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Ensino, aprendizagem e avaliação em História: múltiplos diálogos MARCUS LEONARDO BOMFIM MARTINS Resumo A proposta desse ensaio é sumariar algumas possibilidades de diálogos com e entre os campos do Currículo, da Didática, da Avaliação, da História e do Ensino de História para enfrentar a questão que proponho em minha pesquisa de doutorado: que aprendizagens históricas têm sido exigidas dos alunos da Educação Básica por meio de diferentes instrumentos de avaliação? Tal proposta se situa em uma perspectiva que toma o campo do Ensino de História como lugar de fronteira, isto é, espaço de entrecruzamentos e demarcação de limites. Interessa, pois, fazer emergir possibilidades de diálogos que possam contribuir para o desenvolvimento de pesquisas no/em/com/sobre o Ensino de História e ampliar as opções de fazeres nas salas de aula da Educação Básica. O currículo é aqui pensado como prática de significação sobre questões educacionais; a didática é tomada como campo que privilegia as relações de ensino-aprendizagem em seus estudos; a avaliação como prática curricular- didática que legitima conhecimentos validados a serem ensinados; e a História, e sua teoria, como ciência de referência para a produção das narrativas históricas escolares. Partindo de tais pressupostos e exercitando o diálogo entre os campos anunciados, emergiram questões que deverão ser enfrentadas na pesquisa anunciada: que conhecimentos históricos têm sido legitimados por diferentes instrumentos de avaliação para serem ensinados na Educação Básica? Que matrizes historiográficas e pedagógicas têm sido privilegiadas nas narrativas históricas escolares fixadas nos instrumentos de avaliação? O que há de específico na didática da História que mereça estar em uma avaliação? Que diálogos interdisciplinares são legitimados em uma avaliação de História? Que tradições disciplinares da História podem ser percebidas em diferentes instrumentos de avaliação? Que elementos que compõem a cadeia de equivalências definidora de conhecimento histórico escolar, exceto o conteúdo, fazem parte das avaliações dessa disciplina? Que abordagens temporais têm sido hegemônicas nas avaliações de História? Que sentidos os conteúdos assumem nas avaliações? O campo do Ensino de História no Brasil sabe que domínios os estudantes precisam para aprenderem História? Palavras-chave: Ensino de História; Avaliação; Aprendizagem; Currículo; Teoria da História. Doutorando e Mestre em Educação (PPGE/UFRJ); Professor de História (SEEDUC/RJ); Membro do Grupo de Estudos Currículo, Cultura e Ensino de História vinculado ao Núcleo de Estudos do Currículo da Faculdade de Educação da UFRJ (GECCEH/NEC/UFRJ).

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Ensino, aprendizagem e avaliação em História: múltiplos diálogos

MARCUS LEONARDO BOMFIM MARTINS

Resumo

A proposta desse ensaio é sumariar algumas possibilidades de diálogos com e entre os campos

do Currículo, da Didática, da Avaliação, da História e do Ensino de História para enfrentar a

questão que proponho em minha pesquisa de doutorado: que aprendizagens históricas têm

sido exigidas dos alunos da Educação Básica por meio de diferentes instrumentos de

avaliação? Tal proposta se situa em uma perspectiva que toma o campo do Ensino de História

como lugar de fronteira, isto é, espaço de entrecruzamentos e demarcação de limites.

Interessa, pois, fazer emergir possibilidades de diálogos que possam contribuir para o

desenvolvimento de pesquisas no/em/com/sobre o Ensino de História e ampliar as opções de

fazeres nas salas de aula da Educação Básica. O currículo é aqui pensado como prática de

significação sobre questões educacionais; a didática é tomada como campo que privilegia as

relações de ensino-aprendizagem em seus estudos; a avaliação como prática curricular-

didática que legitima conhecimentos validados a serem ensinados; e a História, e sua teoria,

como ciência de referência para a produção das narrativas históricas escolares. Partindo de

tais pressupostos e exercitando o diálogo entre os campos anunciados, emergiram questões

que deverão ser enfrentadas na pesquisa anunciada: que conhecimentos históricos têm sido

legitimados por diferentes instrumentos de avaliação para serem ensinados na Educação

Básica? Que matrizes historiográficas e pedagógicas têm sido privilegiadas nas narrativas

históricas escolares fixadas nos instrumentos de avaliação? O que há de específico na didática

da História que mereça estar em uma avaliação? Que diálogos interdisciplinares são

legitimados em uma avaliação de História? Que tradições disciplinares da História podem ser

percebidas em diferentes instrumentos de avaliação? Que elementos que compõem a cadeia

de equivalências definidora de conhecimento histórico escolar, exceto o conteúdo, fazem

parte das avaliações dessa disciplina? Que abordagens temporais têm sido hegemônicas nas

avaliações de História? Que sentidos os conteúdos assumem nas avaliações? O campo do

Ensino de História no Brasil sabe que domínios os estudantes precisam para aprenderem

História?

Palavras-chave: Ensino de História; Avaliação; Aprendizagem; Currículo; Teoria da História.

Doutorando e Mestre em Educação (PPGE/UFRJ); Professor de História (SEEDUC/RJ); Membro do Grupo de

Estudos Currículo, Cultura e Ensino de História vinculado ao Núcleo de Estudos do Currículo da Faculdade de

Educação da UFRJ (GECCEH/NEC/UFRJ).

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Introdução

Ao buscar responder a questão que aprendizagens históricas têm sido exigidas dos

alunos da Educação Básica por meio de diferentes instrumentos de avaliação? elaborada no

âmbito da pesquisa de doutorado ora intitulada Ensino de História e Avaliação: o que tem

sido considerado “aprender História”?, parto do pressuposto que diferentes campos, no

sentido bourdieusiano1 do termo, podem contribuir na formação de um arcabouço teórico-

metodológico para interpelar o objeto construído. Reconhecendo as especificidades de cada

campo e as disputas fronteiriças entre eles, entendo que há, contudo, possibilidades de

construção de diálogos férteis para o enfrentamento do problema de pesquisa. Esse texto, no

entanto, terá como preocupação central a criação de questões que possam servir de concreto

para a construção de pontes entre os campos, sem a pretensão de tentar responde-las, o que

ficará para a pesquisa.

Entendendo que não existem questões neutras, mas que elas revelam uma postura

epistêmica, explicito aqui que a pesquisa, e também este texto, são orientados por uma

perspectiva discursiva pautada em uma ordem pós-fundacional, que radicaliza as críticas às

produções de verdade baseadas em qualquer fundamento produzido fora do jogo da

linguagem, assim, essa perspectiva valoriza o político, entendido como “ontológico do social”

(LACLAU, 2005), e a contingência na produção de verdades, o que significa valorizar as

relações de poder nas disputas “pelo que há, pelo que está acontecendo, pelo para onde vão as

coisas” (BURITY, 2010, p. 8).

Assumindo o campo do Currículo como lugar de fala, e entendendo-o como prática de

significação sobre questões educacionais, de forma mais ampla, e de escola e disciplinas, de

forma mais específica, considero que pensar sobre aprendizagens desejadas remete ao tipo de

estudante que se quer formar, e conhecimentos considerados “poderosos” (YOUNG, 2007)a

serem ensinados para este fim.

Para além das disputas internas do campo da Didática, compartilho da perspectiva que

considera as relações de ensino-aprendizagem o objeto de estudo da Didática. Além dessa

questão, a relação entre práticas didático-pedagógicas, dentre as quais a que aqui assume

centralidade - a avaliação, e currículo, torna relevante o diálogo da pesquisa que faço com o

campo, pois tais práticas devem ser orientadas com vistas a um objetivo curricular, ou seja,

em função do que se desejar construir e significar discursivamente.

1 Com base nos estudos do sociólogo francês Pierre Bourdieu, resumidamente, um campo pode ser entendido

como sistema estruturado de posições assimétricas a partir das quais se definem lutas e consensos tendo como

eixo comum o domínio de um capital específico legítimo.

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O campo da Avaliação assume condição de elemento incontornável para o diálogo que

proponho à medida que tem produzido estudos que abordam as singularidades e os pontos de

interseção entre avaliação da aprendizagem, avaliação de desempenho e políticas de

avaliação. Destaque-se também, que vários são os sujeitos afetados pelos significados e

sentidos produzidos em função dos resultados obtidos em qualquer avaliação, uma vez que

elas são fortemente legitimadas em qualquer relação educacional e, comumente, seus

resultados assumem valor de verdades absolutas.

Como o objeto de pesquisa construído está diretamente relacionado à uma área

disciplinar específica, interessa compreender as configurações das tradições relacionadas ao

Ensino de História, tanto em termos de objetivos, como de práticas, e especificidades

epistemológicas do conhecimento produzido para ser objeto de ensino na Educação Básica.

Organizo, portanto, esse artigo em quatro pequenas seções nas quais exploro o que, no

momento, entendo serem as contribuições de cada campo para a pesquisa, e deixo para as

considerações finais as tentativas de fazer os campos dialogarem e o levantamento de

questões passíveis de serem respondidas ao longo do desenvolvimento da pesquisa.

Dialogando com o campo do Currículo

Diversas são as temáticas relacionadas ao campo do Currículo. Interessa-me aqui

destacar a opção em dar centralidade à questão do conhecimento, tal qual Moreira (2007),

Young (2007), Gabriel (2008), dentre outros. Tal opção não significa abrir mão das demandas

de diferença que interpelam o currículo (MACEDO, 2016), a escola e a educação, mas

relacionar tais demandas com a produção de conhecimentos que possam ser adjetivados como

escolares. Operar com a distinção entre conhecimento escolar e outros tipos de conhecimento

significa situar-se em uma luta política pela definição do tipo de conhecimento que deve ser

produzido, ensinado, consumido e avaliado nas escolas da Educação Básica, o que mobiliza

visões de mundo, de forma mais abrangente, mas também de educação escolarizada, de aluno,

de ensino-aprendizagem, dentre outros.

Retomando a definição de currículo como prática de significação e reconhecendo a

centralidade do conhecimento no currículo, entendo que os conhecimentos selecionados e

mobilizados nas relações de ensino-aprendizagem no âmbito escolar revelam as tensões e

disputas das áreas disciplinares às quais estão vinculados. Dado o elevado caráter axiológico

intrínseco à produção do conhecimento histórico, seja ele acadêmico ou escolar, as disputas

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tendem a ser mais acirradas, o que, no entanto, não impede a produção de tradições

disciplinares na escolha de tais conhecimentos para fazerem parte do currículo e das práticas á

ele atreladas, como a avaliação, por exemplo.

Em Martins e Gabriel (2016, p. 710) apontei que a política de avaliação que vigorou

até o presente ano no estado do Rio de Janeiro mantinha uma tradição arraigada do Ensino de

História: “As narrativas históricas hegemonizadas no Saerjinho reproduzem tradições dessa

disciplina escolar como o foco nas questões políticas em uma perspectiva temporal linear,

atrelada à ideia de progresso e de viés eurocêntrico.”. Essa constatação evidencia vínculos

entre currículo e avaliação à medida que, ao se entender avaliação como aquilo que legitima e

valida o conhecimento ensinado em sala de aula, ela se torna reguladora do currículo.

Veiga-Neto (2013) entende que mais do que ser “um farol para o currículo”, o atual

estágio de consolidação de políticas de avaliação tem gerado um “desvio à direita” nas

práticas educacionais, saindo da sequência Currículo > Ensino > Avaliação, para a sequência

Avaliação > Currículo > Ensino.

Não seria, portanto, exagero pensar as políticas de avaliação como políticas

curriculares que definem os conhecimentos que devem ser ensinados nas escolas da Educação

Básica. Assim, problematizar o que tem sido considerado aprender História tendo como ponto

de partida instrumentos de avaliação, implica fazer um deslocamento em direção aos

conhecimentos históricos que têm sido validados para serem ensinados, assim como

identificar as matrizes teóricas dos campos historiográfico e educacional combinadas na

produção desse conhecimento voltado para o espaço escolar.

Dialogando com o campo da Didática

Conforme abordado na introdução, a contribuição primeira do campo da Didática para

pensar o objeto de pesquisa construído é a centralidade da problematização das relações de

ensino-aprendizagem como principal objeto de pesquisa do campo (CANDAU, 1997). Ao

articular no título da pesquisa os significantes “ensino” e “aprender”, aponto para a defesa da

vinculação intrínseca entre esses significantes e as práticas a eles associadas nas relações

escolares. Ou seja, não entendo ser possível dissociar ensino de aprendizagem, pois esta deve

ser também preocupação daquele.

Tangenciando uma discussão recorrente do campo sobre questões técnicas que seriam

universais para a atividade de ensinar, entendo que as especificidades epistemológicas de cada

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disciplina que compõe o currículo escolar participam de forma decisiva das possibilidades de

desenvolvimento satisfatório das relações de ensino-aprendizagem. Nesse sentido, considero

fértil o desenvolvimento de didáticas específicas, encarregadas de participar do processo de

transformação do conhecimento histórico científico/acadêmico em conhecimento histórico

escolar, pois elas tendem a articular as matrizes teóricas da ciência de referência com as da

pedagogia.

Nesse sentido, interessa identificar o que seria específico da didática da História.

Assumindo uma postura teórica em consonância com a hermenêutica de Paul Ricoeur (1997),

na qual o conhecimento histórico é estruturado a partir de narrativas temporais, aposto na

potencialidade de desenvolvimento de formas específicas de ensinar o e sobre o tempo, que

para Ricoeur, “só se deixa dizer na forma de narrativa”. Dessa forma, acredito que há

singularidades na forma de ensinar História que são necessariamente distintas de ensinar

Matemática, Química, Linguagens ou qualquer outra disciplina do currículo escolar.

Ainda que reconheça a necessidade de destaque do que é específico da História, é

pertinente que se incorpore as demandas sociais por interdisciplinaridade nos estudos sobre a

configuração do conhecimento histórico escolar oferecido aos estudantes da Educação Básica.

Essa postura está assente em uma perspectiva que entende que os fundamentos que definem o

que se chama Didática da História não são preexistentes e definidos por uma essência, mas

configurados por meio de lutas políticas nas quais a relação com outras disciplinas participam

das disputas pela sua definição.

Ao apostar na potencialidade de didáticas específicas, entendo que tal postura

reverbera na elaboração das avaliações, que assumiriam também, contornos próprios

definidos por essa didática em relação com aspectos da didática “mais geral”. Para isso, no

entanto, é necessário que se saiba o que o campo do Ensino de História entenda serem os

objetivos do ensino dessa disciplina escolar, o que pretendo abordar brevemente na ultima

sessão deste texto.

Dialogando com o campo da Avaliação

Tenho defendido (MARTINS, 2011, MARTINS; GABRIEL, 2016) a avaliação como

prática curricular e pedagógica, pois “nela se reproduz em forma de questões o conhecimento

que se quer aprendido”, e a forma e o conteúdo das questões legitimam determinados

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saberes/fazeres didáticos. Assim, articulo questões do Currículo e da Didática para pensar a

avaliação.

O campo da Avaliação tem crescido bastante desde a última década do século passado

quando as políticas educacionais deslocaram a avaliação para o centro de suas preocupações,

e tem produzido estudos caros às investigações na área educacional. Uma importante

distinção feita no âmbito do referido campo é entre avaliação da aprendizagem e avaliação de

desempenho. A primeira, geralmente produzida internamente nas escolas pelos docentes das

turmas, acompanha a trajetória individual dos alunos em uma perspectiva longitudinal. O

professor e a escola sabem o que o aluno sabia (ou não) e o quanto evoluiu (ou não) no

aprendizado. Já a avaliação de desempenho, geralmente as aplicadas em larga escala, ao final

de uma série ou ciclo, em determinada rede de ensino, identifica apenas um retrato do

momento no qual foi aplicado o instrumento de avaliação, não permitindo, portanto,

acompanhar cada aluno individualmente, sendo, no entanto, importante para apontar

características gerais de uma escola ou rede.

Compreender tal distinção é indispensável para saber o que cada avaliação pode

oferecer de respostas para quem avalia, partindo do pressuposto de Luckesi (2011) de que o

ato de avaliar só se completa quando se age diante do que foi constatado na avaliação. Nesse

sentido, Perrenoud (1999) argumenta em defesa de uma avaliação que seja formativa, isto é,

que esteja em função da regulação das aprendizagens, o que para o autor significa “ajudar o

aluno a aprender”. No entanto, para que a avaliação possa cumprir essa tarefa, é indispensável

que ela seja pensada e produzida a partir de dois movimentos complementares: afastamento

da lógica das hierarquias de excelência e transformação das relações e práticas pedagógicas.

Partilhando com o sociólogo suíço da dificuldade de transposição dessa ordem,

entendo que vincular a condição de uma avaliação que tenha como norte a regulação das

aprendizagens a mudanças pedagógicas radicais enfraquece possibilidades de avanços no

interior dos atuais sistemas, nos quais, apesar das dificuldades, é possível intervir em favor de

processos educacionais menos excludentes e voltados para uma distribuição mais igualitária

do conhecimento escolar.

Regular as aprendizagens, na visão de Perrenoud (1999, p. 90), é atuar sobre o

“conjunto das operações metacognitivas do sujeito e de suas interações com o meio que

modificam seus processos de aprendizagem no sentido de um objetivo definido de domínio.

Com efeito, não há regulação sem referência a um estado almejado ou a uma trajetória

ótima.”. É difícil identificar com certeza as operações e as interações favoráveis e guia-las

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com precisão, mas de acordo com o autor, cabe ao professor e a escola atuar com essa

intenção, principalmente em favor dos estudantes cuja situação socioeconômica os colocam

em desvantagem no contexto da cultura escolar, e que, por conta disso, precisam mais da

escola.

Tomar a avaliação como instrumento regulador das aprendizagens é situá-la no campo

da Didática, pois ela se constitui como instrumento mediador do processo de ensino-

aprendizagem, à medida que tem potencial de interferir nas questões de ensino a partir do

diagnóstico de aprendizagem realizado por meio dela. No que se refere ao “objetivo definido

de domínio”, trata-se de uma questão curricular que envolve disputas internas das áreas de

conhecimento vinculadas ao “ensino de”. No caso da História, interessa que se investigue as

tradições de tal comunidade disciplinar em relação aos objetivos gerais do ensino dessa

disciplina em escolas da Educação Básica, mas também o que se deseja de fato aprendido

pelos estudantes, tanto em termos de conteúdos e conhecimentos, como em termos de

habilidades e competências. Essas questões articulam, de forma incontornável, aspectos dos

campos do Currículo, da Didática e da Avaliação.

Dialogando com o campo do Ensino de História

Abordar o Ensino de História como campo já significa, em si mesmo, uma forma

política de entrar no debate a cerca da legitimidade de quem tem o direito de definir os

objetivos do ensino escolar da História. As disputas em relação ao ensino de História podem

ser evidenciadas na expressão “lugar de fronteira” cunhada por Monteiro e Penna (2011) para

dar conta da defesa do Ensino de História como um campo que produz saberes a partir da

relação entre teorias do Currículo, da Didática e da História. Tal perspectiva permite combater

a denúncia feita por Abud (2005) da tradição do campo da História em pensar o ensino apenas

como adequação da linguagem para transmissão do conhecimento produzido

academicamente. Nesse sentido, Monteiro e Penna (2011) defendem a especificidade

epistemológica do conhecimento histórico escolar, pois se trata, na visão dos autores, de um

“conhecimento com rigor teórico e metodológico, que representa uma perspectiva e que

precisa ser validado pelos pares, sujeito necessariamente a críticas e superações”

(MONTEIRO e PENNA, 2011, p. 192). Na mesma perspectiva desses autores, Gabriel (2003)

entende que:

Trata-se de apostar na possibilidade de pensar a história ensinada (...) não mais

como necessariamente uma versão simplificada e reduzida do conhecimento

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histórico produzido pelas pesquisas acadêmicas, mas sim como uma configuração de

ordem epistemológica (cognitiva) e axiológica (ética-político-cultural) com um grau

de especificidade e autonomia suficientes para que ela possa ser percebida como um

saber diferenciado. (GABRIEL, 2003, p. 15-16).

Ainda que o conhecimento histórico escolar não seja apenas uma simplificação do

conhecimento histórico acadêmico, é necessário que se reconheça as relações existentes entre

eles. Na perspectiva aqui assumida, o conhecimento histórico produzido academicamente

serve como ciência de referência para a produção do escolar, sendo adjetivado como

conteúdo. Assim, distingue-se conhecimento escolar de conteúdo, mas garante-se a presença

deste naquele. Há de se destacar, porém, que tomar os conteúdos como parte do conhecimento

escolar não significa tomar o conhecimento produzido na e para o ensino como algo maior

e/ou mais importante em si mesmo, mas assumir que para tornar ensinável e aprendível um

objeto cientificamente produzido é necessário incorporar outros saberes à cadeia equivalencial

definidora do conhecimento escolar. Além disso, o conteúdo é aqui percebido como o

responsável por colocar o conhecimento escolar no domínio do “verdadeiro”.

Concordo com Gabriel e Moraes (2014, p. 32) que afirmam que “assumir a

centralidade do papel dos fluxos de cientificidade na definição de conhecimento escolar não

significa operar com a ideia de ‘a’ verdade em uma perspectiva a-histórica, mas sim assumir o

compromisso da escola com o ‘valor de verdade’”. O modo como a ciência de referência está

sendo aqui tomada na relação com o conhecimento escolar inibe críticas de uma possível

defesa de conteudismo, mas também se afasta do que Veiga-Neto (2012) nomeou como

conteudofobia. São, pois os fluxos de cientificidade representados pelos conteúdos que

tornam o conhecimento escolar um “conhecimento poderoso” (YOUNG, 2007), que tem

como função “fornecer explicações confiáveis ou novas formas de se pensar a respeito do

mundo” (YOUNG, 2007, p. 1294). Cabe, portanto, às escolas, garantir a produção e

circulação desse conhecimento que não poderia ser acessado pelos estudantes em outros

espaços.

É indispensável, pois, sumariar as discussões travadas no âmbito da comunidade

disciplinar do Ensino de História no sentido de compreender os objetivos do ensino dessa

disciplina escolar e o que esta comunidade entende por aprendizagem histórica. Como aponta

Velasco (2013), tradicionalmente o campo do Ensino de História apresenta demanda pela

formação de “cidadãos críticos”, no entanto, não há clareza do que o campo entende ser

formar “cidadãos críticos”, o que reverbera em disputas sobre conteúdos a fazerem parte de

documentos curriculares e ausência de consenso mínimo sobre o que é indispensável que um

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estudante da Educação Básica aprenda nas aulas de História, o que reflete, de forma

incontornável, nas avaliações, mas que também não impedem que haja determinada tradição

na formulação de questões desta área para a construção de instrumentos avaliativos.

Considerações Finais

Apresentei ao longo deste texto algumas possibilidades de diálogos entre os campos

do Currículo, da Didática, da Avaliação e do Ensino de História na configuração do objeto de

pesquisa que estou construindo para a pesquisa de doutorado. A maior dificuldade na

elaboração desse texto foi estruturá-lo tentando apresentar os diálogos com os campos de

forma estanque. Tal dificuldade expressa as enormes vias de contatos entre eles, pois uma

avaliação não prescinde de um sentido que a oriente, está relacionada aos objetivos

educacionais mais amplos e aos objetivos específicos das disciplinas, valida e legitima

conhecimentos e conteúdos, dentre outros aspectos.

Diante do que foi brevemente exposto levanto algumas questões, sem a pretensão de

esgotá-las e respondê-las nas balizas deste texto, que podem ser férteis, por meio das

problematizações que elas trazem, para ajudar a responder o problema de pesquisa anunciado

na introdução: que conhecimentos históricos têm sido legitimados por diferentes instrumentos

de avaliação para serem ensinados na Educação Básica? Que matrizes historiográficas e

pedagógicas têm sido privilegiadas nas narrativas históricas escolares fixadas nos

instrumentos de avaliação? O que há de específico na didática da História que mereça estar

em uma avaliação? Que diálogos interdisciplinares são legitimados em uma avaliação de

História? Que tradições disciplinares da História podem ser percebidas em diferentes

instrumentos de avaliação? Que elementos que compõem a cadeia de equivalências definidora

de conhecimento histórico escolar, exceto o conteúdo, fazem parte das avaliações dessa

disciplina? Que abordagens temporais têm sido hegemônicas nas avaliações de História? Que

sentidos os conteúdos assumem nas avaliações? O campo do Ensino de História no Brasil

sabe que domínios os estudantes precisam para aprenderem História?

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