eneida de moraes_tanta gente

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Tanta gente (Eneida de Moraes) Quando, como hoje, relembro minha infância, imediatamente eles surgem arrastando trapos, descalços uns, mal calçados outros, vozes guturais em alguns, aqui e ali vozes claras, figuras físicas diversas, homens e mulheres, gordos e magros, todos vivendo além da fronteira da razão. Relembro agora os tipos populares de minha terra, no tempo de menina. O “Diabo atrás da saia” era uma negra alta, magra, de pernas finas e tuíras. Sempre com um guarda-chuva que, de tanto fazer-lhe companhia, terminara parecendo com ela, fisicamente. Andava sempre espantando o diabo, que a perseguia colado à sua saia de cor indecisa. Gritava-se: “Diabo atrás da saia!” e o guarda-chuva movimentava-se, ela esbravejava, dizia todos os palavrões do mundo e corria atrás dos moleques que éramos todos nós, meninos de meu tempo, ricos e pobres, negros e brancos. Quantos anos teria aquela mulher? Como e onde vivia? Ninguém saberia dizê-lo, e só muito mais tarde, já mocinha, comecei a respeitá- la. “Diabo atrás da saia” teria uma estória de mocidade e de vida. Que fora, onde vivera? Foram perguntas que se impuseram mais tarde; nos dias de infância eu me divertia apenas gritando a alcunha da velha, indiferente a seu sofrimento, aos palavrões, à agitação que provocávamos naquela vida tão triste. Cega de um olho, pequenina, andando sempre depressa, muito depressa, (onde iria assim?) passava a “Burra Cega”; depois a “Tainha” monologando e muitas vezes parando para abrir os braços num gesto de desespero. – Tainha! – Burra cega! E a correria, enquanto pedras passavam zunindo sobre nossas cabeças. Sabíamos que estávamos procedendo mal; já nos fora dito que com a desgraça das criaturas não se brinca, mas não sentíamos a necessidade da proibição. Todo mundo mexia com aquela gente. Por que iríamos respeitá- la? Palavrões enchiam a rua, mas eram muito mais fracos do que nossos gritos e nossos risos. Éramos tão felizes que nossa alegria podia controlar e esconder a desgraça de outros. Passava “Madame Urubu”, toda de branco, duas trouxas nas mãos. Mais serena que as outras, talvez menos desgraçada; se lhe perguntávamos para onde ia, ela respondia apenas que estava de mudança. Nunca deixou de usar aquelas trouxas, atestando que procurava diariamente uma nova moradia. – Madame Urubu, já arranjou casa? – Madame Urubu, onde você mora? Ela parava para explicar, numa linguagem que ninguém entendia. Não encontrara lugar para morar; procurava, procurava. Se eu quisesse hoje fazer um comentário geral, poderia dizer que Madame Urubu é como muita

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Tanta gente(Eneida de Moraes)

Quando, como hoje, relembro minha infância, imediatamente eles surgem arrastando trapos, descalços uns, mal calçados outros, vozes guturais em alguns, aqui e ali vozes claras, figuras físicas diversas, homens e mulheres, gordos e magros, todos vivendo além da fronteira da razão.

Relembro agora os tipos populares de minha terra, no tempo de menina. O “Diabo atrás da saia” era uma negra alta, magra, de pernas finas e tuíras. Sempre com um guarda-chuva que, de tanto fazer-lhe companhia, terminara parecendo com ela, fisicamente. Andava sempre espantando o diabo, que a perseguia colado à sua saia de cor indecisa. Gritava-se: “Diabo atrás da saia!” e o guarda-chuva movimentava-se, ela esbravejava, dizia todos os palavrões do mundo e corria atrás dos moleques que éramos todos nós, meninos de meu tempo, ricos e pobres, negros e brancos.

Quantos anos teria aquela mulher? Como e onde vivia? Ninguém saberia dizê-lo, e só muito mais tarde, já mocinha, comecei a respeitá-la. “Diabo atrás da saia” teria uma estória de mocidade e de vida. Que fora, onde vivera? Foram perguntas que se impuseram mais tarde; nos dias de infância eu me divertia apenas gritando a alcunha da velha, indiferente a seu sofrimento, aos palavrões, à agitação que provocávamos naquela vida tão triste.

Cega de um olho, pequenina, andando sempre depressa, muito depressa, (onde iria assim?) passava a “Burra Cega”; depois a “Tainha” monologando e muitas vezes parando para abrir os braços num gesto de desespero.

– Tainha!– Burra cega!E a correria, enquanto pedras passavam zunindo sobre nossas cabeças.Sabíamos que estávamos procedendo mal; já nos fora dito que com a desgraça das criaturas não se

brinca, mas não sentíamos a necessidade da proibição. Todo mundo mexia com aquela gente. Por que iríamos respeitá-la?

Palavrões enchiam a rua, mas eram muito mais fracos do que nossos gritos e nossos risos. Éramos tão felizes que nossa alegria podia controlar e esconder a desgraça de outros.

Passava “Madame Urubu”, toda de branco, duas trouxas nas mãos. Mais serena que as outras, talvez menos desgraçada; se lhe perguntávamos para onde ia, ela respondia apenas que estava de mudança. Nunca deixou de usar aquelas trouxas, atestando que procurava diariamente uma nova moradia.

– Madame Urubu, já arranjou casa?– Madame Urubu, onde você mora?Ela parava para explicar, numa linguagem que ninguém entendia. Não encontrara lugar para morar;

procurava, procurava. Se eu quisesse hoje fazer um comentário geral, poderia dizer que Madame Urubu é como muita gente que conheço. Nunca sabe onde está, onde fica, para onde vai. Madame Urubu podia bem ser um símbolo.

Por que chamávamos a pequenina e tão ágil mulher, apressada sempre, de “Burra Cega”, por que aquela negra tão magra era a “Tainha”, por que “Madame Urubu” ganhara esse título? Jamais o soubemos.

Havia ainda a “Laurista”, criatura baixa, roliça, que – diziam – o álcool perdera. Desta sabíamos que era assim chamada porque seu ídolo político era o Dr. Lauro Sodré. Naquele momento a política paraense fervilhava em torno do velho general republicano e a “Laurista” fazia comícios, atacava todos os inimigos de seu líder, a quem chamava de “grande homem”, “sábio”, “impoluto”, “genial”.

Falava muito a “Laurista”, sempre no tom dos oradores populares. Parava numa esquina e começava a discursar. Tinha uma estória de todos conhecida: quando menina vivera num colégio particular, como doméstica; crescera servindo de criada de uma professora e aprendera por muito ouvir, com as crianças preparando as aulas, nomes de Estados, fatos históricos, poemas de Castro Alves. Depois deu para beber, arruinou a vida, enlouqueceu. Vagava pelas ruas, ora discursando em louvor de Lauro Sodré, ora resmungando e proclamando:

– Pernambuco capital Refice...Tentávamos obter dela uma pronúncia correta para a capital de Pernambuco; jamais o conseguimos.

Só havia dois meios de enfurecê-la: negar as qualidades de seu líder e corrigir seus velhos conhecimentos mal gravados. Refice era Recife, e Laurista jurava que aprendera assim com a professora. Declamava:

– Sabes quem foi Assaferus, o mísero pricito que trazia na fonte o cilo tró?Como falava rápido, muito rápido, uma palavra se ligando a outra, surgindo inovações como “cilo

tró”, só muito mais tarde conseguimos saber que estava declamando o “Ahasverus e o Gênio” de Castro Alves:

“Sabes quem foi Ahasverus?... o precito,

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O mísero judeu que tinha escritoNa fronte o selo atroz!”Disséssemos à Laurista que estava pronunciando tudo errado, e ela cuspia para o lado, afirmando:– Vocês são burros, não sabem nada...Quanta gente ainda: o capenga sempre bêbado cantando pelas ruas com voz pastosa:– Toda mulher tem papo, toda mulher tem papo, pó, pó, pó...E se perdia na última sílaba: ficava minutos seguidos repetindo-a tanto, tanto, que muitas vezes havia

moradores de minha rua que vinham à janela mandá-lo calar, enxotá-lo como se fosse um cão leproso. Mas não se perturbava; continuava na sua afirmativa que com ele caminhava de rua em rua. Que razões teria para defender com tanto ardor uma tese que depois dele nunca mais encontrei enunciada por nenhum outro autor?

Havia ainda o peixeiro que até o meio-dia vendia peixe e camarão; amanhecia um homem normal, com o dever de alimentar a família. Saía cedo com seu cesto a negociar peixe e camarão. Mas como em cada botequim que encontrava, um apelo lhe surgia e uma pinga era tomada, às doze horas desaparecera o honrado português das primeiras horas da manhã. Agora era um ébrio que, com a cesta vazia continuava gritando com voz pastosa, enquanto se arrastava vermelho, sujo, levando pedradas:

– Peixe camarão, peixe camarão! – e cambaleava.Os relógios poderiam ser acertados na minha rua quando se escutava seu pregão. Muitas vezes ouvi

alguém dizer, sem olhar ponteiros:– É meio dia. “Peixe Camarão”, coitado, já está bêbado.Monótona melodia marcada pelos “ao”, “ao”, acompanhava o cambalear do homem.– É muito perigoso mexer com ele – diziam-nos. A faca que trazia à cintura para cortar as postas de

peixes surgia ameaçadora quando atrás dele corríamos (Nunca – que eu saiba – “Peixe Camarão” matou ninguém).

Mas a figura mais bela, aquela que jamais esquecerei nesse grupo desgraçado de personagens populares da minha cidade, era a mulher chamada Arantes.

Que acontecera em sua vida para ficar assim magrinha, a cabeça toda branca e aquele terrível medo do vento, a quem chamava de Arantes?

Sim, o Arantes. Agarrava as saias muito de encontro ao corpo, andava lentamente, e quando a ventania de todas as tardes, aquela ventania que começava às treze e acabava às dezesseis horas, iniciava seu passeio pela cidade brincando com as árvores, derrubando as folhas como que afastando o calor, ela parava à soleira das portas, cosia seu corpo às paredes e aos muros, chamava as pessoas que passavam, dizia aconselhando trêmula, medrosa:

– Cuidado, cuidado, segure bem a sua saia. O Arantes já chegou. O Arantes esta aí, o Arantes está solto.

Os homens podiam ir e vir; não deviam temer o Arantes, eram seus iguais. Mas as mulheres, essas, precisavam de defesa, fosse qual fosse a idade deviam defender-se dos perigos do Arantes. O vento balouçava roupas e ela, vigilante, contando estórias do Arantes ao ouvido das moças e meninas:

– Ele é traiçoeiro, muito traiçoeiro – dizia.Quando encontrava uma senhora grávida, ficava mais nervosa, apontava a futura mãe:– Viram? Olhem. Olhem o que o Arantes fez nela.O Arantes, aquela ventania amazônica diária trazendo cheiro de maresia, lembrança da Guajará, era

pai de todos os filhos, sedutor de donzelas, criador de todas as crianças. Se o vento levantasse a saia de uma mulher, a pobre criatura punha as mãos nos olhos, esquecia sua própria dor, e gemendo, sofrendo, exclamava:

– Coitadinha! Coitadinha! O Arantes agarrou ela.Possuída de enorme angústia, segurava o vestido, implorava piedade ao vento, andava, parava,

aconselhando às mulheres que tivessem cuidado, muito cuidado.Deve ter havido outros, devo ter conhecido mais tipos populares em minha terra, no tempo de

menina, mas esses são os que estão vivos e ativos na minha recordação.Gosto de chamar o vento de Arantes, até hoje sei declamar Castro Alves com a “Laurista”; também

jamais esqueci que toda mulher tem papo.Lá vão eles arrastando trapos, descalços uns, mal calçados outros, vozes guturais em alguns, aqui e

ali vozes claras, figuras físicas diversas, homens e mulheres, gordos e magros, todos vivendo além da fronteira da razão.

Fui muito má para eles, eu sei agora. Mas é difícil convencer uma criança feliz de que há gente desgraçada.