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    Psic. Clin., Rio de Janeiro, vol.23, n.2, p.221 231, 2011

    ISSN0103-5665

    C P F

    Helena Maria Melo Dias*

    Manoel Tosta Berlinck**

    R

    Objetivamos sublinhar o fecundo e complexo pensamento de Fdida sobre a tcnicapsicanaltica, tratando da articulao das noes de contratransferncia e de enquadre nodispositivo clnico psicanaltico. Sua concepo de contratransferncia tem como modeloimplcito a relao fictcia me-beb, na qual a me uma receptora capaz de ressonnciacom o estado psquico da criana para ativao da linguagem e consequente alvio de seusofrimento. Ele identifica na contratransferncia uma funo que regula a experinciaintersubjetiva analista-paciente e tem a funo de para-excitao, que se rege em nvel

    pr-consciente capaz de nomeao. Isso o que sustenta o enquadre analtico como espaode potncia, que engendra a situao analtica.Destacamos o estilo evocativo da escrita de Fdida, que mobiliza o pensar e o insigth,

    prprio da metapsicologia freudiana.Desse modo, suas elaboraes contribuem, significa-tivamente, para maior compreenso da psicoterapia psicanaltica.

    Palavras-chave: tcnica psicanaltica; contratransferncia; enquadre; situao ana-ltica.

    C P Fe objective here is to discuss Pierre Fedidas broad and complex thinking regarding

    psychoanalytic technique through an articulation of the notions of countertransference and setting

    * Psicanalista. Doutora em Psicologia Clnica pela Pontifcia Universidade Catlica de So

    Paulo (PUC-SP). Professora Adjunta da Universidade do Estado do Par.

    ** Socilogo, psicanalista, Ph.D. pela Cornell University, Ithaca, N.Y., USA. Professor da

    Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP, Campinas, SP/Br.).

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    CONTRATRANSFERNCIA EENQUADREPSICANALTICOEMFDIDA

    in the psychoanalytic clinic. e model implicit in Fedidas conception of countertransference is

    the fictitious mother-baby relationship, where the mother is a receiver able to be in resonance with

    the childs psychic state. As a result, she can activate the babys language and consequently alleviate

    its suffering. Fedida sees in the countertransference a function that regulates the intersubjective

    experience between analyst and patient and has a function of para-excitation, governed at a

    pre-conscious level of naming. is is what sustains the analytic setting as a space of potency that

    engenders an analytic situation. We also call attention to the evocative style of Fedidas writing,

    as it mobilizes thinking and insight proper to Freudian metapsychology. In short, his work has

    contributed significantly to a broader understanding of psychoanalytic psychotherapy.

    Keywords: psychoanalytic technique; countertransference; setting; analytic situation.

    O saber necessrio ao mdico para que este se torne

    terapeuta, mas ele s ser terapeuta se junto a ele se dispuser a

    fala do doente fala em sofrimento de seu desejo de falar.

    (Pierre Fdida, 1991)

    Essa epgrafe de Pierre Fdida evocou-nos vrias questes, dentre estas: aber-tura do saber mdico escuta da fala do doente, como prprio daquele que quer

    se tornar terapeuta. Isto requer uma disposio deste para tomar o paciente emtratamento, bem como o desejo de falar do paciente como meio de transferncia.Neste sentido, sero essas as condies bsicas para o encontro teraputico? Naespecificidade da psicoterapia psicanaltica, o desejo de falar do paciente deve en-contrar, na escuta do analista, uma possibilidade de germinao e de construo,tal qual a interlocuo no sonho, como concebido por Freud. desta perspectivaque o trabalho de anlise tem como paradigma o trabalho do sonho?

    As questes acima suscitadas sero trabalhadas no decorrer deste texto.Neste momento, o que queremos destacar, com a citao em epgrafe, o estiloevocativo da escrita de Pierre Fdida. O estilo da inventividade do pensamento

    metapsicolgico freudiano, que este autor sustenta, ressaltado por outros, comoDaniel Delouya e Manoel Berlinck. Berlinck (2002) considera que a leitura daobra de Fdida evoca a livre associao. E, de modo surpreendente, faz-nos pensara clnica psicanaltica. Para ele, a escrita transparente, elucidativa, fecunda e com-plexa de Fdida tem um efeito psicoteraputico e coloca o analista na comunidadepsicanaltica. Entendemos o efeito psicoteraputico dessa escrita no sentido deampliao da atividade psquica do leitor, com as evocaes que seu texto produz

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    e que mobiliza o pensar e o insight. Por isso, Daniel Delouya (1999), na introduodo livro Depresso, de Fdida,observa:

    este gnero de pensamento jamais cede coerncia articulada de um raciocnio,mas se abre constantemente para as imagens e para as figuras do vivido daspalavras que utiliza. Eis o modo da poesia e da fenomenologia entremearem otecido metapsicolgico temperando o rigor com que o autor se fia s buscas eaos questionamentos da feiticeira freudiana (Delouya, 1999: 10).

    Na leitura da obra de Fdida, somos capturados pelo enlace transferencial desua escrita, que tem como referncia uma profunda sensibilidade clnica articuladaa um vasto conhecimento dos estudos sobre a psicopatologia. Isto nos faz enfocar acompreenso deste autor sobre a metapsicologia da tcnica psicanaltica, na qual des-tacamos, neste artigo, a articulao entre contratransferncia e enquadre analtico.

    O

    Na tese que defendemos sobre a relevncia da contratransferncia comodispositivo clnico psicanaltico, sustentamos que a concepo de Fdida amplia eaprofunda a compreenso deste conceito. Esta concepo refere metapsicologia

    dos processos psquicos do analista e no pessoa do analista (Dias, 2007). Paraele, digno de nota que a despeito da abundante literatura psicanaltica que tratada concepo de contratransferncia muito pouco desta d lugar a um verdadeiroprojeto metapsicolgico (Fdida, 1992: 189; trad. livre). Afirma que a maiorparte dos autores que tratam dessa questo entendem o tratamento psicanaltico de modo equivocado como uma relao analista-paciente, ou seja, uma relaointerpessoal; e no disso que se trata no processo analtico, uma vez que a trans-ferncia no tem como destinatrio a pessoa do analista, mas sim o objeto internoalucinatrio da transferncia, a partir do que o analista interpreta essa dinmicapsquica. Entende que na transferncia, a alucinao negativa tem como funotornar possvel a absenteizao da pessoa em presena, j que a apresentao da

    presena evita, por assim dizer, a presentao da pessoa (Fdida, 1996: 34). Noentanto, depreende nessa concepo, que enfatiza a relao analista-analisando,um sentido que d nfase a um modelo fictcio me-beb correlativo ao analista-paciente, capaz de ressonncia e continncia ao estado de angstia do paciente eapropriado linguagem no tratamento.

    Assim, a manifestao contratransferencial, como algo do ertico do analistaque deve ser dominado, equivale a um dispositivo clnico importante para o trata-

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    mento, pois corresponde capacidade do analista de observar e de compreendersuas prprias reaes ntimas quanto quilo que o paciente lhe comunica. Ouseja: as imagens que se formam no analista com sua escuta ao paciente; o desenhointerno da fala, o que isso lhe informa dessa clnica.

    Eliana Borges Leite (2001), em seu livro A figura na clnica psicanaltica,defende a tese de que

    a escuta por imagens tem capacidade de recepo da coisidade sensorial daspalavras, dimenso esttica anterior formalizao sinttica e semntica que se

    d na comunicao, da qual a linguagem se distancia quando ingressa no regimeda significao e da discursividade. O retorno s imagens e sua colocao emfiguras realiza um trabalho de desalienao da linguagemde sua funo conven-cional e restaura sua capacidade de apresentar o desenho interno da fala. Comono sonho, restitui s palavras sua virtualidade e sua mobilidade, permitindoque se instale a atividade de renovao, ou antes, de engendramento constanteda prpria linguagem, que confere escuta na anlise sua especificidade (Leite,2001: 19-20).

    No livro dos sonhos, pea central de sua obra, Freud (1987 [1900]) discorresobre esse trabalho de desalienao da linguagemda sua funo convencional, pro-

    pondo os dois teoremas que se tornam os pilares bsicos da tcnica psicanaltica:um, quando se abandonam as representaes-meta conscientes, as representaes-metaocultas assumem o controle do fluxo de representaes; o outro, que asassociaes superficiais so apenas substitutos, por deslocamento, de associaesmais profundas e suprimidas (Freud, 1987[1900]: 487). Justamente, esse trabalhode desalienao da linguagemque permite o processo transferencial regressivo: opensamento se transforma em imagens visuais e fala (Freud, 1987[1900]: 490).

    Fdida (1988) num estilo bem freudiano sustenta em toda sua obra osonho como paradigma da clnica psicanaltica, pois, para ele, o sonho o paradigmada teoria do trabalho do inconsciente, do sexual, do pensamento, da transferncia.

    Assim, relembra aos analistas que:

    se Freud tem o cuidado de lembrar de ponta a ponta na sua obra que o sonho, de certa forma, o paradigma terico da tcnica analtica porque a associa-bilidade do sonho,seu carter incompreensvel para o prprio sonhador so oscorrelatos da mais secreta intimidade da fala. Por isso, o estranho a lnguafundamental da intimidade do sonho e da fala da qual ele fonte (Fdida,1988: 81).

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    No seu entender, o prprio do que chamamos transferncia est em consti-tuir em si um fenmeno Unheimlich, pelo seu desencadeamento e pela potnciapsictica (alucinatria) dos processos ativados (Fdida, 1988: 91). Nesse sentido,com base nos estudos do mestre de Viena, Fdida (1996) enfatiza:

    O fenmeno da transferncia nunca deixa de espantar, constatava Freud. E em1938, no Compndio, ele convida ainda mais uma vez os analistas a no perderemesse espanto: bem estranho que o analisado reencarne em seu analista umapersonagem do passado. No duvidemos que aquele que no consegue maisse espantar com a estranheza da transferncia j esqueceu ou negligenciou, hmuito tempo, o stio do estrangeiro e, com certeza, a virtude da linguagem,interlocutor da transferncia (Fdida, 1996: 174).

    Com base nesses estudos da situao analtica que Fdida (1989: 100) criticaos processos de intelectualizao terica do analista, bem como o movimento doempirismo da espontaneidade, que inevitavelmente leva o analista a fazer dependera eficcia de suas intervenes de investimento narcisista de sua prpria pessoa.Isto feito por meio do incremento de presena da pessoa, que anula a presenado infantil estrangeiro e, desse modo, o infantil recusado em proveito de umahistoricidade da infncia. Negligenciar o que se fala em benefcio da ateno ao que

    acontece a forma segundo a qual podemos conceber a recusa do infantil pelosprprios analistas, pois, neste caso, no reconhecemos a palavra (parole) carregandoem si mesma a regresso tpica (os traos mnmicos). (Fdida, 1989: 103).

    A familiarizao da fala aumenta as representaes conscientes do pensamento,refora o imprio e o domnio do representvel em detrimento do figurvel e, porfim, diminui, na mesma medida, a esperana da linguagem em suposto benefciodo imaginrio eu. Em consequncia, a familiaridade desinstaura a situao analticaregida pela associao livre e a ateno equiflutuante em prol da relao interpes-soal. Assim, Fdida incisivo quanto responsabilidade do analista com respeito fala do paciente que concerne, portanto, instaurao pelo analista da situaoanalticaem psicoterapia. desta responsabilidade que procede uma resposta, a

    qual dada pelo engajamento de responsabilidade implicado na instaurao dasituao analtica (Fdida, 1989: 115).

    Quer dizer, a condio de instaurao da situao analtica est referida condio de linguagem e disso resulta que, na tcnica analtica, o analista deve,portanto, permanecer impenetrvel (undurchsichtig) e, como superfcie de espelho,no mostrar nada alm do que lhe foi mostrado (Fdida, 1991: 207). A refernciaa essa proposio freudiana torna possvel a especificao de que o que nos faz

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    terapeutas a existncia da regra fundamental em nosso pensamento, assim comode tudo o que se passa entre ns e o paciente como desvios em relao a essa regraideal (Fdida, 1988: 31). Desse modo, por meio contratransferencial que oanalista identifica esses desvios da regra fundamental.

    Na interpretao de Fdida (1989), esta a vantagem de considerar a atividadepsquica do analista como a de um aparelho sensvel, suposto constantementediscriminador de suas mudanas de regime e, assim, autoinformativo das m-nimas modificaes sobrevindas no movimento psquico do paciente. Para tanto,torna-se imprescindvel que o analista depure esse aparelho sensvel por meio de

    sua prpria anlise. Esta exigncia de que o analista se submeta ao processo anal-tico para desvendar sua prpria dinmica psicopatolgica a nica base confivelpara que o analista compreenda o processo psicopatolgico de seu paciente. Naproposio de Fdida

    poder-se-ia ento conceber que o que nos analiticamente conhecvel de nsmesmos e dos outros analistas e o que nos , nestas condies, metapsico-logicamente pensvel como processos psquicos da atividade de analista o

    psicopatolgicona medida em que caracteriza estes processos. Isto ainda maisprovvel j que cada paciente no seu tratamento faz vir tona e reativa nossapsicopatologia pessoal (Fdida, 1989: 119).

    Este resto no resolvido potencializa a anlise, na medida em que evoca noanalista o stio do estrangeiro. No dizer de Fdida (1989: 119) certamente noseria falso ousar pretender que os analistas so analistas e continuam sendo porquecontinuam a engajar com seus pacientes transferencialmente este resto noresolvido de sua prpria anlise.

    EmAs mltiplas faces de Eros: uma explorao psicoanaltica da sexualidadehumana, Joyce McDougall (1997) trata esse resto no resolvido e seus efeitoscontratransferenciais, que foram muito valiosos na anlise de Marie-Jose suapaciente , dizendo:

    minha surdez contratransferencial, juntamente com minhas fantasias recalcadas,tinham funcionado como uma tela opaca, impedindo que a luz analticailuminasse no somente a vida sexual adulta insatisfatria de Marie-Jose, mastambm um elemento fantasstico predominante de sua frigidez parcial: a saber,seus desejos homossexuais no-reconhecidos (McDougall, 1997: 32).

    Interessante, pois essa interpretao originou-se de um sonho contratransfe-rencial de McDougall. Aps a anlise desse sonho, a analista deu-se conta de quanto

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    sua paciente resto diurno mobilizava esse resto no resolvido, o qual emergiulivremente no sonho e possibilitou o desenrolar da anlise de Marie-Jose.

    Pensamos ser esse o lugar de ressonncia em que consiste o dispositivo dacontratransferncia. Este permite, quando pode ser reinstaurado, que o analistarecupere sua condio como estranho/estrangeiro, cujo silncio em sua negatividadeproduz a dessignificao e oferece fala uma recepo em sua mxima potnciade constituir a linguagem como portadora do tempo e da memria do infantil.O modelo do sonho, to caro a Freud, orienta esta formulao como paradigmaterico da tcnica e cujo valor Fdida nunca deixa de sublinhar. O sonho, em sua

    estranheza e intimidade, o guardio da memria adormecida. McDougall nos trazessa memria que, adormecida, se deixa mobilizar pelos restos diurnos oriundosda anlise de Marie-Jose. Nesse sentido, a contratransferncia, em sua funo derecepo e transformao das transferncias, permite ao analista ser o guardio dostio em que se torna possvel a construo da linguagem na anlise.

    Pensamos que essa funo de recepo e possibilidade de transformaesdas transferncias tanto do analisando quanto do analista seja garantida peloestabelecimento e manuteno do enquadre analtico.

    E

    O enquadre est referido ao estabelecimento da regra fundamental da psican-lise, na qual o paciente deve falar tudo que lhe vier cabea, sem censura, orientadopor um pensamento livre associativo. J o analista deve manter uma escuta movidapor uma ateno flutuante fala do paciente. A regra estabelece um compromis-so do analista e do analisando com o enquadre no processo analtico. Como dizBerlinck (2000: 260): a regra fundamental porque funda, constitui, d incioao tratamento e, por isso, precisa ser explicitamente declinada pelo psicanalista eformalmente aceita pelo analisando. Acrescentamos que a regra fundamental nos funda como mantm a especificidade da situao psicanaltica.

    Em A angstia da contratransferncia ou o sinistro (a inquietante estranheza)da transferncia, Fdida (1988) especifica sua concepo de contratransferncia,argumentando que:

    O modelo implcito da contratransferncia o de uma relao fictcia me-filho, onde a me se faz receptora do que acontece com seu filho. Ela experi-menta uma angstia que a desperta para o perigo, que aumenta a acuidade dapercepo de si mesma e do filho; restitui a este, atravs de palavras e de gestos

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    adequados, a significao distinta do que ele experimenta, portanto, sem con-fuso com a sua prpria. Dito de outra forma, a angstia contratransferencialdo analista poderia ser, idealmente, a de uma me capaz de ressonnciacom oestado da criana, de continncia das energias desta angstia, de metaboliza-o e de metaforizao dos afetos confundidos que tendem a transbordar nacriana. , portanto, o modelo da relao me-filho que regula a funo deexperincia intersubjetiva da contratransferncia e faz desta um dispositivopr-consciente apropriado para dar, na linguagem, ressonncia dos diferentesestados vivenciados pelo paciente. Nestas condies, a angstia contratransfe-

    rencial no aparece apenas como uma resposta, mas sim como um momentocrtico da atenoe, assim sendo, como instante analtico de constituio dainterpretao (Fdida, 1988: 74-75).

    Esse pensamento de Fdida (1988) sobre a angstia da contratransferncia nosparece fecundo. A angstia, como sinal de alarme tal como formulada por Freudem Inibies, sintoma e ansiedade (1987 [1926]) , evocada na contratransfern-cia, constitui-se um momento crtico da atenodo analista, momento constitutivode interpretao, recurso do analista para que a anlise da transferncia do pacientepossa transitar por meio da linguagem, caso se mantenha a situao clnica. Emsua argumentao, Fdida esclarece como modelo uma relao fictcia me-filho

    por reconhecer, na contratransferncia, uma funo que regula a experincia in-tersubjetiva sem se confundir com os afetos que transbordam na criana-paciente,funo de paraexcitao, que se rege em nvel pr-consciente capaz de nomeao.Para tanto, se a escuta do analista consegue ser, no silncio, atividade de linguageme ativao do figurvel, a fala do analisando encontra pouco a pouco as condiesde seu prprio silncio associativo (Fdida, 1988: 78).

    Em O stio do estrangeiro, Fdida (1996) especifica o sentido que empregapara designar o materno na clnica psicanaltica.

    Na perspectiva em que nos situamos, o materno, sem dvida, muito maisassociado na situao analtica percepo pr-consciente dos dados sensoriais

    da presenaem pessoa do analista, assim como a ambientao da sesso: eleconstitui o material corporal dessa presena, cuja importncia tradicional nasmenores variaes qualitativas na relao com o paciente no pode ser ignorada.Mas embora esse materno que talvez no esteja bem nomeado assim crie ascondies temporais (quase pr-sensoriais) de trocaimaginria da transferncia,ele no poderia ser confundido com a prpria transferncia ou, pelo menos, como movimento de sua regresso tpica inconsciente(Fdida, 1988: 151).

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    Consideramos importante essa distino entre a trocaimaginria da trans-ferncia e o movimento de sua regresso tpica inconsciente, porque esse processoregressivo-transferencial remete singularidade do sujeito, ele e seu interlocutor,tal como no sonho.

    Essa referncia ao materno diz respeito s condies de anlise que envolve aambientao da sesso. O material corporal dessa presena acolhedora correspondeao que se denomina enquadre na situao analtica, pois, para Fdida (1996), oenquadre um espao de potnciaque engendra a situao analtica. Situaoanaltica entendida na sua dinmica de instaurao, desinstaurao, reinstaurao

    dinmica prpria da clnica psicanaltica. Nesse sentido, este autor formula suaconcepo de enquadre:

    a ideia de que o enquadre analtico engendrado pela regra fundamental cor-responde a um valorde ordem semitica-jurdica de amplo alcance axiomtico,que no exige mais do que poucas palavras para ser significado no comeo deum tratamento analtico. Aficcionalidadedeste valor assim compreendido cer-tamente intrnseca sua proposio lgica e s modalidades de sua enunciao.Ser dito que a sessoimplica a unidade de lugara portas fechadas, que este lugar o de um tempo a uma s vez estvel, regular, frequente e contnuo (como exigeafala em presena), que a anlise implica em dois, cada um em sua posio sem

    variar, excludo ento o terceirosob qualquer forma que seja a compreendidosob esta forma paradoxal do analista em pessoa (Fdida, 1996: 67).

    Entendemos ser uma forma paradoxal do analista em pessoa, porque aomesmo tempo que imaginariamente o paciente pensa dirigir-se a esta pessoa e,para Fdida, isso necessrio, pois a distino dos corposantecipa a distncia da

    falae de seu sonho (Fdida, 1996: 68) , tambm pelo silncio do analista quese instaura a situao analtica. Ou seja, pela no-presena em pessoa no dizerde Freud, pela neutralidade que se presentifica o estrangeiro inatual/atual dainfncia. Por isso, em sua elaborao sobre a clnica psicanaltica, concebe que:

    a situao analtica pode ser descrita como um lugar, caso estejamos de acordopara reconhecer-lhe uma organizao cnica [...] como uma situao indicariaprimeiramente que se trata de um stio, e que este stio o estrangeiro, quenela descobre a fala quando esta se surpreende escutando aquilo que diz.(Fdida, 1991: 61).

    Como colocamos anteriormente, Fdida sustenta em toda sua obra o sonhocomo paradigma da clnica e tcnica psicanaltica. Para ele, o sonho o paradigma

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    da teoria do trabalho do inconsciente, do sexual, do pensamento, da transferncia.Por isso, o estranho a lngua fundamental da intimidade do sonho e da fala daqual ele fonte (Fdida, 1988: 81). Porque o carter enigmtico do sonho, comoparadigma da tcnica psicanaltica, fundamenta seu pensamento de que o prpriodo que chamamos transferncia est em constituir em si um fenmeno Unheimlich,pelo seu desencadeamento e pela potncia psictica (alucinatria) dos processosativados (Fdida, 1988: 91).

    Nesse sentido, com base nos estudos do mestre de Viena, Fdida (1996),como vimos, enfatiza o fenmeno da transferncia como algo inapreensvel, que

    nunca deixa de espantar, como constatava Freud em 1938, no Compndio, Freudconvida ainda mais uma vez os analistas a no perderem esse espanto. bemestranho que o analisado reencarne em seu analista uma personagem do passadodiz Fdida. Observa que aquele que no consegue mais se espantar com a estra-nheza da transferncia j esqueceu ou negligenciou, h muito tempo, o stio doestrangeiro e, com certeza, a virtude da linguagem, interlocutor da transferncia(Fdida, p. 174).

    C

    O pensamento de Fdida sobre as diferentes perspectivas e funes queenvolvem a contratransferncia, entendendo que o enquadre, por engendrar ainstaurao da situao analtica, est referido ao estabelecimento da regra funda-mental, estabelece que a condio da escuta analtica a nica base confivel paraque o analista compreenda o psicopatolgico de seu paciente. nesse sentido quea contratransferncia diz respeito posio de disjuno do analista para poderapreciar e interpretar essa dinmica psicopatolgica.

    R

    Berlinck, M. T. (2000). Psicopatologia fundamental. So Paulo: Escuta.Berlinck, M. T. (2002). Pierre Fdida (1932-2002). Retirado de: .Delouya, D. (1999). Introduo depresso, de Pierre Fdida. So Paulo: Escuta.Dias, H. M.(2007). Contratransferncia: um dispositivo clnico psicanaltico (Tese de

    Doutorado). Curso de Ps-Graduao em Psicologia Clnica. Pontifcia UniversidadeCatlica de So Paulo.

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    Fdida, P. (1988). Clnica psicanaltica: estudos. So Paulo: Escuta.Fdida, P. (Org.). (1989). Comunicao e representao. So Paulo: Escuta.Fdida, P. (1991). Nome, figura e linguagem.So Paulo: Escuta.Fdida, P. (1992). crise et Contre-transfert. Paris: Presses Universitaires de France.Fdida, P. (1996). O stio do estrangeiro. So Paulo: Escuta.Fdida, P. (1999). Depresso. So Paulo: Escuta.Freud, S. (1900/1987). A interpretao dos sonhos. Obras completas, ESB, vs. IV eV. Rio

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    XX. Rio de Janeiro: Imago.Leite, E. B. P. (2001).A figura na clnica psicanaltica. So Paulo: Casa do Psiclogo.McDoulgall, J. (1997).As mltiplas faces de Eros: uma explorao psicanaltica da sexualidade

    humana.(Trad. Pedro H. B. Rondon). So Paulo: Martins Fontes.

    Recebido em 30 de julho de 2011Aceito para publicao em 10 de agosto de 2011