e nem fora do real.

O filósofo é o ser situado no infinito do discurso,

que nasce de uma liberdade encarnada na história. O

discurso não é simplesmente uma justaposição de

perspectivas e de interpretações. "O discurso é estruturado

como a realidade o é - e esta realidade só é compreensível

para o discurso que a percebe e se percebe nela"28. Ele é

tão inexorável como a realidade. Quando se toma

consciência desta realidade, vê-se que a estrutura das

estruturas não é a estrutura. E, se ele age no estruturado, esta

tarefa não é jamais acabada. Mas a compreensão do

estruturado que é a realidade aparece sempre como parcial e

particular à vontade de compreender o todo da realidade.

Considerações Finais

Em síntese, a filosofia foi o objeto da reflexão. Weil

realmente tentou especular o que é a filosofia e,

consequentemente, a sua interdisciplinaridade no diálogo

28 DEC, p. 40.

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Leno Francisco Danner (Org.)

com as diversas filosofias e ciências e marcou a identidade e

responsabilidade daquele que optou pela filosofia. O filósofo

tem como tarefa primeira compreender a si mesmo, o outro

diferente, a realidade e a outra realidade. Nada lhe é

indiferente. Por outro lado, é uma nova maneira de filosofar,

isto é, filosofando sobre a filosofia, isto é, abrindo o discurso

com a própria filosofia29. Só que a filosofia de objeto passa

agora a ser o sujeito da reflexão, ou seja, como se deve agora

filosofar. Isto significa dizer ainda: com qual linguagem, com

qual caminho posso chegar ao objeto da minha reflexão,

quais os elementos constitutivos de um discurso filosófico.

Afinal, qual o "método" que me leva a filosofar? Ou melhor,

conhecer a realidade? Tudo isto me faz lembrar a história da

filosofia para sentir como os demais filósofos começaram o

seu filosofar. Dentre as diversas maneiras, embora com

acentuações diferentes, a Lógica tornou-se o instrumento

universal para tentar compreender o pensar e o objeto.

Iniciada pela lógica formal que foi o conhecer dos filósofos

gregos, enquanto a forma do pensar, superada pela lógica

transcendental de Kant e levada às últimas consequências

com a lógica especulativa de Hegel. Por outro lado, ninguém

pode negar o esforço de Weil em proporcionar uma nova

leitura da realidade a partir da sua lógica da filosofia, cujo

núcleo é refletir sobre o homem, a ciência, a filosofia e a

sabedoria. Qual é, portanto, a tarefa de sua lógica na reflexão

filosófica? Certamente proporcionar o conhecimento da

trajetória do ato de filosofar da tradição, continuado pela

modernidade e pela contemporaneidade.

29 A respeito da abertura do discurso filosófico, veja-se: KIRSCHER, G. La Philosophie d'Eric Weil. Paris: PUF, 1ª édition, 1989, pp.19-147; e Síntese 41(1987): pp. 41-54.

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

Em resumo, pode-se confirmar com Weil: que a

filosofia é a busca de um discurso coerente que se dirige

sobre o todo da realidade; o discurso filosófico não é nunca

acabado; o ser finito e razoável que se decide a filosofar é

interessado de modo determinado; que é a realidade a ser

compreendida, é estruturado, compreensível; que a filosofia

tem a ver com o que é sem exclusão alguma e sem

preconceitos.

É certo que a razão traz o contentamento, que está

para além da satisfação – que a é a superação das

necessidades. Porém essa razão só se efetiva no campo da

violência que provém de todos os outros discursos seja do

homem comum ou do homem cientista. Por isso, confirma

Weil: quanto mais o mundo se torna técnico, mais é

necessária a filosofia, ou em especial o ensino da filosofia; e a

exigência primordial é que ela se efetive no mundo da

violência. Mostrar como refletir – eis o papel do filósofo e

cabe a ele dirigir o processo de interdisciplinaridade, pois

somente a filosofia pode dar o caráter de totalidade que as

demais ciências necessitam.

O desafio que nos é colocado é como articular a

teoria e a prática filosófica no processo de ensino-

aprendizagem. A nossa didática pressupõe conteúdos,

habilidades e posturas adequadas que se concretizem no

planejamento participativo e na ação eficaz em busca de um

lugar para a filosofia no contexto prioritário da ciência e da

técnica.

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Leno Francisco Danner (Org.)

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SIGLAS

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PK= Problème Kantiens.

PM= Philosophie morale.

PP= Philosophie politique.

Weil, Eric. Hegel et l’Etat, Paris, Vrin, 1980.

____. Logique de la Philosophie, Paris, Vrin, 1985

____. Lógica da Filosofia. Tradução portuguesa de Lara

Christina de Malinpensa, S. Paulo, Realizações, 2012.

____. Philosophie Politique, Paris, Vrin, 1984.

____. Filosofia Política. Tradução portuguesa de M. Perine,

São Paulo, Loyola, 1990

____. Problèmes Kantiens, Paris, 1992.

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____. Essais et Conférences I, Philosophie, Paris, Plon,

1970.

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

____. Philosophie et Realité. Derniers Essays et

Conferences. Paris, Beauchesne, 1982.

2. Fonte secundária: outros autores

Actualité d'Éric Weil. Actes du Colloque International.

Chantilly, 21-22 mai 1982, éd par le Centre Eric Weil, UER

de Philosophie de Lille III, Paris, 1984.

COSTESKI, E. Atitude, violência e estado mundial

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FAZENDA, Ivani. Interdisciplinaridade: qual o sentido?

São Paulo, Paulus, 2003

KANT... et. al; J. Guinsberg,(org.), São Paulo: Perspectiva,

2004

KIRSCHER, G. La philosophie d'Eric Weil, Paris, PUF, 1ª

edition, 1989, pp.19-147 e Síntese 41(1987): p. 41 - 54

PERINE M., Filosofia e Violência. Sentido e intenção da

filosofia de Éric Weil, São Paulo, Ed. Loyola, 1987.

ROBINET, C. O Tempo do Pensamento. São Paulo: Paulus,

2004.

R.CAILLOIS, "Attitudes et catégories selon Eric Weil" in

Revue du Métaphisique et de Morale, 58 (1953):286

SOARES, C. M. O Filósofo e o Político segundo Eric Weil. São

Paulo: Loyola, 1998.

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Leno Francisco Danner (Org.)

A pedagogia da solidão:

considerações a partir da

filosofia de Nietzsche

Jelson R. de Oliveira30

O tema da solidão é só um dos mais frequentes e

mais relevantes no pensamento do filósofo alemão

Friedrich Nietzsche, como também possibilita uma chave

de leitura importante de sua filosofia em geral31 e de suas

reflexões sobre a educação em particular. Nesse texto

pretendemos tecer algumas considerações sobre o papel

pedagógico-educacional da solidão nos escritos de

Nietzsche, principalmente a partir da perspectiva que

articula o tema com o cultivo e o crescimento das forças

30 Doutor em Filosofia; professor do Programa de pós-graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná; coordenador do subprojeto de Filosofia do PIBID/PUCPR. Email: [email protected].

31 Sobre o papel da solidão na filosofia de Nietzsche, cf. meu livro “A solidão como virtude moral em Friedrich Nietzsche” (OLIVEIRA, 2010).

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

individuais em vista de uma “espécie mais nobre” (KSA32 9

[153], 85-86) e de um ganho para o futuro da humanidade.

O eixo central da reflexão se situa nos dois textos do

chamado período de juventude: Sobre o futuro dos nossos

estabelecimentos de ensino (principalmente a segunda conferência,

proferida em 1872) e a segunda das Considerações

Extemporâneas, intitulada Schopenhauer como educador, de 1874.

A análise da educação sob essa perspectiva não só

evidencia a continuidade entre os problemas analisados por

Nietzsche e aqueles enfrentados ainda hoje em sala de aula,

como também explicita a urgência de que a educação, em

nossos dias, avalie o seu papel no que tange à renovação e

ao favorecimento da cultura. Nisso, certamente a filosofia

terá grande importância, se pensarmos no seu papel crítico,

reflexivo e des-alienante, o que, por si só, já legitima a sua

permanência destacada no ambiente e nos currículos

escolares. As reflexões de Nietzsche, como se verá, servem,

nesse sentido, também para que cada agente educativo (os

professores de filosofia, os educadores e os mestres

filosóficos) avaliem o seu trabalho, a fim de fazer com que

32 Neste texto usaremos as seguintes siglas para a citação da obra de Nietzsche: A (Aurora); AS (O andarilho e sua sombra, do segundo volume de Humano, demasiado humano) BM (Além de Bem e Mal); GC (A Gaia Ciência); SE (Terceira Consideração extemporânea: Schopenhauer como educador); BA (Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino); KSA (Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe - edição crítica em 15 volumes organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari – a sigla será seguida do número do volume, o número do fragmento e o número da página). Seguindo as letras, para as obras publicadas, constarão os números arábicos referentes ao número do aforismo da obra e, no caso das Considerações Extemporâneas, acrescentaremos o número da página na edição intitulada Escritos sobre educação, conforme encontra-se nas referências do trabalho.

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Leno Francisco Danner (Org.)

a filosofia seja uma atividade de vida e não apenas uma

erudição vazia.

O diagnóstico de uma crise

Comecemos analisando o “diagnóstico” de

Nietzsche a respeito da cultura e da educação, bem como

dos estabelecimentos educacionais de sua época. Como um

“médico da cultura” (KSA 7, 23[15], 545) ou como um

“médico filosófico” (GC, Prólogo, 2), Nietzsche identifica

na educação os sintomas de uma doença cultural muito

grave, cujo efeito tem sido a verdadeira “extirpação e

desenraizamento completos da cultura” (SE, 4, p. 166),

identificada na “pressa geral, no crescimento vertiginoso da

queda, no desaparecimento de todo recolhimento, de toda

simplicidade” (SE, 4, p. 166). A análise de Nietzsche é

bastante decepcionada: “Jamais o mundo foi mais

mundano, mais pobre de amor e de bondade” (SE, 4, p.

166). Nesse mesmo trecho, o filósofo explicita o motivo

dessa crise cultural: “As classes cultas não são mais os

faróis ou os asilos em meio a esse turbilhão de espírito

secular. A cada dia, elas se tornam mais inquietas, mais

vazias de amor e de pensamento” (SE, 4, p. 166). Ou seja,

entre os motivos do agravamento da crise cultural estariam

a degeneração dos eruditos, dos homens e das classes

cultas: “O homem culto degenerou até se tornar o maior

inimigo da cultura, pois ele quer negar com mentiras a

doença em geral e é um estorvo para os médicos” (SE, 4, p.

166). De um lado, o discurso da massificação cultural levou

ao rebaixamento, arrefecimento e anulação das forças

criativas dos “fruto[s] supremo[s] da vida”, dos “homen[s]

magnífico[s] e criadore[s]” (SE, 3, p. 163) associados à ideia

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

do gênio. De outro, a degeneração desses homens de

exceção, tão necessários para a renovação e o crescimento

cultural, levou ao descimento da capacidade mesmo de que

a doença seja identificada enquanto tal, ou seja, o doente

está tão doente que já não se dá conta de sua doença,

estado tal que impede a cura e cria mesmo um “estorvo

para os médicos”.

Para Nietzsche, a modernidade é o tempo do

filisteísmo cultural: do otimismo vazio, do jornalismo, da

massificação e do elogio do que é comum, de todos, do que

é igual, determinado pelas “forças mais grosseiras e mais

malignas, pelo egoísmo dos proprietários e pelos déspotas

militares” (SE, 4, p. 167) cujo objetivo não é outro senão

servir ao Estado e ao Mercado, as novas forças

mantenedoras dos vínculos sociais e os objetivos comuns

de todos os viventes. Vive-se o tempo das forças

conservadoras, no qual o objetivo da educação passou a ser

uma tentativa de ensinar “a pensar e a agir como animal de

rebanho” (SE, 1, p. 138) cuja meta é recusar a si mesmo em

benefício do amor ao próximo e da diluição na coletividade

igualitária. Educar, agora, é ensinar o comum e formar para

o comum, para a obediência e a ação segundo o instinto

gregário. Vive-se o tempo da “indolência, do comodismo,

em suma, da propensão à preguiça”, o tempo da

negligência, dos “modos emprestados e opiniões postiças”

(SE, 4, p. 138). O tempo do despojamento do que é

próprio em nome do que é de todos, tendo como

consequência o despojamento daquilo que é a condição de

cada homem, o qual passa a viver enojado de si mesmo e

extraviado “a torto e a direito, em todas as direções” (SE, 1,

p. 139). Agora, encontra-se com um “espectro” do homem,

uma “fantasia frouxa, tingida e gasta” da identidade

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Leno Francisco Danner (Org.)

humana. Nas instituições de ensino sobram “espíritos

bicórneos” e elas mesmas não são outra coisa que

“instituições envelhecidas” (SE, 2, p. 144). A modernidade

não é outra coisa que um tempo de estiagem: falta

criatividade, falta inovação, falta verdadeira educação. No

ligar dela, sobra formalismo, repetição e indolência.

Para Nietzsche, a educação desempenharia um

papel extremamente relevante, seja no diagnóstico, seja na

possibilidade de renovação cultural que ela evoca. Nessa

direção, ele chega mesmo a afirmar, na segunda conferência do

texto Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino, a

respeito da importância da educação (ou do Gymnasium) que

“todas as outras instituições devem medir-se pelo objetivo

cultural que é visado pelo Ginásio, pois elas sofrem com os

desvios de sua tendência, e assim serão também purificadas

e renovadas com sua purificação e renovação” (BA, segunda

conferência, p. 68). Quem deve guiar a sociedade é a

educação e as instituições de ensino jamais deveriam se

render aos interesses do mercado ou do estado. Se quiser

ser um luzeiro para a cultura, a educação deve recuperar o

seu papel de guia, o que significa estar à frente, fazer as

próprias escolhas, dirigir os próprios caminhos. O que dizer

quando isso não ocorre, ou quando a educação vira uma

mercadoria, o mestre um funcionário e o estudante um

cliente?

A educação como afirmação de si

Nesses termos, a educação teria, para Nietzsche,

um papel de extrema relevância no que tange ao

fortalecimento das forças individuais: ela precisa ensinar e

cultivar as forças a fim de mostrar a cada homem “que não

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

se vive no mundo senão uma vez” e que, nessa “condição

de único” (SE, 1, p. 138), não deve alimentar nenhum

“remorso na consciência” (como ensina a moral e a

pedagogia tradicional), mas, ao contrário, expressar-se

como um “milagre irrepetível”, como um ser “único e

original” no qual a consciência (a boa consciência) grita:

“Sê único!” (SE, 1, p. 139). Essa exclamação não expressa

apenas uma verdade sobre o homem, mas, sobretudo, lhe

impõe um objetivo, uma meta: ele precisa se tornar único e,

nesses termos, a educação seria o locus social dessa

experiência, ou seja, o lugar do cultivo das forças

individuais em vista da afirmação dos homens e das classes

cultas. A linguagem nietzschiana, ainda que soe elitista ou

grandiloquente, não pode ser entendida a não ser como um

alerta da crise cultural: trata-se de desejar que a educação

fomente o crescimento cultural, através do benefício do

indivíduo em seu vigor próprio; trata-se de uma denúncia

do sistema que, por pretender igualar, acaba mascarando os

processos de rebaixamento de todos, dando margem,

assim, à ascensão de “senhores” representantes desses

interesses escusos de contínuo enfraquecimento das forças

humanas; trata-se de recusar, no fim, a tirania dos

ignorantes, o absolutismo de alguns baseado na fraqueza e

na anulação da maioria. Por isso, Nietzsche expressa-se

contra o governo dos fracos, em nome dos vigorosos:

“qual não seria a aversão das gerações futuras, quando

tivessem de se ocupar com a herança deste período, em que

não são os homens vigorosos que governam, mas os

arremedos de homem, os intérpretes da opinião” (SE, 1, p.

139). E talvez ele tivesse razão ao anunciar que “esta é a

razão por que o nosso século passará talvez, para uma

longínqua posteridade, como o momento mais obscuro e

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Leno Francisco Danner (Org.)

desconhecido, como o período mais inumado da história”

(SE, 1, p. 140)33.

É justamente onde há tirania da maioria que

verifica-se com mais evidência os processos de anulação

dos indivíduos:

Em todo lugar onde houve poderosas

sociedades, governos, religiões, opiniões públicas, em

suma, em todo lugar onde houve tirania, execrou-se o

filósofo solitário, pois a filosofia oferece ao homem um

asilo onde nenhum tirano pode penetrar, a caverna da

interioridade, o labirinto do coração: e isto deixa

enfurecido os tiranos (SE, 2, p. 154).

A solidão é o antídoto e o perigo. Ela possibilita

que cada indivíduo coloque “a salvo a sua liberdade no

fundo de si próprio” (SE, 2, p. 154), mas tem o custo de se

tornarem estranhos e indesejáveis34: “eles saem de sua

caverna com um semblante terrível, suas palavras e seus

atos são então explosões, e é possível que se autodestruam

por serem o que são” (SE, 2, p. 150). Mas a solidão não

pode se tornar isolamento. Por isso, a solidão exige

companheiros e amigos, sem os quais o indivíduo solitário

33 Sem querer levantar alguma tese histórica sobre o assunto (o que fugiria do objetivo desse texto), é possível simplesmente perguntar em que medida essa crise não teria fornecido as bases para os horrores impetrados, pouco tempo mais tarde, pelos regimes nazistas que se elevaram ao poder na Alemanha, com consequências tão danosas que, provavelmente, a posteridade jamais esquecerá.

34 A reflexão sobre a experiência da filosofia na educação passa justamente por essa questão. Certamente os motivos que levaram a filosofia no passado recente de nosso país a ser expulsa do currículo escolar e mesmo o fardo de que ela tenha se tornada indesejada ainda hoje, tem a ver com essa tendência: a filosofia liberta o indivíduo, torna-o livre dos preceitos da maioria e das leis da tirania.

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

se destruiriam: como tarefa higiênica, ela deve preparar para

a construção de relações mais saudáveis. Nietzsche chega a

afirmar que “este foi o primeiro perigo à sombra do qual

Schopenhauer cresceu: o isolamento” (SE, 2, p. 155).

Ao contrário disso, a educação teria o papel de

fomentar a singularidade que não significa outra coisa

senão “viver segundo a própria lei e conforme a nossa

própria medida” (SE, 1, p. 140). Se esse lema aparece já nos

primeiros escritos de Nietzsche, é verdade que ele tem uma

força constante em toda a sua obra, de tal forma que

autores como Charles Andler (1958, p. 230) chegam a

afirmar que a afirmação de si é “a primeira virtude” daquilo

que poderia ser chamado de projeto de “moral do futuro

[Moral der Zukunft]” (KSA 12, 2[31], de 1885-1886, p. 78),

um tempo que deve ser preparado e, para o qual, a

educação teria um papel privilegiado.

Bildung como formação superior

Pedagogicamente falando, trata-se de explicitar o

papel da educação no que tange àquilo que Nietzsche

chama de Bildung, já que a sua análise evoca a ideia de que

“a pobreza do espírito pedagógico” (BA, segunda conferência,

p. 67) de sua época levou ao desaparecimento dos “talentos

realmente inventivos” no campo da pedagogia, tida como a

“mais delicada das técnicas que poderia existir numa arte, a

técnica da formação cultural” (BA, segunda conferência, p. 67).

Ou seja, Nietzsche fala da pedagogia como uma técnica de

Bildung, a qual teria o papel de fazer dos estabelecimentos

de ensino não “unicamente um viveiro para a ciência, mas,

sobretudo, o lugar consagrado a toda cultura [Bildung]

nobre e superior” (BA, segunda conferência, p. 81), aquela que

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Leno Francisco Danner (Org.)

renovaria a imagem [Bild] dos ginásios, tal como tentara o

filosofo Friedrich Wolf, citado por Nietzsche nessa

passagem de seu texto. Temos aqui algumas indicações de

como poderíamos entender o conceito de Bildung em

Nietzsche: a formação no sentido de uma “formação

clássica” e “humanista” inspirada no “espírito clássico” da

Grécia e de Roma, que é contrastada ao modelo

educacional moderno, baseado unicamente na instrução, na

erudição e no mero repasse de informações.

A interpretação de Nietzsche a respeito da

Antiguidade clássica passa, no geral, pela ideia de afirmação

do indivíduo: para ele, “os gregos criaram o maior número

de indivíduos (Individuen), - por isso são tão instrutivos

quanto ao homem (Menschen)” (KSA 8, 3 [12], 17), ou seja,

justamente por “possuírem uma tal quantidade de grandes

indivíduos [Einzelnen]” (KSA 8, 5 [14], 43), é que os gregos

foram capazes de compreender e produzir uma unidade de

estilo rara e favorável ao crescimento das forças vitais: ao

contrário, a educação que forma apenas para a erudição,

acaba gerando não filósofos, mas eruditos que consistem

“numa rede misturada de impulsos e excitações muito

variadas, [que são] um metal impuro por excelência” (SE, 6,

p. 191). Nesse sentido, a Bildung parte da afirmação do que

é próprio de cada indivíduo e não de uma predefinição

baseada numa pretensa finalidade moral (baseada, como tal,

numa ideia prévia do homem que, para se efetivar, necessita

da anulação de tudo o que é individual):

Tão logo quisermos determinar a finalidade do

homem, antecipamos um conceito do homem. Porém,

existem apenas indivíduos [Individuen], do conhecido até

agora se pode obter apenas o conceito eliminando o

individual, ou seja, estabelecer a finalidade do homem

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

significa impedir os indivíduos em seu tornar-se

individual e convocá-los a tornar-se universais. Não

deveria, ao contrário, todo indivíduo ser a tentativa de

alcançar um gênero superior ao homem, em virtude de

seus aspectos mais individuais? (KSA 9, 6 [158], 237)

O conceito de Bildung como móbil

pedagógico passa, assim, pela recuperação daquilo que é

individual, ou de um esforço para que o indivíduo se

reconheça como necessário para a constituição da ideia de

homem, cujo recurso, para ser efetivado, não é outro senão

cada indivíduo em particular. A educação, nessa medida,

deveria favorecer o crescimento individual das forças

criativas e, no processo de cultivo dessas forças, constituiria

o caminho para o crescimento cultural de um povo. Por

isso, num outro fragmento da mesma época podemos ler:

“Minha moral seria a de tirar cada vez mais do homem seu

caráter universal e especializá-lo até fazer com que ele

chegasse a um grau incompreensível para os outros (e, com

isso, transformá-lo no objeto de experiências, do espanto,

do ensino para eles)” (KSA 9, 6 [158], 237). O que está em

jogo na Bildung é a capacidade de cada indivíduo formar-se

a si mesmo em seu próprio, tornando-se um objeto de

experiência e mesmo um campo de experimento daquilo

que, mesmo causando espanto ou incompreensão à

primeira vista, traz benefícios quanto ao fortalecimento das

forças da humanidade em geral, repercutindo positivamente

na renovação da cultura. É preciso, por isso, “ter muitas

experiências interiores grandes, e repousar sobre e acima

delas com um olhar espiritual – isso constitui os homens da

cultura, que determinam a categoria de seu povo.” (A, 198).

O que se vê, no entanto, segundo Nietzsche, é a

recriminação dessa formação artística de cada indivíduo

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Leno Francisco Danner (Org.)

naquilo que ele tem de si mesmo, em nome do

estabelecimento de um “ideal” de homem que não é outra

coisa que um homem rebaixado. No mundo grego, ao

contrário, se honrava “o direito dos indivíduos”:

Que o indivíduo estabelecesse seu próprio ideal

e dele derivasse a sua lei, seus amigos e seus direitos –

isso talvez fosse considerado, até então o mais

monstruoso dos equívocos humanos e a idolatria em si

(...) Ser hostil a esse impulso para um ideal próprio: tal

era, então, a lei de toda moralidade. Havia apenas uma

norma: “o homem” – e cada povo acreditava possuir

essa única e derradeira norma. Mas além de si e fora de

si, num remoto sobremundo, era permitido enxergar

uma pluralidade de normas: um deus não era a negação

ou a blasfêmia contra um outro deus! Aí se admitiu, pela

primeira vez, o luxo de haver indivíduos, aí se honrou,

pela primeira vez, o direito dos indivíduos. (GC, 143)

O que Nietzsche quer expressar é que “os preceitos

chamados de ‘morais’ são, na verdade, dirigidos contra os

indivíduos” (A, 108) e como a educação tem um papel

relevante, como vimos, na formação cultural de um povo, é

nela que ele identifica o lugar de maior expressão dessa

perseguição ao que é individual: a educação assume como

papel não só a transmissão dos “preceitos morais” que são

“dirigidos contra os indivíduos”, como expressa, no geral,

apenas o modelo de transmissão de informação que anula o

que é singular em nome de uma pretensa padronização. Ao

contrário, o grande ensinamento da educação deveria ser o

caminho para que cada um se tornasse aquilo que é

(conforme a sugestão do escrito autobiográfico de

Nietzsche, Ecce Homo). Trata-se, pois, de ensinar a auto-

formação e não a padronização, a auto-constituição e não o

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

seguimento da regra da maioria; a singularidade e não a

coletividade. Se a modernidade é a hora da multidão, a

educação deveria transformá-la, a exemplo do que ocorrera

entre os gregos, numa “hora dos indivíduos” (AS, 350).

A Bildung, assim, teria um papel estético: o cultivo

de si passa pela experimentação singular em busca do

embelezamento do caráter. Por isso, ela está ligada ao

problema do estilo: “uma coisa é necessária. – ‘Dar estilo’ a

seu caráter – uma arte grande e rara” (GC, 290). A

educação seria o lugar onde cada indivíduo, pelo cultivo de

si, faria de si mesmo uma obra de arte. Educar-se é

embelezar-se. Eis como é possível, portanto, relacionar a

Bildung à solidão:

Permanecer senhor de nossas quatro virtudes,

da coragem, do discernimento, da simpatia, da solidão.

Pois a solidão é uma virtude, como uma sublime

inclinação e ímpeto de asseio, que adivinha que no

contato com os homens – ‘em sociedade’- as coisas têm

que ocorrer de maneira inevitavelmente suja. Toda

comunidade – de alguma maneira, em algum lugar,

alguma vez – torna comum. (BM, 284).

Ou seja, para Nietzsche, a solidão é uma virtude de

asseio e de higiene que, ao evocar a ideia de limpeza, traz à

tona a prática estética do embelezamento espiritual de cada

indivíduo. A premissa dessa atividade prática é, entretanto,

a limpeza dos ideiais da comunidade, posto que o contato

com a coletividade suja o homem, porque ele passa a

carregar em si elementos, características, ideias e práticas

que não são dele, mas resultado dessa infecção do que é

comum, ou seja, do que não é ele dele mesmo.

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Leno Francisco Danner (Org.)

Solidão como higiene

Falar em uma pedagogia da solidão é, nesses

termos, falar de uma estética de si que tem como premissa

uma higienização do que, na vida social, cada indivíduo

recolhe como sujeira e entulhos alheios. Essa sujeira da

massificação dos indivíduos acaba levando ao adoecimento

de toda cultura, porque enfraquece os indivíduos, os quais

se tornam incapazes de reagir aos obstáculos da vida.

Fracos e doentes, eles se rendem cada vez mais aos pseudo-

remédios oferecidos pela moral, pela religião e outras

formas de “terapia” cujo resultado permanece insuficiente

para “curar”, posto que apenas tratam das consequências e

não das causas. Nietzsche, como médico da cultura, assume

uma tendência contrária: acreditando numa cura radical

através do fortalecimento das forças, trata não da doença

em si mesma, mas das condições de seu enfrentamento. É

nisso que está assentada sua preocupação com a educação:

ela aparece como possibilidade de recuperação da saúde

perdida, para que, afinal, cada indivíduo (para o bem final

das gerações futuras e não necessariamente para o bem da

sociedade atual – eis o tom extemporâneo desses escritos)

possa aceitar, para si, essa verdade vital: “ninguém pode

construir no teu lugar a ponte que te seria preciso tu

mesmo transpor no fluxo da vida – ninguém, exceto tu”

(SE, 1, p. 140). Nietzsche sabe, entretanto, das

dificuldades35 e também das possibilidades de desvio:

“certamente, existem as veredas e as pontes e os

35 “É também uma empresa penosa e perigosa cavar assim em si mesmo e descer à força, pelo caminho mais curto, aos poços do próprio ser. Com que facilidade, então, ele arrisca a se ferir, tão gravemente que nenhum médico poderia curá-lo” (SE, 1, p. 140).

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

semideuses inumeráveis que se oferecerão para te levar para

o outro lado do rio, mas somente na medida em que te

vendesses inteiramente: tu te colocarias como penhor e te

perderias” (SE, 1, p. 140). Estas são as terapias que não

curam, apenas prolongam a doença. Caminhos fáceis, cujo

mote principal, no geral, é a anulação si. O custo dessa

terapia é o penhor de si e a perda de seu caminho próprio.

Nietzsche, ao contrário, pretende que a educação conduza

o homem a esse caminho próprio – a radicalidade dessa

opção leva a tornar irrelevante a finalidade da caminhada:

“Há no mundo um único caminho sobre o qual ninguém,

exceto tu, poderia trilhar. Para onde leva ele? Não

perguntes nada, deves seguir este caminho” (SE, 1, p. 141).

Aliás, a meta desse caminho não é o encontro de um “si

mesmo” fixo e imutável: o homem tem “sete peles” das

quais pode se “despojar setenta vezes das sete peles” (SE,

1, p. 141). Não há um encontro, no final da jornada, com

alguma essência. O que se revela, como “invólucro” do ser,

é o que dá acesso ao que somos: “tudo carrega o

testemunho daquilo que somos, as nossas amizades e os

nossos ódios, o nosso olhar e o estreitar da nossa mão, a

nossa memória e o nosso esquecimento, os nossos livros e

os traços da nossa pena” (SE, 1, p. 141). É esse o “meio”

pelo qual se realiza o nosso “interrogatório essencial”, ou

seja, as nossas ações no mundo revelam o que somos. Por

isso, a terapêutica de Nietzsche aconselha:

Que a jovem alma se volte retrospectivamente

para sua vida e faça a seguinte pergunta: O que tu

verdadeiramente amaste até agora, que coisas te atraíram,

pelo que tu te sentiste dominado e ao mesmo tempo

totalmente cumulado? Faz passar novamente sob teus

olhos a série inteira destes objetos venerados, e talvez

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Leno Francisco Danner (Org.)

eles te revelem, por sua natureza e por sua sucessão, uma

lei, a lei fundamental do teu verdadeiro eu. Compare

estes objetos, observe como eles se completam, crescem,

se superam, se transfiguram mutuamente, como formam

uma escada graduada através da qual até agora te elevaste

até teu eu. Pois tua essência verdadeira não está oculta

no fundo de ti, mas colocada infinitamente acima de ti,

ou pelo menos daquilo que tomas comumente como

sendo teu eu (SE, 1, p. 141).

Eis a tarefa para a qual a solidão é evocada. Eis o

processo pelo qual a solidão se torna uma virtude moral. E

mais ainda: eis o que os verdadeiros educadores devem

possibilitar para os seus estudantes: “Teus verdadeiros

educadores, aqueles que te formarão, te revelam o que são

verdadeiramente o sentido original e a substância

fundamental da tua essência, algo que resiste absolutamente

a qualquer educação e a qualquer formação, qualquer coisa

em todo caso de difícil acesso, como um feixe compacto e

rígido: teus educadores não podem ser outra coisa senão

teus libertadores” (SE, 1, p. 141).

Como libertação, a educação passa a ser uma tarefa

higiênica, de limpeza e fortalecimento da saúde de cada

indivíduo. Ela não pode ser aprisionamento de cada si

mesmo uma essência pura e universal de homem ou de eu.

Como terreno de exercício livre, ela liberta justamente

aquilo que, em primeira instância, “resiste” a ela, aquilo que

não se deixa educar, aquilo que recusa o processo de

domesticação e padronização. A educação deve libertar o

que é singular, próprio e único em cada indivíduo. Educar

passa a ser uma tarefa libertária e uma espécie de toilette:

“extirpação de todas as ervas daninhas, dos dejetos, dos

vermes que querem atacar as tenras sementes das plantas,

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

ela é efusão de luz e calor, o murmúrio amistoso da chuva

noturna” (SE, 1, p. 142). A descrição é de limpeza e é de

cultivo: a educação é tarefa de jardinagem, ou seja, ela

possibilita a criação das condições para que a planta-

homem se desenvolva plenamente.

A imagem da fonte de água aberta à beira do

caminho, presente em A gaia ciência, aforismo 378, é uma

expressão rica de sentidos quando a interpretamos sob essa

perspectiva. Nela Nietzsche afirma que

Nós, pródigos e ricos do espírito, que tais como

fontes abertas ficamos à beira da estranha e a ninguém

impedimos que nos retire água: infelizmente não

sabemos nos defender ao desejar fazê-lo, não podemos

por nada evitar que nos turvem, nos tornem escuros – que

o tempo em que vivemos nos lance o que tem de “mais

temporal”, que os seus imundos pássaros nos joguem

seu excremento, os garotos, a sua tralha, e os exaustos

andarilhos que junto a nós descansam, suas misérias

pequenas e grandes” (GC, 378).

A vida social nos turva, portanto. Torna a nossa

água suja de tal forma que, sem os processos de higiene,

nos tornamos repelentes para novas relações. Como água

suja, nós mesmos passamos a ser um condutor de doenças

de tal forma que, aos poucos, somos rodeados por

indigentes e moribundos. É preciso, portanto, que a

educação favoreça essa virtude da solidão como uma

virtude de autolimpeza, uma capacidade estética de se

tornar belo novamente, para que outras pessoas possam se

aproximar novamente de nós. Essa tarefa, entretanto, não

pode ser feita senão por cada indivíduo: “Mas nós faremos

como sempre fizemos: levamos o que nos lançam para a

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Leno Francisco Danner (Org.)

nossa profundidade – pois nós somos profundos, nós não

esquecemos – e tornamo-nos novamente límpidos” (GC, 378).

Nenhuma outra medida pedagógica pode ser aceita senão

essa: cada um encontrar o seu caminho próprio, o seu

modo de acesso, a sua forma de tornar-se limpo de novo.

Ora, se é esse um tempo de epidemias e de águas sujas, é

preciso lembrar que justamente “em épocas em que os

médicos são mais necessários, na ocasião das grandes

epidemias, é então que eles estão também mais expostos ao

perigo” (SE, 2, p. 146) e não deixar que os educadores e

filósofos sejam também eles contaminados. Manter-se

limpo, passa pela solidão. A profilaxia da solidão passa a ser

uma urgência para que não haja contaminação dos homens

superiores.

Schopenhauer, o verdadeiro mestre

Sendo assim, tornar-se um experimento, passa,

sobretudo, pela capacidade de vivenciar a solidão como

processo higiênico e, mais, de vivenciar em solidão aquilo

que se é como reconquista dessa espécie de ablução daquilo

que acumulamos na vida social. Esse é o exemplo que

Nietzsche vislumbra em Schopenhauer: aquele que foi

sobretudo um solitário e que foi capaz de sacrificar a ideia

de uma felicidade coletiva às opções e vivências mais

próprias. É isso, aliás, que deu integridade à sua filosofia e

o fez o mestre por excelência: Schopenhauer vivia

filosoficamente, ou seja, sua expressão tinha apoio em

vivências, em seu ser próprio. E o fez sem apelo àquela má

consciência possível entre os que recusam a padronização,

pois na solidão uma espécie de culpa ou de remorso, por se

sentir tão estranho ao todo. Ao contrário, a boa consciência

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

de Schopenhauer explicitou o quanto a solidão é a condição

mesma da filosofia, algo não só compatível, mas uma

exigência do ato de filosofar. Na filosofia, a solidão exerce

o papel de presidência.

Schopenhauer é o exemplo daquele educador que

fez a convocação para a solidão ressoar tão firmemente no

seio da cultura que Nietzsche passa a identificá-lo com a

tarefa viva da filosofia: educar o homem para a

autoeducação, aquela que, como vimos, não ocorre pela via

da obediência, mas se efetiva como um “terrível esforço, o

tremendo dever de me educar a mim próprio” (SE, 2, p.

142). Schopenhauer “fala por si mesmo” (SE, 2, p. 147) e,

por se encontrar ele, primeiramente, “no íntimo de si

mesmo” como senhor de sua própria morada36, dono de

uma honestidade e uma serenidade cuja raiz é a alegria

consigo mesmo e a vitória: “no fundo, não há serenidade

senão lá onde há vitória” (SE, 2, p. 149). Honestidade,

serenidade e constância passam a ser os requisitos do

educador. E eles não cultivados senão em sua solidão:

Schopenhauer é, para Nietzsche, “honesto porque fala e

escreve por si mesmo e para si mesmo, sereno porque

venceu pelo pensamento o que há de mais difícil, e

constante porque assim deve ser” (SE, 2, p. 150). É só

assim que o educador passa a educar pelo exemplo – e não

apenas pela palavra ou pela filosofia morta: “exemplos

devem ser dados pela vida real e não unicamente pelos

livros” (SE, 2, p. 150). É preciso que haja, de fato, uma

“vida filosófica’ (SE, 2, p. 150) para que o filósofo seja um

36 “Vivo na minha própria casa, jamais imitei algo de alguém” é a primeira parte da epígrafe de A gaia ciência, condição, portanto, do conhecimento alegre e afirmativo da existência.

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Leno Francisco Danner (Org.)

educador. Eis o que Schopenhauer era, para o Nietzsche de

1872.

Ora, foi justamente como um solitário que

Schopenhauer, contra as tendências de sua época, teria

encontrado, segundo Nietzsche, um caminho para si

próprio e o teria percorrido na solidão: “eis a sua grandeza”

(SE, 3, p. 156) e eis o modo como sua filosofia mesmo

deve ser interpretada: “de maneira individual, unicamente

pelo indivíduo para consigo mesmo, para que se convença

de sua própria miséria e de suas necessidades, de seus

limite, e aprenda a conhecer os remédios e as consolações”

(SE, 3, p. 157). Contra o seu tempo, Schopenhauer se

apresenta como um verdadeiro educador, aquele que põe

um valor para si mesmo e que vive contra a padronização

da cultura: “um destino de solidão é o presente que lhe dão

seus contemporâneos. Onde quer que ele viva, o deserto e

a caverna estão aí” (SE, 3, p. 160). Mas esse combate

empreendido pelo gênio contra o seu tempo é só

aparentemente “destruidor de si mesmo, pois “no seu

tempo, ele combate o que o impede de ser grande, o que

para ele só pode exatamente significar: ser livre e

totalmente si mesmo” (SE, 3, p. 162). A luta do verdadeiro

educador é contra aquela “sujeira” que está nele mesmo e

que é um produto das relações sociais com o seu tempo.

Algo que, aliás, “não é ele próprio”, porque é algo postiço,

acumulado de forma indevida, uma “mistura impura e

confusa de elementos incompatíveis para sempre

inconciliáveis” com a sua identidade própria. Nesse caso,

tanto Schopenhauer quanto os educadores e filósofos em

geral precisam mesmo empreender uma batalha contra si

mesmos em vista daquela higiene trazida pela solidão.

Trata-se de levantar-se contra “esta falsa mãe, vaidosa e

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

indigna” que é a sua época para, no fim, expulsá-la de si

mesmo. Schopenhauer fez isso e o resultado é que “ele

purificou e curou seu ser e se reencontrou na saúde e na

pureza que lhe pertenciam” (SE, 3, p. 162). O que a solidão

de Schopenhauer possibilitou, portanto, não foi outra coisa

que a saúde, a retomada da saúde, aquela limpidez dos

experimentados que, agora novamente, podem se oferecer

como educadores (água límpida que sacia a sede de novos

viajantes). Sua mensagem é clara: ele nos educa contra o

nosso tempo para que possamos conquistar a nós mesmos.

Ele mostrou o caminho. Mas este é o seu caminho. O seu

exemplo vale apenas na medida em que nos convida para

que também nós possamos empreender o nosso próprio

programa de higiene, em busca da cura de nós mesmos.

Quanto à finalidade da educação, esta não deveria

ser outra que “trabalhar para engendrar grandes homens”

(SE, 6, p. 182) em vista da criação de um povo nobre e

saudável. Sobre isso escreve Nietzsche:

Como gostaríamos de aplicar à sociedade e a

seus fins um ensinamento que pudesse ser extraído da

consideração de todas as espécies do reino animal e

vegetal – para elas, somente importa o exemplar

individual superior, o mais incomum, o mais poderoso, o

mais complexo, o mais fecundo -, que prazer não haveria

aí, se os preconceitos enraizados pela educação quanto à

finalidade da sociedade não oferecessem uma pertinaz

permanência! (SE, 6, p. 182).

Não através do nivelamento rebaixado da maioria,

na “massa de exemplares e ou na sua prosperidade” (SE, 6,

p. 182), portanto, que uma sociedade se eleva. E não

deveria ser esse o processo pelo qual a educação trabalha:

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Leno Francisco Danner (Org.)

não pela maioria, mas pelas “existências aparentemente

dispersas e contingentes, que surgem aqui e ali na ocasião

de circunstâncias favoráveis” (SE, 6, p. 182). Tendo

tomado consciência dessa finalidade, a sociedade deveria

buscar as “circunstâncias favoráveis” para que esses

exemplares nobres floresçam, fazendo com que vivam os

exemplares mais raros e preciosos. Esse seria, portanto, o

objetivo da educação, como lugar privilegiado da cultura:

criar as condições favoráveis para que os espécimes

superiores progridam e elevem a humanidade a um patamar

cada vez maior. A educação tem o papel de “implantar e

cultivar num jovem” um tal estado de espírito que o torne

um ser singular ou um expediente a serviço da nobreza da

espécie humana e não, como agora se faz, “formar o maior

número possível de homens correntes, no sentido de que se

fala de moeda corrente” (SE, 6, p. 186). Nietzsche critica a

“educação rápida, para se tornar logo um ser que ganha

dinheiro” na qual a maior atribuição das instituições

educativas é cultivar o indivíduo conformado com o

mercado e com o Estado, moldado ao gosto do “interesse

do lucro geral e do comércio mundial” (SE, 6, p. 186).

Considerações Finais

A educação representaria, para Nietzsche, uma

“vontade consciente” (SE, 6, p. 185), ou seja, um esforço

rigoroso e uma disciplina austera para a formação de um

verdadeiro mestre – e não de um “ser híbrido” de erudito,

funcionário ou especulador, que Nietzsche chama de

filisteu da cultura (SE, 6, p. 198). Trata-se de recusar o

aplauso do seu tempo e optar por um caminho que é o

“mais difícil, mais tortuoso, mais escarpado” (SE, 6, p. 199)

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

que cultiva o talento dos homens nobres e raros. Essa

disciplina (como uma verdadeira Bildung) inclui a garantia da

liberdade viril do caráter, conhecimento precoce dos

homens, educação que não visa à formação de um erudito,

ausência de qualquer estreiteza patriótica, de qualquer

obrigação de ganhar seu pão, de obediência ao Estado”

(SE, 8, p. 207). Em resumo, a educação deve educar para a

liberdade e os meios que devem ser utilizados são a solidão,

“o exercício dos valores invertidos; a distância como pathos;

a livre consciência diante de tudo que é hoje em dia menos

estimado e o mais repreensível” (KSA 13, 9 [153] 85-86).

Esses elementos, como logo se denota, estão intimamente

ligados com o exercício de uma educação voltada para o

cultivo do indivíduo, como antídoto contra a igualação e a

vulgarização da cultura, tão frequentes em nossos tempos.

Da educação se espera o cultivo de uma

raça [que tenha] sua própria esfera de vida, um excedente

de força para a beleza, a coragem, a cultura, as boas

maneiras até no que já de mais espiritual; uma raça

afirmativa que pode atribuir-se qualquer grande luxo...

poderosa o bastante para não ter necessidade de

nenhuma tirania do imperativo da virtude, nem da

parcimônia, nem do pedantismo, para além do bem e do

mal: formando uma estufa de plantas raras e singulares.

(KSA 13, 9 [153] 85-86)

Não há outro modo de fazê-lo senão cultivando a

solidão como antídoto contra o instinto gregário, como

higiene diante das sujeiras da vida social e como cultivo dos

grandes exemplares da espécie. A educação deve ter em

vista uma “cultura da exceção, da experimentação, do risco,

do matiz – uma cultura de estufa para as plantas

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Leno Francisco Danner (Org.)

excepcionais” (XIV, FP 16 [6] 238). Como estufa para a

raridade, a pedagogia da solidão é a ciência do ensino para

o “grande amor” do homem em relação a si mesmo – e que

aparece como possibilidade de resposta aos problemas mais

prementes da cultura: “todos os grandes problemas exigem

o grande amor, e deste são capazes somente os espíritos

fortes, redondos, seguros, que se apoiam firmemente em si

mesmos” (GC, 345).

REFERÊNCIAS

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précurseurs de Nietzsche. Paris: Gallimard, 1958.

NIETZSCHE, Friedrich. Escritos sobre Educação. Tradução,

apresentaçãoo e notas de Noéli Correia de Melo Sobrinho.

Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2003.

_____. A Gaia Ciência. Trad. de Paulo César de Souza. São

Paulo: Cia. das Letras, 2002.

_____. Genealogia da Moral. Uma polêmica. Trad. de Paulo

César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2002.

_____. Humano, Demasiado Humano. Um livro para espíritos

livres. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das

Letras, 2000.

_____. Sämtliche Werke: Kritische Studienausgabe in 15 Bänden.

(KSA) Hrsg. Giorgio Colli und Mazzino Montinari.

Berlin/New York: DTV & Walter de Gruyter, 1980.

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104

Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

OLIVEIRA, Jelson. Para uma ética da amizade em Friedrich

Nietzsche. Rio de Janeiro: 7Letras, 2011.

_____. A solidão como virtude moral em Nietzsche. Curitiba:

Champagnat, 2010. (Pensamento contemporâneo, 5).

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Leno Francisco Danner (Org.)

Michel Foucault: Subjetividade e

Educação

Fernando Danner37

Neste trabalho, eu pretendo analisar a relação entre

subjetividade e educação no pensamento de Foucault. O

ponto de partida adotado é uma análise dos três modos de

objetivação do sujeito – saber, poder, ética –, tal como eles

aparecem nos diferentes escritos de Foucault. O meu

objetivo, de um lado, é mostrar que, para Foucault, há uma

relação intrínseca entre o saber e o poder e, inversamente,

entre o poder e o saber, relação essa que dá origem ao

sujeito moderno; também procuro mostrar que, como

mostra Foucault, existe um conjunto de instituições sociais

destinadas ao controle e à formação de indivíduos dóceis e

úteis à sociedade então em desenvolvimento; de outro lado,

ao analisar os cursos ministrados no Collège de France,

Segurança, Território, População (1977-1978) e Nascimento da

Biopolítica (1978-1979), argumento que há uma invasão da

racionalidade econômica a outros âmbitos da vida humana

que não o âmbito meramente econômico e que os

37 Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Professor da Universidade Federal de Rondônia (UNIR). E-mail: [email protected].

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

indivíduos são cada vez mais entendidos como indivíduos

econômicos e produtivos que respondem às exigências que

são postas pelo mercado – que é entendido como o

formador da verdade no mundo contemporâneo. Por fim,

procuro mostrar que uma análise filosófico-crítica dos

diferentes tipos de racionalidade levados a cabo por nossas

instituições sociais, nos permite entender o modo como

nos constituímos como sujeitos modernos, como também

nos permite combatermos os abusos do poder

característicos de nossas sociedades.

A ontologia do presente

A genealogia da modernidade de Foucault é uma

crítica do poder que combina, ao mesmo tempo, sua leitura

da resposta kantiana ao Aufklärung com sua apropriação da

“filosofia radical” de Nietzsche. Foucault concebe o

esclarecimento (Aufklärung) não como “um período

passado da história das idéias”, mas como uma questão

filosófica que “define um eterno desafio, uma tarefa crítica,

um problema ético-político para nossa época”38. Com

efeito, Foucault vê na questão lançada por Kant no texto

“Was ist Aufklärung?” (1784) a definição de um tipo de

filosofia que problematiza a realidade em que ela mesma

está inserida e que ele próprio havia tentado praticar em

seus diferentes livros39. Nesse texto, Foucault vê ainda a

origem de uma questão característica da filosofia moderna

38 OLIVEIRA, Nythamar Fernandes de. On The Genealogy of Modernity: Foucault’s Social Philosophy”, p. 132.

39 Cf.: SENELLART, Michel. “A Crítica da Razão Governamental em Michel Foucault”, p. 04.

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Leno Francisco Danner (Org.)

(que havia sido parte da reflexão filosófica de pensadores

como Hegel, Weber, Nietzsche, Horkheimer e Habermas) e

que ela própria (a filosofia moderna) não conseguiu

solucionar, a saber: a modernidade como problema, como

interrogação filosófica: “qual é, então, esse acontecimento que

se chama Aufklärung e que determinou, pelo menos em

parte, o que somos, pensamos e fazemos hoje?”40.

Na perspectiva de Foucault, a atitude crítica

representaria não mais em uma interrogação acerca dos

limites do conhecimento (tal como pensava Kant), mas

numa interrogação crítica das diferentes racionalidades que

nos conduzem. A crítica mostraria, segundo nosso autor,

“as conexões entre as presunções ingênuas da ciência, de

um lado, e as formas de dominação características da

sociedade contemporânea, de outro lado”41. O

esclarecimento, entendido como atitude crítica, nos permite

“analisar os mecanismos que, em uma sociedade, produzem

o saber real, com os efeitos de poder que dele resultam”42.

Em outras palavras, a atitude crítica deve analisar o elo

existente entre os mecanismos de poder e de coerção, de

um lado, e a constituição de um determinado campo de

saber (conhecimento), de outro. Aos olhos de Foucault, é

preciso compreender o feixe de relações que ligam, de um

lado ao outro, o poder, o saber e o sujeito. Com relação a

isso, Foucault afirma: “[...] a crítica é o movimento pelo

qual o sujeito dá-se o direito de questionar a verdade em

40 FOUCAULT, Michel. “O que são as Luzes?”, p. 335 (Ditos & Escritos V).

41 FOUCAULT, Michel. “What is Critique?”, p. 51.

42 SENELLART, Michel. “A Crítica da Razão Governamental em Michel Foucault”, p. 06.

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

seus efeitos de poder e questionar o poder em seus

discursos de verdade”43.

De fato, seus escritos procuram realizar uma análise

histórico-filosófica das diferentes práticas de subjetivação

dos indivíduos no Ocidente. Em uma entrevista concedida

a H. Dreyfus e P. Rabinow, no ano de 1982, intitulada O

Sujeito e o Poder, Foucault resumiu do seguinte modo o que

havia constituído o objeto de sua investigação. Dizia ele:

Eu gostaria de dizer, antes de mais nada,

qual foi o objeto do meu trabalho nos últimos vinte

anos. Não foi analisar o fenômeno do poder nem

elaborar os fundamentos de tal análise. Meu

objetivo, ao contrário, foi criar uma história dos

diferentes modos pelas quais, em nossa cultura, os

seres humanos tornaram-se sujeitos. Meu trabalho

lidou com três modos de objetivação que

transformam os seres humanos em sujeitos44.

Os três modos de objetivação por ele propostos

são: a arqueologia do saber, a genealogia do poder e a

genealogia da ética. A seguir, procuro caracterizar

brevemente o objeto de estudo de cada um deles.

No domínio da arqueologia do saber, a ênfase recai

no estudo dos modos como nos tornamos, na

Modernidade, o que somos como sujeitos de conhecimento

(produtores de saber) e, ao mesmo tempo, como

assujeitados ao próprio conhecimento (produtos do

próprio saber). N’As Palavras e as Coisas (1966), por

exemplo, Foucault procurou caracterizar os diferentes

43 FOUCAULT, Michel. “What is Critique?”, p. 47.

44 FOUCAULT, Michel. “ O Sujeito e o Poder”, p. 231.

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Leno Francisco Danner (Org.)

modos de investigação que instituíram, nos últimos três

séculos, essa realidade nova – que é o sujeito moderno –

como um objeto de discursos (filologia), como um objeto

produtivo (economia política) ou ainda como um objeto

que habita em um mundo natural ou biológico (biologia)45.

No domínio da genealogia do poder, Foucault

procura entender os processos pelos quais os indivíduos se

constituem como sujeitos no interior de instituições como a

prisão, a escola, o quartel, a fábrica etc. (instituições essas

que ele chamou de instituições de seqüestro). Nesse sentido,

Foucault está interessado em estudar as transformações da

racionalidade e das práticas de exercício do poder ocorridas

na passagem do Antigo Regime para a Modernidade. Em

Vigiar e Punir (1975), por exemplo, Foucault demonstrou

que o poder moderno se exerce mais por mecanismos

normalizadores e de vigilância (dispositivo panóptico) do

que propriamente por meio da violência física (suplícios),

de modo que é muito mais produtivo e econômico vigiar os

indivíduos do que puni-los. Além disso, nessa obra,

Foucault defendeu a tese de que o indivíduo moderno é um

produto da disciplina: “o indivíduo é, sem dúvida, o átomo

fictício de uma representação ‘ideológica da sociedade’; mas

é também uma realidade fabricada por essa tecnologia

específica de poder que se chama disciplina”. Com essa

afirmação, Foucault pôde defender a ideia de que o poder

moderno não age exclusivamente de forma negativa, por

meio de mecanismos repressores, mas que “ele produz; ele

produz realidade; produz campos de objetos e rituais de

45 VEIGA-NETO, Alfredo. Foucault e a Educação, p. 52.

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

verdade. O indivíduo e o conhecimento que dele se pode

ter se originam nessa produção”46.

No domínio da genealogia da ética, Foucault volta

sua atenção para a questão da sexualidade, tal como ela era

trabalhada no mundo greco-romano. Interessa-lhe,

sobretudo, problematizar os modos como nos

subjetivamos como seres de desejo. Trata-se de saber por

que, na modernidade, a sexualidade é tratada como uma

questão moral. N’A Vontade de Saber (1976), Foucault

argumentou que, ao contrário de uma repressão em torno

da sexualidade, o que houve, na verdade, foi uma incitação

discursiva em torno dela. O cristianismo, por intermédio do

sacramento da confissão, trabalha a conduta sexual dos

indivíduos como algo a ser dito, decifrado. Portanto, o sexo

é a verdade íntima, nosso segredo escondido, que deve ser

confessado, a fim de que a verdade sobre o indivíduo possa

ser alcançada. Diz Foucault: “A partir do cristianismo, [...] o

Ocidente não parou de dizer ‘para saber quem és, conheças

o teu sexo’. O sexo sempre foi o núcleo onde se aloja,

juntamente com o devir de nossa espécie, nossa ‘verdade’

de sujeito humano”47. Foucault se volta ao mundo greco-

romano e se interroga sobre o porquê de a sexualidade ter

se tornado um objeto de preocupação moral. Pelo estudo

das práticas de si (cultura de si) da cultura antiga, Foucault

questionou a maneira pela qual os indivíduos começaram a

problematizar sua própria conduta e a si mesmos como

sujeitos éticos.

Feita essa apresentação dos três domínios de

investigação de Foucault, passo à problematização dos

46 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir, p. 161.

47 FOUCAULT, Michel. “Sobre a História da Sexualidade”, p. 229.

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Leno Francisco Danner (Org.)

cursos ministrados no Collège de France, intitulados Segurança,

Território, População (1977-1978) e Nascimento da Biopolítica

(1978-1979), principalmente no que se refere à genealogia

da governamentalidade e ao problema do liberalismo e do

neoliberalismo. O meu argumento central é o de que, (i)

com o liberalismo e, depois, com o neoliberalismo, há uma

invasão da racionalidade econômica (mercado) em outras

esferas que não meramente a do mercado, mas que se

constituem como esferas características da vida humana

detentoras de uma dinâmica não-econômica, e (ii) o

indivíduo começa a ser entendido essencialmente como

homo oeconomicus, isto é, como indivíduo econômico e

produtivo que responde às exigências que são colocadas

pelo mercado capitalista.

Biopolítica, Governamentalidade e (Neo)liberalismo

Como dissemos acima, nos cursos de 1977 a 1979,

intitulados, respectivamente, Segurança, Território, População e

Nascimento da Biopolítica, Foucault dedicou-se ao estudo da

“genealogia do Estado moderno”. Duas estratégias de

investigação são adotadas por ele para analisar essa

problemática geral: a primeira delas é ampliar o conceito de

biopolítica, articulando-o com aquilo que ele chamou de

“racionalidade governamental” ou “governamentalidade”; a

segunda delas é estudar a articulação da biopolítica com o

liberalismo e como o neoliberalismo (Ordo-liberalismo alemão

e o neoliberalismo da Escola de Chicago), que, segundo ele,

foram o quadro onde se desenvolveram e ganharam

importância todos esses problemas relacionados à vida das

populações. O objetivo de sua investigação, nesse sentido,

é colocar em evidência os “tipos de racionalidade que

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

envolvem conjuntos de procedimentos, mecanismos,

táticas, saberes, técnicas e instrumentos destinados a dirigir

a conduta dos homens”48.

Creio ser necessário um breve comentário acerca do

conceito de biopolítica para melhor entendermos o

problema da governamentalidade, do liberalismo e do

neoliberalismo. Em termos metodológicos, o conceito de

biopolítica (ou biopoder) surgiu, na filosofia de Foucault, na

segunda metade dos anos 70, demarcando certo

deslocamento em torno de suas análises de uma genealogia

dos micropoderes disciplinares, que haviam sido

desenvolvidas na primeira metade dos anos de 1970. Em

sua obra Vigiar e Punir, publicada 1975, Foucault definiu as

disciplinas como os “métodos que permitem o controle

minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição

constante de suas forças e que lhes impõem uma relação de

docilidade-utilidade”49. Como dissemos anteriormente, a

tese de Foucault é que existe um conjunto de instituições (a

prisão, a escola, o quartel, a fábrica, o hospício) que

normalizam os comportamentos dos indivíduos,

disciplinam seus corpos, aperfeiçoam seus gestos, e que,

simultaneamente, formulam um conjunto de

saberes/discursos científicos (a medicina, a psicologia, a

psiquiatria, a criminologia etc.) e de poderes destinados ao

controle individual e social. Foucault argumenta que, na

Modernidade, não ocorre uma separação entre poder e

saber; ao contrário, o exercício do poder “cria objetos de

saber, os faz emergir, acumula informações, as utiliza”; o

48 GADELHA, Sylvio. Biopolítica, Governamentalidade e Educação, p. 120.

49 FOUCAUL, Michel. Vigiar e Punir, p. 118.

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Leno Francisco Danner (Org.)

saber, por sua vez, “engendra efeitos de poder”50. O

filósofo francês chega a afirmar que “não há relação de

poder sem a constituição correlativa de um campo de saber,

nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo

tempo relações de poder”51. Além disso, Foucault pretende

mostrar que é incorreto perceber o poder “como um

conjunto de instituições e aparelhos garantidores da

sujeição dos indivíduos em um Estado determinado” ou

“como um modo de sujeição que, por oposição à violência,

tenha a forma da regra”, nem deve ser compreendido, em

suma, como “um sistema geral de dominação exercida por

um elemento ou grupo sobre o outro e cujos efeitos, por

derivações sucessivas, atravessem o corpo social inteiro”52.

Com efeito, na perspectiva de Foucault, “o poder não é

uma instituição e nem uma estrutura, não é uma certa

potência de que alguns sejam dotados: é o nome dado a uma

situação estratégica complexa em uma determinada sociedade”53.

O termo biopolítica representa aquilo “que faz com

que a vida e seus mecanismos entrem no domínio dos

cálculos explícitos do poder, e faz do poder-saber um

agente de transformação da vida humana”54. Dito de outro

modo: a biopolítica se constitui como “uma maneira de

racionalizar os problemas postos à prática governamental

pelos fenômenos próprios a um conjunto de indivíduos

50 FOUCAULT, Michel. “Entrevista sobre a Prisão: O Livro e seu Método”, p. 172.

51 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir, p. 28-29.

52 FOUCAULT, Michel. A Vontade de Saber, p. 102.

53 FOUCAULT, Michel. A Vontade de Saber, p. 103.

54 FOUCAULT, Michel. A Vontade de Saber, p. 104.

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114

Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

constituídos em população”55. A emergência da biopolítica

faz com que o poder de soberania seja progressivamente

substituído por um poder que tem como função maior

gerir a vida, aumentar suas possibilidades, torná-la mais

sadia etc. Desse modo, os processos relacionados à vida das

populações começam a ser levados em conta por

mecanismos normalizadores de poder e de saber que

tentam controlá-los e, eventualmente, modificá-los. Diz

Foucault:

O homem ocidental aprende pouco a

pouco o que é ser uma espécie viva num mundo

vivo, ter um corpo, condições de existência,

probabilidade de vida, saúde individual e coletiva,

forças que se podem modificar, e um espaço em

que se pode reparti-las de modo ótimo. Pela

primeira vez na história, sem dúvida, o biológico

reflete no político; o fato de viver não é mais esse

sustentáculo inacessível que só emerge de tempos

em tempos, no caso da morte e de sua fatalidade:

cai, em parte, no campo de controle do saber e de

intervenções do poder56.

Nesse sentido, Foucault situa a biopolítica no ponto

de emergência da população, a um só tempo, como

problema de governo e como problema científico. Além

disso, ele demonstra que a biopolítica se exerce por meio

de mecanismos reguladores, levados a efeito por um amplo

conjunto de instituições sociais. A norma se coloca entre o

55 BONNAFOUS-BOUCHER, Maria. Le Libéralisme Dans La Pensée de Michel Foucault: Un Libéralisme Sans Liberté, p.52.

56 FOUCAULT, Michel. A Vontade de Saber, p. 155.

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Leno Francisco Danner (Org.)

elemento disciplinar e o elemento regulador, entre o corpo

e a população. Foucault nos mostra que, a partir do século

XIX, observamos a consolidação de uma “sociedade de

normalização”, na qual as disciplinas e a biopolítica passam

a se constituir nos dois elementos fundamentais de

socialização e de subjetivação.

Portanto, Foucault argumentou que o poder sobre a

vida se desenvolveu a partir desses dois pólos. O primeiro

deles, centrado no corpo-máquina, é uma técnica de poder

que torna possível o treinamento e o controle dos

indivíduos no interior de instituições determinadas, como a

escola, o quartel, a fábrica, a prisão etc. – a esse tipo de

poder Foucault chamou de disciplina (ou anátomo-política do

corpo). O segundo deles opera no nível do corpo-espécie, nos

processos biológicos da população (saúde, natalidade,

morbidade, expectativa de vida etc.) – aquilo que Foucault

definiu como a biopolítica da espécie humana. Nikolas Rose

definiu da seguinte forma a especificidade de cada um dos

tipos de poder: enquanto “a tecnologia da disciplina

engloba técnicas de vigilância individual e adestramento, o

biopoder envolve técnicas de vigilância de massa, tais como

o censo, e de controle de massas, tais como as campanhas

de saúde”57.

No curso Segurança, Território, População (1977-1978),

Foucault cria o conceito de governamentalidade como grade de

análise histórica para o entendimento das diferentes artes

de governo. O seu objetivo é apreender e explorar essa

conexão interna entre o sujeito e o poder, ou, se quisermos,

entre as técnicas de si e as técnicas de dominação. Portanto,

57 ROSE, Nikolas. The Politics of Life Itself: Biomedicine, Power, and Subjectivity in the Twenty-First Century, p. 43.

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116

Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

a noção de governamentalidade de Foucault envolve um

duplo aspecto: (i) a ligação semântica entre governo

(gouverner) e modos de pensamento (mentalité), que permitem

a Foucault defender a tese de que é impossível estudar as

tecnologias de poder próprias de nossa modernidade

política sem uma análise profunda da racionalidade política

implícitas a elas; e (ii) Foucault usa a noção de governo para

indicar a ligação entre as formas de exercício do poder e os

processos de subjetivação, o que nos remete a outra tese

foucaultiana de que há uma ligação intrínseca entre política e

conhecimento/saber e a formação da subjetividade.

O termo governamentalidade designa, de acordo

com Foucault, uma forma de relação de poder, entendido

em termos de “condução da conduta”, ou seja, os

procedimentos de poder e de saber utilizados pelas

diferentes artes de governo para determinar padrões de

comportamentos individuais e coletivos, cujo objetivo

consiste em controlar e manipular sua conduta e sua

própria vida. Além disso, com esse termo, Foucault quis

demonstrar a passagem da noção de governo dos homens

na antiguidade até o seu sentido moderno. Este termo

designa três coisas:

a) O conjunto formado por instituições,

procedimentos, análises, reflexões, os cálculos e as

táticas que permitem o exercício desta muito

específica – embora complexa – forma de poder,

que tem como seu alvo a população, como

principal forma de conhecimento a economia

política e, como seus instrumentos técnicos

essenciais, os aparatos de segurança. b) A tendência

que, por um longo período e em todo o Ocidente,

tem firmemente deixado, além disso, sua primazia

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117

Leno Francisco Danner (Org.)

em relação a todas as outras formas (soberania,

disciplina etc.) deste tipo de poder que poderia ser

denominado governo, resultando, de um lado, na

formação de um amplo conjunto de aparatos

governamentais específicos e, de outro lado, no

desenvolvimento de um amplo complexo de

saberes (savoirs). c) O processo, ou, melhor ainda, o

resultado do processo, através do qual o Estado de

justiça da Idade Média, transformado no Estado

administrativo durante os séculos XV e XVI,

gradualmente se torna “governamentalizado”58.

A governamentalidade estatal moderna, nesse

sentido, engloba todo um conjunto de aparatos

administrativos e governamentais, bem como um complexo

de saberes destinados ao controle tanto dos processos

individuais como dos processos coletivos (populacionais).

Ora, de acordo com Foucault, o Estado moderno congrega

técnicas do poder pastoral e da doutrina da razão de

Estado, ou seja, ele é entendido em sua dinâmica ao mesmo

tempo individualizante e totalizante. Foucault argumenta que a

racionalização dos fenômenos individuais e coletivos

constitui o centro de reflexão da racionalidade liberal,

particularmente em um momento de consolidação e de

desenvolvimento do capitalismo industrial.

Durante os anos de 1978-1979, no curso Nascimento

da Biopolítica, Foucault se dedicou a estudar as formas

liberais e neoliberais de governamentalidade. Logo no início

do curso, Foucault deixa claro “que a análise da biopolítica

só poderá ser feita quando se compreender o regime geral

dessa razão governamental de que lhes falo [...] que é o

58 FOUCAULT, Michel. Governmentality, p. 102-103.

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

liberalismo”. Não vou retomar, neste trabalho, todos os

elementos constitutivos da análise de Foucault. Gostaria de

chamar atenção para dois ou três elementos que considero

fundamentais de sua análise. O primeiro deles é que, na

visão de Foucault, o liberalismo não pode ser analisado

exclusivamente como uma teoria econômica ou jurídica da

sociedade, nem como uma ideologia: o liberalismo é,

segundo ele, uma racionalidade política, uma prática refletida

de governo. Por isso, o modo de racionalização liberal

obedece a uma “regra de economia máxima”, no sentido de

que se interroga sobre o fato de se governar não seria mais

oneroso do que não governar59. O liberalismo, nesse

sentido, deve ser visto como um esforço permanente de

autolimitação da prática governamental. Além disso,

conforme mostraram as análises de Foucault, a

racionalidade econômica do liberalismo extrapolaria a

esfera da economia, abarcando também a esfera da política

e mesmo outras esferas da vida humana (como, por

exemplo, a família, a educação, a criminalidade etc.).

Portanto, partindo da tese da crescente intromissão da

racionalidade econômica nos outros âmbitos da vida,

podemos caracterizar o neoliberalismo como uma prática

biopolítica estratégica cuja dinâmica aponta para a

centralidade da gestão permanente daqueles problemas que

são próprios da sociedade – a saber, a saúde, a higiene, a

educação, o trabalho, a preocupação com a engenharia

genética etc. – a partir dos critérios da racionalidade

econômica. A gestão permanente da vida, essa é a exigência

básica dessa intromissão da racionalidade econômica nos

59 SENELLART, Michel. A Crítica da Razão Política em Michel Foucault, p. 08.

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Leno Francisco Danner (Org.)

outros âmbitos da vida, na medida em que não mais a

esfera do mercado é suficiente para garantir a estabilidade

deste, senão que as esferas circunvizinhas passam a ser

fundamentais – pensemos no problema da educação e do

controle da criminalidade – para a maximização dos

processos produtivos.

O segundo elemento da análise de Foucault que

gostaria de destacar é que o mercado, no mundo

contemporâneo, é entendido como o grande formador da

verdade, ou seja, ele torna-se o princípio regulador não só

da economia, mas também da sociedade como um todo. E

o indivíduo, justamente por essa centralidade assumida pelo

mercado em nossas sociedades, começa a ser definido

como homo oeconomicus, isto é, como um indivíduo

competitivo e produtivo que responde às exigências do

mercado capitalista. A extensão generalizada da

racionalidade econômica a outros âmbitos da vida humana

leva correlatamente à extensão do modelo do homo

oeconomicus a todos os âmbitos da vida, de modo que os

processos de subjetivação e de socialização enfeixados nas

mais diversas instituições sociais começam a se regular por

esse modelo paradigmático que é o homo oeconomicus e a

racionalidade que o molda (racionalidade econômica).

Nesse sentido, a competição não pode ser entendida apenas

como um princípio econômico, senão que, no contexto das

sociedades contemporâneas, deve também ser vista como

um princípio normativo característico de outras práticas

sociais, bem como um princípio fundamental da

subjetivação em nossa cultura (um exemplo disso é a

educação para a concorrência). Portanto, a extensão

generalizada, no contexto do neoliberalismo, da

racionalidade econômica a outros âmbitos da vida da

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120

Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

humana leva correlatamente a extensão do homo oeconomicus

a todos os outros âmbitos da vida, de modo que os

processos de socialização e de subjetivação passam a ser

legitimados por esse elemento paradigmático que é, de fato,

o homo oeconomicus.

Conclusão

Neste trabalho, procurei mostrar que, para

Foucault, os indivíduos são o resultado de toda uma

tecnologia de poder e saber (disciplinas) que são

característicos de nossa modernidade. As diferentes

instituições sociais – e a escola é uma delas (talvez a

principal) – comportam todo um conjunto de saberes e de

poderes destinados ao controle e à normalização da

conduta dos indivíduos e da sociedade como um todo.

Com o liberalismo e, depois, com o neoliberalismo,

justamente com o processo que levou à progressiva invasão

da racionalidade econômica (mercado) a outros âmbitos da

vida humana que não o âmbito meramente econômico, o

indivíduo neoliberal é entendido como um homo oeconomicus,

indivíduo competitivo e produtivo que responde às

exigências do mercado capitalista. Por fim, tentei mostrar

que a crítica foucaultiana da racionalidade política e da

racionalidade presente em nossas instituições sociais nos

permite entender o modo como nos constituímos como

sujeitos, bem como o papel que essa racionalidade

desempenha em nossas sociedades. Em outras palavras, o

objeto da crítica é interrogar o processo de “racionalização

da gestão do indivíduo” levado a cabo na modernidade;

trata-se de uma crítica que se interroga pela própria

natureza dessa racionalidade e pelas condições atuais de

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Leno Francisco Danner (Org.)

existência dessa mesma racionalidade, combatendo os

abusos do poder que são cometidos, quase sempre “em

nome da razão”, nas instituições e no interior da

racionalidade política moderna, e por meio delas. Por isso,

nas palavras de Foucault, o papel da filosofia, desde Kant,

“foi o de impedir a razão de ultrapassar os limites do que é

dado na experiência; mas, desde essa época – quer dizer,

com o desenvolvimento dos Estados modernos e a

organização da sociedade política –, o papel da filosofia foi

também o de vigiar os abusos do poder da racionalidade

política, o que lhe dá uma esperança de vida bastante

promissora”60.

Bibliografia

BONNAFOUS-BOUCHER, Maria. Le Libéralisme Dans La

Pensée de Michel Foucault: Un Libéralisme Sans Liberté. Paris:

L’Harmattan, 2001.

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124

Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

Ensino de filosofia

e cultura amazônica:

Uma apologia aos

saberes periféricos

Estevão Rafael Fernandes61

Este texto parte de uma pergunta relativamente

simples: é possível a produção de conhecimento a partir da

periferia? Sendo mais específico, há alguma contribuição

original a ser dada pelo que se faz na Amazônia? Nossa

perspectiva será a de que o conhecimento pode sim ser

produzido, desde que não apesar da periferia, mas a partir

dela. Nesse sentido, nosso desafio será o de tentar

problematizar a própria noção de periferia e de provocar,

no sentido analítico do termo, a reflexão sobre quais as

eventuais implicações de se produzir conhecimento na

61 Antropólogo, professor no Departamento de Ciências Sociais da

Universidade Federal de Rondônia. Doutorando em Ciências Sociais no

Centro de Pesquisa e Pós-Graduação sobre as Américas da

Universidade de Brasília (Ceppac/UnB). E-mail para contato:

[email protected]. Agradeço desde já aos autores pelo convite para

integrar esta coletânea.

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Leno Francisco Danner (Org.)

Amazônia – em especial se tomarmos em conta as

especificidades do conhecimento filosófico.

Isso posto, confesso que haja uma razão em

particular pela qual aprecio escrever textos para coletâneas:

elas nos permitem sair um pouco do modelo rígido de

redação imposto pelas revistas acadêmicas. Nada contra, de

verdade: cada vez mais critérios de avaliação rígidos são

impostos a revistas, programas de pós-graduação, cursos

universitários e eventos, para garantir o bom progresso

científico. Afinal, o universo acadêmico seria uma bagunça

sem esses critérios, e o conhecimento seria impossível de

ser sistematizado, visando seu acúmulo e gradativo

desenvolvimento. Será?

Gosto de pensar, com base em algumas leituras,

que uma ciência à la patuscada, com todas as vantagens que

as pândegas trazem, é mais útil (e mais que nunca,

necessária). Penso, sinceramente, que ao levarmos a

produção de conhecimento da forma como vem sendo

estabelecida no país tão a sério, estaremos legitimando

instrumentos de poder e de dominação. Conhecimento é

uma das coisas que pretendo discutir aqui, não é algo que

se produza na quinta-essência. Ele também é uma

produção cultural e socialmente construída e legitimada.

Não se pode mais, aos bons leitores de Bourdieu, Sahlins e

Latour, dizer simplesmente que cientistas buscam a

verdade.

Subalternos vs. Periféricos

Dessa maneira, inicio este texto com (pasme-se),

uma postagem recente em meu perfil em uma rede social,

repostado em meu blog pessoal, após uma viagem a um

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126

Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

evento em Manaus. A proposta do evento era a de discutir

a produção sociológica na Amazônia, mas, ao longo do

evento, o que se notava era que apenas reproduzíamos, de

forma meio acrítica em nossas perguntas, os termos que se

adequavam à produção acadêmico-científica do Centro-Sul

(legítima e reconhecida). A postagem, com o sugestivo

título de “Subalternos sim, periféricos, nunca!”, dizia:

Pergunto-me se não é a hora de as

universidades amazônicas (e imagino que as do

Nordeste, idem) unirem-se em torno de uma

agenda comum de saberes não colonizados, com

uma perspectiva própria de pesquisa em torno de

temas que dialoguem com suas próprias

diversidades internas, ainda que à luz de conceitos e

métodos do mainstream. Nossas alteridades, nossos

saberes, nossas alternativas, nossas temporalidades,

nossas espacialidades, acabam tendo que moldar-se

a um esquema de análise que cabe muito bem na

cabeça de avaliadores externos, mas, de certa

forma, acabam encapsulando nossos desafios em

perguntas que, no fim das contas, podem não ser as

mais adequadas. Se não há espaço para diálogo (e

não há) na academia “desenvolvida”, tomemos,

pois, as rédeas de nossos próprios processos de

formação de conhecimento e dialoguemos com

quem, afinal, quer nos ouvir...

Sim, o texto acima é bastante pretensioso, mas peço

ao leitor que seja indulgente nesse sentido e que sua

atenção recaia sobre alguns aspectos que, no afã de

desabafar aos meus dois ou três leitores do blog minhas

angústias, deixei escapar.

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Leno Francisco Danner (Org.)

Um deles certamente é a noção de “campo”,

desenvolvida por Pierre Bourdieu- ao leitor mais

interessado no tema, a sugestão é que busque um livro

chamado O Poder Simbólico, escrito por Bourdieu e

facilmente encontrado em qualquer boa livraria ou

biblioteca. Contudo, por uma questão de espaço, com

vistas a sintetizar a apresentação do conceito, utilizarei um

texto de Maria Alice e Cláudio Martins Nogueira.

Segundo os autores:

Bourdieu observa que os sistemas

simbólicos podem ser “produzidos e, ao mesmo

tempo, apropriados pelo conjunto do grupo ou,

pelo contrário, produzidos por um corpo de

especialistas e, mais precisamente, por um campo

de produção e circulação relativamente autônomo”.

O conceito de campo é utilizado por Bourdieu,

precisamente, para se referir a certos espaços de

posições sociais nos quais determinado tipo de bem

é produzido, consumido e classificado. [...] No

interior desses setores ou campos da realidade

social, os indivíduos envolvidos passam, então, a

lutar pelo controle da produção e, sobretudo, pelo

direito de legitimamente classificarem e

hierarquizarem os bens produzidos.

Se tomarmos o campo literário como

exemplo, é possível analisar como editores,

escritores, críticos e pesquisadores das áreas da

língua e literatura disputam espaço e

reconhecimento para si mesmos e suas produções.

Basicamente, o que está em jogo nesse campo são

as definições sobre o que é boa e má literatura,

produções artísticas ou de vanguarda e quais são as

puramente comerciais, de quais são os grandes

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

escritores e de quais são os escritores menores.

Mais do que isso, disputa-se constantemente a

definição de quem são os indivíduos e as

instituições [...] legitimamente autorizados a

classificar e a hierarquizar os produtos literários.

(Nogueira e Nogueira, 2006: 36).

Dessa forma, teríamos um amplo campo de

disputas no campo simbólico da produção intelectual, onde

os indivíduos e instituições que assumem papéis

dominantes fariam de tudo para manter esse status. Por

outro lado, caberia ao que não ocupa esses lugares

privilegiados duas escolhas: ou aceitar-se como inferior e

converter-se aos padrões dominantes; ou contestar as

estruturas vigentes. Interessante perceber como o sistema

se retroalimenta: ele apenas reconhece como legítimo o

conhecimento que o legitima: é, nos dizeres do próprio

Bourdieu, uma “estrutura estruturante”. Como isso opera?

Vejamos um exemplo – como sou Antropólogo, é natural

que meu exemplo surja da minha área (ou, sendo

sutilmente irônico, do meu “campo”). Penso, contudo, que

os dados sejam extensíveis à Filosofia, bem como à

História, Sociologia e outras Humanidades. A ver.

Da, na e Sobre a Amazônia: traçando distinções

Em 2004 a Associação Brasileira de Antropologia

lança uma coletânea com o título de O campo da Antropologia

no Brasil (olha o “campo” aí de novo!). Em um dos textos,

escrito pela professora da Universidade Federal do Pará,

Jane Felipe Beltrão, traz dados bem interessantes: em uma

pesquisa no site do CNPq, ela obteve 250 grupos de

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Leno Francisco Danner (Org.)

pesquisa com “Amazônia” na denominação, sendo que

apenas 161 estavam na região Norte (incluindo ciências

exatas, da terra, sociais, etc.). Na área da Antropologia,

segundo a autora, na VIII Reunião de Antropólogos do

Norte e Nordeste (2003, Maranhão), dos 20 grupos de

trabalho, 17 tinham a Amazônia entre suas preocupações;

mas, dos 40 coordenadores, apenas 5 era de instituições

amazônicas. Da mesma forma, no XI Encontro de Ciências

Sociais do Norte e Nordeste (Aracaju, 2003), dos 40

coordenadores, apenas dois eram da Amazônia. Ou seja: o

acúmulo institucionalizado de conhecimento sobre a

Amazônia não se reflete em um aumento de conhecimento

na Amazônia ou da Amazônia.

Por curiosidade, enquanto escrevia este texto, fui ao

sítio do CNPq e busquei a série histórica por região no

Diretório dos Grupos de Pesquisa do Brasil: se em 1993 a

região Norte representava 1,7% dos Grupos de Pesquisa,

com 77 grupos (do total de 4.402 no país), em 2010 esse

número saltava para 5,2% (1.433 grupos, do total de

27.523). Houve um aumento de 18 vezes no número de

grupos de pesquisa, nesses 17 anos, enquanto que no

Sudeste, no mesmo período, o aumento foi de apenas 4

vezes; no Sul, 9 vezes; no Nordeste, 11 vezes; e no Centro-

Oeste, quase 8 vezes. São números alvissareiros! O Norte

certamente é a terra prometida dos pesquisadores e

professores, afinal, estatísticas não mentem! Certamente os

professores e alunos não precisam mais, ao longo dessas

duas décadas, pagar excesso de bagagem comprando livros

em suas viagens; os maiores e melhores eventos acontecem

na Amazônia, onde encontramos os melhores periódicos e

os programas de pós-graduação são mais bem avaliados

que no resto do país! Vejamos se é isso mesmo.

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

A região Norte do país não agrega sequer um

programa de Pós-Graduação com o conceito máximo da

Capes (nota 7), enquanto o Sudeste possui quase 100; o

Norte possui apenas um Programa com nota 6 (em

Geociências, na UFPA), enquanto o Sudeste possui 308.

Especificamente na Filosofia, temos apenas um programa

de Mestrado na região (na UFPA), com conceito 3 na

Capes, e nenhum Doutorado, dos 61 Cursos existentes na

área do país. Se somarmos os cursos com subárea

“Teologia”, temos mais um curso no norte (UEPA), dos 25

cursos existentes (ou seja, dois cursos de mestrado em

Filosofia na região Norte, de um total de 86 Cursos de

Mestrado e Doutorado no país). Outro dado interessante,

dos 49 coordenadores de área da Capes (responsáveis,

dentre outras coisas, pela avaliação de programas de pós-

graduação) para o triênio 2011-2013 (ou seja, pessoas

reconhecidamente com papéis dominantes em seus

respectivos campos) nenhum é da região norte62. Assim, a

que conclusões podemos chegar, até aqui?

Em primeiro lugar, o aumento relativo no número

de grupos de pesquisa não se refletiu diretamente em uma

maior visibilidade das pesquisas na região, tampouco no

fortalecimento institucional do que seja, eventualmente,

produzido no Norte do país. Além disso, a este relativo

aumento no número de pesquisadores atuando nessa

porção do país não se seguiu a redistribuição de recursos

(financeiros, materiais e/ou simbólicos) visando a um

equilíbrio institucional na produção de conhecimento no

país. Mais que isso, percebe-se nisso muito mais um efeito

62 http://www.capes.gov.br/avaliacao/coordenadores-de-area/4193,

acessado em março de 2013.

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131

Leno Francisco Danner (Org.)

quantitativo do que necessariamente qualitativo, reflexo de

uma série de políticas implementadas no país, as quais

podem ser exemplificadas pelo aumento no número de

instituições e cursos na região, de doutorados

interinstitucionais e das próprias exigências de editais de

fomento a pesquisa. Além disso, o ainda parco número de

pós-graduações na região, em especial em nível de

Doutorado, demonstra a necessidade que os docentes e

pesquisadores ainda têm de saírem de região em busca de

formação: e é aqui que a coisa fica mais interessante.

Não cabe aqui discutir política acadêmica no Brasil

(ou talvez até caiba), mas fato é que, estruturalmente

falando, há do ponto de vista institucional pouquíssimo

espaço para discutirem-se questões locais. Cabe-me, antes e

sobretudo, esclarecer que não sou desses professores que

compram o discurso, fácil, de que “temos que formar gente

preparada para pensar o desenvolvimento em nossa

região”. Penso justamente o oposto: temos que pensar em

que medida formar gente preparada para pensar o

desenvolvimento em nossa região já é, em si, uma questão

que traga em seu bojo um claro viés: de que

“desenvolvimento” e “região” são categorias objetivas de

pensamento, a-históricas, auto-evidentes, e dadas,

dispensando, assim, qualquer filtragem analítica mais

profunda. O que proponho é que se tomem como ponto

de partida esses dados não como algo objetivo, mas que se

parta das várias formas de subjetivação desses conceitos

como ponto de partida mesmo da produção de

conhecimento.

Cultura não é mero detalhe, bem como o local não deve

resumir-se a um pano de fundo. Ambas devem ser colocadas como

questões e construídas epistemologicamente. Não defendo,

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

aqui, um nativismo mambembe, ou uma espécie de

antropofagia acadêmica amazônida. O que digo, de forma

breve e brusca, é que ser periferia possui claras vantagens

do ponto de vista de construção do conhecimento, ainda

que às estatísticas e à face institucional que rege os campos

e sua produção simbólica, e redistribuição de poder, isso

escape. Confuso? Pioremos.

A Ciência, na Prática

Em entrevista dada a um periódico português, o

antropólogo norte-americano Marshall Sahlins afirmou que

Tudo na universidade é competição. Se és

estudante, competes para entrar, competes nas

cadeiras, há uma classificação por pontos absoluta.

É um sistema educativo burguês, onde as pessoas

talvez protestem contra a intromissão das

universidades nos direitos de propriedade

intelectual, ou contra o uso de dinheiros públicos e

resultados de investigações para patentear

invenções e obter lucros com as suas próprias

empresas subsidiárias capitalistas — talvez

protestem contra isto, mas têm uma relação

ferozmente individualista com as suas ideias. Deus

os livre se não são citados ou se são plagiados.

Houve estudos que mostraram que os círculos

internos de sociabilidade colegial e colaboração dos

académicos resumem-se a duas ou três pessoas, das

quais uma ou duas se encontram noutra

universidade. [...] Tudo o que tu fazes, eu consigo

fazer melhor. Uma das formas mais extremas, e a

mais comum, destes processos é aquilo a que

poderíamos chamar de “esquismogénese

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133

Leno Francisco Danner (Org.)

transcendental”, em que uma pessoa procura

desqualificar as pessoas da sua própria área

disciplinar saindo dela e reportando coisas de

outras áreas. É por isso que, hoje em dia, existe este

enorme aparato de relacionamentos

interdisciplinares. Há muito mais

transdisciplinaridade sem institucionalização do que

se possa imaginar, porque agora todos estes

conceitos são comuns — pósmodernismo,

desenvolvimento económico, antipositivismo, pós--

colonialismo, Foucault, Marx. São comuns a todas

as disciplinas porque todos estão a procurar

acrescentar ideias atractivas às disciplinas saindo

das mesmas. Outra faceta da competição é que,

quanto mais perto se encontram as disciplinas

relativamente a assuntos de pesquisa, menos terão a

ver uma com a outra, porque estarão a competir

por posições na universidade, recursos, novas

admissões, etc. Quando estás em competição, irás o

mais longe possível, como com o direito e

economia, ou com a antropologia e os cultural

studies ou as humanidades. E então começas a

importar conceitos cada vez mais bizarros. Não

vou falar em nomes, mas há um importante

antropólogo que diz “Bom, queres saber o que é a

cultura? É essencialmente a teoria do caos, é

fragmentada, blá blá blá, é o caos.” Portanto, é

antropologia e física. Tem havido uma apropriação

de muitas coisas. Quando Foucault escreve sobre a

disciplina no século XVIII e sobre a civilização

ocidental, toda a gente recolhe as suas ideias para

falar dos Bongo-Bongo e reutiliza-as para falar de

poder na sociedade. O resultado é que o próprio

terreno é “evacuado” em função do que está na

moda. Os estudantes não têm qualquer interesse

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

em narrativas do seu terreno, em saber onde é que

o seu trabalho encaixa ou como o futuro se

relacionará com o que acontecia antes (Calvão e

Chance, 2006:391-392).

Ora, recuperando o que obtivemos até aqui, temos

que: (a) a construção, reconhecimento e institucionalização

de saberes deve ser entendido enquanto processo histórico

e social (e a própria análise desse processo é, ele próprio,

parte desse sistema); (b) as posições que os indivíduos

ocupam dentro de seus campos devem ser compreendidas

dentro de processos estruturais dinâmicos, dentro dos quais

operam sistemas simbólicos de hierarquia, poder,

reconhecimento e recursos; (c) na manutenção desses

espaços, diversas práticas discursivas são empregadas,

inclusive as de outros campos; e (d) tais campos devem ser

compreendidos dentro das práticas de poder que (d.1) lhes

estruturam; e (d.2) eles estruturam. Há uma discussão

interessante aqui, se a ciência é ou não desinteressada ou

neutra. A verdade, comprovada cientificamente, comprova-

se por si só?

Os dados que levantamos acima, ainda que de

forma bastante breve e despretensiosa, servem-nos agora

como subsídio para compreendermos o posicionamento do

francês Bruno Latour, ao escrever que

... há algo ainda pior do que ser criticado

ou demolido por leitores descuidados: é ser

ignorado. Uma vez que a situação de asserção

depende das inserções de quem a utiliza, o que

acontecerá se não houver quem a utilize? Esse é o

aspecto mais difícil de ser entendido pelas pessoas

que nunca olharam de perto a construção da

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Leno Francisco Danner (Org.)

ciência. Elas imaginam que todos os artigos

científicos são iguais e que, enfileirados como

soldados, podem ser atentamente passados em

revista, um a um. Não, a maioria dos artigos nunca

é lida por ninguém. Seja lá o que um artigo tenha

feito com a literatura anterior, se ninguém mais

fizer nada com ele, é como se ele nunca tivesse

existido. Você pode ter escrito um artigo que

encerra uma terrível controvérsia, mas, se ele for

ignorado pelos leitores, não poderá transformar-se

em fato; simplesmente não pode. [...] A construção

do fato é um processo tão coletivo que uma pessoa

sozinha só constrói sonhos, alegações e

sentimentos, mas não fatos. (Latour, 2000:71).

Essa observação é particularmente importante à luz

do que foi dito até aqui, pois recupera o aspecto coletivo da

produção dos fatos tidos como científicos: sem uma

comunidade que legitime aquele conhecimento como tal,

aquilo não existe. É a velha questão: o DNA existia antes

de Watson e Crick? Não, sob esse ponto de vista.

Mas a questão aqui (quais as possibilidades e

especificidades do ensino de Filosofia vis-à-vis a

diversidade Amazônica) possui ainda outros fatores

complicadores, para além dos próprios desafios impostos

pela distribuição de poder no campo e da ainda precária

institucionalização do conhecimento na região – algo,

como vimos, fundamental para dar autonomia aos saberes

aqui gerados. Engana-se quem pensa que me refiro aqui aos

altíssimos níveis de analfabetismo funcional (segundo o

IBGE, 25.3% dos analfabetos funcionais do país

encontram-se na região Norte); ou dos poucos

investimentos em Cultura, Bibliotecas ou na educação

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

básica. Tampouco me refiro às vastas distâncias

amazônicas, dificuldades de infraestrutura e acesso, bem

como políticas de ingresso e permanência aos alunos desde

o ensino básico até a superior. Finalmente, também não me

refiro à falta de programas específicos de fomento a

pesquisa e financiamento a Universidades na região. Refiro-

me a algumas questões, em particular:

(1) Cada vez mais as políticas de avaliação implementadas

para o Ensino Superior levam em conta aspectos

quantitativos da produtividade acadêmica, sem levar em

conta desigualdades regionais. Dessa maneira, instituições

do Norte e Nordeste precisam lidar com questões básicas

como falta de infraestrutura básica, ao mesmo tempo em

que são obrigados a apresentar um nível quantitativo de

produção equivalente aos dos colegas do Centro-Sul;

(2) Da mesma forma, o espaço para conteúdos locais

serem explorados a contento, possibilitando uma rede local

de interlocução praticamente inexiste, dada a imposição de

se lidar com conteúdos universais que, em última medida,

reforçam a lógica de dominação de conhecimentos, a partir

de um modelo hegemônico tido e havido como o único

viável, posto ser o único reconhecido e legitimado

institucionalmente;

(3) Por conta disso, cada vez mais o espaço da sala de aula

se esvazia e se perde seu prestígio. A sala de aula passa a

tornar-se algo que atrapalha os professores, que precisam

optar entre a produção e a qualidade dos conteúdos a

serem passados; e

(4) A falta de políticas de fomento à pesquisa e pós-

graduação fora do modelo universalista e homogeneizante

praticamente inviabiliza a incorporação de saberes e

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Leno Francisco Danner (Org.)

conhecimentos locais na sala de aula: os discursos locais

tornam-se objetivados, mantendo a lógica

nós=ciência=subjetividade x outros=representações=subjetividade.

Assim, a diversidade local torna-se, à luz da lógica

repressiva apresentada acima, mero detalhe a ser

transformado pelo conhecimento “universal, posto que

objetivo”. Em larga medida essa perspectiva ganha impulso

extra na região amazônica, por seu claro viés positivista, em

uma região onde a presença militar, historicamente,

coaduna com esse olhar civilizatório.

Agora as coisas se encaixam, e as próximas páginas

serão dedicadas, basicamente, a esmiuçar e problematizar

esse esquema.

O discurso “Civilizatório”

Um dos aspectos aos quais quero chamar a atenção

é o caráter que chamei acima de “civilizatório” dado à

educação. Nos dizeres de Elias,

O que aqui se coloca no tocante ao

processo civilizador nada mais é do que o problema

geral da mudança histórica. Tomada como um

todo, essa mudança não foi “racionalmente”

planejada, mas tampouco se reduziu ao

aparecimento e desaparecimento aleatórios de

modelos desordenados. (...) Planos e ações,

impulsos emocionais e racionais de pessoas isoladas

constantemente se entrelaçam de modo amistoso

ou hostil. Esse tecido básico, resultante de muitos

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

planos e ações isolados, pode dar origem a

mudanças e modelos que nenhuma pessoa isolada

planejou ou criou. Dessa interdependência de

pessoas surge uma ordem sui generis, uma ordem

mais irresistível e mais forte do que a vontade e a

razão das pessoas que a compõem. É essa ordem

de impulsos e anelos humanos entrelaçados, essa

ordem social, que determina o curso da mudança

histórica, e que subjaz ao processo civilizador

(Elias, 1993:194).

De que forma isso opera? Retrocedendo no tempo,

temos que, no início do século XX, o Brasil era um país

repleto de vazios em seu mapa. Uma viagem do Rio de

Janeiro a Cuiabá durava mais de um mês, percorrendo

diferentes países, percorrendo a bacia do Prata; e a fronteira

oeste do país era em grande parte desconhecida. Some-se a

isso a Guerra do Paraguai entre 1865 e 1870 (as autoridades

no Rio apenas souberam da invasão do Mato Grosso pelo

Paraguai seis semanas após o ocorrido) e a anexação do

Acre (1902), um imenso espaço desconhecido onde se sabia

que havia malária, índios e borracha. Há, ainda, que se levar

em conta os ideiais militares e positivistas republicanos a

fim de se fazer do Brasil uma “Nação”. Assim, como

instrumento de integração nacional, surge a ideia de ligar o

país por meio do telégrafo sendo o homem à frente dessa

missão o Cândido Mariano Silva Rondon - um jovem

militar matogrossense, formado pela Escola Superior de

Guerra e introduzido no positivismo (mais que uma

filosofia, abraçada por ele como religião a partir de 1898)

por Benjamin Constant. Na época, o Mato Grosso

correspondia a 1/5 do território nacional e, em 1891 o

Congresso Nacional autorizava o Presidente da República a

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Leno Francisco Danner (Org.)

elaborar um plano geral de linhas telegráficas, sendo que

logo Rondon se destaca e toma a frente desses trabalhos na

região que atualmente compreende os Estados do Acre,

Amazonas, Mato Grosso e Rondônia (Bigio, 2000).

Sua forma de agir e pensar pode nos lançar alguma

luz sobre como pensavam as elites republicanas da Primeira

República com relação ao projeto de construção da Nação.

Rondon escreve, nas primeiras páginas do primeiro volume

de seu “Índios do Brasil”, livros publicados com as fotos

das expedições da Comissão Rondon desde 1890,

publicado em 1946:

Do numeroso arquivo que vimos

religiosamente amealhando, através de meio século

de intenso trabalho em que tão ajudado fui por uma

plêiade de oficiais do Exército e pessoal civil, todos

vibrantes de entusiasmo cívico pela Causa Indígena,

pelo progresso de nossa Pátria e pelo bem da

Humanidade. [...] Muitas destas fotografias agora

folheadas tranqüilamente em ambientes civilizados,

e oferecidas aos estudiosos da ciência e aos

concidadãos que se interessam pelas coisas

essencialmente brasileiras e olham com simpatia o

“Problema do Índio”, custaram muita abnegação,

muito esforço patriótico, muito suor, muito

cansaço e quiçá também o sangue e a vida de

patrícios nossos, para que ora as pudéssemos

contemplar e comentar, acomodados em

compartimentos confortáveis” (Rondon, 1946).

Interessante notar algumas coisas – dentre tantas

outras – a partir do trecho acima: a oposição entre os

“compartimentos confortáveis” e “ambientes civilizados”

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

com relação aos sertões do Brasil, onde “patrícios”

derramaram sangue, suor e com sacrifício de suas próprias

vidas. Fica aí clara a oposição entre o país desconhecido e

aquele a ser desbravado. Não cabe aqui delongar sobre o

conceito de positivismo, tampouco de seu papel nessas

expedições de caráter nacionalistas e/ou científicos, mas os

ideiais positivistas partiam de alguns pressupostos, dentre

os quais uma fé inabalável na racionalidade e nos

conhecimentos científicos.

A esse respeito, escreve Lima:

Nos textos dos relatórios de viagens e nas

conferências alusivas a essas experiências, sobressai

como elemento comum a ênfase em seu caráter

civilizatório. O povo era geralmente apresentado

como um ator em "estado de latência" numa

situação de pré-cidadania (Lima e Hochman, 1996).

Como observa José Murilo de Carvalho (1992), os

reformadores se viam como messias salvadores de

um povo doente, analfabeto, incapaz de ação

própria, bestializado, se não definitivamente

incapacitado para o progresso. Segundo o autor, o

cenário descrito por Arno Mayer da Europa do

século XIX se aplicaria com muito mais razão para

o Brasil, onde predominava a tradição, o mundo

agrário, pré-industrial e aristocrático.

Essa idealização e distância em relação ao

"povo real" nos debates da intelectualidade do

período podem ser vistas também em outros

movimentos que focalizaram o interior do país

numa crítica à imitação servil das elites intelectuais

e políticas. Promove-se a ampliação do sentido

atribuído à palavra sertão, superpondo-se a critérios

geográficos e demográficos as ideias de abandono e

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Leno Francisco Danner (Org.)

de exclusão. Um sertão caracterizado pelo

abandono e pela doença. Um sertão desconhecido,

mas que era quase do tamanho do Brasil (Lima,

1998, versão eletrônica).

Tais questões remetem à noção positivista de raça e,

nesse sentido, a educação funciona como algo essencial no

projeto positivista: com os “caboclos”, “sertanejos” e

indígenas educados, nos moldes do que o Estado

preconizava, garantia-se que tais categorias raciais se

tornassem um instrumento de construção e integração

nacionais, bastando, para isso, serem educados nesse

sentido - o mesmo se passando com relação aos brasileiros

das áreas rurais, sertanejos e/ou menos esclarecidos. Tal

perspectiva remete claramente ao que vem sendo colocado

até aqui, no sentido de pensarmos uma educação

normalizadora, homogeneizante, teleológica e que tome o

contexto social e cultural dos educandos como problema a

ser superado, quando não mero detalhe.

Falar nesse modelo positivista de pensamento (que

perpassa a institucionalização da educação no país,

funcionando estruturalmente nos termos sintetizados por

Elias, páginas atrás) implica em reconhecer nos processos

educacionais uma reificação do ensino como mais uma das

faces do colonialismo interno. A Amazônia, enquanto

categoria macro, totalizante e amorfa, sem que sejam

levadas em conta suas especificidades, torna-se mais um

meio de dominação e da legitimação mesmo dessa

dominação – como dissemos anteriormente, à luz de

Bourdieu, uma “estrutura estruturante”. Assim, os diversos

universos históricos, sociológicos, geográficos, filosóficos,

etc., ficam relegados ao segundo plano, como meros

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

epifenômenos de micro-universos culturais, que bem

podem ser vistas como alteridades, mas quase nunca

incorporadas como sujeitos e raramente tomadas como

agentes.

Assim, a alternativa que se tem para da um ar de

pluralidade a tais processos que são, no fim das contas,

unívocos e unidirecionados, é lançar mão de um discurso

politicamente correto de integração – mais do mesmo

positivista – para incorporar essas outras socialidades ao

sistema, sem por em xeque sua própria estrutura. Um

exemplo disso parece ser a enxurrada de cartilhas que

colocam essas historicidades como causos, e religiosidades

como folguedos, bem como os vários sistemas de cotas

para essas alteridades (negros, indígenas, ribeirinhos,

caboclos, etc.): a redistribuição interna de poder, bem como

os pressupostos político-filosóficos que regem essas formas

de dominação não são colocados em questão.

Algumas considerações

Mas, há luz no fim do túnel? Há como fugir desse

modelo que apenas reforça o “colonialismo interno” (trata-

se de um conceito construído por pensadores latino-

americanos de vertente marxista, como Pablo González

Casanova e Rodolfo Stavenhagen, que chama a atenção

para processos internos de subordinação e dominação

econômica, cultural, social, etc., entre classes, etnias, etc.)?

As periferias estão fadadas a serem eternas vítimas?

Entendemos que não, por diversas razões.

Em primeiro lugar, uma afirmativa como a foi feita

acima, sem as devidas ressalvas, pode dar a falsa sensação

de que a academia, mesmo no Centro, é homogênea e

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Leno Francisco Danner (Org.)

dominada por interesses institucionais ou governamentais,

apenas. Isso seria essencializar demais a discussão. O que

temos em mente aqui, ao contrário, é afirmar as

possibilidades da academia periférica (no caso, a

Amazônia), atualizar criativamente sua matriz de

pensamento, buscando construir uma relação que seja mais

bem entendida como complementar do que,

necessariamente, oposta à academia hegemônica. Não se

trata, de forma alguma, de acentuar um eventual

antagonismo, mas de deixar clara a possibilidade de advir,

da Amazônia, críticas e reflexões originais e inovadoras aos

modelos hegemônicos, não apesar de ser periferia, ou apesar

da miríade sociocultural na região, mas justamente e em

larga medida, em decorrência disso mesmo.

Além disso, nosso posicionamento é no sentido de

alertar para o fato de que contextos econômicos, políticos e

acadêmicos, mesmo que inter-relacionados, não são

preponderantes uns em relação aos outros. Trata-se de um

movimento dinâmico e que deve ser percebido em devir:

mais do que um produto pronto e acabado, a produção de

conhecimento é um processo dinâmico, e deve ser

compreendido em ato. Outro aspecto relevante é a

necessidade de simplesmente se fazer ciência da e para a

academia e passar a, efetivamente, aplicar seus conceitos

sobre ela. Nesse sentido, a questão passa a ser não mais

uma eventual dicotomia centro x periferia mas, ao

contrário, como essas categorias se [re]molda[ra]m, se

[re]situa[ra]m e podem ser [res]significadas.

O que se propõe aqui é, em síntese, a apropriação

das singularidades, e não sua invisibilidade.

Em primeiro lugar, não devemos adotar uma

postura crítica no sentido de fetichizar o universo

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

sóciocosmológico amazônico: como já foi dito aqui, as

visões de mundo locais devem ser vistas sempre no plural,

sem serem essencializadas e, sempre que possível,

colocadas no mesmo nível ontológico de explicação dos

paradigmas científicos. Não se deve buscar uma imposição,

mas uma troca e interlocução entre essas diferentes

dinâmicas de conhecimento: são perspectivas que operam a

partir das, em decorrência de, e em relação a visões de

mundo diferentes, não desiguais.

Proponho que ambas devam ser tomados em relação

umas às outras, indo além das dicotomias clássicas (por isso

mesmo dadas) “nós” x “eles”; “tradicional” x “moderno”;

“local” x “global”. Da mesma forma, os diversos

conhecimentos e práticas não podem ser vistas somente

como “representações” ou “reconstruções simbólicas” a

partir das “nossas” práticas: as discussões sobre essas

questões não podem reificar, pura e simplesmente, o

suposto exotismo dos saberes locais – coisa que, de uma

forma ou de outra, acaba remetendo aos pressupostos

positivistas civilizatórios. O estatuto ontológico dos

diversos regimes de conhecimento e de subjetivação deve

ser levado em conta, necessariamente.

Dessa maneira e à guisa de conclusão (e

provocação), recuperando e complementando o que foi

colocado até aqui temos que o conhecimento não se

produz no éter, a ciência não é objetiva, tampouco busca a

verdade: ela deve ser compreendida, em sua gênese, como

algo socialmente construído e legitimado, em um campo

dinâmico dentro do qual atuam forças historicamente

constituídas e que se atrelam a determinadas estruturas de

poder. Dentro dessas estruturas determinado tipo de

conhecimento é produzido, quase sempre indo ao encontro

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Leno Francisco Danner (Org.)

do regime de poder vigente – funcionando como “estrutura

estruturante”.

Ademais, neste contexto, observa-se como na

Amazônia, ao longo das últimas décadas, constata-se um

grande aumento no número de grupos de pesquisa e

institucionalização do ensino superior, bem como em

pesquisa. Contudo, isso não significou – pelo menos não na

mesma proporção – um aumento na qualidade dos cursos

oferecidos, publicações reconhecidas, infraestrutura,

eventos científicos, etc. Não houve, necessariamente, uma

reestruturação nas instituições de ensino da região,

entrevendo como o norte do país é ainda visto como um

grande bolsão de recursos naturais sendo que as

universidades e escolas passam a funcionar, de modo geral,

como fornecedoras de mão de obra.

Em decorrência disso, e dada a falta de estímulos à

inovação, as instituições de ensino acabam reproduzindo

em seu cotidiano práticas positivistas, civilizatórias e

normalizadoras, que passam a operar no sentido de não

integrar à sua estrutura outros regimes de conhecimento,

relegados quase sempre ao papel de “representações

subjetivas”, subculturas locais, folganças: algo a ser

gradualmente objetivado pela racionalidade acadêmico

científica, reconhecida, neutra, universal, a-histórica e

positiva – e por isso mesmo, legítima. A cultura e o local

tornam-se detalhes, um “apesar de” em vez de um “em relação

a”.

Por outro lado, às periferias é possível um

dinamismo e uma multiplicidade de opções analíticas. Isso

diz respeito não somente à proximidade física com

inúmeros objetos de investigação em potencial, mas,

principalmente, à possível autonomia nesse fluxo de

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146

Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

saberes, possibilitado pelo distanciamento dos grandes

centros. Dito de outra forma, torna-se possível, dada a

maior fluidez nos regimes institucionais locais e em suas

respectivas estruturas de controle, operar à margem das

diversas imposições colocadas pelo campo. Ao periférico,

de certa forma, é possível buscar opções e escolhas que em

instituições estruturadas de forma mais rígida, seria

impossível pensar. Assim, é possível fomentar pesquisas em

áreas que ficam relegadas ao subalterno na academia

reconhecida, como estudos culturais, teorias queer, pós-

estruturalismo, críticas pós-coloniais e descolonização,

dentre outros.

É uma questão de perspectiva: se o diálogo da

academia estabelecida brasileira é a partir de conceitos e

autores da academia do “Norte-Global”, podemos operar

no ponto de fuga, trazendo questões que não se enquadrem

nem na discussão dos Centros hegemônicos, tampouco na

de nosso Centro, que se percebe hegemônico em relação a

nós, na Amazônia. Há, ainda, outra possibilidade clara de

análise: a interlocução mais estreita com teorias e teóricos

da América Latina, a composição de eventos, pesquisas e

publicações em conjunto, etc. Os questionamentos que

amparam o desenvolvimento do conhecimento no Norte e

Nordeste do país (e do Centro-Oeste, de modo geral), não

precisam necessariamente se enquadrar nas categorias de

entendimento do Sul-Sudeste.

Assim, uma proposta de ensino de Filosofia (e de

modo geral, das Humanidades) para a região deve, pelo

menos, preferencialmente transcender o discurso

civilizatório, monotético e intervencionista da educação. O

desafio é que a própria ruptura epistemológica subsumida

às práticas, conceitos, constructos e métodos da filosofia

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Leno Francisco Danner (Org.)

sejam incorporados à prática docente. Além disso, deve

buscar superar as barreiras interdisciplinares, olhando para

além do próprio campo e das diversas estruturas (de

ensino, poder, etc.) existentes. Finalmente, deve levar a

sério a(s) sociodiversidade(s) e integrando-a(s) às suas

reflexões, não buscando adequá-la(s) aos conceitos

advindos do mainstream (ou seja, do Centro), mas de modo

a desconstruí-los e renová-los.

Referências Bibliográficas

BELTRÃO, Jane Felipe. “Amazônia e Antropologia:

Gradações de um enredamento secular”. TRAJANO FILHO,

Wilson; RIBEIRO, Gustavo Lins (Orgs.). O campo da

Antropologia no Brasil. Brasília/Rio de Janeiro: Associação

Brasileira de Antropologia/Contracapa Editora. 2004.

BIGIO, Elias dos Santos. Cândido Rondon: a integração

nacional. Rio de Janeiro: Contraponto. 2000.

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro:

Bertrand Brasil. 2005.

CALVÃO, Filipe; CHANCE, Kerry. “Na ausência do

campo metafísico: Entrevista com Marshall Sahlins”.

Etnográfica, Vol. X (2), Pp. 385-394. 2006.

ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador, Volume 02: Formação

do Estado e Civilização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1993.

LATOUR, Bruno. Ciência em Ação: como seguir cientistas e

engenheiros sociedade afora. São Paulo: Editora Unesp. 2000.

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148

Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

LIMA, Nísia Trindade. “Missões civilizatórias da República

e interpretação do Brasil”. História, Ciências, Saúde –

Manguinhos. Vol. 5 (suplemento), 163-193, Julho, 1998.

NOGUEIRA, Maria Alice; NOGUEIRA, Cláudio M.

Martins Nogueira. Bourdieu e a Educação. Belo Horizonte:

Autêntica: 2006.

RONDON, Cândido Mariano da Silva. Índios do Brasil,

Volume 01. Rio de Janeiro: Ministério da Agricultura/CNPI.

1946.

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Leno Francisco Danner (Org.)

Física e responsabilidade

científica: a importância do

diálogo entre ciência e

sociedade

Alexandre Luis Junges

1. Introdução

É com satisfação que contribuo neste volume

dedicado a pensar a relação entre a filosofia e outras áreas

do conhecimento, em especial as disciplinas que compõe a

ciência contemporânea. A tarefa de escrever sobre a relação

entre a filosofia e a física é certamente desafiadora, na

medida em que a história dessas duas disciplinas possui

uma ampla relação. De fato, a partir da história da física

pode-se identificar uma série de episódios em que

cientistas, físicos, desenvolveram e defenderam suas teorias

tendo como pano de fundo princípios e concepções

filosóficas. A este respeito poderíamos citar os grandes

debates entre Newton e Leibniz sobre a natureza do espaço

e tempo, o debate entre Bohr e Einstein sobre a mecânica

quântica, o debate entre Fred Hoyle e proponentes da

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

teoria do Big Bang, entre outros. Este papel da filosofia na

física foi, e ainda é, muito bem discutido por filósofos e

historiadores da ciência. Tais pesquisas revelam que

controvérsias científicas persistentes também desencadeiam

debates filosóficos, e que cientistas assumem pressupostos

que possuem em última análise uma motivação filosófica63.

Neste sentido, uma discussão das implicações e

pressupostos filosóficos de teorias científicas tem muita a

oferecer para a formação dos estudantes de física, não

apenas para preencher a curiosidade destes, mas

principalmente para lhes fornecer uma melhor

compreensão de sua própria disciplina científica.

Contudo, se por um lado estou convocando os

estudantes de física para buscar conhecimento filosófico e

histórico da física, o presente artigo também tem por

objetivo chamar a atenção para a necessidade do público

sem treinamento científico (os acadêmicos das disciplinas

humanitárias e o público leigo em geral) de compreender

melhor a física (e outras disciplinas científicas) e a sua

história. Assim, ao tomar em consideração a relação entre a

filosofia (e outras disciplinas humanitárias) e a física (e

outras disciplinas científicas), o foco e objetivo maior do

presente artigo é chamar a atenção para a necessidade cada

vez mais urgente de uma comunicação eficaz entre as

ciências e as humanidades e, como veremos, entre a ciência

e o público leigo em geral. O problema é antigo e já foi

apresentado no célebre ensaio de C. P. Snow “As Duas

63Veja-se, por exemplo, a discussão sobre as “pressuposições

temáticas” (thematic pressupositions) em Holton (1998). Sobre o papel das

“suposições de fundo” (background assumptions) em controvérsias

científicas ver Baltas (2000).

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Leno Francisco Danner (Org.)

Culturas” (1965) que anteviu profeticamente as

consequências indesejadas dessa separação.

De fato, os problemas de uma sociedade

tecnológica que enfrentamos e que ainda iremos enfrentar

requerem um senso de responsabilidade científica e global

que já há muito tempo tem sido enfatizado por físicos

como Max Born (1968), mas que ainda está longe de

alcançar seu amadurecimento completo. Como escreve Carl

Sagan em “Demon Haunted World” (1997, p.28):

Nós arranjamos uma civilização global na

qual a maioria dos elementos cruciais – transporte,

comunicação e todas as outras indústrias;

agricultura, medicina, educação, entretenimento,

proteção ambiental, […] - dependem

profundamente da ciência e da tecnologia. Nós

também arranjamos as coisas de tal modo que

quase ninguém entende a ciência e a tecnologia.

Esta é uma prescrição para o desastre. Nós

podemos até evitar isso por um tempo, mas mais

cedo ou mais tarde essa mistura combustível de

ignorância e poder irá explodir na nossa cara.

Infelizmente, fora do círculo científico o

conhecimento científico é mínimo. De fato, na sociedade

em que vivemos, com o acesso facilitado à informação

poder-se-ia considerar que a tarefa não é tão complicada,

pois, por exemplo, através da internet o leigo rapidamente

pode buscar a informação científica desejada. Contudo,

apesar da internet possibilitar o acesso facilitado à

informação, ela é igualmente fonte de distorções, em outras

palavras, ela possibilita acessar igualmente as melhores e as

piores fontes de informação sobre a ciência. Como

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

veremos adiante, principalmente quando o assunto em

questão diz respeito a temas científicos com implicações

sociais mais amplas, a distorção da ciência de acordo com

ideologias é evidente numa rápida pesquisa no google. É

justamente neste tipo de situação que a comunicação e a

alfabetização científica a ser defendida neste trabalho se

mostram as mais necessárias.

Em seu livro Unscientific America: How Scientific

Illiteracy Threatens our Future (2009) Chris Mooney e Sheril

Kirshenbaum se debruçam justamente sobre este

problema. Para os autores, parte da solução do problema

requer que cientistas se conscientizem da necessidade de

comunicarem os seus conhecimentos de um modo que o

público leigo possa compreendê-los e, dessa forma, mitigar

a distância (gap) existente entre ciência e sociedade. Para

tanto, os autores defendem que é necessário não apenas

que o público busque compreender melhor a ciência, mas

também que cientistas compreendam melhor outras

disciplinas. Cientistas devem aprender a contar narrativas,

compreender as necessidades de políticos, jornalistas, de

modo a poder comunicar sua disciplina (Ibid, p.125;

Yankelowich, 2007). Mas, além de conhecer seu público, o

cientista e comunicador deve dialogar com outras áreas das

humanidades, como a filosofia, a história e a sociologia.

Assim, os estudos sobre a metodologia científica, os casos

históricos dos historiadores e a observância da dimensão

social da ciência se apresentam como grandes aliados neste

processo. De fato, a filosofia, junto com outras disciplinas

humanitárias, têm muito a oferecer não apenas aos

cientistas, mas também ao público leigo, na medida em que

permitem uma reflexão sobre as nossas crenças mais

profundamente enraizadas.

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Leno Francisco Danner (Org.)

A fim de ilustrar melhor esta preocupação e ênfase

na comunicação entre ciência e sociedade, pretendo me

servir de dois episódios históricos da história da física e

ciências de disciplinas afins, como a física atmosférica e a

climatologia, cujas consequências sociais são inegáveis e

cujo entendimento desta mesma ciência por parte do

público leigo é generalizadamente vago e impreciso. O

primeiro episódio envolve os acontecimentos ocorridos

durante a década de 1980 em torno do polêmico projeto

“Star Wars”, lançado pelo governo Reagan e que sofreu

forte oposição da comunidade científica em face dos

perigos de uma guerra nuclear. O segundo episódio envolve

o debate sobre as mudanças climáticas globais e os esforços

e dificuldades dos cientistas em comunicar suas

descobertas. O primeiro caso, já encerrado, obteve sucesso

na comunicação entre a ciência e sociedade. Contudo, o

segundo caso ainda constitui um desafio atual e o seu

sucesso dependerá de esforços que a geração atual irá

empreender.

2. Entre o Projeto Star Wars e o Inverno Nuclear

A descoberta da energia nuclear e sua rápida

aplicação para fins militares é talvez um dos exemplos mais

marcantes da história da ciência no que concerne à questão

da responsabilidade científica. De fato, muito mudou na

consciência dos físicos sobre o seu papel após o primeiro

lançamento da Bomba sobre as cidades japonesas de

Hiroxima e Nagasaki. Max Born (1968), ao tratar dessa

questão, lamenta não ter ensinado ética aos seus alunos,

muitos dos quais tiveram papel importante na construção

da bomba. Outros físicos eminentes, como Albert Einstein

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

e Niels Bohr, empenharam-se em campanhas para a

utilização pacífica da energia nuclear64. Como observou

Stephen Toulmin (1990, p.182), a bomba de Hiroxima

gerou uma consciência de responsabilidade global nos

cientistas culminando na criação da revista “The bulletin of

the atomic scientists”65, que possui seções dedicadas a questões

políticas e de segurança. O resultado do empenho desses

cientistas, conscientes de sua responsabilidade global, foi

uma humanização da ciência e da tecnologia.

Contudo, uma vitória e conquista num

determinado momento histórico não significa que

retrocessos ou novas ameaças à paz através do mau uso da

tecnologia nuclear não possam surgir em momentos

posteriores. Após a segunda guerra mundial, Estados

Unidos e a então União Soviética deram início à corrida

armamentista e tecnológica conhecida como a 'Guerra

Fria'. Além da conquista do espaço, ambas as nações

investiram maciçamente no financiamento científico para a

promoção de tecnologias militares. Como resultado, no

início da década de 1980, ambas as nações em conjunto

dispunham de uma arsenal militar de mais de 12.000

megatons disponíveis para uso militar. Neste delicado

cenário, a paz era assegurada por alguns princípios básicos

como o “princípio da destruição mútua assegurada”.

É neste contexto que, no início da década de 1980,

durante o governo Reagan, surge o que passou a ser

conhecido popularmente como o projeto Star Wars, cujo

nome técnico era “Strategic Defense Initiative” (SDI). O

64 Veja-se, por exemplo, a conferência “Átomos para Paz” (Atoms for

Peace Conference) em Genebra, promovida por Niel Bohr em 1955.

65 cf. http://www.thebulletin.org/.

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Leno Francisco Danner (Org.)

projeto visava à construção de um sistema de defesa

antimísseis intercontinentais soviéticos, através da

instalação de satélites equipados com um sistema de laser

que seria capaz de interceptar e destruir os mísseis

soviéticos antes que atingissem o solo americano. Entre os

defensores do projeto estavam inicialmente o astrofísico

Robert Jastrow e o pai da bomba de hidrogênio Edward

Teller. Jastrow fora um dos diretores da NASA no projeto

lunar e fundador do Godard Institute of Space Studies (GISS)

da NASA. Em 1981, retirou-se para ser professor Adjunto

de Ciências da Terra em Dartmouth (onde ficou até 1991) e

em 1983 tomou causa no programa de defesa do governo

Reagan passando a ser o principal defensor do SDI.

Contudo, logo após o lançamento do projeto em

1983 surgiu uma forte oposição da comunidade acadêmica.

Muitos cientistas consideravam o projeto irrealista, inviável

e potencialmente desestabilizador da paz. As consequências

desse projeto eram evidentes, ele colocaria em xeque o

princípio da destruição mútua assegurada e colocava a

possibilidade dos Estados Unidos vencerem a guerra. Além

disso, não havia nenhuma garantia de que o projeto fosse

viável e nem mesmo de que funcionaria, seu único teste

possível seria a guerra e sua falsificação (para usar um

termo popperiano) a destruição mútua. De fato, a forte

oposição da comunidade científica, liderada pela Union of

Concerned Scientists (UCS)66 e por cientistas famosos da

época, como Hans Betthe e Carl Sagan, causou embaraço

ao governo Reagan, bloqueando o avanço do projeto já no

primeiro ano após sua proposta. De fato, houve reações

dos promotores da guerra estendendo a disputa durante

66 Cf. http://www.ucsusa.org/.

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

toda década de 1980; contudo, a eficiente mobilização dos

cientistas e sua eficácia na comunicação com o público foi

um fator determinante para impedir o pleno

desenvolvimento do projeto. Nas páginas seguintes,

pretendo apresentar um pouco mais detalhadamente esta

história.

Entre os personagens determinantes do sucesso

dos cientistas podemos destacar as ações da Union of

Concerned Scientists (UCS) e cientistas como Hans Betthe e,

especialmente, Carl Sagan (cf. Mooney & Kirshenbaum,

2010; Oreskes & Conway, 2010). Criada em 1969 por

acadêmicos do MIT (Massachusetts Institute of Tecnology), a

UCS tem como proposta combinar uma rigorosa análise

científica com a promoção de políticas e soluções a

problemas como a segurança global, a biodiversidade e

outro problemas ambientais, bem como promover uma

comunicação eficaz entre a ciência e o grande público (cf.

Cole & Watrous, 2007). Como destacam Oreskes &

Conway (2010, p.55), logo que o projeto Star Wars foi

lançado a UCS apresentou um relatório detalhado liderado

por Hans Bethe e Richard Garwin que discutia os pontos

fracos do projeto, destacando a sua inviabilidade.

Além da UCS, entre os cientistas individuais

opositores do SDI e comunicadores mais eficientes da

ciência para o grande público estava sem dúvida Carl Sagan.

Durante a década de 1970 Sagan ficou conhecido pela sua

participação do projeto de exploração espacial da NASA.

Em meados da mesma década, após ficar descontente com

a fraca cobertura midiática da missão Viking da Nasa à

Marte, Sagan resolveu se dedicar ao trabalho de divulgação

para o grande público. É neste contexto que nasce o

famoso seriado Cosmos, de Sagan, que durante os anos de

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Leno Francisco Danner (Org.)

1980 alcançou 500 milhões de telespectadores (cf. Mooney

& Kirshenbaum, 2007). A partir de então, Sagan se

mostrou um escritor talentoso e um comunicador

carismático, fazendo diversas aparições na TV americana.

Entre seus diversos livros, “Contato”, de 1985, teve uma

edição hollywoodiana que arrecadou mais de 170 milhões

de dólares. De fato, Carl Sagan não era apenas um cientista,

seu carisma como comunicador da ciência fez dele um líder

influente, uma personalidade mundial, com acesso

privilegiado à grande mídia e a lideres religiosos e políticos

como o Papa João Paulo II e o presidente russo Gorbachev.

No início da década de 1980, enquanto Robert

Jastrow fazia campanha para promover o SDI, surgiu na

comunidade científica a discussão de uma questão que teria

considerável impacto sobre o projeto SDI. Alguns dos

colegas de Carl Sagan da Nasa estavam trabalhando com

modelos climáticos que simulavam os efeitos da fumaça e

poeira atmosférica sobre a temperatura de superfícies

planetárias. Seu objetivo inicial era compreender a

atmosfera do planeta Marte e, posteriormente, testar a

famosa hipótese de que os dinossauros teriam sido extintos

pelo impacto de um enorme asteroide que atingira a Terra a

65 milhões de anos atrás. De acordo com tal hipótese, o

impacto do asteroide teria lançado milhões de toneladas de

poeira na atmosfera que, bloqueando os raios solares, teria

gerado um resfriamento global que posteriormente

comprometeu as fontes de alimentos dos dinossauros,

levando-os à extinção. De fato, não tardou para os

cientistas da Nasa perceberem que seu modelo poderia ser

usado para prever os efeitos de uma guerra nuclear em

escala global sobre o clima terrestre (Oreskes & Conway,

2010, p.46).

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

Assim, foi em 1983 que Sagan e seus 3 colegas da

Nasa publicaram o artigo em que é apresentada a famosa

hipótese do inverno nuclear67. O estudo se ocupou com o

impacto climático que seria causado pela enorme

quantidade de poeira e fumaça lançada na atmosfera devido

à explosão das bombas e aos incêndios resultantes dessas

explosões. Como já observado, no início da década de 1980

os EUA e a União Soviética possuíam um arsenal nuclear

disponível para utilização imediata na faixa de 12.000

megatons (onde 1 megaton equivale à explosão de 1 milhão

de toneladas de TNT). Para se ter uma ideia mais precisa da

dimensão do arsenal, vale lembrar que a bomba lançada

sobre a cidade Japonesa de Hiroxima, que matou entre

100.000 e 200.000 pessoas possuía, apenas 12 quilotons, ou

seja, o equivalente a 12 mil toneladas de TNT. Isso equivale

a dizer que o arsenal Soviético e Americano somava

aproximadamente 1 milhão de bombas de Hiroxima,

lembrando que as bombas termonucleares (de fusão

nuclear) podiam alcançar entre 0,5 a dezenas de megatons

(cf. Sagan & Ehrlich, 1984; TTAPS, 1983, p.1284).

Neste sentido, mesmo uma troca nuclear modesta

poderia ter consequências devastadoras, como a perda

imediata de milhões de vidas humanas, bem com o

comprometimento dos sistemas de fornecimento de

energia, transporte, alimentos, etc. De fato, mesmo que

uma boa parte da população sobrevivesse às detonações,

Sagan e seus colegas investigaram as condições ambientais

de longo prazo que estes sobreviventes herdariam. Num

dos cenários simulados no artigo TTAPS, os autores supõe

67 O artigo ficou conhecido pela denominação “TTAPS”, que expressa

as iniciais dos autores. Veja-se a referência TURCO et al. (1983).

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Leno Francisco Danner (Org.)

um troca de 5.000 megatons. Em tal cenário, devido ao

bloqueio dos raios solares pela fumaça e poeira lançada na

atmosfera (mais especificamente na estratosfera), a

conclusão dos autores é de que haveria um escurecimento

da superfície terrestre por várias semanas, a temperatura da

superfície baixaria em três semanas a uma temperatura

mínima de -23°C e manteria temperaturas abaixo dos zero

graus Celsius por diversos meses. Além disso, haveria

perturbações na circulação global e mudanças dramáticas

no tempo e precipitações locais, em outras palavras,

teríamos um gélido e escuro inverno em todas as estações

(cf. Turco et al., 1983, p.1290).

O artigo TTAPS apareceu num volume da Science

junto com o artigo do eminente biólogo da Stanford Paul

Ehrlich e seus colegas sobre as consequências biológicas de

uma guerra nuclear. Mesmo antes da publicação do artigo,

Sagan e alguns colegas, especialmente Paul Ehrlich,

organizaram uma conferência em Cambridge para debater as

consequências físicas, atmosféricas e biológicas de uma

guerra nuclear. Conferência na qual o artigo TTAPS foi

amplamente revisado por inúmeros cientistas (inclusive

soviéticos) e teve sua credibilidade científica atestada (cf.

Sagan & Ehrlich, 1985, Oreskes & Conway, 2010)68.

68 Contudo, é importante observar que, como todo trabalho científico

inovador, existe sempre a possibilidade de novos insights e revisões à

medida que ele é apresentado a uma comunidade científica maior. De

fato, não foi diferente com o artigo TTAPS. Entre 1984 e 1986, foram

publicados novos trabalhos que acessaram a teoria do inverno nuclear.

Entre eles está o trabalho de um grupo de climatologistas do National

Center for Atmospheric Research (NCAR), liderado por Stephen Schneider

(mais tarde importante comunicador dos perigos das mudanças

climáticas), que concluíram que as consequências não seriam tão

dramáticas como Sagan e seus colegas haviam previsto. Embora suas

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

Além da conferência, Sagan publicou diversos

artigos populares em jornais para comunicar os resultados

ao grande público e, inclusive, seu último episódio da série

Cosmos (episódio 13) é dedicado à questão. Como

observam Oreskes & Conway (2010, p.49), mesmo antes da

conferência, Sagan usou de sua influência para divulgar a

conferência junto ao grande público, escrevendo artigos

populares em jornais como Parade e Foreign Affair,

apresentando cenários possíveis resultantes da guerra. De

fato, Sagan apresentou a teoria do inverno nuclear como

uma espécie de “máquina do juízo final”, argumentando

para a urgente necessidade de políticas para reduzir os

arsenais nucleares (Ibid, p.50). Como resultado final, as

ações da UCS, Bethe e Sagan bloquearam o avanço inicial

do projeto Star Wars já no primeiro ano após sua proposta.

Contudo, após sua derrota inicial, o principal

idealizador do projeto SDI, o astrofísico Robert Jastrow,

resolveu agir (cf. Oreskes & Conway, 2008, 2010). Em

1984, Jastrow se juntou com outros dois cientistas

influentes, Frederick Seitz e Bill Nierenberg, para criar o o

conclusões continuassem consistentes com o artigo TTAPS, como a

redução da temperatura global em função da fumaça atmosférica,

Schneider e seu grupo concluíram que a redução da temperatura seria

menos dramática, algo entre 10 a 20 graus. Isto levou Schneider a

chamar o fenômeno de “outono nuclear”. Contudo, apesar dessas

correções e revisões do artigo TTAPS, a teoria do inverno nuclear, em

última análise, se revelou um trabalho acadêmico respeitável (cf.

Oreskes & Conway, 2010, p.51). Por exemplo, Schneider (1988, p. 217)

nos lembra: “[...] we belief then, and still belief, that the seriousness of

the evolving scientific consensus of the many 'indirect' nuclear effects is

so substantial that implications for both combatant and non-combatant

nations should be considered at the highest policy levels”.

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Leno Francisco Danner (Org.)

“think thank” George Marshall Institute69 (Oreskes & Conway,

2010, p.54). Seitz e Nierenberg possuíam um histórico com

forte envolvimento com questões de segurança nacional,

além de conselheiros de governos anteriores durante a

Guerra Fria. Seitz era físico e havia sido presidente da

National Academy of Sciences durante os anos de 1960.

Nierenberg, também físico, trabalhou no projeto

Manhattan e, posteriomente, durante a década de 1950, foi

diretor do Laboratório Hudson da Universidade de

Columbia, criado para desenvolver projetos para a marinha

americana. Como nos relatam Oreskes & Conway (2010,

p.36), ambos os cientistas promotores do SDI

compartilhavam uma agenda política fortemente

conservadora e anti-comunista. Frederick Seitz considerava

mesmo repugnante o ativismo anti-guerra que defendia o

desarmamento, pois, para Seitz, a União Soviética poderia

tirar proveito do desarmamento alcançando a supremacia

militar.

Assim, o George Marshall Institute foi, durante a

década de 1980, o principal promotor do SDI. Logo após

sua fundação o instituto começou uma massiva campanha

junto à grande mídia. Diversos artigos dos seus membros

passaram a circular em jornais como o Wall Street Journal e

Commentary. Além disso, Jastrow queria que a mensagem

chegasse de maneira clara ao público, passando a oferecer

treinamento a jornalistas sobre as questões técnicas do

projeto. Com sua orientação anti-comunista, Jastrow

acreditava que a Union of Concerned Scientists (UCS) não era

confiável e que apresentava ligações com o governo

Soviético. Como evidência disso, Jastrow citava uma carta

69 O sítio oficial é: http://www.marshall.org/

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162

Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

de Gorbachev ao fundador da UCS, o professor do MIT

Henry Kendall, parabenizando a UCS pelos seus esforços

em estabelecer a paz (cf. Oreskes & Conway, 2008). Além

disso, Jastrow argumentava que a mudança de “inverno

nuclear” para “outono nuclear” demonstrava que os

autores do artigo TTAPS teriam intencionalmente

distorcido os resultados, acusando-os de fraude científica.

Como nos relatam Oreskes & Conway (2010), neste

meio tempo Jastrow também contratou o porta-voz Russel

Seitz (primo de Fred Seitz) para comunicar com o público.

Imediatamente, Russel Seitz passou a argumentar na grande

mídia que os cientistas promotores do inverno nuclear

seriam partidários da esquerda, influenciados pelo

movimento anti-guerra da década de 1960 e do movimento

ambientalista da década de 197070. Segundo Oreskes &

Conway (2010, p.62), entre as organizações científicas

acusadas estavam não só a UCS, mas a Federation of

American Scientists, a American Association for the Advancement

of Science (que publica a revista Science), a American Physical

Society e, finalmente, a National Academy of Sciences. Em

outras palavras, Seitz estava acusando quase que a

comunidade científica inteira de conspirar contra o SDI. De

fato, Seitz criara um discurso em que a ciência e os

cientistas que questionavam o SDI estariam apenas

exprimindo suas opiniões políticas e que, portanto,

poderiam ser desafiados e questionados com argumentos

políticos (cf. Ibid).

Contudo, como discutido detalhadamente em

70 Veja-se, por exemplo as críticas feitas contra Carl Sagan por parte de

Seitz em “The melting of nuclear winter” (cf.

http://www.textfiles.com/survival/nkwrmelt.txt).

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Oreskes & Conway (2010), as acusações de Jastrow e Seitz

dificilmente possuíam base evidencial. Por exemplo, no

artigo TTAPS Sagan e seus colegas discutem diversos

cenários e circunstâncias mitigadoras dos efeitos, bem

como reconhecem explicitamente incertezas em suas

conclusões, de modo que a acusação de Jastrow distorce a

posição dos autores. Distorções equivalentes podem ser

observadas no discurso de Seitz. Por exemplo, a revista

Science (publicada pela American Association for the

Advancemento of Science) publicou não apenas artigos

opositores ao SDI, mas também artigos de promotores do

SDI, como Fred Singer (1985), o que demonstrava a

inconsistência das afirmações de Seitz.

Neste sentido, enquanto Seitz e Jastrow

argumentavam que havia uma motivação política e não

científica nos opositores do SDI, estava claro que estes

mesmos faziam uso de uma retórica conservadora. De fato,

a posição de Sagan e seus colegas ofendia a visão de

segurança nacional dos membros do Marshall Institute.

Como ex-cientistas que trabalharam na guerra fria, os

membros do Marshall Institute acreditavam numa vitória por

meio da tecnologia e que a supremacia militar americana

poderia ser obtida. Por outro lado, Hans Bethe, Sagan e os

membros da UCS defendiam que uma tal guerra não

poderia ser vencida, mas apenas contornada através da

diplomacia (cf. Oreskes & Conway, 2010).

É possível que os membros do Marshall Institute

obtivessem sucesso se não fosse a mobilização e dedicação

dos cientistas da UCS e Carl Sagan que, durante a década

de 1980 até o fim da guerra fria, continuaram a fazer

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164

Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

oposição ao projeto SDI71. Apesar de que se possa criticar

Sagan pela atitude inicialmente precipitada de ir à mídia

com resultados posteriormente revisados, o fato é que as

preocupações de Sagan não eram infundadas. Isto é,

mesmo que uma guerra nuclear não resultasse num inverno

nuclear tão forte como inicialmente previsto, as

consequências climáticas, com impactos sobre os

ecossistemas e a produção de alimentos, ainda eram

previsões consistentes (cf. Schneider, 1988). De fato, como

reconhecem e enfatizam Mooney & Kirshenbaum (2010) e

Oreskes & Conway (2008, 2010), não há dúvida de que

Sagan desempenhou um papel muito importante para que a

crítica dos cientistas contra a viabilidade do projeto SDI

fosse efetiva. Como resultado, temos um claro exemplo de

cientistas que exerceram não apenas uma atividade

científica exemplar, mas também que exibiram um senso de

responsabilidade científica essencial para a promoção de

uma comunicação eficaz entre ciência e sociedade.

3. Mudanças climáticas: um desafio ainda não

superado

Em seu ensaio “As duas Culturas”, C. P. Snow nos

conta que, como cientista, trabalhava de dia num

laboratório, mas como escritor costumava frequentar à

noite as reuniões de um grupo de intelectuais das ciências

71 Embora, apesar da forte oposição da comunidade científica,

especialmente entre políticos, as promessas do projeto SDI ecoam até

os dias de hoje. Veja-se: Pavel Podvig “Shooting down the Star Wars myth”,

2013. (cf.http://www.thebulletin.org/web-edition/columnists/pavel-

podvig/shooting-down-the-star-wars-myth).

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Leno Francisco Danner (Org.)

humanas. Numa dessas ocasiões, após alguns intelectuais

observarem que, em geral, cientistas eram ignorantes sobre

literatura, Snow se levantou e perguntou aos colegas

intelectuais quantos deles seriam capazes de formular a

Segunda Lei da Termodinâmica (Snow, 1965, p.23). A

pergunta, conta Snow, gerou um silêncio sem resposta. Esta

história de Snow ainda é perfeitamente atual. A pergunta

que eu gostaria de lançar é quantos colegas das ciências

humanas seriam capazes de descrever a física básica que

subjaz o fenômeno conhecido popularmente como “efeito

estufa” e que é responsável pelas temperaturas agradáveis

do nosso planeta há milênios. Infelizmente, eu temo que a

resposta novamente seria o silêncio. Se dissermos que a

explicação do efeito estufa requer um conhecimento do

espectro eletromagnético da radiação solar e terrestre, a

espectroscopia de gases constituintes da atmosfera como o

dióxido de carbono (CO2), metano (CH4) e o vapor d'água,

que a interação com a radiação infravermelha é devida ao

momento de dipolo desses gases, que o efeito estufa é

dependente do gradiente de temperatura da atmosfera com

a altitude, que o cálculo do balanço da radiação terrestre faz

uso de leis físicas como a lei de Stefan-Boltzmann, etc. (cf.

Archer, 2012; cf. Peixoto & Oort, 1992)72, tudo isto é

imediatamente compreensível a um graduando em física ou

ciências naturais afins, mas pouco provável que será a um

72 Diferente do que muitas vezes se pensa, o “efeito estufa” na

atmosfera terrestre não tem nada a ver com o modo como ocorre o

aquecimento das casas de estufa de jardineiro. Nestas estufas, o

aquecimento ocorre principalmente pela transferência de calor por

convecção, enquanto que o “efeito estufa” da atmosfera se deve

principalmente à absorção de radiação infravermelha por gases como o

CO2 (cf. Archer, 2012; Peixoto & Oort, 1992).

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

graduando em filosofia ou outras disciplinas humanitárias.

Este estado de coisas ilustra, como já observara C.

P. Snow (1965), uma falha no nosso sistema educacional. É

claro que ninguém pode estudar e se especializar em tudo,

inevitavelmente a especialização implica numa dose de

isolamento. Contudo, a educação para a especialização

torna-se problemática quando condena intelectuais das

ciências humanas à “analfabetização” científica. O termo é

forte, mas é exatamente o problema que parece estarmos

enfrentado e que é discutido por Snow (1965) e Mooney &

Kirshenbaum (2009). Por sua vez, do outro lado, por parte

da formação acadêmica nas ciências naturais, um problema

equivalente pode ser identificado. À exceção das

licenciaturas, ainda são poucos os cursos de graduação em

física e outras ciências naturais onde se tenha lido Karl

Popper, Thomas Kuhn, Stephen Toulmin, ou mesmo

clássicos como Platão, Aristóteles, Montaigne, Descartes,

Hume e Kant. Esta lacuna pode ter como consequência

uma dificuldade em comunicar as reais capacidades da

ciência, o que a ciência pode e não pode fazer por nós,

como discutido por Mike Hulme (2009). A este respeito,

Carl Sagan (1997) nos relata a sua gratificação para com a

Universidade de Chicago e seus professores que

enfatizavam a necessidade de que um estudante de física

não poderia se formar sem ter conhecimento dos clássicos

da filosofia e da literatura73.

73 Sagan também enfatiza a necessidade de discutirmos questões éticas

nos cursos de graduação em física. Ele escreve (Ibid, 1997, p. 276):

“Today our poison arrows can destroy the global civilization and just

possibly annihilate our species. The price of moral ambiguity is now

too high. For this reason - and not because of its approach to

knowledge - the ethical responsibility of scientists must also be high,

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Infelizmente, esta separação (gap) existente entre a

ciência e as disciplinas humanitárias já por longo tempo nos

atrapalha e muito ainda precisa ser feito para aproximar

estes dois campos do saber que, no fundo, devem ser vistos

como complementares. De fato, a falta de integração entre

estes dois campos do saber é um dos fatores que

contribuem para a manutenção e perpetuação do que

outros autores têm chamado de “controvérsias científicas

artificialmente mantidas” (cf. Latour, 2004; Hamilton,

2010). Um exemplo especialmente marcante desse tipo de

controvérsia artificial é sem dúvida a controvérsia sobre as

mudanças climáticas. Historiadores da ciência como Naomi

Oreskes (2004, 2007, 2010), Spencer Weart (2011) e James

Fleming (1998) têm documentado o trabalho sério de

cientistas no entendimento do clima global e o papel

antropogênico neste processo. De acordo com tais autores,

já há mais de duas décadas cientistas possuem uma base

científica sólida que permite afirmar a existência de uma

causa antropogênica nas mudanças climáticas recentes.

De fato, os quatro relatórios do Intergovernmental

Panel on Climate Change (IPCC)74 que se seguiram (1990,

1995, 2001, 2007) e que contaram com a participação de

um número cada vez maior de cientistas de diferentes

extraordinarily high, unprecedentedly high. I wish graduate science

programmes explicitly and systematically raised these questions with

fledgling scientists and engineers”.

74 O IPCC é uma criação conjunta da World Meteorological Organization

(WMO) e da United Nations Environmental Programme (UNEP) (cf.

http://www.ipcc.ch/organization/organization.shtml).

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

nacionalidades75, expressam a posição da comunidade

científica internacional sobre o tema (cf. Houghton, 2009,

p.265). Em tais relatórios, especialmente nos três últimos,

1995, 2001, 2007, é atestada a existência perceptível da

influência humana no clima global, ou seja, a existência de

uma causa antropogênica no aquecimento global76. Esta

conclusão do IPCC também foi atestada pelas academias

de ciência de inúmeros países77, confirmando que há um

forte consenso na comunidade científica sobre a existência

de um fator antropogênico nas mudanças climáticas78.

75 Os relatórios do IPCC são divididos em 3 grupos (Working Group

I: The Physical Science Basis; Working Group II: Impacts, Adaptation

and Vulnerability; Working Group III: Mitigation of Climate Change).

Para se ter uma ideia, o primeiro grupo (Working Group I), no 1º.

relatório (1990), contou com a contribuição de 170 cientistas de 25

países e mais 200 cientistas envolvidos no processo de peer review. Para o

4º. relatório (2007), o número cresceu para 152 autores principais (lead

authors) e 500 autores contribuidores (contributing authors) e mais de 600

autores envolvidos em dois estágios de peer review (cf. Houghton, 2009,

p.264).

76 No 4º relatório do IPCC (“A report of Working Group I of the

Intergovernmental Panel on Climate Change - Summary for

Policymakers”, p.10), podemos encontrar: “Most of the observed

increase in global average temperatures since the mid-20th century is

very likely due to the observed increase in anthropogenic greenhouse gas

concentrations”.

77 De fato, nenhuma academia científica contesta atualmente o

consenso existente. Veja-se, também: Joint science academies’ statement:

Global response to climate change, 2005. Disponível em:

http://www.nationalacademies.org/onpi/06072005.pdf Acesso em

Julho de 2012.

78 Estudos recentes também indicam um consenso bastante expressivo

na comunidade científica no que concerne à existência de uma causa

antropogênica no aquecimento global. Veja-se Oreskes (2004) e

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169

Leno Francisco Danner (Org.)

No entanto, este consenso científico tem sido

objeto de contestação por parte de uma minoria de

cientistas que se denominam “céticos” no que concerne às

conclusões do IPCC (cf. Oreskes, 2007). Enquanto que a

grande maioria da comunidade científica atesta a existência

de um fator humano no aquecimento global, os céticos

defendem que o fator antropogênico é negligenciável e

que apenas causas naturais regem o clima. A argumentação

cética se desenvolve em diversas frontes, seja apontando

para as diversas incertezas existentes na climatologia, ou

alegando possuírem evidência desfavorável à visão

Anderegg, et al. (2010). Contudo, dizer que há um forte consenso na

comunidade científica no que concerne ao aquecimento global

antropogênico não significa que exista um consenso igualmente

expressivo no que concerne às previsões de longo prazo que se utilizam

de modelos computacionais. De fato, para evitar cometer um erro

comum é preciso distinguir aqui entre três questões distintas (cf.

Kitcher, 2010): (1) a questão da causa antropogênica das mudanças

climáticas (ou seja, o aquecimento global devido às emissões

antropogênicas de gases de efeito estufa); (2) a questão relativa à

velocidade com que o aquecimento ocorrerá e as suas consequências

para seres humanos e outras espécies; (3) a questão relativa ao que deve

ser feito para estabilizar o aquecimento e limitar as consequências

indesejadas. Assim, enquanto que cientistas estão em consenso legítimo

no que concerne ao aquecimento global antropogênico, ou seja, no que

concerne à resposta a questão (1) acima, não significa que não

persistam dúvidas razoáveis e incertezas no que concerne a questão (2)

acima, ou seja, no que se refere às previsões de longo prazo que se

utilizam de modelos computacionais. Quando tomamos em

consideração a questão da previsibilidade do clima através de modelos

computacionais, cientistas consideram que há muito mais incertezas

envolvidas, de modo que, neste contexto, há muito mais espaço para a

crítica e desacordo razoável (cf. Hulme, 2009, p.91). Na discussão que

segue estarei me referindo ao consenso científico relativo à questão (1).

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

consensual, ou ainda atacando a visão consensual

acusando-a de “dogmatismo”, “ortodoxia”, de modo que a

visão consensual seria fruto de uma conspiração, um

consenso orquestrado sem fundamentação científica (cf.

Nerlich, 2010, Pearce, 2010).

De fato, uma análise dos episódios de confronto

entre cientistas e céticos revelam que duas estratégias

céticas gerais prevalecem. A primeira delas é a da

“disseminação da dúvida” (cf. Oreskes & Conway, 2008,

2010) dentro de um quadro que podemos chamar de

“ceticismo ambiental” (cf. Jacques, Dunlap & Freeman,

2008). A segunda estratégia constitui o que Michael Mann

chamou de a “estratégia Seringetti” (cf. Mann, 2012, p.4),

ou seja, ataques a cientistas individuais com acusações de

fraude, de cunho político e ideológico, como no episódio

climategate79. Notavelmente, os episódios de ataque dos

céticos aos cientistas representados pelo IPCC revelam

uma similaridade com os ataques dos proponentes do

Projeto Star Wars contra Sagan e os membros da UCS.

Esta similaridade, contudo, não é mera coincidência.

Como nos ensinam Oreskes & Conway (2008,

2010), as origens do movimento cético das mudanças

climáticas revelam um protagonista em comum entre o

79 Para uma discussão do episódio climategate ver o relatório Muir

Russel (2010), o relatório de Lord Oxburg (2010) e o relatório da

“House of Commons Science and Technology Committee” (2010), bem como o

trabalho do jornalista britânico Fred Pearce (2010). Ambos os trabalhos

chegaram à conclusão de que os cientistas envolvidos no episódio

climategate não fraudaram dados ou forjaram um consenso, como

alegado pelos céticos e veiculado na grande mídia, especialmente pela

internet. De fato, estes trabalhos chegaram à conclusão de que as

principais alegações dos céticos não possuem base evidencial.

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Leno Francisco Danner (Org.)

debate sobre o projeto SDI e as mudanças climáticas. Este

protagonista é o George Marshall Institute e seus membros.

Após a Guerra Fria, o George Marshall Institute passou a ser

a voz dos “céticos”80 do aquecimento global

antropogênico. Uma vez desenvolvidas as habilidades de

disseminar a “dúvida” usadas contra os cientistas

opositores do SDI, Robert Jastrow e seus colegas agora

passaram a usar a mesma tática contra a ciência do clima.

De fato, durante os anos 90, o George Marshall Institute é a

maior fonte de contestação e oposição ao consenso

científico emergente e ainda hoje continua argumentando

que existem incertezas científicas que justificam postergar

ações de redução de emissões81.

Em 1989, é publicado o primeiro relatório do George

Marshall Institute sobre o clima cujo título era “Global

Warming: what the science tell us?” de autoria de Robert Jastrow,

Fred Seitz e Bill Nierenberg. Segundo Oreskes & Conway

(2010, p. 186), a principal alegação do relatório era de que o

aquecimento que James Hansen e outros cientistas

encontraram não coincidia com o aumento de CO2 ao

longo da história82. O argumento de Jastrow, Seitz e

Nierenberg era de que a maior parte do aquecimento

80 Algumas vezes também denominados de “contrários” (contrarians) ou

“negacionistas” (negacionists).

81 Como podemos ver em seu Website, atualmente as mudanças

climáticas ainda continuam no topo da agenda do George Marshall

Institute (cf. http://www.marshall.org/ ).

82 James Hansen é diretor do Goddard Space Studies da NASA e um dos

grandes especialistas mundiais sobre mudanças climáticas. Hansen

ficou famoso em 1988 pelo seu testemunho no congresso americano

onde afirmou que o aquecimento global era uma realidade detectável.

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

observado foi antes de 1940, ou seja, antes da maior parte

das emissões de CO2 iniciarem83, então entre 1940 e 1975

houve um período de resfriamento, período este em que o

Sol estava em baixa atividade solar. Logo, visto que o

aquecimento não coincide com as emissões de CO2, ele

deve ter sido causado pelo Sol.

Como discutem detalhadamente Oreskes &

Conway (2010), o problema com essa argumentação era de

que fazia uso seletivo da evidência e dos resultados de

publicações, especialmente do artigo de Hansen et al.(1981)

citado no relatório. Em seu artigo Hansen et al. (1981)

fazem uso de três tipos de forçantes em seu modelo, a

saber: as emissões de CO2, as emissões de erupções

vulcânicas e o Sol. Pode-se ver no gráfico do artigo de

Hansen (1981, p.963) que é justamente quando os três

forçantes (CO2, Vulcões e Sol) são considerados, que os

resultados dos modelos coincidem de maneira mais perfeita

com as observações. Ou seja, nenhum dos três forçantes

em particular seria capaz de explicar sozinho o aumento da

temperatura observado; antes, cada forçante contribuía

com uma parcela. Assim, segundo Hansen et al. (1981), a

variação solar teria uma contribuição no aquecimento, mas

o CO2 e as emissões vulcânicas contribuiriam com a maior

83 Veja-se a curva de CO2 resultante das medidas de Charles Keeling

no Monte Mauna Loa (Hawaii).

(cf.http://en.wikipedia.org/wiki/Keeling_Curve). Para um gráfico mais

atualizado

(cf.http://www.esrl.noaa.gov/gmd/webdata/ccgg/trends/co2_data_m

lo.png). Para compreender melhor, consulte também o gráfico

(http://climate.nasa.gov/evidence/ ) e compare com os gráficos da

nota 19.

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Leno Francisco Danner (Org.)

parcela no aquecimento (cf. Ibid, p.963)84. Contudo, em seu

relatório, Jastrow, Seitz e Nierenberg, ao argumentarem que

o aquecimento não coincidia com as emissões de CO2,

omitiram a análise completa de Hansen et al. (1981) e

apresentaram apenas a comparação entre as medidas de

temperatura e a forçante CO2. Assim, concluíram que

apenas o Sol teria influência sobre o clima, enquanto que o

CO2 não teria85.

Outro problema com o relatório de Jastrow, Seitz e

Nierenberg é de que estes não eram capazes de explicar o

retorno do aquecimento observado após 1975, pois o Sol

neste período estava em baixa atividade solar86. De fato, a

única explicação para o retorno do aquecimento após 1975

é de que as emissões de CO2 são a causa, o que está de

acordo com o artigo de Hansen et al. (1981). Além disso,

84 Interessante notar que uma das previsões do artigo de Hansen et al.

(1981, p.957) é a abertura para navegação da Passagem do Noroeste

(Northwest Passage) no mar ártico. Atualmente estamos presenciando a

confirmação dessa previsão

(cf. http://en.wikipedia.org/wiki/Northwest_Passage ).

85 Para mais detalhes, veja-se, Oreskes & Conway (2010, p.188).

86 De fato, em seu relatório eles argumentaram que um período de

esfriamento estaria por vir. Eles escrevem: “If the correlation between

solar activity and global temperatures also continues, a trend toward a

cooler planet can also be expected in the 21st as a result of natural

forces of climate change” (Jastrow et al., apud Oreskes & Conway,

2010, p.187). Ora, nada está mais longe da verdade. Desde 1975 tem se

observado um aquecimento gradual, como indica a reconstrução

recente feita pela NASA (cf.

http://cdiac.ornl.gov/trends/temp/hansen/graphics/gl_land.gif).

Outras reconstruções podem ser encontradas no sítio da NOAA (cf.

http://www.ncdc.noaa.gov/cmb-faq/anomalies.php).

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

Stephen Schneider87 observou que se Jastrow e companhia

estão certos em argumentar que o clima é extremamente

sensível a mudanças na incidência da radiação solar, então

deve-se reconhecer que o clima é igualmente sensível a

mudanças na concentração de gases de efeito estufa (que

retém a radiação) como o CO2. Em outras palavras, a

sensibilidade do clima deve valer em ambos os casos, tanto

para o Sol como para o CO2. Finalmente, em 1990 é

publicado o primeiro relatório do IPCC. Neste trabalho, os

autores consideraram os argumentos do relatório Marshall

e o rejeitaram, já que, segundo o IPCC, a variabilidade solar

é pequena se comparada com os efeitos produzidos pelos

gases de efeito estufa (Oreskes & Conway, 2010, p.189).

Segundo Oreskes & Conway (2010), neste período inicia a

contestação do IPCC e do consenso científico emergente

através do ataque a cientistas individuais envolvidos. Um

desses episódios apresentarei a seguir.

No início da década de 1990, os membros do George

Marshall Institute passam a ter um novo aliado, seu nome é

Fred Singer. Fred Singer recebeu seu PhD em física em

Princeton, foi pesquisador em Física Aplicada na

Universidade John Hopkins. Durante 1950 e 1960

trabalhou com tópicos como física atmosférica, astrofísica e

tecnologia de satélites e, em 1962, se tornou o primeiro

diretor do Natinal Weather Sattelite Center. Foi também

diretor da Interagency Work Group on the Environmental Impacts

e cientista chefe do Department of Transportation no segundo

governo Reagan (1987 – 1989). Em 1989, Singer funda o

87 Stephen Schneider foi outro grande especialista mundial em

climatologia, o mesmo Schneider que revisou o trabalho de Sagan sobre

o inverno nuclear.

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Science and Environment Policy Project (SEPP)88 e em 1992

(alguns meses antes da ECO 92 no Rio de Janeiro) lança

um ataque ao Aquecimento Global Antropogênico (AGA)

em seu Website SEPP intitulado: “Statement by Atmospheric

Scientists on Greenhouse Warming” com a assinatura de 47

cientistas (maioria físicos e meteorologistas)89. Interessante

notar que Singer é um dos autores principais do NIPCC

(Nongovernmental International Panel on Climate Change)

fundado pelo Heartland Institute90.

Uma das primeiras investidas de Singer contra o

aquecimento global antropogênico envolveu o controverso

episódio da publicação de um artigo na revista Cosmos

com a coautoria de Roger Revelle91. Roger Revelle foi um

climatologista importante durante os anos 60 a 80, foi

Revelle quem ajudou a conseguir fundos para Charles

Kelling92 fazer suas medições de CO2 no monte Mauna

Loa no Hawaii. Além disso, Revelle tinha ampla presença

88 cf. http://www.sepp.org/.

89 A partir de então, Singer passou a escrever numerosos artigos

populares e semi-populares questionando o consenso científico

emergente sobre o AGA. Entre 1989 – 2003 publicou inúmeros textos

(artigos populares em jornais, etc.) que quase em sua maioria

questionam o aquecimento global antropogênico. Em 1997 publica o

livro Hot Talk, Cold Science: Global Warming's Unfinished Debate, publicado

pelo Independent Institute (outro “think tank”), dois anos após o segundo

relatório do IPCC (1995).

90 Este é outro “think thank” conservador (cf.http://heartland.org/). O

relatório do NIPCC está disponível em:

http://www.nipccreport.org/reports/2011/pdf/FrontMatter.pdf .

91 http://earthobservatory.nasa.gov/Features/Revelle/

92 Veja-se Spencer Weart “Money for Kelling: Monitoring CO2 levels” (cf.

http://www.aip.org/history/climate/Kfunds.htm).

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

midiática e curiosamente havia sido mentor de Al Gore93

nos anos 60 em Harvard.

Como nos contam Oreskes & Conway (2010), em

1990 Revelle (já com 81 anos) realizou uma palestra na

American Association for the Advancement of Science (AAAS)

intitulada “What can we do about climate change?”. Nesta

palestra, Revelle concentrou-se sobre as medidas que

poderiam ser tomadas para minimizar o aquecimento global

como, por exemplo, a adoção de uma matriz energética

mais limpa. Para Revelle, havia boas razões para crer que

um aquecimento global estaria por vir; contudo, no

momento em que medidas de mitigação seriam tomadas,

Revelle acentuou a necessidade de mais pesquisas para que

se possa fornecer uma diagnóstico mais preciso dos

impactos que estariam por vir. Como todo cientista sério,

Revelle reconhecia incertezas ainda existentes. Porém,

dadas as evidências, o caminho prudente era o de adotar

ações de mitigação, iniciando uma transição para energias

mais limpas (Ibid, p.191).

Na plateia deste evento estava Fred Singer. Após a

palestra, Singer indagou Revelle sobre a possibilidade de

colaborar num artigo94. Após aceitar o convite, ocorreu

que, na viagem de volta, Revelle sofre um mau súbito e é

93 Candidato a presidente dos EUA em 2000 e autor do famoso

documentário “An inconviniet Truth” (2006).

94 Segundo Oreskes & Conway (2010, p.191), Revelle havia iniciado

sua palestra com uma passagem modesta, mas potencialmente

enganadora: “There is good but by no means certain chance that the

world's average climate will become significantly warmer during the

next century” (Revelle, apud, Oreskes & Conway, 2010, 191). Esta

passagem poderia ter dado a Singer a abertura que precisava (cf.

Oreskes & Conway, 2010).

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hospitalizado. Singer inicia a redação do artigo, cujo título

era “What to do about Greenhouse Warming: Look before you

leap”95. Neste meio tempo, Singer envia três versões do

artigo a Revelle ainda hospitalizado. Mesmo após uma

melhora e retorno para casa, Revelle ainda estava tão fraco

que, dado o seu estado de saúde, não se sabe ao certo com

que precisão Revelle foi capaz de revisar o artigo (Oreskes

& Conway, 2010, p.192). Aparentemente, num dos

manuscritos onde Singer escrevera como sensitividade do

clima96 menor que 1 grau (dentro da variabilidade natural),

Revelle teria riscado e escrito nas margens do manuscrito 1

a 3 graus97. De todo modo, a versão final do artigo, editada

por Singer, não contém números, mas apenas a observação

de que se esperaria uma modesta variação de temperatura

dentro dos limites da variabilidade natural98. Infelizmente,

pouco tempo depois da publicação do artigo, Revelle sofre

um ataque de coração fatal, de modo que os fatos sobre sua

posição acerca do artigo não puderam ser completamente

95 Artigo disponível em:

http://ruby.fgcu.edu/courses/twimberley/envirophilo/lookbeforeyoul

eap.pdf .

96 A sensitividade do clima diz respeito ao aumento de temperatura

esperado com uma duplicação dos níveis de CO2 desde o período pré-

industrial. Ou seja, de aproximadamente 280 ppm (níveis pré-

industriais) para 560 ppm. Atualmente a concentração está na faixa dos

390 ppm e crescendo

(cf.http://www.esrl.noaa.gov/gmd/ccgg/trends/). A sensitividade do

clima prevista no relatório IPCC (2007) está entre 2 °C e 4,5 °C.

97 Cf. Oreskes & Conway (2010, p. 193).

98 A passagem é: “Assume what we regard as the most likely outcome:

A modest average warming in the next century well below the normal

year-to-year variation [...]” (cf. Singer et al., 1991).

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

esclarecidos. Ironicamente, com a publicação do artigo na

revista Cosmos em 1991, Singer e outros céticos passaram a

citar o artigo Cosmos como sendo uma contribuição de

Revelle, de modo que esta teria sido a opinião final de

Revelle sobre o tema. Em outras palavras, ao final de sua

vida, Revelle teria mudado sua posição sobre a realidade do

aquecimento global antropogênico.

De fato, há boas razões para supor que revele teria

rejeitado a versão final do artigo. Diversos cientistas que

conheciam Revelle, inclusive seu pupilo Justin Lancaster,

asseguraram que aquela não era a opinião de Revelle sobre

o assunto99. Walter Munk e Edward Frieman, dois colegas

de Revelle do Scripps Institution of Oceanography escreveram

uma carta ao jornal Cosmos criticando Singer, mas que não

foi publicada. Posteriormente, a carta é publicada no jornal

Oceanography100. Também houve revolta de familiares de

Revelle, com protestos de sua filha Carolyn Revelle101. De

fato, como observam Oreskes & Conway (2010, p.194), é

importante notar que a “conclusão” do artigo Cosmos, que

sugere que a sensitividade do clima estaria dentro dos

99 Veja-se Justin Lancaster “The Real Truth About the Revelle-Gore

Story”, disponível em:

http://ossfoundation.us/projects/environment/global-

warming/myths/revelle-gore-singer-lindzen.

100 Munk, W. & Frieman, E. “Let Roger Revelle Speak for Himself”.

Oceanography, 5, n.2, 1992. Disponível em:

http://www.tos.org/oceanography/issues/issue_archive/issue_pdfs/5

_2/5.2_munk_frieman.pdf .

101 Carolyn Revelle Hufbauer. “Global Warming what my father really

said”. Washington Post, Stember, 13, 1992. Disponível em:

http://uscentrist.org/about/issues/environment/john_coleman/caroly

n-revelle-what-my-father-really-said.

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Leno Francisco Danner (Org.)

limites da variabilidade natural, não se encontra no artigo

de Revelle apresentado na AAAS, mas é a posição que

podemos encontrar no artigo de Singer de 1990102. Logo,

há boas razões para crer que deve ter sido Singer quem

inseriu esta passagem no artigo Cosmos103.

A polêmica gerada por Singer com o artigo Cosmos

não era mera coincidência. Ela pode ser interpretada como

sendo parte da estratégia “cética” de promover

“controvérsias científicas artificiais”. Esta estratégia parece

recorrente nos escritos de Singer, como podemos perceber

também em outros temas que fizeram parte da sua agenda

e onde ele ataca o que denomina de “junk science”. Entre

estes temas estão a chuva ácida, os CFCs e a camada de

ozônio e a relação entre tabaco e câncer (cf. Oreskes &

Conway, 2010, 2008). No que concerne à relação entre o

Ozônio e os CFCs, Singer escreveu artigos populares em

jornais como Wall Street Journal. Como observam Oreskes &

Conway (2010, p.133), em 1995 Singer atesta no congresso

americano que não existe consenso científico sobre as

causas do buraco de ozônio, que, para Singer, seriam

ligadas à variabilidade natural. Interessante notar que, no

102 Singer, F. “What to do about gobal warming?” Environmental

science and technology, 24, n.8., 1990. Disponível em:

http://ossfoundation.us/projects/environment/global-

warming/myths/revelle-gore-singer-

lindzen/documents/Singer_article_solo.pdf/view .

103 De todo modo, como documentam Oreskes & Conway (2010),

uma passagem de Revelle num encontro de novembro de 1990 não

deixa dúvidas quanto a sua posição: “There is good reason to expect

that because of the increase of greenhouse gases in the atmosphere

there will be a climate warming” (Revelle, apud, Oreskes & Conway,

2010, p.196).

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

mesmo ano de 1995, Paul Crutzen, Mario Molina e

Sherwood Rowland receberam o Prêmio Nobel de Química

pela sua descoberta de que o CFC, ao alcançar a

estratosfera, libera o cloro, que reage com o ozônio

destruindo sua molécula104. Também em 1995 Singer e

Baliunas (outra cética das mudanças climáticas) atestaram

no congresso americano de que o buraco de ozônio não

traria risco para a incidência de câncer de pele, testemunhos

contrários à American Academy of Dermatology105. Finalmente,

também podemos também encontrar defesas de Singer que

contestam a relação entre o tabaco e o câncer106.

No que concerne ao aquecimento global

antropogênico, uma análise dos escritos de Singer revela

que, para o autor, o aquecimento global antropogênico teria

sido manufaturado por ambientalistas com uma agenda

104 Cf.

http://www.nobelprize.org/nobel_prizes/chemistry/laureates/1995/

105 De fato, num dos artigos de Singer “Ozone Scare Generates Much

Heat, Little Light”, Wall Street Journal, 16 April, 1987, Singer escreve:

“But there is no reliable evidence that the total amount of ozone has

decreased, and any increase in the incidence of melanoma, the

most serious type of skin cancer, must therefore involve other

causes”(cf.http://www.fortfreedom.org/s13.htm). Compare com a

posição atual da American Academy of Dermatology (cf.

http://www.aad.org/skin-conditions/dermatology-a-to-z/skin-

cancer/who-gets-causes#.UWRNEaKpxJA).

106 Em 1994, Singer escreve: "I can't prove that ETS is not a risk of

lung cancer, but EPA can't prove that it is”. Disponível em:

http://legacy.library.ucsf.edu/tid/chf03f00/pdf. Outro membro do

Marshall Institute amplamente conhecido por suas defesas da indústria de

tabaco é Frederick Seitz (cf. Oreskes & Conway, 2010, 2008).

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política contrária ao mercado livre do sistema capitalista107.

De fato, a campanha de Singer e os membros do Marshall

Institute contra o consenso científico sobre o aquecimento

global antropogênico segue a mesma estratégia usada para

promover o projeto Star Wars. Ou seja, acusações de cunho

político e o uso da mídia de massa para convencer o

público em aceitar uma interpretação bem distinta da

comunidade científica da área. Dale Jamieson & Charles

Herrick em seu artigo Junk Science and Environmental Policy:

Obscuring Public Debate With Misleading Discourse (2001),

analizaram diversos artigos de céticos e concluem que os

artigos dos céticos (negacionistas), que empregam o termo

“junk science” para atacar as ciências ambientais, baseiam-se

em julgamentos políticos e valorativos, e não em

argumentos científicos (Ibid, p.15). Esta é a mesma

conclusão a que chegaram diversos historiadores e

sociólogos como Oreskes & Conway (2008, 2010), Jacques,

Dunlap & Freeman (2008), McCright & Dunlap (2010). De

fato, como visto, a principal estratégia cética (negacionista)

contra o consenso existente é a “disseminação da dúvida”

através do desacordo, promovendo controvérsias cientificas

artificiais. Este é com certeza um problema considerável,

afinal, como pode o público leigo distinguir entre uma

controvérsia artificial e uma controvérsia científica legítima?

Acredito que é neste ponto que a comunicação

científica e a alfabetização científica problematizada

inicialmente têm um papel essencial a desempenhar.

Assim, o exemplo dos cientistas envolvidos na

comunicação dos perigos do projeto Star Wars pode servir

107 Esta mesma opinião é expressa por Greeg Easterbrook “Has

environmentalism blown it? Grenn Cassandras” (1992).

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

de modelo de comunicação eficaz a ser seguido também

no caso das mudanças climáticas. De fato, muitos

cientistas como James Hansen, Michael Mann, entre

outros, têm seguido os passos de Sagan, aceitando

frequentemente convites para falar ao grande público, bem

como expresso suas preocupações em livros e artigos

populares. Além disso, a própria UCS também esteve à

frente da comunicação da ciência das mudanças climáticas.

Especialmente no estado da Califórnia, onde a UCS

publicou relatórios sobre o clima local108, seu sucesso foi

expressivo. Não é por acaso que a Califórnia, no governo

de Arnold Schwarzenegger em Junho de 2005, foi o

primeiro estado americano a adotar medidas de redução de

emissões de CO2 (cf. Cole & Watrous, 2007, p.182). De

fato, como argumentam os autores (Ibid, p. 187), são as

medidas de comunicação local e regional, através de

cientistas de cada país, estado ou região, que se revelam as

mais eficazes quando se trata da comunicação com o

público leigo. Para os autores, o fato de a comunicação

regional e local se mostrar mais eficaz do que a publicação

de relatórios de um longínquo IPCC é uma lição

importante que deve ser tomada em consideração na

comunicação futura da realidade e dos riscos das

mudanças climáticas.

Por outro lado, além da comunicação mais eficaz

entre ciência e sociedade, temos o problema relacionado

da alfabetização científica. A partir do que foi visto, e de

uma leitura mais aprofundada dos autores mencionados

108 cf.

http://www.ucsusa.org/global_warming/regional_information/ca-

and-western-states.html

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Leno Francisco Danner (Org.)

neste ensaio como Oreskes & Conway (2010, 2008), Weart

(2011), Fleming (1998), McCright & Dunlap (2010),

Jacques, Dunlap & Freeman (2008), é inevitável concluir

que a tática de Jastrow, Seitz, Singer, e outros céticos, só

poderia ter sucesso frente a uma plateia sem

conhecimento científico. De fato, não é incomum céticos

do clima apresentarem na mídia alegações extraordinárias

como a de que “o efeito estufa não existe”, “o efeito

estufa viola a segunda lei da termodinâmica”, ou outras

alegações como a de que “o CO2 é uma resposta ao

aumento de temperatura e não a causa do aumento de

temperatura”. Afirmações que um público com uma boa

alfabetização científica colocaria no mínimo sob suspeita.

Mas a alfabetização científica deve ir além disso, ela deve

envolver também um conhecimento de como a ciência

funciona e do que é necessário para que se possa dizer que

existe uma controvérsia científica legítima sobre

determinado tópico. Neste ponto, a filosofia e a história da

ciência tem muito a contribuir.

Uma questão relevante neste contexto diz respeito

ao significado epistêmico do desacordo. Ou seja, como

devemos reagir frente ao desacordo de um colega? Ou

frente ao desacordo de terceiros? Ou frente ao desacordo

de especialistas? Aqui a filosofia tem muito a contribuir,

especialmente o campo de estudo da epistemologia

conhecido como a epistemologia do desacordo (cf. Kelly,

2010, Lackey, 2010, Christensen, 2009). Uma das

conclusões desses autores é de que não existe uma

resposta geral para as questões acima, antes uma resposta

adequada sobre como devemos reagir frente ao desacordo

depende das circunstâncias envolvidas (cf. Kelly, 2010).

Consideremos, por exemplo, a situação em que, após

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

tomar em consideração e avaliar uma quantia considerável

de evidência histórica, formamos a crença de que o

Holocausto ocorreu. Logo em seguida, encontramos um

colega que nega que o Holocausto tenha ocorrido. Como

devemos revisar nossa opinião inicial em face do

desacordo com o colega? Claramente num caso como esse

não precisamos suspender o juízo frente ao desacordo. É

perfeitamente racional mantermos a posição original

mesmo na presença de alguém que afirma que o

Holocausto não tenha ocorrido.

Da mesma maneira, com base nos conhecimentos

que possuímos atualmente, é perfeitamente racional que se

atribua pouco ou nenhum mérito a alegações que

questionam a forma esférica da Terra, a sua localização no

sistema solar, a mobilidade dos continentes, a existência de

átomos e moléculas, a existência do efeito estufa ou outros

fatos ou teorias científicas bem estabelecidas. Contudo,

além de considerar quão bem nossa posição (ou a de

terceiros) é apoiada pelas evidências, é igualmente

importante observar a distinção entre os casos de

“ceticismo legítimo” e casos flagrantes de “dogmatismo”

ou “mente fechada”, como destacado por Gilovich (1991).

Assim, por exemplo, os cientistas que, ao final da década

de 1980, rejeitaram as alegadas descobertas sobre a fusão

nuclear a frio foram perfeitamente racionais. Isso porque,

além de basearem sua rejeição numa sólida base teórica

que especificava quais eventos eram prováveis e

improváveis, eles consideraram seriamente o caso da fusão

a frio, engajando-se com as alegações e buscando replicar

os experimentos sobre fusão a frio sem sucesso (Gilovich,

1991, p.51). Ou seja, respeitaram a atitude de mente aberta

necessária para evitar casos de dogmatismo.

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185

Leno Francisco Danner (Org.)

Este é justamente o aspecto que devemos

considerar quando avaliamos o consenso científico

existente sobre o aquecimento global antropogênico. De

fato, cientistas devem ser céticos no sentido de que devem

adotar uma postura crítica de reconhecimento de sua

falibilidade, bem como devem adotar uma postura crítica

para com os resultados de seus pares. Assim, é justamente

neste processo de escrutínio mútuo que um consenso

legítimo pode ser obtido (cf. Longino, 1990)109. Dessa

forma, quando consideramos e avaliamos a controvérsia

das mudanças climáticas, fornecer um diagnóstico

adequado deverá requerer, inevitavelmente, um

conhecimento dos fatores circunstanciais envolvidos,

conhecer os protagonistas envolvidos, seus argumentos e

suas motivações. Isso, é claro, requer um trabalho e tanto.

Felizmente, em grande parte este trabalho já foi feito por

historiadores e sociólogos da ciência como Oreskes &

Conway (2010, 2008), Weart (2011), Fleming (1998),

McCright & Dunlap (2010), Jacques, Dunlap & Freeman

(2008), entre outros não mencionados neste trabalho, e

109 Helen Longino (1990) chama este processo de “criticismo

transformativo” (transformative criticism). É importante observar que,

quando uma controvérsia científica encontra uma resolução racional e

um consenso é obtido, isso não significa uma adesão unânime de

“todos” os membros da comunidade científica. Como observa Ernan

Mcmullin (1987) mesmo após uma resolução satisfatória de uma

controvérsia, por meio de fatores epistêmicos (ou evidenciais), sempre

é possível que alguns remanescentes inconformados resistam à

mudança. De fato, a história da ciência está repleta de casos desse tipo.

Um exemplo marcante é a resistência de uma minoria de cientistas,

como Harold Jeffreys e o geólogo Russo Beloussov, à teoria das placas

tectônicas na geologia ainda durante a década de 1980 (cf. Lugg, 1978,

p.285; Oreskes, 1999, p.271).

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186

Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

que demonstraram que cientistas representados pelo IPCC

consideraram seriamente a posição dos céticos

(negacionistas) apontando as falhas em sua argumentação.

Neste sentido, seria de grande benefício que

educadores da física e filosofia incorporassem os tópicos

aqui mencionados: como a questão da responsabilidade

científica, a comunicação científica, as controvérsias

artificiais, a epistemologia do desacordo, o conhecimento

histórico e sociológico da ciência, no ensino de suas

disciplinas. De fato, estamos realmente nos movendo em

terras perigosas na medida em que nosso conhecimento

científico e tecnológico avança, mas uma visão mais ampla

é excluída do processo educacional. Como resultado dessa

lacuna ainda existente, temos um enorme inércia instalada

quando se trata de problemas profundos como o das

mudanças climáticas. James Lovelock disse certa vez que os

humanos são simplesmente estúpidos de mais (to stupid)

para fazer algo a respeito110. Espero que estas palavras não

se revelem verdadeiras no futuro e que nossos educadores

sejam peça chave na criação de um “clima” necessário para

a mudança.

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193

Leno Francisco Danner (Org.)

Algumas possibilidades de

interação entre filosofia e

biologia

Ediovani A. Gaboardi 111

O presente texto tem como objetivo apresentar

algumas diretrizes gerais para se implementar a interação

entre filosofia e biologia no ensino, especialmente no nível

médio e nas disciplinas introdutórias dos cursos superiores.

Num primeiro momento, são apresentadas algumas

dificuldades (poderíamos dizer, preconceitos) que precisam

ser superadas para tornar essa interação viável. Num

segundo momento, são apontados alguns argumentos em

vista da superação dessas dificuldades. Por fim, sugerem-se

dois temas, intrinsecamente relacionados, que podem

catalisar discussões que promovam a interação entre

filosofia e biologia.

Em relação aos dois primeiros pontos, existe um

preconceito mútuo entre a filosofia e as ciências empíricas,

como a biologia, a respeito de seus respectivos graus de

criticidade. A consequência disso é que, no mundo

111 Mestre em Filosofia pela PUCRS, professor de Filosofia na

Universidade Federal da Fronteira Sul.

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194

Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

contemporâneo, na medida em que o saber científico goza

de um prestígio muito maior que o filosófico, a ciência tem

pretendido afastar-se da filosofia. Pretende-se mostrar que

essa diferenciação é, até certo ponto, saudável e vantajosa

para ambas, na medida em que permite o desenvolvimento

de duas formas diferentes de compreender o pensamento

crítico. Entretanto, igualmente enriquecedora é a interação,

o diálogo. A filosofia não pode deixar de reconhecer e de

problematizar a criticidade científica, assim como do

interior da biologia surgem de fato problemas que merecem

sobremaneira um tratamento filosófico.

Em relação ao último ponto, o texto apresenta

temáticas e conteúdos que podem servir de ponto de

partida para uma interação entre filosofia e biologia no

ensino. O foco essencial dessas temáticas e conteúdos é a

dualidade entre teleologia e mecanicismo, que leva também

à discussão sobre a natureza das ciências humanas e da

ética. Explora-se o significado do mecanicismo,

especialmente na biologia, os problemas que ele gera,

sobretudo para a ética, e como esta área pode ser reabilitada

a partir de uma discussão interna ao campo biológico.

1 Obstáculos epistemológicos para o diálogo entre

filosofia e biologia no ensino

Antes de discutir propriamente as conexões entre

filosofia e biologia no ensino, é preciso avaliar os

obstáculos epistemológicos que se deve transpor para

estabelecer o diálogo entre essas duas áreas do

conhecimento, especialmente no que se refere ao contexto

formativo. Inspirando-me em Bachelard (1996), chamo de

obstáculos epistemológicos aquelas concepções a respeito

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195

Leno Francisco Danner (Org.)

do conhecimento biológico e do conhecimento filosófico,

produzidas no interior da ciência e da filosofia, que

impedem sua interlocução.

1.1 A filosofia é inútil e excessivamente crítica

Em A estrutura das revoluções científicas, publicada em

1962, Thomas Kuhn apresenta um diagnóstico interessante

sobre a relação entre a filosofia e as ciências

contemporâneas. Nas suas palavras, “em geral os cientistas

não precisam ou mesmo não desejam ser filósofos. [...] Na

medida em que o trabalho de pesquisa normal pode ser

conduzido utilizando-se do paradigma como modelo, as

regras e pressupostos não precisam ser explicitados” (1977,

p. 119). Kuhn apresenta aqui a aversão típica do cientista

contemporâneo à filosofia. Fazer ciência implica em rejeitar

as abordagens filosóficas.

Para Kuhn, essa rejeição à filosofia ocorre quando

uma disciplina científica atinge o status de ciência normal,

caracterizado da seguinte forma:

Homens cuja pesquisa está baseada em

paradigmas compartilhados estão comprometidos

com as mesmas regras e padrões para a prática

científica. Esse comprometimento e o consenso

aparente que produz são pré-requisitos para a

ciência normal, isto é, para a gênese e a continuação

de uma tradição de pesquisa determinada (1977, p.

30).

O que é característico do estágio da ciência normal

é a adesão da comunidade científica a um paradigma,

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196

Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

definido por Kuhn como “[...] as realizações científicas

universalmente reconhecidas que, durante algum tempo,

fornecem problemas e soluções modelares para uma

comunidade de praticantes de uma ciência” (1977, p. 13). É

importante realçar os elementos que aparecem nessa

definição: a) um paradigma é antes de tudo um exemplo

considerado bem sucedido que, por razões diversas

(algumas externas à ciência mesma), ganhou repercussão e

tornou-se influente na comunidade científica; b) o

paradigma indica quais problemas merecem e quais não

merecem ser investigados, ou seja, ele delimita o objetivo

de pesquisa; e c) o paradigma indica de que forma as

soluções devem ser buscadas, ou seja, que métodos são

científicos e, consequentemente, quais não são.

No posfácio de 1969, Kuhn explicita o fato de que

usou o conceito de paradigma de forma imprecisa, e que o

conjunto todo dos pressupostos da ciência normal pode ser

mais bem compreendido com a expressão “matriz

disciplinar”, que contém elementos tais como: a)

generalizações simbólicas: expressões formais geralmente

aceitas pelo grupo que permitem “a aplicação de poderosas

técnicas de manipulação lógica e matemática no seu

trabalho de resolução de enigmas” (1977, p. 227); b)

pressupostos metafísicos: envolvem modelos heurísticos e

ontológicos que “auxiliam a determinar o que será aceito

como uma explicação ou como uma solução de quebra-

cabeça e, inversamente, ajudam a estabelecer a lista dos

quebra-cabeças não-solucionados e a avaliar a importância

de cada um deles” (1977, p. 229); c) valores: envolvem

elementos tais como o grau de acuidade de uma previsão

considerada legítima, a simplicidade, a coerência, a

plausibilidade e a utilidade das teorias, dentre outras coisas

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197

Leno Francisco Danner (Org.)

semelhantes; d) “exemplares”: conjunto de realizações

passadas que servem de modelo para a pesquisa em uma

determinada área científica (1977, p. 232). Este último

pressuposto é o paradigma em sentido estrito.

O importante disso tudo é perceber que a atividade

de pesquisa, na ciência normal, depende da adesão a um

conjunto amplo de pressupostos, inclusive de natureza

filosófica. A partir dessa adesão, a investigação deixa de ser

uma busca descompromissada pela verdade para reduzir-se

à tentativa de resolução de quebra-cabeças, ou seja,

daqueles problemas que são selecionados pelos critérios

estabelecidos pelo paradigma e cujas regras de solução já

estão em grande medida previstas nele.

Agora a afirmação de Kuhn a respeito da relação

entre ciência normal e filosofia torna-se mais clara. A

filosofia é indesejável em dois sentidos. Primeiro, por ser

considerada inútil, já que a comunidade científica imagina

possuir suficiente clareza e justificação de seus

pressupostos. Segundo, por ser contraproducente, já que a

criticidade envolvida na análise filosófica pode revelar-se

“uma maneira eficaz de enfraquecer o domínio de uma

tradição sobre a mente e sugerir as bases para uma nova”

(1977, p. 120). Isso porque, a busca pelos fundamentos,

que é típica da filosofia, pode acabar revelando seus limites

e propondo, direta ou indiretamente, a necessidade de ir

além deles.

Steven Brush concebe algo parecido em relação ao

estudo da história da ciência. Segundo Michael R.

Matthews, Brush (em seu livro Será que a história da ciência

deveria ser censurada?, de 1974) sugere que “a história da

ciência poderia ser uma influência negativa sobre os

estudantes porque ela ceifa as certezas do dogma científico;

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198

Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

certezas essas que são tão úteis para se manter o

entusiasmo do principiante” (MATTHEWS, 1995, p. 177).

Ou seja, tanto para Brush quanto para Kuhn, a ciência

depende de uma crença em determinados dogmas que

acaba sendo relativizada por abordagens críticas como as da

história e da filosofia. Assim, os cientistas devem manter-se

distantes destas disciplinas. Ou, ao ter contato com elas,

criar versões adequadas a e que justifiquem o modelo de

ciência que se está adotando.

Em história da ciência, a tendência de reconstruir os

desenvolvimentos científicos passados à luz de

determinadas crenças presentes é chamada de whiggismo

(CORRÊA, 2010, p. 221). Aliás, a obra de Kuhn tem como

foco desconstruir justamente a imagem de ciência que a

historiografia positivista havia estabelecido, segundo a qual

seria possível identificar um contínuo progresso das

descobertas científicas, em que a verdade se distingue mais

e mais do erro. Sua tese principal é que não se pode falar de

progresso, porque há uma incomensurabilidade entre os

diferentes paradigmas científicos (1977, p. 244 ss). As

mudanças científicas não podem ser vistas como

progressos contínuos, mas antes enquanto rupturas ou

revoluções.

Dessa forma, um primeiro obstáculo a ser

ultrapassado é essa aversão à filosofia criada no interior da

ciência, que suspeita de sua pertinência, especialmente no

que diz respeito à formação de novos pesquisadores. Aqui,

a filosofia, ao discutir os pressupostos da ciência, é inútil, já

que a ciência imagina compreende-los adequadamente, e

contraproducente, por estimular nos jovens um espírito

excessivamente crítico, incompatível com o grau de adesão

requisitado ao neófito.

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199

Leno Francisco Danner (Org.)

1.2 Só a ciência tem sentido

Mas há outro obstáculo criado pela própria

filosofia. Na verdade, ele se desenvolveu a partir de um

movimento cultural mais amplo, que começa pela própria

ciência que nasce no século XVII. Mas é na filosofia que

ele ganha sua expressão mais radical. É aquilo que

poderíamos chamar de cientificismo, isto é, a ideia de que a

ciência se distingue radicalmente de qualquer outra forma

de conhecimento, inclusive da filosofia, e apenas seu

discurso tem propriamente sentido.

O cientificismo tem em Bacon um de seus pilares

principais. O próprio título de sua obra capital expressa

isso. O Novum organum tem a pretensão de fornecer um

novo método à ciência, substituindo o Organum aristotélico,

que ainda submetia a atividade de pesquisa científica a

pressupostos filosóficos (a metafísica ou filosofia primeira).

A principal acusação de Bacon a Aristóteles e a seus

seguidores é que eles não interpretavam verdadeiramente a

natureza, mas pelo contrário tentavam antecipá-la (1984, p.

18, aforismo XXVI). Para substituir a antecipação pela

interpretação, Bacon denuncia a existência de 4 ídolos que

“bloqueiam a mente humana”. Dentre eles estão os

preconceitos decorrentes da natureza sensorial humana

(ídolos da tribo), da formação pessoal (ídolos da caverna) e

das relações sociais (ídolos do foro). Mas, em especial,

Bacon trata as doutrinas filosóficas enquanto ídolos do

teatro, “por parecer que as filosofias adotadas ou

inventadas são outras tantas fábulas, produzidas ou

representadas, que figuram mundos fictícios e teatrais”

(1984, p. 22, aforismo XLIV). As doutrinas filosóficas

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200

Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

impediriam que a observação fosse assumida como

verdadeira fonte de conhecimento. Por exemplo, a doutrina

aristotélica do caráter incorruptível dos corpos celestes

levou a supor que “no céu todos os corpos devem mover-

se em círculos perfeitos” (1984, p. 22, aforismo XLV), sem

que isso fosse respaldado pela observação. Assim,

Aristóteles teria substituído a observação da realidade

propriamente dita pela composição de uma imagem

fabulosa do cosmo.

Em vista disso, sentencia Bacon: “o homem,

ministro e intérprete da natureza, faz e entende tanto

quanto constata, pela observação dos fatos ou pelo

trabalho da mente, sobre a ordem da natureza; não sabe

nem pode mais” (1984, p. 13, aforismo I). Bacon pretende

fornecer aqui um critério claro para demarcar os limites

entre a ciência e os outros saberes, dentre os quais a própria

filosofia; e, ao mesmo tempo, demonstrar que o saber

científico é superior a todos os demais. Este critério é a

observação, aprimorada por ferramentas lógicas (indução e

dedução) e materiais (lunetas, balanças, etc.), como ele

mesmo proporá. Assim, fazer ciência passa a significar não

fazer filosofia, mas ater-se aos fatos. Segundo Popper

(1977), ao oferecer um critério para estabelecer uma nítida

fronteira em relação à pseudociência, à teologia e à

metafísica, a concepção baconiana de ciência foi

prontamente acolhida e tornou-se profundamente

arraigada, não obstante suas deficiências teóricas.

Essa crença de que a peculiaridade e o sucesso da

ciência decorrem de sua restrição à base empírica foi

hegemônica na filosofia da ciência desenvolvida desde o

século XVII até praticamente a primeira metade do século

XX. O discurso metacientífico empirista tomou como

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Leno Francisco Danner (Org.)

ponto de partida uma determinada descrição sobre como a

ciência funciona e dela derivou uma série de prescrições

normativas (Cf. OLIVA, 1990, p. 14 ss), que tornaram

inviável à filosofia não só dizer algo sobre os objetos de

estudo das ciências, mas na verdade dizer algo sobre

qualquer coisa. O círculo de Viena talvez tenha sido a

expressão máxima dessa crítica à filosofia, denunciando seu

caráter metafísico, ao elevar o empirismo ao status de uma

teoria geral do sentido, naquilo que Schlick, por exemplo,

chamou de verificacionismo: “não existe nenhuma

possibilidade de entender um sentido sem referir-nos em

última análise a definições indicativas, o que implica, em

um sentido óbvio, referência à ‘experiência’ ou à

‘possibilidade de verificação’” (SCHLICK, 1988, p. 85).

Essa mesma visão se consolida no célebre Tractatus logico-

philosophicus de Wittgenstein. No aforismo 6.55, ele afirma:

O método correto da filosofia seria

propriamente este: nada dizer, senão o que se pode

dizer; portanto, proposições da ciência natural –

portanto, algo que nada tem a ver com filosofia; e

então, sempre que alguém pretendesse dizer algo de

metafísico, mostrar-lhe que não conferiu

significado a certos sinais em suas proposições.

Esse método seria, para ele, insatisfatório – não

teria a sensação de que lhe estivéssemos ensinando

filosofia; mas esse seria o único rigorosamente

correto. (1994, p. 281).

O empirismo lógico de Schlick e Wittgenstein retira

da filosofia qualquer legitimidade, enquanto um discurso

que possa interagir significativamente com as ciências. O

filósofo não é capaz de produzir discursos com sentido.

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

Por isso, não tem nada a acrescentar àquilo que a ciência já

produz.

É verdade que o Wittgenstein do Tractatus ainda

reserva à filosofia alguma tarefa. No aforismo 4.112 ele

afirma:

O fim da filosofia é o esclarecimento lógico dos

pensamentos.

A filosofia não é uma teoria, mas uma atividade.

Uma obra filosófica consiste essencialmente em

elucidações.

O resultado da filosofia não são “proposições

filosóficas”, mas é tornar proposições claras.

Cumpre à filosofia tornar claros e delimitar

precisamente os pensamentos, antes como que

turvos e indistintos. (1994, p. 177).

Como a linguagem propriamente filosófica não tem

sentido, ela não pode constituir nenhuma teoria. Vazia de

conteúdo, resta-lhe o papel de analisar a linguagem

produzida pelas ciências, no objetivo de esclarecê-la. Mas,

nesse trabalho, nada pode ser dito que já não tenha sido

demonstrado pelos cânones do método científico. Assim, o

discurso filosófico perde sua especificidade. A filosofia

nada pode dizer, a não ser o que já tenha sido dito pelo

cientista.

Como se pode ver, há pelo menos dois obstáculos a

ultrapassar para que alguma verdadeira interação entre

filosofia e ciência (como a biologia) possa ocorrer. Em

primeiro lugar, é preciso superar a visão segundo a qual a

criticidade filosófica é inútil e contraproducente à formação

dos cientistas. Em segundo, é preciso ultrapassar a

avaliação segundo a qual se considera a filosofia uma

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doutrina que trata de um mundo à parte da realidade que a

ciência quer compreender. No que segue, indico algumas

possibilidades de se pensar a superação desses obstáculos.

2 A produtividade da interação entre filosofia e

biologia

Em 2003, lecionei pela primeira vez a disciplina de

Filosofia da ciência no curso de graduação em Biologia,

tarefa que realizei até 2009. Como na maioria dos casos os

alunos ainda não haviam tido muito contato com filosofia,

iniciei tentando distingui-la da biologia. Esse esforço

resultou no texto O que é filosofia: uma abordagem comparativa,

publicado em 2004. O argumento essencial do texto parte

da constatação de que não existe uma definição

universalmente aceita de filosofia, porque qualquer

definição é sempre desenvolvida no interior da própria

filosofia. Ou seja, o conceito de filosofia não é um ponto

de partida para o filósofo, mas um ponto de chegada.

Diante dessa dificuldade, sugeri uma compreensão

introdutória da filosofia através da comparação com a

biologia. O conceito de biologia parece muito mais claro

porque ele deixa minimamente explícitos a atividade que

lhe é própria e o objeto sobre o qual ela se realiza. Biologia

é o estudo da vida. É, portanto, uma atividade teórico-

descritiva (logos) sobre um fenômeno particular (bios).

Mas quais seriam o objetivo e a atividade

específicos do filósofo? No texto, propus que, em primeiro

lugar, a atividade não é simplesmente teórica. O amor (filos)

não é a posse puramente intelectual e indiferente, como

ocorre numa pesquisa científica (logos). Ele requer algum

tipo de conversão prática em vista do objeto amado. E que

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

objeto seria esse? A sabedoria (sofia). Mas esta se distingue

da vida ou de qualquer outro objeto da ciência por não ser

propriamente um fenômeno a ser estudado. A sabedoria é

um conhecimento universal, necessário e do qual se

depreendem consequências éticas (uma ideia de bem, por

exemplo). Consequentemente, o específico da filosofia não

é descrever realidade alguma, mas avaliar se o

conhecimento que se possui tem o status de sabedoria.

Nas aulas, afirmei que isso implica uma diferença

radical entre filosofia e biologia: o filósofo reflete sobre

seus pressupostos, enquanto o biólogo não. Foi quando um

aluno retrucou enfaticamente: então o biólogo não pensa?

Tentei me explicar, dizendo que há uma diferença entre

pensar e refletir, algo que de qualquer forma parece fazer

muito sentido. No mero pensar, assumo pressupostos e os

utilizo para explicar algo, sem questioná-los. No refletir, o

foco são os próprios pressupostos. O biólogo precisa

pressupor a existência da vida e alguma definição mínima

do que ela seja, assim como da forma em que ela pode ser

estudada. Só assim poderá iniciar sua pesquisa. O filósofo,

ao contrário, não precisa, ou melhor, não pode pressupor

nada.

De fato, olhando para a história da filosofia pode-se

afirmar que o grau de relevância de um filósofo ou corrente

filosófica tem muito a ver com a radicalidade com que

refletiu sobre os pressupostos que a filosofia adotava até

então. Nesse sentido, a filosofia é o lugar da crítica,

contrastando com a ciência, que parece depender de

pressupostos. Quando o filósofo reflete sobre a ciência,

explicita os pressupostos dos quais ela mesma não está

consciente e, assim, pode elevá-la ao status de pensamento

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Leno Francisco Danner (Org.)

crítico. Essa era a visão que eu assumia na época e que,

gradualmente, me vi forçado a superar.

Essa questão dos pressupostos é realmente

fundamental à filosofia. Talvez ela seja indicada pela

primeira vez no Mênon de Platão, quando o personagem

que dá nome ao diálogo contesta Sócrates quanto à

possibilidade de investigar o que é a virtude:

E de que modo procurarás, Sócrates, aquilo

que não sabes absolutamente o que é? Pois

procurarás propondo-te <procurar> que tipo de

coisa, entre as coisas que não conheces? Ou, ainda

que, no melhor dos casos, a encontres, como

saberás que isso <que encontraste> é aquilo que

não conhecias? (PLATÃO, 2007, p. 49, § 80d).

Esse é o paradoxo da ignorância: quem não

conhece, também não pode saber como procurar o que não

conhece. E, mesmo que encontrar, não possuirá critérios

que justifiquem esse conhecimento. Caberia à filosofia

justamente a tarefa de fornecer os critérios que devem

fundamentar qualquer investigação.

Mas e a tarefa de fornecer critérios estaria imune ao

problema levantado no Mênon? Talvez essa questão seja a

raiz de grande parte das disputas em filosofia,

especialmente a partir da modernidade.

Contemporaneamente, ela é formulada sob a forma do que

ficou conhecido como o “problema do critério”. Para

Chisholm, ele surge porque parece haver circularidade entre

dois pares de questões: “A) ‘O que nós conhecemos? Qual

é a extensão do nosso conhecimento?’ B) ‘Como nós

podemos decidir se nós conhecemos? Quais são os critérios

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

do conhecimento?’” (1982, p. 65, tradução nossa). Para

responder as questões sobre o que nós conhecemos (A),

precisamos de critérios (B). Só através deles podemos

distinguir conhecimentos legítimos de meras opiniões ou

enganos. Mas, para estabelecer quais são os critérios de

conhecimento (B), precisamos admitir que já conhecemos

algo (A). Isso porque o processo reflexivo que resulta no

estabelecimento desses critérios precisa articular-se a partir

de algum conhecimento, para então extrair daí, de alguma

forma, tais critérios. Essa relação circular entre

conhecimento e critério faz com que seja impossível

responder a qualquer das questões.

Isso pode ser ilustrado refletindo sobre a própria

resposta de Sócrates ao problema posto por Mênon. Ele

propõe a anamnese ou reminiscência como solução: nossa

alma contemplou as ideias em outra existência. Assim, os

critérios já estão dados previamente à experiência empírica.

Fica fácil perceber que Sócrates, assim, assume um

pressuposto bastante forte, que levará à teoria das ideias ou

formas. Esse é apenas um exemplo que demonstra algo

típico: a filosofia, assim como a ciência, sempre teve

pressupostos. O pertencimento a uma escola filosófica ou,

diríamos hoje, a um grupo de pesquisa, depende da

aceitação de determinados pontos de partida. Isso não é

exclusividade da ciência.

A diferença é que a filosofia tem como um de seus

objetos de estudo principais o conhecimento

(especialmente o científico). Isso não torna a filosofia mais

crítica ou reflexiva do que a ciência, porque, mesmo na sua

investigação sobre o conhecimento, se vê sempre

submetida à necessidade de pressupostos, tanto quanto os

cientistas.

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A escolha dos pressupostos mais adequados é uma

questão central para qualquer área de conhecimento. Todo

empreendimento racional, ao distinguir-se daquelas

doutrinas que pretendem fundar-se em referências de outro

tipo, precisa determinar que seus pressupostos são os que

permitem um grau maior de senso crítico. Ao abandonar a

tradição filosófica, a ciência moderna pretendeu ter

encontrado uma forma de investigar a realidade mais crítica

do que a existente, no sentido de ser capaz de desvencilhar-

se de preconceitos e de compreender melhor a realidade

mesma. A valorização da observação e da experimentação,

dos procedimentos padronizados, da especialização radical,

da rigidez das definições e do tratamento lógico das

informações, por exemplo, podem parecer ao filósofo

sinais de dogmatismo, mas na realidade são meios que a

ciência pensa ter encontrado para ser mais crítica. O

filósofo não pode desconhecer ou negligenciar esse fato ao

entrar em diálogo com a ciência, senão ele estará deixando

de reconhecer uma característica básica de seu interlocutor.

De fato, o próprio Kuhn reconhece que o aparente

dogmatismo da ciência é produtivo. Segundo seu

diagnóstico,

as áreas investigadas pela ciência normal

são certamente minúsculas; ela restringe

drasticamente a visão do cientista. Mas essas

restrições, nascidas da confiança no paradigma,

revelaram-se essenciais para o desenvolvimento da

ciência. Ao concentrar a atenção numa faixa de

problemas relativamente esotéricos, o paradigma

força os cientistas a investigar alguma parcela da

natureza com uma profundidade e de uma maneira

tão detalhada que de outro modo seriam

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208

Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

inimagináveis. E a ciência normal possui um

mecanismo interno que assegura o relaxamento das

restrições que limitam a pesquisa, toda vez que o

paradigma do qual derivam deixa de funcionar

efetivamente. Nessa altura os cientistas começam a

comportar-se de maneira diferente e a natureza dos

problemas de pesquisa muda. No intervalo,

entretanto, durante o qual o paradigma foi bem

sucedido, os membros da profissão terão resolvido

problemas que mal poderiam ter imaginado e cuja

solução nunca teriam empreendido sem o

comprometimento com o paradigma. E pelo menos

parte dessas realizações sempre demonstra ser

permanente (1977, p. 45).

Em outras palavras, a falta de reflexão sobre o

paradigma, típica da ciência normal, leva a ciência a

empregar sua criticidade noutra direção, isto é, na aplicação

pormenorizada e rígida de seus pressupostos

paradigmáticos sobre o real. Aos olhos do filósofo, essa

atividade pode parecer dogmática, na medida em que

abandona o questionamento especulativo sobre os

pressupostos. Entretanto, está em jogo aí outra forma de

conceber o pensamento crítico: é preciso detalhar

completamente tudo o que está potencialmente implicado

em uma teoria, alargar seu alcance ao máximo e verificar

em que medida os resultados dos experimentos

desenvolvidos nesse processo mantêm-se coerentes com a

proposta inicial. O foco desse tipo de empreendimento

crítico é diferente da criticidade filosófica, mas elas são,

antes, formas diferentes de conceber o pensamento crítico.

Sob esse ponto de vista, as abordagens que se

desenvolveram desde Bacon até Wittgenstein podem ser

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entendidas como formas de reconhecimento de uma

criticidade diversa daquela presente na tradição filosófica.

O problema foi terem restringido o pensamento crítico a

essa única forma. Filosofia e ciência são racionalidades

diferentes, mas não excludentes. Como afirma Gadamer,

enquanto “a filosofia se ocupa do todo” (1981, p. 7,

tradução nossa), a ciência está entregue à particularidade,

que é o segredo de seu sucesso. Mas, ainda para Gadamer,

assim como a ciência, a filosofia mantém-se fiel à

objetividade, exigindo que seus conhecimentos sejam

justificados. Nesse sentido, ambas, tendo origem comum

nos gregos, são formas diferentes e complementares do

pensamento crítico.

O sucesso da ciência moderna, em sua negação da

filosofia tradicional, trouxe a perspectiva de que as novas

metodologias estabeleceriam um conhecimento universal e

necessário. Entretanto, “quanto maior seja a honestidade e

a exatidão com a que ela [a ciência] se entenda a si mesma,

tanto maior é sua desconfiança frente a toda promessa de

unidade e toda pretensão de poder alcançar algo definitivo”

(GADAMER, 1981, p. 12, tradução nossa). Nesse aspecto,

o diálogo constante com a filosofia pode fazer com que a

ciência tenha presente os problemas que surgem quando, a

partir de determinados conhecimentos, tenta-se elaborar

critérios absolutos. Esse tipo de discussão requer uma

linguagem filosófica, que foi desenvolvida ao longo de mais

de 2 mil anos de desenvolvimentos intelectuais. Nesse

terreno, a filosofia dispõe de ferramentas conceituais

imprescindíveis para manter a objetividade e a criticidade

do debate.

Assim, a filosofia não é inútil nem excessivamente

crítica à ciência. Ela apenas introduz outro tipo de

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

criticidade em relação àquela que é articulada pela

racionalidade científica, mas que é requisitada, em última

instância, pelos seus próprios desdobramentos. Além disso,

a filosofia oferece um arcabouço conceitual mais amplo,

mediante o qual os próprios conceitos básicos

(paradigmáticos) de cada disciplina científica podem ganhar

mais significado tanto para pesquisadores quanto para

educandos. Entender como determinados referenciais da

ciência contrastam com outras concepções implica em

compreender mais profundamente os alicerces da própria

disciplina que se está estudando.

Outro ponto a destacar é que os problemas

filosóficos não são necessariamente relacionados a

realidades ilusórias e subjetivas. Eles podem surgir a partir

do interior da própria prática científica. Assim, a própria

ciência atesta que a filosofia tem sentido, e não sob a forma

de mera terapia da linguagem (que, aliás, a própria ciência já

é capaz de realizar, pelo menos em alguma medida). Ao

compor uma visão mais geral de universo, que contenha

também algum grau de normatividade, a linguagem

científica converte-se em linguagem filosófica e se abre a

uma nova esfera de problemas, de estruturas conceituais e

de metodologias.

Por outro lado, hoje em dia é muito difícil imaginar

qualquer debate filosófico que não seja permeado por

conhecimentos científicos. Mesmo a ética filosófica, que

por sua vocação intrinsecamente normativa parece

desvincular-se da descrição “científica” de costumes

coletivos e hábitos individuais, no fundo é simplesmente

impossível sem pressupor algum nível de descritividade. E,

nisso, ciências como antropologia, biologia, ciência política,

economia, sociologia, psicologia, dentre outras, são

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fundamentais. Não é difícil ver que muitas das teses

filosóficas nesse terreno tiveram de ser revistas justamente

diante dos resultados das pesquisas científicas.

Se o diagnóstico de Kuhn estiver correto, não

devemos alimentar a pretensão de tornar as ciências mais

filosóficas, já que as inegáveis conquistas que trouxeram se

devem justamente à sua forma própria de articular o

conhecimento. Da mesma forma, não podemos imaginar

que o fim da filosofia ou sua redução aos modelos da

racionalidade científica sejam desejáveis. Como pensar,

então, a relação entre essas duas áreas de forma produtiva?

Como Kuhn deixou explícito no trecho citado

anteriormente, a atitude antifilosófica da ciência não é

perene. Em determinados momentos, o dogmatismo é

relaxado e novas possibilidades são abertas. Esse fenômeno

está diretamente ligado ao que ele chama de revolução

científica, que é a ruptura com uma determinada tradição

em face do aparecimento de anomalias e do

desenvolvimento de pesquisas extraordinárias. É

justamente nesses momentos de crise, de ruptura e de

renovação que a ciência normal cede lugar à filosofia.

Como exemplos desse fenômeno, Kuhn menciona “a

emergência da física newtoniana no século XVII e da

relatividade e da Mecânica Quântica no século XX [que]

foram precedidas e acompanhadas por análises filosóficas

fundamentais da tradição de pesquisa contemporânea”

(1977, p. 120). E essas revoluções científicas não precisam

ser pensadas apenas como os grandes eventos que

estabeleceram os marcos fundamentais da ciência atual.

Existem pequenas revoluções ocorrendo o tempo todo nas

ciências, especialmente se consideramos, como faz Kuhn,

também elementos éticos (valores) e metafísicos como

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

intrínsecos às matrizes disciplinares. As descobertas

científicas e as perspectivas a respeito das tecnologias que

podem ser desenvolvidas a partir delas ensejam sempre

novas questões que ultrapassam aquilo com o qual a

própria linguagem científica pode lidar.

A biologia é uma das ciências mais pródigas na

geração de temas filosóficos da mais alta complexidade e

relevância. Em primeiro lugar, em relação ao seu método,

ela situa-se entre as ciências ditas exatas e as ciências

humanas. Em parte, o fenômeno da vida é explicável

lançando mão de estruturas conceituais advindas das

ciências chamadas exatas (em que o paradigma fundamental

é o da física newtoniana). Por outro lado, a vida tem-se

mostrado um fenômeno intrinsecamente histórico,

especialmente a partir da teoria sintética da evolução

(PIEVANI, 2010, p. 11). As espécies atuais são resultado

não simplesmente de leis determinísticas intrínsecas à

matéria em geral, mas de uma longa história evolutiva, que

não pode ser deduzida de qualquer algoritmo geral. Essa

situação particular da biologia, que de certa forma a localiza

a meio caminho entre as ciências “exatas” e as ciências

humanas, a torna um campo ainda aberto às discussões

filosóficas sobre a especificidade do modelo de

racionalidade que lhe é próprio e sobre os métodos que

melhor condizem com a natureza de seus problemas.

Em segundo lugar, em relação ao objeto de estudo,

na biologia ainda cabem discussões filosóficas sobre sua

natureza ambiguamente humana e não humana. Pode-se

dizer que a biologia se refere ao ser humano não só quando

ela estuda a espécie humana em particular. No estudo da

vida em geral já está implicado, de diversas formas, o

estudo do humano. A teoria da evolução é também uma

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ciência humana e constantemente fornece referências para

a discussão de temas tradicionais dessa área. Assim,

problemáticas que são objetos tradicionais da investigação

filosófica, na medida em que esta se dedica à compreensão

do humano, podem também ser encontradas no interior

das ciências biológicas.

Com tudo isso, o importante a destacar é que, não

obstante a filosofia tenha sido considerada, desde Bacon,

um discurso sem sentido e preconceituoso, as questões que

lhe são próprias emergem a partir da prática científica.

Assim, abordá-las filosoficamente não leva a perder-se em

especulações inúteis e relativizadoras. Pelo contrário,

permitem uma compreensão mais profunda da

racionalidade científica, em seus pressupostos e em seu

espírito crítico.

Na seção seguinte, darei alguns exemplos de

temáticas filosóficas inerentes às investigações das ciências

biológicas atuais e cuja discussão considero produtiva na

formação inicial tanto de filósofos quanto de biólogos.

3 Temáticas biofilosóficas para a ensino

As temáticas que apresento a seguir podem ser

desenvolvidas tanto nos ensino médio quanto em

disciplinas introdutórias de cursos de graduação,

obviamente adequando os níveis de profundidade e de

complexidade, assim como as estratégias didático-

pedagógicas.

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

3.1 A diferença entre mecanicismo e teleologia

Talvez a grande matriz de onde se origina a maioria

das questões filosóficas relacionadas à biologia seja o

antiquíssimo dualismo entre mecanicismo e teleologia. Uma

temática interessantíssima para a formação de jovens é

identificar os traços gerais dessa dualidade no cotidiano e

recuperar sua raiz filosófica remota. No que segue, vou

apresentar apenas algumas possibilidades.

Na música Tendo a lua, de Herbert Vianna e Tetê

Tillett, d’Os paralamas do sucesso, aparece um verso

enigmático: “O céu de Ícaro tem mais poesia que o de

Galileu”.

Dois mundos se chocam aqui. O primeiro deles é o

mundo de Ícaro, o personagem da mitologia grega. Ele é

filho de Dédalo, o construtor do labirinto do Minotauro.

Para fugir do rei Minos, Dédalo constrói asas de cera de

abelhas e penas de gaivota para si e seu filho. Dédalo

adverte seu filho para que não voe muito alto, pois o sol

poderia derreter a cera. Mas, inebriado pelo desejo de voar

cada vez mais alto, Ícaro desobedece o pai, suas asas

acabam derretendo e ele morre afogado no mar.

O elemento da mitologia que é apanhado pela

canção d’Os paralamas é justamente esse universo povoado

de sentido, em que os fenômenos têm uma conotação

essencialmente moral, pois são desdobramentos da

vontade, seja humana, seja divina. Aqui, o universo faz

sentido. Os fatos dizem algo diretamente ao homem,

estabelecem o que deve e o que não deve “ser”. Ou

melhor, o mito não descreve propriamente fatos, mas o

sentido humano (moral e estético) que a realidade tem e

que deve ser conhecido por todos como referência para

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guiar a própria vida. Não importa que não seja possível

construir asas com penas e cera. O que o mito de Ícaro

demonstra é que quem deseja de forma desmedida acaba

trazendo para si a própria ruína. Essa é, de certa forma,

uma verdade que o fato mítico “demonstra”.

Nesse sentido, o mundo de Ícaro é um cosmo, ou

seja, não apenas a totalidade das coisas, mas mundo

ordenado, perfeito, em que tudo expressa um bem e uma

imagem de beleza. Essa é uma visão teleológica de

universo: há um fim que se expressa em tudo, de onde

decorrem as noções de bem, belo e verdadeiro.

Na canção, em contraste com o cosmo de Ícaro

aparece o universo de Galileu. Esse é o universo reduzido a

um conjunto de elementos materiais que interagem entre si

de acordo com leis gerais e impessoais. Os fatos não têm

nenhum sentido humano intrínseco. O que se pode

aprender com eles é apenas que existem regularidades

gerais, cujo conhecimento pode ser vantajoso às intenções

humanas subjetivas.

A partir desse contraste, surge o refrão:

Tendo a Lua aquela gravidade

Aonde o homem flutua

Merecia a visita não de militares

Mas de bailarinas e de você e eu

(OS PARALAMAS DO SUCESSO, 1991).

A ida do homem à lua é uma vitória de Galileu. Ele

a vislumbrou de maneira nunca antes feita com sua luneta,

e a ciência que se construiu a partir daí permitiu ao homem

chegar até ela. Mas, paradoxalmente, a gravidade da lua é

um convite não para a sua mentalidade, mas para a de

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

Ícaro. A lua resiste à objetividade e à rigidez do cientista

moderno, e o força a parecer-se mais com a graciosidade

dos passos da bailarina e a ver a lua não como Galileu, mas

como os amantes a veem.

Exemplos dessa dualidade aparecem em toda parte.

É uma marca radical de nossa cultura. Mas seria uma tarefa

interessante compreender como isso incide sobre as

temáticas filosóficas relacionadas à biologia.

A biologia moderna tem origem quando passa a

aliar-se à concepção mecanicista de universo, que já havia

sido desenvolvida antes na astronomia, na física, na

geologia e em outros campos. Segundo Japiassú,

no sentido estrito, o mecanicismo é a filosofia que

se explicitou no início do século XVII, postulando

que todos os fenômenos naturais devem ser

explicáveis, em última instância, por referência à

matéria em movimento. O esquema fundamental é

simples: a realidade física se identifica com um

conjunto de partículas que se agitam e se

entrechocam. A metáfora que serve de base a essa

filosofia é a da máquina: em seu conjunto, o mundo

se apresenta como uma espécie de sistema

mecânico, vale dizer, como uma gigantesca

acumulação de partículas agindo umas sobre as

outras, da mesma forma com as engrenagens de um

mecanismo de relógio. O objetivo da ciência é

definido: qualquer que seja o fenômeno estudado,

trata-se de elucidar certo número de elementos

últimos e de descobrir as leis que presidem suas

intenções. A natureza nada mais é do que uma

máquina complexa, na qual a matéria e a energia,

cooperando e interagindo de diversos modos,

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Leno Francisco Danner (Org.)

desempenham o papel de constituintes últimos.

(JAPIASSÚ, 1997, p.172-3).

Na física de Newton, os fenômenos são descritos

enquanto resultados das interações entre os elementos

materiais, governadas por leis gerais (como os princípios da

inércia, da dinâmica e da ação e reação). Na química, que

retoma o modelo atomista com Dalton, as diferentes

substâncias materiais foram explicadas como diferentes

composições de estruturas elementares.

A biologia, antes de Darwin e Mendel, mantinha-se

vinculada a uma concepção completamente diferente de

natureza. As espécies vivas, objeto de estudo da biologia,

eram consideradas invariáveis, criadas em vista da

realização de um propósito específico. Em relação a isso, o

trabalho de Darwin foi fundamental. Em primeiro lugar, ele

defendeu a ideia de que as espécies mudam. Nisso ele não

foi absolutamente original. Muitos outros já haviam

cogitado essa hipótese. Mas, em segundo lugar, Darwin

propôs a noção de seleção natural, enquanto lei que

governa a evolução das espécies. Além disso, apresentou

um conjunto muito grande e detalhado de provas para a

sua teoria. Seu trabalho, assim, inaugurou um novo ponto

de vista sobre o objeto de estudo da biologia e também

sobre os métodos que essa área deveria adotar.

A seleção natural é, antes de tudo, um mecanismo

que atua sobre os indivíduos assim como uma lei física. A

ideia é simples: indivíduos mais adaptados ao seu ambiente

são capazes de se reproduzir numa taxa mais elevada, por

isso deixam um número maior de descendentes.

Consequentemente, as espécies existentes contêm

características mais adequadas aos ambientes em que se

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

desenvolveram do que as espécies concorrentes, de tal

forma que temos a impressão de que foram moldadas para

viver neles.

O caráter mecanicista da noção de seleção natural

fica mais nítido quando consideramos Aristóteles. Na

Física, ele afirma:

O que impediria que fossem meramente

acidentais as relações entre as diversas partes do

corpo? Os dentes, por exemplo, crescem conforme

as nossas necessidades: os incisivos são cortantes e

destinados a dividir os alimentos, os molares são

achatados e adequados à mastigação. No entanto,

eles não foram feitos para tais finalidades por mero

acaso. Todas as partes de um certo conjunto são

constituídas para alguma finalidade específica e,

enquanto servem para essa finalidade, são

preservadas. Essa constituição adequada, com

efeito, decorre tão-somente de alguma

espontaneidade interna. Uma vez que as que não

forem assim constituídas, desaparecem e ainda

estão desaparecendo (apud DARWIN, 2005, p. 51).

Aristóteles, que é reconhecido por estabelecer uma

primeira forma de organizar sistematicamente a diversidade

biológica, identifica algo próximo à seleção natural: aquilo

que tem uma função adaptativa é preservado, o que não

tem é descartado. Entretanto, e esse é o elemento decisivo,

o surgimento de cada estrutura biológica não se dá “por

mero acaso”, mas orientado por “alguma espontaneidade

interna”. Ou seja, há alguma finalidade intrínseca à natureza

de cada coisa que determina a direção dos processos

biológicos.

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Leno Francisco Danner (Org.)

É impressionante que essa compreensão ainda

reapareça no próprio ensino de biologia. Alcântara (2007),

por exemplo, fazendo uma revisão em alguns livros

didáticos de biologia, encontra as seguintes expressões

teleológicas:

A Fisiologia tem como propósito

fundamental manter constantes os fatores

intensivos … (DOUGLAS, 2002, p. 71).

A reação imunitária é uma resposta

adaptativa complexa que o organismo monta

para reconhecer e tentar eliminar do corpo

substâncias estranhas que nele penetram.

(BOGLIOLO, 2002, p. 235).

Uma vez alcançado um impulso biológico

suficiente para a secreção do hormônio B, outras

influências, incluindo o feedback negativo,

reduzirão a resposta do hormônio A de forma a

deixá-la adequada ao propósito biológico final.

(BERNE; LEVY, 2000, p. 738).

No mundo inteiro, a cor da pele humana

evoluiu para ser escura a ponto de evitar que a

luz do sol destrua o nutriente folacina, e clara o

bastante para possibilitar a produção de vitamina D

(JABLONSKI; CHAPLIN, 2005, p. 64).

As expressões em destaque (grifadas pelo próprio

Alcântara) fazem supor que as estruturas orgânicas são

capazes de algum tipo de intencionalidade interna, guiada

por uma finalidade a ser realizada. Do ponto de vista

filosófico, essa compreensão dos processos biológicos é

completamente diferente daquela introduzida por Darwin e

realçada por seus sucessores. Em consonância com o

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

mecanicismo moderno, a biologia evolucionista dirá que as

estruturas biológicas realizam determinada finalidade, não

por conterem algum tipo de “espontaneidade” interna. O

fato é que, ao aparecerem casualmente (de acordo com

mecanismos que a genética revelará a partir dos trabalhos

de Mendel), essas estruturas trouxeram vantagens

adaptativas aos organismos que as possuíam, garantindo

sua sobrevivência e reprodução. Trata-se, portanto, de um

mecanismo que, junto com outros mecanismos, tornou os

indivíduos que o possuem mais adaptados a determinadas

circunstâncias ambientais.

Mas qual a importância dessa distinção? Para a

compreensão da vida, isso faz muita diferença. Se

considerarmos que os organismos guiam-se por

determinadas finalidades, o trabalho do biólogo será

descobrir quais são essas finalidades. A biologia deverá

transformar-se numa espécie de teologia natural. Do ponto

de vista mecanicista, não é possível dizer nem mesmo que

os organismos buscam sobreviver ou reproduzir-se. O fato

é que, na variedade de processos biológicos possíveis,

alguns são mais adaptativos do que outros, em relação a um

ambiente dado. Não é possível dizer “por que” uma

estrutura biológica realiza o que realiza, mas apenas

“como” ela realiza. É essa aposta na possibilidade de

explicar a vida a partir de sua base física, sem pressupor

nenhum elemento metafísico, que caracteriza as explicações

da biologia moderna e as distingue daquelas concepções

consideradas animistas ou vitalistas, como salienta Jacques

Monod, em seu clássico “O acaso e a necessidade” (2006).

A temática do mecanicismo, em sua negação da

teleologia, é um dos aspectos filosóficos mais fundamentais

da biologia moderna e que continua gerando discussões até

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Leno Francisco Danner (Org.)

hoje. Os opositores dessa visão articulam-se em diversas

tendências. As mais tradicionais são vinculadas a visões

religiosas sobre a criação e manutenção da vida. Mais

recentemente, principalmente nos Estados unidos,

desenvolveu-se a teoria do “Design inteligente”, que afirma

ser necessário supor a existência de algum tipo de

inteligência a guiar os processos evolutivos, ao invés da

“cega” seleção natural. Esse ponto de vista baseia-se nas

dificuldades que o evolucionismo enfrenta para explicar o

aparecimento de estruturas biológicas complexas, como o

olho, que não podem formar-se por completo em um só

momento; mas, por outro lado, parece que estruturas tão

complexas não poderiam ter evoluído gradualmente, já que,

parcialmente formadas, não trariam vantagem evolutiva

alguma e, por isso mesmo, não deixam crer que os

organismos que as possuíam teriam alguma vantagem na

seleção natural. Esse argumento é longamente

desenvolvido pelo bioquímico norte-americano Michael

Behe em sua obra “A caixa preta de Darwin” (1997).

De fato, Darwin supôs que a evolução é gradualista,

ou seja, os organismos vão se diferenciando pouco a

pouco, formando populações que se distinguem mais e

mais, até formarem novas espécies. O problema é que os

registros fósseis não são capazes de corroborar essa

hipótese. Para Darwin, esse era apenas um problema

decorrente da falta de uma quantidade maior de registros.

Entretanto, mesmo atualmente o problema vem

permanecendo. Muitos dos debates e dos novos conceitos

criados em biologia evolutiva, como os de “equilíbrio

pontuado” e “exaptação”, têm como foco essa

problemática (PIEVANI, 2010). A permanência das

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

lacunas fósseis muitas vezes é interpretada com um

argumento em favor de abordagens teleológicas.

Mas diversas abordagens, que buscam manter-se

ainda vinculadas às bases da racionalidade científica

moderna, vêm reconsiderando a forma de compreender os

organismos vivos, visando distancia-la, em alguma medida,

do mecanicismo clássico. Um exemplo disso é o trabalho

dos biólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco

Verela. Referindo-se às pesquisas ligadas à inteligência

artificial que Maturana presenciou nos laboratórios do MIT

no final da década de 1950, as quais visavam reproduzir o

processamento da informação realizado pelos seres vivos,

ele afirma: “[...] os mais eminentes pesquisadores em

robótica da época [...] diziam que o que eles faziam era usar

como modelo os fenômenos biológicos”. (MATURANA;

VARELA, 1997, p.13). E continua: “A mim parecia, ao

escutá-los, que o que eles faziam não era modelar nem

imitar os fenômenos biológicos, senão imitar ou modelar a

aparência destes no âmbito de sua visão como

observadores” (1997, p. 13). A crítica de Maturana

direciona-se, aqui, à tentativa de compreender um

fenômeno vital de maneira estritamente mecanicista. Para

ele, isso reproduz apenas a aparência do fenômeno, mas

não capta sua essência. Segundo seu ponto de vista,

de fato eu pensava, e ainda penso, que o central ou

principal da biologia como ciência é que o biólogo

opera com entes individualizados e autônomos, que

geram em sua vida fenômenos gerais, que são

semelhantes, enquanto o central na física como

ciência é que o físico opera, pelo contrário, com leis

gerais, sem dar atenção particular aos entes que

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provocam ou realizam tais fenômenos.

(MATURANA; VARELA, 1997, p. 11).

Como se pode ver, para ele o ser vivo é autônomo,

no sentido de gerar a partir de si mesmo os fenômenos

vitais, que podem ser descritos em leis gerais apenas pela

semelhança que estabelecem entre si. Esse caráter

autônomo dos seres vivos, para Maturana, decorre do tipo

de causalidade que lhes é própria, que ele denomina

“autopoiese”. Segundo ele, a autopoiese é a

[...] rede de produções de componentes, que resulta

fechada sobre si mesma, por que os componentes

que produz a constituem ao gerar as próprias

dinâmicas de produção que a produziu e ao

determinar sua extensão como um ente

circunscrito, através do qual existe um contínuo

fluxo de elementos que se fazem e deixam de ser

componentes segundo participam ou deixam de

participar nessa rede (1997, p.15).

Ou seja, os seres vivos são sistemas fechados, em

que os elementos causais estabelecem relações que os

tornam causas de si mesmos. Assim, Maturana pretende

substituir o modelo linear de causalidade presente no

mecanicismo clássico, em que a causa é anterior e distinta

do efeito, por um modelo de causalidade circular, em que

causa e efeito se retroalimentam. As causas produzem

efeitos que são, por sua vez, causas delas mesmas.

Maturana e Varela distinguem máquinas

alopoiéticas de autopoiéticas (1997, p.70). As primeiras

funcionam a partir de finalidades externas e seus

componentes são constituídos também externamente. Nos

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

sistemas aupoiéticos, por sua vez, os próprios componentes

são construídos na rede de interações de que fazem parte.

A ideia é que os sistemas autopoiéticos surgem

espontaneamente e passam a distinguir-se do meio, criando

algum tipo de fronteira em relação a ele. O sistema se

mantém na medida em que produz suas próprias

condições. O caráter organizado do sistema não depende

da pressuposição de uma finalidade a guiá-lo, pois ele é

simples efeito das próprias interações que ocorrem entre os

elementos.

Os dois biólogos mantêm a crítica moderna à

teleologia, afirmando que é apenas para um observador

externo que o conceito de finalidade surge. Nos

organismos vivos, o que há é uma rede complexa de

relações causais que tornam o sistema daí resultante

relativamente autônomo em relação ao meio. Assim, a

biologia mantém-se alinhada ao mecanicismo surgido na

física moderna, mas revê o conceito de causalidade,

concebendo-o diferentemente no que se refere à realidade

dos seres vivos.

De qualquer forma, o que se pode recolher desses

poucos exemplos é que a relação da biologia com o

conceito de teleologia se mostra ainda hoje uma

problemática filosófica bastante interessante, a ser

explorada especialmente na formação dos jovens, pela

amplitude de questões que a discussão daí resultante

permite elucidar. Estão em jogo aqui não apenas problemas

técnicos da pesquisa biológica, mas um conjunto muito

amplo de conceitos que estão na base de nossa cultura. O

papel da filosofia é, sobretudo, evidenciar essa

problemática, que muitas vezes permanece encoberta na

linguagem científica.

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3.2 O conflito de racionalidades

Mas a dualidade entre mecanicismo e teleologia não

se restringe em estabelecer diferentes definições de vida ou

de universo. Na verdade, antes disso estão em jogo duas

formas opostas de considerar o modo como se deve

abordar o real. Ou seja, estão em jogo não apenas visões

distintas sobre a realidade, mas perspectivas opostas sobre

a natureza do próprio conhecimento. Neste ponto, a

interação entre filosofia e biologia se torna especialmente

interessante, por permitir que se explicitem as decisões

metodológicas que são condições para a biologia moderna

e que se mapeiem suas consequências de modo mais

abrangente.

A ciência moderna esvaziou o universo, retirando

dele o que havia de divino, e, para muitos, também o que

havia de humano. Galileu, ao propor que a Terra não é o

centro do cosmos, não apenas negou a religião, mas

também as referências que serviam de alicerce à ética

ocidental até então. Com isso, abriu-se um abismo entre a

natureza e a cultura, que na verdade é expressão do abismo

entre as ciências da natureza, que se tornam cada vez mais

o modelo de racionalidade, e as ciências humanas e sociais,

a ética, a política, as artes e a própria filosofia, que são

consideradas de segunda importância justamente por serem

subjetivas, não alicerçadas na natureza das coisas.

Em razão disso, surge o projeto de redefinir todas

estas áreas sob a referência das ciências naturais,

especialmente da biologia. O ser humano agora é

tematizado em seu sentido biológico, que seria a base para

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226

Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

todos os outros. Um exemplo radical disso foi o chamado

darwinismo social:

sistema teórico no qual a noção de Darwin sobre a

“sobrevivência do mais apto” foi deformada e

grotescamente mal aplicada aos sistemas social e

econômico, racionalizando-se daí o mau tratamento

dispensado às pessoas de níveis socioeconômicos

mais baixos (WALLACE, 1985, p. 21).

A discussão sobre o darwinismo social permite

refletir de maneira exemplar sobre a legitimidade das

ciências humanas, da ética, etc., mas também revisar a

suposta objetividade da ciência e sua pretensa neutralidade,

que estaria garantida enquanto uma decorrência automática

da adesão ao mecanicismo. O caráter supostamente

objetivo e neutro da ciência fez com que se pudesse extrair

dela consequências éticas e políticas ao mesmo tempo a

salvo de qualquer discussão ética e política, simplesmente

como verdades naturais. Muitos teóricos vinculados às

ciências humanas e à filosofia discutem essa questão, mas é

interessante observar como ela aparece no interior da

própria biologia.

Na biologia, uma figura emblemática a respeito

dessa questão é Theodosius Dobzhansky, um importante

biólogo que, em parceria com Thomas Hunt Morgan,

desenvolve várias pesquisas com a D. melanogaster e com a

D. pseudoobscura, tanto em laboratório quanto em

populações naturais, que permitiram compreender alguns

dos processos genéticos subjacentes à variabilidade e à

adaptação das espécies a seus ambientes. Mas Dobzhansky

é especialmente lembrado por sua contribuição ao

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desenvolvimento da síntese evolutiva moderna, através da

obra Genetics and the Origin of Species, de 1937, em que tenta

articular as teses fundamentais da genética (desenvolvida a

partir dos trabalhos de Mendel) com a visão evolutiva sobre

os seres vivos proposta por Darwin (ARAÚJO, 1998;

2000), compondo a visão sobre evolução que, basicamente,

temos hoje112. Portanto, Dobzhansky é uma figura central

daquilo que poderíamos chamar de paradigma

evolucionista, isto é, do modelo de investigação biológica

que busca seguir os passos de Darwin. Mas ele mesmo não

tem dúvida em reconhecer o mau uso que se fez da

biologia, que por um lado esvaziou o discurso ético-político

e por outro o reintroduziu sob a forma disfarçada de uma

verdade científica objetiva e neutra. Para Dobzhansky,

com um império colonial sendo construído e com

nações coloniais preparando-se para disputar com

as demais a afirmação do domínio do mundo, era

confortável pensar que quando o forte explora ou

oprime o fraco ele está meramente obedecendo leis

naturais e esforçando-se na direção do progresso.

Quando exércitos estão em marcha, é um conforto

para aqueles que estão em casa acreditar que “a

guerra é a tesoura de poda da natureza” (1960, p.

59, tradução nossa).

A crítica ao darwinismo social não poderia ser mais

eloquente. À luz da teoria da seleção natural, as nações

112 Dobzhansky também teve importante papel no desenvolvimento da

genética brasileira. Além de ter feito pesquisas aqui, colaborou com

projetos nacionais com visitas em 1943, 1948, 1953 e 1955, ajudando na

formação da primeira geração de geneticistas brasileiros.

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

poderosas encontraram a justificativa perfeita para suas

práticas flagrantemente em oposição às noções mais básicas

de moralidade. O forte, agora, poderia oprimir o fraco e

ainda assim (e, talvez, por isso mesmo) considerar-se

alguém com elevado senso ético. Dessa mesma forma,

proliferam-se sociedades eugenistas pelo mundo, que

assumiram publicamente a posição de quem está apenas a

serviço do dever ético de zelar pelo progresso da raça

humana.

Nesses casos, pode-se perceber que o que a teoria

da evolução realizou não foi simplesmente um

esvaziamento dos discursos não científicos. Ela também

assumiu o lugar deles, extraindo consequências para além

de seu âmbito próprio e ao mesmo tempo buscando isolar-

se de toda crítica.

Em oposição a isso, Dobzhansky defende um

resgate da reflexão ética, que para ele não está em oposição

à teoria da evolução, quando esta é bem entendida. Nas

suas palavras,

as tentativas de descobrir uma base biológica para a

ética sofrem de uma super-simplificação

mecanicista. Os atos e aspirações humanos podem

ser moralmente certos ou moralmente errados, sem

considerar se eles colaboram para que o processo

evolucionário caminhe na direção em que tem ido,

ou se eles colaboram em qualquer outra direção.

Mas a questão é mais sutil do que isso. Dostoievsky

faz seu Ivan Karamazov desprezar a promessa da

evolução do universo na direção da perfeição e da

harmonia eterna se esta evolução tivesse de ser

promovida pela tortura de apenas uma criança

inocente. As éticas são uma parte da herança

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cultural da humanidade e consequentemente

pertencem à nova evolução humana mais do que à

velha evolução biológica. O certo e o errado têm

significado somente em conexão com pessoas que

são agentes livres e que são consequentemente

capazes de escolher entre diferentes ideias e entre

cursos possíveis de ação. A ética pressupõe

liberdade (1960, p.131-2, tradução nossa).

Aqui Dobzhansky resgata a oposição entre natureza

e cultura que impede a aplicação de abordagens

mecanicistas em ética. Não se pode conceber a ética

mecanicamente, porque ela supõe liberdade de escolha

como uma capacidade inerente aos agentes humanos. Isso

significa que a “sobrevivência do mais apto” não pode ser

um valor em sentido ético. Os valores são fundados de

outra forma, sempre relacionada ao conceito de liberdade

humana.

Mas como um biólogo evolucionista pode dizer

isso? As ações humanas não são resultado de

determinações genéticas e ambientais?

Dobzhansky parte da diferença entre

hereditariedade (heredity) e herança (inheritance). A herança

ocorre quando alguém, por exemplo, herda um imóvel de

seus pais. O imóvel está pronto e acabado. Já a

hereditariedade, em sentido biológico, se dá de modo

substancialmente diferente.

nós não recebemos de nossos pais peles, ou olhos

ou cérebro; a única conexão física entre os corpos

de nossos pais e nós os descendentes são as células

sexuais. As células sexuais de que um indivíduo

desenvolve-se deve e contém a soma total de sua

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

hereditariedade. Mas células sexuais não têm pele,

olhos, cérebro e certamente habilidades musicais

(1960, p. 11).

Com isso ele quer enfraquecer a tese do

determinismo genético. A hereditariedade nos fornece

padrões metabólicos a partir dos quais nossos corpos se

desenvolvem, mas de modo algum há uma determinação

genética absoluta sobre esse desenvolvimento,

especialmente no que se refere aos aspectos

comportamentais. Os genes, em primeiro lugar, interagem

entre si de maneira bastante complexa e, em segundo lugar,

interagem com o ambiente da célula, do organismo e do

meio externo. Tudo isso torna o desenvolvimento do

organismo imprevisível a partir de seus genes.

Em relação ao ambiente, Dobzhansky considera

necessário distinguir dele, em sua generalidade, aquilo que

consideramos especificamente como cultura.

Considerada biologicamente, a cultura é, é

claro, uma parte do ambiente em que o

desenvolvimento de uma pessoa toma lugar.

Realmente o “ambiente” consiste não somente de

variáveis físicas tais como temperatura, umidade,

luz, quantidade e qualidade de alimento, mas inclui

também as inter-relações que são estabelecidas

entre indivíduos de uma e de outra espécie vivendo

no mesmo habitat. A cultura é, todavia, um

fenômeno quase exclusivamente humano, e como

tal merece ser considerado como um terceiro

determinante da personalidade humana, ao lado da

hereditariedade e do ambiente (1960, p. 34).

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E a cultura é tão importante para Dobzhansky que

ele diferencia duas formas de evolução: a biológica e a

cultural. A primeira tem como veículo de hereditariedade

os genes, enquanto a segunda tem como veículo a

linguagem. Pela linguagem, somos capazes de herdar não

apenas padrões metabólicos dos pais, mas conhecimentos

científicos, artísticos, éticos, etc. produzidos por pessoas

com as quais não tivemos nenhuma relação biológica e nem

mesmo temporal. Isso amplia de forma exponencial o

âmbito da evolução, e faz com que novas abordagens

cognitivas sejam necessárias. Ou seja, não se pode explicar

tudo a partir da biologia, já que o âmbito da cultura é

governado por “leis” que não são biológicas.

Mas esse ainda não é o ponto decisivo do

argumento de Dobzhansky. Ainda poderíamos imaginar

uma “ciência da cultura”, capaz de compreender suas leis e

assim estabelecer normas para os indivíduos de forma

objetiva e neutra, eliminando radicalmente qualquer

discussão sobre valores no sentido moral. Nesse ponto, o

biólogo introduz o seguinte raciocínio.

o próprio fato de que o homem sabe que ele tem

evoluído e está evoluindo significa que ele é capaz

de acelerar, diminuir a velocidade, parar

completamente ou mudar de direção. E o aumento

de conhecimento e entendimento da evolução pode

habilitá-lo a traduzir seus pensamentos em

realidade. Apesar de todas as exortações em

contrário, o homem não nega a si mesmo

permanentemente o direito de buscar saber algo,

incluindo sua direção evolutiva. O homem pode

rebelar-se contra esta direção, mesmo que seja

mostrado que ela é benéfica a ele (1960, p. 129).

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

Quer dizer, o conhecimento biológico não leva

necessariamente a estabelecer as “leis” biológicas como

regras morais. Pelo contrário, amplia a possibilidade de

fazer escolhas em outras direções. Quando sabemos, por

exemplo, que pessoas com algum tipo de deficiência física

têm grande desvantagem competitiva no mercado de

trabalho, não somos imediatamente forçados a adotar essa

situação como dada. Pelo contrário, temos aí condições de

implementar políticas que amenizem o efeito da

desigualdade natural. O ponto de vista de Dobzhansky,

portanto, é interessante por demonstrar, a partir de dentro

da própria biologia, quais são os limites de sua abordagem

mecanicista.

Com isso, Dobzhansky torna viável reabilitar a

racionalidade teleológica. Claro, não aplicada à

compreensão da natureza, mas sim da ação humana.

Quando nos perguntamos sobre o que devemos fazer, não

basta dizer “como” as coisas funcionam, é preciso

perguntar “por que” elas funcionam como funcionam, ou

seja, quais “fins” elas realizam e se isso é bom ou não. As

ciências mecanicistas, como a biologia, tem o mérito de

revelar os limites físicos, químicos, biológicos, psicológicos

etc. de nossas ações. Mas o conhecimento desses limites é a

chave para, em certo sentido, tentar ultrapassá-los ou

driblá-los. E a própria pesquisa científica só tem sentido em

vista dessa possibilidade.

Conclusão

O objetivo deste texto foi indicar formas de

aproximar a filosofia das ciências, especialmente da

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biologia, no âmbito do ensino. Num primeiro momento,

tentou-se mostrar que é necessário superar as teses que

afastam a filosofia das ciências tomando como referência a

noção de criticidade. Nem a filosofia é excessivamente

crítica, enquanto a ciência seria necessariamente dogmática,

nem a filosofia é uma construção dogmática que precisa ser

substituída pelos procedimentos críticos da racionalidade

científica.

Ciência e filosofia são formas diferentes de

criticidade. A filosofia se considera crítica porque assume

explicitamente a tarefa de justificar especulativamente seus

pressupostos. Daí inclusive sua crítica à ciência, que parece

deixar de lado, pelo menos seguindo a análise de Kuhn,

essa questão e concentrar-se na resolução de quebra-

cabeças. Por outro lado, a ciência se considera crítica por

estabelecer como meta a apresentação clara e objetiva de

teorias que devem ser contrastadas com a realidade

empírica. De forma análoga, a crítica da ciência à filosofia

baseia-se na acusação de que esta perde o contato com a

experiência. Ciência e filosofia, apresentadas aqui de modo

muito simplificado, são compreensões diferentes de

criticidade. O debate entre elas, portanto, pode ser útil a

ambas, agregando a dimensão da criticidade que falta a cada

uma isoladamente.

Como sugestão de temáticas para interligar filosofia

e biologia no ensino, sugeri algumas que se desdobram a

partir da tensão entre teleologia e mecanicismo e que

culminam num conflito entre formas diferentes de

racionalidade. Essa dualidade é extremamente antiga,

estando presente na própria filosofia grega, mas ela é

também muito atual. Questões como aborto, eutanásia, a

crise ambiental, o lugar da ética e dos valores, dentre muitas

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

outras, dependem desse debate. No ensino, diversas dessas

questões podem ser recuperadas enquanto situações-

problema.

De fato, nossa cultura foi cindida por essa dualidade

(que pode ser pensada sob outras categorias), e uma grande

tarefa do diálogo entre filosofia e ciência é tentar repensá-

la. Uma referência importante, nesse sentido, é a obra do

antropólogo Bruno Latour “Jamais fomos modernos”

(1994), em que ele tenta mostrar que a dualidade moderna

entre natureza e cultura existiu apenas na esfera das

representações, mas nunca na prática. Segundo ele, no

mundo real essas duas esferas sempre estiveram inter-

relacionadas.

De qualquer forma, os exemplos colocados tentam

demonstrar como o mecanicismo surgiu dentro da biologia,

como seu modelo de explicação funciona e as dificuldades

que ele mesmo enseja ao tentar compreender o organismo

vivo. Além disso, buscou-se apresentar o viés oposto, ou

seja, como, a partir do interior do pensamento biológico, se

é levado a reconhecer a existência de modelos de

racionalidade que não admitem o mecanicismo ao tentar

compreender a cultura humana e especialmente a ética.

Obviamente muitas outras reflexões podem ser

desdobradas enquanto interesses tanto para filósofos

quanto para biólogos.

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241

Leno Francisco Danner (Org.)

Ensino de filosofia e sociologia:

uma perspectiva interdisciplinar

Leno Francisco Danner113

Neste artigo, buscarei refletir sobre a possibilidade

de um ensino de filosofia que seja realizado, mormente

quando seus temas têm raízes nas ciências humanas e

sociais, em um caráter interdisciplinar e em cooperação

com conteúdos advenientes da sociologia (permitindo,

portanto, correlacionar ensino de filosofia e ensino de

sociologia). Eu acredito, como professor que leciona ambas

as disciplinas (tanto em caráter introdutório quanto em

caráter mais especializado), que há uma ligação muito

estreita entre ambas, especificamente no fato de que a

tensão entre universalidade e particularidade, entre

normatividade e pesquisa empírica, estoura em cheio tanto

na formulação do conhecimento filosófico quanto na

elaboração do conhecimento sociológico, levando, por

exemplo, que a filosofia confronte seus paradigmas e

modelos normativos com pesquisas sociológicas

113 Doutor em Filosofia (PUC-RS). Professor de Filosofia e de Sociologia na Fundação Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Contato: [email protected]

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242

Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

especializadas e, de outro lado, que a sociologia, exatamente

na pesquisa de questões especializadas sobre o social, tenha

de lançar mão de visões holísticas, estruturais e totalizantes

da sociedade e de suas instituições, o que implica em que

ela não pode abdicar nem das explicações gerais e nem da

fundamentação normativa acerca desse mesmo social, da

mesma forma como, no caso da filosofia, esta não pode

desprezar o impacto e a importância dos contextos

empíricos e particulares no que tange à própria formulação

do conteúdo filosófico e sua fundamentação.

No restante do texto, por conseguinte, defenderei

não apenas a viabilidade da cooperação entre filosofia e

sociologia no que tange ao ensino de humanidades para a

educação básica, mas também a imbricada

complementaridade entre ambas, que permitiriam um

trabalho interdisciplinar aprofundado e grandemente

reflexivo acerca das questões sociais, políticas, culturais e

econômicas, de modo a que os estudantes sejam

confrontados, em ambas as disciplinas, com os desafios de

uma leitura objetiva de sua realidade, com o problema da

fundamentação normativa da ação e com a dinâmica das

relações entre socialização e subjetivação que são detonadas

pelas instituições sociais, recebendo contrapartidas dos

indivíduos e grupos sociais que constituem o contexto

sociocultural em questão. Ao mesmo tempo, sugerirei

exemplos de temas que poderiam ser trabalhados por

ambas as disciplinas, de um modo cooperativo e

interdisciplinar, temas estes que remetem permanentemente

à relação entre normatividade e pesquisa empírica, entre

universalidade e particularidade.

Eu penso que todo assunto a ser estudado nas

disciplinas de filosofia e de sociologia para a educação

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243

Leno Francisco Danner (Org.)

básica deve ser trabalhado tendo como base situações

cotidianas, que fazem parte da dinâmica social que os

alunos vivenciam. Muito mais do que focar na conceituação

de teorias científicas, com suas ortodoxias variadas, e, aqui,

nas histórias dos pensamentos filosóficos e sociológicos, os

professores devem utilizar-se de temas que fazem parte do

dia a dia dos estudantes, buscando problematizar as causas

e as consequências de cada situação social estudada e, com

isso, perguntando pela fundamentação normativa das

mesmas. Notícias de jornais e de revistas sobre cultura,

religião, política, ciência, mazelas sociais, cultura de massa,

etc., são instrumentos basilares para trabalhar-se o ensino

de filosofia e de sociologia, já que partem de problemas

atuais vivenciados pelos próprios estudantes, nas mais

variadas dimensões que podemos conceber em se tratando

da vida humana. Ora, conforme penso, diante da

importância desses temas, a ênfase preponderante na

história da filosofia torna-se praticamente um preciosismo

intelectual pouco prazeroso, já que, muito mais do que

saber-se a conceituação de cronologias, de autores, de obras

e de ideias abstratas, deveria buscar-se entronizar os

estudantes nas investigações filosóficas e científicas sobre o

presente – sobre o presente deles. Note-se bem que não

estou defendendo a inutilidade de estudar-se a história da

filosofia e os clássicos, muito pelo contrário. Resgatar a

história de nossa civilização e sua cultura é algo

fundamental. Mas, se eu tiver de escolher ou mesmo sugerir

qual tônica os professores deveriam dar ao ensino de

filosofia e de sociologia, eu apontaria para o estudo das

questões cotidianas como o mote a partir do qual tanto a

filosofia quanto a sociologia deveriam ser ministradas (e,

caso for possível, a partir do qual a história da filosofia e o

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244

Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

ensino dos clássicos poderiam ser pensados). No que se

segue, procurarei defender isso.

Breve definição do campo filosófico de atuação

A filosofia, desde seus primórdios, é entendida,

ainda que de uma forma geral, conforme penso, enquanto

modo de vida e investigação científica acerca da

possibilidade de valores objetivos de moralidade e de

verdade, que servissem para ajuizar normativamente as

diferentes áreas constituintes da vida humana (ética,

política, física, medicina, etc.) e mais além (natureza,

divindade, etc.). Assim, com base na reflexão filosófica,

acredita-se tanto na viabilidade de instituir-se uma exemplar

ação pessoal quanto na possibilidade de construir-se um

ideal ético-político de sociabilidade, um fundamento

científico para o conhecimento e uma estrutura humana

modelar que permitissem o enquadramento normativo de

situações práticas, de problemas concretos, surgidos nas

comunidades humanas em que a filosofia (mas não

somente ela, evidentemente) desenvolveu-se tendo como

foco a interpretação e a proposição de ideais

emancipatórios. Nesse sentido, na filosofia, a tensão entre

normatividade e investigações empíricas, entre

universalidade e particularidade, entre objetividade e

relativismo, dinamizou o permanente repensar da própria

investigação filosófica em sua pretensão de objetividade e

em sua relação com os contextos a partir dos quais os

filósofos pensaram filosoficamente. Com isso, ao contrário

do que muitos podem pensar, a filosofia não reduz-se à

pura normatividade, que negaria as contribuições empíricas,

uma normatividade que estaria esvaziada de conteúdo

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245

Leno Francisco Danner (Org.)

empírico ou desligada dele, e nem pode impunemente

estabelecer um contexto empírico específico como modelo

normativo a partir do qual outros contextos seriam

enquadrados moral e epistemologicamente.

Se tomarmos esta formulação de filosofia, isto é,

investigação e mesmo fundamentação científica dos valores

de verdade e de moralidade, perceberemos que a pergunta

pela universalidade de tais valores levará diretamente à

consideração dos desafios colocados pelos contextos

empíricos à possibilidade dos mesmos. Com isso, conforme

penso, não pode fazer-se boa filosofia caso não se

reconheça não apenas esse desafio – no que tange à própria

universalidade dos valores – lançado pelos problemas

empíricos e pelos contextos histórico-culturais nos quais

cada comunidade humana desenvolve-se, mas também caso

não leve-se a sério a necessidade de um permanente estudo

desses mesmos contextos empíricos, que fornecem o

conteúdo para a elaboração da própria reflexão filosófica. A

consideração da normatividade desligada dos contextos

simbólico-morais específicos conduz ao estranhamento

dessa mesma normatividade, porque ela, em estando

isolada dos mesmos, não pode ser localizada

empiricamente, mas a negação de que nada há para além do

contexto simbólico-moral que permita ajuizá-lo

moralmente corre o risco de legitimar, direta ou

indiretamente, consciente ou inconscientemente, a validade

das próprias regras do contexto, que, nesse caso, remetem

sua validade a si mesmas, e não a uma instância superior

(supondo que ela exista). Neste último caso, a crítica e a

transformação sociocultural ficam emperradas, o que

demonstra exatamente a importância das reflexões

normativas conduzidas pela filosofia.

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246

Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

Que fique bem claro, primeiramente, que não há

um enfraquecimento da filosofia (ou de sua pretensão de

cientificidade) se ela nem sempre é bem-sucedida em

relação à fundamentação objetiva dos valores de verdade e

de moralidade, assim como as sempre permanentes e

intermináveis discussões sobre quais seriam os

fundamentos desses valores, mesmo que não se chegue a

qualquer síntese final, não implicam na afirmação de que a

filosofia, por não conseguir dar respostas definitivas aos

problemas em questão, caracteriza-se meramente como

uma empreitada e uma discussão sem-sentido. Se há algo

de importante que as diferentes ciências e a filosofia

aprenderam, em seu percurso histórico, este algo consiste

em que a construção do conhecimento, nos vários

domínios em que as investigações científicas e filosóficas

incidem (e, em particular, na esfera das ciências humanas e

sociais, já que estamos falando da fundamentação objetiva

dos valores de verdade e de moralidade), é influenciada e,

por isso, delimitada pelo grau de evolução histórico-cultural

e pelos instrumentos científicos disponíveis, o que significa

que a formulação científica do conhecimento está sujeita a

parcialidades, devendo ser permanentemente repensada – e

tal situação, por exemplo, não implica na deslegitimação da

ciência enquanto ciência. Isso também é verdade, como já

disse acima, no que diz respeito à abordagem filosófica

acerca da objetividade dos valores de verdade e de

moralidade. O fato de que a pluralidade de universos

simbólico-morais e o escancarado multiculturalismo de

nossas sociedades põem em xeque – ainda que não

eliminem totalmente – a viabilidade de valores

universalistas, próprios a todo gênero humano (supondo

que exista algum princípio biológico ou, principalmente,

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247

Leno Francisco Danner (Org.)

para o presente caso, normativo que permita pensar-se em

um gênero humano) não significa que a reflexão filosófica,

quando enfrenta-se com tal realidade, torne-se infrutífera.

Às vezes, como acontece com toda investigação científica, a

própria explicitação do multiculturalismo e a elucidação das

raízes histórico-culturais dos pré-conceitos já são

suficientes para que formas de integração social mais

inclusivas consolidem-se efetivamente em nossas

sociedades e nas consciências dos indivíduos e dos grupos,

como contraposição à afirmação de pertenças a

comunidades de valores fechadas.

A filosofia, com isso e em segundo lugar, procura

pensar a partir de padrões objetivos, com caráter

normativo, acerca das questões empíricas. A linguagem

filosófica é absolutamente carregada de simbolismo moral,

o que coloca não poucas exigências e desafios no confronto

com os problemas práticos. É que a interpretação e a crítica

das situações cotidianas necessitam estar ancoradas não

apenas em juízos descritivos das mesmas, mas também e

fundamentalmente em juízos morais, prescritivos,

normativos. Se nos falta o ponto de vista moral, perdemos

o aguilhão crítico com o qual seja as ciências, seja os

cidadãos e os grupos sociais, criticam o status quo em

qualquer nível da sociedade ou do conhecimento. É nessa

tensão que a filosofia surgiu e desenvolveu-se ao longo de

sua história, em termos de Ocidente, a saber: de um lado,

reconhecendo paulatinamente e com cada vez mais

intensidade a força do relativismo moral e do pluralismo

cultural, que impedem uma generalização apressada de um

modelo de estrutura humana exemplar e a universalização

injustificada de qualquer código moral enquanto paradigma

a partir do qual todos os códigos morais podem ser

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248

Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

avaliados, legitimados ou deslegitimados; de outro lado,

apontando exatamente para o ponto de vista moral, de

caráter objetivo, imparcial e universalizável, como o critério

com base no qual questões ético-políticas e epistemológicas

pudessem ser julgadas em sua correção ou em sua

incorreção. Neste último caso, não obstante os inúmeros

princípios que foram colocados na base da objetividade do

ponto de vista moral, para garantir a objetividade dos

valores de verdade e de moralidade, a pergunta pela

objetividade desse ponto de vista moral e, na grande parte

das vezes, o reconhecimento de sua possibilidade, de sua

efetividade dinamizaram o desenvolvimento das diferentes

filosofias, possibilitando um fio condutor para estudarmos

a história da filosofia, bem como, para o que interessa-me

aqui, permitindo que, devido à tensão entre universalidade

e particularidade, normatividade e empiria, essas mesmas

filosofias estivessem em permanente diálogo e interação

com as ciências particulares, que progressivamente

autonomizaram-se daquele tronco que, ainda em Descartes,

era fundado exatamente na filosofia. A filosofia e as

ciências particulares, por conseguinte, têm entre si uma

ligação verdadeiramente umbilical, por este fator que estou

salientando ao longo desta seção, a saber, a intrínseca

vinculação entre descrição e normatividade, que devém do

fato de que todo estudo normativo traz em seu bojo

contextos simbólico-morais empíricos e a explicação

descritiva destes contextos, em muitos casos, acaba

descambando na conclusão de que os contextos empíricos

sustentam-se por causa de seu caráter simbólico-moral – ao

qual, então, pergunta-se pela sua validade. Essa

característica fundamental de toda abordagem científico-

filosófica no que tange às ciências humanas e sociais, ou

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249

Leno Francisco Danner (Org.)

seja, a correlação entre normatividade e descrição, sua

ligação intrínseca e dependência mútua, faz parte da vida

humana de qualquer comunidade cultural, historicamente

localizada, organizada e sustentada simbólico-moralmente.

Estudar os seres humanos, em suas várias facetas, equivale

a percebê-lo basicamente enquanto seres simbólico-morais;

da mesma forma, estudar as comunidades humanas,

localizem-se elas em qualquer lugar imaginável, leva-nos a

estudá-las como comunidades simbólico-morais.

Uma breve descrição do campo sociológico de

atuação

Conforme penso, a sociologia, ainda que de

maneira bem geral, pode ser definida a partir de três

princípios: (a) as instituições, os universos simbólico-morais

e os grupo sociais têm uma existência objetiva, do mesmo

modo que um indivíduo singular a tem; por isso, (b) há

uma correlação intrínseca e uma dependência recíproca

entre os processos de socialização e os processos de

subjetivação e, inclusive, no caso da análise sociológica,

tem-se uma certa centralidade desses processos de

socialização para a definição da formação da personalidade

e para a instauração de determinado status quo; por fim, ao

afirmar-se tais princípios, tem-se que, (c) transformando-se

as instituições, os universos simbólico-morais e os grupos

sociais, consequentemente transforma-se os processos de

subjetivação e a dinâmica do status quo. A sociologia, assim,

parte de uma perspectiva eminentemente histórica de

sociedade e de evolução humana, apontando para uma ação

político-cultural que possa levar a mudanças práticas em

termos de organização social e de formação individual.

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

Toda sociedade é histórica e, se isso significa, de um lado,

que nenhuns homem e grupo social podem transcender seu

horizonte histórico, de outro lado também salienta-se que

eles têm condições de influenciar sua transformação,

devido ao fato de que não existe dissociação em termos de

existência objetiva da sociedade e de suas instituições e a

ação dos indivíduos e dos grupos sobre si mesmos e sobre

a sociedade de que fazem parte. Explicarei, abaixo,

brevemente, cada um daqueles princípios.

Em primeiro lugar, é mister explicitar-se que a

ênfase, no caso da sociologia, em investigações empíricas

sobre contextos materiais específicos (a análise sobre

qualquer situação cotidiana – religiosa, social, política,

cultural, econômica, científica etc.), aponta para a ideia de

que a elaboração conceitual, dos diagnósticos e dos

prognósticos, somente pode ser feita a partir das – e com

base nas – investigações empíricas. O universal, o

conceitual, nesse caso, não pode ser formulado sem que se

leve em conta os contextos empíricos abordados pela

pesquisa. Isso, basicamente, é uma reação contra posturas

filosóficas que, por não buscarem essa relação orgânica e

dinâmica entre o universal e o particular, entre o normativo

e o empírico, enfatizando apenas o universal, o normativo e

o moral, bem como correlatamente negando a importância

científico-moral desses contextos empíricos e de tudo o que

eles contêm, acabaram simplesmente contrapondo-se

radicalmente a qualquer possibilidade de contato efetivo

com as ciências particulares – solidificando aquela opinião

geral de que a filosofia e os filósofos simplesmente

constroem discursos e conceitos que não possuem qualquer

contato com a prática vital cotidiana, o que não é verdade.

A sociologia, nesse caso, é, conforme penso, uma resposta

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251

Leno Francisco Danner (Org.)

a filosofias eminentemente normativas ou idealistas

(idealismo no sentido de primazia e de superioridade da

ideia sobre a matéria, ou da subsunção da matéria no

conceito), mas uma resposta que procura elaborar uma

síntese entre o normativo e o empírico, entre o universal e

o particular. No caso da sociologia clássica,

especificamente, para citar dois exemplos, em Auguste

Comte e em Karl Marx, a imbricação entre diagnóstico

empírico e prognóstico político-normativo é sintomática

para explicitar-se meu argumento de que a sociologia, da

mesma forma como a filosofia, está irremediavelmente voltada

à tematização das relações entre o universal e o particular,

entre o empírico e o normativo, entre o fato e a moral.

Isso, novamente, não é apenas uma característica das

ciências que tratam dos inúmeros contextos simbólico-

morais humanos, mas também uma característica basilar da

própria constituição desses contextos humanos. A moral

não é apenas um fato, senão que possui um sentido

normativo e vinculante, em qualquer contexto humano.

Enquanto fato e normatividade, ela exige ser tratada em sua

completude, sob pena de perder-se de vista a possibilidade

de um entendimento correto e, no caso, de uma

fundamentada ação transformadora em relação à mesma.

Em segundo lugar, afirmando-se tais pontos,

verifica-se que a sociologia parte exatamente da constatação

de que as instituições sociais e políticas, os universos simbólico-morais

e os grupo sociais possuem existência objetiva, empiricamente

constatável. Eles são estruturas objetivas porque, enquanto

feixes de regras compartilhados coletivamente, estão

sobrepostos à existência dos indivíduos singulares e, na

verdade, representam o universo axiológico, o paradigma

orientador da diferenciação dos papéis sociais e individuais

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

e a visão de mundo a partir dos quais esses mesmos

indivíduos formam-se enquanto indivíduos e estabelecem

relações consigo mesmos, com outros indivíduos, com a

natureza, com as divindades, bem como com grupos e

indivíduos que não fazem parte de seu contexto. Todo

indivíduo, desde seu nascimento, encontra-se englobado

por tais instituições, pelos símbolos e pela moral do grupo

de que faz parte, e é a partir dali que seu processo formativo

tem lugar. O indivíduo não constrói qualquer conteúdo do

zero, por assim dizer, senão que trabalha e retrabalha a

partir dos conteúdos afirmados pelo seu grupo

coletivamente. Há todo um mundo simbólico-moral e

instituições sociais que, ontogeneticamente falando, são

prévias aos indivíduos, isto é, eles constroem-se enquanto

indivíduos a partir daquele mundo simbólico-moral e

daquelas instituições que encontram em seu contexto vital,

no grupo em que fazem parte. É nesse sentido, portanto,

que enfatizei a correlação entre processos de socialização e processos

de subjetivação, isto é, a existência objetiva da sociedade, das

instituições, de um universo simbólico-moral próprio a

cada grupo social implica em que os indivíduos e as

relações sociais que desenvolvem-se ao longo do tempo

sejam regulados e delimitados por aquela existência

objetiva. Ora, tais afirmações conduzem a um terceiro

ponto, a saber, de que, se de fato existe tal correlação entre

socialização e subjetivação, por causa da objetividade das

instituições e do universo simbólico-moral, e se é possível

diagnosticá-los em sua objetividade, tem-se condições de

corrigir instituições deficitárias e valores considerados

equivocados, que, em assim ocorrendo, levam à

transformação dos processos formativos tanto em nível

coletivo quanto em nível individual. Quer dizer, neste

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Leno Francisco Danner (Org.)

último caso, a transformação social é possível, porque, por

um lado, os indivíduos e os grupos sociais desenvolvem-se

a partir de estruturas e de instituições objetivas, de

universos simbólico-morais que orientam os processos

generativos em nível macroestrutural – isso possibilita uma

leitura sociológica objetiva da realidade material estudada,

que leva a diagnósticos sobre a dinâmica da mesma; por

outro lado, tal constatação da existência objetiva da

sociedade e de suas instituições, que leva à afirmação de

que os processos de socialização definem os processos de

subjetivação, também é permeada pela evidência de que os

grupos sociais e os indivíduos, por meio da sua ação ao

longo do tempo, não apenas consolidam a existência

objetiva da sociedade e das instituições, bem como

instituem feixes de códigos simbólico-morais para

representar e regrar sua vida enquanto grupo e enquanto

indivíduos, senão que também podem transformá-los

conscientemente, por meio de sua ação prática.

Ora, o interesse emancipatório da sociologia, desde

os primórdios dessa disciplina científica, centrou-se na

tentativa de orientar a transformação humana por meio da

leitura objetiva da sociedade, de suas instituições, de seus

grupos sociais e, no fim das contas, do universo simbólico-

moral que caracteriza o contexto social em questão.

Novamente aqui pode-se perceber a intrínseca vinculação

entre descrição e prescrição, entre investigação empírica e

reivindicação normativa, na medida em que a análise

científica da realidade empírica estudada liga-se de maneira

intrínseca à prática política e até à correção moral das

instituições e dos processos formativos por elas detonados.

Assim, a sociologia, ao constituir-se enquanto disciplina

científica, tem de afirmar dois pontos básicos para a

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

orientação de suas atividades científico-políticas, a saber:

por um lado, os indivíduos são formados pela sociedade

onde nascem e se desenvolvem, com base nas condições

materiais que encontram; por outro lado, como tal relação é

orgânica e dinâmica, eles influenciam paulatinamente a

mudança social, a transformação quantitativa e qualitativa

das instituições e das relações sociais. Diferentemente dos

animais, que aclimatam-se ao ambiente natural em

permanente mutação, os grupos humanos, se por um lado

não podem transcender seu horizonte histórico, não podem

saltar fora de seu tempo, por outro lado mudam esse

mesmo horizonte social historicamente dado – daí a

importância que, desde o início da sociologia, os sociólogos

conferiram à compreensão objetiva da dinâmica social para

a transformação da mesma.

Para isso, entretanto, tanto cientistas quanto

políticos (no sentido de indivíduos e grupos que engajam-se

na ação social cotidiana) devem lançar mão de argumentos

normativos, de reivindicações de legitimidade. O discurso

público, realizado por qualquer pessoa, líder ou cientista

está obrigado a justificar-se, a dar razões de seus

diagnósticos, de suas proposições e de suas invectivas. Nas

sociedades ocidentais secularizadas, nas quais a sociologia

desenvolveu-se e, em princípio, às quais teve como objeto

por excelência, a justificação pública de diagnósticos e de

prognósticos é de importância basilar para a viabilidade de

uma teoria, de uma doutrina ou de uma prática política.

Com isso, quero significar apenas que tanto o diagnóstico

quanto a avaliação normativa das situações fáticas precisa de

boas razões, e isso implica na qualidade das avalições

empíricas e na força (universalidade) dos argumentos

normativos utilizados para denunciar uma realidade

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Leno Francisco Danner (Org.)

deformada e propor transformações nas mesmas. Há, por

causa disso, uma ligação umbilical entre filosofia e

sociologia, que favorece o trabalho cooperativo e, para o

nosso caso, a interdisciplinaridade no ensino de filosofia e

no ensino de sociologia, bem como no ensino de filosofia a

partir de temas e de contribuições da sociologia.

Convergências no ensino de filosofia e no ensino de

sociologia

Entre filosofia e sociologia, como venho afirmando,

há uma convergência no que tange às estratégias utilizadas

para a investigação científica e nos temas tratados: há certa

correlação entre pesquisa empírica e fundamentação

normativa – por exemplo, no insistente posicionamento de

vários filósofos e sociólogos em relação à ligação entre

ciência e política. É possível, evidentemente, em muitos

casos, fazer-se ciência meramente descritiva, e há uma

grande quantidade de cientistas que efetivamente optam

por este ponto, mas, seja neste grupo, seja naquele grupo

que defende a ligação entre pesquisa empírica e

fundamentação normativa, é possível traçar-se tal inter-

relação, salientando, no caso do ensino de humanidades, o

quanto a prática cotidiana, em seus vários aspectos (social,

político, cultural, econômico), está completamente

perpassada pela significação moral, quase ritualística, de

toda a sua dinâmica, desde o mais simples gesto até a

relação mais complexa – as justificações das relações

sociais, das instituições e das formas de vida presentes em

uma dada sociedade ou mesmo mais além são sempre

normativas, morais, sendo que elas orientam a vida fática de

um grupo e dos indivíduos que o constituem, mesmo nos

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

confrontos entre grupos socioculturais e políticos

antagônicos entre si. Penso que esta sensibilidade para a

prática cotidiana pode, no que tange ao ensino, chamar

atenção para o enraizamento do conhecimento no dia a dia

das pessoas, conhecimento que é, na verdade, um seu

instrumento para a realização de tarefas as mais variadas e

de significação de sua existência corriqueira. Inclusive, aqui,

a percepção de que a política e a cultura, bem como as lutas

em torno a tais campos, são justificadas a partir de

argumentos normativos, com pretensões de validade

objetiva, de universalização, é sintomática para traçarmos

essa ligação umbilical entre filosofia e sociologia. As

justificações normativas sobre a dinâmica das práticas

políticas e culturais cotidianas, as legitimações que os

grupos sociais em disputa utilizam para legitimar suas

ações, tudo isso está no fundamento das análises filosófico-

sociológicas, é sua pergunta-chave.

Como os grupos sociais significam sua existência

enquanto grupo? Como os indivíduos de um determinado

grupo percebem-se, no horizonte simbólico-moral aberto

pelo referido grupo? Como, além disso, grupos sociais e

indivíduos relacionam-se com outros grupos sociais e

indivíduos completamente diferentes? Quais as justificações

que fundamentam as reivindicações cotidianas pelo poder,

pelo status quo, pelos recursos e pela liberdade e igualdade?

Como as lutas sociais são fundamentadas e justificadas

publicamente? Nestas perguntas, e no estudo de exemplos

realmente existentes de grupos e de indivíduos, bem como

de suas concepções de mundo e de lutas político-culturais,

é possível vislumbrar-se um amplo rol de práticas culturais

e de argumentos morais que regem tanto as relações desses

grupos e indivíduos consigo mesmos quanto suas relações

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Leno Francisco Danner (Org.)

com os demais grupos e indivíduos e mesmo frente ao

mundo de um modo mais amplo; tais argumentos

normativos e práticas sociais, além disso, embasam as lutas

políticas que os grupos travam entre si pela hegemonia

político-cultural, o que significa que, para tal hegemonia

tornar-se possível, pretensões fortes de universalidade

devem ser lançadas na esfera pública e, com isso, abre-se a

possibilidade de dissecá-las filosófico-sociologicamente.

Note-se, aqui, o quanto o apelo a práticas de vida, a

modelos socioculturais e morais, bem como a concepções

de homem e de política, aponta diretamente para a

consideração da validade das práticas, dos modelos

socioculturais e morais e das concepções de homem e de

política utilizados em cada contexto. O que garante a

validade de uma prática? Ela pode subsistir em situações

diferenciadas, em particular no confronto com outros

modelos e práticas? Para além das diferenças entre

concepções culturais e morais, é possível formular-se

princípios e instituir-se práticas que possam servir como

referencial normativo para diferentes concepções de

mundo, para diferentes grupos morais em contextos

histórico-sociais diferenciados e até totalmente estranhos

uns aos outros? E como justificarmos publicamente uma

posição política e suas pretensões de hegemonia? Como tal

hegemonia pode ser conseguida? Que grupos sociais

digladiam-se, em termos de esfera pública, pela conquista

de hegemonia politica?

Tais perguntas têm o intuito de levar o leitor a

perceber que, para uma boa pesquisa científica e, em

particular, para uma boa prática de ensino de humanidades,

a consideração correlata da descrição empírica com a

fundamentação normativa adquire papel central no que

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

tange ao desenvolvimento da capacidade crítico-reflexiva

do educando e da classe. Ainda que esta afirmação seja

generalista e pretensiosa, eu acredito, pela minha prática

como professor de filosofia e de sociologia, que um dos

grandes desafios que o ensino de tais disciplinas deve

enfrentar, no dia a dia da sala de aula (e até mais além),

consiste em que o aluno e a classe pensem a partir de várias

perspectivas e saibam analisar questões socioculturais e

morais a partir de pontos de vista plurais, exatamente por

causa dessa correlação entre universalidade e

particularidades. Nossos alunos avaliam estas questões

socioculturais e morais de uma perspectiva muito centrada

na moralidade de determinado grupo (e, no caso do Brasil,

país de esmagadora maioria religiosa, com ênfase na

moralidade de grupos religiosos específicos, calcada na

Bíblia), desconsiderando que, filosófica e sociologicamente

falando, é exatamente tal avaliação baseada na moralidade

de um grupo específico que deveria ser confrontada (mas

não necessariamente superada) com outras formas de

moralidade, com vistas à avaliação tanto das próprias

crenças quanto das concepções dos outros grupos. Então,

nesse caso, o estudo de diferentes – e, às vezes, divergentes

– universos simbólicos e mesmo sua comparação (a partir

de questões pontuais, como o casamento homossexual, o

aborto, a eutanásia, o individualismo, o comunitarismo,

etc.) poderiam fornecer subsídios filosófico-sociológicos

muito importantes para que os estudantes possam

desconstruir e construir as posições morais que, em um

solo democrático, fazem parte de sua vida cotidiana e com

as quais eles estão permanentemente confrontados.

Outro ponto que considero importante diz respeito

à importância de leituras politizadas da realidade, questão

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Leno Francisco Danner (Org.)

diretamente ligada ao ensino de filosofia e de sociologia. Os

estudantes devem tornar-se interlocutores de seu cotidiano,

devem aprender a utilizar sua capacidade crítico-reflexiva

como posicionamento cidadão, até porque não faltam problemas

práticos, próprios às nossas sociedades, que necessitam de

atenção. Esses estudantes devem, a partir do confronto das

opiniões correntes e das notícias veiculadas nas mídias

acessíveis, dissecar a veracidade ou não das informações:

em uma esfera pública completamente bombardeada por

notícias plurais e muitas vezes em contradição, o

conhecimento do que está acontecendo e a análise

criteriosa das informações recebidas é um instrumento

fundamental de consciência política, de comprometimento

social e de autonomia individual. Geralmente, a atenção

para os problemas políticos cotidianos é enfraquecida, em

termos de mídia de massas, pela cultura consumista ou

mesmo por programas grandemente despolitizadores.

Nesses casos, é importante que o ensino de filosofia e de

sociologia consigam trazer para a vida cotidiana dos

estudantes (não apenas em sala de aula, portanto) o gosto

pelo acompanhamento e pela discussão de questões

políticas e culturais, para além do consumo passivo de

cultura que a mídia impõe como tendência geral. Nossa

época, em que a democracia tende a consolidar-se cada vez

mais, precisa de mais ação cidadã (que é o que fará a

democracia efetivar-se cada vez mais), que pode ser

dinamizada em termos de filosofia e de sociologia.

Note-se, retomo novamente, a convergência entre

filosofia e sociologia: a filosofia pesquisa sobre a

possibilidade de valores morais e epistemológicos objetivos,

o que significa que a pergunta pela justificação normativa e

a necessidade de uma aproximação com a prática de vida

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

cotidiana dão a tônica das investigações filosóficas; a

sociologia parte exatamente dos estudos especializados e

até individualizados dessa prática cotidiana, em seus

múltiplos vieses (social, político, econômico, cultural,

religioso, etc.), o que conduz à pergunta pela justificação

normativa (inclusive pelo fato de a sociologia também

buscar uma visão sistemática, estrutural, holística da

sociedade, de suas instituições e de seus atores políticos).

Filosofia e sociologia, com seu esforço científico por

esclarecer as sociedades humanas e a ação social,

encontram-se, por conseguinte, na íntima imbricação entre

normatividade e prática de vida cotidiana. De mais a mais,

filosofia e sociologia mesclam-se enquanto campos

científicos no momento mesmo em que as questões morais,

políticas e culturais, apenas para citar alguns exemplos,

tornam-se assunto de consideração científica e educativa.

Quando estas questões são conceituadas, tanto no âmbito

científico quanto na esfera da vida cotidiana, é possível

perceber que a definição dos múltiplos sentidos do humano

advém exatamente dos modos como as sociedades

organizam-se materialmente e representam-se

culturalmente: neste quesito, a filosofia foi definida por

Hegel como possibilitando a conceituação do tempo

presente e a sociologia foi definida por Marx como levando

à transformação desse mesmo tempo presente. Ou seja,

não há como dissociar o estudo científico da prática de vida

cotidiana, das sociedades realmente existentes, em relação à

própria vivência cotidiana e ao pertencimento às sociedades

realmente existentes – em particular, no caso do ensino de

filosofia e de sociologia, os estudantes devem ver-se como

sujeitos da vida de sua sociedade, de modo que eles não

apenas a analisem como voyeurs, mas também como pessoas

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que viverão a dinâmica social em questão e como atores

políticos que tomarão posições práticas ao longo de toda a

sua vida. Essas compreensões da filosofia e da sociologia

permitem, então, que temas correlatos e um trabalho

interdisciplinar possam ser traçados com vistas a uma

prática educativa profícua, garantidora de autonomia

intelectual, da cooperação como base do aprendizado e da

consolidação de uma postura caracterizada pelas

preocupações políticas e culturais.

Uma interdisciplinaridade desejável, possível e

saudável: sugestões metodológicas

Alguns grandes temas poderiam servir como

instrumentos orientadores para o ensino de filosofia em

cooperação com a sociologia, já que, conforme penso, eles

são marcados pela dupla dimensão da normatividade e da

facticidade: cultura, moral, religião, ciência e política. Cada

um deles desenrola-se nessa tensão (entre normatividade e

facticidade), denotando a própria dinâmica vital dos

indivíduos e dos grupos sociais, que, em suas ações

cotidianas, lançam mão de códigos e de valores

(confrontando-os com outros códigos e valores) com suas

respectivas e específicas fundamentações, para guiar sua

prática de vida corriqueira, estabilizando-se enquanto

indivíduos e grupos.

As definições de gênero e a afirmação de diferentes

universos simbólicos, culturais e morais poderiam ser o

mote, de um lado, para a comparação entre diferentes

concepções axiológicas e o modo como elas tratam tais

questões; de outro lado, elas, a partir dessa comparação,

ofereceriam elementos filosóficos para pensar-se em

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

formas de mediação no que tange à multiplicidade (e

mesmo à ferocidade) de compreensões morais específicas

destas mesmas definições de gênero. Seria interessante,

nesse aspecto, observar-se as tensões sobre questões de

gênero (liberação feminina e homossexualismo etc.), por

meio de notícias cotidianas e sua relação com os códigos

utilizados para a justificação das referidas questões. O

professor de filosofia pode, com o auxílio nas notícias

jornalísticas cotidianas, construir um fecundo ambiente de

discussão acerca das questões de gênero, discussão essa que

seria levada a efeito em dois momentos: primeiramente,

sendo orientada para a desconstrução das posições em

disputa, mormente as concepções religiosas, que partem da

afirmação de uma determinação divina e de uma estrutura

humana biológica (homem-mulher) imutável, também

definida por alguma divindade específica ou pela biologia;

em segundo lugar, a busca pelo consenso no que tange a

possíveis modos de tratar-se filosófica ou sociologicamente

as questões de gênero, explicitando o quanto elas não

podem ser enquadradas apenas a partir de uma posição

moral específica, ou melhor, de que nenhuma posição

moral-religiosa específica pode responder de modo

absoluto a tais questões, exatamente porque essa posição

religioso-moral é localizada histórico-culturalmente e,

portanto, limitada para responder a outros contextos.

Nesse quesito, entra em cena o universalismo moral, que

torna-se possível exatamente no momento em que não há

nenhuma posição moral-religiosa específica capaz de

oferecer fundamentação universalista a esta e outras

questões. O universalismo, no meu entender pelo menos,

emerge como solução para os impasses do

multiculturalismo e frente à queda das fundamentações

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metafísico-teológicas de mundo, e isso a partir da seguinte

premissa: por causa da falência das concepções religioso-

morais de mundo e de homem (em termos da afirmação de

uma posição absolutizante de vida humana, que serviria

como modelo normativo para todos os contextos),

somente critérios mínimos, no estilo de um consenso

sobreposto rawlsiano, permitiriam relações sociais

equitativas entre os diferentes grupos de crença,

especialmente quando se trata da organização jurídico-

constitucional e política das sociedades democráticas.

O estudo e a comparação de diferentes posições

culturais e religiosas é instrutivo para a educação

humanística, base do ensino de filosofia e sociologia,

correlatamente à formação política que tais disciplinas

devem enfatizar. Este estudo e esta comparação são

importantes porque permitem que os estudantes sejam

confrontados com diferentes e mesmo divergentes

universos simbólico-morais no que diz respeito à

compreensão de uma estrutura humana exemplar, de uma

ação efetivamente moral e, então, de tudo aquilo que desvia

do padrão de normalidade e de moralidade aceitos por cada

concepção cultural e religiosa. Este último ponto – os

desvios na normalidade de cada concepção cultural ou

código religioso – certamente é um dos focos que devem

guiar a reflexão filosófico-sociológica, em sua

problematização dos problemas vividos e das concepções

morais e culturais em disputa. Porque os focos de tensão

sociocultural hoje vigentes, em termos de Brasil, surgem

exatamente naquelas áreas de anormalidade que certas

concepções religioso-culturais enfatizam como condenáveis

– pense-se, novamente, na questão homossexual. Uma

compreensão religiosa, baseada na Bíblia, enquadra grande

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

parte das tensões que levam ao combate aberto (e, muitas

vezes, abraçado por autoridades legislativas) contra os

homossexuais, que são vistos como escolhendo uma postura

de vida antinatural ou diabólica, bem como realizando uma

ação moralmente condenável e mesmo doentia. O

professor de filosofia, que sabe confrontar seus estudantes

com diferentes concepções de cultura, de religião, de moral

e de gênero etc., tem condições de desconstruir uma visão

moral tão conservadora (e insustentável) como esta de

matiz cristão ou evangélico, já que consegue trazer aos

estudantes a limitação e a encarnação histórico-contextual

de tais posições, que, antes de remeterem-se a deus, dizem

respeito a diferentes contextos histórico-culturais

específicos; inclusive, o professor de filosofia e de

sociologia também tem condições, como estou enfatizando,

de confrontar tal posição com outras posições religioso-

morais e filosóficas (por exemplo, a posição greco-latina

acerca de gênero), expondo novamente os limites e o

círculo restrito de abrangência de cada concepção moral.

Há uma grande quantidade de notícias jornalísticas, de

documentos e de vídeos de diferentes autoridades religiosas

(começando com textos do ex-Papa Bento XVI, passando

pelo Papa Francisco e chegando-se a pastores evangélicos

como Silas Malafaia e Marco Feliciano, etc.) que serviriam

como mote para uma reflexão filosófica sobre cultural,

religião e moral, textos esses que, ao fazerem menção à

Bíblia ou à palavra de algum deus, poderiam ser

confrontados e desconstruídos a partir de outras

concepções. Certamente esse tipo de abordagem poderia

causar alguns sobressaltos nos estudantes e até em seus

pais, momento no qual a organização escolar deveria fazer

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prevalecer o laicismo e o secularismo próprios de uma

educação pública.

Outro tema extremamente atual e de importantes

consequências práticas para os estudantes é a ciência com

seus impactos e com suas contradições. Por exemplo, há

dias, pesquisadores franceses constataram graves impactos

à saúde de ratos ocasionados pela ingestão de milho

transgênico e do herbicida Roundap, ambos da Monsanto.

Essa notícia abriria espaço para a discussão acerca das

relações entre ciência e economia, no sentido de

explicitarem o quanto a ciência, dominada por interesses

econômicos, pode descambar para malefícios e mesmo

assim continuar produzindo tais manufaturas com respaldo

jurídico-político. A ênfase em uma crescente vinculação de

variados cientistas na produção de armas cada vez mais

destrutivas e carregadas de tecnologia, por sua vez, poderia

servir como mote para refletir-se sobre o papel da ciência

na indústria bélica – há vários textos de Albert Einstein,

entre outros, que criticam duramente este direcionamento

da ciência, que acaba servindo como instrumento para

países e grupos políticos imporem, abstraindo de qualquer

justificativa verossímil e utilizando-se pura e simplesmente

do argumento da força bélica, seus interesses a outros

países e grupos políticos. As posições biológicas e

antropológicas sobre a autoconstituição da espécie humana

(seleção natural, evolucionismo, etnologia etc.) –

afirmando, por exemplo, que a monogamia é antinatural,

que a evolução humana foi determinada

preponderantemente por fatores biológicos, ou mesmo que

isso que entendemos por humanidade é uma ficção que não

se sustenta quando percebemos a constituição de inúmeros

grupos culturais específicos e irredutíveis, em suas práticas e

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

valores, aos outros grupos culturais – são importantes para

confrontar-se as concepções religioso-morais que enfatizam

a naturalidade (levando à moralização) de certos modelos

humanos, de práticas sociais e individuais e de formas de

pensamento, contra outros modelos. A crescente

intervenção tecnológica na vida humana, possibilitada pela

ciência (aborto, métodos contraceptivos, hormônios,

robótica, engenharia genética etc.), leva a questionar-se

sobre o futuro do humano e mesmo sobre a moralidade de

tal intervenção. Seremos, em um futuro próximo,

produzidos ou aperfeiçoados cientificamente? Nossa

evolução, que antes acontecia pelo contato com a natureza

e com os costumes vigentes, demorando longos anos,

passará a ser determinada pela ciência e a partir de

intervenções genéticas? Além disso, questões sobre aborto

e eutanásia, possibilitadas pela ciência, podem ser utilizadas

para discutir-se questões morais sobre a vida humana,

tratadas pelas culturas e pelas religiões as mais diversas.

Aqui, a tensão entre biologia e moral pode ser utilizada de

maneira profícua para fomentar a reflexividade no que

tange ao próprio sentido das definições sobre o humano e

sobre a moral que geram tensões em nossas sociedades (o

homem foi criado por deus ou evoluiu biologicamente

apenas? É a biologia ou a religião que define o sentido do

homem? A estrutura humana e a moralidade advêm da

evolução biológica ou da religião? Há tensão entre religião e

ciência? Em um confronto entre ciência e religião, quem

leva mais vantagem ou dá a última palavra? Etc.).

Por fim, a política, enquanto parte fundamental da

sociedade democrática, é uma questão que, conforme

penso, não pode ser excluída da pauta de assuntos para a

discussão em sala de aula. A política democrática apresenta

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quatro características que apontam para a necessidade

sempre premente de que o amplo público de cidadãos

informe-se, discuta e participe da prática política,

fiscalizando e, sempre que possível, substituindo legislativo

e executivo: (a) é uma política eminentemente partidária,

que centraliza a tomada de decisões nos partidos políticos

profissionais e nos políticos profissionais, tornando-se, em

grande medida, burocrática e manipuladora das massas de

eleitores; (b) é realizada tendo como base uma esfera

pública grandemente centralizada em torno à mídia

corporativa, consumista e calcada na cultura de massas, o

que significa, em muitas situações, a exclusão de esferas

públicas marginais e de grupos sociais alternativos aos – e

críticos dos – partidos políticos e mesmo a tentativa de

despolitização dos cidadãos, devido tanto à cultura de

massas quanto à imposição vertical, de cima para baixo, dos

conteúdos midiáticos, que torna passivos os consumidores

daquela cultura midiática; (c) é muito contaminada pelo

dinheiro de investidores privados, mormente pelo fato de o

financiamento das campanhas não ser público, mas sim

depender daqueles investidores privados que, ao

patrocinarem candidatos e partidos, atrelam a programática

destes a seus interesses – a corrupção surge, em grande

medida, daqui; (d) mas, por fim, depende de processos de

justificação pública e do apoio majoritário dos eleitores,

que, devido a isso, podem transformar essa mesma política

partidária. Além disso, a formação de movimentos sociais e

a realização de iniciativas cidadãs poderiam ser elementos

políticos fundamentais para o controle do legislativo e do

executivo, bem como para seu direcionamento com base

em argumentos normativos e interesses generalizáveis. Sem

movimentos sociais e iniciativas cidadãs consistentes, a

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

evolução democrática de nossas sociedades fica totalmente

nas mãos dos partidos políticos profissionais,

burocratizados e voltados à conquista, como dizia

Habermas, da lealdade das massas pura e simplesmente.

Esses argumentos, entre outros, justificam a

preocupação, em termos de ensino de filosofia e sociologia,

com as questões políticas. A análise filosófico-sociológica e

histórica de grandes teorias científicas e movimentos

sociopolíticos modernos e contemporâneos explicita

claramente o quanto a transformação política, motivada

filosoficamente, em sua luta contra o status quo, contra as

hierarquias e as desigualdades sociais injustificadas, contra

as tiranias as mais variadas, e a favor do reconhecimento da

liberdade e da igualdade entre todos, foi o cerne da própria

evolução sociocultural de nossas sociedades. A política,

como já enfatizavam os antigos gregos, é sempre

fundamental para nossa autoconstituição como sociedade e

indivíduos, devendo ser levada a sério nesse seu papel,

devendo ser assumida nessa sua importância.

Evidentemente, pode-se optar por uma vida de privatismo

civil, mas também é óbvio que um mínimo de formação

política torna-se fundamental para podermos tomar

posições que, enquanto cidadãos, influirão em nossas vidas

e nos rumos de nossa sociedade. Ora, tendo-se isso em

mente, o professor de filosofia também deve lançar mão de

confrontações entre diferentes teóricos do pensamento

político ocidental e problemas cotidianos veiculados pelas

mídias as mais diversas, bem como problemas

sociopolíticos e culturais apresentados por nossas

sociedades. A intenção, neste caso como nos pontos acima,

é construir um ambiente de crítica e de discussão sobre a

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Leno Francisco Danner (Org.)

organização da sociedade em que se vive e mais além, que

tem na política, como venho dizendo, sua dinâmica básica.

Enfim, esta seção procurou apresentar exemplos de

temas interdisciplinares aos campos da filosofia e da

sociologia, bem como sugestões metodológicas para o

trabalho destes temas com os estudantes. Enfatizei muito a

necessidade de trazer-se notícias de situações cotidianas

como forma de se dinamizar o ensino de filosofia e de se

discutir possíveis teorias ou concepções culturais e

religiosas que abordam tais situações. Passando das

questões morais para as questões de gênero e chegando-se

ao tema da política, o estudo de posições teóricas e

cultural-religiosas torna-se mais saboroso e reflexivo no

momento em que os estudantes percebem tanto a

atualidade dos problemas tratados quanto a possibilidade

de contextualizar-se as teorias e concepções utilizadas,

inclusive no que diz respeito à possibilidade de justificá-las

ou não. Esse exercício filosófico-sociológico de

desconstrução e de construção de posições científicas e de

concepções religiosas, morais e filosóficas é absolutamente

fundamental para uma formação educacional apurada dos

estudantes, que os capacitará para o próprio exercício

efetivo seja da cidadania política, seja da autonomia

individual. Desconstrução e construção de argumentos,

teorias e concepções de mundo, de todo modo, explicitam

o quanto a filosofia, ao não estar mais de posse de verdades

últimas e nem comprometida com um universo moral

específico, pode tornar-se crítica radical da cultura,

viabilizando mais do que nunca seu compromisso com o

universalismo moral.

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

Considerações finais

À filosofia, após a crise da metafísica, resta a

alternativa de desconstruir e reconstruir permanentemente

seus conteúdos, a partir de uma inter-relação corriqueira

entre normatividade e pesquisa empírica, entre

universalidade e particularidades. Ela não está mais de

posse de uma verdade última (e nem a ciência), bem como

já não consegue impunemente elevar ao universal qualquer

padrão moral ou religioso específico, que servisse como

parâmetro normativo para a avaliação de padrões morais ou

religiosos diferentes. Doravante, a desconstrução e a

reconstrução dos conteúdos normativos, com base na

incessante relação entre universalidade e particularidades,

representam, conforme penso, o único caminho que restou

às abordagens filosóficas sobre a possibilidade de valores

objetivos de verdade e de moralidade. Isso é muito

importante para pensar-se o ensino de filosofia: é que a

ênfase na desconstrução e da reconstrução permanentes

dos conteúdos epistemológicos e morais, nessa inter-

relação entre universalidade e particularidades, necessita do

diálogo e da cooperação entre os estudantes da classe e

mesmo a relativização de algumas crenças próprias em vista

da possibilidade de um universalismo minimamente

integrador (ou apaziguador) das diferenças. Esse espírito de

diálogo e de cooperação, com esses princípios da

desconstrução e da reconstrução das concepções

epistemológicas e morais, não apenas relativiza as próprias

crenças (mas não as elimina, evidentemente), senão que

gera solidariedade e reconhecimento para com indivíduos e

grupos detentores de outras crenças, e vice-versa. Isso

reafirma e reproduz ao longo do tempo um genuíno

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Leno Francisco Danner (Org.)

espírito democrático, marcado pelo diálogo, pela

cooperação e pelo reconhecimento da liberdade, da

igualdade e da solidariedade como valores que possibilitam

a justiça e a paz sociais, próprios de uma evolução

efetivamente democrática da sociedade.

Uma educação democrática precisa contribuir no

desenvolvimento desses valores e, claro, da própria

reflexividade dos estudantes. A escola de educação básica, e

preferencialmente pública, consolidou-se paulatinamente

desde o século XIX, no Ocidente (com variações e

diferentes intensidades em cada país), como um dos eixos

basilares para a evolução democrática, exatamente no

momento em que, por causa da afirmação do ethos

democrático, substituiu-se a organização comunitária

baseada na religião, na raça ou em algum conceito cultural

específico pelo cidadania e pelo multiculturalismo, calcados

nos princípios da liberdade e da igualdade de todos os que

nascem humanos, independentemente de seus credos ou

origem pessoais, bem como na solidariedade entre os

cidadãos. Por isso, conforme penso, a educação

democrática é um lugar de transformação social e de

formação individual – e, na verdade, é o lugar por

excelência para isso. E a escola, que tem por missão essa

formação educacional democrática e universal, deve levar

tal papel a sério. Neste século XXI, em que nossa

democracia tem ainda um longo caminho para consolidar-

se consistentemente e em que ainda florescem

chauvinismos e sectarismos, a escola de educação básica

precisa ser reafirmada em toda a sua importância e nesse

seu inultrapassável papel formativo e socializador, que pode

ser fomentado pelo ensino de filosofia e de sociologia.

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

Por fim, uma consideração acerca do trabalho

interdisciplinar e cooperativo entre filosofia e sociologia. A

interdisciplinaridade e a cooperação entre filosofia e

sociologia permitem o reforço mútuo do ensino das

referidas disciplinas. No caso da filosofia, a pergunta pela

objetividade dos valores de verdade e de moralidade, ou o

estudo da normatividade, é reforçado pela apreciação e pela

comparação de estudos de caso sobre contextos simbólico-

morais particulares, sobre investigações científicas

diferenciadas e sobre práticas político-culturais que são

seguidas em cada contexto e que são diferentes de contexto

para contexto. Isso dificulta a possibilidade de valores

epistemológicos e morais objetivos, mas aumenta o grau de

reflexividade tanto das investigações filosóficas quanto de

seu ensino e do pensar por parte dos estudantes. No caso

da sociologia, a redução do referido saber a mero estudo

empírico de casos particulares, desligado de considerações

normativas ou de análises macroestruturais e holísticas,

pode empobrecer a compreensão dos estudantes acerca de

sua contextualização em um universo simbólico-moral amplo

ou em uma sociedade interligada em suas partes,

dinamizada exatamente por causa dessa ligação abrangente,

inclusive emperrando a pergunta pelas justificações que

legitimam tais dinâmicas. Nesse caso, a pergunta pela

justificação, pela objetividade dos valores de verdade e de

moralidade, pela normatividade, própria da filosofia,

permite que o estudo das particularidades esteja perpassado

pela questão da universalidade e, aqui, pela crítica e pela

transformação das mesmas, que são desconstruídas e

reconstruídas em suas fundações e em sua validade. A

interação entre filosofia e sociologia, por fim, pode dirimir

pré-conceitos, na medida em que a comparação entre

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Leno Francisco Danner (Org.)

culturas, religiões e morais diferentes, correlatamente à

busca do universalismo, leva os estudantes a perceberem a

contextualização prático-material de suas posições, na

verdade de todas as posições, relativizando-as em vista da

validade de outras posições e percebendo que cada uma

pode ser vivida legitimamente sem destruir as demais (e

desde que não destrua as demais).

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

Uma filosofia útil: ética prática e

bioética no ensino de filosofia

Lincoln Frias114

É comum ouvir que os alunos acham as aulas de

filosofia inúteis e muito chatas. Normalmente os

professores respondem a isso colocando a culpa nos

alunos, dizendo que eles são desatentos e mal preparados.

Mas talvez os alunos estejam certos e os professores

estejam culpando as vítimas. Talvez nossas aulas sejam

realmente muito chatas. Por isso, o objetivo deste capítulo

é sugerir como elas podem ser mais interessantes. E ele

tenta fazer isso focando em ética, aquela área que costuma

ser vista como um palavrório antiquado e vazio.

Caso seja entendida como análise e elaboração de

argumentos, a ética é não apenas útil, como também

essencial para muitos debates públicos. O problema é que

certos livros de ética dão a impressão de que é impossível

construir prédios sem resolver todos os problemas da

física, de que se não for possível descobrir qual a menor

partícula de matéria e o que aconteceu antes do Big Bang é

melhor não construir viadutos porque isso seria arriscado

demais. Bom, se é isso que eles estão dizendo, eles estão

114 Pós-doutorando UFMG/CAPES [email protected]

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Leno Francisco Danner (Org.)

errados. Nossos viadutos e prédios funcionam muito bem.

Por isso, as aulas de ética devem se concentrar na

engenharia, não nas fronteiras da física.

E é isso que muitos pesquisadores estão fazendo

desde a década de sessenta no campo que ficou conhecido

como “ética prática” ou “ética aplicada”. Esse campo de

estudos apareceu porque, contrariando o que seus

antecessores diziam, alguns filósofos nos EUA perceberam

que sua capacidade de argumentação era útil para

discussões sobre o direito de se recusar a lutar na Guerra

do Vietnã e sobre como decidir quem usaria os poucos

aparelhos de hemodiálise então disponíveis. Desde então,

artigos e livros de filósofos têm contribuído para diversos

debates legais e para o desenvolvimento de muitas políticas

públicas. O melhor exemplo talvez seja o papel que o livro

Libertação Animal de Peter Singer (1975/2010) teve na

criação dos movimentos de defesa dos direitos animais,

conseguindo mudar a legislação de diversos países sobre o

uso de animais em experimentos científicos e as condições

de vida dos animais que são comidos. Um exemplo

brasileiro é o fato de que um artigo meu, em co-autoria

com Telma Birchal, serviu de fundamentação para o voto

do ministro-relator durante o julgamento do STF que

reconheceu o direito das mulheres a abortar fetos

anencéfalos (sem cérebro) (BIRCHAL; FRIAS, 2009).

A ética prática é interdisciplinar por definição, já

que seu objetivo é justamente utilizar as ferramentas

argumentativas e conceituais para esclarecer questões

morais que surgem em outras áreas, o que demanda que os

filósofos incorporem os detalhes técnicos das áreas que

estão discutindo (medicina, agronomia, zootecnia,

neurociências, robótica etc.).

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

O objetivo deste capítulo é sugerir como as aulas de

filosofia podem se tornar mais interessantes ao incorporar

discussões em ética prática. As ideias principais são: (1) as

discussões em sala de aula devem se concentrar em temas

específicos ao invés de teorias morais tradicionais; e 2) a

aula deve consistir em incentivar os alunos a argumentar e

criticar argumentos ao invés de repetir teorias tradicionais.

A primeira seção contém alguns comentários gerais sobre o

que são a ética e a moralidade. A seção seguinte oferece um

panorama da ética prática, incluindo a bioética, baseando-se

em alguns eixos de questões. A terceira seção apresenta

algumas ideias principais sobre como funciona a

argumentação moral, sugerindo algumas atividades em sala

de aula.

As propostas apresentadas aqui são um resumo do

livro didático Certo ou Errado – uma introdução prática à ética

(FRIAS, manuscrito), que inclui diversos exercícios, casos e

textos que podem ser utilizados em sala de aula. Ele está

disponível gratuitamente no site www.eticapratica.com,

onde também há um blog com pequenos textos de diversos

pesquisadores sobre temas em ética prática.

Ética e moralidade

Em 03 de dezembro de 2012, o fotógrafo R. Abbasi

estava esperando o trem em uma estação de metrô de Nova

York quando viu que, no meio de uma discussão, um

homem havia sido derrubado nos trilhos por um mendigo.

Enquanto o homem tentava sair dos trilhos, Abbasi

começou a tirar a fotos. O homem (Ki-Suck Han de 58

anos) não conseguiu se salvar e morreu atropelado. A foto

de Abbasi foi publicada na capa do New York Post no dia

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Leno Francisco Danner (Org.)

seguinte, com a manchete: “este homem está prestes a

morrer” (SINGER, 2012) – é fácil encontrar a foto no

Google.

Compare esse acontecimento com o que aconteceu

em 26 de março de 2012. O tibetano Jampa Yeshi, de 27

anos, colocou fogo no próprio corpo como uma forma de

protesto contra o domínio do governo chinês sobre o Tibet

(DAIGLE, 2012) – também é fácil encontrar fotos dele

com o corpo em chamas. Ao contrário dos homens-bomba

muçulmanos, ele não fez isso para matar ninguém, apenas

para chamar a atenção para uma injustiça contra seu povo.

Também ao contrário dos homens-bomba, ele não

acreditava que receberia 40 virgens no paraíso. Na verdade,

como provavelmente era budista, ele nem mesmo

acreditava em vida após a morte. O resultado foi que Jampa

Yeshi morreu naquele mesmo dia e a China continua

dominando o Tibet.

“Ética” é uma palavra que costuma ser usada por

senhores bem barbeados, que vestem a camisa por dentro

da calça e vão à missa todo domingo. Costuma aparecer no

meio de conselhos sobre não usar roupas curtas, não

transar antes do casamento e não mentir para os pais.

Aparece durante monólogos sobre como a juventude está

perdida, como a violência tem crescido e como os políticos

de hoje são desonestos. Enfim, há bons motivos para

pensar que ética é uma coisa bastante inútil e chata.

Um dos objetivos deste capítulo – e de uma aula de

filosofia – é mostrar que essa conclusão está errada. Na

verdade, temos muita disposição – e até mesmo prazer –

em discutir questões morais, inclusive na mesa do bar e na

hora da novela. Levantamos a voz furiosamente para

defender o direito que a fulana de tal tinha de trair o fulano

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

depois do que ele fez com ela. Apontamos o dedo na cara

de quem quer que seja que não ache um absurdo a mãe

largar o filho na lata do lixo. Temos taquicardia, ficamos

com a mão suando se alguém diz que fomos covardes por

não ter dado um murro em quem disse isso ou aquilo.

Falamos palavrões, criamos mal-estar, estragamos amizades

para defender nossa opinião sobre o que é certo e o que é

errado.

Somos animais morais. Durante grande parte de

nosso tempo nos dedicamos a avaliar as ações de outras

pessoas. Temos a expectativa de que elas digam a verdade,

criticamos comportamentos com os quais não

concordamos, distinguimos entre ações melhores e piores,

nos sentimos ofendidos, temos opiniões sobre assuntos

controversos, temos orgulho de nossos méritos,

condenamos injustiças, evitamos quem consideramos mau-

caráter e incentivamos outras pessoas a evita-los também

etc. O fotógrafo deveria ter salvado o homem caído nos

trilhos, foi um absurdo ele ter sido tão egoísta, você deve

ter pensado. Por outro lado, o gesto do tibetano parece

incompreensível, estamos tão acostumados a colocar nosso

interesse em primeiro lugar que é difícil acreditar que

alguém tenha se sacrificado sem esperar nada em troca (por

isso você deve ter pensado que ele, no fundo, acreditava na

vida após a morte ou que pelo menos estava interessado em

entrar para a história como um herói).

E porque somos animais morais, temos tanto ódio

dos criminosos. Mais do que isso, odiamos (e temos medo)

principalmente dos psicopatas. Imagine alguém que não se

importe com o sofrimento de nenhuma outra pessoa, que

não cumpra promessas, que nunca diga a verdade e que não

respeite a propriedade de ninguém. É assustador que possa

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Leno Francisco Danner (Org.)

existir alguém assim, mas eles existem. E o que assusta

neles é a falta de qualquer moralidade. Imagine que você

esqueceu seu celular na mesa do bar. Quando percebe que

está sem ele, você liga para ele para ver se quem encontrou

pode te devolver. Do outro lado da linha alguém atende.

Alegria. Mas logo te responde “peguei mesmo seu celular,

mas na verdade ele não me interessa, é um modelo fuleiro,

só que mesmo assim não vou te devolver, só de

sacanagem”. Se você acha que ética é uma bobagem, você

está defendendo um mundo habitado apenas por

psicopatas, por pessoas incapazes de se colocar no lugar do

outro, de se preocupar com a dor do outro.

Mas se você aceita que há ações em relação a outras

pessoas que são inaceitáveis, você não é um psicopata e

você tem uma moralidade. Pode ser, porém, que suas

opiniões sobre questões morais não sejam muito bem

fundamentadas, não sejam coerentes entre si e talvez você

nem mesmo concorde com algumas delas depois que

analisá-las com calma. Diversas pesquisas científicas

mostram que todos estamos nessa situação durante boa

parte do tempo, obedecendo regras que não sabemos

defender ou que nem mesmo aceitamos quando paramos

para pensar (HAIDT, 2001; 2008; 2012; HAIDT;

KESEBIR, 2010). Por isso, o objetivo principal de uma

aula sobre ética é observar melhor como tomamos decisões

morais e aprender a justificá-las de maneira mais

consistente. Em resumo, o objetivo é descobrir como

decidir se uma ação é certa ou errada.

A moralidade muda não apenas entre pessoas e

culturas, mas também com o tempo. Algo que era aceitável

pode se tornar inaceitável. Há algumas décadas, jogar lixo

na rua não era visto como um problema moral. Há alguns

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

anos, fumar perto de um não-fumante em um lugar

fechado também não era visto como uma questão moral. O

mesmo aconteceu com o bullying (humilhar e intimidar

colegas), o assédio sexual (usar uma posição de poder para

conseguir favores sexuais, p. ex., o chefe dar em cima da

secretária ou o professor paquerar a aluna) e o assédio

moral (humilhar e intimidar subordinados). A palmada

educativa é uma ação que está quase se tornando algo

considerado imoral no Brasil – nos EUA, p. ex., ela já é

vista como imoral.

As questões se tornam morais principalmente

quando percebemos que nossa ação interfere na vida de outras

pessoas de uma maneira que deveria levar em conta a opinião delas. E

essa percepção leva a uma série de sentimentos, conhecidos

como sentimentos morais, tais como culpa, vergonha,

desprezo, indignação, empatia etc. Antes, não se

considerava que o não-fumante tinha direito de reclamar do

fumante, agora isso mudou. E isso mudou principalmente

porque se descobriu que o fumo passivo realmente é

prejudicial à saúde. Agora, muitos fumantes sentem

vergonha de fumar perto de não-fumantes e sentiriam

culpa se um filho começar a fumar por sua culpa, enquanto

que os não-fumantes sentem indignação quando veem

alguém fumando perto de não-fumantes (mesmo que não

sejam eles) e desprezo ao saber que um pai incentivou o

filho a fumar.

A moralização consiste nesse processo de começar

a ter sentimentos morais em relação a certa ação e, para

alguns autores, também inclui um segundo processo que

consiste em defender uma regra sobre essa ação que

deveria ser seguida por todos. Quer dizer, para alguns

autores (HUME, 1739/2009; PRINZ, 2008), basta haver

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Leno Francisco Danner (Org.)

sentimentos morais em relação a uma ação para que ela seja

moral, enquanto que para outros é preciso que elas sejam

também sejam universalizadas (KANT, 1785/1986;

RAWLS, 1971/2008; SCANLON, 1998; TOMASELLO;

VAISH, 2013; BAUMARD; ANDRÉ; SPERBER, 2013).

Portanto, nessa segunda perspectiva, a moralização é

composta por (1) sentimentos morais e (2) universalização.

Compare o caso do tabagismo com o do

escapamento das motos no Brasil. Nos últimos anos, se

tornou um símbolo de status para os jovens brasileiros ter

motos com escapamentos que fazem muito barulho. Ao

invés de modificar suas motos para que façam menos

barulho, eles pagam centenas de reais para que suas motos

façam mais barulho, porque isso é considerado másculo,

bonito e arrojado. Eles desconsideram completamente o

fato de que o barulho vai incomodar outras pessoas. O

quadro ainda piora se levarmos em conta que o barulho é

realmente muito alto, que os motoqueiros aceleram a moto

para fazer ainda mais barulho e, pior, que eles costumam

usar as motos de madrugada. Em um passeio pelo centro

de madrugada, imagine quantos recém-nascidos, quantos

idosos com problemas de insônia e quantas pessoas que

precisam trabalhar logo de madrugada são acordados por

causa de uma preferência completamente arbitrária como a

desses motoqueiros. Mas eles simplesmente não se sentem

interferindo na vida de outras pessoas de uma maneira que

deveria levar em consideração a opinião delas. Eles não se

sentem culpados, não se colocam no lugar das vítimas e

não se incomodam quando ouvem o barulho de outras

motos. Enfim, o escapamento de motos não foi

moralizado.

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

Há quatro tipos de processos de

moralização/desmoralização. Além dos casos em que algo

que era aceitável se torna moralmente proibido, pode

acontecer o inverso, algo que era proibido pode se tornar aceitável,

permitido. Foi o que aconteceu com o sexo antes do

casamento, com o uso de preservativos e com o divórcio. A

homossexualidade é algo que já foi muito condenado, mas

que está próximo de ser considerada aceitável. Outro tipo

de mudança que pode acontecer é algo que era apenas elogiável

se tornar obrigatório. Isso aconteceu com o respeito ao bem-

estar dos animais durante o abate e nas pesquisas científicas

e parece estar acontecendo com a ajuda que os países ricos

devem dar aos países pobres. Além disso, algo que era

obrigatório pode se tornar apenas elogiável, como é o caso de

casais que ficam juntos a vida inteira. E a necessidade de

novas regras morais também aparece, como aquelas sobre

como tratar os amigos e conhecidos no MSN, Facebook

etc.

Isso faz com que existam quatro categorias morais.

A função da moralidade então é definir a qual categoria

pertence determinada ação: se ela é permitida, obrigatória,

proibida ou elogiável. Uma ação que é permitida é aquela

que você pode ou não fazer, você tem o direito de decidir.

Já as ações obrigatórias são aquelas em relação às quais

você não tem opção, há a obrigação de realizá-las. As ações

proibidas são as imorais, aquelas em relação às quais

também não há opção, mas nesse caso sua obrigação é não

realizá-las. As ações elogiáveis são aquelas ações boas, mas

que não são obrigatórias, você tem a opção de realizá-las ou

não. Por exemplo, abraçar seus amigos é algo permitido

(não é proibido, mas também não é obrigatório). Cumprir

suas promessas é algo obrigatório. Matar outras pessoas é

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Leno Francisco Danner (Org.)

algo proibido. Arriscar sua vida para salvar alguém é algo

elogiável (é permitido, mas não é obrigatório).

Em resumo, tudo que é permitido não é

proibido. Tudo que é obrigatório ou elogiável é permitido,

mas nem tudo que é permitido é obrigatório ou elogiável.

O que é proibido não é permitido, nem obrigatório, nem

elogiável.

A ética pode ser entendida como (a) sinônimo de

moral, outro nome para a mesma coisa, ou como (b) o

estudo da moral, da mesma maneira que a linguística é o

estudo da linguagem. Nesse segundo sentido, a ética tenta

avaliar quais posições morais são mais justificadas, em

especial ela tenta definir quando o altruísmo é obrigatório.

Na linguagem cotidiana do Brasil, “ética” costuma se referir

mais a questões profissionais, especialmente honestidade

(p. ex. “falta ética na política”), enquanto que “moral”

costuma ser usada mais em assuntos pessoais (p. ex.,

“depois do que você fez, você não tem moral nenhuma

para falar assim comigo”). Aqui, para evitar confusões, ética

será entendida apenas no segundo sentido, como o estudo

da moralidade. A tarefa mais difícil é definir o que é

moralidade.

A definição simples é que a moralidade é conjunto de

regras sobre o que é certo e o que é errado, bom ou mal. Contudo,

essa definição não ajuda muito a definir o que é certo e

errado, a tarefa mais difícil. Por isso, em geral é interessante

ser um pouco mais específico: a moralidade é um conjunto de

padrões informais (valores, regras, sentimentos, instituições etc.) sobre

como se comportar, especialmente sobre quando o egoísmo é inaceitável,

cujo objetivo é tornar a sociedade possível ao incentivar o altruísmo e a

cooperação (cf. HAIDT; KESEBIR, 2010).

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

O egoísmo consiste em o indivíduo se preocupar

apenas com seu interesse. O altruísmo é quando ele leva em

conta também os interesses de outros, é a decisão de

considerar os interesses de outra pessoa como mais

importantes que os seus. A moralidade surgiu durante a

seleção natural quando dar preferência ao interesse de

outros indivíduos começou a ser vantajoso porque permitia

viver em grandes grupos – e assim conseguir mais comida,

melhores abrigos, se proteger melhor dos predadores e se

defender de grupos rivais.

A moralidade então é sempre uma tentativa de

equilibrar egoísmo e altruísmo. “Interesse” aqui é

entendido não no sentido negativo, de algo ruim, escuso,

mas sim como tudo aquilo que é bom para a própria pessoa. Se eu

prefiro água ao invés de suco, então tenho interesse em

água. Se para mim é melhor ser contador do que

astronauta, então tenho interesse em ser contador. Todos

nós temos vários interesses: não sentir dor, ser feliz, ter

amigos, ganhar dinheiro, ter boa saúde. E o egoísmo é a

tentativa de garantir a realização deles.

Um exemplo muito claro de altruísmo (e, segundo a

hipótese do círculo em expansão, de onde surgiu todo

altruísmo e toda moralidade) é o da mãe que se prejudica

para cuidar de seu filho. Quando fica acordada durante a

noite, ela abre mão de seu interesse de descansar para

satisfazer o interesse em carinho e atenção que o filho tem.

Quando damos esmola também estamos sendo altruístas.

Ao invés de gastar nosso dinheiro satisfazendo nossas

vontades, preferimos ajudar o pedinte a realizar as dele. Há

muitos casos menos contundentes de altruísmo. Na

verdade, ao viver em sociedade, somos altruístas

cotidianamente. Quando cumprimos a promessa de ajudar

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Leno Francisco Danner (Org.)

o colega no trabalho da faculdade, quando damos carona

para um conhecido, quando fazemos uma visita àquele

parente chato, quando aturamos os amigos de nossa

namorada, quando ajudamos uma velhinha a atravessar o

sinal, quando não xingamos a moça do telemarketing etc.

Em todos esses casos seria melhor para nós passar por

cima do interesse dos outros, tornaria nossa vida mais fácil,

mais cômoda ou ganharíamos tempo para fazer outra coisa

que nos daria mais prazer. Mas não, preferimos levar o

interesse dos outros em consideração. Isso é ser altruísta.

Esses padrões surgiram e continuam a surgir para

permitir que consigamos lidar com situações em que nossos

interesses são diferentes dos de outras pessoas. Como foi

dito, a moralidade trata da definição do que é certo e errado

em relação ao tratamento dado a outras pessoas, quer dizer,

o que devemos uns aos outros. Portanto, ela fala

principalmente sobre ações ou atos, coisas que fazemos.

Em certos contextos, entretanto, ela pode tratar de

intenções, atitudes ou emoções. Ela é um conjunto de

padrões informais porque não há regras escritas,

autoridades oficiais para definir quem está certo e quem

está errado nem há punições controladas, diferentemente

do Direito (que também é um conjunto de padrões sobre

como se comportar, especialmente em relação a outras

pessoas).

A moralidade, portanto, é o conjunto de regras,

práticas e sentimentos que os indivíduos seguem

cotidianamente. Mas algumas vezes os indivíduos começam

a pensar sobre essas regras, práticas e sentimentos. Eles

podem começar a questioná-los e investigar se haveria

maneiras melhores de organizar a vida em sociedade. A

ética, entendida como o estudo da moralidade, é justamente

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

essa atividade. Suas principais tarefas são explicar como a

moralidade funciona e identificar quais regras morais (ou

sentimentos, práticas etc.) são mais justificados. Ela

procura responder se o roubo é sempre errado, se há

justificativas aceitáveis para a tortura, se o aborto deve ser

permitido, se deve haver cotas para negros, portadores de

deficiência ou pobres nas empresas, nas câmaras e nas

universidades, se o cliente tem sempre razão, se há alguma

situação em que o profissional pode enganar o cliente etc.

O que faz com que o assassinato, o roubo, o estupro, a

crueldade e a escravidão sejam errados? É sempre errado

descumprir uma promessa? É certo baixar músicas da

internet sem pagar? Devemos dar esmolas? Temos o direito

de recusar a doar um rim para um amigo? O MST está

errado quando invade terras improdutivas? Devemos

permitir que as pessoas se prostituam? É justo que pessoas

saudáveis de 60 anos não paguem passagens de ônibus? É

imoral conversar no celular enquanto dirigimos? E jogar

papel de bala no chão? Um médico deve esconder

informações de seu paciente para evitar sofrimento? Um

advogado tem a obrigação de usar as falhas da lei para

ajudar seu cliente? É sempre errado trair a namorada?

Temos a obrigação de dar a outra face?

Um panorama da ética prática

Atualmente, a ética prática já se ampliou tanto que

ela é composta por diversas subáreas. A bioética é a área

que lida com assuntos relacionados à saúde e à vida – e é

provavelmente a área mais bem estabelecida da ética prática

(BEAUCHAMP; CHILDRESS, 1994/2002). A neuroética

é área que se concentra sobre questões morais relativas a

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intervenções no cérebro para modificar a mente. A ética

dos negócios lida com problemas morais ligados a relações

econômicas. A ética profissional (incluindo ética médica,

ética policial, ética jornalística etc.) lida com questões

morais no exercício das diversas profissões, especialmente

sobre quais são os deveres morais específicos de cada

profissão. E várias outras subáreas da ética prática

poderiam ser enumeradas: direitos dos animais, ética e

genética, ética ambiental, ética nos esportes, roboética etc.

Além dessa divisão por diferentes assuntos, é

possível organizar as questões morais práticas em torno de

alguns eixos que atravessam esses diferentes assuntos: (1)

questões sobre os limites da comunidade moral; (2)

questões sobre o que conta como prejuízo inaceitável a

alguém; (3) questões de justiça, isto é, sobre a distribuição

de benefícios e prejuízos; e (4) questões sobre conflitos

entre diferentes regras morais. Esses quatro eixos agrupam

as questões que recebem mais atenção tanto das teorias

quanto dos debates públicos ocidentais e liberais. Além

deles, há outros três eixos mais ligados a morais tradicionais

e ao conservadorismo: (5) questões sobre lealdade aos

grupos; (6) questões sobre respeito a hierarquias; e (7)

questões sobre pureza. Entretanto, mesmo os liberais ainda

debatem algumas questões desses eixos.

O eixo dos limites da comunidade moral

No eixo das questões sobre os limites da

comunidade moral, estão os debates sobre quem faz parte

dessa comunidade, isto é, quais são os seres que merecem

ter seus interesses respeitados ou quem merece

consideração moral. Esse eixo é composto por:

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

(a) questões sobre o início da vida: quando seres humanos

começam a pertencer à comunidade moral? O aborto deve

ser proibido em todos os casos? O estágio da gestação ou o

estado de saúde do feto são moralmente relevantes? O

infanticídio pode ser justificado em alguma situação?

Embriões podem ser descartados para desenvolver terapias

com suas células-tronco?

(b) questões sobre o final da vida: quando seres humanos

deixam de fazer parte da comunidade moral? A eutanásia

deve ser proibida em todos os casos? Indivíduos com

morte cerebral devem ser considerados cadáveres?

(c) o problema dos seres não-humanos: apenas os homo sapiens

devem ter direitos? Animais não-humanos devem poder ser

comidos, usados para diversão, como roupa ou para

experimentos? O que um robô precisaria possuir para

merecer ter direitos? Há inclusive quem defenda que o foco

da moralidade não deve ser o interesse dos indivíduos, mas

sim da biosfera, da vida em geral.

(d) o problema das saídas da comunidade moral: como definir

quem, apesar de estar vivo, não merece mais consideração

moral? Criminosos merecem ter seus direitos respeitados?

E viciados em drogas ou jogos? E pacientes em coma

irreversível? Quais, quando e quanto os doentes mentais

não merecem ser tratados como agentes morais normais:

autistas, psicóticos, psicopatas, QI muito baixo, stress pós-

traumático etc.?

Em geral, nas discussões nesse eixo, seres humanos

adultos comuns são tomados como modelos do que

merece consideração moral. A partir disso, discute-se quais

são as características que fazem com que eles mereçam essa

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consideração e quais seres são suficientemente parecidos

com eles em relação a essas características para também

merecerem participar da comunidade moral. Normalmente,

o pertencimento à espécie humana era tomado como uma

propriedade necessária e suficiente para alguém ser

incluído. Contudo, por um lado, os defensores dos direitos

dos animais e alguns estudiosos de robótica têm defendido

que ela não é necessária, pois seres não-humanos podem

merecer consideração moral (o que fica evidente em filmes

como Avatar, em que os espectadores começam a ver os

alienígenas como membros da comunidade moral,

merecedores de respeito). Por outro lado, há quem defenda

que o simples pertencimento à espécie humana não é

suficiente para garantir o pertencimento à comunidade moral,

pois há membros da espécie humana que não merecem

consideração moral (FRIAS, 2012, p. 57-71). Posição

defendida pelos defensores da legalização do aborto, da

fertilização in vitro, da pesquisa com células-tronco e do

desligamento dos aparelhos que sustentam pessoa em

coma. Também é o caso de alguns conservadores que

consideram que certos criminosos merecem ser mortos.

Por isso, o foco da discussão nesse eixo

normalmente se volta para a discussão de quais então

seriam as características necessárias e/ou suficientes para

tornar algo merecedor de consideração moral: consciência,

capacidade de sentir dor, sentimentos morais,

racionalidade, autonomia, autoconsciência, dentre outras

(MCMAHAN, 2002; SINGER, 1993/2006).

O eixo dos prejuízos inaceitáveis

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

Tendo sido estabelecido que determinado indivíduo

faz parte da comunidade moral, a principal vantagem que

ele recebe é o direito de não ser prejudicado (os

conservadores talvez discordem de que essa seja a principal

vantagem, preferindo apontar o próprio pertencimento a

uma comunidade). Isso é captado na regra kantiana de

nunca tratar as pessoas apenas como meios, mas sempre

também como fins (KANT, 1785/1986). Outra formulação

dessa ideia é o Princípio do Prejuízo (Harm Principle) de J. S.

Mill (1859/2000), segundo o qual a única justificativa

aceitável para desrespeitar a autonomia de alguém é a

proteção da autonomia de outra pessoa (autonomia aqui

entendida como a capacidade de tomar suas próprias

decisões de acordo com seus próprios valores, e não na

formulação kantiana, como a conformidade com a

racionalidade).

Na maior parte dos casos, é evidente quando

alguém está sendo prejudicado – como no caso de morte,

roubo, agressão física, estupro, mentira etc. Entretanto,

uma primeira dificuldade nesse eixo é decidir quando o

prejuízo é inaceitável ou quando é apenas um incômodo

tolerável. Esse é um tipo de problema que aparece desde o

relacionamento entre vizinhos até a ética ambiental, do som

das motos ao lixo radioativo.

Uma segunda dificuldade na avaliação dos prejuízos

pode vir do fato de que em alguns casos pode ser aceitável

prejudicar alguém: (1) durante uma competição da qual a

pessoa prejudicada aceitou participar (concursos, MMA

etc.); (2) quando o prejuízo é feito com o objetivo de evitar

um mal maior (parto cesariano, amputação, vacinação,

mentira etc.); ou (3) quando o prejuízo é uma punição à

pessoa pelo que ela fez a alguém (pena de morte, prisão

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perpétua, palmadas educativas etc.). Como se pode inferir

pelos casos dentro dos parêntesis, há muita discussão sobre

quando esses tipos de prejuízo são justificados.

Outro tipo de controvérsia em torno de prejuízos

surge do fato de que colocar alguém em risco de ser

prejudicado já é uma forma de prejudicá-lo, p. ex., quando

se descobre que o síndico do prédio deixou o extintor

vencido por seis meses ou quando gastamos agora recursos

não-renováveis cuja falta poderá prejudicar as gerações

futuras.

As coisas se complicam ainda mais porque nem

todo prejuízo é físico. A ofensa é uma forma de prejuízo

emocional, quando causamos algum estado mental

desagradável em alguém (SMITH, 2008/2009, p. 94).

Podemos prejudicar alguém fazendo ele se sentir nervoso,

assustado, inseguro, humilhado, enojado etc. O problema é

que também nesse caso nem sempre é fácil definir o que

conta como uma ofensa moralmente relevante e o que é

apenas um incômodo tolerável. Há quem se incomode com

as roupas dos góticos, com piercings, com pessoas que não

tomam banho, com gays andando de mãos dadas, com

mulheres que abortam, com pessoas que fazem piadas com

negros ou com religião, com carros de som, com

dançarinas de funk etc. Tente definir nessa lista o que você

considera uma ofensa ou prejuízo (e que por isso

justificaria limitar a liberdade de quem pratica o ato) e o que

é apenas um comportamento diferente que gera um

incômodo, mas que deve ser aceito como parte da vida em

sociedade. Não é uma tarefa fácil.

Por fim, há uma série de situações em que é difícil

saber se as pessoas estão sendo prejudicadas ou não.

Suicidas devem ser salvos contra sua vontade?

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

Testemunhas de Jeová devem receber transfusão de sangue

contra sua vontade? Pedidos dos pacientes para não receber

certos tratamentos devem ser respeitados em todas as

situações? A doação de órgãos de mortos deve ser uma

escolha do paciente, da família ou do Estado? A posição

padrão deve ser doador ou não-doador? Quais devem ser

as regras para doação de cadáveres para estudos e pesquisa?

Esse tipo de incerteza é o que torna tecnologias de

reprodução assistida, genética e neurociência tão

controversas: faz sentido dizer que os embriões descartados

durante a fertilização in vitro foram prejudicados? A seleção

genética de embriões prejudica o filho selecionado? A

castração química de pedófilos os prejudica

inaceitavelmente? Apagar a memória de alguém que foi

estuprado sem seu consentimento para evitar stress pós-

traumático é um prejuízo inaceitável?

O eixo das questões de justiça

Além das situações em que uma pessoa prejudica

outra, há situações em que o problema moral acontece em

terceira pessoa. Quando há algum bem escasso, o indivíduo

X deve decidir entre os indivíduos A, B e C quem ficará

com esse bem. Esse tipo de situação surge quando temos

algum recurso que interessa a mais de uma pessoa, mas é

impossível satisfazer a todos igualmente. A justiça

distributiva é a área da ética prática que discute como

distribuir coisas boas e coisas ruins entre as pessoas

(“distribuir” aqui não significa dar de graça, mas sim decidir

quem tem direito) – o processo de alocação de recursos.

Nossa vida está cheia de exemplos de casos em que é

preciso estabelecer critérios para decidir quem fica com

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certos bens e quem fica com certos encargos. Nas filas, as

gestantes e os idosos têm preferência. Nos concursos

públicos há reserva de vagas para portadores de

necessidades especiais. São excluídos do alistamento militar

aqueles que têm problemas de saúde. Nos prontos-socorros

os casos de emergência têm preferência. Pessoas com mais

de 65 anos não pagam passagens em ônibus urbanos.

Estudantes e outras categorias pagam meia-entrada em

shows, filmes e jogos esportivos. Quem ganha mais, paga

mais imposto de renda. Quem tira as melhores notas no

Enem fica com a vaga nas melhores universidades –

questão que se complicou depois da introdução das cotas

raciais e sociais para garantir igualdade de oportunidades.

Quem ganha menos recebe mais ajuda do governo. Quem

chega primeiro ao cinema fica com os melhores lugares.

Nos jantares de multinacionais, os melhores lugares sempre

são reservados para a diretoria. Os garis ganham menos do

que os dentistas. Deputados têm foro privilegiado. Cela

especial para quem tem curso superior etc.

De acordo com o princípio formal da justiça

(também chamado de equidade ou de isonomia) devemos

tratar os iguais de maneira igual e os desiguais de maneira

desigual, na medida de sua desigualdade (ARISTÓTELES,

2002). Como esse princípio é amplamente aceito, as

principais discussões morais nesse eixo giram em torno de

identificar (a) quem é igual e quem é diferente nos sentidos

moralmente relevantes, (b) quais diferenças têm mais

importância moral e (c) quanta importância dar a

determinada diferença. Em resumo, a questão mais

importante da justiça distributiva é decidir qual critério usar

para a distribuição. Há diversos critérios possíveis:

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

• ordem de chegada: quem chega primeiro tem prioridade.

P.ex., na fila da lanchonete.

• necessidade: quem precisa mais tem prioridade. É esse

critério que fundamenta a atenção especial aos portadores

de necessidades especiais e aos idosos, a prioridade dada a

quem tem urgência nos prontos-socorros, à concessão de

benefícios como o Bolsa-Família etc.

• mérito: tem prioridade quem possui em maior grau

determinada qualidade considerada importante. É o critério

utilizado para a distribuição de vagas em universidades pela

nota no Enem, nos processos seletivos das empresas, nas

competições esportivas etc.

• passado: o tratamento é diferenciado de acordo com o que

a pessoa fez no passado. Pode ser entendido como uma

variante do mérito. Esse critério é levado em conta pelo

sistema jurídico ao punir mais rigorosamente quem seja

reincidente (já tenha cometido crime) e também pelo Papai

Noel ao prometer que quem se comportar melhor receberá

os melhores presentes e quem for desobediente vai ganhar

meia ou cueca.

• altura: na montanha-russa só pode entrar quem estiver

cima da marca em uma régua.

• peso: as categorias de artes marciais são definidas de

acordo com o peso (peso pena, peso leve, peso médio, peso

pesado etc.).

• idade: só pode ingerir bebida alcoólica, comprar cigarro,

tirar carteira de motorista, se casar, votar etc. quem estiver

acima de determinada idade. Por outro lado, para se

aposentar é preciso ter idade mínima, é preciso ter certa

idade para ter passe livre nos ônibus, prioridades nas filas

etc.

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Leno Francisco Danner (Org.)

• cor da pele: na época da escravidão, muitos direitos eram

negados aos negros. Até a década de 90, na África do Sul

sob o regime de Apartheid (e até os anos 60 nos EUA),

havia bairros, ônibus, igrejas, escolas, banheiros e até

bebedouros separados entre brancos e negros.

Vários outros critérios foram e são utilizados, p.ex.,

nacionalidade, etnia, profissão, beleza, sexo, renda, posse de

terras etc. Dois outros critérios comumente utilizados são,

na verdade, maneiras de evitar o problema da distribuição.

A igualdade estrita consiste em dizer que ou todos são

tratados de maneira igual ou ninguém recebe nada. É o

caso do pai que tem três filhos, mas que só pode comprar

dois pares de tênis e por isso decide não comprar nenhum

para não causar briga. O segundo critério desse tipo é o

acaso. Muitas vezes parece que qualquer critério seria

injusto, por isso, talvez seja melhor fazer um sorteio,

decidir na sorte. Imagine que o professor tenha apenas um

livro sobrando e que ele gostaria de dar para um aluno.

Seria justo dar para o aluno que tirou a maior nota? Talvez

o livro não tenha utilidade para ele que já sabe muito. Mas

talvez não seja bom dar para o aluno que tirou a pior nota,

porque ele pode ser muito desinteressado. Uma boa

solução então talvez fosse fazer um sorteio na sala.

Não há uma regra geral para decidir qual critério

utilizar. O que torna um critério injusto é o fato de ele ser

irrelevante para decidir quem merece receber o recurso

escasso. Um exemplo de um critério irrelevante em

determinado contexto é a altura para decidir quem vai ser

professor de química ou a cor da pele para decidir quem vai

receber o maior salário. A relevância, porém, é uma

característica que varia de acordo com o contexto. A altura,

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

p. ex., é relevante para decidir quem será o pivô do time de

basquete.

No eixo dos conflitos entre regras morais, estão

aquelas situações em que é preciso decidir qual regra moral

tem mais valor. Eis alguns exemplos: no debate sobre

copyright e pirataria, há o conflito entre o respeito à

propriedade e o direito à informação; no debate sobre o

infanticídio indígena entram em conflito o respeito à

diferença e a proteção dos vulneráveis etc. Diversas

discussões morais se concentram em identificar quais regras

devem ter prioridade.

Os próximos três eixos costumam ser vistos pelos

liberais e ocidentais como moralmente irrelevantes, porém

eles são tratados como muito importantes por boa parte

dos religiosos, conservadores, orientais e populações rurais

(HAIDT, 2012). No eixo da lealdade ao grupo estão

questões como a prioridade que se deve dar aos membros

da família, as demandas do patriotismo e o dever de

preferir o bem comum ao invés do bem individual (o

sacrifício dos soldados, o voto obrigatório, os limites à

liberdade de expressão para evitar tumultos etc.). No eixo

do respeito à hierarquia estão discussões sobre quando e

quanta prioridade dar aos idosos em relação aos jovens (por

deferência, não devido a dificuldades físicas), dos homens

em relação às mulheres, dos sacerdotes em relação aos fieis

etc. No eixo da pureza estão questões como a proibição do

canibalismo, da zoofilia, da necrofilia, do sexo antes do

casamento, do consumo de certos alimentos etc. Embora

os liberais tendam a tratar as questões desses eixos como

menos relevantes, os exemplos da lealdade à família e do

nojo em relação ao canibalismo e à zoofilia mostram que

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muitos desses problemas são moralizados também pelos

liberais (HAIDT, 2012).

Aulas de ética como aulas de argumentação moral

É muito mais fácil dar aulas de ética do que de

trigonometria, bioquímica e pintura em porcelana. Em

aulas de ética os alunos normalmente têm respostas para as

perguntas, estão seguros sobre suas posições e estão

dispostos a defendê-las. Isso dificulta o trabalho do

professor que quer apenas que os alunos decorem teorias e

talvez explique porque os alunos consideram as aulas chatas

e inúteis. Mas isso facilita o trabalho do professor que quer

ajudar os alunos a pensarem melhor por si mesmos.

Minha proposta é que o critério para saber se o

aluno deve ou não ser aprovado na disciplina não deve ser

a capacidade de reconstituir as fórmulas do imperativo

categórico e explicar as falhas do utilitarismo de atos. O

objeto de avaliação deve ser a capacidade de construir e

analisar argumentos morais. O aluno deve sair da disciplina

sabendo defender sua posição sobre quando é aceitável

mentir, por exemplo. Isso significa que as aulas de ética

devem ser exercícios falados e escritos de como

reconhecer, criticar e montar argumentos morais em falas,

textos, vídeos e imagens.

O livro Certo ou Errado (FRIAS, manuscrito),

disponível gratuitamente em eticapratica.com, contém uma

explicação completa sobre como funciona a argumentação

moral, seus principais argumentos e falácias, além de

exercícios, casos e textos para análise. Abaixo estão

algumas das principais ideias expostas lá.

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

Argumentos são sequências de afirmações em que

uma (ou mais) delas serve de evidência em favor de

outra(s). São premissas em favor de uma conclusão. O que

diferencia os argumentos morais de outros argumentos é

que suas conclusões são afirmações morais (VAUGHN,

2008). Em geral, uma afirmação moral é uma afirmação de

que uma ação é certa ou errada ou de que algo (uma pessoa,

uma intenção etc.) é bom ou mal. A afirmação também

pode se dar em termos de moral/imoral, ético/anti-ético,

justo/injusto, virtuoso/perverso etc. Ou ainda, a afirmação

pode ser feita usando linguagem dos direitos, de maneira

que, ao dizer “você não tem o direito de falar assim

comigo”, a pessoa tem a intenção de dizer que “é errado

falar dessa maneira comigo” – mas não “o art. X do Código

Civil diz...”, pois, caso contrário, isso seria um argumento

jurídico e não um argumento moral. Veja alguns

argumentos morais:

• Toda pessoa merece respeito. Queimar alguém de

propósito é um desrespeito imenso. Portanto, os

adolescentes que queimaram o mendigo estão errados.

• É imoral comer animais, eles sentem dor e é sempre

errado provocar dor por motivos fúteis.

• Eu estava certo em não contar sobre o câncer para

minha vó porque não havia mais nada a fazer e nós temos

obrigação de evitar sofrimento.

A estrutura de um argumento moral padrão é

semelhante à estrutura dos argumentos não-morais, com a

diferença de que ele precisa ter uma premissa moral e a

conclusão precisa ser uma afirmação moral. Eis sua

estrutura básica:

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PM- Toda a ação que possui a característica X é errada

(certa)

PNM- Essa ação possui a característica X.

CM- Logo, esta ação é errada (certa).

PM- premissa moral: pelo menos uma premissa é uma

afirmação moral que contém um princípio ou padrão

moral, isto é, uma afirmação geral sobre o que é certo ou

errado.

PNM- premissa não-moral: pelo menos uma premissa que

faz uma afirmação não-moral.

CM- conclusão moral: uma conclusão que faz uma

afirmação moral sobre um caso específico (isto é uma

afirmação particular).

Por exemplo:

PM- É errado causar sofrimento desnecessário em uma

criança.

PNM- Uma surra de cinto causa sofrimento

desnecessário em uma criança.

CM- Logo, surras de cinto são imorais.

Um ponto muito importante a ser notado é que,

para chegar a uma conclusão moral, é preciso que haja uma

premissa moral. É simplesmente impossível estabelecer

uma conclusão moral sem ela. Veja os argumentos abaixo e

suponha que eles não possuem premissas implícitas:

Uma surra de cinto causa sofrimento desnecessário em

uma criança. Logo, surras de cinto são imorais.

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

Torturar criminosos é um tipo de agressão. Criminosos

não devem ser torturados.

Nos dois casos, a premissa não diz nada sobre

como definir certo e errado; ela apenas faz uma afirmação

descritiva, mas a conclusão afirma que algo é errado.

Portanto, em ambos os casos a conclusão é insustentável,

pois ela não se segue da premissa. Seria preciso acrescentar,

no primeiro caso, uma premissa que afirmasse que é errado

causar sofrimento desnecessário e, no segundo caso, uma

premissa que dissesse que nenhum criminoso deve ser

agredido.

As teorias morais costumam fornecer essas

premissas (imperativo categórico, princípio da

maximização, princípio do prejuízo etc.). Entretanto, essas

premissas também são adquiridas através da religião,

tradição, família, amigos, mídia etc. Nesses casos, elas

costumam ser afirmações morais do tipo “não faça com os

outros o que não quer que façam com você”, “devemos

ajudar os mais fracos”, “o direito de cada um termina onde

começa o de outro”, “quando um burro fala o outro abaixa

a orelha”, “uma mão lava a outra” etc.

Um argumento moral também precisa de uma

premissa não-moral, pois é ela que permite ir da afirmação

geral feita pela regra moral contida na premissa moral e a

afirmação moral específica contida na conclusão. P. ex., do

princípio moral geral de que “nenhum criminoso deve ser

agredido” não se pode concluir que “nenhum preso deve

ser torturado” sem que haja a informação de que a tortura é

um tipo de agressão.

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Leno Francisco Danner (Org.)

A maior dificuldade dos alunos é identificar os

argumentos. O método mais simples é procurar expressões

indicativas. Por serem tentativas de oferecer evidência ou

apoio a determinada afirmação, os argumentos

normalmente contêm expressões que indicam uma

conclusão, tais como: logo, portanto, consequentemente,

então, dessa maneira, isso mostra/leva/indica/sugere que

etc. Por sua vez, as premissas normalmente estão em frases

que contenham expressões tais como: porque, visto que,

dado que, como tal e tal coisa é dessa maneira.

Essas expressões são indicadores, sua presença é

um indício de que estamos diante de uma conclusão ou de

uma premissa. Infelizmente, nem sempre há indicadores. É

preciso muita atenção porque muitas vezes tanto as

premissas quanto a conclusão podem estar em frases sem

indicadores. Veja os exemplos e suas reformulações com as

premissas e as expressões indicadoras explicitadas:

Termine com ele. Aquilo não é jeito de tratar uma

mulher.

Você deve terminar com ele porque ele te tratou de uma maneira que

mulheres não devem ser tratadas e você não pode aceitar ser tratada

assim.

O azul está na moda. Compre!

Como o azul está na moda e é bom estar na moda, então você deve

comprar a blusinha.

Outro fato que dificulta o reconhecimento de

argumentos é que a conclusão nem sempre vem depois das

premissas, ela pode vir antes e até mesmo no meio de duas

ou mais premissas. A melhor estratégia nesses casos é

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302

Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

tentar descobrir (1) qual afirmação seu interlocutor está

querendo defender ou (2) quais afirmações fazem mais

sentido como premissas e qual (ou quais) se encaixa melhor

como conclusão, isto é, qual serve para estabelecer a

verdade de outra e qual precisa ser fundamentada por

outras afirmações. Nos exemplos a seguir há indicações do

que é premissa e o que é conclusão:

(C) O Tião é o melhor candidato a deputado porque

(P1) é o mais simpático, (P2) o que se dá melhor com os

outros partidos e (P3) aquele que sabe lidar melhor com os

mais carentes.

(P2) O Felipe Melo não sabe se controlar. (C) Ele não

deve estar na seleção, (P1) um jogador de seleção tem que

saber se controlar.

Depois de identificadas a conclusão e as premissas e

checada a qualidade do raciocínio que leva das premissas à

conclusão, é preciso avaliar a verdade das premissas. Mas

como avaliar a premissa moral, aquela que expressa um

regra moral? O principal teste é tentar pensar em contra-

exemplos (VAUGHN, 2008). Considere o seguinte

argumento:

P1- É sempre errado matar um ser humano.

P2- Todo aborto provocado mata um ser humano

C- Por isso, o aborto provocado é sempre errado.

O princípio moral geral aqui é P1 e ela é no mínimo

questionável, porque podemos facilmente pensar em

contra-exemplos, situações em que seja aceitável matar um

ser humano, como a legítima defesa ou durante uma guerra

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Leno Francisco Danner (Org.)

justa. Portanto, P1 precisa ser mudada, talvez para algo

como “é sempre errado matar um ser humano inocente” –

ajustando também P2.

Mas não basta ter premissas verdadeiras, é preciso

também que o raciocínio seja válido. Falácias são erros de

raciocínio, argumentos falhos em que a conclusão não se

segue da premissa. Há vários tipos de falácias. A seguir

veremos apenas duas das mais comuns em discussões

morais: o argumento ad hominem e o argumento de

autoridade.

O erro dos argumentos ad hominem é rejeitar uma

afirmação não por causa de seu conteúdo, mas sim com

base em um fato irrelevante sobre quem a fez (caráter,

circunstância etc.). Veja sua estrutura básica e alguns

exemplos:

A pessoa B faz a afirmação X.

A pessoa C ataca a pessoa B.

Logo, a afirmação X é falsa.

André: Acho que o aborto é errado.

Fernando: Claro que sim, você é padre!

André: Mas e aquela lista de argumentos que te dei?

Fernando: Aquilo não conta. Você é um padre, é só

uma marionente do Papa, não compensa discutir

isso com você.

Ontem, no programa da Luciana Gimenez,

defenderam o direito de ter pitbulls. Isso é uma

bobagem, aquele programa é um lixo.

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304

Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

Nos argumentos ad hominem, primeiro há um ataque

a quem fez a afirmação e depois o ataque é tomado como

evidência contra a afirmação. Isso é uma falácia porque o

caráter, as circunstâncias etc. da pessoa normalmente não

influenciam a verdade da afirmação ou argumento – um

mentiroso pode ter feito uma afirmação verdadeira.

Contudo, nem todo argumento ad hominem é

irrelevante, por exemplo, pode ser que seja relevante saber

que alguém tem conflitos de interesse (como no caso em

que o médico indica o remédio X apenas por ter recebido

propina do fabricante). Mas isso seria apenas um alerta, não

necessariamente significa que a afirmação feita por ele é

falsa.

Alguns argumentos ad hominem se transformam em

simples ataques pessoais com o objetivo de desqualificar o

interlocutor – “essa anta não sabe o que está falando”. É

importante notar que alguns ataques são mais sutis e vêm

na forma de informações (verdadeiras ou não) que servem

para desqualificar o interlocutor diante de quem está

ouvindo. Essa estratégia é conhecida como envenenar o poço:

Alguém que discorde de mim não pode estar

defendendo os interesses do país.

Como dizem que ele é racista, aquela brincadeira sobre

capoeira só pode ter sido para me ofender.

Não acredite em nada do que ele disser, ouvi dizer que

ele iria tentar te enganar.

A falácia conhecida como argumento ad hominem tu

quoque (ou argumento você também) é cometida quando se

conclui que a afirmação de alguém é falsa porque ela é

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Leno Francisco Danner (Org.)

inconsistente com algo que a pessoa disse ou fez. Isso é

uma falácia porque o fato de que uma pessoa está sendo

inconsistente não faz com que a afirmação seja falsa,

apenas mostra que a pessoa é hipócrita. E pessoas

hipócritas também são capazes de falar verdades. Veja a

estrutura desse argumento e alguns exemplos:

A pessoa B faz a afirmação X.

A pessoa C defende que a verdade de X é

inconsistente com ações ou afirmações passadas de

B.

Logo, X é falsa.

D. Dalva: Juliano, meu filho, você precisa parar de

fumar, isso faz mal.

Juliano: Deixa de bobagem, mãe, você também já

fumou.

Carol: É errado usar animais para nosso benefício.

Tati: Aff, e esse cinto de couro que você está usando,

é feito de alface?

Vejamos um segundo tipo de falácia. O apelo à

autoridade é uma estratégia argumentativa que consiste em

apresentar a opinião de alguém que entende o assunto

como evidência da verdade de uma afirmação. Esse pode

ser realmente um bom argumento quando se tratar de um

assunto muito complicado e quando a autoridade citada é

realmente um especialista no assunto. Essa estratégia é

falaciosa somente quando a pessoa apresentada como

autoridade não entende do assunto. O fato de que alguém

não qualificado afirma alguma coisa, não a torna verdadeira.

Na verdade, o fato de que alguém qualificado afirma

alguma coisa também não é suficiente para tornar a

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306

Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

afirmação verdadeira, é apenas um indício que pode ser

importante na falta de outros tipos de evidência. Veja a

estrutura básica da versão falaciosa do argumento e alguns

exemplos de bons e maus argumentos de autoridade:

A pessoa B é apresentada como uma

autoridade no assunto Y.

(mas na verdade não é)

A pessoa B fez a afirmação X sobre Y.

Logo, é verdade que X.

Ela não fez medicina, mas é casada com um cardiologista, se

ela te disse que é melhor tomar analgésico, pode tomar sem

medo. (mau argumento)

Os EUA são uma droga, pode acreditar em mim, entendo do

assunto, já conversei com muita gente que morou lá. (mau

argumento)

Vou comprar esse celular porque o Ronaldo aparece na

propaganda dele. (mau argumento)

Colgate, a marca recomendada por 80% dos dentistas. (bom

argumento)

Até Einstein dizia que não devemos perder a esperança. (mau

argumento)

O melhor partido é o PMDB, 90% dos dentistas votam nele.

(mau argumento)

Provavelmente não encontraremos uma teoria de tudo, até

Einstein achava que não era possível conciliar a física subatômica

e a astrofísica. (bom argumento)

A homossexualidade é uma abominação, está na Bíblia (bom

argumento para quem considera que a Bíblia é a palavra de Deus

e mau argumento para quem discorda disso).

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Leno Francisco Danner (Org.)

A ciência diz que fumar causa câncer (bom argumento para

quem considera que a ciência é capaz de identificar esse tipo de

causalidade e mau argumento para quem discorda disso).

A ciência diz que não há evidências de que almas existem

(bom argumento para quem considera que a ciência é capaz de

identificar esse tipo de evidência e mau argumento para quem

discorda disso).

Em uma discussão sobre como lidar com a gripe,

faz sentido dar mais valor à opinião de um médico

experiente. Contudo, a opinião dele sobre o melhor

trompetista de jazz não é mais confiável do que a de outras

pessoas. A não ser que tenhamos evidências de que ele

entende muito de jazz. O fato de que alguém entenda de F

não o faz um especialista em G (a menos que os assuntos

sejam relacionados). Para o apelo à autoridade não ser

falacioso, é preciso que haja evidências (diplomas,

certificados, prêmios, desempenho passado, empregos,

currículo, registros profissionais como CRM, OAB, CREA

etc.) de que a pessoa à qual se recorre realmente seja um

especialista no assunto. Na verdade, esse é o principal

motivo para que existam registros profissionais, diplomas,

certificados, currículos e prêmios. Eles ajudam a identificar

em quem se pode confiar em relação aos temas em questão.

Um apelo relevante à autoridade é aquele em que há

bons motivos para acreditar que a fonte indicada é uma

autoridade legítima no assunto. Como nem toda fonte é

confiável, não basta dizer coisas como “li em um livro

que...”, “todo mundo está falando que...”, " vi na TV

que...” etc. Além disso, é preciso levar em conta que

algumas fontes possuem conflitos de interesses. Por

exemplo, ao ler uma reportagem sobre aumento de

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

impostos, bolsa-família ou greve de servidores, é

importante saber que a revista Veja geralmente defende a

não interferência do governo no mercado (liberalismo

econômico), enquanto que a revista Caros Amigos costuma

defender maior controle do estado sobre a economia para

garantir uma melhor distribuição dos recursos (socialismo).

Conclusão

Segundo o art. 35 da Lei de Diretrizes e Bases da

Educação Nacional (9.394/96), uma das finalidades do

ensino médio é “o aprimoramento do educando como

pessoa humana, incluindo a formação ética e o

desenvolvimento da autonomia intelectual e do

pensamento crítico”. A inclusão da filosofia no currículo

escolar seria uma das maneiras de realizar esses objetivos.

Os professores de filosofia costumam supor que eles serão

cumpridos com o estudo dos textos clássicos, mesmo

quando estiverem estudando ética. Talvez seja. Mas se o for

será porque os alunos foram capazes de aprender a

identificar problemas concretos, a chegar criticamente a

uma posição consistente e argumentar em favor dela. Ora,

isso quer dizer que, se as aulas focarem diretamente o

desenvolvimento dessas capacidades, os alunos as

desenvolverão ainda mais. Ao se concentrar na

argumentação, o professor também evitará que as

discussões em sala se transformem em batalhas de

“achismos”. Dessa maneira, as aulas de filosofia não serão

nem chatas nem inúteis.

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

Direitos humanos e

educação filosófica

Paulo César Carbonari

Existem diversos tipos de saber: uns que são

necessários; outros indispensáveis; alguns simplesmente inúteis.

Os saberes necessários são aqueles que se precisa estudar para

aprender, são os saberes da escola. Os saberes indispensáveis

são aqueles que são aprendidos mesmo quando não são

estudados, sendo que até no ato de não estudá-los com eles

e deles se aprende algo, são os saberes da vida. Os saberes

inúteis são aqueles que não parecem ter qualquer

necessidade ou mesmo parecem dispensáveis, mas que, a

rigor, possivelmente sejam os mais necessários e também

os mais indispensáveis.

Os saberes necessários são fundamentais para que,

com eles, possamos viver melhor, mesmo que pudéssemos

até ter algum grau de (sobre-)vivência sem eles. Os saberes

Doutorando em Filosofia (Unisinos), professor e coordenador do

Curso de Bacharelado em Filosofia do Instituto Berthier (IFIBE, Passo

Fundo, RS), membro do Comitê Nacional de Educação em Direitos

Humanos da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da

República (CNEDH/SDH-PR), membro do conselho nacional do

Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH).

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Leno Francisco Danner (Org.)

indispensáveis, como diz o próprio nome, não podem ser

deixados de lado, sendo que os aprendemos com a vida e

na vida, e que é da qualidade de como os aprendemos e os

vivenciamos que depende a qualidade de nossa vida e das

relações que nela estabelecemos. Os saberes inúteis parecem

não ter qualquer aplicação imediata, mas, como se disse,

são aqueles que podem se revelar necessários e

indispensáveis. O saber do viver e o saber viver estão entre os

saberes indispensáveis para o bem viver.

Todos estes saberes podem ser aprendidos, mesmo

que uns sejam mais próprios de serem aprendidos na escola

e outros poderiam até dispensá-la para serem aprendidos, o

que indica exigências do aprender próprias a cada um

desses saberes. O fato de uns serem mais próprios à escola

e de que outros nem precisem dela, não significa que dela

estejam dispensados ou que ela possa dispensá-los, até

porque a vida não está fora da escola e o que se aprende na

escola faz algum sentido se também for para ajudar a saber

viver e ao bem viver.

Todos os saberes são necessários e indispensáveis

quando se entende as razões pelas quais sua aprendizagem

é parte do processo de humanização. Porém, se sua

aprendizagem for posta como uma exigência de resultado

estatístico ou de avaliação; se sua aprendizagem for um

assunto a mais a ser submetido à avaliação cumulativa; se

sua aprendizagem for mais um conteúdo que precisa ser

“passado”, apesar da turma e dos sujeitos que a compõem;

enfim, se for para cumprir mais um protocolo ou exigência

do sistema (de ensino, de produção), perde-se

completamente os motivos de sua necessidade e, mais

ainda, os motivos que os faz ser indispensáveis.

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

A filosofia e os direitos humanos estão entre

aqueles saberes que são indispensáveis, o que não significa

que sejam desnecessários, pelo contrário! Mas,

contraditoriamente, são tidos por inúteis, não no sentido

que dissemos aqui, mas no sentido do pragmatismo raso da

média. É por não serem aplicáveis por utilidade que têm

sido tão desprezados e ainda há uma dificuldade muito

grande de compreensão das razões para saber o porquê

serem aprendidos, na escola e na vida.

A vida comum parece continuar a insistir e a

confundir estes saberes e a tornar necessário o

indispensável e indispensável o inútil – agora em outro

sentido, aquele que toma por inútil o que a sociedade

massificada oferece como sendo favorável ao bem viver, ou

seja, no sentido do que se propõe como útil, como

necessidade criada para alimentar a máquina do

consumismo desumanizante. Enfim, o debate sobre os

saberes necessários e indispensáveis ao bem viver é o que se

toma como questão de fundo na reflexão que se propõe a

fazer neste ensaio, procurando estabelecer uma relação

deste debate como significado do ensino da filosofia e a

educação em direitos humanos.

* * *

Uma reflexão sobre a educação filosófica exige

fazer um breve diagnóstico do que isso poderia significar

em nosso tempo. Afinal, a educação filosófica é tarefa a ser

cumprida como construção no mundo atual, a fim de

responder aos desafios da realidade do tempo que nos é

dado viver. Para isso recorreremos a algumas orientações

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Leno Francisco Danner (Org.)

filosóficas distintas. Elas podem nos ajudar nesta

compreensão.

Na Introdução a uma de suas obras referenciais,

Transformação da Filosofia (1973), Karl-Otto Apel,

preocupado com a filosofia em seu tempo, começa se

perguntando se o caso é de superação ou de transformação da

filosofia. Já sabemos qual sua resposta, dado o título da

obra115. Ele entende que seu tempo filosófico é o da “Era

da Ciência”. Portanto, trata-se de fazer a pergunta sobre

qual o sentido de filosofar numa época marcadamente

conformada pela ciência e sua consequência mais palpável,

a tecnologia. Vivemos um tempo no qual a ciência se

institui como parâmetro da verdade com sentido e validade

e, até mais, ela própria se pretende capaz de dar respostas

para os mais intrincados conflitos de ordem prática (ética e

política). A tecnologia invade o cotidiano mais íntimo da

imensa maioria dos seres humanos e tende a tornar os

humanos dependentes das máquinas como nunca antes.

Nesta época, segundo ele, facilmente se propõe superar a

filosofia por sua “redução à ciência ou à lógica científica”

ou então, por outro lado, retomar a “grande filosofia,

ignorando o grande paradigma do método científico e a

racionalização (parcial) da interação e comunicação

humanas aí pressupostas”, o que, a seu ver, leva ao

115 Para poder sustentar sua posição, a de que não se trata da necessidade

de superação e sim de transformação da filosofia, precisará: a)

demonstrar que a filosofia precisa ser transformada; b) apresentar as

condições e os pressupostos desta transformação; c) apresentar e

justificar os caminhos significativos pelos quais esta transformação será

possível; o que, em síntese, significa estabelecer qual é a tarefa da

filosofia em nosso tempo. É o que ele faz, não somente na Introdução,

onde apenas esboça o roteiro, mas no conjunto de sua obra.

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

“irracional” ou a um “descomprometimento privado”

(2000, p. 16). Como alternativa, o que ele propõe é

transformar a filosofia subjetivista moderna em uma

filosofia cujo primado seja ético e cujo subjetivismo seja

superado pela intersubjetividade116.

Luigi Pareyson, em Verdade e Interpretação (1971), no

primeiro capítulo da terceira parte, intitulado Necessidade da

Filosofia, diz que a filosofia está em crise e que é cada vez

mais forte a presença da ciência, da arte, da política e da

religião (o “campo está dominado” por elas). Na avaliação

dele, a ciência e a religião pretendem “suplantar” (passar

por cima, ou viver sem) a filosofia; e a política e a arte

pretendem “sub-rogar” (substituir) a filosofia117. Segundo

ele, a ciência pretende que a filosofia “[...] deveria resignar-

se a ser considerada como fantástica e inútil [...]; a menos

que ela aceite reduzir-se a filosofia da ciência [...]” (2005, p.

116 Apresentamos a posição de forma mais detalhada e com ênfase na

ética em CARBONARI, 2003.

117 Mas já não vivemos um tempo no qual as relações humanas e os

parâmetros de verdade são ditados pela primazia da fé-religião (como o

foi por mais de mil anos na história ocidental e que ainda o é em

algumas regiões do planeta); nem um tempo demarcado pela política e

suas alternativas ideológicas, como foi o recente período do século XX,

sobretudo pelo conflito capitalismo e socialismo (mesmo que as

ideologias não tenham sido superadas e que ainda se viva na expectativa

do “pensamento único” ditado pelo “Consenso de Washington”,

apesar da recente crise do neoliberalismo); também não estamos no

tempo poético do mito no qual as racionalidades estavam submetidas

às forças “estranhas” das musas (mesmo que persistam formas míticas

muito fortes em nossos dias). Talvez para sermos mais precisos: nosso

tempo é o tempo da “impureza”, das ideias “obscuras e confusas”; um

tempo no qual o amálgama formado por ciência, religião e arte tornam

difícil, ainda mais, a tarefa de compreender o que ocorre.

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Leno Francisco Danner (Org.)

222); a religião pretende que “[...] não há mais lugar para a

filosofia, porque todas as coisas já estão decididas, e a

contribuição da filosofia, quer se trate de uma preparação

ou de uma confirmação, é inútil [...]” (2005, p. 223); a arte,

que pretende ser uma atitude total do homem, dispensa a

filosofia e a faz ser “[...] reduzida à racionalidade

elaboradora de técnicas eventualmente adequadas a

determinados campos de investigação” (2005, p. 224); e a

política, por se tornar inseparável da ideologia e por

pretender “realizar” a filosofia, também resultou por tornar

a filosofia “dispensável”.

Theodor Adorno, na Introdução da Dialética Negativa

(1967), faz um diagnóstico da situação filosófica. Nessa

monumental obra, o autor diz que “A filosofia, que um dia

pareceu ultrapassada, mantém-se viva porque se perdeu o

instante de sua realização”. Mais adiante diz que “Depois

de quebrar a promessa de coincidir com a realidade ou ao

menos de permanecer imediatamente diante de sua

produção, a filosofia se viu obrigada a criticar a si mesma

sem piedade” (2009, p. 8). Ele também diz que “A

regressão da filosofia a uma ciência particular, imposta

pelas ciências particulares, é a expressão mais evidente de

seu destino histórico” (2009, p. 9). Mais adiante, diz

“Filosofia é o que há de mais sério dentre todas as coisas, e,

no entanto, ela não é tão séria assim” (2009, p. 21). A

posição adorniana aponta para a necessidade de a filosofia

assumir um novo papel de crítica negativa a todo o edifício

centrado no conceito, vindo a ser substituído por uma

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

filosofia na qual tenha havido o “desencantamento do

conceito”, que é “o antídoto da filosofia” (2009, p. 19)118.

O tempo em que vivemos, para falar a contrapelo, é

o tempo da globalização e da exclusão, como anota e

denuncia Enrique Dussel em Ética da Libertação na idade da

globalização e da exclusão (1998). É o tempo de profundas

crises: a natureza já não oferece recursos infinitos; a fome

[a pobreza e a desigualdade] são crescentes; há forte

presença de todo tipo de guerra, quente ou não; o

progresso não nos levará a um patamar de felicidade

alargada e acessível a todos os humanos. O contexto

filosófico é marcado por escolhas excludentes e que

comprometem a produção e a reprodução da vida, gerando

vítimas que, segundo Dussel, “[...] são re-conhecidas como

sujeitos éticos, como seres humanos que não podem

reproduzir ou desenvolver sua vida, que foram excluídas da

participação na discussão, que são afetadas por alguma

situação de morte (no nível que for, e há muitos e de

diversa profundidade ou dramatismo)” (2000, p. 303). São

as vítimas as que cobram uma nova filosofia e uma nova

118 Não é demais lembrar o diagnóstico que fez na belíssima conferência

de 1931 intitulada A atualidade da filosofia na qual, entre outras

observações, começa dizendo que “Quem hoje em dia escolhe o

trabalho filosófico como profissão, deve, de início, abandonar a ilusão

de que partiam antigamente os projetos filosóficos: que é possível, pela

capacidade do pensamento, se apoderar da totalidade do real. Nenhuma

razão legitimadora poderia se encontrar novamente em uma realidade,

cuja ordem e conformação sufoca qualquer pretensão da razão; apenas

polemicamente uma realidade se apresenta como total a quem procura

conhecê-la, e apenas em vestígios e ruínas mantém a esperança de que

um dia venha a se tornar uma realidade correta e justa. A filosofia, que

hoje se apresenta como tal, não serve para nada, a não ser para ocultar a

realidade e perpetuar sua situação atual” (ADORNO, 2000, s.p.).

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Leno Francisco Danner (Org.)

origem para a filosofia; são elas que clamam por direitos e

por justiça.

Em O porquê da filosofia?, que é a introdução de As

perguntas da vida (1999), Fernando Savater se pergunta sobre

que sentido teria a filosofia no final do século XX como

parte da vida educacional. Segundo ele, historicamente

parece haver mais motivos contra do que a favor, dado que

“não serve para nada”. Pergunta-se isso no que chama de

um contexto no qual parece que a filosofia não

acrescentaria nada de informação e menos ainda de

conhecimento do mundo. Porém, diz ele, quando se

substitui o ponto de exclamação pelo de interrogação ante a

constatação “Em que mundo vivemos!” então a filosofia

começa a fazer algum sentido, visto que nenhuma das

outras áreas do conhecimento consegue enfrentar esta

questão. A importância da filosofia nos dias atuais está,

portanto, em ser capaz de problematizar as questões que

não são possíveis de ser satisfatoriamente enfrentadas com

a informação e com o conhecimento produzidos pela

ciência. Por isso, sem diálogo entre filosofia e ciência seria

impossível filosofar em nosso tempo. No epílogo da

mesma obra, intitulado A vida sem por quê, vai sugerir o que

“nenhum bom professor de filosofia deveria esconder de

seus alunos” e que se resume que a filosofia faz sentido

como reflexão crítica, como sabedoria (2001, p. 209-210).

Seja qual for a caracterização que adotarmos, a de

Apel, a de Pareyson, a de Adorno, a de Dussel, ou a de

Savater, o que há de comum é que vivemos um tempo de

crise da filosofia. Ou seja, o diagnóstico mostra que o lugar

para o reconhecimento da filosofia como um saber e como

uma atividade com sentido e validade está em questão. Isso

é ótimo, pois repõe a filosofia como uma questão filosófica.

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

* * *

Neste contexto, o perguntar-se pelo que significa

fazer educação filosófica ou fazer ensino da filosofia não

pode ser feito sem o perguntar-se pelo sentido da própria

filosofia, do próprio filosofar. Ora, o perguntar pelo

sentido da filosofia é ocupar-se de refletir sobre a tarefa da

filosofia, sobre o que cabe a ela, sobre o que faz da filosofia

uma forma própria de ser e de saber.

Pelo acumulado do diagnóstico, difícil cumprir esta

tarefa sem que se tome em conta outras formas de saber [o

mundo], outras atividades do ser [no mundo]. Resulta

impossível ocupar-se da filosofia sem o diálogo com outros

saberes e com outras atividades, o que parece indicar que o

saber filosófico se faz no diálogo com o contexto no qual

se insere: o contexto epistemológico, o contexto ético, o

contexto histórico. Aliás, talvez pudéssemos nos arriscar a

dizer que a filosofia, não só em nosso tempo, mas a

qualquer tempo, o tempo todo, desde que assim se

pretendeu, sempre dialogou de forma profunda e profícua

com os contextos nos quais se inseriu.

Abrir-se ao diálogo com o contexto, no entanto,

não significa aceitar que o contexto dite os parâmetros e a

conformação da racionalidade filosófica. Pelo contrário,

significa propor que a racionalidade filosófica não se faz

sem o diálogo com o que lhe é exterior e o que a provoca a

se ocupar da vida humana e do mundo em geral. A

racionalidade filosófica nascente deste diálogo terá que ser

capaz de tomar em conta e de se posicionar (pró-

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ativamente) ante os diversos interesses cognitivos119, de

forma a colaborar na reconstrução do conjunto da

racionalidade e, nela, da especificidade da racionalidade

filosófica – e das demais racionalidades.

Aqui está uma primeira aprendizagem importante

para a educação filosófica: o sentido da filosofia está no diálogo

com outros saberes e com outras atividades para fazer afirmar a

racionalidade em seus tipos, especificamente, a filosófica120.

119 Apel e Habermas localizam com o sendo os seguintes os interesses

cognitivos: o interesse técnico científico (explicativo), o interesse

hermenêutico (compreensivo) e o interesse emancipatório (crítico-

reflexivo). No que diz respeito ao papel da filosofia, Apel entende que

“[...] hoje a filosofia não pode reclamar objeto algum como seu (nem a

consciência, nem a linguagem, nem a sociedade como comunidade de

comunicação). Por outro lado, ela virtualmente pode e deve investigar

todos os objetos do conhecimento científico e pré-científico, quanto a

seu status transcendental enquanto condições de possibilidade e validade

do conhecimento: deve ser assim, por exemplo, com a linguagem, ou

com o corpo, como “a priori material”, ou mesmo com as “constantes

naturais” da física como “paradigmas” de “jogos de linguagem”

científicos. [...] E daí advém a situação particular do discurso teórico da

reflexão filosófica sobre a validez [...]” (2000, p. 84, nota 115)

120 Com esta afirmação nos afastamos de versões comumente defendidas

por certas formas de compreender a filosofia como sendo estudo da

própria filosofia, como se a filosofia se fizesse desde ela mesma, um

ensimesmamento e um corporativismo que só afasta a filosofia dela

mesma e do mundo. As teses neopositivistas ou analíticas, que

pretendem reduzir a filosofia à tarefa propedêutica ou mesmo

terapêutica mostram-se completamente insuficientes, servem como

alerta, mesmo que pouco se prestem a ser programa de trabalho

filosófico, dado que simplesmente sucumbem à hegemonia do tempo

científico e se refugiam no privatismo das soluções práticas, não sem

razão, porém! (CARBOANRI, 2003).

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

Mas, se o sentido da filosofia está no diálogo

contextualizado, como dissemos, porque, então, estudar

história da filosofia? Não seria inadvertidamente sugerir

que o sentido da filosofia está nela mesma, em sua própria

história? Esta questão nos remete a uma breve reflexão

sobre o sentido filosófico da história da filosofia.

A história da filosofia, no seio da aprendizagem

filosófica, melhor, da educação filosófica, não é simples

historiografia. O sentido da presença da história da filosofia

na formação filosófica estaria em tê-la para fazer filosofia.

Ocorre que, para fazer filosofia é necessário muito mais do

que história da filosofia. Qual é, então, a contribuição

específica da história da filosofia no processo de formação

filosófica para quem pretende fazer filosofia? O fazer

filosofia, num contexto amplamente marcado pela

diversidade dos saberes e das racionalidades – o que não é

novo na história da humanidade, mas que certamente é

cada vez mais forte e consciente no mundo contemporâneo

– cobra o desenvolvimento da racionalidade filosófica como

especificidade e, ao mesmo tempo, como abertura a outras

racionalidades. A construção da racionalidade filosófica

poderia encontrar na história da filosofia, e talvez este seja

seu sentido mais profundo, subsídios para problematizar e

compreender como foi construído o processo histórico de

afirmação – ou de eliminação e ofuscamento – da

racionalidade filosófica; como a racionalidade filosófica se

posicionou – ou não – diante de cada contexto epocal;

como a racionalidade filosófica dialogou – ou não – com as

demais racionalidades.

Mas fazer este exercício implicaria “perseguir” a

possibilidade de circunscrever certo “campo racional

específico” para a filosofia, o que exige, logicamente,

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produzir-lhe a identidade. Ora, como é difícil de traçar-lhe

o perfil, mais difícil ainda é “fotografar-lhe” o rosto.

Entretanto, a história da filosofia pode oferecer subsídios

para compreender como a racionalidade filosófica

“aparece” na história – logo se verá que “aparece” e

“desaparece” com uma infinidade significativa de

“diferenças” (de características próprias), em várias épocas

e em vários “lugares”121.

Bem, mas se é verdade que a história da filosofia é

fundamental para angariar “qualidades diferenciais” à

filosofia, e a isto ela se presta significativamente, por outro

lado, pode ser contraproducente procurar na história da

filosofia subsídios para identificar a especificidade da

filosofia. Uma panorâmica da história da filosofia mostraria

facilmente tantas qualidades, em grande medida até

conflitantes, quando não contraditórias, que a tarefa de

precisar o que é o próprio da racionalidade filosófica se

veria inflacionada a tal ponto que poderia resultar

negativamente comprometida. Digamos de outra maneira, a

história da filosofia certamente oferecerá tantos subsídios,

de tal e diversificada ordem e qualidade, que o perscrutar a

racionalidade filosófica poderia ficar inviabilizado pelo

estudo da história da filosofia. Um consolo: melhor

abunda(r) que carece(r), na esperança de que a abundância

não seja motivo para “apavoramento” e sim para

posicionamento, rigor, para perseguir a precisão.

Aqui está o segundo sentido da educação filosófica:

a necessidade de abrir diálogos inter-filosóficos e intra-filosóficos. O

121 O estudo de Randall Collins, A sociologia das filosofias (2000), ainda não

disponível em português, pode ser indicado como uma boa revisão dos

múltiplos processos e dos múltiplos “começos” da filosofia.

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

diálogo entre as diversas formas de filosofia e os diversos

filosofares, sem etnocentrismos ou colonialismos, tão

comuns na história. Isto, com certeza, não só se constituiu

em exigência permanente na história da filosofia, mas se

põe ainda mais como tarefa, como agenda, como exigência

em nosso tempo122.

Mas, como fazer do diálogo da filosofia com outros

saberes e do diálogo inter-filosófico e intra-filosófico algo que

seja feito mais do que como um expediente? E, como fazer

desde o ponto de vista filosófico? Já nos antecipamos

respondendo que é a atitude filosófica123, que é uma

122 Enrique Dussel, no artigo El siglo XXI: nueva edad de la historia de la

filosofia en tanto diálogo mundial entre tradiciones filosóficas, defende que:

“Trata-se, por outro lado, de uma tarefa, no nosso caso filosófica, que

tem como ponto de partida afirmar o que foi declarado pela

Modernidade como a Exterioridade [...] desconsiderada, não valorizada, o

inútil das culturas (desconsiderações entre as quais se encontram as filosofia

periféricas ou coloniais) e desenvolver as potencialidades, as

possibilidades dessas culturas e filosofias ignoradas; afirmação e

desenvolvimento levados a termo com os próprios recursos em diálogo

construtivo com a Modernidade europeia-estadunidense” (2010, p. 137-

138), tendo “[...] em vista de uma filosofia mundial futura pluriversa e, por

isso, transmoderna (o que suporia, igualmente, ser transcapitalista no

campo econômico)” (2010, p. 138). Isto porque, “[...] no horizonte se

abre um projeto mundial analógico de um pluriverso transmoderno (que

não é simplesmente universal e nem pósmoderno). Agora outras filosofias são

possíveis porque outro mundo é possível [...]” (2010, p. 138, tradução nossa

em todas as passagens).

123 Gerd Bornheim, no livro Introdução ao Filosofar, retoma, a partir de Karl

Jaspers, três tipos de atitudes básicas: a) primeira é a admiração [típica de

Platão e Aristóteles], através da qual “o homem toma consciência de

sua própria ignorância; tal consciência leva-o a interrogar o que ignora,

até atingir a supressão da ignorância, isto é, o conhecimento”; b)

segunda é a dúvida [típica de Descartes], pela qual “a verdade é atingida

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construção, não um talento ou uma dádiva, o que ensejará

este processo.

Marilena Chauí, filósofa brasileira, discorreu sobre

este assunto em discurso pronunciado quando recebeu o

título de doutora honoris causa da Universidade Federal de

Sergipe, há poucos anos. Ela fez uma distinção profunda

entre o filosofar e a filosofia mais como uma atitude (como

compromisso de vida) e menos como uma simples atividade

(como cumprimento de um ofício). Ao falar sobre sua

própria trajetória e sobre os motivos que a levaram a

escolher a filosofia, retomou exatamente esta ideia para

expor as razões que a levaram a se ocupar da filosofia: uma

convocação de vida, mais do que uma incumbência para

“fazer a vida”.

Isto nos remete à velha posição socrática da

filosofia como modo de vida e de que a vida que vale a

pena ser vivida é aquela dedicada à pesquisa, já que o fazer

da vida permanente pesquisa é o núcleo do filosofar. Na

Apologia de Sócrates Platão registra que, para Sócrates, “[...] se

vos disser que para o homem nenhum bem supera o

discorrer cada dia sobre a virtude e outros temas de que me

ouvistes praticar quando examinava a mim mesmo e a

outros, e que vida sem exame não é vida digna de um ser

humano, acreditareis ainda menos em minhas palavras”

através da supressão provisória de todo o conhecimento ou de certas

modalidades de conhecimento, que passam a ser consideradas

meramente opinativas. [...] A dúvida metódica aguça o espírito crítico

próprio da vida filosófica, e nisso reside a sua eficácia”; c) a terceira é o

sentimento de insatisfação moral [como em Epicuro], pela qual o

“homem cotidiano cai em si e pergunta pelo sentido de sua própria

existência [...] levando o homem a tomar consciência de sua própria

miséria” (2009, p. 36).

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

(38a, p. 22). Trata-se de afirmar que o filosofar, antes de ser

uma função a ser cumprida [hoje diríamos uma profissão],

é um modo de vida, um programa de vida, que compromete

substantivamente. Por isso é que o filosofar é, acima de

tudo, um voltar-se a si, mais do que às coisas. A tarefa

magna do filosofar é, portanto, o devotar-se a saber-se para

cuidar-se; ou, do cuidar-se como uma forma de saber.

Dessa forma, parece indicado o “lugar” do filosofar.

Todavia, esse não é um ponto de partida e nem um ponto

de chegada. É muito mais um percurso. É, por isso, não

um lugar determinado, mas os muitos lugares a serem

construídos: um sem-lugar específico; um estar no mundo e

ao mesmo tempo estar fora dele124.

Por isso, a pesquisa e a investigação com base em

questões-problemáticas e a construção de conceitos e

argumentos reflexivos, abrindo novas ou se inserindo em

frentes temáticas disponíveis, constituem o núcleo central

da tarefa da educação filosófica. É a construção de

competências e atitudes nesta direção que providenciará a

afirmação do que se pode chamar de atitude filosófica que se

efetiva através da realização da atividade filosófica – não como

mera profissão, mesmo que exija alto grau de

profissionalismo.

Ora, como construir a atitude filosófica que não seja

gerar mimeses e seja sim a produção de um posicionamento

124 O tema do cuidado de si e o conhecer a si como tarefa filosófica

fundamental é amplamente considerada na tradição filosófica. Para uma

reconstrução de seu sentido, inclusive a partir da posição socrática ver

FOUCAULT, 2006.

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maduro e gradativamente próprio, pessoal?125 Se for só para

produzir mimese não faz qualquer sentido estudar filosofia

(talvez até tenha motivo por razões meramente utilitárias);

mas, se for para produzir posicionamento maduro e

próprio, então sim, o estudo da filosofia poderia ganhar

sentido como acumulação de subsídios para transformar a

filosofia e o filosofar em atividade orientada por uma

postura e uma atitude filosóficas. Em outras palavras, dessa

forma se poderia seguir dando origem à filosofia – e, em

consequência, originalidade ao filosofar!

Aqui está o terceiro sentido da educação filosófica:

a construção de uma postura marcada pela atitude filosófica. Trata-

se, mais do que de uma orientação exterior, de um

compromisso pessoal que se constrói na relação com os

outros e em processos de aprendizagem permanente126, o

que pode indicar que esta construção se faz como agenda

de trabalho teórico e prático, o que, a rigor, algumas aulas

125 No dizer de Kierkegaard: “Começar e sempre se resolver; e, no fundo,

uma resolução é da eternidade (caso contrário, seria apenas uma

brincadeira que, bem pensada, revelaria mais tarde o seu ceticismo). De

que serve decidir-se pelo estudo da lógica, se não se compromete nela

toda a vida? Senão, que valor teria? Estudar-se-ia apenas para conseguir

um simples diploma? [...] Quando não se pensa assim, começa-se não

em virtude de uma resolução, mas de um talento (ou por tolice, por

moda, etc. para não ficar sozinho) [...]” (apud BORNHEIM, 2009, p.

119).

126 Gerd Bornheim, em Introdução ao Filosofar, defende a “conversão

filosófica” da seguinte forma: “[...] devemos afirmar que não se faz

filosofia a partir da exterioridade, ou de um comportamento exterior,

abstrato, mas a partir da interioridade. Ora, interioridade quer dizer

liberdade, e com isso tocamos o próprio nervo daquele ato de assumir”

(2009, p. 120).

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

no ensino médio ou mesmo um curso de graduação talvez

sirvam para não mais do que de iniciação!

* * *

Aprofundando os aspectos apontados, pode-se

dizer, então, que o ensino da filosofia é uma questão

filosófica, assim como é filosófica a tarefa de construir uma

educação filosófica. Mas, é também uma questão didático-

pedagógica, ou seja, encerra aspectos que dizem respeito ao

modo como fazer esta educação. Ademais, também se

constitui num direito de cidadania, ou seja, a cidadania tem

direito ao saber filosófico, a uma educação filosófica127.

A filosofia, assim como qualquer outro saber, está

disponível à aprendizagem e pode ser ensinada e aprendida.

Seus conteúdos, suas metodologias, suas temáticas e

problemáticas ganham sentido em cada época histórica.

Pode parecer óbvio, mas filósofos/as não nascem em

árvores e nem são gerados/as espontaneamente pela

cultura. A aprendizagem da filosofia se põe como questão,

como problema, para a própria filosofia. Não há um modo

pronto, mesmo que possa haver um modo próprio, para o

ensino da filosofia. O sentido do aprender filosofia implica

também no aprender a filosofar, o que, a rigor, requer

muito mais do que o domínio de conteúdos e métodos

apropriados, mesmo que existam conteúdos e métodos

próprios. Mais do que isso, está em questão pensar uma

127 Tratamos de forma mais sistemática a especificidade desta questão

direcionada particularmente para a graduação em filosofia no artigo

Ensino de filosofia e educação em direitos humanos: subsídios para a graduação em

filosofia (CARBONARI, 2010, p. 23-51).

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educação filosófica, que não é o mesmo que adjetivar o

filosófico à educação. Trata-se de substantivar a educação e

o filosófico. Este conjunto complexo requer, acima de

tudo, o desenvolvimento do que se poderia resumir como

sendo a formação de uma atitude filosófica.

A aprendizagem em geral e também o aprender

filosofia, assim como a educação filosófica, são processos

que exigem a explicitação das finalidades e mediações que

lhe são constitutivas. Como processo, a aprendizagem se

faz em dinâmicas de presença de sujeitos, que interagem

entre si na relação educativa sempre mediados pela

linguagem e pelo conhecimento, levando a

posicionamentos sobre a realidade, razão maior de qualquer

conhecimento que já foi construído ou que possa vir a ser

construído. A formação de sujeitos aprendentes, estejam

eles na posição de docente ou de discente, é o núcleo

central da dimensão didático-pedagógica da educação

filosófica. Assim como em qualquer outro conhecimento, o

fazer filosofia exige o domínio de competências e o

desenvolvimento de habilidades próprias ao que poderia ser

chamado de atividade filosófica.

O aprender filosofia também se constitui em direito

de cidadania visto que a legislação, a partir de 2 de junho de

2008, data que marca a sanção presidencial da Lei nº 11.684,

torna obrigatório o ensino da filosofia (e da sociologia) como

disciplina nos três anos do ensino médio de todas as escolas

(públicas e privadas) do Brasil. Ademais, a partir do

momento em que o sistema de ensino superior reconhece e

autoriza a existência de cursos de graduação e de pós-

graduação em filosofia, também nestes níveis passa a ser, de

certa forma, um direito. Ou seja, aprender filosofia e, ainda

mais, a educação filosófica, é um dos conteúdos do que se

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

pode definir como constitutivo dos direitos da cidadania.

Neste sentido, o aprender filosofia e a educação filosófica são

parte do desenvolvimento de condições e oportunidades para a

vivência dos direitos, quiçá dos direitos humanos.

Assim que a educação filosófica, ou também

formação filosófica, tem compromisso com a dimensão da

formação da atitude filosófica, o desenvolvimento de condições

para a atividade filosófica e a afirmação dos direitos humanos, todos

no sentido de que seja promovida a dignidade humana como

bem viver.

* * *

Feita esta reflexão sobre o sentido da educação

filosófica resta dizer que, agir assim é, de alguma forma, fazer

educação em direitos humanos. Ou seja, que a educação

filosófica é, em nosso tempo, um caminho significativo para

que os direitos humanos possam encontrar proteção e

promoção no cotidiano, através da educação.

A educação em direitos humanos se realiza se houver

espaço para o diálogo profundo e profícuo, para a reflexão,

para a construção de sujeitos de direitos. O exercício do

diálogo encontra na filosofia um aliado fundamental na

perspectiva que apontamos da educação filosófica. Quando o

Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos

(PNEDH) estabelece que a educação em direitos humanos

é “[...] um processo sistemático e multidimensional que

orienta a formação do sujeito de direitos [...]” (BRASIL,

2006, p. 25) mostra com ênfase o núcleo da tarefa

educativa. A educação em direitos humanos se constitui,

assim, em “processo”. Se é processo, é parte do conjunto

das ações às quais se associa. Os adjetivos “sistemático” e

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“multidimensional” qualificam de forma substantiva o

processo a ser realizado pela educação em direitos

humanos, dando-lhe as qualidades essenciais: a primeira

afasta qualquer perspectiva de que a educação em direitos

humanos seja apenas um [ou até muitos] evento em

qualquer dos momentos ou dos âmbitos da vida acadêmica;

a segunda afasta qualquer perspectiva unidimensional e

fragmentária da formação; positivamente, uma e outra

convergem para a finalidade central da educação em

direitos humanos que é a formação do “sujeito de direitos”.

O PNEDH explicita as várias dimensões da

educação em direitos humanos. Abre: a) para a dimensão

epistêmico-cognitiva [“apreensão de conhecimentos

historicamente construídos [...]”; b) para a dimensão ética

[“afirmação de valores, atitudes e práticas sociais que

expressem a cultura dos direitos humanos em todos os

espaços da sociedade”]; c) para a dimensão política

[“formação de uma consciência cidadã [...]”; d) para a

dimensão pedagógica [“desenvolvimento de processos

metodológicos participativos e de construção coletiva [...]”;

e) para a dimensão social [“fortalecimento de práticas

individuais e sociais que gerem ações e instrumentos em

favor da promoção, da proteção e da defesa dos direitos

humanos, bem como da reparação das violações”]

(BRASIL, 2006, p. 25). Estas diversas dimensões têm como

eixo articulador e diferenciador fundamental a formação do

sujeito de direitos.

Assim, a questão de fundo que articula a educação

em direitos humanos é a formação do sujeito de direitos.

Mas não há sujeitos de direitos sem que sua formação seja

uma formação reflexiva. Por isso a estreita relação da

educação em direitos humanos com a educação filosófica

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

ao modo que a descrevemos. Isso não significa dizer que a

educação em direitos humanos só se realiza na educação

filosófica. Dizer isso seria redutivo e não reconhecer o

necessário diálogo e interação com outros saberes, o que

aliás precisa ser feito também pela filosofia. O que estamos

afirmando pretende mostrar que a educação filosófica tem

um compromisso com a educação em direitos humanos e

que é neste sentido que a ela cabe dialogar com os direitos

humanos como processo histórico de afirmação dos

sujeitos de direitos.

* * *

Finalmente, a educação filosófica como compromisso

com os direitos humanos, com a educação em direitos

humanos, pode se traduzir numa agenda programática de

ação nos diversos espaços educativos nos quais a filosofia

está presente, seja como parte da educação básica e,

especialmente, como parte da educação superior e da pós-

graduação. Para a formulação desta agenda há que se tomar

em conta o que é recomendado em geral como Diretrizes

Nacionais da Educação em Direitos Humanos propostas pelo

Conselho Nacional de Educação e que aqui adaptamos ao

campo da filosofia128. Com base nelas indicamos a seguir

algumas linhas de desafios.

Direitos humanos como compromisso institucional: o que

significa dizer que o desafio é que os direitos humanos

façam parte dos projetos institucionais, dos projetos de

128 Referimo-nos à Resolução CNE/CP nº 1 e ao Parecer CNE/CP nº 8,

ambos de 30/05/2012. Emanados pelo Pleno do Conselho Nacional

de Educação.

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curso, para fazer com que o conjunto da ação educativa

neles desenvolvida seja comprometida com a efetivação

dos direitos humanos. Não se pode admitir que uma

instituição abrigue práticas ou mesmo compreensões que

sejam atentatórias aos direitos humanos das pessoas que

dela participem ou que por ela sejam atingidas e formadas.

Por isso, explicitar o compromisso com os direitos

humanos é passo fundamental para que sua prática seja

coerente.

Direitos humanos como parte do ensino: o ensino da

filosofia feito através de uma educação filosófica exige que

haja a presença dos direitos humanos em todos os

processos de ensino, como componente curricular dos

cursos de graduação129 e como conteúdo a ser abordado na

disciplina de filosofia no ensino médio.130 Ademais, direitos

humanos também podem ser parte das disciplinas básicas

da graduação em Filosofia (História da Filosofia, Teoria do

Conhecimento, Ética, Lógica, Filosofia Geral: Problemas

Metafísicos) ou mesmo de outras disciplinas que dialogam

com temas específicos (Filosofia Política, Filosofia da

Ciência ou Epistemologia, Estética, Filosofia da Linguagem

129 As diretrizes dos cursos de graduação em filosofia foram elaboradas

pelo Conselho Nacional de Educação e podem ser encontradas nos

Pareceres CNE/CES nº 492, de 03/04/2001, e CNE/CES nº 1.363 de

25/01/2002, ambos abrigados na Resolução CNE/CES nº 12, de

13/03/2002, do mesmo órgão.

130 As orientações para o ensino médio estão nas Diretrizes Curriculares

Nacionais para o Ensino Médio produzidas pelo Conselho Nacional de

Educação, através do Parecer CEB/CNE nº 5, de 05/05/2011, e da

Resolução CNE/CEB nº 02, de 30/01/2012, e as orientações para ao

ensino da filosofia no ensino médio através do Parecer CNE/CEB nº

22, de 08/10/2008, e da Resolução CNE/CEB nº 01, de 18/05/2009.

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334

Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

e Filosofia da Mente) e que constam das diretrizes para a

graduação em filosofia. Enfim, o fundamental é que os

direitos humanos não sejam tratados apenas como mais um

conteúdo – mesmo que tenham um conteúdo a ser tratado.

Particularmente no que diz respeito à tarefa de formação de

professores/as, feita nas licenciaturas, a responsabilidade

com a formação para a educação em direitos humanos é

essencial, devendo este tema se constituir em componente

curricular obrigatório. Para além da obrigação, o

fundamental é que sejam oferecidas atividades formativas

que ponham em diálogo a filosofia e os direitos humanos

preparando os futuros docentes para a educação filosófica

como educação em direitos humanos.

Promoção de pesquisas em direitos humanos: a educação

filosófica exige a formação de pesquisadores/as que se

proponham a dedicar sua vida à produção de

conhecimentos significativos para a humanidade ao modo

socrático, como já mostramos. A pesquisa não pode ser

feita sem tomar a sério os direitos humanos, ou seja, sem

que, através dela, seja feita a promoção dos direitos

humanos e que, através dela não sejam feitas práticas de

violação da dignidade humana, o que se constitui em

princípio da bioética nos dias de hoje. Ademais, os direitos

humanos também podem ser objeto e se constituírem em

temática-problemática de pesquisa, como, aliás, tem se

revelado no pensamento de vários dos filósofos

contemporâneos (a exemplo de Apel, Habermas, Dussel,

Arendt e tantos outros) ou em seu engajamento expresso

(Sartre, Russel, Chomsky, para citar uns).

Inserção comunitária em direitos humanos: a presença dos

sujeitos de direitos humanos, particularmente daqueles/as

que são vítimas de violações e daqueles/as que sustentam

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335

Leno Francisco Danner (Org.)

lutas pelo reconhecimento e afirmação dos direitos

humanos ocorre quando a educação filosófica dialoga e se

insere nas comunidades. É a inserção sócio histórica que é

capaz de levar o processo de aprendizagem a compreender

as contradições da realidade e a tomá-las como parte do

processo de educação, indo até elas e fazendo com que

cheguem aos espaços educativos. Dessa forma, definir

estratégias e realizar práticas de atuação comunitária em

direitos humanos são fundamentais para que a educação

filosófica se traduza em exercício da práxis.

O problema filosófico da educação filosófica

persiste, agora porém, mais complexo, dado que seu

enfrentamento exige a construção de mediações reflexivas e

ativas capazes de efetivamente viabilizar tempos e espaços

nos quais a dignidade humana se efetive. Por isso, a

formação filosófica é muito mais do que o cumprimento de

uma agenda de conteúdos ou mesmo de disciplinas

hierarquizadas e especializadas. Exige transformar a ação

pedagógica da educação filosófica num processo de

afirmação de sujeitos em relação e de sujeitos que são

sujeitos de direitos, mais do que simples abstrações que

conhecem ou que produzem. O desafio está posto, mesmo

que não o possamos enfrentar de todo, quiçá possamos

colocá-lo como tarefa do filosofar como compromisso da

educação com a formação, com a humanização, com a

direitoshumanização da educação e, mais do que dela, da vida.

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

Filosofia e Análise do Discurso:

uma questão de

transdisciplinaridade

Profª Me. Helena Zoraide Pelacani Almada131

A Análise do Discurso não está interessada no texto como

objeto final de sua explicação, mas como unidade que lhe

permite acesso ao discurso.

O visível e extraordinário crescimento do interesse

pela análise do discurso nos últimos anos é dado à

consequência de uma manifestação da virada linguística que

ocorreu nas artes e nas ciências sociais, por mera questão

epistemológica, bastante diversa de algumas metodologias.

Os termos “discurso” e “análise do discurso” são muito

discutidos e, para afirmar que determinado enfoque é um

discurso analítico, alguém deve dizer algo mais; não é

apenas uma questão de definição, mas implica assumir uma

posição dentro de um conjunto de argumentos muito

questionado, dentro das tradições teóricas, conhecidas

como linguística crítica, semiótica social ou crítica, estudos

da linguagem, teoria do ato de fala, análise da conversação e

131 Mestre em Linguística pela UNIR-RO e professora de Língua Portuguesa e

Literaturas. E-mail: [email protected]

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Leno Francisco Danner (Org.)

noção de sujeito no discurso. Assim, um dos objetivos da

análise de discurso é identificar as funções ou atividades da

fala e dos textos e explorar como eles são apresentados.

Tem-se como conceito de Análise do Discurso- AD

uma variedade de diferentes enfoques que se resume no

estudo de textos, desenvolvida a partir de diferentes

tradições teóricas e diversos tratamentos em diferentes

disciplinas, e todos reivindicam o nome, mas o que se pode

afirmar é que a AD é a análise do discurso na construção da

vida social, que se cruza com a filosofia, pois é considerada

como um ramo do conhecimento que pode ser

caracterizado pelos conteúdos ou temas tratados, pela

função que exerce na cultura e pela forma como trata tais

temas, e está intimamente ligada à linguagem – faculdade de

representação simbólica que possibilita todas as interações

sociais – condição de possibilidade da sobrevivência

humana.

A esse entendimento apresentamos a filosofia da

linguagem que é a parte da filosofia que se ocupa com as

questões de linguagem que, segundo Aristóteles, somente o

homem é um “animal político”, isto é, social e cívico,

porque somente ele é dotado de linguagem. Os outros

animais, continua Aristóteles, possuem voz (phoné) e com

ela exprimem dor e prazer, mas o homem possui a palavra

(lógos) e, com ela, exprime o bom e o mau, o justo e o

injusto, e o fato de exprimir e possuir em comum esses

valores é o que torna possível a vida social e política – e

isso somente os homens são capazes.

Rousseau nos ensina que “a palavra distingue os homens

e os animais; a linguagem distingue as nações entre si. Não se sabe de

onde é um homem antes que ele tenha falado”. Assim o eminente

filósofo afirma que “a linguagem é inseparável do homem, segue-o

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342

Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

em todos os seus atos”, nascendo de uma profunda necessidade

de o homem se comunicar, de o homem se socializar,

manifestando seus desejos, pensamentos, uma vez que este

é reconhecido como um ser sensível, pensante e

semelhante a si próprio.

Já Hjelmslev afirma que a linguagem é “o recurso

último e indispensável do homem, seu refúgio nas horas solitárias em

que o espírito luta contra a existência, e quando o conflito se resolve no

monólogo do poeta e na meditação do pensador”. É nesse exato

ponto que a filosofia ressalta seu poder para levar ao

aprendiz a entender a importância do processo da

linguagem na vida do homem, pois é através dele que o ser

humano mostra sua força de poder fazer com que as coisas

sejam tais como são ditas e pronunciadas. Podemos avaliar

a força da linguagem tomando como a primeira dimensão

os mythos. O melhor exemplo dessa força criadora através

da palavra encontra-se na abertura da Bíblia judeu-cristã,

em Gêneses, em que Deus cria o mundo do nada, apenas

usando a linguagem: “E Deus disse: faça-se”, e foi feito.

Porque Ele disse, foi feito. A palavra divina é uma força

criadora.

Outra dimensão do poder da linguagem está no logos

que é uma síntese de três ideias: fala/palavra,

pensamento/ideia e realidade/ser. Logos é a palavra racional

em que se exprime o pensamento que conhece o real.

Assim, discurso é o uso de argumentos e/ou provas,

pensamento; raciocínio e/ou demonstração da realidade; as

coisas e/ou nexos com as ligações universais e necessárias

entre os seres.

As palavras são conceitos ou ideias, estando

referidas ao pensamento, à razão e à verdade. Essa

dimensão da linguagem como mythos e logos explica o

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343

Leno Francisco Danner (Org.)

porquê, na sociedade ocidental, de podermos nos

comunicar e interpretar o mundo sempre em dois registros

contrários e opostos: o da palavra solene, mágica, religiosa,

artística, e o da palavra leiga, científica, técnica, puramente

racional e conceitual. Por isso que muitos filósofos da

ciência afirmam que uma ciência nasce quando uma

explicação que era religiosa, mágica, artística, mítica cede

lugar a uma explicação conceitual, causal, metodológica,

demonstrativa, racional, isto é, quando se passa de mythos

para logos.

A FILOSOFIA QUESTIONADORA

O ensino da filosofia no ensino fundamental e

médio tem o papel de desenvolver no aprendiz uma

“atitude filosófica”, ou seja: uma atitude investigativa,

interrogativa, que pergunte o quê, como e por quê a coisa, a

ideia ou o valor é, formando espíritos livres e reflexivos,

capazes de analisar e resistir às diversas formas de

persuasão e de convencimento e assumir suas

responsabilidades face às grandes interrogações

contemporâneas, notadamente no domínio da ética.

Contudo, se esta coisa, ideia ou valor existe, como é que é.

Assim, é preciso questionar o que é pensar, como é pensar

e porque há o pensar; interrogando sempre a si mesmo, o

mundo e as verdades, afirma Ferreira,

O educador Josué Candido, citado por Ferreira,

defende a Filosofia como produtora de mudanças no

próprio sujeito; é a Filosofia do “conhece-te a ti mesmo”

de Sócrates, cuja função maior é oferecer ao aprendiz a

possibilidade de refletir sobre suas formas de pensar, sentir

e agir e de submetê-los ao crivo da argumentação dos

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344

Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

colegas, como exercício de convivência tolerante e

democrática. E, ainda, de desenvolver a razoabilidade -

capacidade de produzir acordos, consensos sobre uma

verdade, mesmo que provisórios, apesar de termos

interesses e condições socioculturais diversas –, mantendo,

assim, uma situação dialogal acordada.

Nesse sentido, o papel da Filosofia é o de

preencher a lacuna entre o “pensar e o agir”, formando

cidadãos que saibam ouvir, dialogar ativamente e, acima de

tudo, que tomem decisões e realizem julgamentos, os quais

estejam preparados para colocarem em prática. Como

vemos normalmente, as pessoas crescem aceitando os

papéis sociais que lhes são atribuídos, sem jamais

questionarem seu valor e seu por quê.

Segundo os PCN – Parâmetros Curriculares

Nacionais, o que se espera da escola é que esse paradigma

seja quebrado, ou seja, que a escola desenvolva cidadãos

críticos e autônomos. Mas o que se vê geralmente é uma

escola com explicações prontas, onde as normas são aceitas

sem discussão, o que pode levar à estagnação. Disciplinas

estanques, engessadas, desarticuladas e desconectadas, com

conteúdos distantes da realidade do aprendiz, fazem parte

do cotidiano, levando-o a deixar de espantar-se diante das

coisas, de interrogá-las e o, que é pior, tornando-o uma

pessoa pouco exigente, conformada, que aceita respostas

prontas. A escola não está ensinando a pensar, a questionar

e a refletir – habilidades que são princípios para a

transformação e a permanente possibilidade de mudanças.

O filósofo norte-americano Matthew Lipman

apresenta uma proposta pedagógica para incorporar ao

currículo escolar a disciplina de Filosofia para Crianças,

partindo do pressuposto básico de que a educação dita

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345

Leno Francisco Danner (Org.)

“tradicional”, centrada na transmissão de conhecimentos,

na autoridade do professor e na noção de aprendizagem

como absorção de informações, é incapaz de atingir o

estímulo ao desenvolvimento da capacidade de pensar do

aprendiz. Para tanto, apresenta um modelo para substituir

aquele, ou seja, “educação para pensar”, segundo a qual o

ensino é resultado de um processo de investigação do qual

o professor, despido de sua infalibilidade, participa apenas

como orientador ou facilitador, pois o enfoque não está na

“aquisição de informações”, mas na “percepção das

relações contidas nos temas investigados”.

O ensino da filosofia permite inserir-se não como

disciplina ornamento, exaltação do espírito ou assessoria

metodológica, mas enquanto disciplina dotada de

pertinência, densidade e constância próprias, capaz de

dialogar com outras disciplinas e contribuir para reafirmá-

las enquanto momentos do processo de formação orgânico,

cumulativo criativo e crítico que verdadeiramente

chamamos de educação. E, para chegar-se a essa educação

completa, a transdisciplinaridade se apresenta como a teoria

do conhecimento que dialoga com as diferentes áreas do

saber, propondo uma nova atitude, uma assimilação de uma

cultura, uma arte, no sentido da capacidade de articular a

multirreferencialidade e a multidimensionalidade do ser

humano e do mundo – e, para tanto, se apresenta a análise

do discurso como uma das facetas articuladoras.

CONTEXTO HISTÓRICO E OS

FUNDADORES DA ANÁLISE DO DISCURSO

A Análise do Discurso de linha francesa, doravante

chamada de AD, foi fundada no final dos anos 1960 por

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346

Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

Michel de Pêcheux e tem demonstrado ser um campo de

pesquisa muito dinamizador e fértil.

A AD surgiu na conjuntura política e intelectual

francesa, marcada pela conjunção entre filosofia e política,

já com um campo transdisciplinar, pois atravessou

fronteiras e movimentou o campo das ciências humanas

(linguística, história, sociologia, filosofia, psicologia,

antropologia, política) constituindo-se hoje em uma

disciplina transversal.

Os principais estudiosos da AD reuniram reflexões

sobre texto e a história, resultando daí um a análise textual

que envolvia a linguística, o marxismo e a psicanálise.

Saussure-Max-Freud são as três balizas da proposta de

Pêcheux, situando a AD em três regiões do conhecimento:

a) Na linguística – com a problematização do corte

saussureano – centralizando a análise na semântica, com a

ideia da não-transparência do sentido – teoria linguística.

b) No materialismo histórico – por meio da releitura

altusseriana de Marx – com a ideia de que há um real na

história que não é transparente para o sujeito, pois ele é

assujeitado pela ideologia – teoria da sociedade.

c) Na psicanálise – por meio da releitura lacaniana de

Freud – com a ideia do sujeito na sua relação com o

simbólico – teoria do inconsciente.

Esse triplo assentamento traz consequências

teóricas e metodológicas: a forma material do discurso é, ao

mesmo tempo, linguístico-histórica, enraizada na História

para produzir sentido; a forma do sujeito é ideológica,

assujeitada, não psicológica, não empírica: a ordem do discurso

remete ao sujeito na língua e na História; o sujeito é

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347

Leno Francisco Danner (Org.)

descentrado, tem a ilusão de ser fonte, mas o sentido é um já-

lá, um dito antes em outro lugar; a busca dos vestígios – da

história e da memória – no discurso, e a consequente inter-

relação: língua, história e discurso.

Michel Pêcheux (França, 1938-1983) foi fortemente

influenciado pelos conceitos de ideologia, de Althusser,

especialmente pela sua Teoria dos Aparelhos Ideológicos do

Estado, pelas ideias de Foucault, em Arqueologia do Saber e

por Lacan. Assim, a escola francesa não surgiu para

preencher os espaços vazios, mas de um cruzamento de

interesses de diversas ordens, pois os estudos sobre o

discurso político, efetuado por linguistas e historiadores,

com uma nova metodologia que associava a linguística

estrutural e uma teoria da ideologia.

Michel Foucault (França, 1926-1984) problematiza

sobre a ciência histórica, suas descontinuidades, sua

dispersão, que resultará na formação discursiva (FD) na

discussão entre saberes e os micros poderes na

preocupação com a questão da leitura, que é o dispositivo

que desencadeia esse processo de transformação na

concepção do objeto de análise do discurso. Foucault

define a FD como “um conjunto de regras anônimas, históricas,

sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram uma

determinada época, para uma área social, econômica, geográfica ou

linguística, dada as condições de exercício da função”.

Mikahil Bakhtin (Rússia, 1895 – 1975) nos dá a

ideia da heterogeneidade, do dialogismo, da inscrição da

discursividade em um conjunto de traços sócio-históricos,

em relação ao qual todo sujeito é obrigado a se situar.

Segundo Mussalin e Bentes (2009), é a formação ideológica

que regula o que o sujeito pode ou não dizer, mas com a

ilusão de ser fonte do discurso.

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348

Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

Bakhtin era o teórico da linguística e da literatura e

viveu na Rússia - stalinista, motivo pelo qual sua obra,

Marxismo e Filosofia da Linguagem, escrita em 1929, só foi

traduzida no lado ocidental no final da década de 60. O

referido teórico é conhecido primeiramente na teoria da

literatura com a obra Problemas da Poética de Dostoiévisky

(1963); Estética e Teoria do romance (1975); Estética da criação

verbal (póstumo, 1975). É nesse período que ele influencia

os franceses da Análise do Discurso e a linguística vai

descobrir o grande teórico bem mais tarde, nos anos 90,

pelos seus conceitos de “gênero” e “dialogismo”.

Michel De Certeau (França, 1925-1986), pensador

de inteligência brilhante e não conformista, aparece como

teórico da Nova História, com a publicação de seus livros

A invenção do cotidiano: artes de fazer (1990) e A invenção do

cotidiano: morar, cozinhar, de onde vêm as propostas de

análises dos discursos do cotidiano, a reflexão sobre a

escrita da história e a emergência das resistências,

contribuiu nas áreas de Filosofia, Letras clássicas, História e

Teologia. Pesquisador da história dos textos místicos, desde

a Renascença até a era clássica, interessa-se só pelos

métodos da antropologia da Linguística, como os cânones

de uma disciplina rígida e censurada por colocar em dúvida

a forma da escola francesa de História. Sua principal

contribuição foi questionar a suposta passividade dos

consumidores. Ele acreditava na criatividade das pessoas

ordinárias; uma criatividade oculta num emaranhado de

astúcias silenciosas e sutis, eficazes, pelas quais inventa para

si mesmo uma “maneira própria” de caminhar pela floresta

dos produtos impostos.

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Leno Francisco Danner (Org.)

DISCURSO, SUJEITO E SENTIDO

A questão do sujeito é uma das fundamentais na

AD e, por isso mesmo, a mais polêmica. A ideia básica é a

de que há algum tipo de relação entre aquele que fala e o

que ele fala. Assim, poderíamos dizer que o sujeito é

histórico e atua conforme a ideologia presente. Já que as

condições são condicionantes, é pela explicitação do papel

ativo do sujeito que se poderá explicar porque as coisas

foram como foram. Caso contrário, seria admitir só o

previsível.

No resultado da relação com a linguagem e a

história, o sujeito do discurso não é totalmente livre, nem

totalmente determinado por mecanismos exteriores; o

sujeito é constituído a partir da relação com o outro: ele

estabelece uma relação ativa no interior de uma dada

formação discursiva (FD); assim como ele é determinado,

ele também determina e afeta em sua prática discursiva.

Para a AD, o centro da relação discursiva não está nem no

eu nem no tu, mas no espaço discursivo criado entre

ambos. O sujeito só constrói sua identidade na interação

com o outro e o espaço dessa interação é o texto; logo, o

sentido se estabelece no espaço discursivo pelos dois

interlocutores. Nem o sentido, nem o sujeito são dados a

priori, mas são construídos no discurso.

Toda atividade de linguagem é um processo

marcado pela inscrição do sujeito. Dentre os componentes

que devem ser focalizados, estão aqueles ligados à presença

dos traços linguísticos que instauram a subjetividade. A

noção de subjetividade tem raízes antigas e está inserida

como preocupação dos filósofos e, como os estudos da

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

linguagem nasceram de suas reflexões, é difícil falar sobre

subjetividade sem passar primeiro pela Filosofia.

Chauí (1976), num artigo intitulado “A destruição

da subjetividade na filosofia contemporânea”, afirma que o

pensamento contemporâneo contesta um certo conceito e

um certo uso da subjetividade. Que conceito de

subjetividade é esse que se recusa hoje e sobre cujo avesso

se constitui uma moderna versão? Para responder a essa

questão, Chauí afirma:

Os filósofos sempre exigiram um ponto

fixo como condição inicial do pensamento, ponto

fixo capaz de dar conta da existência das coisas, dos

homens e da totalidade do conhecimento de

ambos. Para o filósofo grego este ponto fixo é o

SER, princípio da existência e da inteligibilidade do

real. O conhecimento aparece como um

desvelamento do SER na sua inteligibilidade. De

sorte que o ato de conhecer é um reconhecer (ou

lembrar, como diz Platão) o sentido já inscrito nas

próprias coisas por essa força produtora.

Para o filósofo grego, conhecer era, portanto, um

ato de reconhecimento. O SER tinha uma existência

autônoma, era algo exterior ao homem a quem cabia

apenas uma função de reconhecimento e não de construção

do saber: desloca a unidade do SER para fora do mundo

com seu conceito de ideias inatas, verdades eternas, criação

divina. Deus é o único que cria, o homem apenas imita.

Em Deus tem-se a criação em primeiro grau, no artesão a

criação em segundo grau, no artista a criação em terceiro

grau. Esses três níveis refletem três graus de afastamento

da verdade. Nesse estágio na se apresenta a questão da

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Leno Francisco Danner (Org.)

subjetividade como processo produtor da verdade, havia só

o reconhecimento.

Chauí (1976) observa que o quê caracteriza o

advento da subjetividade na filosofia é o deslocamento do

ponto fixo do SER para a Consciência. E o que é

Consciência?

É uma capacidade, ou melhor, um poder

de síntese, uma atividade que reconhece ou que

produz a partir de si mesma o sentido do real, pela

produção de ideias ou conceitos dos objetos e dos

estados interiores; estas atividades epistemológicas

e esse poder definem aquilo que a Filosofia

denomina SUJEITO.

Então vemos o deslocamento de um ponto fixo

situado no SER, portanto, fora do homem, para o seu

interior. O cogito ergo sum, isto é, o “penso, logo existo” de

Descartes constitui o fundamento de uma filosofia

humanista que tem como ponto de partida e como

referencial privilegiado o homem interior, isto é, a

SUBJETIVIDADE.

Assim, descobre-se que há uma instância interior de

percepção, de revelação da verdade, que é a consciência: o

ser que eu sou captado pelo ato de pensar. A verdade não

é simplesmente reconhecida, mas produzida pelo homem

nesse processo de percepção de si próprio. O “eu penso” é

a primeira verdade, a de acesso mais imediato e o ponto de

partida de todas as outras evidências que serão produzidas

por esse mesmo “eu penso”.

É assim que a filosofia humanista ou da

subjetividade erige a consciência como a primeira certeza

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352

Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

fundadora de todas as outras. A subjetividade passa a

funcionar como uma espécie de máquina de

reconhecimento e de produção de saber.

Dessa forma, o nascimento da subjetividade vai

implicar uma transformação no conhecimento da realidade:

o real passa a ser apreendido pela consciência. A realidade

deixa de ser algo que se manifesta por sua força interna e

que possui em si mesma a inteligibilidade. Há uma

separação entre sujeito e objeto, tidos agora como termos

independentes. Considerado como uma exterioridade, o

objeto passa a ser algo que é representado por um sujeito

que lhe confere sentido. A noção de representação é

entendida como uma operação por meio da qual o sujeito

se apropria do objeto, de algo que lhe é heterogêneo e,

convertendo-o em ideia, torna-o homogêneo à consciência.

Do SER do filósofo grego, passa-se para a

CONSCIÊNCIA, a certeza primeira, fonte das demais.

Assim, em análise o texto Êutifron, que é um dos

diálogos de Platão que retrata os últimos episódios de

Sócrates. Nele, Sócrates encontra um adivinho, que dá

nome ao diálogo, em seu caminho para o fórum para tomar

ciência da acusação de Meleto, moço pouco conhecido nas

redondezas, que o levariam à morte. Fica sabendo que

Êutifron estava movendo um processo contra o próprio

pai, acusando-o de ter matado um servo, que por sua vez

teria matado um homem. Sócrates faz aos gregos uma

crítica quanto à concepção de piedade, a qual tem como um

dos eixos de discussão a noção de piedade para os gregos,

que a concebem como uma espécie de negócio em troca de

louvações,

Sócrates, como cidadão ateniense, era respeitador

das leis do Estado e sentia-se comprometido com as

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353

Leno Francisco Danner (Org.)

questões morais que envolviam o homem e a sociedade, e,

por essa perspectiva, buscava desenvolver sua filosofia a

partir de dois preceitos: “Conhece-te a ti mesmo” e “Sei

que nada sei”. Sendo o primeiro a sua “missão”, a saber, a

busca do conhecimento de si, um exercício constante em

busca da verdade; já o segundo consiste no início do

caminho para a sabedoria, que só através da filosofia era

possível. Por isso, a cada conhecimento obtido, uma

nova ignorância se abre aos nossos olhos. Isso não quer

dizer a impossibilidade da verdade, mas sim um exercício

constante para alcançar a própria verdade, sempre através

da linguagem, tendo em vista o fato de ser a verdade

sempre maior do que nós, uma vez que para Sócrates a

sabedoria plena é um atributo que compete aos deuses que

são infinitamente superiores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Assim, a AD permite a transdisciplinaridade como

uma compreensão de processos, é um diálogo entre as

diferentes áreas do saber e uma aventura do espírito,

portanto é uma nova atitude; é assimilação de cultura, de

arte, no sentido da capacidade de articular a

multirreferencialidade e a multidimensionalidade do ser

humano e do mundo. A transdisciplinaridade implica numa

postura sensível, intelectual e transcendental perante si

mesmo e perante o mundo; implicando também em

aprendermos a decodificar as informações provenientes

dos diferentes níveis que compõem o ser humano e como

eles repercutem uns nos outros. A transdisciplinaridade

transforma nosso olhar sobre o indivíduo, o cultural e o

social, remetendo para a reflexão respeitosa e aberta sobre

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354

Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

as culturas do presente e do passado, a ocidental e a

oriente, buscando contribuir para a sustentabilidade do ser

humano e da sociedade.

A palavra transdisciplinaridade em sua etimologia –

trans é o que está ao mesmo tempo entre as disciplinas,

através das diferentes disciplinas e além de todas as

disciplinas, remetendo também à ideia de transcendência.

O senso comum intui que todas essas inter-relações correm

no mundo e na vida. No entanto, uma vez que sempre

seremos principiantes na compreensão, na incorporação e

na implementação dessas inter-relações, devido à sua

imensa complexidade a respeito das dimensões internas do

ser humano, a transdisciplinaridade traz sua própria

contribuição integradora.

Os três pilares da transdisciplinaridade permitem

que essa compreensão também encontre seu lugar na

pesquisa e na aplicação, pois nos remete a um olhar

significativo que emerge de um diálogo constante ente a

parte e o todo, buscando encontrar os princípios

convergentes entre todas as culturas, para que uma visão e

um diálogo transcultural, transnacional e transreligioso

possam emergir, o que leva também à relativização radical

de cada olhar, mas sem cair no relativismo, uma vez que a

transdisciplinaridade nos permite encontrar o mundo

comum, a concordia mundis, e o terceiro incluído entre cada

par de contraditórios.

Assim, a Análise do Discurso trespassa a

todas disciplinas na medida em que desenvolve

continuamente a reflexão crítica, cria pontes entre a teoria e

a prática, implementa nos mais diversos campos e as avalia,

pois só assim poderá corrigir continuamente sua direção e

seus parâmetros, enriquecendo-se e encurtando os

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Leno Francisco Danner (Org.)

caminhos para a resolução de problemas, buscando a

possível verdade que diga respeito à sustentabilidade da

sociedade e do ser humano.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução à análise

do discurso. 2ª reimpressão da 7ª edição. Campinas, SP:

Unicamp, s/d

CHAUÍ, Marilena. A destruição da subjetividade na

filosofia contemporânea. In: Jornal de Psicanálise. A.8,

1976, n.10, São Paulo

_______________. Convite à Filosofia. São Paulo:Ática,

2000.

EDUCAÇÃO E TRANSDISCIPLINARIDADE II –

Coordenação Executiva do DETRANS. São Paulo:

TRION, 200

FERREIRA,Vanja. A proposta de ensino da filosofia

no ensino fundamental e médio.Disponível em:

http://www.portaleducacao.com.br/pedagogia/artigos/26

57/a-proposta-de-ensino-da-filosofia-no-ensino-

fundamental-e-medio. Acesso em 28/04/12.

PLATÃO . Diálogos. tradução de Jaime Bruna. 5ª ed. São

Paulo: Cultrix, s/d

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

Literatura como plano de

imanência para o ensino de

Filosofia

Prof. Dr. Vagner da Silva132

Um dos principais elementos distintivo que a

Filosofia possui em relação a outras formas de pensamento

é seu interesse por elaborar um conhecimento profundo e

sistemático sobre o real. Poderíamos, simplificando

bastante esta busca, dizer que é da natureza da Filosofia a

pergunta pela realidade, pergunta que se desdobra em

outras: o que é o real? Como ele se efetiva? É possível

conhecê-lo? Como? E tantas outras.

Sem a busca pelo real e a tentativa de construir um

discurso sólido sobre suas características e as relações de

nossa espécie com ele, sem isso, dificilmente se poderia

falar em Filosofia. Assim sendo, qualquer trabalho

filosófico deve esforçar-se por buscar a construção de um

discurso sobre a realidade, seja a realidade total ou a

realidade do objeto em análise, ou ainda, uma crítica da

própria noção de realidade e de seus conceitos.

132 Professor da Universidade Federal de Rondônia. Mestre em

Filosofia e doutor em Filosofia da Educação.

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Leno Francisco Danner (Org.)

Falar de ensino de Filosofia nas escolas não é

diferente. É necessária também uma busca pelo real, na

tentativa de compreender melhor o problema e esclarecer

algumas partes confusas de sua realidade. Devido às

limitações implícitas à execução de um trabalho como este,

nossas perguntas serão limitadas a uma única: quais

problemas históricos estão envolvidos na constituição do

ensino de Filosofia nas escolas do ensino médio (públicas

ou particulares) no Brasil em um problema filosófico?

O objetivo deste trabalho não é oferecer respostas a

esta pergunta, elas já são bastante conhecidos em

decorrência do trabalho dos poucos, mas persistentes,

grupos de pesquisa sobre ensino de Filosofia que há no

Brasil; todavia, sua resposta oferece-nos um bom caminho

para que possamos chegar ao problema efetivo que este

trabalho se propõe a discutir.

O que queremos aqui é oferecer uma possibilidade

a mais para o ensino de Filosofia, que toma como

colaboradora do ensino de Filosofia a Literatura, sem,

contudo, perder as especificidades típicas do pensar

filosófico. Deste modo, não é de se estranhar que este

artigo tenha caráter prescritivo, pois o objetivo dele é dar

sugestões aos professores de Filosofia que atuam no ensino

médio e fundamental, mais especificamente no primeiro,

para operacionalizar suas aulas. São sugestões didáticas

embasadas na experiência e em pesquisas desenvolvidas ao

longo de meu curso de doutorado.

Filosofia nas escolas: um problema histórico

Tradicionalmente a Filosofia fez parte do currículo

escolar brasileiro. Inicialmente, no período pré-republicano,

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358

Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

a educação formal era exclusiva para os filhos das famílias

abastadas brasileiras, e cabia exclusivamente à igreja e a

preceptores privados. Foi já no período republicano da

história brasileira que o Estado se interessou pela formação

escolar básica das crianças. Embora, claro, até a

universalização da escola pública passaram-se muitas

décadas.

Em todo este período a Filosofia foi disciplina

curricular obrigatória. Deixando de o ser apenas no ano de

1971, quando reformas institucionais e ministeriais (MEC)

consideraram a Filosofia como de menor interesse, por não

atender às demandas de tecnificação e profissionalização.

Nove anos depois, após diversas universidades

brasileiras, por meio de seus departamentos de Filosofia,

iniciarem um movimento de protestos, alianças e pressões

políticas, conseguiu-se o que então pareceu ser uma vitória:

o retorno da Filosofia ao currículo escolar, porém não mais

como disciplina obrigatória, mas como uma disciplina

eletiva, que caberia à direção das escolas implementar ou

não.

Muita coisa se oculta por trás deste vai e vem da

Filosofia, alguns acham, ingenuamente, que o governo

militar temia a Filosofia por sua capacidade de formar

posicionamentos críticos em seus adeptos, porém a retirada

da disciplina do currículo escolar obedeceu a questões

menos abrangentes e mais pontuais: o Brasil ensaiava um

processo de industrialização e tecnificação de sua

economia, logo, era necessário que os alunos que se

formassem no ensino médio estivessem mais aptos a

ingressarem no mercado de trabalho como mão de obra

para muitas linhas de montagem que começavam a se

espalhar pelo país, em especial no Sul e Sudeste.

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Leno Francisco Danner (Org.)

A Filosofia foi apenas uma vítima colateral de uma

reforma tecnicista no ensino, também outras disciplinas

como História e Literatura perderam espaço: embora não

tenham sido eliminadas tiveram suas cargas horárias

reduzidas. Assim foi possível inserir no currículo, como

disciplinas obrigatórias a Química e a Física, e também

aumentar a carga horária da disciplina de Matemática.

Após a promulgação da constituição de 1988, com

as discussões para a criação da Lei de Diretrizes e Bases da

Educação Nacional (LDB) teve-se a impressão de uma

vitória da Filosofia, e que esta voltaria a figurar como

disciplina obrigatória nos currículos escolares brasileiros;

todavia, após uma série de manobras parlamentares, o

então senador Darcy Ribeiro conseguiu modificar o projeto

inicial da LDB, que já havia sido tramitado e aprovado na

Câmara dos Deputados e enviado ao senado sob o registro

PLC 101/93, e em 31/08/1995 o novo projeto de LDB,

conhecido como Substitutivo Darcy Ribeiro foi aprovado

no senado, em substituição ao projeto original, tornando-se

a lei n. 9.394/96.

O substitutivo Darcy Ribeiro riscou do projeto

original da LDB a obrigatoriedade das disciplinas de

Filosofia e Sociologia para o ensino médio brasileiro, e

colocou em seu lugar a necessidade de que os alunos do

ensino médio tivessem disciplinas que lhes dessem

conhecimentos de Filosofia e Sociologia. Na LDB, a

palavra Filosofia aparece uma única vez, no artigo 36, item

III, inciso terceiro do primeiro parágrafo, seção IV (Do

Ensino Médio). Este referido parágrafo diz o seguinte: “Os

conteúdos, as metodologias, e as formas de avaliação serão

organizados de tal forma que ao final do ensino médio o

educando demonstre:” e o inciso no qual aparece a palavra

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

Filosofia complementa o parágrafo acima: “domínio dos

conhecimentos de Filosofia e de Sociologia necessários ao

exercício da cidadania”.

Para a implementação da LDB, o Ministério da

Educação (MEC) criou os Parâmetros Curriculares

Nacionais, que deveriam servir como instrumentos,

diretrizes e regulamentação do ensino. Aqui surge um

problema que precisa ser observado, e que diz respeito ao

problema central deste trabalho: de acordo com a LDB o

ensino dos conteúdos de Filosofia tornou-se obrigatório

para o ensino médio, mas não existe um PCN específico

para o ensino de Filosofia. Os temas de Filosofia aparecem

no PCN conhecido como Temas Transversais, que foi

apresentado em 1997 e teve seu módulo temático

apresentado em 1998, para as séries de 5ª a 8ª.

Os Temas Transversais estão divididos em 7 módulos

ou capítulos, que são: 1 – Apresentação dos Temas

Transversais; 2 – Ética (conteúdo propriamente filosófico,

embora de debate e domínio público de outras disciplinas

do conhecimento humano); 3 – Pluralidade Cultural

(conhecimento passível de discussão filosófica, mas com

itens no PCN mais adequados à sociologia, antropologia e

história); 4 – Meio Ambiente (o módulo apresenta temas

passíveis de discussão e análise filosófica, como o item

“Crise ambiental ou crise civilizatória?”; 5 – Saúde (o

capítulo se afasta da Filosofia e radica sua discussão na

biologia e ciências médicas); 6 – Orientação Sexual (o

módulo poderia ter uma abordagem filosófica ou

psicológica, mas os capítulos orientam-se

predominantemente por questões biológica, e a sexualidade

vira reprodução, a única exceção é o tópico Relações de

Gênero, com uma aproximação maior da sociologia; 7 –

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Leno Francisco Danner (Org.)

Trabalho e Consumo (o tema traz alguns debates

filosóficos, como “Trabalho e consumo na sociedade

brasileira” ou “Consumo, meios de comunicação de

massas, publicidade e vendas”.

A resolução do Conselho Nacional de Educação

que tornou o ensino de Filosofia obrigatório para o ensino

médio criou a emergência do ensino de Filosofia nas

escolas, mas ao mesmo tempo não foi criado um PCN de

Filosofia, e as discussões filosóficas presentes no Temas

Transversais são sempre entrecortadas por outros interesses

que não são os interesses do pensar filosófico.

Dos quatro grandes campos de estudo da Filosofia:

ética, estética, ciência e política, apenas a política e a ética

estão presentes no Temas Transversais, e no PCN de artes

também aparecem algumas discussões relativas à estética; e

a ciência, importantíssimo campo de estudos da Filosofia,

fica de fora.

Além disso, a visão que se tem de ética no Temas

Transversais é totalmente instrumental, ou seja: a Filosofia

propõe discussões e depois diz o que é certo e o que é

errado, não há um interesse claro em levar o aluno a

desenvolver suas próprias regras de conduta (verdadeiro

sentido da ética), mas, pelo contrário, em aceitar como as

melhores, após alguns debates, as regras que já estão postas

pela sociedade.

Se não há diretrizes claras nos PCN’s para o ensino

de Filosofia, como o professor do ensino médio deve

proceder? Este problema tem feito com que diversos

professores e grupos de pesquisa no Brasil desenvolvam

materiais auxiliares e subsidiários para os professores de

Filosofia no ensino médio. Estes materiais, todavia,

esbarram em um problema central: como ensinar Filosofia

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

na escola? Através da história da Filosofia ou por meio dos

problemas filosóficos?

Ensino de Filosofia nas escolas: um problema

metodológico.

Um dos primeiros problemas com o qual esbarra o

professor de Filosofia quando busca ensinar Filosofia para

o ensino médio é o problema do método. Não havendo

PCN de Filosofia, e o PCN Temas Transversais tratando de

tudo, menos de Filosofia, o professor já sabe que está

sozinho e sem um apoio didático específico. Algumas

escolas (em especial as particulares) adotam alguns livros ou

apostilas, mas eles não são um método ou programa de

ensino de Filosofia, mas muito mais um amontoado de

conteúdos.

O problema se agrava quando se retoma a já

bastante conhecida frase de Kant de que não se ensina

Filosofia, mas a filosofar. O que leva muitos professores a

pensarem que têm como missão tornar os alunos filósofos.

Mas o que é um filósofo? A Filosofia não é uma profissão

de carteira assinada, pelo menos não foi até agora. O

filósofo é uma pessoa que pensa a sua própria realidade e,

quando encontra problemas, tenta oferecer respostas

satisfatórias a estes problemas. Deste modo, ensinar a

filosofar, como diz Kant, é ensinar o aluno a analisar sua

própria realidade, detectando eventuais problemas e

buscando resolvê-los. Com isso concordam Gallo e Kohan:

(...) a própria prática da Filosofia leva consigo o

seu produto e não é possível fazer Filosofia sem

filosofar, nem filosofar sem fazer Filosofia (...) porque a

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Leno Francisco Danner (Org.)

Filosofia não é um sistema acabado nem o filosofar

apenas a investigação dos princípios universais

propostos pelos filósofos (Gallo & Kohan, 2000, p.

184).

Se ensinar a filosofar é mais ensinar a pensar do que

ensinar a conhecer a história do pensamento, então

percebemos que a tarefa de ensinar Filosofia no ensino

médio não é impossível. É claro que essa ideia não exclui

de si a possibilidade de que o aluno do ensino médio

conheça a história da Filosofia, seus principais nomes,

correntes etc., todavia este não é o ponto central deste

ensino, mas um elemento acessório, com isso também não

se quer questionar o método utilizado nas graduações de

Filosofia, pois elas têm sua especificidade.

Mais interessante, então, do que a história da

Filosofia seria uma análise dos problemas filosóficos, que

não são, verdadeiramente, problemas filosóficos, mas

problemas humanos. Os filósofos especializaram e

esmiuçaram o problema, mas isso não modificou sua

natureza de problema: um impasse que afeta a todos de

modos diversos.

Tomando, então, o ensinar Filosofia como o

ensinar a filosofar, e o ensinar a filosofar como um pensar

sobre a própria realidade, detectando seus problemas e

buscando soluções ou melhores explicações para ele, é

necessário que nos dirijamos para um pensamento que veja

a Filosofia como criação de conceitos e os conceitos como

chaves de interpretação/solução de problemas. É claro que

estamos falando do conceito de Filosofia proposto por

Gilles Deleuze e Jacques Derrida.

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

Filosofia como criação de conceitos

Para Deleuze e Guattari, a Filosofia se define pela

sua capacidade criadora. Mas o que a Filosofia cria não é

qualquer coisa; o que ela cria as outras disciplinas do

conhecimento humano não criam – conceitos.

Porém, se a Filosofia é a criação de conceitos,

conceituar os conceitos será sem dúvida o ponto mais

difícil deste trabalho. Em especial se estamos habituados

com conceitos que são, na verdade, definições.

A abordagem de Deleuze e Guattari no O que é a

Filosofia? é bastante interessante: os filósofos sabiam da

gravidade e dificuldade de sua empreitada, sabiam que se

dissessem: “O conceito é isso”, ou “O conceito é aquilo”, o

pequeno verbo de ligação os trairia, pois um conceito não é

uma definição e também não é aquilo que se diz dele, pois

o conceito é sempre mutante.

Se afirmo que o conceito de bem “é o cumprimento

da lei moral”, fechei o conceito de bem de tal forma que

dentro dele não cabe mais nada, pois logicamente uma

coisa não pode ser coisas distintas simultaneamente, e ainda

que tenha que explicar, no exemplo acima, o que é a lei

moral, o conceito de bem já está terminantemente perdido,

dele não se pode extrair mais nada. Um conceito deste tipo

mais imobiliza o pensamento do que o permite avançar e

devir, como afirmaram os pensadores franceses:

[...] um conceito tem sempre componentes

que podem impedir a aparição de outro conceito,

ou, ao contrário, que só podem aparecer ao preço

do esvanecimento de outros conceitos. Entretanto,

nunca um conceito vale por aquilo que ele impede:

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Leno Francisco Danner (Org.)

ele só vale por sua posição incomparável e sua

criação própria (Deleuze e Guattari, 1992, p. 44).

Eis o primeiro ponto para a compreensão do que

são os conceitos: sua função. Os conceitos são criados para

solucionar problemas. Todavia muitos problemas ainda não

são claros, ainda não foram bem colocados, bem explicados

e bem entendidos. Os conceitos não servem apenas para

resolver problemas, mas também para criá-los, para clareá-

los, e para defini-los.

Os conceitos, porém, não têm apenas uma função,

têm também uma formação. Podemos dizer, seguindo

Deleuze, que a formação dos conceitos é histórica e

relacional, ou seja, os conceitos não surgem como se

fossem um fenômeno necessário de alguma coisa em si ou

de alguma ideia pura. Os conceitos são criados a partir de

redes conceituais, agrupam-se a outros conceitos. Muitos

destes conceitos, ou melhor, as palavras que os

representam, já existem, e o que cada filósofo faz é dar-lhes

outro(s) sentido(s) diferente(s) do sentido anterior.

Sem dúvida, é difícil compreendermos o que são os

conceitos, e ainda assim mantê-los abertos e amplos,

propícios ao pensamento. Porém Deleuze nos oferece uma

ideia de conceito que facilita sua compreensão, ou ao

menos nos permite avançar alguns centímetros: o conceito

como um rasgo no caos ou, como prefiro dizer, como áreas

e/ou regiões de colonização do caos. O conceito interfere

sobre o caos permitindo uma ordenação do mesmo,

possibilitando fundar sobre um pântano de areias

movediças alguma realidade, como afirma Gallo:

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366

Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

[...] a criação de conceitos é, necessariamente,

uma intervenção no mundo, ela é a própria criação de

um mundo. Assim, criar conceitos é uma forma de

transformar o mundo; os conceitos são ferramentas que

permitem ao filósofo criar um mundo à sua maneira

(Gallo, 2003, p. 41).

A ideia do conceito como colonização do caos,

criando novas realidades, é bastante adequada ao

pensamento do filósofo francês, mas também podemos

recorrer ao berço da Filosofia para vermos como faz

sentido esta ideia. Para os gregos, o kháos não era apenas a

imensidão do tempo e do espaço, era também a ausência de

ordem e sentido, começo e fim de tudo o que existe. O

vocábulo grego que se opunha a caos era logos, que não

representava, por sua vez, apenas a ordem e a definição dos

espaços e do tempo, mas também a razão, o senso e a

linguagem; que possibilita os elementos anteriores, e que

não pode prescindir das palavras, a partir das quais os

conceitos também são formados.

O plano de imanência

Um segundo elemento componente da Filosofia é o

plano de imanência, ele é o chão sobre o qual se enraízam e

crescem os conceitos. Todavia “é essencial não confundir o

plano de imanência e os conceitos que o ocupam” (Deleuze

e Guattari, 1992, p. 55). O plano de imanência é pré-

conceitual, Deleuze disse mesmo que é pré-filosófico, ele é

a abertura e nomeação de mundo necessárias para que a

Filosofia comece com seus conceitos. Heidegger, falando

sobre a abertura de mundo que os poetas e escritores criam

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Leno Francisco Danner (Org.)

para iniciar seu poetar, elaborou o conceito de Lichtung

(clareira). Para o filósofo de Ser e tempo, cada poeta, cada

escritor, ao iniciar sua obra, abre uma clareira no mundo.

Como se o mundo fosse uma grande e densa selva, na qual

o poetar funda uma realidade simplesmente ao dizer-se. O

perfeito exemplo disso encontramos em Guimarães Rosa,

em seu Grande Sertão: veredas.

Quando no início do livro é dita a primeira palavra

“nonada”, o que se tem é uma nomeação de mundo, a

criação de uma Lichtung, o mesmo quando no primeiro

parágrafo de Cem Anos de Solidão, Gabriel García Marques

descreve Macondo. Se falássemos de Filosofia, Macondo e

nonada seriam planos de imanência. Seriam os “espaços”

pré-filosóficos nos quais os conceitos surgem e se

enraízam.

Os Personagens Conceituais

Em uma obra filosófica os conceitos nunca são

ditos por seu autor. Não foi Rousseau quem disse toda a

riqueza e profundidade de conceitos sobre a educação

presentes em O Emílio. Assim como não foi Nietzsche

quem disse o eterno retorno pela primeira vez em A Gaia

Ciência.

Em uma obra filosófica, os conceitos são sempre

ditos por personagens conceituais. Eles são heterônimos do

autor. Isso fica claro nos romances filosóficos de Rousseau

e também nos diálogos platônicos e em Nietzsche atinge o

apogeu. Porém, há ocasiões em que as personagens

conceituais não são tão claras e evidentes. Quando lemos A

Fenomenologia do Espírito não vemos personagens conceituais

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

como as que encontramos em Rousseau ou Platão, o que

acontece então é que

(...) há também os casos em que o filósofo

não inventa heterônomos: ele é o personagem de si

mesmo. Mas é sempre o personagem o criador dos

conceitos. Como mostrou Foucault em sua

conferência intitulada “O que é um autor?”,

apresentada à Sociedade Francesa de Filosofia em

1969, o autor de um texto é uma ficção, uma

função-autor, não uma “mônada subjetiva” que se

coloque para além da obra produzida. É essa

função-autor trabalhada por Foucault que, no caso

da Filosofia, Deleuze e Guattari chamam de

personagem conceitual. O filósofo René Descartes,

por exemplo, foi um personagem criado pelo

homem René Descartes e foi esse personagem que

criou os seus conceitos (Gallo, 2003, pp. 56-7).

A Filosofia, deste modo, é quase uma ficção, o que

a impede de ser uma ficção total são seus conceitos, seu

produto final. Pois, no plano de imanência e nas

personagens conceituais, ela pouco difere da literatura.

Novos horizontes para o ensino de filosofia

Tomando por base a ideia trinitária de Deleuze e

Guatarri, de que a Filosofia é a associação entre conceitos

que se desenvolvem em um plano de imanência e são ditos

por personagens conceituais, queremos propor uma

metodologia distinta para o ensino de Filosofia nas escolas

em três etapas:

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Leno Francisco Danner (Org.)

1. Análise dos conceitos em sua realidade trinitária;

2. Operação com os conceitos;

3. Criação de conceitos.

A ideia que aqui propomos é que se use a literatura

e seus personagens respectivamente como plano de

imanência e personagens conceituais. Os conceitos são o

que aparece na tessitura do texto literário possibilitando aos

alunos perceberem como os conceitos são ditos e como são

utilizados na elucidação e solução de problemas pelos

personagens das narrativas a serem utilizadas.

O que se pretende é desenvolver um trabalho de

projeto pedagógico, de modo que o professor e os alunos,

desde o começo, saibam o que querem e até onde irão;

saibam quais conteúdos serão estudados e por quais

métodos; e saibam também, é claro, que este roteiro pode

sofrer desvios.

Deste modo, passaremos a descrever abaixo o

funcionamento deste roteiro no período de um ano letivo,

levando-se em consideração os seus quatro bimestres e

ainda um roteiro extra. Aqui daremos preferência aos

contos, e não aos romances ou novelas, pois a extensão

destes últimos dificultaria o trabalho dentro dos prazos

estipulados pelo cronograma escolar, embora se saiba claro

que isso não é impossível, há, inclusive, a possibilidade de

um trabalho de parceria com as aulas de literatura.

Escolhemos para a exemplificação cinco

textos de autores bastante conhecidos e de grande

importância literária, e que possibilitam uma abordagem

filosófica de seu conteúdo, e os dividimos dentro de

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

unidades, as quatro primeiras equivalem aos bimestres

escolares, a quinta resta como uma possibilidade extra.

UNIDADES TEXTOS BIBLIOGRAFIA

I – O problema das palavras.

Famigerado. ROSA, João Guimarães. Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s/d.

O sofista. PLATÃO. Diálogos I: Teeteto (ou do conhecimento), Sofista (ou do ser), Protágoras (ou sofistas). Tradução: Edson Bini. Bauru (SP): EDIPRO, 2007.

II – O que nos torna humanos?

Um relatório para uma academia.

KAFKA, Franz. Um médico rural. Tradução e posfácio: Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

Tratado da natureza humana (Introdução).

Hume, David. Tratado da natureza humana: uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais. Tradução Débora Danowski. São Paulo: Editora UNESP, 2009.

III – Amor e ciúmes.

O jogo da carona. KUNDERA, Milan. Risíveis Amores. Tradução: Tereza B. Carvalho da Fonseca. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, s/d.

A educação pulsional de

SILVA, Vagner. A educação pulsional de Nietzsche. Jundiaí

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371

Leno Francisco Danner (Org.)

Nietzsche (Epílogo).

(SP): Paco Editorial, 2012.

IV – Medo. O muro. SARTRE, Jean-Paul. O muro. Tradução: H. Alcântara Silveira. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, S. A., 1965.

Liberdade dramática: ética e literatura na escrita de Sartre

RUFINONI, Priscila Rossinetti. Liberdade dramática: ética e literatura na escrita de Sartre. In: KRITERION, Belo Horizonte, nº 117, Jun./2008, p. 201-218.

V – Amizade. O velho e o mar. HEMINGWAY, Ernest. O velho e o mar. Tradução: Fernando de Castro Ferro. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira S.A, s/d.

Amizade como paisagem conceitual e o amigo como personagem conceitual segundo Deleuze e Guattari.

CARDOSO JR, Hélio Rebello. Amizade como paisagem conceitual e o amigo como personagem conceitual segundo Deleuze e Guattari. In: KRITERION, Belo Horizonte, nº 115, Jun/2007, p. 33-45.

Apesar de Deleuze e Guattari afirmarem que apenas

a Filosofia produz conceitos por sua especificidade técnica,

é possível uma interpretação do texto literário como um

texto filosófico, no qual as palavras podem ser lidas como

conceitos, e não apenas como palavras. Sendo as palavras

dos textos literários, ou algumas delas, tratadas como

conceitos, é possível se tomar os personagens das

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

narrativas como personagens conceituais, ou seja, como os

encarregados de dizer os conceitos, e, se o autor do texto

não era um filósofo, nada nos impede, porém, de fazer uma

interpretação filosófica, na qual os diálogos dos

personagens ou as palavras do narrador serão vistas como

conceitos.

Os personagens da narrativa e mesmo o

narrador serão os personagens conceituais, eles dizem os

conceitos, trabalham-nos a partir dos diálogos e narrações

internas do texto e vão passo a passo esclarecendo os

problemas e buscando solucioná-los. O plano de

imanência, por sua vez, é o próprio ambiente criado pela

narrativa. Seja um lugar fictício como Macondo, cidade

criada por Gabriel García Marques em seu romance Cem

anos de solidão. Seja os sertões de Riobaldo, personagem e

narrador do romance Grande sertão: veredas de Guimarães

Rosa.

É necessário agora que o professor ou professora se

proponha a realizar um trabalho de projeto, que a cada

nova aula terá uma etapa desenvolvida, estas etapas

compreendem:

1. Leitura, explicação e interpretação dos textos com os

alunos;

2. Análise filosófica do texto, explicando aos alunos a

noção trinitária de Filosofia e explorando com eles os

conceitos, personagens conceituais e plano de imanência;

3. Avaliação.

Se for possível estabelecer uma parceria com o

professor ou professora de literatura, o professor ou

professora de Filosofia poderá solicitar ao amigo de

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Leno Francisco Danner (Org.)

docência que trabalhe com os alunos as diferenças entre

conto, novela e romance; caso tal parceria não seja possível,

é conveniente que o próprio professor de Filosofia mostre

estas distinções, isso ajudará a justificar a escolha por

contos, já que dos cinco textos aqui indicados três são

contos, e dois (O velho e o mar e O jogo da carona) são novelas

curtas, embora também sejam classificados como contos

estendidos.

A opção por contos, e não romances, é totalmente

funcional e não teórica. Ou seja, o tamanho dos contos

facilita a leitura em conjunto com os alunos na própria sala

de aula, e também facilita a aproximação dos alunos do

texto literário.

O passo a passo

O material publicado pela Secretária de Educação

Básica do MEC, e que tem por título Orientações curriculares

para o ensino médio, vl. 3, fala da necessidade de pelo menos

duas aulas semanais para a disciplina de Filosofia; o mesmo

material, porém, diz que as necessidades regionais podem

provocar modificações a esta sugestão, deixando a escolha

livre às secretarias estaduais de cada estado, e nas redes

privadas deixando a critério de cada escola ou sistema de

ensino. Deste modo, a maioria das secretarias estaduais de

educação no Brasil adotou a carga horária semanal de uma

aula, e é com este pressuposto de carga horária que

trabalharemos.

Sendo assim, o professor de Filosofia terá

aproximadamente oito aulas por bimestre, nestas oito aulas

propomos o seguinte roteiro:

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

1. Apresentação da unidade: seu tema e objetivos, os

textos a serem lidos e as discussões e objetivos a serem

buscados;

a. Aqui se deve fazer a explicação inicial sobre a noção

trinitária de filosofia.

b. Também será interessante neste momento oferecer

algumas informações biográficas sobre os autores dos

textos.

2. Leitura e discussão do texto literário:

a. O professor deverá trabalhar o significado das palavras

que os alunos eventualmente desconheçam;

b. O professor destacará palavras que sejam conceitos e

discutirá com os alunos o modo como estes conceitos

aparecem no texto, ou seja, quais personagens conceituais

se relacionam a eles e qual o plano de imanência.

c. Destacará também o ambiente em que se passa a

história, seu enraizamento propriamente dito, que forma

seu plano de imanência e a estrutura da descrição deste

plano de imanência.

3. Leitura e discussão do texto literário:

a. O professor retomará os conceitos para analisar com

os alunos quais problemas são operacionalizados por estes

conceitos, ou seja, quais problemas são expostos, quais são

explicados e quais são resolvidos.

b. Alunos e professor construirão um painel com os

conceitos, seus respectivos personagens conceituais e um

resumo breve dos problemas associados a eles.

4. Leitura e discussão do texto filosófico:

a. Aqui se repetirão os pontos “a” e “b” do item 2.

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Leno Francisco Danner (Org.)

5. Leitura e discussão do texto filosófico:

a. Aqui se repetirão os pontos “a” e “b” do item 3.

6. Comparação dos painéis criados sobre ambos os

textos.

a. O professor solicitará aos alunos que reflitam por

alguns minutos sobre os dois painéis, ressaltando que os

painéis são resultados do trabalho conjunto de toda a

turma;

b. Aqui o professor deverá ressaltar a diferença entre

linguagem filosófica e linguagem literária.

7. Debate final e avaliação:

a. Solicitar que cada aluno elabore um texto no qual

utilize os conceitos apresentados e discutidos na unidade

como chave de análise de um problema do seu quotidiano.

8. Encerramento da unidade:

a. Este é um momento sensível, no qual o professor

deverá repassar aos alunos um feedback do trabalho deles,

mostrando os pontos fracos e fortes, ressaltando

progressos e o que ainda falta ser melhorado.

b. Neste balanço final, os alunos também deverão dar o

feedback ao professor, neste momento o professor deve

estar pronto para ouvir as críticas dos alunos.

Vamos tomar como exemplo a unidade III que fala

sobre amor e ciúmes, e que traz como proposição de texto

literário a pequena novela O jogo da carona. O texto

filosófico que embasará a unidade é o epílogo da obra A

educação pulsional de Nietzsche.

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376

Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

A ação do conto utilizado nesta utilidade passa

entre um jovem casal, a moça com 22 anos e o rapaz com

28. Estão em uma viagem de férias de duas semanas,

viajando em um carro conversível, que pelo seu alto

consumo de combustível os obriga a fazer constantes

paradas para abastecimento, às vezes chega a deixá-los

parados à beira da estrada por falta de combustível.

O lugar propriamente onde os eventos se

desenvolvem é mais uma série de lugares, o local de

enraizamento da história é a própria viagem, ao longo de

seu percurso e o clímax se dá em um quarto de hotel

barato. Os personagens conceituais são os próprios jovens,

e o conjunto conceitual é bastante diverso: mas gira em

torno dos ciúmes e da insegurança nas relações afetivas.

A história ganha corpo quando o jovem propõe um

jogo à moça: ela deveria sair do posto de gasolina sozinha, e

parar na estrada esperando ele passar, então lhe pediria

carona, ele daria, e ambos continuaram a viagem fingindo

não se conhecer, e fariam um jogo de sedução entre quem

oferece a carona e quem a pediu.

A moça incorpora a personagem. Ela é descrita

inicialmente como tímida e pudica, mas, após entrar no jogo

da carona, assume ares de uma mulher liberal e decidida,

com pleno controle e aceitação de seu corpo e de sua

sexualidade.

O rapaz, proponente do jogo, em um dado

momento, se faz uma pergunta que parece ser inevitável: se

ela interpreta tão bem, não teria já realmente vivido assim,

sido assim? É a partir desta desconfiança quanto à

mecânica de funcionamento do jogo e a veracidade dos

jogadores, em especial da moça como jogadora, que o

ciúme como problema é trazido à tona.

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Leno Francisco Danner (Org.)

É interessante, então, ler o texto com os alunos em

sala de aula, elucidando o significado de palavras que eles

eventualmente não consigam entender. Em seguida (muito

provavelmente na aula seguinte), os alunos, com auxílio do

professor, deverão construir um painel elencando alguns

conceitos e seus respectivos personagens conceituais, p. ex.:

Moralidade – moça.

o Plano de imanência: o posto de gasolina.

Ciúme – moça e rapaz.

o Plano de imanência: a própria viagem é o solo de

enraizamento do ciúme.

Jogo, farsa, interpretação – moça e rapaz.

o Plano de imanência: também a viagem toda.

É claro que aqui temos apenas um exemplo, e há

muito mais a ser explorado no texto. Na aula seguinte, se

retomará o trabalho de leitura textual, agora com o texto

filosófico, o epílogo do livro A educação pulsional de Nietzsche.

Neste texto se discute o conceito nietzscheano de amor fati.

A sugestão é que o professor siga o roteiro acima (itens 5 e

6) destacando conceitos como:

Amor fati – o autor do livro como personagem

conceitual de si próprio, e também Zaratustra como

personagem conceitual.

o O plano de imanência aqui não é um local ou

acontecimento, mas uma necessidade: a do filósofo alemão

em buscar respostas para os problemas associados à

vontade de poder, ao amor e ao arrependimento, que se

dissolve pelo eterno retorno.

Eterno retorno – o mesmo dos itens acima.

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

e que chame a atenção dos alunos para a

especificidade do conceito de amor fati, para introduzir uma

discussão que se daria a partir da seguinte pergunta: na

realidade do amor fati, é possível o ciúme?

O debate suscitado por esta pergunta permitirá aos

alunos fazerem o trabalho de avaliação, discutindo de que

modo os problemas apresentados no texto literário podem,

de algum modo, refletir suas vidas, se não diretamente, em

seus próprios relacionamentos, então em suas famílias ou

nos relacionamentos de amigos. Com o aporte teórico

oferecido pelo texto filosófico, os alunos poderão fazer

uma análise que não seja apenas a narração e o lamento de

seus próprios problemas, mas analisá-los de um modo mais

rigoroso e profundo.

Conclusão

O retorno da disciplina de Filosofia para o ensino

médio reanimou debates antigos, um tanto esquecidos,

sobre como se ensinar filosofia aos jovens, debate que traz

consigo, claro, a discussão de se é possível ensinar filosofia

ou se ensinar a filosofar. Como vimos aqui, uma coisa não

impede a outra; pelo contrário, estão associadas.

O grande desafio da atualidade, no que diz respeito

ao ensino de Filosofia nas escolas, é buscar novos métodos,

estratégias e recursos para o ensino, pois já não é admissível

o jargão educacional antigo, que dizia que as melhores

motivações para o aluno são a reprovação e as punições a

ela associadas.

O estado de coisas em que se encontra a educação

brasileira hoje nos oferece cada vez mais alunos com baixa

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Leno Francisco Danner (Org.)

habilidade para a leitura e a interpretação de textos, que,

sabemos, são ferramentas essenciais ao aprendizado

filosófico. Em face a tal realidade, os desafios enfrentados

pelo professor de Filosofia serão enormes. Deste modo, o

que propusemos aqui foi uma estratégia de ensino de

Filosofia para jovens, por meio de uma interação de textos

literários e textos filosóficos.

Claro que este simples texto não dá conta da

complexidade do problema, claro também está que o

roteiro oferecido aqui tem suas falhas e insuficiências, mas

como incentivo desempenha seu papel: trazer novas ideias

aos professores que nas escolas públicas e particulares estão

se defrontando com a tarefa de discutir Filosofia com

adolescentes. Que munido deste material o professor em

exercício faça suas escolhas e as adaptações que sejam

necessárias ao seu trabalho.

Bibliografia

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9605 – Revista Digital do Paideia Volume 1, Número

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

O ensino da filosofia no

contexto de uma educação

amazônica

Clarides Henrich de Barba133

1. INTRODUÇÃO

Desde o primeiro momento como professor de

Filosofia no Ensino Médio por dois anos (1988-1989) pela

Secretaria de Estado de Educação no Governo do Estado

de Rondônia e, logo em seguida, em 1990, como professor

universitário nas disciplinas de Introdução à Filosofia,

Metodologia Cientifica e Filosofia da Educação

(Graduação), na Pós Graduação da Universidade Federal

de Rondônia, e depois como Professor no Curso de

Filosofia134, pergunto-me “como se pode desenvolver no

educando a capacidade de pensar e de questionar a

realidade que lhe cerca?”; “como ele pode desenvolver a

133 Professor lotado no Departamento de Filosofia (UNIR), Graduado e Mestre em Filosofia, Doutor em Educação Escolar.

134 Na Universidade Federal de Rondônia, o Curso de Ciências Sociais foi implantado em 2005, e o de Filosofia em 2009.

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Leno Francisco Danner (Org.)

consciência crítica através do pensar?” Assim, a questão é

sempre a mesma: “como podemos desenvolver o ensino da

Filosofia de modo que desperte no aluno a melhoria no

pensar, na produção de conceitos e na melhoria do

conhecimento?”.

No cenário nacional e internacional, o ensino da

Filosofia vem se desenvolvendo enquanto investigação nas

atividades docentes na sala de aula tanto no Ensino

fundamental – como, por exemplo, o Programa de

Filosofia para Crianças – tanto na obrigatoriedade no

Ensino Médio. No Ensino Superior, ela se constitui em

programas de Mestrado e Doutorado seja na área da

Filosofia, seja na Educação, com teses, dissertações,

monografias que vêm enriquecendo o desenvolvimento da

aprendizagem.

Deste modo, considerando que um dos sentidos a

que se refere os Parâmetros Curriculares do Ensino Médio

é o de ser capaz de oferecer aos estudantes a possibilidade

de compreensão das complexidades presentes no mundo

contemporâneo, que se manifestam na constituição das

identidades dos alunos na Escola, a Filosofia apresenta-se

como um processo de criação dos conceitos cujos

significados devem ser analisados no contexto de um

trabalho epistemológico que configure a prática educativa

voltada ao desenvolvimento dos valores, da ética e da

cidadania, promovendo e valorizando a identidade cultural

e social das crianças, jovens e adultos em fase de formação

educacional.

Deste modo, este artigo pretende refletir a respeito

do ensino da filosofia em seu contexto amazônico, diante

das possibilidades de inserção da temática ambiental,

cultural e social.

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

2. CONTEXTUALIZANDO O ENSINO DA

FILOSOFIA

O ensino da Filosofia, desde a antiguidade135, teve a

preocupação com a formação do homem (em um primeiro

momento, do homem grego). Neste contexto, surgem

filósofos importantes, como Sócrates, que desenvolveu o

seu método baseado na maiêutica, considerado como a

“arte de retirar de si mesmo o conhecimento”.

Platão, no Livro VII da República, entende ser o

papel do filósofo desenvolver a educação dos jovens,

assinalando um novo ideal de homem visando a sua

formação através da prática das virtudes, cujo saber ocorre

pela dialética no desenvolvimento das virtudes entre os

jovens, tais como a justiça, a coragem, a temperança, entre

outros. Para Platão, “a educação é, portanto, a arte que se

propõe este fim, a conversão da alma, e que procura os

meios mais fáceis e eficazes de operá-la” (PLATÃO, 1993,

p. 519a). A imagem que se liberta da caverna, transforma-se

em conhecimento, amparado pelas argumentações racionais

que modificam a doxa na episteme, considerando ser a paidéia

135 Com os gregos, a preocupação era basicamente encontrar a resposta verdadeira e universal acerca dos problemas desconhecidos pelo homem. No medievo, sua base de sustentação assenta-se na fé, presa a uma doutrina determinada pela Igreja católica. Na modernidade, dá-se a recuperação do caráter racional da filosofia, só que sustentado no sujeito pensante (cogito, ergo sum cartesiano) que abre as portas para o conhecimento sustentado pela ciência, que se torna, a partir do século XIX, a única fonte de conhecimento verdadeiro. E na contemporaneidade a Filosofia torna-se crítica, desde o seu contexto idealista, marxista, existencialista, entre outros, estabelecendo uma crítica ao positivismo (TARNAS, 2000).

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Leno Francisco Danner (Org.)

como formação do homem grego, realização do bem na

cidade (JAEGER, 1989).

Em Platão, a educação torna-se um

desenvolvimento gradativo da verdade, encontrando nela

os valores em que se deve viver. A função do educador,

pois, seria a de despertar no educando a consciência das

idéias, das formas ou reflexos do mundo ideal,

reconhecendo no mundo sensível as formas, para que se

possa viver bem. Neste caso, o educador deve saber utilizar

o diálogo, o questionamento das idéias, conduzindo para a

prática da virtude para formar o homem em sua plenitude e

virtude (JAEGER, 1989).

Assim, quando Platão insiste, na República, que a

Educação é tarefa pública, do Estado, e não privada,

reforça a idéia de que compete ao Estado formar homens

de acordo com as necessidades de cada classe social e do

conjunto da sociedade, o que consistiria a garantia do reino

da justiça. O ideal platônico reforça a idéia de um governo

que fortaleça as virtudes, constituídas em sua plenitude e

eficácia para o desenvolvimento do ser, caracterizando-o na

sua vontade e determinação ética:

Platão, ao construir seu modelo da cidade ideal,

desenvolve uma proposta filosófica de uma pedagogia

ético-política, na qual o conhecimento e a prática da

virtude vão garantir a viabilidade e a legitimidade do

Estado (SEVERINO, 2006, p. 623- 624).

Esta afirmativa demonstra que o ideal platônico de

construir uma cidade ideal representa uma proposta

pedagógica baseada na ética e na política, em que o

conhecimento e a prática da virtude tornam-se necessárias e

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

legítimas para a construção do ser humano. Assim, em

Platão, a educação deve ser olhada como a prática e a

sustentação da justiça, cujo princípio embasa a vida da

sociedade que se erige nos princípios da ética.

Do mesmo modo que Sócrates e Platão ensinaram

conteúdos da ética, Aristóteles desenvolveu o ensino da

Filosofia não só pela ética, mas também pela política e pela

lógica identificada pelo modo de pensar e de agir. Neste

caso, Aristóteles utiliza, como ponto central do processo

educativo, a palavra, pois é nela que se encontra a

administração dos valores, da ética e da moral. Neste

aspecto, o processo educativo deve levar o educando a

adquirir os hábitos voltados a administrar a natureza

humana, incluindo a sociedade. Assim, os hábitos formam

a condição de uma existência ética demonstrada pela

capacidade de pensar a ele inerente.

O processo educativo possibilita que o educando

seja capaz de aprender os diversos conhecimentos que

foram adquiridos à custa de exercícios, cujos fatores

contribuem com a formação da educação humana baseada

nos ideais da ética e da política. Neste caso, a formação

ética do ser humano torna-se o caminho para a virtude,

fornecendo as bases para o desenvolvimento da sociedade,

de acordo com a teoria do ato e da potência, consolidando

as potencialidades de aprendizagem do ser humano.

Assim, desde Sócrates, Platão e Aristóteles, o bem

se torna a capacidade para viver na busca da felicidade e da

justiça, tornando-o necessário à construção da ética:

“Assim, a ideia-força que predomina na Filosofia da

Educação na Antiguidade é que a dimensão política é

inteiramente derivada da qualidade ética dos sujeitos

pessoais” (SEVERINO, 2006, p. 624).

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O discurso filosófico da medievalidade concebeu a

educação como proposta de transformação do sujeito

humano em um ideal cristão. O ideal grego é reforçado

pelos valores cristãos que estão impregnados pela cultura

helênica, baseada na prática das virtudes. Este ideal

encontra força nos Padres da Igreja, cujo destaque está em

Santo Agostinho e São Tomás de Aquino:

Com a impregnação profunda da cultura

helênica pelo Cristianismo, a natureza da educação como

essencialmente formação ética, ganhou ainda mais força,

como podemos ver na obra dos Padres da Igreja e,

destacadamente, em Santo Agostinho e São Tomás de

Aquino. Nessa tradição da Filosofia, a educação é vista

como garantindo a humanização do homem na medida

em que ela possa contribuir diretamente para a

construção do próprio sujeito. A imagem é dada pela

metáfora da identidade e da autonomia do sujeito

espiritual, individual, pessoal que, princípio de atividade,

atua pela força energética de sua vontade livre

(SEVERINO, 2006, p. 625).

Aqui se reforça a ideia da educação como um

investimento baseado nos ensinamentos cristãos com o

exercício da consciência, entendendo ser esta uma

necessidade para que se desenvolva o processo educativo.

Contudo, é na Idade Moderna que o projeto da

educação desenvolve um novo ethos, que já se constrói a

partir do Renascimento. A nova educação também

encontra os novos desafios da revolução industrial, onde a

técnica se apresenta no processo empirista, assim como no

projeto racionalista e depois iluminista na busca de

desenvolver os ideais de liberdade. Assim, a Filosofia na

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

modernidade passa a ter uma compreensão crítica,

sobretudo com filósofos que estudaram a educação, onde

se destacam: Rousseau, Kant, Hegel, Marx, Nietzsche.

Em Rousseau, os ideais de liberdade e de igualdade

encontram as “novas reinvindicações do mundo moderno e

trazem consigo também a existência humana”.

(HERMANN, 2003, p. 56). Do mesmo modo, em Kant, “o

ensino do filosofar, e não da Filosofia, era o meio por

excelência para educar o homem para a liberdade,

especialmente a liberdade para julgar, interpretar e

escolher” (CUNHA, 2000, p. 208). O ato filosófico se

destaca por um projeto pedagógico desenvolvido para o

aperfeiçoamento moral e a emancipação do homem

presente numa ética dos princípios universais para todos os

seres humanos.

Em Hegel, a trajetória da consciência é

fundamentada na história do espírito humano, onde a

dialética, através da tríade da tese (afirmação), antítese

(negação) e a síntese (superação), possibilita que os

cidadãos passem a conceber através das contradições

existentes na sociedade capitalista. Para Hegel136 (1991, p.

140), a “Filosofia deve ser ensinada e aprendida, na mesma

medida que é toda e qualquer outra ciência”. Defende que a

Filosofia deve ser ensinada no Gimnasio, “a fim de que os

jovens se habituem e se familiarizem em relacionar-se com

o pensamento formal” (PAGNI, 2002, p. 123). Deste

modo, o que importa é que o ato de ensinar Filosofia deve

ser buscado pela formação cultural dos jovens na escola e

na sociedade.

136 No original espanhol: “La Filosofia debe ser enseñada y aprendida, em la misma medida em que lo es cualquier ota ciencia” (Tradução do alemão para o espanhol de Arsenio Ginzo).

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Hegel, na Fenomenologia do Espírito (1807), estabelece

a determinação do espírito (Geist) como um componente

essencial para a formação do sujeito no mundo, como

forma de manifestação da liberdade, onde a cultura permite

compreender o desenvolvimento da identidade do sujeito

no mundo137. Para Hegel, a cultura pertence ao estágio

espiritual, que é o estágio mais evoluído do Espírito para

alcançar o Espírito absoluto.

A ênfase ao processo de filosofar para Kant e no

ato de ensinar a história da Filosofia para Hegel, consiste

num desafio dialético para desenvolver o processo

educativo na sociedade.

Karl Marx (1987) concebe os processos

contraditórios da sociedade burguesa e entende que o

sistema escolar seria, então, o grande instrumento do

capitalismo na preparação da mão de obra138, onde “a

finalidade do processo educativo seria, portanto, a

formação de um indivíduo completo, capaz de fazer face a

diferentes situações de trabalho”. Assim, na XI tese sobre

Feuerbach, Marx (1987, p. 36) afirma “Os filósofos se

limitaram a interpretar o mundo diferentemente, cabe

transformá-lo”. Deste modo, o ensinar a Filosofia também

pressupõe a ensinar a que se possa transformar o mundo

através de uma prática da consciência voltada para a ação,

137 Para Hegel (1807), a idéia é a manifestação do Espírito realizado pelo sujeito através da autoconsciência, chamado de consciência de si, mas que se desenvolve numa consciência com o outro.

138 Segundo Gadotti (2003, p. 58), “a integração entre o ensino e o trabalho constitui-se na maneira de sair da alienação crescente, reunificando o homem com a sociedade. Essa unidade, segundo Marx, deve dar-se desde a infância. O tripé básico da educação para todos é ensino intelectual (cultura geral), desenvolvimento físico (a ginástica e o esporte) e aprendizado profissional polivalente (técnico e científico).

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

de modo que o Ensino da Filosofia seja comprometido

com a realidade. Neste sentido, Marx (1992, p. 84) entende

que a educação deve contemplar os temas que dizem

respeito à aprendizagem envolvendo a práxis humana, e

não servir para o desenvolvimento do capitalismo:

No capitalismo, só é produtivo o trabalhador

que produz mais valia para o capitalista, servindo assim à

auto-expansão do capital. Utilizando um exemplo fora

da esfera da produção material: um mestre-escola é um

trabalhador produtivo quando trabalha não só para

desenvolver a mente das crianças, mas também para

enriquecer o dono da Escola.

Marx estabelece, pois, uma crítica à educação

tradicional em que a Escola é reprodutora do sistema

capitalista e, portanto, não interessa que a Filosofia e a

Sociologia façam parte do currículo escolar. O controle e a

manipulação impedem o homem de pensar, tornando-o,

assim, alvo de uma massificação contínua do ter sobre o

ser. Nesta perspectiva, a educação deve satisfazer as

exigências do sistema produtivo com a capacitação da mão-

de-obra e na requalificação dos trabalhadores através da

promoção da competitividade, da eficiência e da

produtividade, não sendo uma tarefa tão fácil para os

professores desenvolver a consciência educativa para

promover a aprendizagem e os valores do aluno na Escola.

Do mesmo modo, seguindo as ideias marxistas,

Adorno (1995, p. 121) identifica questões epistemológicas

nascidas dos ideais modernos, considerando que “a

educação tem sentido unicamente como educação dirigida a

uma auto-reflexão crítica”, em que não se podem negar os

saberes locais perante as diversidades culturais que

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contribuem na construção da consciência. Deste modo, a

educação não pode ser vista como um elemento que atrofia

a mente dos alunos pela renúncia ao pensar numa entrega

incessante às atividades reprodutivas em sala de aula, como

cópias de trabalhos escolares, ou conteúdos sem

significados. Deve existir, portanto, uma formação

pedagógica que possibilite a ousadia dos sujeitos para

encarar seus próprios fantasmas, suas dores, e a

incapacidade de não aprender, e possam estabelecer

contrapontos às consciências autoritárias que não respeitam

os valores culturais presentes no processo das identidades

amazônicas.

No texto, “Educação após Auschwitz”, Adorno (1995)

apresenta duas questões a este respeito: “primeiro, à

educação infantil, sobretudo na primeira infância, e, além

disto, ao esclarecimento geral, que produz um clima

intelectual, cultural e social que não permite tal repetição”

(p. 123). Nesta análise sobre a Educação infantil, chama-se

a atenção para a não repetição, apontando o caminho da

consciência não alienada, utilizada na expressão

“AufKlärung” (esclarecimento).

Tal significado, segundo Adorno (1995), pode ser

compreendido a partir da seguinte questão: “no sentido

mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento

tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do

medo e investi-los na posição de senhores” (p. 20). A

postura de que a educação seja a do esclarecimento é papel

da filosofia, pois permite que a consciência seja

desenvolvida: “Em outras palavras a educação deve

dedicar-se seriamente à idéia que não é em absoluto

desconhecida da filosofia: que não devemos reprimir o

medo” (ADORNO, 1995, p. 39).

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

Do mesmo modo que Adorno chama atenção para

que possamos nos livrar do medo e da barbárie, a análise

que ele faz com Horkheimer na “Dialética do

Esclarecimento” (1985) refere-se à indústria cultural, termo

utilizado por eles para explicar a massificação da cultura em

face da sociedade capitalista. E, neste caso, os professores

devem pensar que a indústria cultural interfere diretamente

na educação, impedindo que o aluno aprenda com mais

eficácia, submetendo as condições e as necessidades

exteriores (ZUIN, 1999).

No contexto da modernidade e dos filósofos

críticos, outros filósofos como Nietzsche, Deleuze e

Guatarri estabeleceram uma interface da filosofia com a

educação.

Nietzsche (1987, § 12 p. 44) questiona: “[...] pode

propriamente um filósofo, com boa consciência,

comprometer-se a ter diariamente algo para ensinar?”. Este

questionamento conduz para a tomada de consciência entre

professores e alunos, atentos para uma busca que os

conduza à reflexão do ser em sua forma de agir. Em outras

palavras, não se pode ensinar filosofia sem o

comprometimento do que irá de fato ensinar aos seus

alunos.

Para Guatarri e Deleuze (1992, p. 13) “a Filosofia

mais rigorosamente é a disciplina que consiste em criar

conceitos”, onde a atividade filosófica está em manejar as

diversas ferramentas para o desenvolvimento dos saberes.

Segundo Gallo e Kohan (2000, p. 194), comentando a

respeito da obra de Guattari, “a atividade filosófica pode

ser demarcada por três verbos: traçar (plano da imanência),

inventar (personagens conceituais) e criar (conceitos)”.

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3. Contexto Histórico do Ensino da Filosofia no Brasil

Historicamente, sabemos que, desde o século XVI,

A Filosofia foi ensinada de forma dogmática e carregada de

uma forte ideologia tomista. A escola era o reflexo de uma

educação tradicional baseada no ensino teológico e que

buscava neutralizar qualquer possibilidade da formação

humana, crítica. Contudo, com a implantação dos colégios

jesuítas no Brasil, o ensino da filosofia possuía um caráter

religioso e livresco. Com a expulsão dos jesuítas, surge o

ideal do liberalismo, do evolucionismo, do materialismo e

do cientificismo, onde o seu ensino passa a ser

acompanhado de crítica à metafísica.

Após a proclamação da República, a propedêutica

no ato de ensinar a Filosofia deu lugar à preparação dos

jovens para a vida pública. O conteúdo lecionado neste

período é a história dos grandes sistemas filosóficos.

No período de 1930 a 1945, a disciplina era

obrigatória na 2ª e 3 ª séries do curso clássico e na 3ª série

do científico, onde se ensinava a história da filosofia

(GALLINA, 2000; ALVES, 2002).

Com a reforma Capanema e a aprovação da Lei nº

4024/61, a Filosofia passou de uma disciplina obrigatória

para uma disciplina complementar. No regime militar (1964

a 1985), a Filosofia sai efetivamente do currículo escolar,

retirando dos jovens a prioridade para o pensar e o refletir,

ao mesmo tempo em que a lei nº 5.692/1971 estabelecia o

ensino no 1º e 2º graus com disciplinas de Educação Moral

e Cívica e Organização Social e Política Brasileira (OSPB).

Estas matérias eram ensinadas com a finalidade de

propagar o moralismo e o civismo nas escolas, em uma

perspectiva de ensino tecnicista.

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

Em 1982 a lei 7.044 abriu a possibilidade para a

volta da filosofia nas escolas, onde vários estados

brasileiros voltam a adotar o ensino da filosofia em suas

escolas.

A partir da implantação da nova Lei de Diretrizes e

Bases da Educação Brasileira, Lei 9.394/96, o Art. 35 e 36

contemplam conteúdos de Filosofia voltados para a

construção dos valores:

Art. 35 – o ensino médio, etapa final da educação básica,

com duração mínima de três anos, terá como finalidades:

[...] III- o aprimoramento do educando como pessoa

humana, incluindo a formação ética e o

desenvolvimento da autonomia intelectual e do

pensamento crítico [...]

Art. 36

[...]

§ 1º: Os conteúdos, as metodologias e as formas de

avaliação serão organizados de tal forma que ao final do

ensino médio o educando demonstre:

[...] III - domínio dos conhecimentos de filosofia e

sociologia necessários ao exercício da cidadania

(BRASIL, MEC, 1997, p. 13-14).

Embora já com grandes avanços no contexto de

desenvolvimento da área das ciências humanas, a

implantação do ensino da Filosofia e da Sociologia como

obrigatoriedade não aconteceu, sendo que a Filosofia

passava a ser discutida, mas não implantada no ensino

médio.

Em 2000, o Pe. Roque Zimmermman, deputado

federal pelo PT, elaborou um Projeto para a sua inclusão na

grade curricular do ensino médio com as disciplinas de

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Leno Francisco Danner (Org.)

Filosofia e Sociologia; ela é aprovada pela Câmara e

Senado, mas vetada pelo Presidente Fernando Henrique

Cardoso.

Mesmo sem a sua aprovação, vários estados no

Brasil já tinham implantado no seu currículo o ensino da

Filosofia. Assim, após um percurso histórico de tentativas

de implantação do Ensino da Filosofia e da Sociologia, em

agosto de 2006 a sua obrigatoriedade passa a existir,

conforme a nova redação dada ao Art. 1º § 2º do artigo 10

da Resolução nº 4 CNE/CEB de 2006:

§ 2º- As propostas pedagógicas de escolas que adotarem

organização curricular flexível, não estruturada por

disciplinas, deverão assegurar tratamento interdisciplinar

e contextualizado, visando ao domínio de

conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao

exercício da cidadania.

Art. 2º São acrescentados ao artigo 10 da Resolução

CNE/CEB nº 3/98, os § 3º e 4º, com a seguinte

redação:

§ 3º No caso de escolas que adotarem, no todo ou em

parte, organização curricular estruturada por disciplinas,

deverão ser incluídas as de Filosofia e Sociologia (p. 1)

Com a aprovação da obrigatoriedade do ensino da

Filosofia e da Sociologia no Ensino Médio, a Resolução

mantém o caráter formador através de conteúdos que

reflitam a ética, a estética e a cidadania. Ressalta-se, ainda,

que a Resolução aponta para “os componentes História e

Cultura Afro-Brasileira e Educação Ambiental, que serão,

em todos os casos, tratados de forma transversal,

permeando, pertinentemente, os demais componentes do

currículo” (BRASIL, CNE, 2006, p. 1).

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

No contexto pedagógico brasileiro, há muitos

professores e teóricos da educação que estabelecem uma

análise criteriosa e epistemológica da educação. Saviani

(2005, p. 263 e s.) aponta vários desafios na educação de

hoje: o da ausência de um sistema nacional de educação

refletindo na escassez de recursos, na formação de

professores e, principalmente, na descontinuidade nas

atividades educacionais na escola. Para tanto, a proposta

epistemológica da pedagogia histórico-crítica permite

compreender os desafios da educação nos dias de hoje139.

4. Caminhos para o ensino da filosofia na amazônia

É importante analisar em que aspectos as práticas

educativas proporcionam as experiências compartilhadas

por meio do ensino de valores culturais, éticos, estéticos, e

principalmente em defesa ao meio-ambiente na nossa

região amazônica, especificamente no estado de Rondônia.

Advindo de uma formação multicultural, Rondônia

faz parte da realidade amazônica caracterizando-se pelos

aspectos cultural e social advindos das regiões do sul,

nordeste, centro-oeste e até mesmo do norte do país140.

139 Saviani, na obra Escola e Democracia (2000), faz uma análise a respeito das teorias da educação, dividindo em teorias não críticas e críticas-reprodutivistas. Nas teorias não críticas estão a teoria tradicional, a Escola Nova e a Tecnicista. Já nas teorias crítico-reprodutivistas Saviani apresenta a análise da teoria do sistema enquanto violência simbólica, a teoria da Escola enquanto aparelho ideológico do Estado e a teoria da Escola dualista. Contudo, Saviani assume a postura da Pedagogia Histórica Crítica através de cinco passosa, saber: a) prática social inicial, b) a problematização, c) a instrumentalização, d) a catarse e e) a prática social final

140 Em 1908, é criado o município e a Comarca de Santo Antonio do Madeira, pertencente ao estado do Mato Grosso. A criação do

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Leno Francisco Danner (Org.)

Neste caso específico, ao observarmos o

processo educativo no Ensino da Filosofia, deve-se olhar

para o espaço da construção de uma consciência livre,

plural e cidadã, onde o Professor pode contribuir na

formação dos seus alunos através do respeito pela

identidade cultural e dos valores éticos e estéticos da

comunidade. Assim, à medida que o professor e a Escola

estão atentos à formação da consciência do aprender a

filosofar respeitando as identidades culturais dos seus

alunos, as aulas tornam-se mais abertas, dialogadas,

respeitosas, com a finalidade de superar a problemática da

violência na Escola e fora dela, em uma perspectiva

cultural.

Os significados de uma prática pedagógica que

contribua para a melhoria no processo sócio-cultural dos

alunos aponta para os Parâmetros Curriculares Nacionais

que identificam aspectos importantes para o ato de ensinar

Filosofia:

Como, de fato, a vida de cada um se passa

sempre num dado entorno sócio-histórico-cultural, saber

ler esse entorno com um olhar filosófico é de

fundamental importância para quem quer que seja.

Neste sentido, para além de apenas fornecer referências

Território Federal do Guaporé em 1940 deu origem, mais tarde, ao Território Federal de Rondônia e, em 1982, à criação do Estado de Rondônia. No final dos anos 1940, a região sofre um período de letargia com o declínio acentuado das exportações de borracha. Mostram-se três ciclos: o do ouro, o da Borracha, sobretudo pela expansão do plantio da seringueira através da migração de nordestinos denominados de “Soldados da Borracha”. E, no terceiro ciclo, surgem os Projetos de assentamentos de terra pelo INCRA, no período de 1960 (TEIXEIRA; FONSECA, 2001).

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

culturais, a Filosofia serve ainda mais quando o

educando a contextualiza no seu tempo e espaço sociais

(BRASIL, MEC, 1999, p. 118).

Na concepção moderna de Escola, os Parâmetros

apontam que o ensino da Filosofia deve contemplar a

reflexão em ação, onde o educando deve ser conduzido a

ser um pensador crítico, engajado e inserido diante das

experiências vividas no mundo, tornando-se um sujeito

histórico, reflexivo e crítico no processo de transformação

pessoal e social.

Deste modo, os Parâmetros Curriculares,

apresentam as seguintes competências:

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Quadro 1 - Competências e habilidades a serem

desenvolvidas em Filosofia

Representação e

comunicação

Ler textos filosóficos de modo

significativo

Ler, de modo filosófico, textos de

diferentes estruturas e registros;

Elaborar por escrito o que foi

apropriado de modo reflexivo;

Debater, tomando uma posição,

defendendo-a argumentativamente e

mudando de posição em face dos

argumentos mais consistentes.

Investigação e

compreensão

Articular conhecimentos filosóficos e

diferentes conteúdos e modos discursivos

nas ciências naturais e humanas, nas artes e

em outras produções culturais.

Contextualização

sociocultural

Contextualizar conhecimentos

filosóficos tanto no plano de sua origem

específica quanto em outros planos: o

pessoal-biográfico, o entorno sócio-

político, histórico e cultural, o horizonte da

sociedade científico-tecnológica.

Fonte: BRASIL, MEC, PCNS/EM, 1999, p. 125.

A partir destes três eixos de competências,

questiona-se como eles estão sendo desenvolvidos em

nossas escolas, respeitando os espaços na construção e na

criação dos conceitos que permitam a aproximação com o

conhecimento. No primeiro eixo, a tarefa da Filosofia na

sala de aula é de permitir a construção e a criação do

conhecimento, possibilitando o debate dos textos, a

participação do educando na sala de aula. O segundo eixo

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

se estabelece pela interdisciplinaridade com as áreas

naturais e humanas envolvendo a lógica e a epistemologia

na busca pelo conhecimento. E, finalmente, o terceiro eixo

representa que o ensino da Filosofia está caracterizado

pelos elementos dialéticos que envolvem a sociedade, a

política, a economia e a cultura presentes na educação.

Estabelecendo as relações entre a prática educativa

e o Ensino da Filosofia, Silvio Gallo (2000, p. 186) afirma

que:

Enfim, podemos buscar com a Filosofia

potencializar uma educação que possibilite uma

construção ética de cada um aberto para a comunidade

da qual participa. Uma educação fundada não na

informação, mas no conhecimento; não na imposição,

mas na autonomia; não na exclusão, mas no exercício

consciente da cidadania de fato, e não apenas de direito.

A análise de Gallo (2000) é de que, através do

ensino da Filosofia, pode-se participar de uma educação

que permite alcançar o conhecimento, e não apenas

oferecer informações, como a Escola vem fazendo. Para o

desenvolvimento das potencialidades dos alunos, o ensino

da Filosofia permite a autonomia através das relações

culturais e sociais por meio de uma prática educativa

estabelecida nos ideais de criação.

Assim, o ensino da Filosofia no Ensino médio não

pode ser compreendido como um processo enciclopédico,

reprodutivo. É importante que a educação desenvolva o

conhecimento de forma crítica, explorando a criatividade e

o desenvolvimento das potencialidades do educando.

A seguinte afirmação de Gallo (2000, p. 184) é

taxativa ao apontar para o contexto do ensino da Filosofia,

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Leno Francisco Danner (Org.)

enfatizando que o objetivo da filosofia “no ensino médio

não é o de formar filósofos, mas sim contribuir para a

formação de seres verdadeiramente humanos, sujeitos

imersos no mundo da cultura, conscientes e criativos,

capazes de construir uma vida autêntica e feliz”. Deste

modo, a Filosofia não pode ser concebida como uma

transmissão de saberes inertes, sem significados e sem

sentidos, que envolvem tão somente a educação tradicional

e não dê conta de desenvolver a realidade crítica.

A este respeito cabe a afirmação de Ghedin (2002,

p. 215):

A filosofia há de, acima de tudo, no ensino,

ajudar o jovem a pensar a realidade e a repensá-la com

base no próprio contexto social no qual está inserido,

interpretando o mundo não como acabado, pronto,

finito, mas como processo em construção de si e da

realidade; somente assim, ele poderá sair de uma

possível consciência alienada para uma consciência

crítica e criticante de si mesma.

Esta afirmação caracteriza-se em investigar como a

filosofia tem contribuído para esta formação crítica aos

alunos do ensino médio em Escolas de Porto Velho. Deve-

se, pois, pensar um ensino da Filosofia que seja crítico,

baseado em torno de problemas e, segundo Kohan e Gallo

(2000, p. 179), “a partir dessa reflexão ficará demarcado o

campo legítimo de problematização filosófica, de onde se

poderão recuperar os temas sugeridos pelos alunos ou de

onde novos temas surgirão”. Nesta perspectiva, é

necessário que o educador selecione alguns problemas

filosóficos, de preferência que tenham uma significação

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

existencial para os alunos, pois filosofamos quando

sentimos os problemas na própria pele.

Com isso, Gallo (2002) propõe que “a aula de

filosofia precisa ser uma oficina de conceitos” (p. 202, grifo

meu), não permitindo alunos espectadores, mas ativos,

produtores e, sobretudo, criadores, tornando-se resistente à

reprodução de um ensino tradicional.

Esta afirmativa reflete que, para alcançar esta

proposta, são enormes os desafios no ensino da Filosofia

no ensino médio em Porto Velho, o que representa que

muitos professores se esforçam para apresentar conteúdos

inovadores voltados para a realidade concreta da

aprendizagem. Neste processo, é interessante questionar:

como ocorre o encontro da Filosofia com a Escola? É

possível pensar, por exemplo, a educação de uma forma

filosófica? Como pensar novas formas de presença da

Filosofia?

Por isso é que cabe ao professor desenvolver temas

que dizem respeito à identidade dos alunos para que a aula

de Filosofia seja motivadora, questionadora e trabalhe com

a criação de ideias e de conceitos que tenham uma relação

entre a teoria e a prática. Assim, a escola, com seus saberes

e a sua cultura própria, deve se inserir em um processo que

envolve o contexto social e econômico (GALLINA;

TOMAZETTI, 2006).

Neste aspecto, afirma Renata Aspis (2004, p. 310):

O professor de Filosofia, dentro do que

entendemos, vai ensinar a pensar filosoficamente, a

organizar perguntas num problema filosófico, ler e

escrever filosoficamente, e criar saídas filosóficas para o

problema investigado. E vai ensinar tudo isso na prática.

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Leno Francisco Danner (Org.)

[...] Cria com os alunos um grupo, uma equipe, que tem

um objetivo comum: encontrar saídas para um problema

elaborado por eles mesmos, de seu interesse, por meio

da investigação e do estudo filosófico.

Certamente, a causa das discussões em torno do

papel e da identidade no Ensino da filosofia torna-se uma

questão teórica e ao mesmo tempo prática, mas, sobretudo,

pedagógica perante as relações das práticas educativas que

fazem parte das relações entre os alunos e professores na

sala de aula. Assim, podemos falar de uma relação entre o

modo de conhecimento, da ciência, das artes com a

Filosofia e com o mundo da vida, compreendendo que os

conteúdos podem ser ensinados no envolvimento com as

perspectivas sociais, culturais presentes no contexto

amazônico.

A epistemologia da prática educativa no ensino da

Filosofia ocorre pelos valores que estão presentes no

cotidiano das identidades culturais amazônicas, entendendo

serem estes necessários na valorização dos conteúdos

pertinentes no estudo da ética, da lógica, do meio ambiente,

da cidadania, da política e abertas no contexto social,

dialógico e participativo.

Neste contexto, observa-se que a educação em

Porto Velho se constitui em aulas com conteúdos

disciplinados, ou seja, que ainda não ocorre a

interdisciplinaridade, na falta de professores, sobretudo em

áreas da Matemática, Química e Física, e, para o nosso

caso, nas áreas de Ciências Humanas, como Ciências

Sociais e Filosofia, para atuarem no ensino médio em

Sociologia e Filosofia.

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404

Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

Contudo, é importante analisar que aspectos das

práticas educativas proporcionam as experiências

compartilhadas por meio do ensino de valores culturais,

éticos, estéticos e principalmente em defesa ao meio-

ambiente na nossa região amazônica. Convém ressaltar

ainda os aspectos de uma identidade cultural amazônica

presente no folclore dos mitos e lendas que podem ser

ensinados dentro do estudo da sensibilidade estética.

Convém ainda explicar que, na lógica da luta de

classes, muitos pensam que “eu devo ficar na Escola para

terminar o segundo grau e trabalhar” e, se der, entrar na

Universidade. Deste modo, quando não ocorrem as

oportunidades de melhoria nos estudos e de perspectivas

de trabalho, alguns acabam cometendo violências e

entrando no vício, sobretudo a cocaína e, para sustentá-la,

praticam furtos.

Herbert Marcuse (2001, p. 81) entende que “a

cultura se relaciona com uma dimensão superior da

autonomia e da realização humana, enquanto civilização

indica o reino da necessidade do trabalho e do

comportamento socialmente necessários [...]”. Assim, os

aspectos culturais presentes no Ensino da Filosofia

representam que a prática educativa deve ser utilizada como

um processo pedagógico que envolve o desenvolvimento

da criação do conhecimento filosófico.

Em relação ao pluralismo cultural, as identidades

regionais estão representadas por um caboclo ribeirinho

com uma cultura com predominância tipicamente rural,

evidenciado por uma lógica de proteção da natureza, sendo

esta necessária para que os professores no ensino da

filosofia possam desenvolver os conteúdos educativos em

sala de aula.

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Leno Francisco Danner (Org.)

Bordieu (2002) analisa que o processo pedagógico

na Escola deve servir para que os professores possam

utilizar de processos didáticos: “utilizada no ensino

secundário aparece objetivamente como uma pedagogia

para o despertar”, e a Escola deve desenvolver o capital

cultural, envolvendo condutas escolares no aprimoramento

da consciência que possibilite a aprendizagem de temas

filosóficos significativos.

Candau (2003, p. 160) também compreende os

significados de uma educação compartilhada pelos valores

culturais que são estabelecidas por dois contextos que se

diferenciam: a cultura escolar e a cultura da escola. A

cultura escolar está associada ao currículo formal, aos

conteúdos a serem trabalhados, reforçada pelas normas,

papéis e rotinas e ritos da escola. Já na cultura da escola

estão presentes os valores, as atitudes, os seus ritos, suas

linguagens, o imaginário, os valores que compõem a

identidade cultural dos alunos e professores na prática

educativa.

Para esta autora, as relações entre escola e cultura

não podem ser concebidas como entre estes dois pólos

independentes, mas como universos entrelaçados, como

uma teia tecida no cotidiano e com fios e nós

profundamente articulados. O educando se vê como um

sujeito que busca trajetórias que o identificam na

comunidade caracterizando no universo escolar pelas

identidades e pelos conhecimentos compartilhados entre os

alunos e o professor (CANDAU 2003).

A partir da valorização de um ethos cultural

amazônico, os professores que trabalham com o ensino da

Filosofia no ensino médio podem escolher conteúdos e

práticas educativas que devem estar dimensionados para a

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406

Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

construção dos valores éticos, estéticos e políticos no

desenvolvimento da cidadania na sociedade.

Deste modo, os professores podem trabalhar

conteúdos com temas relacionados ao meio-ambiente, a

problemática da construção das hidrelétricas no Rio

Madeira, justiça ambiental, a problemática do lixo, bioética.

Tais temas caracterizam-se pela forma em que o ensino da

filosofia no ensino médio deve se caracterizar em um

processo de desenvolver os conceitos como um processo

criativo, onde os professores devem incentivar esse

processo criativo.

Assim, é um desafio integrar o aluno à sala de aula

nos desejos de conhecer o mundo e a natureza que lhe

cerca, numa perspectiva existencial com significados que

permitam o envolvimento com o conhecimento

transformador:

Neste sentido, é necessário identificar o papel da

filosofia no processo educacional, o que significa não

tratá-la apenas como mais uma disciplina, pura e tão

somente, mas como uma prática reflexiva (práxis), que

auxilie na descoberta da identidade do homem diante da

natureza, na construção da liberdade e na transformação

consciente da realidade (PECHULA, 2006, p. 489).

É evidente que a Filosofia não pode estar isolada no

seu contexto de sala de aula, e sim contribuir com as

demais disciplinas, principalmente na área das humanas

como a história, a Língua Portuguesa, a Educação Artística

e a Educação física, por exemplo. Exige, portanto uma

relação minimamente interdisciplinar, cabendo à Filosofia a

tarefa definida entre as demais, de ensinar conteúdos que

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407

Leno Francisco Danner (Org.)

tratem dos temas transversais, principalmente a ética, a

cultura e o meio-ambiente, previstos nos PCN´s.

Deste modo, o professor de Filosofia no contexto

amazônico pode ser um criador de estratégias pedagógicas

confeccionando textos e atividades que possam produzir os

conceitos, as habilidades críticas, permitindo encontrar

elementos criadores na sala de aula, e não reprodutores de

uma prática pedagógica tradicional.

5. Considerações finais

A perspectiva da educação em Rondônia em relação

à formação de professores ainda é um desafio. Ela tem um

percurso que se estabelece nas possibilidades e

oportunidades que crianças, jovens e adultos enfrentam na

sociedade, fruto de um mercado de trabalho que impõe um

aperfeiçoamento e cada vez mais dimensionado na técnica

e na valorização da experiência.

O ensino da filosofia, então, passa a se constituir

em um grande desafio no processo de formação dos alunos

(crianças, jovens e adultos) para a diminuição do fracasso

escolar no ensino fundamental e médio, tendo como

objetivo alcançar a Universidade.

Assim, os problemas filosóficos na realidade

amazônica devem ser analisados no contexto de uma

prática educativa dialógica, permitindo que os contextos

escolares e os seus significados estejam voltados para a

formação da consciência filosófica capaz de oferecer aos

estudantes, a possibilidade da compreensão das

complexidades do mundo contemporâneo que se apresenta

diante dos paradigmas das sociedades e dos países em

conflito.

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408

Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

As esferas do saber social constituintes da cultura

na educação amazônica, representadas pelas dimensões

éticas, estéticas, dos valores ambientais, necessitam ser

trabalhadas pelos professores, vindo a beneficiar os alunos

de um modo geral. Neste caso, atitudes que envolvam o

ensino do conhecimento, da ética, da estética e da política

necessitam estar presentes no currículo escolar do ensino

fundamental e especificamente no ensino médio.

Deste modo, os professores que trabalham com o

ensino da Filosofia necessitam envolver-se com conteúdos

que contemplem a educação ambiental no meio amazônico.

Isto representa uma necessidade de envolvimento com os

temas locais, regionais, sem esquecer de uma totalidade que

permita refletir as dimensões do conhecimento, da ética e

da política ambiental. É importante, pois, enfatizar que os

professores podem planejar e executar sua prática educativa

com temas relacionados à cultura amazônica, em uma

perspectiva dialógica, em uma perspectiva da teoria crítica.

Nesta perspectiva, a didática do ensino da Filosofia

pode ocorrer através de atividades de leituras, de debates

em sala de aula, na produção e criação de pequenos textos,

a partir de problemas significativos para os estudantes do

ensino médio de Escolas públicas de Porto Velho.

A partir das condições sociais que fazem parte da

realidade de jovens alunos advindos das classes

trabalhadoras, as representações amazônicas, que são cheias

de narrativas, permitem o envolvimento de educadores que

representam, em suas subjetividades, a palavra e a escuta,

explorando diferentes linguagens culturais. Neste caso, a

cultura amazônica presente nas narrativas dos mitos, das

lendas pode ser trabalhada nas aulas de Filosofia,

principalmente quando os professores podem estimular o

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409

Leno Francisco Danner (Org.)

prazer estético, as atitudes criativas de contar, de ouvir, de

ler de modos que mantenham de forma viva esta cultura.

A Filosofia deve ser analisada neste contexto da

prática educativa como uma questão prática que contribua

para a análise da realidade por meio da investigação com a

ética, do meio-ambiente, da estética, dos valores políticos e

econômicos, enfim, cabe a ela questionar a vida planetária,

a sociedade como um todo. É importante investigar o

currículo que é ensinado perante o contexto da consciência

ética, ambiental, presentes no cotidiano escolar. Assim, no

contexto da realidade amazônica, a justificativa desta tese é

de que ainda não foi pesquisada a prática educativa no

ensino da Filosofia na formação de alunos do ensino médio

em escolas estaduais de Porto Velho.

Assim, os desafios de ensinar Filosofia no ensino

médio na Amazônia são grandes, pois envolvem os

diversos conteúdos filosóficos que permitem compreender

a epistemologia do trabalho educativo dentro das esferas da

ética, da política, da estética, sobretudo quando a temática

ambiental se faz presente no cotidiano escolar.

Neste aspecto, as teorias aqui apresentadas apontam

para uma trajetória de fundamentar o ensino da Filosofia

numa perspectiva dialética compartilhada pela teoria crítica

de Adorno e as análises de autores que trabalham com o

ensino da Filosofia no Brasil, além da concepção de

Deleuze e Guattari, que dão sustentação à análise dos

conceitos. Tais perspectivas não são vistas de forma

excludente, mas em complementaridade e podem ser

investigadas como posturas críticas no contexto da

educação brasileira e, sobretudo, como auxiliares para

entender e compreender o processo do ensino da Filosofia.

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410

Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

Deste modo, penso que, ao estudar a epistemologia

no contexto filosófico educacional, pode-se compartilhar

com os professores e com os alunos do ensino médio a

produção de textos, o desenvolvimento com as outras

disciplinas visando às melhorias dos processos sociais e

ambientais na construção de uma prática educativa

comprometida com o desenvolvimento educacional.

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

Filosofia, cultura e desperdício -

Algumas experiências

interdisciplinares de ensino

Rejane Schaefer Kalsing

Doutora em Filosofia pela UFSC

[email protected]

O ofício do magistério é um ofício muito

interessante e desafiador, por, entre outras coisas, colocar

frequentemente em xeque quem a ele se dedica, no sentido

de fazer questionar o que se está fazendo, como se está

fazendo, por que se está fazendo, onde se quer chegar com

o trabalho, entre outros. Tais questionamentos dizem

respeito, portanto, aos métodos, à metodologia, aos

conteúdos, aos objetivos, ao sentido de uma disciplina.

A partir da reflexão sobre esses questionamentos,

em especial em relação ao ensino de filosofia e da

concepção de que o conteúdo é importante, mas que, além

e para além disso, esse conteúdo deve ter um significado

para o estudante, surgiu a ideia de abordar temas através de

projetos interdisciplinares.

Nesse sentido, este texto apresenta, primeiramente,

uma breve reflexão acerca do conceito de

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Leno Francisco Danner (Org.)

interdisciplinaridade e, após, passa-se ao relato de dois

projetos desenvolvidos. O primeiro deles intitula-se

Conhecendo a cultura gaúcha, que, falando resumidamente, foi

concebido para abordar os múltiplos aspectos que dizem

respeito a uma cultura, que a formam, que a constituem,

cultura, que neste caso, refere-se à gaúcha. Esse projeto foi

realizado em 2004 e 2005, na Escola Estadual de Educação

Básica Marcus Vinícius de Moraes, em Sapucaia do Sul, RS.

Já o segundo teve como tema o desperdício e foi

desenvolvido durante o segundo semestre do ano letivo de

2009, com estudantes do terceiro ano dos cursos técnicos

em agropecuária e técnico em alimentos do Instituto

Federal Catarinense - Campus Concórdia, e envolveu as

disciplinas de Ética, Sociologia e Matemática Financeira.

1. A INTERDISCIPLINARIDADE

Antes de relatar propriamente os projetos e seus

desdobramentos, considero pertinente refletir e

problematizar, minimamente ao menos, sobre o conceito

de interdisciplinaridade.

Tais reflexão e problematização parecem ir na

contramão do artigo Sobre o conceito de interdisciplinaridade, de

Héctor Ricardo Leis, ao menos quando esse autor afirma

que “parece prudente evitar os debates teórico-ideológicos

sobre o que é interdisciplinaridade” (LEIS, 2005, p. 03.).

Pois entende que, ao menos em se referindo à sociedade

contemporânea, “o conceito de interdisciplinaridade (assim

como o de transdisciplinaridade) tem sofrido usos

excessivos que podem gerar sua banalização” (Idem). E,

dessa forma, seria “preferível partir da pergunta sobre como

esta atividade se apresenta no campo acadêmico atual”

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

(Idem. Itálicos acrescentados), e não propriamente sobre o que é

interdisciplinaridade.

Não desejo entrar propriamente na discussão

levantada por Leis, ou seja, de como a interdisciplinaridade

se apresenta no campo acadêmico de hoje e se o conceito

de interdisciplinaridade tem sofrido usos excessivos que

poderiam banalizá-lo, porque isso poderia render um outro

artigo; apenas entendo pertinente apresentá-lo aqui.

Por outro lado, concordo com o autor quando, no

mesmo artigo, ele afirma que “não existe uma definição

única possível para este conceito, senão muitas, tantas

quantas sejam as experiências interdisciplinares em curso

no campo do conhecimento” (Ibidem, p. 05). Porque “a

tarefa de procurar definições ‘finais’ para a

interdisciplinaridade não seria algo propriamente

interdisciplinar, senão disciplinar” (Idem). E, desse modo,

“uma definição unívoca e definitiva do conceito de

interdisciplinaridade deve ser rejeitada” (Idem).

Mesmo entendendo que não há uma única

definição possível para o conceito de interdisciplinaridade e

nem pretendendo procurar uma definição final para ele,

considero importante, mesmo que sem a pretensão,

obviamente, de esgotar a reflexão, apresentar brevemente

um conceito de interdisciplinaridade para o leitor ter ao

menos uma noção do que está se entendendo por este

conceito no presente texto.

Nesse sentido, apresento um conceito de Ivani

Fazenda (apud ANJOS, Cláudia et al. 2005, p. 11.). Ela diz:

Eu defino hoje, mais do que ontem, a

interdisciplinaridade como uma questão de atitude, de

uma atitude frente a questões do conhecimento, uma

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Leno Francisco Danner (Org.)

atitude de não acomodação, uma atitude de luta por uma

educação melhor, mais justa, uma atitude contra as

limitações, e incentivando a crescer, lutando para que o

espaço do professor seja ressignificado e onde

fundamentalmente esse professor possa dar margem às

suas ousadias, porque é de ousadias que estamos

precisando.

Interdisciplinaridade, para essa autora, é, em

primeiro lugar, uma questão de atitude, em relação ao

conhecimento, em relação a não se deixar acomodar pelo

contexto, realidade, rotina etc. É um espaço em que o

professor pode ousar. Ela implica uma postura frente a

questões do conhecimento, e que é uma postura de não

acomodação.

A mesma autora ainda afirma que a

interdisciplinaridade é uma nova atitude diante da

questão do conhecimento, de abertura à compreensão

de aspectos ocultos do ato de aprender e dos

aparentemente expressos, colocando-os em questão

(apud ANJOS, Cláudia et al. 2005, p. 15.).

Dessa forma, a interdisciplinaridade é uma postura

contra as limitações do conhecimento. É uma postura de

abertura a ele. Uma postura aberta em direção à

compreensão de seus diversos aspectos, não só expressos,

mas também ocultos, para colocá-los em questão, em xeque,

para problematizá-los.

A autora Cláudia dos Anjos complementa de certa

forma o conceito de Ivani Fazenda quando destaca que

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420

Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

ser interdisciplinar é superar a visão fragmentada não só das

disciplinas, mas de nós mesmos e da realidade que nos

cerca; visão essa que foi condicionada pelo racionalismo

técnico. É preciso estabelecer conexões entre os

conhecimentos para que possam, assim, adquirir

significado e sentido (ANJOS, Cláudia et al. 2005, p. 18.).

Em outras palavras, as disciplinas “congelam de

forma paradigmática o conhecimento alcançado em

determinado momento histórico, defendendo-se numa

guerra de trincheiras de qualquer abordagem alternativo

(sic) [alternativa]” (LEIS, 2005, p. 05. Itálicos acrescentados).

Quer dizer, essa forma de pensar faz com que os

pesquisadores, e aqui pode-se acrescentar também os

educadores, “se entrincheirem nas suas especialidades e

sub-especialidades” (Ibidem, p. 04).

E, assim, a partir do desejo de tentar superar a visão

fragmentada da realidade e de proporcionar e possibilitar

conhecimentos que tenham significado e sentido para os

alunos, é que surgiu a idéia de trabalhar temas de forma

interdisciplinar.

2 RELATOS DE PROJETOS: CONHECENDO A

CULTURA GAÚCHA E DESPERDÍCIO

2.1 PROJETO: CONHECENDO A CULTURA

GAÚCHA

Passarei, agora, para o relato de algumas

experiências e projetos vivenciados enquanto professora de

filosofia de ensino médio. Em 2004, desenvolvi um projeto

que intitulei Conhecendo a cultura gaúcha, o qual foi realizado

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421

Leno Francisco Danner (Org.)

em agosto e setembro de 2004 e de 2005, na Escola

Estadual de Educação Básica Marcus Vinícius de Moraes,

em Sapucaia do Sul, RS; escola na qual, à época, eu era

professora de filosofia do ensino médio.

O projeto nasceu do anseio de trabalhar de forma

diferenciada e interdisciplinar o tema cultura gaúcha. O que

desencadeou propriamente a elaboração do mesmo foi a

constatação empírica, digamos assim, do reduzido

conhecimento dos estudantes em relação a essa cultura, ao

menos os da instituição em que trabalhava; conhecimento

que, aliás, considero importante ter em relação à própria

cultura, seja ela qual for.

Quero desde logo esclarecer que este projeto não

visava fazer juízos de valor sobre tal ou tal cultura e,

portanto, não visava exaltar a cultura gaúcha, mas sim

visava proporcionar um maior conhecimento do que se

entende por cultura gaúcha. Assim, não se esperava que, ao

final do projeto, os alunos deixassem simplesmente de gostar

dos ritmos e estilos musicais a que estavam acostumados

antes de se envolverem com o projeto e passassem a gostar

somente de música gaúcha.

O projeto tinha o objetivo, inicialmente, de

abranger o Ensino Médio, ou seja, as disciplinas oferecidas

no ensino médioi na referida escola. Abrangeria

inicialmente disciplinas da área denominada de Ciências

Humanas, como Filosofia, Sociologia, História, Geografia,

Ensino Religioso, da área de Linguagens, como Língua

Portuguesa, Literatura, Educação Artística, Educação Física

e da área de Ciências Exatas e Naturais, Biologiaii.

Mas, afinal, o que foi o projeto? A idéia inicial do

projeto era desenvolver um trabalho de pesquisa por parte

dos alunos a partir de músicas gaúchas, mais conhecidas como

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422

Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

gauchescas e nativistas, com suas respectivas letras,

previamente escolhidas pela professora de Filosofia. As

sugestões iniciais para cada disciplina trabalhar eram as

seguintes: a Filosofia iria abordar a cultura gaúcha no que se

refere aos seus valores num sentido geral e, de forma mais

específica, os valores morais ou a moral tradicionalista. Já a

Língua Portuguesa abordaria a linguagem gaúcha através de

termos típicos da mesma presentes nas letras das músicas

escolhidas. A disciplina História enfocaria a formação do

estado do Rio Grande do Sul e do gaúcho, quem é esse

povo, como se formou. A Geografia, por sua vez, abordaria

a ‘geografia’ da cultura gaúcha, regiões que esta abrange etc.

A Sociologia enfocaria a sociedade gaúcha atual. A Educação

Artística abordaria a produção artística de uma maneira

geral na cultura gaúcha. A Literatura enfocaria as obras

literárias gaúchas. A Educação Física desenvolveria danças

típicas da cultura gaúcha, para posterior apresentação. O

Ensino Religioso abordaria a religiosidade ou a espiritualidade

do povo gaúcho. A Biologia enfocaria as plantas medicinais

na ou da cultura gaúcha e o impacto ambiental provocado pela

cultura gaúcha.

2.1.1 METODOLOGIA E RESULTADOS

2.1.1.1 O PROJETO NO ANO DE 2004

Concebido o projeto Conhecendo a cultura gaúcha, ele

foi, assim, apresentado no início do mês de julho de 2004

aos professores do Ensino Médio da escola, com o objetivo

de despertar o interesse dos mesmos pelo projeto e,

inclusive, o seu envolvimento, cujo desenvolvimento se

daria no segundo semestre, mais propriamente nos meses

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Leno Francisco Danner (Org.)

de agosto e setembro. Após isso, ele foi lançado em cada

disciplina pelos respectivos professores e teve seu

fechamento no encerramento da Semana Farroupilha, que foi

realizado no final de setembro.

As disciplinas procuraram desenvolver as sugestões

apresentadas no projeto. A Filosofia, por exemplo, abordou

principalmente a Moral Tradicionalista, extraída do sítio do

Movimento Tradicionalista Gaúcho, o MTG, na Rede Mundial de

Computadores. Moral essa que foi concebida pelo MTG em

conjunto com os Centros de Tradições Gaúchas, os CTGs, e

que traça um perfil da personalidade do gaúcho. Assim, a

filosofia desenvolveu o projeto através do subsídio à moral

tradicionalista.

A Sociologia por sua vez enfocou a sociedade gaúcha

atual, a partir de textos extraídos de livros sobre o Rio

Grande do Sul. Tomando esses textos como base, fez-se a

discussão sobre a situação da mulher e de outros aspectos

da sociedade gaúcha na atualidade.

A disciplina de Biologia procurou fazer um estudo

sobre as plantas medicinais utilizadas no estado.

O Ensino Religioso procurou pesquisar sobre a

religiosidade do gaúcho, as origens de sua religiosidade, se

o gaúcho em sua origem era religioso ou não.

A História procurou pesquisar sobre a formação do

gaúcho, como se formou esse povo.

A Geografia abordou as regiões (estado e países) que

abrangem o gaúcho.

A Literatura enfocou as obras literárias gaúchas. A

partir dessa disciplina assistiu-se ao filme Concerto Campestre,

baseado no livro homônimo de Luís Antônio de Assis

Brasil, cuja história se passa no Rio Grande do Sul, no

século XIX.

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

A Língua Portuguesa tratou de traduzir os termos

típicos que constavam nas letras de músicas e também

realizou a interpretação das mesmas.

A Educação Artística procurou dar maior enfoque aos

artistas do Rio Grande do Sul. Também nessa disciplina

foram pesquisadas e confeccionadas brincadeiras típicas

gaúchas.

Já a Educação Física procurou desenvolver danças

típicas gaúchas para apresentação das mesmas no dia do

encerramento da Semana Farroupilha.

A Língua Inglesa que, inicialmente não fazia parte do

projeto, engajou-se no transcorrer do mesmo e realizou a

versão das letras de músicas gaúchas da língua portuguesa

para a inglesa, as quais foram apresentadas na mostra final.

As disciplinas acima relatadas se referem

basicamente ao ensino médio da Escola, que era o nível

pretendido inicialmente para o desenvolvimento do

projeto. Como se pode perceber, o projeto teve um bom

envolvimento das disciplinas relatadas, sendo que alguns

professores se envolveram mais e outros menos.

O ensino fundamental, por sua vez, também

acabou por se envolver no decorrer do projeto, com

basicamente as mesmas disciplinas, ao menos com as que

são oferecidas também no ensino fundamental. Outras

mais aderiram ao projeto, como, por exemplo, a Matemática.

Nesta disciplina, os alunos desenvolveram cálculos do

custo de comidas típicas, como carreteiro, ambrosia e arroz

doce (arroz de leite), comidas essas que foram preparadas

pelos alunos e apresentadas na mostra e degustadas pelos

visitantes (comunidade escolar).

O ponto culminante desse projeto foi a 1ª Mostra

Cultural Gaúcha e a 1ª Mateada da Escola, realizadas em final

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Leno Francisco Danner (Org.)

de setembro de 2004. Nessa mostra houve, então,

apresentação dos trabalhos desenvolvidos durante o

projeto, como, por exemplo, músicas gaúchas em inglês,

degustação de comidas típicas, brincadeiras típicas como

cinco marias, pião e outras mais, cartazes com a

abrangência da região do gaúcho e de sua formação, entre

outras. Houve também apresentação de um grande número

de danças típicas, cantos e declamações.

Como se pode ver, os resultados obtidos foram

grandes, pois houve envolvimento de toda a escola,

inclusive das séries iniciais do ensino fundamental que, no

dia do encerramento, também participaram da mostra e das

danças. Pode-se dizer que o projeto foi um sucesso, pois foi

o maior evento já ocorrido na escola, devido tanto ao

número de professores quanto ao de alunos envolvidos e

mesmo o de representantes da comunidade escolar que

participaram e visitaram a 1ª Mostra Cultural Gaúcha e a 1ª

Mateada da Escola.

2.1.1.2 O PROJETO NO ANO DE 2005

O projeto em 2005 seguiu os mesmos moldes que

em 2004, porém não houve tanto engajamento dos

professores com o mesmo. Em função disso, a culminância

do projeto se deu somente com a apresentação de danças,

cantos e declamações, não ocorrendo a mostra cultural. As

causas disso são difíceis de precisar. Será que se deve ao

fato de o projeto não ter sido mais uma novidade?

Assim, em 2005, o projeto não foi mais aquele

sucesso ocorrido no ano anterior, tendo sido menor tanto o

número de professores envolvidos quanto o de alunos, o

que resultou num evento também de menor tamanho.

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

2.2 PROJETO: O DESPERDÍCIO

A reflexão sobre a questão ambiental é algo que,

nos dias atuais, tem de ser ‘encarada de frente’, é uma

questão que não se pode passar ao largo, haja vista os

grandes problemas ambientais decorrentes da ação humana

no planeta. E, sendo assim, também a disciplina de filosofia

tem de refletir sobre esse assunto, tem de tomar parte, tem

de se pronunciar e, quiçá, ajudar a promover mudanças

nesse sentido.

Com o intuito, então, de ajudar a desenvolver,

através da educação, uma maior responsabilidade ambiental

no processo da formação profissional foi proposto a

estudantes da terceira série dos cursos técnicos em

agropecuária e em alimentos pelas professoras de Ética e

Sociologia, no caso eu, e de Matemática Financeira, no

segundo semestre de 2009, um projeto sobre o desperdício

no IFC - Campus Concórdia.

A proposta deste trabalho objetivou uma maior

aproximação entre as disciplinas do Ensino Médio

(Sociologia e Matemática Financeira) com as disciplinas do

curso Técnico (Ética) pelo desenvolvimento de um projeto

interdisciplinar sobre o tema desperdício. A escolha de

elaboração de projetos a partir da temática do desperdício

ocorreu justamente pelo caráter interdisciplinar que esse

tema tem e pela possibilidade de aprendizagem de

conceitos fundamentais para os cidadãos e os futuros

profissionais das referidas áreas técnicas.

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Leno Francisco Danner (Org.)

2.2.1 O PROJETO E OS TRABALHOS

DESENVOLVIDOS

Pensando em uma proposta mais interdisciplinar,

discutimos, eu e a professora de Matemática Financeira,

então, a idéia de um projeto que abordasse, com enfoques

diferentes, o mesmo tema. Porém, uma novidade ou uma

talvez diferença em relação aos outros trabalhos escolares,

por assim dizer, é que este não objetivava simplesmente

uma coleta ou levantamento de dados para serem

apresentados em aula, mas intentava também, como

momentos posteriores a esse, a elaboração de uma campanha

para diminuir o desperdício no IFC - Campus Concórdia e,

por último, uma avaliação dessa campanha.

O projeto tinha, portanto, o objetivo geral, por

assim dizer, de promover o questionamento em relação à

problemática do desperdício, tanto a nível global quanto a

nível local, procurando detectar prováveis causas e elaborar

possíveis propostas de melhoras a nível local, a partir de

sugestões dos próprios estudantes, para promover assim o

envolvimento efetivo dos estudantes na diminuição do

desperdício no seu local de estudo e moradia.

O projeto foi, então, desenvolvido em partes. A

estas partes chamamos neste texto de etapas. Para maior

compreensão do leitor, elas são apresentadas a seguir.

Primeira etapa. Os alunos tinham que escolher um

dos temas relacionados abaixo e, por um mês, deveriam

fazer uma coleta de dados e informações relativos ao seu

tema no Campus, ou seja, deveriam pesquisar o consumo e

investigar a ocorrência ou não daquele tipo específico de

desperdício.

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428

Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

Alguns temas desenvolvidos foram: o desperdício de

alimentos; um grupo, por exemplo, pesquisou

especificamente o almoço e outro o jantar no refeitório da

Instituição. Outro tema foi o desperdício de água em geral,

ou seja, em toda a Instituição, tema que teve também um

grupo que pesquisou especificamente o desperdício de água

apenas no Setor de Zootecnia III, ou seja, o setor destinado

ao gado de leite e ao gado de corte. Outros grupos tiveram

como tema o desperdício de energia elétrica em geral, ou seja,

em toda a Instituição; o desperdício de papel; o desperdício

de lixo orgânico (entendido aqui como a má destinação ou

destinação incorreta do mesmo); o desperdício de lixo seco

(também entendido como má destinação ou destinação

incorreta do mesmo); o desperdício de materiais em

laboratórios (aqui se referiu especificamente à produção de

água destilada, a qual, para ser produzida, acarreta um

grande desperdício de água potável).

Segunda etapa. Após um mês de pesquisa, os

estudantes apresentaram seus trabalhos em aula para debate

com os colegas e as professoras. Nesta etapa, foram

apresentados os projetos de pesquisa, os dados coletados

até aquele momento e os referenciais teóricos sobre a

temática.

No intuito de dar uma ideia dos trabalhos

elaborados e desenvolvidos, apresentaremos um dos que

teve maior repercussão junto à comunidade escolar e que

foi realizado por um grupo de estudantes do curso técnico

em alimentos. O trabalho consistiu, primeiramente, em

acompanhar o almoço, durante cinco dias consecutivos, no

refeitório da Instituição através da pesagem dos alimentos

(crus e cozidos) a serem servidos na refeição dos estudantes

e servidores (primeira coluna da tabela).

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Leno Francisco Danner (Org.)

Num segundo momento, o trabalho delimitou uma

quantidade ‘x’ de bandejas a serem pesadas para, a partir

daí, estabelecer uma média de peso de almoço por pessoa

(terceira coluna da tabela). Após o término da refeição,

procedeu-se, novamente, à pesagem das sobras nas

bandejas - excluindo os ossos, sobras que foram

consideradas como desperdício por terem tido como

destino final o lixo.

Na sequência, apresentamos a tabela com os dados

obtidos, de segunda a sexta-feira, no refeitório do IFC -

Campus Concórdia.

Dias

Produção de

Alimentos(kg

Total Refeiç

ões

Média de

Alimento/pes. (kg)

Sobras/lixo

(kg)

Refeições

Desperdiçadas

Segunda feira 243,410 403 0,588 67,500 114 Terça -

feira 362,070 407 0,710 44,500 62 Quarta - feira 281,840 381 0,670 38,800 58

Quinta - feira 367,960 408 0,747 53,800 72 Sexta - feira 245,000 365 0,680 76,900 113

Fonte: Zampieron et all, IFC – Campus Concórdia, 2009

O que chamou atenção e também foi significativo

para os estudantes foi a quantidade de alimento que estava

sendo desperdiçada durante o almoço no refeitório do

Instituto. A última coluna apresentada se refere à

quantidade de refeições desperdiçadas no período

pesquisado. Observa-se que poderia ser alimentado um

terço a mais de pessoas.

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

Terceira etapa. Redimensionamento dos trabalhos a

partir das sugestões, debate em sala de aula e elaboração da

apresentação dos trabalhos realizados para a Mostra de

Cultura, Ciência e Tecnologia do IFC - Campus Concórdia

2009. A apresentação dos trabalhos na mostra, além da

divulgação dos dados, possibilitou também o início do

processo da última etapa dos projetos: a campanha a ser

desenvolvida junto à comunidade escolar.

Quarta etapa. Elaboração de campanha ou alguma

forma de divulgação para alertar a comunidade e propor

alternativas de minimização do desperdício. Como

exemplo, o grupo, cujo trabalho apresentamos acima,

explorou de forma marcante os dados obtidos e ofereceu

panfletos com receitas alimentares usando partes dos

vegetais e alimentos que muitas vezes são desperdiçados.

Com os dados produzidos por esse grupo e por

outro que acompanhou por cinco dias o jantar no mesmo

refeitório, um grupo diferente de alunos organizou um

vídeo no qual foi problematizada a fome no mundo,

através de imagens extraídas da Rede Mundial de

Computadores e também com as imagens tiradas do

desperdício no refeitório.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O primeiro projeto relatado, isto é, o intitulado

Conhecendo a cultura gaúcha, teve como objetivo inicial

envolver de certa forma todas as disciplinas do Ensino

Médio num mesmo tema, que foi a Cultura Gaúcha,

preservando o enfoque de cada uma. No ano de seu

lançamento, ele envolveu toda a escola, estendendo-se

primeiramente às séries finais do ensino fundamental e

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Leno Francisco Danner (Org.)

chegando às séries iniciais deste, atingindo inclusive a

educação infantil com a antiga pré-escola, inclusive a direção

não ficou de fora desse envolvimento. Percebeu-se nos

alunos a sua motivação em desenvolver esse trabalho, pois

foi um trabalho diferente para os mesmos, do qual gostaram

e se envolveram.

Podemos dizer que esse foi um projeto bem

sucedido, ao menos em sua primeira edição, que valeu a

pena, que foi interessante e trouxe muitos frutos, tanto para

alunos quanto para professores e, de certa forma, para toda

a escola de modo geral. Mas, além disso, o projeto parece

ter trazido um pouco de significado ao conhecimento

pesquisado e apresentado pelos alunos, pelo envolvimento

que os mesmos mostraram.

Já o outro projeto relatado, ou seja, o projeto

referente ao tema desperdício, também foi um projeto bem

sucedido. A constituição do projeto em etapas definidas

previamente, ou seja, coleta de dados, plano de ação e

campanha, proporcionou uma posição mais reflexiva e

também ativa dos estudantes, o que significou um dar-se

conta do problema e da grandiosidade do desperdício,

tanto no próprio Campus quanto a nível mundial.

Além disso, os estudantes que integraram este

projeto se mostraram, de modo geral, bastante envolvidos e

interessados, tanto durante a elaboração dos seus trabalhos,

quanto na coleta dos dados, bem como durante as

apresentações, seja em sala de aula ou durante a Mostra de

Cultura, Ciência e Tecnologia do IFC - Campus Concórdia.

Alguns trabalhos produziram impacto inclusive em

toda a comunidade escolar, não se restringindo aos

estudantes envolvidos no projeto, isto é, às terceiras séries.

Esses trabalhos referem-se à questão de desperdício de

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Ensino de filosofia e interdisciplinaridade

alimento no refeitório, o que resultou em significativas

reduções na quantidade de alimento que restava ao final das

refeições, nas bandejas, de acordo com o depoimento da

nutricionista responsável pelo setor.

O debate que este projeto produziu junto aos

estudantes e à comunidade escolar certamente propiciou

novas aprendizagens, tanto para os estudantes envolvidos

quanto para as professoras. A proposta de construção de

outro modelo de ação em sala de aula, conduzindo ao

aprender a aprender, faz do escrever uma maneira de

pensar.

Como se procurou mostrar, esses dois projetos

tiveram um grande envolvimento dos estudantes, em

especial, e, além disso, parecem ter propiciado a estes um

significado ao seu conhecimento, aprendizado daí

decorrente e, desta forma, foram também muito

gratificantes para quem os ministrou.

Mesmo que com breves reflexões, superficiais até,

permanecendo mais na forma de relato propriamente,

espera-se, com este texto, ter contribuído minimamente

para as discussões do ensino de filosofia e de suas relações

com o tema interdisciplinaridade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ANJOS, Cláudia et al. Trabalho interdisciplinar – como?

por quê? Porto Alegre: Colégio La Salle São João, 2005.

LEIS, Héctor Ricardo. Sobre o conceito de

interdisciplinaridade. Cadernos de Pesquisa

Interdisciplinar em Ciências Humanas. nº 73,

Florianópolis, agosto/2005.

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Leno Francisco Danner (Org.)

ANJOS, Cláudia dos. Trabalho interdisciplinar – como?

por quê? Porto Alegre: Colégio La Salle São João, 2005.

ZAMPIERON et all, IFC – Campus Concórdia; trabalho

apresentado em aula – não publicado. 2009.

i O Ensino Médio na Escola Estadual de Educação Básica Marcus Vinícius de Moraes funciona no regime de MD, ou seja, matrícula por disciplina e, assim, não existem turmas como no sistema por série, o que, de certa forma, pode atrapalhar o trabalho interdisciplinar, pois as turmas não têm os mesmos alunos, mas, também, não é um fator que impede de se tentar realizar um trabalho nestes moldes. ii Informamos que as disciplinas citadas acima não encerram o Ensino Médio na referida escola, ou seja, nem todas as disciplinas estavam contempladas, ao menos, inicialmente, no projeto. Só como exemplo podemos citar algumas como Matemática, Química, Física, Língua Inglesa.

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