ensaio sobre a mentira e a inveja

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21 n° 25 - décembre 2005 L A T I T U D E S 1. A mentira e a inveja sua irmã siamesa A mentira ocorre nas re l a ç õ e s sociais diárias. Ela pode ocorrer na dimensão do senso comum, da re l i- gião, da filosofia, da arte ou mesmo da ciência, essa outra crença em que todos confiamos e supomos v i rgem e imaculada. Do ponto de vista teórico o estatuto de tais formas de conhecimento é equiva- lente. Quer dizer que nenhuma das f o rmas de conhecimento menciona- das vale mais que a outra. Esta não é a discussão que me pro p o n h o f a z e r, mas é um parêntesis que reputo pertinente porque, penso, ajuda a entender o meu ar gumento. Neste caso, quero fazer referên- cia à mentira de senso comum que, ao sê-lo, engloba todas as outras formas de conhecimento enquanto mentiras, exactamente porq u e gozam do mesmo estatuto. Aliás, em última análise, qualquer uma das formas de conhecimento se “comumsensoaliza”. Isto é, o conhe- cimento da realidade que nos c i rcunda, ou falar dela, passa a ser sensitivo, subjectivo e valorativo. Deste modo, todos nós temos algo a dizer, sem que necessariamente tenhamos que seguir grandes méto- dos. Basta ouvir dizer, ou simples- mente criar um facto, para animar a conversa. “Diz-se que”... “ouvi dizer que”... “porque o vi”, “porque o senti” .... “porque toda a gente o diz”.... consta que... Assim, o senso comum acaba sendo veículo do rumor, mentira e inveja que, dada a dependência funcional entre si, pode ser objecto duma sociologia especial, a “sociologia do rumor e da inveja”. P a rece-me que a mentira e a inveja, sua irmã siamesa, são mais dois entre os vários “sapatos sujos” que podem explicar tentativamente, o nosso quotidiano. Mentir é uma atitude para com a vida e, por conseguinte, para com os outro s . Escusado será dizer que é uma “atitude má”, feia e repugnante. Ter inveja de outrem, se bem que humano, não se coaduna com uma atitude de “relação para com os valores” na vida. Se assim é, porque é que as pessoas mentem? Porque é que as pessoas têm inveja das outras? O que é que estará por detrás das mentiras e invejas que povoam as nossas relações sociais? Não se exige de todos uma racio- nalidade instrumental, portanto, factual, contingente, sistemática, verificável e apro x i m a d a m e n t e exacta. Todavia, no mínimo, é justo que se exija de cada um de nós uma “racionalidade com relação a valo- res”, entendida na acepção do sociólogo alemão Max We b e r. I sto significa dizer que, pelo menos, temos que ter em conta a nossa cultura, que abomina a mentira. Temos que revisitar as nossas reli- giões que, tal como rezam os seus mandamentos, condenam a mentira. Temos que repensar a ética que institucionaliza a verdade. E temos que rever a nossa noção de estética que, no mínimo, diz que é feio m e n t i r, seja no plano do senso comum, da religião, da ciência, da arte ou da filosofi a. P roponho-me, pois, fazer uma sociologia do rumor tendo por base o estudo das suas correntes “menti- rogéneas” e invejoséneas” 1 neolo- gismos que são, aliás, o pilar do meu argumento neste trabalho. 1.1. O senso comum essa ines- gotável fonte primária de “corre n t e s mentirógenas e invejoséneas” “Ndzeru Mbawiri” 2 O conceito de senso comum captei-o na UFICS. Devo-o à profes- sora Conceição Osório, das aulas de introdução às Ciências Sociais, e às discussões que tínhamos na cantina, hoje feita secretaria por força de um acto administrativo. Ao tempo estudantes, chamávamos a tais encontros à mesa com cerveja à mistura, o círculo de Viena, em honra ao real Círculo, espaço de discussão de ideias que se fez paradigma. O meu interesse aqui é apenas o senso comum e suas corre n t e s m e n t i rogéneas e invejoséneas. Pretendo ver o quão pernicioso o senso comum pode ser para as nossas vidas como pessoas e como comunidade imaginada que somos, este barco no alto mar, a nação moçambicana, quando tal senso comum se tor na mentira e inveja. No entender do senso comum, o que parece é, não precisa de p rova, pois é. É como algumas opiniões que aparecem nas cartas de leitores dos nossos jornais, ou nas páginas da internet, que nada mais são se n ão uma forma de criar factos i r reais, de construir inexistên- cias, “só para lixar algum visado”, p o rque, “o(a) gajo(a) tem mania, ginga muito”, é “machangana” e “sacou-me a dama(o)”. Na verdade, o que está por detrás de tais “lixanços”, são a inveja, o discurso de desqualificação do outro, p reconceitos, rotulagens, e, claro está, o teor “mentiro g é n e o ” e “inve- joséneo”. Poderia falar de muitos mais palavrões, mas, já que esta- mos na era de descalçar sapatos (Mia Couto) e de limpeza das nossas más maneiras (Elísio Macamo), fico- me por aqui, esperando que tudo isso seja um transe passadiço, fugaz e processual, pois, parafraseando Juliyus Nyerere, Moçambique está no alto mar. Estou em crer que o Ensaio Sobre a Mentira e a Inveja O Caso Moçambicano Filimone Meigos homini mendax ab initio” (o Homem é mentiroso desde o início)

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Page 1: Ensaio Sobre a Mentira e a Inveja

21n° 25 - décembre 2005 LATITUDES

1. A mentira e a inveja suairmã siamesa

A mentira ocorre nas re l a ç õ e ssociais diárias. Ela pode ocorrer nadimensão do senso comum, da re l i-gião, da fil o s o fia, da arte ou mesmoda ciência, essa outra crença emque todos confiamos e supomosv i rgem e imaculada. Do ponto devista teórico o estatuto de taisf o rmas de conhecimento é equiva-lente. Quer dizer que nenhuma dasf o rmas de conhecimento menciona-das vale mais que a outra. Esta nãoé a discussão que me pro p o n h of a z e r, mas é um parêntesis quereputo pertinente porque, penso,ajuda a entender o meu ar gumento.

Neste caso, quero fazer re f e r ê n-cia à mentira de senso comum que,ao sê-lo, engloba todas as outrasf o rmas de conhecimento enquantomentiras, exactamente porq u egozam do mesmo estatuto. Aliás,em última análise, qualquer umadas formas de conhecimento se“comumsensoaliza”. Isto é, o conhe-cimento da realidade que nosc i rcunda, ou falar dela, passa a sersensitivo, subjectivo e valorativo.Deste modo, todos nós temos algoa dizer, sem que necessariamentetenhamos que seguir grandes méto-dos. Basta ouvir dizer, ou simples-mente criar um facto, para animar aconversa. “Diz-se que”... “ouvi dizerque”... “porque o vi”, “porque osenti”.... “porque toda a gente odiz”.... consta que... Ass im, o sensocomum acaba sendo veículo dor u m o r, mentira e inveja que, dada adependência funcional entre si,pode ser objecto duma sociologiaespecial, a “sociologia do rumor eda inveja”.

P a rece-me que a mentira e ainveja, sua irmã siamesa, são maisdois entre os vários “sapatos sujos”

que podem explicar tentativamente,o nosso quotidiano. Mentir é umaatitude para com a vida e, porconseguinte, para com os outro s .Escusado será dizer que é uma“atitude má”, feia e repugnante. Te rinveja de outrem, se bem quehumano, não se coaduna com umaatitude de “relação para com osvalores” na vida.

Se assim é, porque é que aspessoas mentem? Porque é que aspessoas têm inveja das outras? Oque é que estará por detrás dasmentiras e invejas que povoam asnossas relações sociais?

Não se exige de todos uma racio-nalidade instrumental, portanto,factual, contingente, sistemática,verificável e apro x i m a d a m e n t eexacta. Todavia, no mínimo, é justoque se exija de cada um de nós uma“racionalidade com relação a valo-res”, entendida na acepção dosociólogo alemão Max We b e r. Istosignifica dizer que, pelo menos,temos que ter em conta a nossacultura, que abomina a mentira.Temos que revisitar as nossas re l i-giões que, tal como rezam os seusmandamentos, condenam a mentira.Temos que repensar a ética queinstitucionaliza a verdade. E temosque rever a nossa noção de estéticaque, no mínimo, diz que é feiom e n t i r, seja no plano do sensocomum, da religião, da ciência, daarte ou da filosofi a.

P roponho-me, pois, fazer umasociologia do rumor tendo por baseo estudo das suas correntes “menti-rogéneas” e invejoséneas”1 n e o l o-gismos que são, aliás, o pilar domeu argumento neste trabalho.

1.1. O senso comum essa ines-gotável fonte primária de “corre n t e smentirógenas e invejoséneas”

“Ndzeru Mbawiri”2

O conceito de senso comumcaptei-o na UFICS. Devo-o à profes-sora Conceição Osório, das aulasde introdução às Ciências Sociais, eàs discussões que tínhamos nacantina, hoje feita secretaria porforça de um acto administrativo. A otempo estudantes, chamávamos atais encontros à mesa com cerveja àmistura, o círculo de Viena, em honraao real Círculo, espaço de discussãode ideias que se fez paradigma.

O meu interesse aqui é apenaso senso comum e suas corre n t e sm e n t i rogéneas e invejoséneas.P retendo ver o quão pernicioso osenso comum pode ser para asnossas vidas como pessoas e comocomunidade imaginada que somos,este barco no alto mar, a naçãomoçambicana, quando tal sensocomum se tor na mentira e inveja.

No entender do senso comum,o que parece é, não precisa dep rova, pois é. É como algumasopiniões que aparecem nas cartasde leitores dos nossos jornais, ounas páginas da internet, que nadamais são se n ão uma forma de criarf a c t o s i r reais, de construir inexistên-cias, “só para lixar a lgum visado”,p o rque, “o(a) gajo(a) tem mania,ginga muito”, é “machangana” e“sacou-me a dama(o)”.

Na verdade, o que está por detrásde tais “lixanços”, são a inveja, odiscurso de desqualificação do outro ,p reconceitos, rotulagens, e, claroestá, o teor “mentiro g é n e o ” e “inve-joséneo”. Poderia falar de muitosmais palavrões, mas, j á que esta-mos na era de descalçar sapatos(Mia Couto) e de limpeza das nossasmás maneiras (Elísio Macamo), fico-me por aqui, esperando que tudoisso seja um transe passadiço, fugaze processual, pois, parafraseandoJuliyus Nyere re, Moçambique estáno alto mar. Estou em crer que o

Ensaio Sobre a Mentira e a InvejaO Caso Moçambicano

Filimone Meigos

“homini mendax ab initio”(o Homem é mentiroso desde o início)

Page 2: Ensaio Sobre a Mentira e a Inveja

22 n° 25 - décembre 2005LATITUDES

Se, por exemplo, alguém é ro t u-lado de drogado, ou tribalista, ouracista, ou armalhão, esse rótulosupera o seu estatuto de pai, irm ã o ,vizinho e provavelmente de bomcidadão, no sentido de indivíduoque pensa e age pelos seus e pelaRepública. O rótulo supera a suaqualidade de ser social arreigado av a l o res do bem comum e de digni-dade que, provavelmente, ostenta.Assim, o indivíduo é automatica-mente encaixado no padrão dosdesviantes, uma subcultura que pordefinição é contra a norma e aregra. Cá está o gato e a legitimap e rgunta: quem leva o gato ao guizo,já que vai ser vendido por lebre ?

Mais grave, é o facto do indiví-duo, pobre lebre, ser tido pordesviante, e, como se não bastasse,internaliza essa presunção e, desdeentão, supõe-se desviante e marg i-nal, o que afecta a sua conduta, assuas acções e relações sociais.

Há no entanto, a prerrogativa daagência ( a g e n c y ). Isto é, a possibi-lidade que os a ctores sociais têmde, independentemente do que édito sobre si, agirem diferentementee de acordo com o seu estado voli-tivo-emocional, com vista a influ e n-ciar sistemas/ estruturas sociais.Todavia, não nos esqueçamos que,tal como o diz o sociólogo francêsÉmile Durkheim, os actores sociaissão pressionados por um duploconstrangimento, duplo laço:d o u b l e

b i n d. Tal s ignifica dizer que, porum lado, os actores sociais sãoconstrangidos pelas normas e valo-res que são parte do sistema/estru-tura. Por outro, o mesmo actorsocial i n t e rn a l i z a - a s, o que acabasendo uma espécie de “autocen-sura”. É verdade que eu não mecomporto de qualquer maneira,caem-me logo em cima as manas,os amigos e os colegas, os pro f e s-s o res, os estudantes e os “cinzen-tinhos”. Para não falar dos meuss u p e r i o res hierárquicos e daspróprias normas que habitam asminhas condutas. Por outro lado,só de pensar no que me dirão emresultado desse comportamento“impensado” nem sequer me atre v oa levá-lo a cabo. Aliás eu próprioconstranjo essa ignóbil ideia, malde mim se assim não fosse.

2.1. O preconceitoSegundo o dicionário de socio-

logia de Allan Johnson, “pre c o n-ceito é a teoria da desigualdaderacial, étnica, entre outras formas, ediscriminação é a sua prática”.

P reconceito é uma atitude cultu-ral positiva ou negativa dirigida am e m b ros de um grupo ou catego-ria social. Como uma atitude,combina crenças e juízos de valorcom predisposições emocionaispositivas ou negativas.

O preconceito é sociologica-mente importante porque funda-menta a discriminação, o tratamentodesigual de indivíduos que perten-cem a um grupo ou categoria parti-c u l a r. Daqui resulta que, bastasvezes, tudo o que é diferente éjulgado com base nos nossosp r ó p r i o s valores. Isso me parece ser“sociologicamente injusto”, já que,embora haja valores universais,também os há locais e pessoais quenão chocam necessariamente comos primeiros, são apenas difere n t e s .Este é também, outro potente motorque acciona a mentira e a inveja, onão aceitar a diferença, ou melhor,abominar a diferença. A pro d u ç ã oda diferença é uma questão que tema ver com as identidades. Melhor, aidentidade também se define comosendo a produção da difere n ç a .Para os invejosos, o facto de eu“ o c o r rer” de forma diferente, comome visto, como falo, como como, etodo o meu modo/estilo de vida serd i f e rente, é forte motivo paradebate no sentido de desqualifica-ção, inveja e rótulo.

2.2 a r otulação/rotulagemO rótulo define o indivíduo

como sendo um determinado tipode pessoa. Portanto, a ro t u l a g e mquer dizer mesmo isso: pôr umrótulo. No entanto, tal rótulo podec o r responder à verdade ou não. Dequalquer forma, o rótulo é um “esta-tuto d irector” no sentido em que,o b s c u rece todos os outros estatutosostentados pelo indivíduo rotulado.

Nós compramos a cerveja 2Mpelo rótulo que nos foi vendidoa n t e r i o rmente, a marca, a imagem.F a z e n d o - o , supomos que o con-teúdo é mesmo 2M. Mas há quemse deleite vendendo gato por lebre.

mau tempo um dia passará e, conse-quentemente, os t s u n a m i s d a snossas más maneiras dissipe.

De modo geral, o que suscita taiscomportamentos no “barco empleno mar alto” é a sensação causadapelo “ciclone” e consequente “turbil-hão” do sucesso de terc e i ros, o quede imediato acciona nos passagei-ros mentirosos e invejosos os meca-nismos daquilo a que os sociólogoschamam de preconceito e de teoriada ro t u l a ç ã o / rotulagem. Uma espé-cie de “náusea” motivada pelasondas do sucesso alheio.

Chegados aqui, talvez caibamalguns truísmos explicativos já que,“as massas de ar quente” abundam,a ponto de causar mal estar geral no“ b a rco nacional”, quanto menos nãoseja só pelo “cheiro nauseabundo”.

Primeiro truísmo: A inveja

Kukhuta kwa njiri, nkhumba

nkhabe sekera bi3

A inveja é definida como umsentimento de desgosto e ódio simul-tâneos provocados pelo bem ou pelafelicidade de alguém. Numa outradimensão, a inveja é o sentimentoque se traduz pelo desejo de possuiraquilo que outrem possui ou de oigualar ou superar em alguma coisa.A inveja é um misto de desgosto eraiva por aquilo que outra pessoatem ou é. No fundo trata-se dedespeito. Há quem diga que a invejanão é má. No entanto, eu entendoque, se a acção de cada um de nósfor levada a cabo nos quadros dev a l o res mínimos para com o outro ,p a rece-me que a inveja não temrazão de ser e t ão pouco tem lugarnas nossas acções. Se estivermos afalar de inveja praticada em espaçospartilhados, aliás só assim ela temrazão de ser, a inveja é simplesmenterepugnante, embora muitos de nóspersistam em en veredar por ela. Dequalquer modo ela é um potencialmotor para a mentira, ou vice-versa.

Segundo truísmo: O preconceito

e a rotulagem

Pya nkamwene pinadzipa

kulonga, pya tebzala pinalongwa

na ani?4

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23n° 25 - décembre 2005 LATITUDES

Chegados aqui penso ter ficadoc l a ro que o preconceito e a ro t u l a-ção são atributos que estruturam asc o r rentes mentirogéneas e in vejosé-neas. O passo seguinte é acasalartais atributos veiculados pelo sensocomum à sociologia do rumor queos estuda, olhando para as conse-quências funcionais e p ara as variá-veis explicativas estruturadas pelamentira e pela inveja.

Partidos que estão os ovos agoravou pôr tudo na batedeira e fazer obolo.

3. Acasalando o senso comumà sociologia do rumor

A primeira vez que ouvi a formu-lação “sociologia do rumor” foi daminha professora de introdução àSociologia, a Dra. Maria do Céu doCarmo Reis. Entendi que ela se refe-ria à maneira como os discursosc i rculam através das redes sociais,e nos chegam via “rádio boca” e em“cadeia nacional”, sendo ou nãov e rdade, no entanto fazendo jus aodito “segredo é aquilo que se dizbaixinho de ouvido em ouvido”:“Diz-se que... ouvi dizer que...”, elá vai a má nova corroendo ostímpanos dos mais incautos, dosmenos prevenidos.

Numa explicação dum parágrafoa sociologia trata de alojar os fenô-menos, os processos, no espaço eno tempo, traçando as suas caracte-rísticas estruturantes, padronizando-os e tipificando-os. A sociologiap rocura compreender para explicartais fenômenos ( v e r s e t e h e n ). Asociologia do rumor seria, então,uma sociologia especial. Por conse-guinte, seria a sociologia que explicaa acção mentirosa, seus atributos esuas nuances estruturantes tentandoc o m p reender para explicar ascorrentes mentirogéneas.

No meu entender, o sensocomum e a sociologia do rumor têmuma relação funcional, porque, se,para o senso comum, aquilo quep a rece é, a “sociologia do rumor” éo ramo da sociologia que operacio-naliza e estuda o primeiro. Sabidoque a sociologia é o estudo da inter-dependência, é justo aventarm o salgumas hipóteses de trabalho sobre

essa interdependência, ou que delaresultam.

Primeira hipótese: A mentira, ea inveja sua correlata, podem tervárias funções. Neste caso aprimeira é a possibilidade desemear ou não a coesão social nessainterdependência de actores sociais.

Segunda hipótese: Paralelamente,a mentira e a inveja estabelecem asbalizas do espaço social que ocupa-mos em interacção. Isto é, talespaço é estrutura do pela mentira epela inveja. Ou seja, a mentira e ainveja criam um espaço social cujodenominador comum e a glutinadorestá ancorado nas correntes menti-rogéneas e invejoséneas. Portanto,somos postos perante uma re a l i-dade social mentida, mentirosa einvejosa, pois só faz sentido mentirs o b re gente que nos diz re s p e i t o ,os nossos aos quais temos acesso.Ou, por outra, através da mentira eda inveja é possível construir edestruir o nosso espaço social! Nãosei se d aí resulta uma sociedade dem e n t i rosos e invejosos e se issoconstitui problema: mas daí re s u l-tam coisas que nos deviam pre o c u-p a r, principalmente no que toca a(des)confiança “no nosso seio”.

Se pensarmos como Fukuyama(1996), haverá que ter em conta ofacto das lições morais serem passa-das, transmitidas, não de form a

racional, mas através de imagens,de costumes e de opiniões sociais.Portanto, se a nossa opinião émentira e mentirosa, então, estamosa criar um sólido mundo mentiroso,sem carácter, e amoral que seincrusta nos nossos costumes ehábitos que se tornam h a b i t u s,portanto, um conjunto de pre d i s p o-sições que explicaremos maisadiante.

Te rceira hipótese: Não terá a(des)confiança e o receio de dizer,ou de produzir diferença a ver como facto de que a mentira nos habi-tuou a não confiar, e de re c e a rm o ssanções sociais, decorrentes doreferido duplo constrangimento,mesmo que o que se diz sobre nósresulte de correntes mentiro g é n e a se invejoséneas?

Quero sublinhar que a confiançapode ser usada como variável expli-cativa para múltiplas acções ou nãoacções, seja no plano político,económico, cultural, ou mesmo nassimples relações sociais do nossoquotidiano, j á de s i dramatúrg i c o( G o ffman). Tal como o diz Hollis(1998), a confiança pode ser ump o d e roso activo incrustado nomundo da racionalidade. Isto querdizer tão somente que a confiançanos põe a agir em “ralenti”, pelai n é rcia, pelo hábito, pela experiên-cia assumida de que “o outro” é

Samate, sem título, acrílico sobre tela, 2003.

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dizagem mimética nós intern a l i z a-mos o h a b i t u s. Tal é o caso, porexemplo, das boas maneiras á mesa(não falar com a boca cheia, nãocomer com os olhos, e tc.). Assimos indivíduos adquirem um naip dedisposições que enformam, estrutu-ram o seu quadro de re f e r ê n c i a s .Um individuo que cresceu numambiente embebido em corre n t e sm e n t i rogéneas e invejoséneas émais propenso a re p roduzir tala m b i e n t e social.

As disposições estru-turadas são duráveis,uma vez inculcadasdeixam celeumas parao resto da história devida do indivíduo ope-rando de modo pré-consciente o que torn aa sua mudança difícil àluz duma consciênciareflexiva.

Finalmente, as dis-posições são generati-vas e t ransponíveis nosentido em que elas sãop ropensas a gerar umamultiplicidade de práti-cas e percepções noutro scampos que não sejamos da sua pro v e n i ê n c i a .Ou seja, se me ensina-ram a mentir em política,tal se reflecte, sem queeu dê por isso no meuquotidiano com a namo-rada, com os colegas ecom o cobrador doc h a p a, por exemplo. Seme ensinaram a mentir,a batotar no futebol, talse re flecte no meu dia adia, já que a vida étambém um jogo, sebem que suposto ser

limpo (fair play). O habitus p ro v i-dencia os indivíduos com estraté-gias de como vão agir e re s p o n d e raos estímulos diários na sua vida.Por conseguinte, mentindo e tendoinveja dos outros, estamos a passarum mau legado, um h a b i t u s d ec o r rentes mentirogéneas e invejosé-neas às gerações vindouras. O resul-tado dessa equação é uma juven-tude mentirosa, passe o exagero esalvas as devidas excepções. Porconseguinte, ver-nos-emos confro n-

Quarta hipótese:Se este é o nosso comporta-

mento tal dá azo a uma quarta e,por enquanto, última hipótese re l a-cionada com o conceito deh a b i t u s

entendido na acepção de Bourd i e u .Na verdade, o termo h a b i t u s ébastante antigo, vem dos temposde Aristóteles, se bem que Bourdieuo use de forma distinta. ParaB o u rdieu (1994), tais disposiçõesgeram práticas, percepções e atitu-des que são “regulares” mesmo sem

s e rem conscientemente coord e n a-das, ou governadas por quaisquerregras. As disposições que consti-tuem o h a b i t u s são inculcadas,estruturadas, duráveis, t ransponí-veis ( t r a n s p o s a b l e ) e generativas.Estas disposições merecem umapequena explicação. Elas são adqui-ridas, segundo Bourdieu, atravésdum processo gradual de inculca-ção onde a socialização primária ép a r t i c u l a rmente importante. Atravésduma série de processos de apre n-

alguém em que se pode fazer fé,portanto, em quem se pode confi ar.

Na verdade, nenhuma sociedadeé possível sem doses elevadas deconfiança entre os seus membro s ,seja ela tácita ou implícita, seja elaf o rmalizada e contratual: A confia n ç am a rca sempre uma articulação dejogos de expectativas que se t r a v a me n t re “nós” e um “outro”. A confia n ç aé um adensador ou um aceleradordas relações sociais. Segundo RafaelM a rq u e s (2003): “Nas margens dorisco e do sacrifício, aconfiança surge comoum operador social dep recipitação social, umóleo de sistema quegarante que as r e l a ç õ e sse acelerem (...) aqueleque confia descentra-sede si e mergulha noo u t ro, pre c i p i t a n d o - s epara alguém que figuracomo elemento capital”.

A relação de con-fiança estabelece comogarantia a figura do“ o u t ro” e a entrega doeu ao “outro”, o queimplica a ausência degarantias, certificados esuportes externos. N ofundo, confiança signi-fica entregar um chequeem branco ao outro n a srelações quotidianas. Aquestão que se nosimpõe de imediato é: Oque é que se passaquando esse outro nãoestá, tal como nós, nosnossos quadros de refe-rência, nos nossosq u a d ros decisionais, epor conseguinte, age def o rma “anormal” donosso ponto de vista, portanto,mente imbuído em correntes menti-rogéneas e invejoséneas, isto é,mente com base em “motivos ocul-tos e intenções estranhas” (Jorg eRebelo) ?

No mínimo esse alguém peganesse cheque e, ao invés de pre e n-cher o montante corre s p o n d e n t e ,abusa da nossa confiança e faz dassuas, tornando uma simplesc o n fiança num caso de PIC (Políciade Investigação Criminal).

Bela Rocha, “Segredo”.

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25n° 25 - décembre 2005 LATITUDES

tados com uma juventude semcompromisso com a verdade e valo-res correlatos. Na verdade, trata-sede uma juventude fruto dessep rocesso mimético que é a sociali-zação incrustada pela intriga, frutoda mentira e da inveja, que “nós osmais velhos” ensinamos através dosnossos actos e d iscursos mentiro s o se invejosos. Perg u n t a r-me-ão: Nãoserá exagerado pensar assim, e sópor isso culpar toda uma geração“mais velha” sobre o porvir?

Em resposta direi que nunca édemais re c o rdar o adágio: “as pala-vras levam-nas o vento”. Assim,daqui decorre uma série de contraperguntas:- Como fazer dissipar equívocos,

mentiras e invejas pro p a l a d a spelos “mais velhos”, aos seteventos, pelos quatro cantos domundo, se “tudo o vento levou”?

- Quem acarreta com os danosmorais, por vezes materiais, se orumor acaba sendo imputado aum autor/actor colectivo inomi-nado?

- Onde começa e onde acaba anossa responsabilidade?

- Não terá o nosso fraco sentido deresponsabilidade a ver com ofacto de que lidamos com ummundo social que consideramosi m p revisível, incerto, mentiroso einvejoso? Penso que aqui cabemuito bem alusão à sociologia dorisco, da incerteza.

- Não terá o espírito do “deixaandar” de alguns a ver com ofacto de não quere rem sofre rre p resálias, fruto de corre n t e s“ m e n t i rogéneas” e “invejoséneas”d e c o r rentes de comportamentose atitudes organizacionais ante-riormente enraizados?

A incerteza e a impre v i s i b i l i d a d esão extensíveis a todas as esferasda acção social.

O campo económico não lhesescapa, evidência disso, por exem-plo, são os anúncios publicitários.Atentemos para a ambiguidadedeste anúncio: “quer parecer maisbonita? use... o melhor produto domundo; ou o produto X custa Y, eno acto do pagamento afinal custaZ e lá está uma menina de sorrisoaberto a explicar que o preço Z écom o IVA incluído! Ou os pre ç o s

do tipo 2,999! Não serão estas,mentiras da gr ossa?

Na esfera política são osp rogramas eleitoralistas que nãodefinem nada, omitindo, ou,mentindo: “faremos isto maisa q u e l o u t ro”; construiremos umestádio de futebol em cada pro v í n-cia; quando eu ganhar ninguémpagará impostos!

Estes são um arrolamento dementiras desmedidas, vontadese x p ressas que vão ao encontro dosdesejos do já de si depauperadonosso povo. Não será isto mentirae anti-ética da grossa?

As “correntes mentiro g é n e a s ”atingem as nossas instituições polí-ticas; o rumor e a intriga andam et resandam pelos meandros da polí-tica. Não é sem razão que o actualchefe do Estado fez questão dedizer no seu primeiro discurso, apóssua proclamação, que não vai tole-rar a intriga. Tal significa no mínimoque os meandros da nossa política,p a r t i c u l a rmente do partido nop o d e r, não escapam às corre n t e sm e n t i rogéneas, e que, por isso, oaviso à navegação passa por umamudança a t i t u d i n a l e de culturao rganizativa. Aqui cabe papelp reponderante ao partido Fre l i m oque, no meu entender, deve conti-nuar a desempenhar papel de navemãe dos processos s ó c i o - e c o n ó m i c o -político-culturais em Moçambique.Portanto, se assim é, assim deve ser:a Frelimo deve levar avante a chamada verdade, combatendo a mentirae a sua irmã a inveja, primeiro entreos seus membros. Depois, tal comonos anos posteriores a 75, estendera luta do Rovuma ao Maputo atra-vés dum trabalho político de base,tal como a chama da unidadeacende a nação inteira.

Por tudo isto, me parece legí-timo citar Jorge Rebelo: “Não bastaque seja pura e justa a nossa causa,é necessário que a pureza e a justiçaexistam dentro de nós”.

Se queremos, tal como Jorg eRebelo o escreveu, i n t e rn a l i z a r anossa pureza e a justiça, que é,p r i m e i ro que tudo, a luta pelaverdade que é a liberdade, a produ-ção da diferença e o bem-estar donosso povo, então temos que,desde já, mentir menos e, paulati-

namente, pautarmos só e só pelav e rdade. De contrário, estamos apassar um legado que, tanto quantoeu saiba, não corresponde nem àciência, tão pouco à arte, muitomenos à filosofia e tão pouco aomito. Contrariamente, estaremos adizer que o que deve vingar são asc o r rentes mentirogéneas e invejosé-neas, o que não parece ser apaná-gio do povo moçambicano. O povomoçambicano é sério e abomina amentira e a inveja. Quanto menosnão seja só pela nossa tradiçãoenraizada na verdade l

1 No seu estudo O Suicídio, Durkheimrefere-se às correntes suicidogéneascomo sendo aquele conjunto de précondições conducentes ao acto dosuicídio. Por analogia, corrente men-tirogéneas seria o conjunto de prérequisitos (predisposições) queimpelem à mentira. Analogamente, ena mesma lógica, corrente invejosé-nea seria o conjunto de condiçõespré criadas conducentes à inveja.

2 Ndzeru mbawiri quer dizer literal-mente o juízo são dois, isto é, obom juízo é o de duas pessoas. Talcomo o diz José Pampalk, “o sentidoé uma pessoa sòzinha engana-se, épreciso contrastar opiniões, consul-tar, ouvir os outros. A palavra esabedoria de várias pessoas mereceatenção, respeito - contrariamente àmentalidade do sabe-tudo.”

3 O porco não se contenta com asaciedade do javali. Ridículo não é?

4 Provérbio Sena cuja tradução livre é:Sabe bem comentar as coisas dogenro (desqualificando-o) e as coisasdo sogro por quem serão comenta-das? Moral: não desqualifiques ooutro sob pena que tu também sejasdesqualificado.