ensaio sobre o dom

20
Sociologias, Porto Alegre, ano 16, n o 36, mai/ago 2014, p. 22-41 http://dx.doi.org/10.1590/15174522-016003602 DOSSIÊ O ensaio sobre o dom de Marcel Mauss: um texto pioneiro da crítica decolonial PAULO HENRIQUE MARTINS * * Universidade Federal de Pernambuco. Recife (Brasil) Resumo O objetivo deste artigo é mostrar que Marcel Mauss, em seu Ensaio sobre o dom, publicado em 1924, desenvolve uma reflexão pós-colonial avant la lettre que estrutura toda a sua crítica antiutilitarista do ocidentalismo e que pode escla- recer uma série de aspectos da crítica decolonial, especialmente em suas relações atuais com o pensamento antiutilitarista desenvolvido na Europa. Palavras-chave: Mauss. Pós-colonialidade. Crítica decolonial. Marcel Mauss’ The Gift: a pioneering work of the decolonial critique Abstract The purpose of this article is to demonstrate that Marcel Mauss, in his Essai sur le Don (The Gift), published in 1924, elaborates a sort of avant la lettre postco- lonial thinking that structures his whole anti-utilitarian criticism of the Occidenta- lism and that may clarify some aspects of the decolonial criticism, particularly in its current relations with anti-utilitarian thinking developed in Europe. Keywords: Mauss. Postcolonialism. Decolonial criticism.

Upload: chi-ara

Post on 19-Dec-2015

11 views

Category:

Documents


6 download

DESCRIPTION

Ensaio

TRANSCRIPT

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 36, mai/ago 2014, p. 22-41

    SOCIOLOGIAS22

    http://dx.doi.org/10.1590/15174522-016003602

    DOSSI

    O ensaio sobre o dom de Marcel Mauss: um texto pioneiro da crtica decolonial

    PAULO HENRIQUE MARTINS*

    * Universidade Federal de Pernambuco. Recife (Brasil)

    Resumo

    O objetivo deste artigo mostrar que Marcel Mauss, em seu Ensaio sobre o dom, publicado em 1924, desenvolve uma reflexo ps-colonial avant la lettre que estrutura toda a sua crtica antiutilitarista do ocidentalismo e que pode escla-recer uma srie de aspectos da crtica decolonial, especialmente em suas relaes atuais com o pensamento antiutilitarista desenvolvido na Europa.

    Palavras-chave: Mauss. Ps-colonialidade. Crtica decolonial.

    Marcel Mauss The Gift: a pioneering work of the decolonial critique

    Abstract

    The purpose of this article is to demonstrate that Marcel Mauss, in his Essai sur le Don (The Gift), published in 1924, elaborates a sort of avant la lettre postco-lonial thinking that structures his whole anti-utilitarian criticism of the Occidenta-lism and that may clarify some aspects of the decolonial criticism, particularly in its current relations with anti-utilitarian thinking developed in Europe.

    Keywords: Mauss. Postcolonialism. Decolonial criticism.

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 36, mai/ago 2014, p. 22-41

    SOCIOLOGIAS 23

    http://dx.doi.org/10.1590/15174522-016003602

    H em Mauss um pensamento ps-colonial1 que avana em direo a uma crtica decolonial2, isto , que pro-pe a revalorizao de saberes esquecidos ou negli-genciados. Nessa perspectiva, Mauss, ao longo de toda a primeira parte do Ensaio, faz um esforo intelectual

    considervel para descrever rituais histricos, culturais e simblicos no-europeus como o potlatch3, o que, no nosso ponto de vista o coloca como um pioneiro deste pensamento. O diferencial de Mauss foi dar legitimida-

    1 H uma distino entre as formas de pensamento ps-colonial e aquela a que nos referimos como decolonial. O termo ps-colonial se refere reflexo intelectual que acompanha o pro-cesso colonial. Nesse tipo de reflexo, levanta-se em geral a questo das relaes entre centro e periferia que foi o elemento-chave da crtica anti-imperialista sem romper, no entanto, com o dogma do crescimento econmico, que central nas teorias que tratam do tema da moderniza-o (Wallerstein, 2006). Teorias como o estruturalismo ou a teoria da dependncia representaram inovaes ps-coloniais. O que chamamos de pensamento decolonial rompe com esta ideologia ao relativizar a ideia de cincia universal. As teses decoloniais decorrem da emergncia de novos paradigmas em cincias sociais na Europa, partindo do estruturalismo rumo a outros caminhos, sobretudo na dcada de 1980. O pensamento decolonial , assim, tributrio das filosofias de Michel Foucault e Jacques Derrida. Continuando, em parte, ps-coloniais, essas novas ideias so tambm antiutilitaristas, no sentido de que pretendem atualizar os conhecimentos e prticas que haviam sido reprimidos pelo racionalismo cientfico ocidental (Martins, 2010). 2 O termo decolonial no unnime. Por exemplo, Dipesh Chakrabarty et al (2007, p. 3) o consideram ambguo, porque exigiria, segundo eles, uma libertao completa do colonia-lismo. Eles preferem falar de hybridizing encounter. Alain Caill observa que muitas dessas crticas so negativas, sem fornecer oportunidades para a reconciliao (Caill, 2010, p. 51). De nossa parte, acreditamos que essas crticas so legtimas. O desafio central no romper com a sociologia moderna, mas libertar o que foi reprimido pela colonizao. Parece justo dizer que o pensamento decolonial a tarefa de desconstruo do poder e do conhecimento, seguido da reconstruo e/ou do surgimento de outras formas de poder e conhecimento. 3 Potlatch um festejo religioso de tribos indgenas dos Estados Unidos da Amrica e do Ca-nad, muito comum no sculo XIX, e que descrito por Mauss no Ensaio sobre a ddiva. Este ritual sobreviveu no sculo XX, apesar das reaes das autoridades governamentais daqueles pases, que o consideravam irracional. A palavra potlatch significa dar, caracterizando o ri-tual como de oferta de bens e de redistribuio da riqueza. O potlatch se constitui de home-nagem com presentes variados como dinheiro, taas, copos, mantas, entre outros, que era comum entre as tribos. Diz Mauss que essas tribos acumulavam bens, em uma poca do ano, para poder realizar as doaes na estao seguinte. O valor e a qualidade dos bens dados como presente so sinais do prestgio do homenageado e quanto maior a doao, maior o reconhecimento. No limite, a doao poderia significar o sacrifcio da prpria vida do doador.

    JainaraRealce

    JainaraRealce

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 36, mai/ago 2014, p. 22-41

    SOCIOLOGIAS24

    http://dx.doi.org/10.1590/15174522-016003602

    de a esses outros saberes, bebendo da fonte de culturas estrangeiras para realizar uma crtica moral e esttica do utilitarismo econmico europeu. No estaramos tentados a dizer, ento, que o charme do dom vem jus-tamente de sua origem no europeia e que, de fato, esta teoria bebe da fonte de culturas estrangeiras para realizar uma crtica moral e esttica do utilitarismo econmico europeu?

    Outro aspecto a reforar nossa hiptese a aproximao inesperada que podemos estabelecer entre a abordagem de Mauss e a tese do histo-riador indiano Dipesh Chakrabarty (2008), da Universidade de Chicago uma das teses mais interessantes, entre os estudos ps-coloniais, sobre a provincializao da Europa. De acordo com Chakrabarty, a hegemonia do universalismo liberal tem obscurecido o fato de que o racionalismo e a cincia no so apenas traos europeus particulares, mas tambm o re-sultado de uma histria global que implica todas as sociedades coloniais na epopeia europeia da modernizao. Essa hegemonia da Europa, diz ele, ajudou a espalhar uma imagem invertida, na qual o conhecimento europeu universal e os outros so conhecimentos particulares.

    Retornando ao autor do Ensaio, pode-se ento argumentar que, na tentativa de organizar um paradigma crtico do ocidentalismo, inspirado nas culturas no europeias o dom, atravs do ciclo de dar-receber-re-tornar , Mauss ajuda a desconstruir o universalismo europeu, ou, como diria Chakrabarty, ele provincializa a Europa. Esse tipo de abordagem mostra que a crtica ps-colonial ou decolonial no se limita apenas a reivindicaes identitrias de intelectuais nascidos nas ex-colnias. A colonialidade do saber um processo mais amplo de dominao pa-triarcal, obtido atravs da colonizao do planeta e, ao mesmo tempo, na Europa, atravs da submisso das populaes s hierarquias coloniais de gnero, etnia, trabalho, cultura, religio entre outros. Por essa razo, hoje, j se delineiam entre os autores europeus4 que lanam um olhar

    4 Boato (2010), Cairo; Bringuel (2010), Kramsch (2010), Caill (2010), Costa (2010).

    JainaraRealce

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 36, mai/ago 2014, p. 22-41

    SOCIOLOGIAS 25

    http://dx.doi.org/10.1590/15174522-016003602

    sobre a descolonizao da Europa e suas hierarquias de dominncia baseadas em elementos no-econmicos, linhas de pesquisa voltadas a desconstruir o eurocentrismo.

    Isto de grande importncia para a crtica geral do capitalismo. De fato, a colonialidade do poder5 e a organizao do capitalismo de mer-cado caminham lado a lado. A criao dos Estados Nacionais contribuiu para estabelecer um vnculo entre o Estado e o mercado, o que foi neces-srio para submeter as populaes que vivem no territrio das sociedades modernas (na Europa ou em outros lugares) a uma classificao de ordem binria til biopoltica moderna (Foucault, 2004). Foi esta operao de distino entre cidados brancos e cidados negros, nativos e imigrantes, homens racionais e mulheres emocionais que permitiu organizar a dominao simultnea das oligarquias econmicas e dos colonizadores, dentro e fora da Europa. Em outras palavras, a biopoltica, segundo os princpios enunciados por Foucault, tem sido uma condio necessria para a organizao da colonizao do poder e as relaes entre o patriar-cado, o capitalismo e o cristianismo, independentemente das sociedades do centro ou da periferia. Isto significa que a desconstruo do eurocen-trismo requer uma crtica ao mesmo tempo decolonial e antiutilitarista.

    Essa a tese que procuramos aprofundar nas pginas seguintes, ten-do em vista que Mauss, em seu Ensaio, percebeu muito cedo o desafio de uma discusso sobre a relao entre crtica decolonial e crtica antiu-tilitarista. Nessa linha de reflexo, gostaramos de assinalar, nesta rpida apresentao, que a originalidade do presente texto se verifica no esforo

    5 Colonialidade do poder um conceito elaborado pelo socilogo peruano, A. Quijano, para definir a constituio do capitalismo colonial moderno como um padro de poder mundial que se apoiou sobretudo na ideia de raa (raza) para objetivar uma estratgia de classificao social da populao mundial. A ideia de raa permitiu a distino moral e poltica entre os brancos e os no-brancos (Quijano, 2003).

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 36, mai/ago 2014, p. 22-41

    SOCIOLOGIAS26

    http://dx.doi.org/10.1590/15174522-016003602

    de redirecionar o olhar do leitor tenso contida no Ensaio entre o elogio implcito a saberes no europeus e a crtica explcita do utilitarismo econmico eurocntrico.

    1 Do pensamento classificatrio cognitivista ao pensamento simblico

    A articulao entre o pensamento antiutilitarista e o pensamento decolonial demonstra sua atualidade quando constatamos que a crtica filosofia mercantilista, desenvolvida por socilogos durante os dois l-timos sculos, se revela hoje insuficiente para conter a onda expansiva do neoliberalismo, como j o explicou diversas vezes Alain Caill (2000; 2009). Nesse sentido, a reao das cincias sociais contra as ameaas inquietantes de um pensamento nico utilitarista tambm se baseia na reconsiderao de temas no-econmicos que se expressam nos aspectos polticos, militares e ideolgicos da colonizao planetria. A problemti-ca do esprito colonial ajuda a demonstrar que o capitalismo uma pro-duo histrica e cultural determinada, assim como o fez, em seu tempo, Karl Polanyi, em A Grande Transformao; como tambm o fez, Marcel Mauss, no Ensaio, revelando que a sociedade composta de uma srie de prestaes totais envolvendo o conjunto das instituies sociais, sejam elas jurdicas, econmicas, religiosas ou estticas (Mauss, 1999, p. 274).

    O estudo dessas obras hoje clssicas nos leva a reconhecer a im-portncia, para a crtica terica, das prticas e experincias nascidas em sociedades no europeias, algumas provenientes de tradies milenares. Em particular, reconhecer a importncia da obra de Mauss para a crtica decolonial leva necessariamente a pensar a relao entre o capitalismo e a colonizao, tendo em conta dois aspectos do processo de coloni-zao: o de dentro, o eurocentrismo, e o de fora, aquele das margens

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 36, mai/ago 2014, p. 22-41

    SOCIOLOGIAS 27

    http://dx.doi.org/10.1590/15174522-016003602

    da Europa ou do que se chamava Terceiro Mundo. Isto significa que a descrio da modernizao deve ser realizada a partir da perspectiva europeia, mas tambm a partir do exterior, das bordas, ou seja, tanto a partir do olhar dos pases centrais como daquele das periferias6. A crtica antiutilitarista se enriquece com a crtica decolonial, pois enten-demos que esta ltima tambm procura incorporar, na anlise sociol-gica, os diversos fenmenos culturais, tradicionais, religiosos, polticos, lingusticos e rituais7. Demonstramos, alis [Martins, 2010; 2011], que a crtica ps-colonial um processo abrangente o qual muda nossa viso da colonizao simultaneamente a partir do Sul e do Norte, a partir de dentro e de fora do processo colonizador8.

    Em nossa opinio, a abordagem relacional do dom permite avanar nessa reflexo, na medida em que apreende os antigos conhecimentos como complexos sistemas simblicos e contribui, assim, para libertar o pensamento crtico moderno dos reducionismos tericos impostos pela abordagem utilitarista. Alm disso, atualizando a dimenso simblica dos outros conhecimentos, Mauss se liberta do positivismo cognitivista baseado no pensamento classificatrio para valorizar as dimenses

    6 Com o pensamento decolonial, so as noes de centro e periferia que podem finalmente ser desconstrudas. O pensamento decolonial , na verdade, uma vasta reao terica que tem suas origens tanto no centro quanto nas margens do sistema mundial, uma vez que os mecanismos de dominao do capitalismo moderno tambm ajudaram a colonizar a vida dos pases do centro, e no apenas da periferia do sistema mundial. 7 A crtica ps-colonial, questionando as relaes desiguais entre centro e periferia, permitiu a expanso da crtica terica aos campos de conhecimento e prticas situados na periferia. Com a crtica decolonial, so os prprios conceitos de centro e periferia que tendem a ser desconstru-dos, a fim de facilitar a multiplicao de pontos de vista e entendimentos do sistema-mundo.8 A expanso da compreenso das relaes entre o eurocentrismo e alter-centrismo gera pelo menos trs tipos de programas de investigao, diz Srgio Costa: 1) o programa emptico que denuncia a teoria para propor um conhecimento beyond theory; 2) o programa intermedi-rio que visa mostrar a interdependncia estrutural entre a cincia e dominao colonial; 3) o programa moderado que defende a tese de que as narrativas nacionais foram importantes para pensar a organizao da modernidade europeia (Costa, 2010).

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 36, mai/ago 2014, p. 22-41

    SOCIOLOGIAS28

    http://dx.doi.org/10.1590/15174522-016003602

    moral e esttica da vida social, as quais so decisivas para o pensamento simblico. Como bens simblicos, os dons podem ter um valor moral (a lealdade), mas tambm um valor esttico (um gesto de boas-vindas, um abrao, uma celebrao ritual ou um festival religioso...). Este duplo registro revela a riqueza do dom como dispositivo de desconstruo das hierarquias ocidentais de dominao moral e esttica. Entendemos, assim, que o Ensaio no apenas um estudo moral do ocidentalismo, prprio escola francesa de sociologia, mas tambm um estudo esttico que pareceu a seu autor como tal, quando ele assumiu a vastido das consequncias tericas produzidas pelo reconhecimento do smbolo nas prticas sociais diversas (Tarot, 1999; Caill, 2000).

    2 As duas leituras possveis de Ensaio sobre o dom

    Podemos fazer duas leituras complementares do Ensaio: a primeira, moral, ajuda a desmistificar a ideologia utilitarista do ocidentalismo e a perverso da dominao colonial; a segunda, esttica, permite entender a modernidade como um processo de hibridao (hybridization encounter), no qual a cincia racionalista deve, necessariamente, interagir com o pen-samento simblico que se desdobra nas atividades artsticas e literrias. Note-se, aqui, que esta abertura para o pensamento simblico mais um argumento contra o reducionismo cientfico da Europa e suas ex-colnias. So evidentes, de fato, em ambas as interpretaes, os esforos de rup-tura de Mauss com o pensamento simplista do economismo utilitarista.

    3 Primeira Leitura: um discurso explicitamente antiutilitarista

    H, em primeiro lugar, no Ensaio, um discurso explicitamente an-tiutilitarista e crtico dos fundamentos morais da modernizao ociden-

    JainaraRealce

    JainaraRealce

    JainaraRealce

    JainaraRealce

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 36, mai/ago 2014, p. 22-41

    SOCIOLOGIAS 29

    http://dx.doi.org/10.1590/15174522-016003602

    tal discurso de incluir o elemento no europeu ao lado do elemento europeu. Para Mauss, a filosofia utilitarista que fundamenta o capitalismo reduz a complexidade e a diversidade das aes humanas em sociedade a uma motivao: a de que o ser humano essencialmente egosta e calculador. Esta leitura, note-se, desconsidera que a palavra interesse recente e pertence ao vocabulrio tcnico financeiro (o interesse latino dos livros de contabilidade). Aps esta primeira fase de desconstruo, Mauss retorna a morais mais antigas, particularmente a epicuriana (1999, p. 271). Segundo ele, a diversidade de fatos morais e materiais, por um lado, permite compreender que, nas sociedades tradicionais europeias e no europeias , a economia do til apenas um elemento de um con-junto bem mais vasto de fenmenos sociais; e, por outro lado, leva neces-sariamente a pensar a sociedade tradicional ou contempornea como um fato social total9. Este ponto crtico terico deu origem a importantes movimentos culturais e sociais contemporneos, ocidentais e no ociden-tais, como a economia solidria, a democracia participativa, as religies plurais, o cuidado pessoal entre outros. Finalmente, note-se que a dimen-so crtica baseada na moral a mais conhecida do Ensaio sobre o dom.

    4 Segunda Leitura: uma abordagem esttica

    No entanto, possvel fazer uma segunda leitura rara do livro de Mauss, que ao mesmo tempo antiutilitarista e decolonial. Esta d menos nfase ao aspecto moral das prticas sociais do que ao aspecto esttico, porque Mauss havia compreendido toda a importncia devida

    9 Nossa demonstrao se apoia principalmente na seguinte reflexo: O que eles compartilham no so exclusivamente bens e riquezas, mveis e imveis, coisas economicamente teis. So, acima de tudo, cortesias, festas, ritos, servios militares, mulheres, crianas, danas, festivais, fei-ras onde o mercado apenas um momento e a circulao de riquezas apenas um dos termos de um contrato muito mais amplo e muito mais permanente (Mauss, 1999, p. 151).

    JainaraRealce

    JainaraRealce

    JainaraRealce

    JainaraRealce

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 36, mai/ago 2014, p. 22-41

    SOCIOLOGIAS30

    http://dx.doi.org/10.1590/15174522-016003602

    aos elementos rituais, trgicos e artsticos deste fato social total que a sociedade humana. Aqui, a teoria do fato social total renova a teoria crti-ca, no sentido de trazer um novo olhar, mais compreensivo e no apenas cognitivo, sobre as diferentes formas assumidas pelas prticas sociais no mundo. Suas descries do potlatch, por exemplo, refletem a importncia desses ritos, casamentos, iniciaes, sesses xamnicas:

    E tudo, cls, casamentos, iniciaes, sesses de xamanismo e de adorao aos deuses, totens ou ancestrais individuais ou coletivos do cl, tudo se mistura em um emaranhado inextricvel de ritos, benefcios jurdicos e econmicos, es-tabelecimento de posies polticas na sociedade dos ho-mens, na tribo e nas confederaes de tribos e at interna-cionalmente (Mauss, 1999, p. 192).

    Por isso afirmamos que, apenas considerando a dupla dimenso cr-tica, moral e esttica, pode-se compreender plenamente o que Mauss diz sobre a ao social: um fato com um valor ao mesmo tempo material e simblico.

    Tal salto terico permitiu ao socilogo elaborar, de dentro da moder-nidade europeia, os fundamentos tericos de um pensamento decolonial que ser sistematizado posteriormente por pensadores maussianos10. Esse duplo registro da teoria do fato social total moral e esttico contribuiu, de fato, para a reorganizao do pensamento classificatrio to impor-tante para a tradio da escola francesa de sociologia , libertando o pen-samento simblico e criativo que legitima tanto a crtica antiutilitarista (ex-

    10 Esta reviso elaborada por Mauss prematura, na medida em que os estudos descoloniais aparecem apenas com a virada lingstica de 1980, que reabilita a prtica social da vida co-tidiana e at mesmo lhe atribui uma posio central (Dosse, 1999, p. 12). Em outras palavras, o sentido da ao social no pode ser entendido apenas a partir de uma percepo cientfica e cognitiva do mundo. necessrio repensar a relao entre racionalidade instrumental e racionalidade expressiva.

    JainaraRealce

    JainaraRealce

    JainaraRealce

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 36, mai/ago 2014, p. 22-41

    SOCIOLOGIAS 31

    http://dx.doi.org/10.1590/15174522-016003602

    plcita) quanto a decolonial (implcita)11. Isso nos ajuda a compreender o que levou Mauss, estrategicamente, a comear seu ensaio com uma longa visita a textos antigos e no-ocidentais sobre o dom, antes de desenvolver uma crtica estritamente sociolgica do utilitarismo ocidental. Esta leitura da estrutura do Ensaio revela a crtica decolonial oculta da obra de Mauss.

    5 O dom como um valor universal

    Continuemos com estes esclarecimentos. Nos trs primeiros captu-los do Ensaio sobre o dom, Mauss, graas sua erudio e seu domnio de diversas lnguas, empreende uma viagem ao redor do mundo pr- e no ocidental. Como ele procura demonstrar, antes daquilo a que chamamos lgica utilitarista mercantil, existe outra lgica, antiutilitarista, chamada de dom. Esta proporciona ao social no apenas uma resposta para os problemas utilitrios (detectada pelos prprios filsofos utilitaristas), mas tambm uma dimenso expressiva (onrica, mgica, sentimental, rituali-zada) origem da complexidade e variedade da existncia humana esta ltima ideia, intimamente relacionada s crticas decoloniais contempo-rneas. Para apoiar seu argumento, Mauss recorre a uma ampla gama de estudos no europeus. Isso lhe permite mostrar que o sistema do dom, sob a forma do ciclo de dar-receber-retornar, existia antes do surgimento do mercado e do Estado e continua a existir, apesar da ideologia utilitaris-ta dominante que busca, ao contrrio, estigmatizar o dom como se fosse incapaz de responder as evidncias do egosmo humano.

    11 O pensamento classificatrio da escola francesa de sociologia, que se expressa nos esforos de Durkheim e Mauss de explicarem como uma totalidade diversos fatos sociais ligados ao trabalho, religio e magia. Este pensamento classificatrio da escola francesa se inspira ori-ginariamente nos sistemas categoriais que Aristteles considerava central para o pensamento humano conhecer a realidade.

    JainaraRealce

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 36, mai/ago 2014, p. 22-41

    SOCIOLOGIAS32

    http://dx.doi.org/10.1590/15174522-016003602

    O pensador francs sistematiza a dimenso moral do seu pensamen-to, que se presta a crtica decolonial, utilizando dois tipos de documentos: a) poemas, textos tradicionais e descries etnogrficas sobre as modali-dades de troca de presentes, servios e hospitalidade, especialmente as modalidades de prticas agonsticas em festivais e rituais; b) descries diversas sobre os sistemas de lei e costumes tradicionais que garantem a obrigao ritual do dom entre povos no europeus.

    Os primeiros documentos so analisados na introduo e nos ca-ptulos I (Os dons trocados e a obrigao de retorn-los (Polinsia)) e II (Extenso desse sistema [liberalidade, honra, dinheiro]). O Ensaio se inicia com um antigo poema escandinavo, o Havamal, usado por Mauss para criar a atmosfera em que vai mergulhar o leitor. Ele busca destacar o sistema do dom particularmente em alguns povos arcaicos (antigos habitantes da Escandinvia) e no europeus (indgenas do nordeste da Amrica do Norte, nativos das ilhas Trobriand na Nova Zelndia, esqui-ms do Plo Norte, pigmeus da frica...). Ao longo desta seo, Mauss explica que o sistema do dom entre as sociedades tradicionais no eu-ropeias baseava-se principalmente na rivalidade ou competio entre pessoas morais, implicando toda a energia social coletiva. Entre os vrios tipos de benefcios identificados, o potlatch aquele em que Mauss mais se concentra. Ele tambm aborda situaes nas quais, mesmo que no haja potlatch por exemplo, nos rituais de nascimento de meni-nos ou nos casamentos em Samoa, Polinsia Francesa , h ainda um sistema de obrigaes mtuas. O dom se manifesta sempre por meio de regras de honra, prestgio e de redistribuio de servios e presentes que obrigam mutuamente todos os protagonistas. A no redistribuio dos presentes significa a perda do mana, ou seja, da autoridade de cada um no seio da comunidade. Como explica Mauss: Recusar doar, deixar de convidar, como recusar aceitar, equivalem a declarar uma guerra; recusar a aliana e a comunho (Mauss, 1999, p. 162-163).

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 36, mai/ago 2014, p. 22-41

    SOCIOLOGIAS 33

    http://dx.doi.org/10.1590/15174522-016003602

    Embora tenha o potlatch como o sistema central de uma srie de sociedades tradicionais no europeias (na Austrlia ou nos Estados Uni-dos), Mauss reconhece a existncia de outros tipos de dom que no se baseiam em rivalidade, mas em devoo ou amizade. Tal como o dom da caridade entre os membros da tribo Haoussa do Sudo, onde uma crena popular diz que a febre se espalha quando o trigo est maduro e a nica maneira de parar a doena fornecendo trigo para os pobres (p. 169). Entre os Pigmeus, encontra-se o dom da hospitalidade (festivais e feiras, obrigatrios e voluntrios) cuja inteno principalmente moral, sendo o objetivo criar um sentimento de amizade entre duas pessoas: Ningum est livre para recusar um presente oferecido (p. 173). Entre os povos das ilhas Trobriand, na Nova Calednia, Mauss explora a relao entre o dom e a kula12, um sistema de comrcio intertribal envolvendo tribos de diferentes ilhas da regio. Em algumas pocas do ano, mem-bros de uma tribo atravessam o mar para oferecer joias, alimentos etc. aos membros de outras tribos. Em outro momento, a kula seguida por um movimento no sentido oposto (p. 175): A kula, sua forma essencial, por si s um momento, o mais solene, de um extenso sistema de bene-fcios e contra-benefcios que, na verdade, parece abranger toda a vida econmica e civil dos Trobriand (p. 185).

    Outros documentos usados por Mauss para estabelecer sua crtica decolonial so descries de vrios regimes jurdicos e costumes presentes em todas as sociedades humanas pr-modernas. No captulo III (Sobre-vivncias desses princpios nos direitos antigos e nas economias antigas), ele descreve vrios sistemas jurdicos o direito romano, o direito hin-du clssico, o direito germnico, o direito celta, o direito chins, entre outros nos quais ele revela resqucios dos princpios do dom, o que

    12 Tornou-se costume, hoje, na lngua francesa, ao contrrio da poca em que Mauss escreveu, usar o vernculo kula no feminino.

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 36, mai/ago 2014, p. 22-41

    SOCIOLOGIAS34

    http://dx.doi.org/10.1590/15174522-016003602

    interessante para a compreenso da fora do dom em instituies sociais. Mauss mostra, assim, que o dom no existe apenas nas sociedades de transmisso oral, mas tambm em sociedades complexas, no europeias ou europeias, de direito escrito.

    Com estes pensamentos ele abre suas vastas concluses sobre a atu-alidade do dom. A segunda parte do Ensaio (o quarto e ltimo captulo, intitulado Concluso) aprofunda a primeira parte, demonstrando que, por trs das trocas econmicas, h sempre uma trama simblica que or-ganiza os lugares, cria expectativas e pode produzir a guerra e a paz, a amizade e a inimizade13. Mauss abre, assim, uma nova janela de compre-enso sugerindo que a dignidade humana o fruto da condio moral partilhada pelos indivduos e o sentimento de transcendncia aquele de sua coabitao ritual e exttica14. Pode-se concluir ainda que a im-portncia capital da primeira parte do livro para o desenvolvimento da segunda parte seja negligenciada na maior parte do tempo que Mauss passa, aqui, de uma crtica decolonial a uma crtica economia de mer-cado ocidental, uma crtica propriamente antiutilitarista.

    6 A ideia de totalidade social

    Como acabamos de ver, o Ensaio sobre o dom no se limita a uma obra de interesse etnogrfico, na qual Mauss simplesmente descreve os costumes e prticas de sociedades no europeias passadas. Nossa leitura, esttica e decolonial, revela que o texto contm, implicitamente, uma re-

    13 Caill (2009) o relembra oportunamente em Teoria anti-utilitarista da ao: fragmentos de uma sociologia geral. 14 Essas oposies binrias complexas vida e morte, guerra e paz, interesse e gratuidade, liberdade e obrigao emprestadas de Marcel Mauss, so a base da teoria anti-utilitarista da ao acima lembrada, de Alain Caille.

    JainaraRealce

    JainaraRealce

    JainaraRealce

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 36, mai/ago 2014, p. 22-41

    SOCIOLOGIAS 35

    http://dx.doi.org/10.1590/15174522-016003602

    viso terica da crtica moral e da valorizao das motivaes da vida em comum. Mais especificamente, nos interstcios da crtica moral, aparece uma segunda crtica, esttica, que exalta os aspectos ldicos, dramti-cos, trgicos e artsticos da prtica social e das instituies sociais. Temos, assim, uma dupla crtica, moral e esttica, central para compreender o projeto de Mauss: mostrar que a vida em comum , sobretudo, um fato social total, uma totalidade, implicando todos os aspectos, subjetivos e objetivos, do ser humano, e que deve ser reconhecida em sua complexi-dade, sua singularidade e sua diversidade.

    Em Mauss, de fato, a ideia de totalidade da sociedade (os fatos que estudamos so todos fatos sociais totais ou gerais [...] (Mauss, 1999, p. 274)) excede e se ope ao pensamento cognitivista que ele considera abstrato e de pouca utilidade para observar a realidade concreta. Isso im-plica considerar que todos os fenmenos so ao mesmo tempo jurdicos, econmicos, religiosos e, at mesmo, estticos e morfolgicos:

    Todos os pesquisadores deveriam observar o comportamen-to dos seres totais e no divididos em faculdades. [...] O estudo do concreto, que o estudo do completo, possvel e mais cativante e mais explicativo ainda na sociologia. O princpio e o fim da sociologia perceber o grupo inteiro e seu comportamento inteiro (Mauss, 1999, p. 276).

    Embora o Ensaio seja basicamente uma crtica moral do ocidenta-lismo, Mauss demonstra que a definio esttica do dom central para a crtica geral e para a renovao da sociologia. Nessa perspectiva, ele afirma que todas as instituies tm um lado esttico, mas declara no ter tido tempo para se aprofundar e insiste para que este aspecto das coisas seja assinalado:

    [...] as danas que executamos alternativamente, os cantos e desfiles de todos os tipos, as representaes dramticas que fazemos de campo a campo e de parceiro a parceiro; os ob-jetos de todos os tipos que fabricamos, usamos, ornamos,

    JainaraRealce

    JainaraRealce

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 36, mai/ago 2014, p. 22-41

    SOCIOLOGIAS36

    http://dx.doi.org/10.1590/15174522-016003602

    polimos, coletamos e transmitimos com amor, tudo o que ns recebemos com alegria e presenteamos com sucesso [...] tudo por causa da emoo esttica e no apenas das emo-es de ordem moral ou de interesse (Mauss, 1999, p. 276).

    E ele conclui seu ensaio sugerindo que a organizao do pensamen-to sociolgico deve considerar a articulao de toda a sociedade com a arte da poltica:

    Ns vemos tambm como este estudo emprico pode levar no s a uma cincia da moral, uma cincia social parcial, mas tambm a concluses morais, ou melhor para reto-mar a velha palavra de civilidade, de cidadania como se diz agora. Estudos deste tipo tornam possvel perceber, medir, equilibrar os diversos mbiles estticos, morais, re-ligiosos, econmicos, os diversos fatores materiais e demo-grficos cujo conjunto constitui a vida em comum e cuja direo consciente a arte suprema, a Poltica, no sentido socrtico da palavra (Mauss,1999, p. 279).

    O interesse deste pargrafo final a referncia explcita polti-ca como pr-requisito para a compreenso das diversas motivaes da ao social, passadas ou presentes. Na verdade, uma leitura detalhada do Ensaio nos leva a entender que a aliana um fenmeno que en-volve diversas motivaes morais e expresses estticas e que o pensa-mento classificatrio deve ampliar a compreenso cognitiva, incluindo tambm o pensamento simblico. Nada dado a priori sobre o plano simblico, como erradamente afirmou Claude Lvi-Strauss, nem sobre o plano das foras econmicas, como equivocadamente pensam os eco-nomistas. Ao contrrio, tudo se define pela capacidade das pessoas co-letivas e individuais de sair de si, de doar livremente e obrigatoriamente. No h risco de erro (Mauss, 1999, p. 265). Vale lembrar que o texto termina por uma vontade de abrir o pensamento simblico em direo ao pensamento poltico, vontade que se encontra igualmente hoje entre os pensadores da crtica decolonial.

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 36, mai/ago 2014, p. 22-41

    SOCIOLOGIAS 37

    http://dx.doi.org/10.1590/15174522-016003602

    7 Em concluso: o fato social total como teoria decolonial

    Este alargamento do espectro crtico da obra de Mauss permite des-tacar o valor heurstico da teoria do fato social total e do dom e confere certa coerncia crtica decolonial, ao articular duas escolas de pensa-mento: a do centro que se provincializa, segundo a anlise de Chakra-barty (2008) apresentada na introduo, e a da periferia que se espalha, de acordo com outro autor importante, o peruano Anbal Quijano (2005). Isso tambm abre oportunidades significativas para o dilogo entre os di-versos campos de produo da crtica sociolgica, ao Norte e ao Sul, especialmente a crtica latino-americana que promove uma reviso epis-tmica e epistemolgica significativa das margens15.

    Conclumos, portanto, propondo dois elementos de discusso. O primeiro, para dizer que a crtica antiutilitarista baseada no reconheci-mento do valor das prticas na obra de Mauss tambm uma crtica de-colonial no explcita. Para desenvolver sua crtica ao reducionismo mer-cantil, o socilogo vai se interessar de perto pelos costumes e rituais de diversas sociedades no europeias. E a partir dessas margens que Mauss percebe o eurocentrismo como um projeto histrico e cultural particular, que se revela plenamente sua crtica antiutilitarista, embora ele no tenha, claro, usado os termos mais contemporneos da crtica terica. As relei-turas mais recentes do Ensaio pelo Movimento Antiutilitarista nas Cincias

    15 Na Amrica Latina, j assistimos, h vrias dcadas, uma importante crtica ao imperialismo e aos aspectos econmicos e polticos das trocas entre o centro e as margens do capitalismo global. Essa crtica aparece, por exemplo, no que chamamos de pensamento ps-colonial pro-priamente dito: o que a base do pensamento estruturalista da Comisso Econmica para a Amrica Latina (CEPAL) e a Teoria da Dependncia. Essas teorias tm sido fundamentais para conceber a regio no como um conglomerado de Estados nacionais dependentes, mas como um sistema dotado de particularidades histricas, polticas, econmicas, culturais e lingusticas (Morana; Dussel; Jauregui, 2008). Mais recentemente, vimos o surgimento de pensamentos decoloniais que visam desconstruir a relao imaginria centro-periferia e promover o bem viver dos povos indgenas Aymara da Bolvia e do Equador.

    JainaraRealce

    JainaraRealce

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 36, mai/ago 2014, p. 22-41

    SOCIOLOGIAS38

    http://dx.doi.org/10.1590/15174522-016003602

    Sociais (MAUSS), baseado na Frana, seguem neste sentido, clarificando a relao estreita entre crtica filosofia do interesse comercial e crtica colonizao do poder e do conhecimento. Na ltima reunio da Associa-o Latino-Americana de Sociologia (ALAS) em Recife, em 2011, Caill concluiu sua apresentao sobre o estado atual da sociologia observan-do que, contrariamente tradio econmica que estabelece a utilidade como valor econmico fundamental de bens e mercadorias, a sociologia e tambm a antropologia, a filosofia e a histria - repousa sobre uma hiptese muito diferente, que encontra sua base no Ensaio sobre o dom:

    O que os grupos sociais em conflito, mulheres, subalternos, antigas colnias, prestadores de cuidados etc. querem ver reconhecido o valor dos dons que fizeram (ou que lhes foram tirados) (Caill, 2010, p. 54).

    Gostaramos, tambm, de salientar que, se a crtica decolonial se revela com toda sua fora discursiva nas sociedades do Sul, seu interes-se para a teoria social vai muito alm. Quanto mais se desenvolvem as pesquisas sobre o fenmeno colonial, mais constatamos de fato que o imperialismo ocidental tambm se organizou a partir da colonizao do interior da prpria Europa. A obra de Franz Fanon (1975) sobre o precon-ceito tnico na Frana, por exemplo, mostra que, por trs das desigual-dades republicanas das grandes democracias ocidentais, existem sistemas hierrquicos que contriburam, durante vrios sculos, para incluir ou ex-cluir, com base em linhas tnicas uma anlise que pode ser estendida s dominaes que se fazem com base em critrios de idade, sexo, religio etc. O que o Ensaio sobre o Dom no mostra que a disseminao da cultura ocidental, ao longo de todo o seu processo de modernizao, no poderia ser feita sem humilhao ou violncia contra mulheres, crianas e estrangeiros, tanto no centro como na periferia. Uma tal crtica j est em andamento em todos aqueles que procuram refletir sobre a subalter-

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 36, mai/ago 2014, p. 22-41

    SOCIOLOGIAS 39

    http://dx.doi.org/10.1590/15174522-016003602

    nidade dos povos do Sul ou das classes sociais ao Norte, o que amplifica a desconstruo crtica da colonizao planetria.

    Assim, acreditamos que a crtica ao esprito europeu colonial (Cairo; Grosfoguel, 2010) consistente com uma reestruturao sim-blica da Europa: a que reconhece que o utilitarismo econmico par-ticipou da destruio da ideia da totalidade social dentro deste mo-mento scio-histrico chamado Europa. A provincializao da Europa pode ser uma chance para que ela se liberte do peso de seu universa-lismo racionalista eurocntrico16.

    Paulo Henrique Martins - Doutor em Sociologia pela Universit de Paris I (Pan-thon-Sorbonne) com ps-doutorado na Universidade de Paris-Nanterre. Profes-sor Titular do Departamento de Sociologia e Coordenador do NUCEM (Ncleo de Cidadania e Processos de Mudana) da Universidade Federal de Pernambuco. Presidente da ALAS (Associao Latino-Americana de Sociologia); Vice-Presidente da Associao MAUSS (Mouvement Anti-Utilitariste dans les Sciences Sociales).

    [email protected]

    Referncias

    1. BOATO, M. Mltiples Europas y la mstica de la unidad. In: CAIRO, H. E, GROSFOGUEL, R. Descolonizar la modernidad, descolonizar Europa; un di-logo Europa-Amrica. Madrid: IEPALA, 2010.

    2. CAILL, A. O estado atual da sociologia. Algumas observaes face ao prximo congresso ALAS, Estudos de Sociologia: Revista do Programa de Ps-Graduao em Sociologia da UFPE, v. 16, n. 2, p. 45-56, 2010.

    3. CAILL, A. Thorie anti-utilitariste de laction: fragments dune sociologie gnrale. Paris: La Dcouverte, 2009.

    16 Recordemos a mitologia grega. Na vspera de ser raptada por Zeus, a princesa Europa teve um pesadelo em que duas mulheres se apresentam para reivindicar seus direitos. Uma, sia, se dizia sua me; a outra, uma desconhecida (a terra da margem oposta), Amrica, argu-mentava que Europa lhe foi dada por Zeus. Se buscarmos atualizar este mito, veremos que a modernidade europeia foi o resultado de uma relao muito intensa, pode-se mesmo falar de uma relao simbitica com a sia e a Amrica.

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 36, mai/ago 2014, p. 22-41

    SOCIOLOGIAS40

    http://dx.doi.org/10.1590/15174522-016003602

    4. CAILL, A. Anthropologie du Don. Le tiers paradigme. Petrpolis: Editora Vo-Le tiers paradigme. Petrpolis: Editora Vo-zes, 2000.

    5. CAIRO, H. E.; GROSFOGUEL, R. Descolonizar la modernidad, descolonizar Europa; un dilogo Europa-Amrica. Madrid: IEPALA, 2010.

    6. CAIRO H. E., BRINGEL, B. Articulaciones del Sur Global: afinidad cultural, internacionalismo solidario e iberoamricaen la globalizacin contrahegemnica. In: CAIRO H. E, GROSFOGUEL R. Descolonizar la modernidad, descolonizar Europa; un dilogo Europa-Amrica. Madrid: IEPALA, 2010.

    7. CHAKRABARTY, D. In defense of provincializing Europe: a response to Carole Dietze, History and Theory, v. 47, n.1, p. 85-96, 2008.

    8. CHAKRABARTY, D.; MAJUMDAR, R.; SARTORI, A. From the Colonial to the Postcolonial: India and Pakistan in Transition, Oxford: Oxford University Press, 2007.

    9. COSTA, S. (Re)encontrando-se nas redes? As cincias humanas e a nova geo-poltica do conhecimento, Estudos de Sociologia: Revista do Programa de Ps-Graduao em Sociologia da UFPE, v. 16, n. 2, p. 25-44, 2010.

    10. DOSSE, F. LEmpire du sens: lhumanisation des sciences humaines. Paris :. La Dcouverte, 1997.

    11. FANON, F. Pele negra, mscaras brancas. Porto: Paisagem, 1975.

    12. FOUCAULT, M. Naissance de la biopolitique. Paris : Seuil, 2004.

    13. KRAMSCH, O. Dans le ballon rouge? Entre el proyecto modernidad/colonia-lidad latinoamericano y la Europa fronteriza realmente existente. In: CAIRO, H. E.; GROSFOGUEL, R. Descolonizar la modernidad, descolonizar Europa; un dilogo Europa-Amrica. Madrid: IEPALA, 2010.

    14. MARTINS, P. H. La decolonialidad de Amrica Latina y la heterotopia de una comunidad de destino solidaria. Buenos Aires: Ediciones Ciccus, 2012.

    15. MARTINS, P. H. La crtica anti-utilitarista en el Norte y su importancia para el avance del pensamiento poscolonial en las sociedades del Sur, Poltica & Socie-dade: Revista de Sociologia Poltica, v. 10, n. 18, p. 111-132, 2011.

    16. MARTINS, P. H. Sur y Norte como experiencias epistemolgicas necesrias a la decolonialidad, Estudos de Sociologa: Decolonialidade e giros epistemolgi-cos, Recife, v. 16, n. 2, p. 73-96, 2010.

    17. MAUSS, M. Sociologie et anthropologie. Paris: PUF, 1999 (1924).

    18. MORAA, M.; DUSSEL, E.; JUREGUI, A. Coloniality at large: Latin America and the Poscolonial Debate. Duhram et London: Duke University Press, 2008.

  • Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 36, mai/ago 2014, p. 22-41

    SOCIOLOGIAS 41

    http://dx.doi.org/10.1590/15174522-016003602

    19. NIETZSCHE, F. Obras incompletas. So Paulo: Editora Nova Cultural, 1999.

    20. QUIJANO, A. Colonialidad del poder, eurocentrismo y Amrica Latina. In: LANDER E. (dir.). La colonialidad del saber: Eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas Latinoamericanas. Buenos Aires: Clasco, 2003. p. 201-245.

    21. TAROT, C. De Durkheim Mauss, linvention du symbolisme. Sociologie et sciences des religions. Paris: La Dcouverte/MAUSS, 1999.

    22. TAYLOR, C. As fontes do self. So Paulo: Edies Loyola, 1997.

    23. WALLERSTEIN, I. Impensar a Cincia Social: Os limites dos paradigmas do sculo XIX. So Paulo: Ideias Letras, 2006.

    Recebido em: 17/02/2014Aceite final: 10/04/2014