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PESQUISA ENSAIOS SOBRE O DIREITO ADMINISTRATIVO GLOBAL E SUA APLICAÇÃO NO BRASIL Michelle Ratton Sanchez Badin ORGANIZADORA André Orengel Dias Benedict Kingsbury B. S. Chimni Maíra Rocha Machado Nico Krisch Richard B. Stewart

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PESQUISA

ENSAIOS SOBRE O DIREITO ADMINISTRATIVO GLOBAL E SUA APLICAO NO BRASIL

Michelle Ratton Sanchez BadinORGANIZADORA

Andr Orengel DiasBenedict Kingsbury

B. S. ChimniMara Rocha Machado

Nico KrischRichard B. Stewart

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A Coleo Acadmica Livre publica obras de livre acesso em formato digital. Nossos livrosabordam o universo jurdico e temas transversais por meio das mais diversas abordagens.Podem ser copiados, compartilhados, citados e divulgados livremente para fins nocomerciais. A coleo uma iniciativa da Escola de Direito de So Paulo da Fundao GetulioVargas (FGV DIREITO SP) e est aberta a novos parceiros interessados em dar acesso livrea seus contedos.

Esta obra foi avaliada e aprovada pelos membros de seu Conselho Editorial.

Conselho EditorialFlavia Portella Pschel (FGV DIREITO SP)Gustavo Ferreira Santos (UFPE)Marcos Severino Nobre (Unicamp)Marcus Faro de Castro (UnB)Violeta Refkalefsky Loureiro (UFPA)

ENSAIOS SOBRE O DIREITOADMINISTRATIVOGLOBAL E SUA APLICAO NO BRASILMichelle Ratton Sanchez BadinORGANIZADORA

Andr Orengel DiasBenedict KingsburyB. S. ChimniMara Rocha MachadoNico KrischRichard B. Stewart

PESQUISA

Os livros da Coleo Acadmica Livre podem ser copiados e compartilhados por meios eletrnicos; podem ser

citados em outras obras, aulas, sites, apresentaes, blogues, redes sociais etc., desde que mencionadas a fonte

e a autoria. Podem ser reproduzidos em meio fsico, no todo ou em parte, desde que para fins no comerciais.

A Coleo Acadmica Livre adota a licena Creative Commons - Atribuio-NoComercial 4.0 Internacional,

exceto onde estiver expresso de outro modo.

EditoraCatarina Helena Cortada Barbieri

Assistente editorialBruno Bortoli Brigatto

Preparao de originaisLucas de Souza Cartaxo Vieira

Capa, projeto grfico e editoraoUltravioleta Design

Imagem da capaLisa Alisa/ Shutterstock

Conceito da coleo Jos Rodrigo Rodriguez

PUBLICADO EM OUTUBRO DE 2016

FGV DIREITO SPCoordenadoria de Publicaes Rua Rocha, 233, 11 andarBela Vista So Paulo SPCEP: 01330-000Tel.: (11) 3799-2172E-mail: [email protected]

Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca Karl A. Boedecker da Fundao Getulio Vargas SP

Ensaios sobre o direito administrativo global e sua aplicao no Brasil [recurso eletrnico] /organizadora Michelle Ratton Sanchez Badin. So Paulo : FGV Direito SP, 2016.

214 p.

ISBN: 978-85-64678-17-0

1. Direito administrativo - Brasil. 2. Globalizao. 3. Direito internacional pblico. I. Badin,Michelle Ratton Sanchez. II. Escola de Direito de So Paulo da Fundao Getulio Vargas. III. Ttulo.

CDU 342.9(81)

mailto:[email protected]://creativecommons.org/licenses/by-nc/4.0/

Ensaios sobrE o dirEitoadministrativo global E sua

aplicao no brasil

sumrio

APRESEnTAO 7

Michelle Ratton Sanchez Badin

1.A EmERGnCIA DE um DIREITO ADmInISTRATIVO GlOBAl 11Benedict Kingsbury, Nico Krisch e Richard B. Stewart

2.O PROjETO DO DIREITO ADmInISTRATIVO GlOBAl: UMA LEITURA A PARTIR DO BRASIL 89Michelle Ratton Sanchez Badin

3.COOPTAO E RESISTnCIA: DUAS FACES DO DIREITO ADMINISTRATIVO GLOBAL 117B. S. Chimni

4.O CARTER ImPERIAlISTA DO DIREITO InTERnACIOnAl E O ESTADO GlOBAl EmERGEnTE SEGunDO B. S. ChImnI 157Andr Orengel Dias

5.FAz DIFEREnA SER mEmBRO? NOTAS SOBRE OS DESAFIOS DESCRITIVOS DO DIREITO ADMINISTRATIVO GLOBAL 189Mara Rocha Machado

SOBRE OS AuTORES 212

[sumrio]

APRESEnTAOMichelle Ratton Sanchez Badin

O projeto sobre Direito Administrativo Global (DAG) foi lanado na Esco-la de Direito da New York University (NYU), em 2003, e, desde ento,tem promovido e suscitado muitos debates sobre suas propostas de des-crio e proposio para compreenso de formas de regulamentao decarter global.1 O presente livro procura reunir artigos relevantes paracompreender as bases deste movimento e contextualiz-las diante dasparticularidades da cultura e do sistema jurdico brasileiros. Neste senti-do, apresentamos cinco artigos que so fruto de um dilogo estabelecidoentre a Escola de Direito de So Paulo da Fundao Getulio Vargas (FGVDIREITO SP) e a NYU, desde 2007.

O primeiro artigo da coletnea, assinado por Benedict Kingsbury, NicoKrisch e Richard B. Stewart e intitulado A emergncia de um DireitoAdministrativo Global, conhecido como framework paper ou artigobase do projeto DAG desenvolvido na NYU. Trata-se de um extensoartigo que procura delinear as mudanas do sistema global e como elastrouxeram alteraes nos atores considerados como legtimos para regulardeterminadas situaes ou relaes, a fim de diagnosticar a necessidadede um novo paradigma para compreenso e avaliao do funcionamentodos diferentes sistemas jurdicos ou quase jurdicos que interagem einterferem um no outro. Nesse sentido, a contribuio mais chamativapara o debate jurdico est em extrapolar o dualismo direito nacional edireito internacional e sofisticar as qualificaes de soft law e hard lawque marcaram os debates do direito internacional e os efeitos da globali-zao nas ltimas dcadas no Brasil.

A partir da proposta descritiva das mudanas regulatrias em nvelglobal e sua dimenso plural, o artigo base ainda procura apresentar umconjunto de princpios como uma proposta normativa para compreendero pluralismo regulatrio mapeado, com referncias a parmetros da doutrinado Direito Administrativo em suas diferentes tradies jurdicas. A com-preenso do pluralismo regulatrio em nvel global como uma adminis-trao e a aplicao de princpios ao seu funcionamento so as principais

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APRESEnTAO

contribuies do debate do DAG que se definiu como um dos mais rele-vantes debates para se compreender a multiplicidade de regras e suas for-mas em nvel global hoje.2

A partir deste artigo, os demais trabalhos aqui publicados procuramento contextualizar o DAG diante das particularidades do Brasil e desuas tradies jurdicas, inclusive considerando sua qualidade de pas emdesenvolvimento. O segundo artigo O projeto do Direito AdministrativoGlobal: uma leitura a partir do Brasil, de minha autoria, procura trazeralgumas provocaes para a compreenso do debate do DAG, a partirdas tradies tericas do Direito Administrativo e do Direito Internacio-nal presentes na nossa histria contempornea. Trata-se de uma primeiraaproximao de linguagem a partir do marco do DAG, com a propostade questes e uma agenda de pesquisa para futuros trabalhos que preten-dam dialogar com a proposta do DAG. No artigo sustento que se no revi-sitarmos as nossas tradies ao menos nestes dois campos do direito, ho risco de uma apropriao indevida das propostas descritivas e norma-tivas do DAG.

A traduo para o portugus do artigo publicado originalmente em inglspor B. S. Chimni, Cooptao e resistncia: duas faces do Direito Adminis-trativo Global, foi feita por Andr Orengel Diaz como parte dos seus traba-lhos no curso de mestrado de Direito e Desenvolvimento da FGV DIREITOSP. E, nesse contexto, Andr procura estabelecer um debate com Chimnino quarto artigo publicado nesta coletnea: O carter imperialista doDireito Internacional e o estado global emergente segundo B S Chimni.Esse segundo ponto do debate apresentado neste livro procura agregar umacontextualizao terica feita por Chimni sobre o discurso de dominaoque pode estar por trs das pretenses descritivas e normativas do texto-base do DAG.

Chimni hoje tido como um dos principais expoentes do movimentocom abordagem terceiro-mundista no Direito Internacional3 e, a partir desteenfoque, contribui para ampliar a perspectiva crtica ao recorte e s pro-postas do DAG, considerando as preocupaes tpicas de um pas emdesenvolvimento. Este ltimo ponto fica evidente no exemplo do reconhe-cimento dos padres do Codex pela Organizao Mundial do Comrcio

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para um pas como a ndia, por exemplo, que pouco ou quase nada pode interferir na definio daqueles padres, seja por limitaes tcnicasseja por restries econmicas e oramentrias. Chimni chega at mesmoa apresentar diferentes categorias que podem ser includas no rol de pro-postas normativas para o DAG estendendo a compreenso cultural queesta abordagem da governana global possa ter.

Na sequncia, encontra-se o artigo Faz diferena ser membro? Notassobre os desafios descritivos do Direito Administrativo Global, assinadopor Mara Rocha Machado, que complementa a perspectiva crtica pon-tuada pelos artigos que o antecedem, ao problematizar a forma de descri-o apresentada pelo DAG em cinco tipos normativos. Mara exemplificacom o funcionamento do Grupo de Ao Financeira contra a Lavagem deDinheiro (GAFI) como a qualificao do tipo regulatrio pode variar con-forme o grau de integrao admitida aos pases pelo prprio GAFI. O fatode ser ou no membro do processo favorece ou no o envolvimento dedeterminados tipos de agentes, assim como interfere na forma como asregras dialogam ou mesmo so incorporadas no ordenamento jurdico decada pas. A partir da anlise apresentada, observa-se, por exemplo, queBrasil, Argentina e Estados Unidos (como membro originrio e fundadordo GAFI) enfrentam realidades completamente distintas em sua inserointernacional e no dilogo com as propostas descritivas do DAG.

A reunio destes artigos compreende a primeira do que se estima possaser uma srie de anlises que contextualizaro as propostas tericas degovernana global para a realidade brasileira. A partir destes primeirospassos, acredita-se que possa ser possvel favorecer o dilogo da academiabrasileira, que ento se mune aqui de vocabulrios contextualizados eexemplos aplicados. O fato de o projeto do DAG se definir como um pro-jeto vivo abre esta porta de dilogo aos interessados.

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ENSAIOS SOBRE O DIREITO ADMINISTRATIVO GLOBAL E SUA APLICAO NO BRASIL

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APRESEnTAO

nOTAS

Os dois principais centros de debate sobre as propostas do DAG e sua implementao1esto no Institute for International Law and Justice da Faculdade de Direito da NYU(http://www.iilj.org/gal) e no Istituto di ricerche sulla pubblica amministrazione, emViterbo (http://www.irpa.eu/gal-section/).

Gregory Shaffer assume o compromisso nesta qualificao e contrape o DAG a2outras duas correntes de grande repercusso no debate acadmico-cientfico para acompreenso e sistematizao de descries e propostas de formulao da governanaglobal, que so a proposta de Constitucionalismo Global e as propostas enquadradas naperspectiva do Pluralismo Jurdico. V. SHAFFER, G.International Law and Global PublicGoods in a Legal Pluralist World, European Journal of International Law,v. 23, n. 3,p.669-693, 2012.

GALINDO, G. R. B. A volta do terceiro mundo ao direito internacional, Boletim3da Sociedade Brasileira de Direito Internacional, 2012.

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http://www.iilj.org/galhttp://www.irpa.eu/gal-section/

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1.A EmERGnCIA DE um DIREITOADmInISTRATIVO GlOBAl

Benedict Kingsbury, nico Krisch e Richard B. Stewart

I | InTRODuO: A ASCENSO DESPERCEBIDA DE UM DIREITO ADMINISTRATIVO GLOBAL

Padres emergentes de governana global esto sendo moldados por um ainda que pouco notado importante e crescente corpo de direito admi-nistrativo global. Esse conjunto de leis no est unificado atualmente na verdade, ainda no um campo sistematizado de conhecimento ouprtica. O Projeto de Pesquisa sobre Direito Administrativo Global daNew York University School of Law1 constitui uma tentativa de sistema-tizar os estudos nos diversos nveis nacional, transnacional e internacionalque se relacionam com o direito administrativo da governana mundial.A partir de ideias desenvolvidas nas primeiras fases desse projeto, come-amos neste artigo a tarefa de identificar, entre essas prticas variadas,alguns padres de uniformidade e conexo suficientemente consolidadose de amplo alcance para que constituam um campo embrionrio de direitoadministrativo global. Indicamos alguns fatores que estimulam o desen-volvimento de abordagens comuns e mecanismos de aprendizagem, emprs-timo e referncia cruzada que esto contribuindo para um grau de integraono campo do Direito Administrativo Global. Indicamos tambm algumaslimitaes importantes e resistncias justificadas para a no convergncia.Comeamos a avaliar uma base normativa a favor e contra a promoo deum campo unificado de direito administrativo global e a favor e contra algu-mas posies especficas em seu interior. Este artigo baseia-se em publi-caes de colaboradores do projeto e de outras pessoas da rea2 e buscalevar adiante esse empreendimento coletivo, ainda que os resultados con-tinuem sendo preliminares.

Subjacente emergncia de um direito administrativo global est ovasto aumento no alcance e nas formas de regulamentao e administrao

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1. A EmERGnCIA DE um DIREITO ADmInISTRATIVO GlOBAl

transgovernamental projetadas para lidar com as consequncias da interde-pendncia globalizada em campos como segurana, condies de desenvol-vimento e ajuda financeira aos pases em desenvolvimento, proteoambiental, regulamentao das atividades bancrias e financeiras, coopera-o judiciria, telecomunicaes, comrcio de produtos e servios, proprie-dade intelectual, condies de trabalho e movimentos de populaes entrefronteiras, inclusive de refugiados. Est cada vez mais claro que essas con-sequncias no podem ser tratadas de forma eficaz por regulamentaes emedidas administrativas nacionais isoladas. Em consequncia, criaram-sevrios sistemas transnacionais de regulamentao ou movimentos de coo-perao para regulao por meio de tratados internacionais e redes intergo-vernamentais informais de cooperao, transferindo-se muitas decises daesfera nacional para a global. Ademais, grande parte dos detalhes e da imple-mentao dessa regulamentao determinada por organismos administra-tivos transnacionais inclusive organizaes internacionais e gruposinformais de funcionrios que desempenham funes administrativas, masno esto sujeitos diretamente ao controle de governos nacionais ou sistemasjurdicos domsticos, ou, no caso de regimes baseados em tratados, aos Esta-dos-partes do tratado. Essas decises reguladoras podem ser implementadasdiretamente em face de entes privados pelo prprio sistema global ou, maiscomumente, por medidas adotadas em nvel nacional. So tambm cada vezmais importantes as regulamentaes por rgos internacionais privados (deestabelecimento de padres) e por organizaes bridas pblico-privadasque podem incluir, de forma variada, representantes de empresas, ONGs,governos nacionais e organizaes intergovernamentais.

Essa situao criou um dficit de accountability no crescente exercciode poder regulador transnacional que comeou a estimular dois tipos dereaes: primeiro, a tentativa de estender o direito administrativo nacionalpara as decises reguladoras intergovernamentais que afetam uma nao;e segundo, o desenvolvimento de novos mecanismos de direito adminis-trativo em esfera global para tratar de decises e normas criadas no inte-rior de regimes intergovernamentais.

Uma questo um pouco diferente, mas relacionada, surge quando asdecises reguladoras de uma autoridade nacional afetam negativamente

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outros Estados, determinadas categorias de indivduos ou organizaes eso contestadas como contrrias s obrigaes daquele governo conformeo regime internacional do qual ele faz parte. Nesse caso, uma resposta temsido a criao por regimes intergovernamentais de padres e mecanismosde direito administrativo aos quais as administraes nacionais devem seconformar, a fim de assegurar sua obedincia e accountability perante oregime internacional. Com o objetivo de promover sua legitimidade e efi-ccia, vrios organismos reguladores no compostos exclusivamente porEstados organismos de natureza pblico-privada e exclusivamente priva-dos tambm comearam a adotar procedimentos decisrios e de estabe-lecimento de normas de direito administrativo.

Essas constataes nos levam a definir o direito administrativo globalcomo o conjunto de mecanismos, princpios, prticas e compreensessociais de apoio que promovem ou de alguma forma afetam a account-ability dos rgos administrativos globais. Isso para que se assegure, emparticular, que eles obedeam a padres adequados de transparncia, par-ticipao, deciso motivada e legalidade, com a possibilidade de revisoefetiva das normas e decises adotadas. Entre os rgos administrativosglobais esto os organismos reguladores intergovernamentais formais, asredes e arranjos de coordenao intergovernamentais informais, rgoshbridos pblico-privados e alguns organismos reguladores privados queexercem funes de governana transnacional com o devido reconheci-mento pblico.

Ao trazermos essa definio, estamos propondo tambm que boa parteda governana mundial pode ser compreendida e analisada como aoadministrativa: criao de normas, deciso administrativa entre interessesem conflito e outras formas de deciso e gesto reguladora e administra-tiva. O direito nacional presume um sentido compartilhado do que cons-titui a ao administrativa, ainda que essa possa ser definida primariamenteno negativo como atos estatais que no so legislativos ou judiciais,mesmo que as fronteiras entre essas categorias sejam difusas.3 Fora dodomnio do Estado, no prevalece essa diferenciao funcional tcita; apaisagem institucional muito mais plural do que nos cenrios nacionais.Contudo, muitas das instituies e dos regimes internacionais que exercem

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ENSAIOS SOBRE O DIREITO ADMINISTRATIVO GLOBAL E SUA APLICAO NO BRASIL

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1. A EmERGnCIA DE um DIREITO ADmInISTRATIVO GlOBAl

governana global desempenham funes que a maioria dos advogadosnacionais diria que tm um carter genuinamente administrativo: elas atuamabaixo do nvel das conferncias diplomticas altamente divulgadas e daassinatura de tratados, mas no agregado, elas regulamentam e gerem vastossetores da vida social e econmica, mediante as decises e o estabelecimentode normas especficas. Acreditamos que, conceitualmente, podemos distin-guir a ao administrativa da legislao na forma de tratados e tambm dadeciso judicial na forma de resoluo episdica de disputas entre Estadosou outras partes em conflito. Tal como no cenrio nacional, a ao admi-nistrativa na esfera global tem ao mesmo tempo elementos legislativos ejudicirios. Ela inclui a criao de normas, no na forma de tratados nego-ciados por Estados, mas sim de padres e normas de aplicabilidade geraladotados por rgos subsidirios.4 Inclui tambm decises informais toma-das na superviso e implementao de regimes de regulamentao interna-cional. Numa definio provisria, a ao administrativa global consiste nacriao de normas, sentenas e outras decises que no a celebrao de tra-tados nem a simples soluo de disputas entre partes.5

Neste artigo, procuramos desenvolver uma abordagem da ao adminis-trativa global delineando e aprofundando o que acreditamos ser um camponascente de direito administrativo global. Examinamos questes e desafiosimportantes desse campo, e comeamos a esboar elementos de uma agendade pesquisa para seu futuro desenvolvimento. Organizamos o trabalho combase nesta srie de cinco questes essenciais para a prtica atual e o trabalhofuturo: (1) questes sobre os padres estruturais bsicos da administraoglobal e sobre como a variao entre eles est moldando mecanismos emer-gentes de accountability; (2) questes metodolgicas e empricas que dizemrespeito ao escopo e s fontes do direito administrativo global, aos meca-nismos de accountability e aos princpios doutrinrios que esto atualmenteem vigor ou surgindo na prtica; (3) questes normativas sobre como justi-ficar e defender tais mecanismos; (4) questes de desenho institucionalsobre como esses mecanismos deveriam ser projetados a fim de asseguraraccountability, sem comprometer indevidamente a eficcia; e (5) questesde teoria poltica positiva sobre o surgimento e o desenho desses mecanis-mos e quais fatores podem levar ao seu sucesso.

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II | A ESTRuTuRA DO ESPAO ADmInISTRATIVO GlOBAlA conceituao do direito administrativo global presume a existncia deuma administrao global ou transnacional. Sustentamos que h hoje osuficiente dessa administrao para que seja possvel identificar um mul-tifacetado espao administrativo global (conceito ao qual voltaremosem seguida), povoado por vrios tipos distintos de instituies adminis-trativas reguladoras e vrios tipos de entidades que so os objetos deregulamentao, incluindo no somente Estados, mas tambm indivduos,firmas e ONGs. Mas essa viso certamente contestada. Muitos advo-gados internacionais ainda consideram a administrao, em ampla medi-da, uma parte do Estado ou de entidades interestatais diferenciadas, comum alto grau de integrao, como a Unio Europeia (UE). Nessa concep-o, que complementada pelo que at agora tem sido principalmente ofoco americano ou europeu dos advogados administrativos, a ao inter-nacional pode coordenar e auxiliar a administrao nacional, mas tendoem vista a falta de poder e capacidade executiva internacional, ela noconstitui uma ao administrativa em si mesma. Essa viso, no entanto, desmentida pelo rpido crescimento de regimes de regulao interna-cionais e transnacionais com componentes e funes administrativos.Alguns dos regimes reguladores mais densos surgiram na esfera da regu-lamentao econmica: as redes e comits da OCDE, a administrao eos comits da OMC, os comits do G-7/G-8, estruturas de cooperaoantitruste6 e regulamentao financeira efetuada, entre outros, pelo FMI,pelo Comit de Basileia7 e pelo Grupo de Ao Financeira sobre Lavagemde Dinheiro (GAFI). A regulamentao ambiental , em parte, obra dergos administrativos no ambientais como o Banco Mundial, a OCDEe a OMC, mas, cada vez mais, estruturas reguladoras de amplo alcanceso criadas em regimes especializados, tais como o plano de negociaode emisses e o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo do Protocolo deQuioto. A ao administrativa agora um componente importante de mui-tos regimes de segurana internacional, incluindo o trabalho do Conselhode Segurana da ONU e seus comits e em campos relacionados como aregulamentao da energia nuclear (a AIEA) ou o mecanismo de supervisoda Conveno sobre Armas Qumicas. A reflexo sobre essas ilustraes

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ENSAIOS SOBRE O DIREITO ADMINISTRATIVO GLOBAL E SUA APLICAO NO BRASIL

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1. A EmERGnCIA DE um DIREITO ADmInISTRATIVO GlOBAl

indica de imediato que a paisagem extraordinariamente mltipla da admi-nistrao global resulta no apenas da grande variao das reas submetidasa regulamentaes e das diferenciaes funcionais correlativas entre as ins-tituies, mas tambm da existncia de mltiplas camadas na administraoda governana global. Nesta seo, buscamos oferecer algumas ferramentasconceituais para organizar a anlise desses fenmenos diversos mediantea identificao de estruturas e temas diferentes da administrao global ea postulao da noo de um espao administrativo global.

Esse esforo se alicera, em alguma medida, em concepes de admi-nistrao internacional e de direito administrativo internacional que sedesenvolveram em meados do sculo XIX e se tornaram predominantesnas dcadas de 1920 e 1930. A ideia de analisar a governana transnacio-nal como administrao sujeita a princpios tpicos de direito administra-tivo aparece, por exemplo, na obra dos reformadores sociais e criadoresde instituies do final do sculo XIX, como Lorenz von Stein e sua con-cepo do trabalho de sade pblica internacional em termos administra-tivos.8 Essa abordagem administrativa foi estimulada pela ascenso dasinstituies reguladoras internacionais, unies internacionais que lida-vam com questes como servios postais, navegao e telecomunicaes,s vezes com poder expressivo no estabelecimento de normas secundriasque no exigiam a ratificao nacional para serem legalmente efetivas.9A cooperao de atores administrativos nacionais que ocorreu no marcodessas unies e a centralidade dos atores nacionais para o sucesso dosregimes em questo levaram alguns autores a adotar as noes amplas deadministrao internacional que incluam tanto instituies internacio-nais como atores administrativos nacionais quando tomavam medidas comimpacto para alm das fronteiras nacionais.10 Essas abordagens abrangen-tes, junto com toda a ideia de elementos administrativos nos assuntosinternacionais, desapareceram da maioria dos textos de direito internacio-nal aps 1945,11 embora se encontrem excees notveis nas obras de Wil-fred Jenks, Soji Yamamoto e alguns outros.12 Nossa conceituao deadministrao global procura revitalizar a concepo mais ampla que estpor trs dessas primeiras abordagens.

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A | Cinco tipos de administrao global possvel distinguir cinco tipos principais de regulamentao adminis-trativa globalizada: (1) administrao por organizaes internacionaisformais; (2) administrao baseada na ao coletiva de redes transnacio-nais de arranjos cooperativos entre autoridades reguladoras nacionais;(3) administrao distribuda realizada por reguladores nacionais sob tra-tados, redes ou outros regimes cooperativos; (4) administrao por arranjoshbridos intergovernamentais-privados; e (5) administrao por institui-es privadas com funes reguladoras. Na prtica, muitas dessas cama-das se sobrepem ou combinam, mas propomos esses tipos ideais parafacilitar a pesquisa futura.13

Na administrao internacional, as organizaes intergovernamentaisformais criadas por tratados ou acordos executivos so os principais atoresadministrativos. Um exemplo central o Conselho de Segurana da ONUe seus comits, que adotam legislao subsidiria, tomam decises vin-culantes relacionadas a determinados pases (principalmente na forma desanes) e at agem diretamente sobre indivduos por meios de sanesespecficas e da listagem de pessoas consideradas responsveis por amea-as paz internacional. Do mesmo modo, o Alto Comissariado da ONUpara Refugiados (ACNUR) tem assumido numerosas tarefas reguladorase administrativas, tais como decidir sobre o estatuto de refugiado e admi-nistrar acampamentos de refugiados em muitos pases. Podemos citarcomo outros exemplos a Organizao Mundial da Sade, que avalia osriscos sade mundial e emite advertncias, o GAFI, que avalia as pol-ticas contra lavagem de dinheiro e pune violaes dos padres que adotoucometidas por determinados Estados, os mecanismos de aquiescncia doProtocolo de Montreal pelos quais rgos subsidirios de carter adminis-trativo tratam da no obedincia de partes ao Protocolo e o estabelecimen-to pelo Banco Mundial de padres de boa governana para determinadospases em desenvolvimento como condio para a ajuda financeira.

As redes transnacionais e os arranjos de coordenao, ao contrrio,caracterizam-se pela ausncia de uma estrutura decisria formal e vinculantee pelo predomnio da cooperao informal entre os Estados reguladores.Essa forma horizontal de administrao pode mas no precisa ocorrer

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ENSAIOS SOBRE O DIREITO ADMINISTRATIVO GLOBAL E SUA APLICAO NO BRASIL

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1. A EmERGnCIA DE um DIREITO ADmInISTRATIVO GlOBAl

no marco de um tratado. Por exemplo, o Comit de Basileia rene chefesde bancos centrais fora de qualquer estrutura de tratado, para que possamcoordenar questes como exigncias de adequao de capital para os ban-cos. Os acordos no so juridicamente vinculantes, mas podem ser altamenteeficazes. Um exemplo diferente a presso que a OMC exerce em favor doreconhecimento mtuo de normas e decises reguladoras pelos Estados-membros, estabelecendo assim uma forma forte de cooperao horizontalpor meio da qual atos reguladores de um Estado ganham automaticamentevalidade em outro.14 rgos subnacionais, de forma bilateral, tambm fazemacordos para o reconhecimento mtuo de padres reguladores nacionais oude procedimentos de conformidade e outras formas de coordenao regula-tria, tais como determinaes de equivalncia.15

Na administrao distribuda, as agncias reguladoras nacionais atuamcomo parte do espao administrativo global: elas tomam decises sobrequestes de alcance externo ou global. Um exemplo est no exerccio dajurisdio reguladora extraterritorial, em que um Estado busca regula-mentar a atividade que ocorre principalmente em outro pas. Em algumascircunstncias, esse tipo de regulamentao est sujeito a limitaes subs-tantivas e at a exigncias procedimentais estabelecidas internacional-mente, como ficou evidente a partir da deciso do rgo de Apelao daOMC, em 1998, no caso Estados Unidos Proibio de Importao deCertos Camares e Produtos de Camaro (Camaro/Tartaruga).16 Masat mesmo a administrao nacional sem efeitos extraterritoriais imedia-tos pode fazer parte do espao administrativo global, em especial quandoest encarregada de implementar um regime internacional. Atualmente,os rgos subnacionais que regulam o meio ambiente, preocupados coma conservao da biodiversidade ou com as emisses dos gases de efeitoestufa frequentemente fazem parte tanto de uma administrao globalcomo de uma puramente nacional: eles so responsveis pela implemen-tao do direito internacional ambiental para a realizao de objetivoscomuns e, desse modo, suas decises dizem respeito a governos (e popu-laes) de outros pases, assim como ao regime internacional ambientalque esto implementando. Os acordos para o reconhecimento mtuo depadres e certificaes entre rgos subnacionais tambm podem ter

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algumas das qualidades da administrao distribuda, embora as opiniesvariem muito quanto a como compreender melhor o mosaico de acordosde reconhecimento mtuo e abordagens cooperativas comparveis.

Um quarto tipo de administrao global a administrao hbrida in-tergovernamental-privada. Organismos que combinam atores privados egovernamentais assumem muitas formas diferentes e so cada vez mais re-levantes. Um exemplo a Comisso Codex Alimentarius, que adota padresde segurana alimentar por meio de um processo decisrio que inclui agorauma participao significativa de atores no governamentais alm dos re-presentantes de governos, e produz padres que ganham um efeito quaseobrigatrio via o Acordo sobre Medidas Sanitrias e Fitossanitrias daOMC (Acordo SPS). Outro exemplo o rgo regulador do protocolo deendereo da Internet, a Corporao da Internet para Atribuio de Nomes eNmeros (ICANN), que foi criada como um organismo no governamentalmas passou a incluir representantes dos governos que ganharam poderesconsiderveis, com frequncia via participao no Comit Consultivo Go-vernamental, desde as reformas de 2002. difcil determinar como o direitoadministrativo pode ser moldado ou tornado operacional em relao a essesorganismos. O envolvimento de atores estatais, sujeitos a restries dedireito pblico, nacional e internacional, ao lado de atores privados queno sofrem as mesmas limitaes e podem at ter deveres conflitantes, taiscomo segredos comerciais, ameaa produzir um conjunto de controles muitodesigual e potencialmente disruptivo. No obstante, o desafio importantee suficientemente diferente quando tratamos desses rgos hbridos comouma categoria separada.

Em quinto e ltimo lugar, muitas funes reguladoras so levadas acabo por rgos privados.17 Por exemplo, a Organizao de PadronizaoInternacional (ISO, na sigla em ingls) adotou mais de treze mil padresque harmonizam normas de produtos e processos em todo o mundo. Numaescala menor, algumas ONGs criaram padres e mecanismos de certifica-o para produtos comercializados internacionalmente, como o caf comcertificado fair-trade e a madeira sustentvel. Organizaes empresariaisestabeleceram normas e regimes reguladores em numerosas atividadesindustriais que vo desde o sistema de cartas de crdito da Sociedade para

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ENSAIOS SOBRE O DIREITO ADMINISTRATIVO GLOBAL E SUA APLICAO NO BRASIL

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1. A EmERGnCIA DE um DIREITO ADmInISTRATIVO GlOBAl

Telecomunicaes Financeiras Interbancrias Mundiais (SWIFT, na siglaem ingls) aos padres para a produo de artigos esportivos da Associa-o para o Trabalho Justo (Fair Labor Association FLA). No direitonacional, esses organismos privados costumam ser tratados como clubesem vez de administradores, a no ser que exeram poder pblico por dele-gao explcita. Mas, na esfera global, devido falta de instituies pbli-cas internacionais, eles com frequncia possuem poder e importnciamaior. Seus atos podem no ser muito diferentes em espcie de muitasnormas pblicas intergovernamentais no vinculantes e podem, muitasvezes, ser mais eficazes. Sugerimos prudentemente que os limites docampo da administrao global sejam estendidos s atividades de algunsdesses rgos no governamentais. A ISO proporciona um bom exemplo:no somente suas decises causam impactos econmicos importantescomo so usadas tambm em decises reguladoras por autoridades basea-das em tratados, como a OMC. Um exemplo de rgo regulador privadoque est menos ligado ao estatal ou interestatal a Agncia MundialAntidoping, organizao ligada ao Comit Olmpico Internacional, queaplica padres cuidadosos de procedimento jurdico ao lidar com atletassuspeitos de usar substncias proibidas, culminando no sistema de revisoda Corte Internacional de Arbitragem para o Esporte, um mecanismo desoluo de controvrsias privado. Importantes desafios normativos e pr-ticos sobrevm nas propostas para incorporar os mtodos do direito admi-nistrativo a tais organismos, apesar de serem problemas mais atrelados adeterminadas situaes do que gerais. Acreditamos que desejvel estu-dar esses rgos como parte da administrao global e determinar assemelhanas bem como as diferenas em mecanismos de account-ability desenvolvidos para rgos pblicos e privados.

B | Os sujeitos da administrao global: Estados,indivduos, empresas, ONGs e outras coletividadesA decomposio da dicotomia internacional-nacional pode ter mais reper-cusses no modo como pensamos sobre os sujeitos da administrao glo-bal. Na compreenso tradicional, os sujeitos do direito internacional soos Estados. Correlativamente, a governana global a governana do

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comportamento dos Estados em relao a outros Estados. Porm, cadavez mais comum que os projetos de regulao estabelecidos pelos acor-dos celebrados entre Estados no nvel internacional sejam implementa-dos por meio de medidas domsticas, direcionadas a regulamentar aconduta privada. A regulamentao coordenada da conduta privada ,com frequncia, o objetivo mesmo do plano internacional em reascomo poluio ou prticas financeiras. Na teoria clssica, as medidasregulatrias nacionais constituem a implementao pelos Estados desuas obrigaes internacionais. Os atores privados entram formalmenteem considerao apenas no estgio de implementao, e isso umaquesto exclusivamente nacional. Mas os verdadeiros sujeitos dessesregimes de regulamentao global so agora, cada vez mais, os mesmosdo direito nacional; a saber, os indivduos (como agentes morais e ato-res econmicos e sociais)18 e entidades coletivas, como empresas e, emalguns casos, ONGs.19

Essa caracterizao ganha mais fora quando os organismos interna-cionais tomam decises que tm consequncias jurdicas diretas paraindivduos ou firmas sem qualquer papel interveniente da ao do gover-no nacional. Podemos citar os exemplos da certificao de projeto peloMecanismo de Desenvolvimento Limpo do Protocolo de Quioto, a deter-minao do estatuto de refugiado para indivduos pela Comisso de Direi-tos Humanos das Naes Unidas e a certificao por agncias da ONUde ONGs autorizadas especificamente a participar em seus procedimen-tos. A noo de que atores privados so sujeitos de regulamentao globalfica evidente tambm em boa parte da governana reguladora obtida pormeio de redes, na qual as autoridades reguladoras nacionais desempe-nham tanto um papel internacional, decidindo coletivamente sobre exi-gncias reguladoras aplicveis a firmas privadas (por exemplo, bancoscomerciais), como um papel nacional, na implementao e imposiodessas mesmas normas em relao a firmas regulamentadas dentro de suajurisdio. Isso ainda mais evidente no caso de acordos de governanaprivados como a ISO, em que a maior parte dos padres projetada paraimplementao por empresas privadas, ainda que tambm possam serimplementados no direito nacional.

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Em outras situaes, o objetivo do regime internacional alcanarmudanas desejadas na conduta privada impondo obrigaes reguladorassobre Estados e supervisionando o modo como estes regulamentam os ato-res privados submetidos a sua jurisdio. Esses arranjos so semelhantes amodelos de governana de vrias camadas que foram desenvolvidos paracompreender a Unio Europeia e o espao administrativo europeu.20Entre os exemplos, temos a Conveno sobre Comrcio Internacional deEspcies da Fauna e Flora Selvagem em Perigo de Extino (CITIES), oProtocolo de Montreal sobre destruio da camada de oznio, a Convenode Basileia sobre resduos perigosos e as Convenes da Organizao Inter-nacional do Trabalho (OIT). Os rgos administrativos internacionais res-ponsveis por promover e supervisionar a implementao desempenhamcom frequncia um importante papel regulador, fora e em oposio teoriaclssica. Em muitos casos, os rgos administrativos em questo assumi-ram uma estrutura de governana mista pblico-privada em que empresase ONGs participam junto com representantes de Estados; trata-se de estru-tura bem conhecida, exemplificada pela estrutura de governana tripartiteda OIT, da qual participam delegaes nacionais que representam governos,empregadores e empregados.

Em outras reas, os Estados so os principais sujeitos da regulamentaoglobal, feita para proteger ou beneficiar grupos distintos de indivduos, ato-res do mercado ou interesses sociais. Entre os exemplos, temos padres deboa governana e do Estado de direito, ou os padres ambientais impos-tos por agncias como o Banco Mundial como condies para a ajudafinanceira aos pases em desenvolvimento, inclusive exigncias de avalia-o de impacto ambiental para projetos de desenvolvimento.

Por fim, em algumas reas da administrao reguladora, como a segu-rana internacional, a viso clssica de que a governana global est vol-tada para o comportamento de governos em relao a outros governos eno para atores privados ainda possui muita fora. Porm, mesmo aqui,a crescente privatizao das atividades de segurana internacionais, como uso cada vez mais comum de empresas privadas para desempenhar fun-es tradicionalmente estatais em situaes como a ocupao militardo Iraque, por exemplo , comea a desgastar a concepo clssica.21

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Esses exemplos variados sugerem que as diferenas dos sujeitos dosregimes administrativos globais em alguns casos, indivduos ou firmas,em outros, Estados e agentes do mercado, e em outros, ainda, Estadoscom distintos grupos de indivduos, agentes do mercado, ONGs ou inte-resses sociais como beneficirios, alm dos Estados apenas podemdepender de diferenas no objeto visado, nos objetivos da regulamentaoe nas caractersticas funcionais do problema regulatrio. Trata-se de umaquesto importante para pesquisa futura.

C | Um espao administrativo global?Este breve levantamento de estruturas e exemplos indica que importantesfunes reguladoras no so mais exclusivamente de carter nacional ese tornaram significativamente transnacionais ou globais. Isso vale, emespecial, na rea da criao de normas, em que a ao genuinamente inter-nacional se combina com a ao dos agentes reguladores nacionais em redesde coordenao mundial para suplementar e, com frequncia, determinara ao domstica, penetrando assim profundamente nos programas e deci-ses de carter regulatrio em mbito nacional. Ademais, em um nmerocada vez maior de casos, as decises globais afetam diretamente indiv-duos ou empresas, como as decises do Conselho de Segurana da ONUsobre sanes e medidas antiterroristas, as atividades do Alto Comissa-riado para Refugiados, o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo do Pro-tocolo de Quioto ou a incorporao quase automtica ao direito nacionalde decises do GAFI.

Contudo, isso no d uma resposta conclusiva para a questo de se possvel ou no reconhecer um espao administrativo global ou se ainda possvel e, com efeito, prefervel manter a dicotomia clssica entreum espao administrativo nas sociedades nacionais, de um lado, e umacoordenao interestatal na governana global, do outro. verdade queo global e o nacional permanecem poltica e operacionalmente separadospara muitos objetivos. No obstante, os dois nveis j esto muito entre-laados em muitas reas de regulamentao e administrao. A ascensodos programas reguladores globais e sua introduo nos programas nacio-nais significa que as decises dos administradores nacionais so cada vez

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mais constrangidas por normas substantivas e procedimentais estabeleci-das em nvel global; desse modo, a necessidade formal de implementaodomstica no estipula mais uma independncia significativa do nvel nacio-nal em relao ao internacional. Ao mesmo tempo, os rgos de admi-nistrao global que tomam essas decises gozam, em alguns casos, dedemasiada independncia e arbtrio para serem considerados meros agentesdos Estados. Ponderar a significao e a trajetria dessa interconexo umaquesto de avaliao sobre a qual existem diferentes opinies. Do nossoponto de vista, os internacionalistas no podem mais sustentar com cre-dibilidade que no h democracia real ou dficits de legitimidade nagovernana administrativa global porque os rgos reguladores globais res-pondem a Estados, e os governos desses Estados respondem a seus eleitorese tribunais. Os administrativistas nacionais no podem mais insistir que aaccountability adequada para a governana regulatria global pode ser sem-pre obtida por meio da aplicao das exigncias do direito administrativonacional s decises reguladoras nacionais. Sustentamos que as circunstn-cias atuais pedem o reconhecimento de um espao administrativo global,distinto do espao das relaes interestatais governadas pelo direito inter-nacional e do espao regulador nacional governado pelo direito administra-tivo nacional, embora abranja elementos dos dois.22

Esse espao administrativo multifacetado incorpora os cinco tiposdiferentes de organismos administrativos internacionais ou transnacionaisdescritos acima. Nesse espao, interagem de forma complexa Estados,indivduos, empresas, ONGs e outros grupos ou representantes de interes-ses sociais e econmicos nacionais e globais que so afetados pela gover-nana regulatria global ou tm interesse nela. O espao caracteriza-se portraos e dinmicas distintas que pedem um estudo e uma teorizao posi-tiva e normativa independente. Esses esforos devem necessariamenteter como base e ao mesmo tempo transcender tanto o direito interna-cional como o direito administrativo nacional tradicionais; uma concep-o prevista nos escritos sobre direito administrativo internacional doincio do sculo XX, mas esquecida desde ento.23 A relativa autonomiae o carter distinto desse espao administrativo global e seus rgos deci-srios cada vez mais poderosos nos levam a defender o reconhecimento

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e aprofundamento de novos e diferentes princpios e mecanismos deaccountability por meio de um direito administrativo global. O resultadoprtico desses desdobramentos que os advogados que representam gover-no, organizaes internacionais, empresas, indivduos e ONGs preocu-pados com a crescente proporo de decises reguladoras tero de sefamiliarizar com as instituies e atividades dentro do espao administra-tivo global e participar da construo de um direito administrativo globalpara ajudar a gerir esse espao.

Nossa adeso noo de um espao administrativo global produtoda observao, mas tem inevitavelmente implicaes potenciais polticase de natureza normativa. De um lado, colocar a governana global emtermos administrativos poderia nos levar a sua estabilizao e legitimaode um modo que privilegiaria os atuais detentores do poder e reforariao domnio dos conceitos de direito ocidentais e do Norte quanto s formasmais adequadas de governana. Por outro lado, poderia criar tambm umaplataforma para a crtica. medida que o governo administrativo globalse torna bvio (e o enquadramento da regulamentao global em termostradicionais de administrao e regulamentao revela seu carter e exten-so de forma mais clara do que o uso de termos vagos como governana),24mais a resistncia e a reforma podem encontrar seus pontos de foco.Desse modo, do ponto de vista dos menores pases em desenvolvimento,pode parecer que instituies reguladoras globais, como OMC, FMI,Banco Mundial e Conselho de Segurana da ONU, j os administramsob presso dos pases industrializados que, em geral, esto sujeitos auma regulamentao externa muito menos intrusiva. Confrontar essasquestes em termos administrativos pode enfatizar a necessidade de criarestratgias para remediar a injustia associada a tais desigualdades.

III | O DIREITO ADmInISTRATIVO GlOBAl EmERGEnTE

A | O escopo do direito administrativo globalCompreender a governana global como administrao nos possibilitareconsiderar muitas preocupaes comuns sobre a legitimidade das institui-es internacionais, de um modo mais especfico e centrado. Propicia-nos

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uma distncia crtica til das reclamaes gerais sobre dficits democrticosnessas instituies que, com frequncia, so excessivamente amplas.25Tambm muda a ateno dos estudiosos da governana global para vriosmecanismos de accountability da tomada de deciso administrativa, inclu-sive o direito administrativo, que nos sistemas nacionais funciona emborano de forma independente ao lado dos procedimentos democrticos cls-sicos como eleies e controle parlamentar e presidencial. Essa investigaodestaca o grau em que os mecanismos de participao e reviso procedi-mental, tidos por certos na ao administrativo nacional, esto ausentes naesfera global. Ao mesmo tempo, convida ao desenvolvimento de procedi-mentos, princpios e remdios institucionais com objetivos menos ambicio-sos do que construir uma democracia global plena (e na atualidade, ilusria).

Desse ponto de vista, o direito administrativo global rene diferentesreas do direito que dizem respeito administrao global, mas que sotratadas h muito tempo separadamente e, com frequncia, por motivosconceituais.26 Ele inclui, como um de seus componentes, o velho campodo direito internacional administrativo, expresso usada principalmentepara denotar as normas, procedimentos e instituies por meio das quaisas organizaes internacionais tratam das disputas de emprego e outrosassuntos internos. Ele abrange tambm a interpretao especfica feitapor Karl Neumeyer e outros do direito administrativo global como ocorpo de normas nacionais que governam os efeitos de atos administra-tivos de um pas estrangeiro na ordem legal daquele Estado.27 Mas nossaconcepo de direito administrativo global muito mais ampla e se apro-xima da abordagem de Paul Ngulesco feita em 1935, que considera odireito administrativo internacional um ramo do direito pblico que,examinando os fenmenos jurdicos que constituem junto administraointernacional, busca descobrir e especificar as normas que governam essaadministrao e sistematiz-las.28 Em nossa abordagem, o direito admi-nistrativo global cobre efetivamente todas as normas e procedimentosque ajudam a assegurar a accountability da administrao global e temseu foco voltado, em particular, para os temas de estruturas administra-tivas, transparncia, institutos para participao no procedimento admi-nistrativo, princpio da motivao e mecanismos de reviso.

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As analogias diretas entre direito administrativo nacional e transna-cional devem ser vistas com grande cautela. No obstante, a sociologiada formao profissional jurdica dominada pelo ensino jurdico nacionalsignifica que provvel que o projeto de direito administrativo globalinclua, na prtica, em seu aspecto construtivo, tentativas para identificar,projetar e ajudar a construir estruturas transnacionais e globais para cum-prir funes que so, pelo menos, um pouco comparveis com aquelasque o direito administrativo cumpre no mbito nacional, e para reformaro direito administrativo nacional a fim de qualific-lo para tratar com ocarter cada vez mais global da regulamentao. As definies de direitoadministrativo na Europa continental so geralmente taxonmicas, emvez de normativas, tratando o tema como se ele cobrisse todas as normasa que os atores administrativos esto submetidos, exceto aqueles de natu-reza constitucional.29 Se visto desse mesmo modo taxonmico, o campodo direito administrativo global poderia abranger a totalidade das normasmundiais que governam a ao administrativa pelos cinco tipos diferen-tes de rgos administrativos apresentados anteriormente. Isso incluiriao direito substantivo que define os poderes e limites dos agentes regula-dores, como os tratados sobre direitos humanos e a jurisprudncia quedefine as condies sob as quais os organismos estatais podem interferirnas liberdades individuais.30 A citada definio de Ngulesco, tal comovrias das primeiras abordagens do direito administrativo internacional,iria com efeito at esse ponto.31 Porm, conceber o campo em termosto amplos geraria provavelmente uma agenda de pesquisa ingovernvelnesse estgio inicial de seu desenvolvimento e ofuscaria os compromis-sos normativos vinculados ao trabalho sobre direito administrativo glo-bal, que precisam ser explicitamente formulados a fim de serem testadose contestados. O foco do campo do direito administrativo global no ,portanto, o contedo especfico das normas substantivas, mas a operaode princpios, normas procedimentais, mecanismos de reviso existentesou possveis e outros mecanismos relacionados com a transparncia, aparticipao, a motivao das decises e a garantia de legalidade nagovernana global.

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B | Fontes do direito administrativo global As fontes formais do direito administrativo global esto entre as fontesclssicas do direito internacional pblico tratados, costume e princpiosgerais , mas improvvel que elas sejam suficientes para dar conta dasorigens e da autoridade da prtica normativa j existente no campo. muito raro que os tratados sejam diretamente sobre questes de direitoadministrativo. Na medida em que exprimem princpios de procedimentoadministrativo, eles geralmente vinculam e dizem respeito aos Estados,no s instituies internacionais ou s redes intergovernamentais de fun-cionrios nacionais. Geralmente, o direito internacional consuetudinrio ainda compreendido como sendo formado principalmente pela ao doEstado e, desse modo, no incorpora plenamente (por enquanto) a prticarelevante de atores no estatais, como os rgos administrativos globais.Por fim, o uso de princpios gerais do direito como uma fonte de direitointernacional tem-se limitado principalmente s necessidades internas dasinstituies internacionais ou a normas em relao s quais existe um altograu de convergncia mundial. A aceitao de princpios gerais na prticado direito internacional formal tem sido baixa, e improvvel que sejaestendida rapidamente aos diversos e fragmentados contextos da admi-nistrao global.

possvel que um cmputo melhor das fontes legais da prtica nor-mativa existente na administrao global possa ser fundado numa versorevista do jus gentium que pudesse abranger normas que surgem entreuma ampla variedade de atores e em cenrios muito diferentes, em vezde depender de um jus inter gentes baseado em acordos entre Estados.32Essa abordagem espelharia, at certo ponto, os procedimentos de legis-lao em outros campos do direito fora do Estado, como a lex mercatoria,baseada nas prticas dos atores comerciais em todo o mundo.33 Contudo,os fundamentos para um possvel desenvolvimento de um jus gentium daadministrao global so ainda incertos. Ainda que sejam propostos combase na prtica e no em um direito natural , permanece a incertezaquanto base para determinar essas normas e seu estatuto legal. O fatode os princpios gerais do direito exigirem uma alta convergncia de sis-temas jurdicos reflete um forte compromisso com a incluso e evita

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imposies de um grupo de Estados sobre os demais. O jus gentium,mesmo sendo uma concepo interessante para o direito administrativoglobal, tambm ter de enfrentar tal desafio.

Contudo, mesmo entre as fontes tradicionais de direito internacionalpblico pode haver espao para o desenvolvimento de normas relevantespara o direito administrativo global. No caso do direito dos tratados, pos-svel adotar a abordagem desenvolvida pelo Tribunal Europeu de DireitosHumanos, que teve de resolver o problema de a Conveno Europeia sobreDireitos Humanos (CEDH) no obrigar formalmente as organizaesintergovernamentais ou a Unio Europeia. O Tribunal exige que os Esta-dos-membros garantam que as instituies s quais eles conferem poderofeream um grau de proteo equivalente quela proporcionada pelaCEDH. A aplicao mais ampla dessa abordagem forneceria pelo menosum conjunto bsico de padres para os rgos administrativos globais,mas no resolveria os problemas de como transplantar ou adaptar sofisti-cados conjuntos de normas nacionais s instituies transnacionais e inte-restatais, e muito menos a organismos hbridos pblicos-privados oupuramente privados.

Um ltimo problema em relao s fontes diz respeito ao estatuto dodireito nacional. Trata-se de uma fonte de controle do direito para a admi-nistrao domstica e, portanto, para as agncias administrativas nacionais,seja implementando as leis globais ou agindo como uma parte das estruturasadministrativas globais, ou ambos. Os tribunais nacionais tambm podemproporcionar um frum para reparao quando os rgos administrativosglobais atuarem em relao a entes privados, diretamente. Por meio des-ses mecanismos, o direito nacional pode ajudar a garantir a accountabilityda administrao global; e uma modesta arquitetura de accountability cen-trada em mecanismos domsticos pode ser um meio de refletir os diversoscompromissos normativos presentes em cada sociedade nacional e, dessemodo, acomodar a diversidade.34 Contudo, os mecanismos nacionais cria-dos e operados de acordo com predilees locais talvez no preenchamas necessidades funcionais para um grau de uniformidade global quantoa princpios e mecanismos e para a receptividade das caractersticas parti-culares de regimes administrativos globais especficos. Os conflitos entre

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direito nacional (em particular, o constitucional) e essas necessidades glo-bais podem ser difceis de resolver, exceto por acomodaes pragmticastemporrias. demasiado cedo para saber como a aplicao habitual erobusta do direito domstico participao nacional em rgos adminis-trativos transnacionais ou globais, ou diretamente s decises de taisrgos, afetaria o funcionamento desses organismos.35 Se todos os seusparticipantes fossem submetidos a diversas exigncias nacionais, tantoprocedimentais como substantivas, os rgos talvez tivessem grande difi-culdade para operacionalizar a uniformidade necessria para sua regula-mentao e gesto efetivas. As diversas formas de controle nacional tambmpoderiam dificultar a capacidade de participao efetiva das autoridadesreguladoras nacionais nas decises reguladoras globais. Uma vez que aseparao dualista tradicional entre o nacional e o internacional no sus-tentvel no espao administrativo global integrado, a relao entre essasesferas requer um reajuste pragmtico contnuo, bem como uma reteori-zao mais profunda.

Mesmo que se chegasse a um acordo sobre a identificao das fontes for-mais do direito administrativo global, em termos de direito internacionaltradicional ou de uma revivida abordagem do jus gentium, improvvel queum corpo definitivo e detalhado de normas e princpios de administraoglobal pudesse ser formulado atualmente, mesmo em relao aos acordosintergovernamentais formais. Os instrumentos escritos intergovernamentaisque dizem respeito a essas normas so dispersos e relativamente esparsos;as prticas dos rgos administrativos globais so fragmentadas e as normasnacionais formais variam consideravelmente, mesmo quando ocorre algumaconvergncia. Os arranjos reguladores globais hbridos e privados no estodiretamente sujeitos a muitos desses princpios e normas, e o estatuto dosprincpios e prticas jurdico-administrativas emergentes em relao a taissistemas hbridos e privados , em larga medida, indeterminado. Ademais,segundo uma abordagem do jus gentium, inevitvel o desacordo sobrequais prticas levar em conta e quais no levar para o surgimento de umanorma, assim como sobre o quanto necessria a prtica reiterada para gerarum forte impulso de adeso. A adoo (ou no adoo) de mecanismosde accountability em uma instituio internacional conta mais a favor (ou

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contra) uma nova norma do que a adoo (ou no adoo) em uma redeintergovernamental informal ou em uma instituio hbrida com participa-o privada? Essas questes de metodologia demandaro um considerveltrabalho no futuro.

C | Mecanismos institucionais para a aplicao edesenvolvimento do direito administrativo global: uma taxonomia

1 | INSTITUIES NACIONAIS COMO MECANISMOSDE CONTROLE NA ADMINISTRAO GLOBAL

Tendo em vista a ausncia de mecanismos de accountability genuinamen-te internacionais na maioria dos regimes administrativos globais, as ins-tituies nacionais frequentemente tm tomado a iniciativa de tentarcontrolar a administrao global. Isso mais bvio nas tentativas dos tri-bunais nacionais de estender sua jurisdio sobre a ao das instituiesinternacionais. Desse modo, em 2000, numa deciso histrica, o TribunalConstitucional da Bsnia decidiu que podia rever certas decises doEscritrio do Alto Representante da ONU na Bsnia.36 O Alto Represen-tante derivava seus poderes do Acordo de Dayton de 1995 (o tratado depaz assinado aps a guerra da Bsnia e endossado pelo Conselho deSegurana) e de um anexo ao Acordo que estabelecia que ele era o rbitrofinal.37 Porm, o Tribunal Constitucional sustentou que quando agia comoautoridade domstica de facto, e no como funcionrio internacional, oAlto Representante no estava acima da Constituio e, desse modo, seusatos poderiam ser revistos.38 Em outra variante dessa abordagem, indiv-duos na Europa levaram aes aos tribunais nacionais contestando regu-lamentaes da Unio Europeia que implementavam sanes do Conselhode Segurana da ONU. Em um desses casos, trs cidados suecos de origemsomali argumentaram perante o Tribunal de Primeira Instncia das Comu-nidades Europeias (TPICE) que eles haviam sido identificados erroneamentepelo Conselho e sem o devido processo, e que a implementao das regu-lamentaes da Unio Europeia eram, ento, ilegais.39 O TPICE rejeitou,em exame preliminar, o pedido de medida cautelar, mas reservou-se o

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1. A EmERGnCIA DE um DIREITO ADmInISTRATIVO GlOBAl

julgamento sobre os mritos.40 Logo depois, o comit de sanes do Con-selho de Segurana decidiu retirar dois dos demandantes da lista e esta-belecer um procedimento geral em que o indivduo pode, por meio dogoverno nacional, apresentar um pedido para ser retirado da lista e seusmotivos para isso.41

Esses dois exemplos de envolvimento de tribunais no controle de ins-tituies internacionais a pedido de litigantes que reclamam de violaesde seus direitos individuais substantivos e procedimentais so compar-veis aos esforos feitos desde os anos 1970 por tribunais nacionais devrios pases europeus para refrear as atividades das Comunidades Euro-peias.42 So comparveis tambm s decises do Tribunal Europeu deDireitos Humanos (TEDH) que estabelecem limites delegao de pode-res a organizaes internacionais a fim de salvaguardar direitos indivi-duais. Em vrias decises, o TEDH reconheceu que os Estados-partes daConveno Europeia sobre Direitos Humanos muitas vezes no conse-guiro assegurar a plena extenso da proteo da CEDH quando partici-parem de organizaes internacionais, mas insistiu que eles garantem umpadro mais ou menos equivalente. Com base nisso, ela qualificou, porexemplo, a participao de Estados-membros na Unio Europeia43 e indi-cou consideraes limitadoras para Estados que concedem imunidade Agncia Espacial Europeia em tribunais nacionais.44

De um modo mais convencional, os tribunais nacionais revisaramdecises de carter privado de rgos administrativos globais. Nesse aspec-to, aplicam-se as normas do direito privado internacional, inclusive as querefletem as polticas pblicas nacionais, e os tribunais nacionais podem estarpresumivelmente dispostos a exercer jurisdio. Por exemplo, o regimeinternacional para esportes do Comit Internacional Olmpico e sua CorteArbitral dos Esportes teve de convencer os tribunais nacionais de que suasdecises em questes de doping obedecem aos padres do devido processo,para que assim pudessem ser reconhecidas no direito nacional.

Os tribunais no so as nicas instituies domsticas envolvidas noprocesso de tornar a administrao global mais responsvel. Nos EstadosUnidos, por exemplo, algumas autoridades reguladoras federais ofereceminformes e comentrios quando participam do estabelecimento de padres

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internacionais em certos tpicos.45 Nesses casos, a participao de pessoasinteressadas em procedimentos administrativos levada para uma fasecomumente considerada preparatria. Isso garante que a participao cheguea tempo de influenciar as negociaes internacionais entre as agncias regu-ladoras que resultem em decises que sero mais tarde implementadas outero forte influncia no direito regulador nacional.46 Do mesmo modo, osparlamentos comearam, em alguns casos, a estender sua superviso da aoadministrativa participao de funcionrios nacionais em redes adminis-trativas globais. Assim, o Congresso americano exige relatrios das agnciasreguladoras do pas antes de aprovar recomendaes de grupos reguladoresfinanceiros, como o Comit de Basileia.47 At agora, no entanto, esses tiposde iniciativas so episdicos e fragmentados. Com frequncia, so impul-sionados por controvrsias particulares, de tal modo que alguns problemasso negligenciados e outros so tratados em detalhes. Em alguns casos, ml-tiplas comisses legislativas, rgos judiciais e comisses de investigaointernacionais podem tratar todos do mesmo assunto, geralmente com aateno da mdia, como aconteceu com as investigaes a partir de 2003sobre o programa Petrleo por Alimentos no Iraque e com as recomendaesresultantes para reforma dos processos de governana da ONU. Muitos pro-blemas jurdicos que afetam essa superviso ainda no foram tratados deforma adequada, inclusive as normas sobre a admissibilidade em um pro-cesso de provas obtidas em outro; so normas complexas e, s vezes, insa-tisfatrias sobre imunidades e princpios de alocao e prioridade entreprocessos nacionais e internacionais. As medidas nacionais frequentementetm o efeito (s vezes intencional) de obstruir a superviso eficaz da gover-nana global. Enquanto os controles nacionais desempenham cada vez maisum papel positivo importante, ainda no temos padres coerentes no uso deinstituies nacionais para controlar a administrao de rgos transnacio-nais e internacionais.

2 | MECANISMOS ADOTADOS POR INSTITUIES GLOBAISPARA PARTICIPAO E AccOUnTABIlITy

Os rgos administrativos globais tm criado mecanismos prprios deaccountability, como resultado de esforos dos seus Estados participantes

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1. A EmERGnCIA DE um DIREITO ADmInISTRATIVO GlOBAl

e dos seus gestores para fortalecer os controles sobre suas operaes,em resposta s crticas da opinio pblica e dos governos e s contesta-es de instituies nacionais. O estabelecimento pelo Conselho deSegurana de um procedimento administrativo limitado para a inclusoou excluso de nomes das listas de indivduos alvos de sanes pelaONU ilustra essa tendncia. Tal procedimento, em parte adotado comoresposta reviso por tribunais nacionais da implementao de decisessobre a listagem, altamente problemtico porque s pessoas listadas noso garantidos direitos de acesso junto ao Conselho de Segurana e elasprecisam confiar ao seu pas de residncia ou cidadania a defesa da suacausa. Porm, esse procedimento introduz, ao menos, algumas exignciaspara a motivao das decises e a possibilidade de sua reviso nos tra-balhos dos comits do Conselho de Segurana rgos que normalmentese julgam puramente polticos, sem qualquer possibilidade de equipara-o a rgos administrativos.48

Um tipo de mecanismo administrativo inovador e mais robusto ocaso do Painel de Inspeo do Banco Mundial. Em parte, o procedimentodo Painel foi criado inicialmente para aumentar a obedincia dos funcio-nrios do Banco s diretivas internas, tais como as orientaes que asse-guram que os projetos financiados pelo Banco sejam ambientalmentecorretas. Desse modo, o procedimento permite que o Conselho Executivoexera um controle adicional na administrao cotidiana do Banco. Maso Painel exerce tambm uma funo importante para os indivduos e gru-pos afetados, ao proporcionar um frum onde podem contestar o cum-primento das polticas do Banco relacionadas aos seus projetos. O Painels tem o poder de emitir relatrios e recomendaes e no pode deter oumodificar projetos que no estejam conformes. Alm disso, a base paratais contestaes est limitada a alegaes de no obedincia s polticasdo prprio Banco Mundial e, portanto, no se estendem para as regras dedireito internacional em geral; entretanto, essa limitao foi rompida emalguns casos e talvez venha a se revelar insustentvel. O modelo do Painelde Inspeo foi adotado em vrios bancos regionais de desenvolvimento,com modificaes que incluem at poderes para resolver uma controvr-sia de forma amigvel.49

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Algumas redes intergovernamentais tambm tomaram medidas parauma maior transparncia e participao em seus procedimentos, fato not-vel no caso de redes reguladoras cuja informalidade frequentemente suaprincipal vantagem. Por exemplo, o Comit de Basileia de bancos centraistornou mais aberto o processo que leva redao de um novo acordo deadequao de capital (Basileia II), convidando as partes interessadas a faze-rem comentrios.50 Desdobramentos semelhantes ocorreram no interior daOCDE, depois que a legitimidade de sua forma de trabalho foi colocadaem questo pelo fracasso do Acordo Multilateral sobre Investimentos. Emalgumas reas de sua atuao, a OCDE passou a instituir procedimentosde consulta (pelo sistema informe e comentrio) e a estimular uma partici-pao pblica mais ampla de forma direta ou mediante mecanismos em cadaum dos Estados-membros.51 Entre as organizaes com um procedimentode consulta similar est a Organizao Mundial para a Sade Animal, quedesenvolve padres para a sade animal aplicveis conforme o AcordoSPS. O GAFI tambm pede contribuies de fora em seus esforos de regu-lamentao e abre-se para consideraes da parte de pases e territrios queesto sob anlise quanto sua incluso na lista daqueles que no cooperame esto, desse modo, sujeitos a algum tipo de sano.52

O objetivo de fortalecimento da participao direta na administrao glo-bal cada vez mais perseguido, embora conte com resultados contestadosdevido incluso direta de ONGs em processos decisrios, como na Comis-so do Codex Alimentarius.53 As ONGs tambm tm realizado parcerias comempresas que assumem o formato de uma governana regulatria coopera-tiva. Por exemplo, nas reas de meio ambiente e questes trabalhistas, asempresas tm procurado integrar as ONGs no que eram anteriormente seuspadres de autorregulao, a fim de aumentar a legitimidade dos padres edos mecanismos de certificao estabelecidos por esses padres.54 Em algunscasos, esses arranjos assumem um carter hbrido, funcionando sob a gidede rgos administrativos internacionais, como as agncias da ONU.55

3 | DISCIPLINAS GLOBAIS PARA ADMINISTRAO DISTRIBUDAO terceiro mecanismo desse direito administrativo global incipiente estabe-lece controles para a administrao nacional coordenada ou, na terminologia

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1. A EmERGnCIA DE um DIREITO ADmInISTRATIVO GlOBAl

apresentada aqui, para os elementos dispersos na administrao global.A fim de assegurar que os reguladores nacionais atuem como participantesno regime global, em vez de meros atores nacionais, as agncias intergo-vernamentais promoveram normas globais para gerir no somente o con-tedo da regulamentao nacional, mas tambm os procedimentos seguidospelos rgos reguladores nacionais ao aplicar uma norma global ouquando sujeitas s suas constries. Com efeito, esses requisitos proce-dimentais colocam aqueles rgos nacionais e seus funcionrios numpapel adicional de agentes do regime global e buscam de algum modotorn-los responsveis pelo seu cumprimento.56 Esses requisitos so pro-jetados para proteger os interesses de outros Estados, indivduos e firmassujeitos regulamentao, assim como os interesses sociais e econmi-cos mais amplos afetados pelo regime, proporcionando-lhes procedi-mentos especficos para assegurar a fidelidade dos reguladores nacionaiss normas administrativas globais projetadas para proteger seus direitosou interesses.

A primeira deciso do rgo de Apelao da OMC no caso Camaro/Tartaruga foi um esforo notvel para proteger os interesses dos Estadosestrangeiros afetados.57 No caso, o rgo de Apelao determinou queum Estado precisa comprovar que os pases e produtores estrangeiros afe-tados pela deciso tiveram garantida alguma forma de devido processo,para que as restries de importao baseadas no processo sejam condi-zentes com as excees do Artigo XX do GATT.58 Desse modo, as normasinternacionais requereram um procedimento administrativo nacional,objetivando assegurar que os reguladores domsticos levassem em con-siderao as partes externas pertinentes, para mudar o foco de sua buscapor accountability.

Outras regras da OMC, inclusive o GATS, tambm determinam mudan-as em procedimentos administrativos nacionais. Por exemplo, no setorde telecomunicaes, foi introduzido o modelo de agncias reguladorasindependentes; aqui, o procedimento serve principalmente para melhorimplementar as metas que esto por trs da regulamentao global dastelecomunicaes.59 Essa tambm a lgica da reviso arbitral de amploalcance estabelecida por tratados de investimento, seja pelo sistema do

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ICSID seja pelo NAFTA. De acordo com esses mecanismos, os investido-res podem contestar uma ao administrativa do Estado hospedeiro perantetribunais arbitrais internacionais quando identificarem que seus direitosgarantidos pelo tratado de investimento em questo foram violados. Asdecises desses tribunais limitaram cada vez mais o espao de atuao dosreguladores nacionais, seja no tocante a procedimentos, seja quanto ao con-tedo de suas decises. Isso d aos investidores um instrumento muitopoderoso, nem sempre equilibrado quanto representao de interessespblicos e outros. A reviso central das administraes nacionais por rgosregionais e globais ocorre tambm nos tratados de direitos humanos. Combase em critrios legais, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem exa-mina a administrao domstica para verificar a sua conformidade com aConveno Europeia dos Direitos do Homem e tem tambm desenvolvidouma rica jurisprudncia sobre procedimentos administrativos nacionais,especialmente sobre os mecanismos de reviso nacionais.60

Para muitos pases em desenvolvimento, provavelmente os exemplosmais influentes nessa categoria so as instituies de Bretton Woods. Aspolticas do Banco Mundial sobre boa governana, sejam sob a formade recomendao ou de condicionalidade para a ajuda financeira a essespases, geraram vastos cdigos de princpios e regras para a organizao eos procedimentos da administrao nacional desde medidas para comba-ter a corrupo a prticas de maior transparncia e garantias procedimentaispara atores do mercado.61 Tendo em vista a dependncia de muitos pasesda ajuda e do financiamento externo, essas normas do Banco Mundialtransformaram ou esto em vias de transformar a administrao nacio-nal em grande parte do mundo. Condicionalidades similares impostas peloFMI, para a ajuda financeira aos pases em desenvolvimento, tm tido osmesmos efeitos.

D | Caractersticas normativas do direito administrativoglobal: o surgimento de princpios e requisitos Alm da multiplicidade de mecanismos institucionais, o direito adminis-trativo global compreende alguns princpios e requisitos jurdicos bsicostanto no que diz respeito a seu contedo quanto aos seus procedimentos.

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1. A EmERGnCIA DE um DIREITO ADmInISTRATIVO GlOBAl

Tendo em vista a fragmentao da prtica na administrao global e o esta-do limitado do conhecimento integrado sobre ela, no podemos nos aven-turar a fazer afirmaes definitivas sobre os elementos normativos quegovernam essa rea como um todo. Mas alguns candidatos podem ser pre-liminarmente identificados, embora seu alcance possa ser, no presente,limitado. Ser uma tarefa central para a pesquisa futura mostrar o grau emque esses e outros elementos esto, de fato, refletidos na prtica adminis-trativa global e o grau em que podem ser aplicados ou adaptados a reasda regulamentao internacional ou transnacional, em que o direito admi-nistrativo atualmente rudimentar ou no existente.

1 | PARTICIPAO E TRANSPARNCIA PROCEDIMENTALNo nvel nacional, o direito garantido a indivduos afetados de que seuspontos de vista e informaes pertinentes sejam considerados antes datomada de uma deciso um dos elementos clssicos do direito adminis-trativo. Verses desse princpio so aplicadas cada vez mais na governanaadministrativa global, como ilustrado por alguns exemplos. No que dizrespeito ao administrativa de um Estado que afeta outro, o rgo deApelao da OMC observou, no caso Camaro/Tartaruga, que os EstadosUnidos no haviam garantido a nenhum dos pases cujas exportaes decamaro foram restringidas por regulamentaes administrativas ameri-canas uma oportunidade formal para serem ouvidos ou para respondera quaisquer argumentos que pudessem ser apresentados contra isso. Orgo de Apelao determinou, ento, que os Estados Unidos deveriamoferecer mecanismos de participao nos procedimentos aos atingidospela medida.62 Em relao ao administrativa de um rgo intergover-namental que afeta determinados pases, at Estados no membros j tive-ram uma oportunidade de participar antes que fossem inseridos pelo GAFInuma lista de pases no obedientes.63 Quanto aos indivduos, o recenteCdigo Antidoping Mundial do Comit Olmpico Internacional destacaa oportunidade de o acusado ser ouvido; nesse caso, os princpios nor-mativos do direito administrativo so aplicados para sujeitar um cenrioinstitucional privado aos critrios de tomada de deciso administrativa.Em contraste, as sanes econmicas do Conselho de Segurana da ONU

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contra Estados e que afetaro indivduos ou grupos que neles vivem oufazem negcios no contam com nenhuma estrutura para a participaodesses grupos potencialmente atingidos antes da determinao da sano,embora no caso especial de pessoas listadas para congelamento de ativosfinanceiros pelas resolues contra o terrorismo tenha sido instituda umaforma limitada de contestao.

A participao nos procedimentos administrativos globais no ficou con-finada aos indivduos ou Estados alvos das decises. Na rea do estabeleci-mento de padres e criao de normas, vrios organismos, como a Comissodo Codex Alimentarius, buscaram incluir em seu trabalho ONGs que repre-sentassem interesses sociais e econmicos atingidos.64 As agncias regula-doras nacionais tambm comearam a informar sobre os padres propostosem exame nas negociaes globais de que participam. Porm, os direitosde participao na criao de normas foram concedidos apenas em umnmero limitados de casos e reas.

A transparncia nas decises e o acesso s informaes so fundamen-tos importantes para o exerccio efetivo do direito participao e do direi-to de recurso. Eles promovem tambm a accountability de forma direta aoexpor as decises administrativas e os documentos pertinentes ao pblico eao escrutnio dos pares. Instituies internacionais como o Banco Mundial,o FMI e a OMC respondem cada vez mais s crticas ao sigilo das decisesoferecendo acesso pblico mais amplo aos documentos internos. O envol-vimento de ONGs nas decises, como no exemplo do Codex, outro meiode promover a transparncia. Redes reguladoras, como o Comit de Basileiae a Organizao Internacional das Comisses de Valores (IOSCO), criarampginas na Internet em que disponibilizam material abundante sobre as suasdecises internas e informaes e consideraes nas quais elas se baseiam.Medidas similares foram tomadas por uma srie de redes reguladoras glo-bais de carter pblico-privado, tal como aquelas que tratam da certificaode silvicultura sustentvel. Essas medidas so geralmente voluntrias parao regime em questo. Houve tambm alguns acordos internacionais para atransparncia tanto dos regimes globais como da administrao nacional,especialmente no campo do meio ambiente. As provises de acesso pblicos informaes ambientais da Conveno de Aarhus, que se aplicam tanto

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s organizaes internacionais como aos Estados que so suas partes, cons-tituem um exemplo proeminente.65 A OMC, o Banco Mundial e o FMI sooutros exemplos de organismos internacionais que criaram requisitos detransparncia para as administraes nacionais.

2 | DECISES MOTIVADASA exigncia de fundamento para as decises administrativas, inclusive res-postas aos principais argumentos apresentados pelas partes ou terceirosinteressados, foi estendida do sistema jurdico nacional para algumas ins-tituies globais e regionais. A prtica internacional fora das cortes rela-tivamente pouca, em parte porque o nmero de decises dos organismosadministrativos globais que afetam diretamente determinadas pessoas ainda limitado, embora crescente. A deciso Camaro/Tartaruga e o sub-sequente repertrio de decises da OMC tm importncia central para adefinio dos princpios da motivao para a regulamentao administra-tiva global; nesse mesmo sentido a deciso do Conselho de Segurana deexigir, pelo menos internamente, algum tipo de justificativa do pas pro-ponente antes que um indivduo seja includo na lista daqueles cujos ativosdevam ser congelados. Do mesmo modo, no regime global antidoping, umadeciso escrita e arrazoada tornou-se requisito para tomar medidas contraum determinado atleta. Na rea de criao de normas, porm, no pareceser prtica dos organismos administrativos motivar suas decises, emboraalgumas organizaes o faam a fim de fortalecer a aceitabilidade de suasaes pelos interesses atingidos. O Comit de Basileia, por exemplo, esta-beleceu um processo dialgico pela Internet ao criar seus novos requisitosde adequao de capital para os bancos: posta-se uma primeira verso, soli-citam-se os comentrios e o Comit fundamenta suas posies a partir dasverses novas e revisadas. A Corporao Financeira Internacional do BancoMundial tem seguido um procedimento semelhante para a reviso de suaspolticas de salvaguardas.

3 | RECURSOO direito de recorrer a uma corte ou outro tribunal independente de uma deci-so de um rgo administrativo nacional que afete os direitos do indivduo

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est entre os traos mais amplamente aceitos do direito administrativonacional e isso se reflete, em certa medida, na administrao global.66Um direito reviso pelas autoridades nacionais foi mencionado na deci-so Camaro/Tartaruga.67 A aceitao da importncia da reviso reflete-se na criao do Painel de Inspeo do Banco Mundial e tambm no direito apelao Corte Arbitral dos Esportes nas decises sobre doping. Algunsinstrumentos internacionais de direitos humanos tratam como um direitohumano o recurso a um tribunal para contestar decises prejudiciais, comoo artigo 14 da Conveno Internacional sobre Direitos Civis e Polticos eos artigos 6 e 13 da Conveno Europeia de Direitos Humanos CEDH(embora cada uma dessas provises circunscreva sua operao de umaforma que lhe particular).68 Em vrios casos, os organismos europeus dedireitos humanos confirmaram a importncia desse direito em relao sdecises administrativas de rgos intergovernamentais. Pelos artigos 6e 13 da CEDH, os Estados-partes devem assegurar que os padres proce-dimentais das organizaes internacionais das quais so membros sejamequivalentes aos padres nacionais. No que tange a direitos trabalhistas,a maioria das organizaes internacionais criou mecanismos internos dereviso para seus funcionrios, os quais, com frequncia, envolvem atmesmo tribunais independentes.

At que ponto o direito de reviso aceito em diferentes reas de gover-nana? Com que limitaes? Quais mecanismos institucionais ele abrangenessas reas? Essas questes ainda no esto definitivamente resolvidas.Apesar dos fortes apelos por mecanismos eficazes de reviso das decises,em vrias reas importantes, eles no foram institudos. A ttulo de exem-plo, o Conselho de Segurana ainda no criou um rgo independente paraexaminar suas decises de sanes. Do mesmo modo, o Alto Comissariadodas Naes Unidas para Refugiados (ACNUR), at agora, conta apenascom mecanismos internos de superviso. Mesmo na administrao transi-tria de territrios como Bsnia, Kosovo e Timor Leste, as organizaesinternacionais no se mostram dispostas a aceitar os direitos dos indivduosde pleitear a reviso das aes de organismos intergovernamentais frente atribunais ou a quaisquer outros organismos independentes, que tenhampoderes mais amplos do que o de um mero ombudsman.

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4 | PADRES SUBSTANTIVOS: PROPORCIONALIDADE, RACIONALIDADEMEIOS-FINS, EVITAR MEIOS DESNECESSARIAMENTE RESTRITIVOS,ExPECTATIVAS LEGTIMAS

Especialmente quando os indivduos so colocados no primeiro plano,pode-se esperar que o direito administrativo global encarne padres subs-tantivos para a ao administrativa, como aqueles aplicados no contextonacional tais como proporcionalidade, relao racional entre meios efins, uso de meios menos restritivos ou expectativas legtimas. A propor-cionalidade uma questo central na jurisprudncia de alguns regimes inter-nacionais de direitos humanos: na CEDH, por exemplo, a interfernciaem muitos direitos individuais pode ser justificada, mas somente se (interalia) a interferncia for proporcional ao legtimo objetivo pblico bus-cado.69 O princpio da proporcionalidade reflete-se tambm em algumasdecises de tribunais nacionais sobre governana global, tais como a cr-tica de um tribunal alemo a uma deciso de uma federao internacionalde esportes num caso de doping pela imposio de punies despropor-cionais.70 Do mesmo modo, restries conflitantes com as normas geraisde livre comrcio do GATT so permitidas somente se cumprirem certosrequisitos projetados para assegurar uma relao racional entre meios efins e empregarem meios que no so mais restritivos ao comrcio doque o razoavelmente necessrio para alcanar o objetivo regulador perti-nente. Contudo, em muitas outras reas da administrao global, a apli-cao de tais requisitos tem sido at agora mnima.71

5 | ExCEES: IMUNIDADESNo que diz respeito imunidade de Estados estrangeiros, os tribunais nacio-nais levam em conta h muito tempo os interesses de cada uma das partes,com excluso das atividades puramente comerciais do domnio da imuni-dade, o que possibilita, por exemplo, a execuo dos contratos. A lei sobreimunidades das organizaes internacionais em tribunais nacionais aindano integrou essa amplitude de valores em competio, embora existamsinais fragmentrios dos comeos de uma mudana nessa direo. EmWaite and Kennedy v. Germany,72 os requerentes ao Tribunal Europeu deDireitos Humanos (TEDH) reclamaram da deciso de um tribunal alemo

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que se recusava a julgar os mritos da ao trabalhista dos requerentes con-tra a Agncia Espacial Europeia (AEE) com o argumento de que a AEE,sendo uma organizao intergovernamental, gozava de imunidade perantea lei alem.73 O TEDH resolveu que a deciso do tribunal alemo noviolava o artigo 6, 1 (direito de acesso justia) da CEDH.74 Porm, oTribunal aplicou um teste de proporcionalidade e ps na balana a possibi-lidade de recursos internos para os requerentes dentro da AEE, bem comosolues possveis contra firmas privadas contratantes para fornecer amo de obra dos requerentes AEE.75 Essa abordagem de colocar as rei-vindicaes de direitos humanos contra as reivindicaes de imunidadecria presses para que essas agncias adotem procedimentos alternativosadequados para a reclamao de direitos humanos. Em um caso posterior,Fogarty v. United Kingdom,76 o TEDH concluiu:

As medidas tomadas por uma Alta Parte Contratante que refletemnormas geralmente reconhecidas de direito pblico internacionalsobre imunidade do Estado no podem, em princpio, ser vistascomo se impusessem uma restrio desproporcional ao direito deacesso justia tal como definido no artigo 6(1). Assim como odireito de acesso justia inerente garantia de julgamento justonaquele artigo, algumas restries ao acesso devem tambm servistas como inerentes, sendo um exemplo aquelas limitaesgeralmente aceitas pela comunidade das naes como parte dadoutrina da imunidade do Estado.77

Essa considerao reconhece que o direito pblico internacional acarretaalgumas restries s protees reparadoras para os direitos humanos, masa referncia ao conceito de proporcionalidade assevera que imunidades tra-dicionais podem no ser mais absolutas.78

6 | ExCEES: REGIMES ESPECIAIS PARA CERTAS REAS TEMTICAS?No direito administrativo nacional, nem todos os mecanismos de account-ability se aplicam a toda a gama de atores administrativos domsticos. Apli-cam-se comumente excees ou ao menos padres mais baixos em

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1. A EmERGnCIA DE um DIREITO ADmInISTRATIVO GlOBAl

assuntos de segurana nacional e em decises dos bancos centrais. pre-ciso uma considerao cautelosa sobre o grau em que essas exceesdevem ser reproduzidas na administrao global. Em questes de seguran-a, o regime de sanes do Conselho de Segurana estabeleceu padresmnimos para participao, apresentao de razes e reviso, mas no des-cartou completamente as demandas por mecanismos de accountabilitymaisfortes. Quanto aos bancos centrais, o Banco Central Europeu estimulou odebate transnacional sobre o equilbrio entre accountability e independn-cia. Na rea relacionada de superviso bancria, o Comit da Basileia jtomou medidas significativas para ter uma participao mais ampla, e osparlamentos nacionais comearam a pressionar para obter relatrios dosparticipantes em vrios regimes reguladores intergovernamentais, antesque eles concordem com qualquer recomendao nova. Refletindo as enor-mes variaes entre diferentes arranjos de governana global, a prticaatual muito diversa. At mesmo em uma nica organizao com mltiplasreas de competncia, como a OCDE, diferentes padres de abertura pro-cedimental prevalecem em diferentes reas temticas, refletindo, com fre-quncia, as respectivas culturas existentes nas administraes nacionais.79

IV | AS BASES nORmATIVAS DO DIREITOADmInISTRATIVO GlOBAl

Tanto aqueles que estudam como aqueles que pesquisam na rea do direi-to administrativo global reconhecem que h um projeto normativo portrs e que no se trata de um mero exerccio taxonmico nem da definiode solues tcnicas prticas para problemas j identificados e reconhe-cidos no contexto da administrao reguladora global. As possveis basesnormativas so, entretanto, to variadas quanto as prticas administrativascorrespondentes.

A | Diferentes padres de arranjos internacionais e diferentes concepes normativas do direitoadministrativo globalDiferentes padres de arranjos internacionais sustentam diferentes (e,s vezes, mutuamente incompatveis) marcos normativos para o direito

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administrativo global, assim como acontece com o direito internacionalclssico e o processo de institucionalizao internacional como um todo.80Pode-se obter alguma relao entre esses diferentes padres com o empre-go da terminologia aplicada pela escola inglesa de relaes internacionais,que distingue trs diferentes padres de arranjos internacionais: pluralismo,solidarismo e cosmopolitismo. O pluralismo interestatal o padro tpicodo direito internacional tradicional, com tratados, instituies e formasde administrao internacional delimitados por reas pelos acordos cele-brados entre os Estados. Com efeito, os conflitos de valor no tm comoser resolvidos e o poder de implementao costuma ser mantido pelospases individualmente, em vez de centralizados. O solidarismo interes-tatal, por sua vez, prev mais poderes para as instituies internacionaise conta com uma administrao global com base em valores compartilha-dos; a cooperao ainda baseada na barganha entre os Estados, mas comos