encontros atemporais em fernando sabino. o homem feito e o

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SUMÁRIO 1- FERNANDO SABINO ................................................................................................ 02 1.1- Os textos e o tema “encontro” ................................................................................. 02 1.2- Conhecendo o autor .................................................................................................. 02 1.3- Referências autobiográficas em suas obras ............................................................. 04 1.4- A perda da inocência ................................................................................................. 07 2- O HOMEM FEITO ...................................................................................................... 08 3- O MENINO NO ESPELHO ......................................................................................... 18 4- AS DUAS PRODUÇÕES ............................................................................................. 30 5- O AUTOR E SEUS ENCONTROS ............................................................................. 38 6- CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................... 40 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................ 43

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SUMÁRIO

1- FERNANDO SABINO ................................................................................................ 02

1.1- Os textos e o tema “encontro” ................................................................................. 02

1.2- Conhecendo o autor .................................................................................................. 02

1.3- Referências autobiográficas em suas obras ............................................................. 04

1.4- A perda da inocência ................................................................................................. 07

2- O HOMEM FEITO ...................................................................................................... 08

3- O MENINO NO ESPELHO ......................................................................................... 18

4- AS DUAS PRODUÇÕES ............................................................................................. 30

5- O AUTOR E SEUS ENCONTROS ............................................................................. 38

6- CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................... 40

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................ 43

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1 - FERNANDO SABINO

1.1 – Os textos e o tema “encontro”

A análise de um tema importante, recorrente e freqüente, na obra de um

determinado autor é uma maneira de compreender e explicar sua produção artística. Na

literatura do escritor mineiro Fernando Sabino, nascido em 12 de outubro de 1923 e morto aos

11 de outubro de 2004, é possível localizar o tema “encontro” trabalhado de maneiras diversas

em vários momentos da sua produção literária. Este trabalho se dedica a uma análise de duas

das obras do autor, onde o tema apresenta as mesmas características: o encontro entre o

menino e o homem que ele será no futuro e, ao mesmo tempo, entre o homem e o menino que

ele foi no passado, encontros revestidos de um tratamento atemporal.

Os textos selecionados são a novela “O homem feito”, que aparece pela primeira

vez no livro A vida real, publicado em 1952, e o romance O menino no espelho, de 1982.

Para todo efeito, quando se disser novelas, contos, crônicas ou romances será

porque o autor assim definiu e denominou seus textos. Este padrão foi adotado pelo fato de

que as discussões sobre os gêneros literários são sempre dignas de controvérsias e

possibilidades várias, o que comprometeria a fluência e a facilidade de compreensão da

proposta deste trabalho de análise e comparação literárias.

1.2 – Conhecendo o autor

Fernando Sabino ingressou na carreira literária prematuramente1 e aos quinze anos

já havia recebido vários prêmios,2 produzindo contos e crônicas. Baseou sua carreira nesse

tipo de produção, utilizando-se de elementos do cotidiano popular mineiro e carioca e

situações vivenciadas por ele próprio durante sua infância, adolescência e vida adulta. Este é,

portanto, o corpus principal de sua literatura.3

1 Aos treze anos escreveu seu primeiro trabalho literário, uma história policial publicada na revista Argus, da polícia mineira. 2 Concorria a um concurso permanente da revista Carioca, do Rio de Janeiro, escrevendo crônicas sobre o rádio, principalmente. Foi nesse concurso e com algumas dessas crônicas que obteve seus primeiros prêmios, segundo posfácios da maioria dos seus livros publicados pela Editora Record. 3 Ver comentário do crítico e professor aposentado da UFMG, Fábio Lucas, no excerto extraído do Dicionário de Literatura Brasileira e Portuguesa, de Celso Pedro Luft, adiante, à página 4 desta monografia.

3

Seu primeiro livro, Os grilos não cantam mais (1941), abriu-lhe as portas para

uma amizade que ampliaria suas ambições literárias, através de uma fecunda troca de

correspondência com o escritor modernista Mário de Andrade.4 Logo após, em 1944, quando

se mudou para o Rio de Janeiro, publicou o livro de novelas A marca. Em 1946 foi morar em

Nova Iorque, convidado para trabalhar no Escritório Comercial do Brasil e, posteriormente,

no Consulado Brasileiro, ambos naquela cidade. Durante os dois anos consecutivos que ali

residiu, Fernando Sabino manteve uma intensa produção jornalística e literária, publicada no

Brasil em colunas e artigos de jornais e revistas brasileiros: colaborou com o jornal carioca

"Diário de Notícias" e enviava crônicas de Nova Iorque para serem publicadas, aos domingos,

nos jornais "Diário Carioca" e "O Jornal", ambos do Rio de Janeiro;5 deu início à produção do

romance O grande mentecapto, que só retomaria após 33 anos; começou a escrever o romance

Os movimentos simulados, que não chegou a publicar naquela época, mas de onde retirou

elementos importantes para a produção de um outro romance, O encontro marcado.6

1.3 – Referências autobiográficas em suas obras

Ao retornar dos Estados Unidos, em 1948, seu nome já era, por conseqüência

desses textos, reconhecido pelo público leitor daqueles jornais e revistas como o de um grande

cronista, ao lado de outros nomes como o de Rubem Braga, por exemplo. Celso Pedro Luft,

em seu Dicionário de Literatura Brasileira e Portuguesa,7 assim se refere a Fernando Sabino:

Um dos prosadores melhor dotados do Neomodernismo, com destaque artístico na ficção, tanto romance como novela e conto, e na crônica de jornal. É neste último gênero que melhor afirmou seu talento, conquistando numeroso auditório (...). Ao lado de Rubem Braga, Henrique Pongetti, Paulo Mendes Campos, Rachel de Queiroz, Carlos Drummond de Andrade e outros, é responsável pela elevação da crônica a gênero literário.

Fernando Sabino, ao publicar A cidade vazia [escreve o crítico Fábio Lucas]8 não lançou apenas mais um livro de crônicas, porém, o que é mais importante, um novo estilo de fazer crônicas. Hoje,

4 Correspondência publicada mais tarde em Cartas a um jovem escritor (1981). 5 Estes textos foram publicados, em 1950, no livro A cidade vazia. Neles, Fernando Sabino manifestou sua crítica e decepção com o estilo de vida norte-americano. 6 Ambos concluídos em 1956, quando o autor já estava de volta ao Brasil. “Os movimentos simulados” é o nome, inclusive, de um dos capítulos de O encontro marcado, a sua obra mais famosa . 7 LUFT, Celso Pedro - Dicionário de Literatura Brasileira e Portuguesa - Porto Alegre: Globo, 1973 – p 339. 8* N.A. **Ver nota nº 3 à p 3 desta monografia.

4

todos conhecem e distinguem seu modo de escrever baseado quase sempre no conflito das situações, no desencontro dos mundos, na falência das linhas inflexíveis. Sua imaginação tem sempre recursos para dividir as situações em planos e burlescamente separá-los e dar-lhes novas combinações, mostrando o ridículo que há nas coisas quando vistas sob certos ângulos. Os fatos lhe servem para uma atividade lúdica: o velho jogo de armar e desarmar. O que o menino faz com seus brinquedos, F. S. realiza com os valores do cotidiano.9

Apesar de ter desenvolvido uma forte tendência às narrativas curtas, deixou

publicados, ao fim da sua vida, quatro romances: O encontro marcado (1956), O grande

mentecapto – as desventuras de Geraldo Viramundo (1979), O menino no espelho (1982) e

Os movimentos simulados que, embora concluído em 1956, só foi publicado muito mais tarde,

em 2004. Todos eles apresentam fortes indícios autobiográficos,10 condição afirmada e

reafirmada por ele próprio em várias entrevistas que concedeu durante a sua vida. Como

exemplo será utilizada uma entrevista a Maria Eugênia de Souza Chedid11, na qual fala dos

romances: “(...) escrevi O encontro marcado baseado na minha experiência pessoal até os

trinta anos. (...) digo que sou apenas o protótipo daquele personagem. (...) Mas, de qualquer

maneira, globalmente, no seu todo, O encontro marcado é a minha vida.”12 E continua:

“Depois, vem O grande mentecapto, que de certo modo é também a minha vida, vista através

da fantasia. Evidentemente, o Viramundo é aquele doido que, no fundo, continua aprisionado

dentro de mim, e espero que um dia se liberte.”13 Há mais:

“Em seguida, escrevi O menino no espelho, que é a experiência da minha infância, e no qual adotei um critério inverso ao usual. (...) usei na ficção todas as minhas fantasias infantis, como se tivesse

9 Não foi possível localizar a referência dessa citação do Professor Fábio Lucas registrada por Celso Pedro Luft. É possível, contudo, que tenha sido extraída de uma das edições da revista literária Vocação, fundada em 1951 pelo próprio Fábio Lucas em companhia do poeta Afonso Ávila e do romancista Rui Mourão. Essa dedução se dá pelas características do texto e pela proximidade das datas de fundação da revista e do lançamento do livro A cidade vazia, publicado originalmente em 1950. 10 Podem ser citados os seu livros O tabuleiro de damas– trajetória do menino ao homem feito (1988) e O galo músico (1999), cujo subtítulo é Contos e Novelas da juventude à maturidade, do desejo ao amor, como importantes obras de referências autobiográficas. Neles, sua biografia é tratada como ficção, na forma de contos, bem humorados na sua maioria. Estes elementos são importantes para a compreensão da produção literária do autor (agraciada com o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras – 1999, pelo conjunto da sua obra. O valor de R$ 40.000,00 era, até ali, o maior já oferecido a um escritor brasileiro e foi doado a instituições de amparo às crianças). 11 Bate-papo realizado no Auditório Paul Garfunkel, da Biblioteca Pública do Paraná, em 24 de junho de 1985 e publicado em co-edição com a Fundação Cultural de Curitiba na série Um escritor na biblioteca, no mesmo ano. A entrevistadora era diretora da BPP, à época. 12 Um escritor na biblioteca: Fernando Sabino, 1985, p 12. 13 Idem, p 12.

5

vivido aquilo realmente. É o meu nome, o nome dos meus irmãos (sic), do meu pai, o endereço da casa onde nasci.”14

Apenas em O grande mentecapto as evidências autobiográficas não estão muito

explícitas15 e os leitores necessitam de uma intimidade maior com a vida pessoal do autor e

suas amizades para perceberem refletidas em Geraldo Viramundo, o protagonista mentecapto,

características de pessoas que o escritor conheceu por Minas Gerais e Rio de Janeiro. Segundo

ele: “Tinha um doidinho lá em Belo Horizonte chamado Geraldo Boi, (...) e foi baseado nele e

em outros que eram meus amigos, Hélio Pellegrino, Vinícius de Moraes, Jayme Ovale, eu

mesmo, além de alguns imortais (...) – juntei tudo e saiu o mentecapto Viramundo”.16

Nos outros, contudo, a característica autobiográfica - além de marcante - é

assumida. O seu primeiro e mais importante romance, O encontro marcado (1956), narra a

vida de Eduardo Marciano.

Este personagem, após uma breve consulta à biografia do autor, pode ser

considerado o seu alter-ego: Eduardo Marciano era escritor e, da mesma forma que o seu

autor, o personagem também nasceu e cresceu em Belo Horizonte e se mudou, depois de

casado, para o Rio de Janeiro. Os dois foram campeões brasileiros de natação e terminaram

em segundo lugar em maratonas intelectuais, empatados com seus respectivos melhores

amigos. Assim como o Fernando Sabino, Eduardo Marciano também foi recruta do exército,

escritor, diplomata e adido cultural, dentre outras coincidências.17

Com ele, Fernando Sabino logrou sua entrada para o rol dos grandes nomes da

literatura brasileira, vista a grande aceitação do romance pelo público, manifestada em nada

menos que setenta e cinco edições até 2004.18

A propósito desta obra, Fernando Sabino carregou um fardo de cobranças:

Às vezes alguém me pergunta pelo meu novo romance. Calo-me, ou disfarço, digo que estou escrevendo, chego mesmo a confessar que tenho o romance todo na cabeça, só me falta a primeira

14 Ibidem, pp 12 e 13. 15 É o único romance, aliás, onde o escritor não desenvolve o tema encontro de maneira intensa, como nos demais. 16 Um escritor na biblioteca: Fernando Sabino, 1985, p 19. 17 SABINO, Fernando. Cronologia biográfica. Minas Gerais. Suplemento Literário – Belo Horizonte, 893:11, 1983. 18 Note-se que esse romance já trazia no seu título a referência ao tema encontro.

6

frase. A verdade é que eu sabia o que queria dizer, não sabia como dizer. E meu novo romance se desintegrou antes de nascido.19

Enquanto escrevia O encontro marcado, segundo esta entrevista, o escritor vivia

momentos de incertezas. Suas dúvidas, transferidas para o protagonista Eduardo Marciano,

foram depois confessadas em O tabuleiro de damas – trajetória do menino ao homem feito

(1988), livro de crônicas e “rascunho de autobiografia”, como ele mesmo denominava:

Aos trinta anos, minha vida chegava a um impasse. Eu precisava saber com que contava, para finalmente começar. Foi uma espécie de “apuração de haveres” – Não teria condições de sobrevivência se não escrevesse sobre o que tinha vivido até aquele momento. Tinha um encontro marcado comigo mesmo. É, pois, um romance intencionalmente autobiográfico. Mas concebido segundo as exigências técnicas do gênero.20 1.4 – A perda da inocência

Naquele momento, durante a produção de O encontro marcado, não lhe restava

dúvidas sobre o que esperava da sua carreira, o que também confessou na entrevista: “Eu

pretendia ser, e ainda pretendo, é romancista. Escrevendo sobre o preço que se paga (...) para

se tornar um homem, que é a perda da inocência (...)”.21 Neste ponto é possível começar a

desvendar o que o autor imaginava significar o ato de crescer, sair da infância e ingressar na

madureza. Essa perda da inocência tem relação direta com o que represente o tema encontro

para a sua produção artística, mais especificamente em dois momentos que passam a ser aqui

explorados.

É na novela “O homem feito”, do livro A vida real, 22 que a relação menino-

homem e homem-menino passa a fazer parte da literatura de Fernando Sabino. O tema será

retomado, com características similares, em O menino no espelho,23 obra que encerra sua

produção romanesca24 e é descrita por ele como “o romance das reminiscências” da sua

infância. O enfrentamento da criança e do adulto aparece, inclusive, no subtítulo acrescentado

19 20 SABINO, Fernando - O tabuleiro de damas – Rio de janeiro: Record, 1988 - pp 43 e 44. 21 Um escritor na biblioteca: Fernando Sabino, 1985, p 12. 22 SABINO, Fernando - “O homem feito” in A vida real – Rio de Janeiro: Editora do autor, 1952. 23 ________________ - O menino no espelho – Rio de Janeiro: Record, 1982. 24 Uma vez que, embora publicado em 2004, o romance Os movimentos simulados foi escrito em 1945, segundo seu prólogo.

7

a algumas edições do livro:25 O que você quer ser quando crescer?. Como ilustração de o

quanto a sua infância perdida era alvo de uma busca constante, pouco antes de sua morte,

Fernando Sabino comentou que há muito não lhe faziam esta pergunta. Mas, caso o fizessem,

responderia que queria ser criança.26 E, a seu pedido, seu túmulo apresenta a epígrafe escrita

por ele próprio: “Aqui jaz Fernando Sabino, que nasceu homem e morreu menino”.

2 – O HOMEM FEITO

A novela em questão é dividida em duas partes e é narrada em primeira pessoa por

um narrador-protagonista, que conta sua história utilizando os vários tempos pretéritos. Ele é

um homem cuja idade não pode ser definida e a narração começa a partir do momento em que

ele parte para um auto-isolamento no topo de uma montanha, fugindo da rotina urbana. O

motivo não chega a ser esclarecido, mas no parágrafo:

Ninguém mais me reconheceria. Não mais saberiam como eu fora. Quem se lembraria? Pelas ruas, gravata e sapatos, uma espera em cada esquina, o corpo vago e indeciso. Perdera tudo. Na cidade feita de ar eu girava sem forma, tocado pelo vento. Depois tudo perdido, tudo passado, tudo parado e morto. Meus pés se prenderam ao solo, enquanto o medo crescia com a barba no escuro do quarto e o sexo se encolhia como um pássaro. Alguma coisa me furtara ao convívio e destruía (sic) a minha força. Que acontecera? Nada mais me sustentava. De repente levaram-me tudo, até meus pensamentos mais íntimos, e eu ficara perdido, sem esperança de dormir ou acordar. Então fugira para a montanha, deixando pra trás a lembrança dos meus dias. 27

é possível perceber o pessimismo que lhe aflige. Notável, também, a importância do verbo

“perder”, utilizado em três momentos, grifados para esta monografia, além de outros

substantivos, adjetivos ou locuções que mantêm sentidos sinonímicos ou similares ao verbo

destacado (ou apresentam outros aspectos, mas que também manifestam o tom pessimista da

narração): ninguém, espera, vago e indeciso, sem forma, parado e morto, medo, escuro do

quarto, encolhia, furtara, destruía, nada mais, levaram-me tudo, sem esperança, fugira,

deixando para trás. Além disto, neste único parágrafo são feitas duas indagações, que refletem

as dúvidas enfrentadas por ele: “Quem se lembraria?” e “Que acontecera?”. Descobre-se,

logo, que ele atravessa uma situação de conflito interno e de crise existencial, marcadamente a

partir de “Nada mais me sustentava”, até o final do trecho.

25 Como é o caso da 57. ed., pela Editora Record (2000). 26 http://www.releituras.com/fsabino_bio.asp (acesso em 28 mai 2006). 27 SABINO, Fernando – “O homem feito” in A vida real – São Paulo: Círculo do Livro, 1965 - p 70. Obs: a partir deste ponto, todos os excertos dessa obra serão extraídos desta edição.

8

Na fuga, ele traz consigo as lembranças perturbadoras da cidade e deixa claro que

sua vontade era a de acabar com sua vida, embora esta não fosse sua intenção ao se isolar:

Assim a minha morada se tornara suficientemente confortável para quem nada mais desejava senão que corressem os seus dias. Não fosse a perturbadora vizinhança de uma cidade, eu já os teria encerrado; o que eu queria era morrer completamente, sem deixar o menor sinal de haver existido.28

Tudo segue nestes termos, até que um menino, que ele julga ser filho de algum

camponês das vizinhanças, surge para perturbá–lo, aparecendo com freqüência para

bisbilhotar e vigiar sua rotina. As aparições criam o conflito a respeito do qual versará, daí por

diante, a primeira parte da novela, dividida em oito capítulos, nos quais estes dois

personagens, o ambiente e o tempo narrativo são apresentados, embora os nomes do adulto e

da criança não sejam revelados.

Nesta primeira parte é possível, ainda, localizar pontos em que o adulto se refere a

um lado infantil de sua personalidade, uma criança existente dentro dele próprio. A primeira

referência a esse aparente transtorno psicológico - que ficará comprovado mais tarde, no

decorrer da novela, se tratar do conflito principal do enredo - aparece num trecho do capítulo

III: “Do alto da montanha, distante, íntimo de milhões de estrelas, eu olhava com a

curiosidade de um menino para o planeta aonde viera ter por engano.”29

No capítulo seguinte acontece o primeiro momento em que o eremita nota a

presença física de alguém junto a si:

Uma noite, porém, antes que eu voltasse ao meu refúgio, o vento me trouxe o ruído de cascalho pisado a pouca distância de minhas costas. Voltei-me sentindo uma presença humana junto a mim, e vi alguém ou alguma coisa que fugia, espavorida, uma forma branca, que galgava ágil como um cabrito o dorso da montanha, confundindo-se com as manchas de lua.30

Dentre os pontos que insinuam o seu transtorno psicológico, o principal deles

descreve as formações de nuvens que invadiam o local do seu exílio, trecho no qual ele se

refere ao seu sonho de criança: “A idéia de estar dentro de uma nuvem me perturbava como se

eu tivesse vivido todos esses anos apenas para realizar o que sonhara na infância.”31

28 SABINO, Fernando – “O homem feito” in A vida real, p 72. 29 SABINO, Fernando – “O homem feito” in A vida real, p 70. 30 Idem, p 73. 31 Ibidem, p 73.

9

Na oração imediatamente seguinte (não por coincidência), no mesmo parágrafo,

acontece o contato definitivo do eremita com o menino da montanha:

Por um momento ela [a nuvem] se esgarçou e distingui o vulto da cabana, mais perto do que imaginara. Contudo, não pude avançar; pareceu-me ver, alguns passos à minha frente, a figura de um menino de seis ou sete anos olhando-me curioso... No primeiro instante o susto me paralisou, mas quando vi que ele fugia, saí em seu encalço. Logo as nuvens se adensaram entre nós e nada mais pude ver.32

Até este ponto, o enredo possibilita várias interpretações para o referido encontro

entre o menino e o homem.

Uma possibilidade é a da leitura linear e concreta, definida por Vincent Jouve

como uma leitura inocente33 do texto apresentado: é um menino camponês que visita o

eremita. Esta leitura linear não é, contudo, a mais interessante, pois explora somente a

superfície do texto, segundo o teórico francês.

Outras possibilidades de leituras, segundo Michel Charles,34 podem ser construídas

a partir da releitura, ou seja, da leitura inscrita, que submete o texto a um conjunto de

variáveis no qual as interpretações, amparadas pelas forças do desejo e as tensões da

ideologia, têm papel decisivo.35

Algumas das variáveis, para a novela, podem ser leituras subjetivas ou fantásticas,

em que o menino fosse uma aparição, mental, fantasmagórica ou mitológica, provocada pelo

medo e pela solidão que o homem sentia. Nestas variáveis, é possível notar conexões que a

primeira leitura pode não permitir: o texto, além da superfície, apresenta outra dimensão:

volume. Sem esta consciência, alguns aspectos do texto são despercebidos.

Há, contudo, a possibilidade de uma leitura mais ampla, que envolva, além das

dimensões já relacionadas, uma outra dimensão menos palpável que as anteriores. A proposta

é que essa dimensão deva ser construída pelo próprio leitor, segundo suas próprias

experiências pessoais. Seria uma leitura psicológica, na qual o menino aparece para o adulto

como a projeção mental do seu conflito interior, causa ou conseqüência de algum trauma ou

32 Ibidem, p 73. 33 Isto é, a primeira leitura, aquela que segue o desenvolvimento linear do texto. JOUVE, Vincent – A leitura; tradução Brigitte Hervor - São Paulo: Editora Unesp, 2002, p 28. 34 CHARLES, Michel – Rhetórique de la lecture [Retóricas da leitura]. In: JOUVE, p 31. 35 O que não quer dizer que um texto autorize qualquer leitura, pois este jogo de interpretações só é possível na medida em que os textos o permitem.

10

alguma condição psicossomática enfrentada por ele, possíveis responsáveis pela sua crise,

fosse ela existencial ou de identidade. leitura psicológica que o texto sugerirá a partir da

segunda parte da novela.

Prosseguindo com a leitura da primeira parte, em determinada altura o enredo

envolve situações nas quais o narrador quer apresentar provas da existência física do menino.

A primeira delas está no capítulo V: um pássaro se choca contra uma pedra e fica agonizante.

O homem, então, num gesto que ele julgou misericordioso, lhe esmaga as têmporas para lhe

tirar o sofrimento. Ao perceber o menino escondido a observar, o homem abandona o corpo

da ave para perseguir a criança. Não conseguindo alcançá-la, ao retornar, o pássaro havia

desaparecido do local onde foi largado.

No capítulo seguinte, entretanto, o narrador acrescenta reflexões importantes para

o caso:

Se aquela criança desejava atormentar-me, estava começando a atingir o seu propósito. Sentia-lhe a presença nos arredores da cabana como censura ao meu isolamento, acusação às minhas faltas, estímulo ao meu remorso. E por que fugia de mim? Que espécie de crime, afinal, eu cometera, para que assim me castigassem? Que acidente no meu caminho me atirara ao chão, como o pássaro no seu vôo interrompido? Também eu tombara agonizante e nenhum anjo desenganado vinha tomar-me nas mãos para o último gesto de misericórdia. Meu corpo restava agora abandonado, e o menino não vinha buscar-me.36

O que ele faz neste trecho é enumerar motivos para que a presença atormentadora

do menino fosse a sua punição: punição pelo seu isolamento, pelas suas faltas, solicitação

para que sentisse remorso. Mas, as dúvidas novamente: qual seu crime, qual o acidente? Para

essas perguntas ele não encontra explicação. Um detalhe importante é acrescentado pelo

plural de “me castigassem”, que confere uma impessoalidade aos castigos, retirando essa

responsabilidade de sobre o menino. O menino descrito no final do trecho, inclusive, não é o

mesmo presente na passagem em que o pássaro desapareceu, muito embora o menino que não

vem buscar seu corpo seja alusão àquele, que teria resgatado o corpo do pássaro: o menino

que ele espera é a sua salvação.

Pouco depois, uma passagem cercada de simbologia: ele grita ao menino que foge,

mas quem responde é o eco da montanha: “Viera ali para desafiá-lo com meus gritos e ele

soava-me como alguém que eu imaginava semelhante a mim.”. 37 A sua própria voz ressoando

36 SABINO, Fernando – “O homem feito” in A vida real p 76. 37 Idem, p 79.

11

pelo vale é como uma confissão de que o menino que o atormenta não é outro senão ele

mesmo, o que explicita a sua perturbação. Na seqüência, o embate com o eco insinua um

problema com a figura paterna. Ele grita: -Pai. E o eco responde apenas: - Ai.38

E assim é que se encerra a primeira parte da novela. Ao voltar para a cabana, o

eremita é apanhado por uma tempestade. E dentro da cabana:

(...) eu estava perdido e só debaixo da noite como em criança, quando a tempestade me assustava e minha mãe vinha me velar o sono. Por um instante consegui ver-me novamente de cócoras junto à parede da cabana, como um menino, enquanto lá fora o temporal continuava. Comecei a chorar, percebendo que ia de novo ser apanhado e desta vez não conseguiria resistir. Levantei-me, cambaleando, e procurei o revólver no escuro. No mesmo instante ouvi umas batidas fracas na porta.39

Na segunda parte, composta de onze capítulos, é que os nomes dos protagonistas

são revelados: Luís. A partir desta informação, e no futuro decorrer da narrativa, as evidências

de que o menino seja o próprio narrador- protagonista serão claras.

O nome do menino aparece logo no primeiro capítulo, que se inicia com a amizade

já estabelecida entre os dois, comprovando que as batidas na porta do final da primeira parte

foram do menino, que chegou, afinal, a tempo de salvar o homem do suicídio. O homem não

resistiu, porém, de ser apanhado, supostamente pelo menino, como ele mesmo havia previsto.

Este é o principal elemento para acreditar que a chegada do menino, apesar de ter sido sua

salvação, era também o seu grande temor. Esta constatação deve comprovar a hipótese da

condição paranóica do homem.

O eremita vai, aos poucos, demonstrando sinais de insanidade e da sua memória

brotam lembranças da criança que ele foi. A presença desta criança lhe relembra, de maneira

intrigante, situações por ele vividas, e mal resolvidas, na sua infância.

Seu nome só será descoberto no capítulo V, quando ele recebe a visita de um

antigo amigo da cidade, que subiu a montanha na tentativa de resgatá-lo. Na manhã seguinte à

chegada do visitante, o eremita sai da cabana e encontra o menino se aproximando pela

encosta do morro, enquanto a visita dorme:

- Você nunca esteve aqui tão cedo – comentei, aborrecido. - Estou atrás de um cavalo fugido. Papai me mandou.

38 SABINO, Fernando – “O homem feito” in A vida real , p 80. 39 Idem, p 82.

12

A voz era cautelosa, como se a presença de um estranho a dormir na cabana pusesse em perigo também a sua tranqüilidade. - Cavalo? Aqui não tem cavalo nenhum. Deve estar perdido por aí. (...) Calei-me, perturbado: o visitante, sem que eu pressentisse, saíra da cabana e agora estava lá de pé junto a mim, a observar-me. Luís mal tivera tempo de fugir, esgueirando-se atrás do rochedo. (...) - Com quem você estava conversando, Luís? (...) - Era um menino que aparece por aqui de vez em quando. Filho de um camponês lá do vale. (...) - Tive a impressão de que você falava sozinho. (...) - Por que você veio? – perguntei. - Vim buscá-lo. - Eu estou muito bem aqui. (...) - Falando sozinho? - Já disse que não! (...) - Não havia ninguém com você. - Por que não me deixa em paz? (...) - Ouça o que vou lhe dizer, Luís – e ele tocou-me o braço com simpatia: - Se você não tomar cuidado, acaba completamente louco.40

No trecho em que este diálogo é travado entre os dois adultos transparece a

desconfiança do visitante a respeito da saúde mental de Luís, suspeita esta, anterior à sua fuga

para aquela montanha, possivelmente.

O próximo destaque da narrativa será o capítulo VIII, “o canivete”. Os dois Luís

discutem por causa de um canivete vermelho achado pelo menino. O adulto afirma que era ele

quem havia perdido e por causa dessa discussão, desfere um tapa no seu amiguinho. Após a

agressão, o eremita sai para a cidade abandonando a criança, que implora para ir junto. Pela

leitura psicológica proposta anteriormente, esse é um trecho significativo, pois esse canivete

torna-se um símbolo importante para a introdução e concretização do encontro atemporal. No

capítulo seguinte é contada a história de uma inscrição talhada por uma criança, no seu

primeiro dia de desconsolo, segundo o texto. O narrador confessa ser dele a autoria da

inscrição, talhada por um canivete muitos anos antes. O canivete, por sua vez, seria aquele

mesmo encontrado pelo menino, muitos anos depois. Esta inscrição foi feita pela criança

aflita, na intenção de que fosse uma mensagem para ela mesma, no futuro.

Neste ponto é que se manifesta o grande conflito do enredo, de onde sai, inclusive

o nome da novela: “O que impulsionara minha mão inocente ao escrever uma palavra que

40 SABINO, Fernando – “O homem feito” in A vida real, pp 94 e 95.

13

seria a mensagem do menino ao homem feito?”.41 Este capítulo é suficiente para eliminar

qualquer dúvida de que o menino e o homem, o Luís adulto e o outro, sejam a mesma pessoa.

Prosseguindo, o eremita localiza a árvore e a inscrição:

O acaso me fez olhar para cima (...). E somente assim eu descobriria que as árvores também crescem: a inscrição subira no tronco e estava agora acima da minha cabeça, em cicatrizes fundas e escuras, quase irreconhecíveis. Então era verdade, eu havia mesmo existido e vivido ali! Buscara uma árvore isolada e perfeitamente à vista de quem se colocasse ao pé da montanha; 42

Logo após, o capítulo final:

Ele retorna à cabana após localizar a marca deixada na árvore pelo menino que ele

foi, após o encontro marcado dele consigo mesmo ou após o encontro de um momento de

angústia do seu passado com um momento de tormento do seu presente. A partir destes

encontros, o homem se transforma, como se tivesse acabado de ingerir o remédio para todos

seus males, como se o fato de ter se lembrado do canivete, da inscrição e do compromisso

assumido e, mais tarde, de ter localizado o local exato daquele encontro, acabasse com todas

suas angústias, alucinações e dúvidas, como se fossem elas geradas pelo esquecimento

daqueles símbolos e do encontro que a criança marcara com (e para) ele, adulto.

À porta da cabana, o menino, aquele que foi, durante a maior parte da sua reclusão,

a sua maior perturbação, o espera, esquecido das dores e do abandono recentes. A seguir, o

remorso, a redenção e a entrega do homem feito:

- Desculpe ter batido em você, Luís, eu não queria, me desculpe, eu não podia fazer isso com você, eu... (...) Fomos caminhando para o local do sacrifício de mãos dadas como dois amigos, como pai e filho, sentindo a evasão do mistério que por um instante nos anulara. Passei pela frente da cabana, consciente de que nunca mais voltaria ali. - Nunca mais vou deixar você sozinho (...). Você vai ficar morando comigo na cabana, vamos rir todos os dias...43

O desfecho do enredo é trágico: o homem termina por afogar o menino em uma

lagoa, única maneira que ele achou, agora que encontrara o objeto da sua busca, para

prosseguir com a sua nova vida e se livrar da loucura que vivera até ali:

41 SABINO, Fernando – “O homem feito” in A vida real, p 103. 42 Idem, p 103. 43 Idem, pp 108 e 109.

14

Enquanto falava, comecei a empurrá-lo de leve para dentro d’água: - Vou pedir a seu pai para eu tomar conta de você e vamos brincar o dia inteiro, você não precisa mais ir à escola nem trabalhar nem sofrer, mas só ficar aqui em cima descansando... (...) Afundei-o de novo, com força, e o mantive debaixo d’água por mais tempo. (...) O corpo palpitante sob minha mão se relaxava, sem forças, abandonado. Dei-lhe um último empurrão e me ergui, afinal. Voltei-me sem pressa, comecei a descer a montanha.44

A ação de descer a montanha confirma que já não havia mais motivos para o seu

exílio: O encontro pusera fim à sua busca, curara seus temores e sua loucura, fizera dele uma

nova e única pessoa. O seu menino não mais existia e isso fazia dele, agora, um homem.

O homem feito.

3 – O MENINO NO ESPELHO

Da mesma forma como em “O homem feito”, O menino no espelho também é

narrado em primeira pessoa por um narrador-protagonista, que utiliza vários tempos verbais.

Bem no princípio do prólogo, utiliza o pretérito imperfeito, para falar dos dias de chuva na

sua infância e das goteiras do telhado da sua casa. Este recurso passa ao leitor uma sensação

de nostalgia, causado pelo aspecto de duração do tempo verbal. Além disso, cria o efeito de

suspense necessário para introdução do enredo:

Passado o temporal, meu pai subia ao forro da casa pelo alçapão, o mesmo que usávamos como entrada para a reunião da nossa sociedade secreta. Depois de examinar o telhado, descia, aborrecido. Não conseguia descobrir sequer uma telha quebrada, por onde pudesse penetrar tanta água da chuva, como invariavelmente acontecia. Um mistério a mais, naquela casa cheia de mistérios. O maior, porém, ainda estava por se manifestar.45

No parágrafo seguinte, o narrador passa ao enredo, propriamente dito. Deste ponto

em diante e até o final do prólogo, utilizará o pretérito perfeito, que demonstra a intenção de

localizar o momento exato do tempo narrativo. Narra um dia específico da sua infância:

“Naquele dia” - diz ele, reforçando esta afirmação - após uma dessas chuvas, estava ele

distraído brincando com poças d’água e formigas quando ouviu uma voz familiar:

44 SABINO, Fernando – “O homem feito” in A vida real, pp 109 e 110. 45 SABINO, Fernando – O menino no espelho. – Rio de Janeiro: Record, 1982 – p 14. Obs.: todos os excertos serão retirados desta edição.

15

- Que é que você está fazendo? Sem me voltar, tão entretido estava com as formigas, expliquei o que se passava. (...) O homem se

agachou a meu lado, dizendo que várias formigas seguiam por um caminho, uma na frente de duas, uma atrás de duas, uma no meio de duas. E perguntou:

- Quantas formigas eram? (...) Então perguntei a ele o que é que cai em pé e corre deitado (...) - Você sabe o que é que caindo no chão não quebra e caindo n’água quebra?46

Era um homem desconhecido para o menino, mas com o qual simpatizou

imediatamente:

Gostei daquele homem: ele sabia uma porção de coisas que eu também sabia. Ficamos conversando um tempão, sentados na beirada da caixa de areia, como dois amigos, embora ele fosse cinqüenta anos mais velho do que eu, segundo me disse. Não parecia. Eu também lhe contei uma porção de coisas.47

Embora a impressão de que quem narra neste momento é uma criança, o narrador é

o mesmo adulto falando, do seu presente narrativo, a respeito do seu passado. Seu presente

narrativo, portanto, se localiza no futuro deste encontro entre o menino e o homem

desconhecido, citado nos trechos acima. O trecho seguinte confirma que o narrador seja um

adulto, falando do futuro daquele momento:

O homem disse que tinha de ir embora – antes queria me ensinar uma coisa muito importante: -Você quer conhecer o segredo de ser um menino feliz para o resto da sua vida? - Quero – respondi. O segredo se resumia em três palavras, que ele pronunciou com intensidade, mãos nos meus ombros e olhos nos meus olhos: - Pense nos outros. Na hora achei aquele segredo meio sem graça. Só bem mais tarde vim a entender o conselho que tantas vezes na vida deixei de cumprir. Mas que sempre deu certo quando me lembrei de segui-lo, fazendo-me feliz como um menino. O homem se curvou para me beijar na testa, se despedindo: - Quem é você? – perguntei ainda. Ele se limitou a sorrir, depois disse adeus com um aceno e foi-se embora para sempre.48

Este “foi-se embora para sempre” é conclusivo para a afirmação feita a respeito do

narrador.

46 SABINO, Fernando – O menino no espelho, p 16. 47 Idem, p 16. 48 SABINO, Fernando – O menino no espelho, pp 17 e 18.

16

Além da introdução ao enredo e das apresentações dos protagonistas e do narrador,

o prólogo tem, ainda, uma função muito importante a desempenhar. Em um trecho de meio

parágrafo, apresenta o resumo completo de mais de dois terços do livro, grande fração situada

entre as páginas 19 e 191 e dela se excluem, apenas, o próprio prólogo e o epílogo. Nestes

dois terços do romance, o mesmo narrador-protagonista adulto conta as aventuras da sua

infância, e estão resumidos assim:

Eu também contei uma porção de coisas. Falei da minha galinha Fernanda, nos milagres que um dia andei fazendo, e de como aprendi a voar como os pássaros, e a minha aventura de escoteiro perdido na selva, as espionagens e investigações da sociedade Olho de Gato, o sósia que retirei do espelho, O Birica, valentão da minha escola, o dia em que me sagrei campeão de futebol, o meu primeiro amor, o capitão Patifaria, a passarinhada que Mariana e eu soltamos. Pena que minha amiga não estivesse ali, para que ele a conhecesse.49

Estas são as aventuras principais narradas durante o decorrer dos dez capítulos que

rechearão o romance. Estas aventuras e estes capítulos são articulados de forma que possam

ser lidos coletiva ou individualmente. Os capítulos podem ser excluídos do corpo do livro sem

nenhuma perda notável para a coerência do enredo. Podem, inclusive, ser totalmente

excluídos, pois o enredo principal está centralizado no prólogo e no epílogo. Existe, porém,

uma intertextualidade que se fará importante para que esta exclusão não mereça ser

executada, como será visto a frente.

A análise de um dos capítulos ajudará na compreensão da estrutura atemporal

criada por Fernando Sabino para o romance. É o capítulo II, “O canivetinho vermelho”. O

personagem Fernando vai ao cinema, como estava acostumado a fazer toda semana:

Era uma história esquisita, meio difícil de entender, passada na Inglaterra: a de um homem que fazia milagres. Estavam ele e mais dois companheiros num bar, discutindo sobre a existência ou não de milagres. Depois que os outros foram embora, o homem, já meio tonto de tanta cerveja que havia tomado, levanta a cabeça tombada na mesa e fala, apontando o lustre do bar:50 -Milagre para mim é se esse lustre virasse de cabeça para baixo. Na mesma hora o lustre vira de cabeça para baixo.51

49 Idem, pp 16 e 17. 50 É neste trecho que se inicia o fenômeno que nesta monografia será chamado de lapso temporal. 51 SABINO, Fernando – O menino no espelho, p 38.

17

E o homem dos milagres sai à rua, apoiado à sua bengala, até que ela fica presa

num bueiro, como se fosse uma árvore: “Pois que vire logo uma árvore” – ordena. Na mesma

hora a bengala se transforma numa árvore. Neste momento, um guarda aparece e quer prendê-

lo por vadiagem. O bêbado se livra com um safanão: “Vá para o inferno!”. Ao ver o policial

voando pelos ares, ele corrige: “Para o inferno não! Para a Califórnia!”. O filme mostra uma

confusão no trânsito de Los Angeles, cidade da Califórnia, nos E.U.A., e o guarda britânico

perdido no meio dos automóveis. Segue-se uma série de peripécias, até que o homem,

cansado dos milagres, decide:

- Que tudo volte a ser como era antes do primeiro milagre! Na mesma hora ele se vê no bar, levantando a cabeça da mesa (sic) e olhando para o lustre: - Milagre para mim é se aquele lustre virasse de cabeça para baixo. O lustre continua imóvel, sem se mexer. E o filme acaba.52

Este foi o primeiro lapso temporal desenhado no romance e foi vivido por um

personagem de um filme de cinema, que o menino acompanhou. Em seguida, o próprio

menino vivenciará o mesmo fenômeno:

- Apaga essa luz que eu quero dormir. Era o Toninho. Dormíamos no mesmo quarto. Mais velho do que eu, já estudava no turno da manhã, tinha de acordar cedo. Era assim quase toda noite: eu gostava de ler antes de dormir, e ele pedindo que apagasse a luz. O botão ficava perto da minha cama. E então aconteceu. A luz se apagou sozinha, quando olhei para ela como fez o homem no filme e experimentei ordenar que se apagasse. Não precisei pronunciar uma única palavra: foi só pensar e ela se apagou.53

Aqui, um novo lapso temporal se inicia. O funcionamento do fenômeno pode ser

assim resumido: em um momento qualquer, um círculo atemporal se inicia e, depois de um

determinado decorrer de tempo, as pessoas envolvidas retornam ao ponto original, ou ao

começo daquele círculo, como se todas as situações ocorridas naquele espaço de tempo não

houvessem demorado mais que uma ínfima fração de segundo para se realizarem. Ou ainda,

que tudo o que tenha acontecido durante o lapso temporal, deixe dúvidas sobre sua existência,

lance suspeitas de que tudo não passasse de um sonho, um devaneio.

Com o apagar da luz, Fernando penetra no seu lapso temporal:

52 Idem, pp 40 e 41. 53 SABINO, Fernando – O menino no espelho , p 41.

18

Toninho, virado para o outro lado, não chegou a perceber nada. Certamente achou que eu me levantei e fui até a parede apagar a luz, como fazia sempre. Fiquei deslumbrado: quer dizer que eu também podia fazer milagres! Para tirar qualquer dúvida, ordenei mentalmente que a luz acendesse de novo. E ela acendeu. - Que brincadeira é essa? (...) Fica acendendo e apagando a luz! Apaga de uma vez! Para que ele não desconfiasse, tornei a apagar a luz, desta vez por mim mesmo, sem milagre nenhum. Nem voltei para a cama. De pé, no escuro, mandei que a noite acabasse e o dia nascesse de uma vez. E vi pela janela o céu começar a clarear rapidamente, o sol subindo no horizonte como um balão. Toninho se ergueu na cama, esfregando os olhos: - Puxa, como eu dormi! Já deve ser tarde, vai ver que perdi a hora.54 Durante quinze páginas, Fernando utilizará seus poderes em vários milagres e

aventuras, inclusive para conhecer seus heróis: Tarzan – o homem-macaco e Mandrake – o

mágico.

Da sua visita a Mandrake, trouxe uma lembrança: “- Meta a mão na cartola, que

tem uma coisa para você. - fiz como ele mandava e tirei da cartola um canivetinho

vermelho”.55 Seu lapso temporal termina após uma visita ao Sítio do Pica-pau Amarelo:

-É a lei da gravidade. É só acabar com ela, para ver o que acontece. Não era propriamente uma ordem, nem mesmo um pedido de milagre, mas soou como se fosse. E de repente Pedrinho à minha frente, eu, Narizinho na varanda, a varanda, o sítio inteiro com a Emília, o Visconde, o Marquês, a Dona Benta, a tia Anastácia (sic)56, as árvores, as casas, tudo saiu voando pelos ares como numa tremenda ventania. Me lembrei (sic) do filme sobre o homem que fazia milagres e, entre duas cambalhotas, mal tive tempo de fazer como ele, pedir depressa para acabar com aquilo, voltar ao que era antes dos milagres. -Apague essa luz que eu quero dormir. Era a voz do Toninho. Abri os olhos e vi que eu estava na cama, pronto para dormir. Olhei intensamente para a luz e mandei que ela se apagasse. Nada aconteceu. Então, fui até lá e apertei o botão. Voltei para a cama e em pouco tempo estava dormindo.57

Como foi dito, é possível duvidar da veracidade dos fatos acontecidos durante o

lapso temporal, na ausência de provas concretas que os atestem. Por isso, o narrador trata de

incluir um elemento fantástico para induzir, ainda mais, o leitor à dúvida:

“Ao acordar, mal me lembrei dos milagres, senão de maneira confusa, como se

tudo não tivesse passado de um sonho. Mas depois de vestir a roupa, ao meter a mão no bolso

da calça, encontrei um objeto, retirei para ver: era um canivetinho vermelho.”58

54 Idem, pp 41 e 42. 55 SABINO, Fernando – O menino no espelho, p 54. 56 O nome correto da personagem de Monteiro Lobato é tia Nastácia, quituteira e ama do Sítio do Pica-pau Amarelo. 57 Idem, p 56.

19

A narrativa das aventuras se encerra após a descrição de um bando de pássaros que

voavam em círculos sobre as cabeças de Fernando e sua amiga Mariana:

Rodopiavam no ar como uma guirlanda de pequeninos seres alados, girândola vinda do céu para nos abençoar com a sua gratidão. Rodaram várias vezes e depois o círculo se desfez, e seguiram todos em linha reta, afastando-se como uma nuvem multicor até desaparecer em direção ao infinito.59

Depois deste final, inicia-se a etapa do epílogo.

O narrador, também protagonista, é um escritor flagrado no momento em que se

levanta para um descanso. O tempo verbal utilizado é o presente do indicativo, que localiza o

tempo narrativo no presente ficcional: “Paro de escrever, levanto os olhos do papel (sic) para

o relógio de parede: cinco horas. As sonoras pancadas começam a soar uma a uma, como

antigamente em nossa casa”.60 O parágrafo imediatamente seguinte demonstra que a obra

abandonada, temporariamente, pelo personagem escritor é a mesma encerrada há pouco, na

atual análise, ou seja, é aquele corpo que pode ser destacado do romance, o “recheio” formado

pelas aventuras do menino: “Já contei várias proezas, aventuras, peripécias, tropelias (e

algumas lorotas) do tempo em que eu era menino.” – para prosseguir acrescentando

informações metalingüísticas que envolverão cada vez mais os protagonistas, os narradores e

as diferentes estruturas narrativas utilizadas nas três fases do romance (o prólogo, os capítulos

e o epílogo): “Nada se compara ao mistério que eu trouxe da infância e que até hoje me

intriga: quem era aquele desconhecido que um dia, depois da chuva, foi conversar comigo no

fundo do quintal?”61. Mistério, este, comum a duas etapas da narrativa, o que localiza o

encontro atemporal entre o adulto e o menino como o conflito principal dentro da obra. Mais

ainda: o encontro entre o escritor ficcional e o seu passado, manifestado por meio de um lapso

temporal, idêntico aos outros dois, criados por ele na obra de sua autoria, dentro da outra obra,

O menino no espelho.

O início do lapso temporal do escritor fictício Fernando se inicia no trecho

Cansado de tantas recordações, afasto-me do relógio e caminho até a janela, olho para fora.

58 Ibidem, p 56. 59 Ibidem, p 191. 60 SABINO, Fernando – O menino no espelho, p 193. 61 Idem, p 194.

20

Assombrado, em vez de ver os costumeiros edifícios, cujos fundos dão para o meu apartamento em Ipanema, o que vejo é uma mangueira – a mangueira do quintal de minha casa, em Belo Horizonte. (...) Daqui da minha janela posso avistar todo o quintal, como antigamente: a caixa de areia que um dia transformei numa piscina, (...) Volto-me para dentro e descubro que já não estou na sala do meu apartamento, mas no meu quarto de menino: a minha cama e a do Toninho, o armário de cujo espelho um dia se destacou um menino igual a mim... 62

e segue descrevendo todo o roteiro já registrado nas duas etapas anteriores a este epílogo,

além do trecho comovente em que fala dos seus pais: “Saio para a sala. Vejo meus pais

conversando de mãos dadas no sofá, como costumavam fazer todas as tardes, antes do jantar.

Comovido, dirijo-me a eles: - Papai... Mamãe...”.

É apresentado, na seqüência, um elemento que tem função textual semelhante ao

canivetinho vermelho, ferramentas utilizadas para confundir o leitor, não para que ele duvide

da veracidade do lapso temporal, mas antes, que desconfie da sua inveracidade, que acredite

terem existidos, realmente, os fatos narrados: e este detalhe é que, ninguém, além do menino

e do cão Hindemburgo, consegue notar sua presença: “Papai... Mamãe... Mas eles não me

vêem. Nem parecem ter-me ouvido, como se eu não existisse.”; “Atravesso a cozinha, vendo

a Alzira a remexer em suas panelas, sem tomar conhecimento da minha existência”.63 Sobre

este detalhe: no prólogo o autor se cerca de cuidados para não deixar dúvidas a este respeito: o

menino se lamenta que Mariana não estivesse ali, no momento do encontro; o coelho Pastoff

está ocupado com uma cenoura; o papagaio Godofredo não dá o menor sinal de ter percebido

a presença da visita. Mesmo no epílogo, este cuidado existe, descrito de forma a eliminar

argumentos contra a veracidade da existência do encontro:

Na hora pensei que fosse algum amigo da família, ou até um parente: um velho primo ou tio que eu não conhecesse. Cheguei, mesmo, a achar que ele se parecia um pouquinho com meu pai – mas foi só impressão: quando perguntei quem ele era, papai me disse que não tinha a menor idéia, pois nem chegou a vê-lo. Minha mãe também não soube dizer. Muito menos o Gerson ou o Toninho.”64 Note-se que a mãe e os irmãos não negam ter visto o homem, mas também não

afirmam. O comentário da empregada, no mesmo parágrafo, acrescenta ainda mais dúvidas:

“A Alzira se limitou a dizer que me tinha visto conversando sozinho, como eu fazia

sempre.”65

62 Ibidem, p 195. 63 SABINO, Fernando – O menino no espelho, pp 195 e 196. 64 Idem, p 194. 65 Ibidem, p 194.

21

O lapso temporal culmina, finalmente, no encontro entre os dois Fernandos, o

menino e o adulto: “Desço a escada para o quintal e dou com um garotinho agachado junto a

poças d’água da chuva que caiu há pouco, entretido com formigas. Dirijo-me a ele, e ficamos

conversando algum tempo.”66

Por esta versão contada pelo narrador do epílogo, poderia ser feita uma leitura na

qual o menino fosse outro qualquer, da mesma forma que uma leitura apenas pelo foco

narrativo do prólogo também sugere que o homem poderia ser outro qualquer. Mas, a

intertextualidade exigida pelo conjunto do romance, que mescla as três fases – prólogo,

capítulos e epílogo – explicita que, embora os capítulos possam ser suprimidos, como foi

comentado no início desta análise, cada uma das fases complementa, justifica e completa a

outra, em busca da afirmação já feita, na mesma análise, de que os protagonistas são as

mesmas pessoas. Eles residem, porém, em momentos temporais diversos. Estes momentos se

confrontam quando do encontro ocasionado pelo lapso temporal que, por sua vez, também

servirá como amálgama para unificar o enredo e dar unidade ao romance.

Finalmente, o lapso temporal chega ao final, no momento subseqüente à conversa

do adulto com a criança. A criança passa à narrativa das suas aventuras, enquanto o homem se

despede e refaz o caminho de volta ao seu quarto, vai até a janela e olha para fora: “O que

vejo agora é a paisagem de sempre, o fundo dos edifícios voltados para mim, iluminados pelas

luzes do entardecer em Ipanema.”67

Se o romance terminasse neste momento, poderia ficar a impressão de que o

personagem-escritor pudesse ter, realmente, viajado no tempo, através de um portal

misterioso ou de uma máquina do tempo maravilhosa, típicos da ficção científica. Mas,

confirmando a receita do lapso temporal e justificando a inserção do fenômeno anteriormente,

nas aventuras do pequeno Fernando, temos o elemento de digressão, responsável pela

localização exata do aspecto de duração da narração: as pancadas do relógio.

Toda a narrativa se deteve no breve espaço localizado durante a marcação do

horário das cinco: a primeira pancada, provavelmente, fora responsável pelo fato de o escritor

haver parado de escrever, no primeiro parágrafo do epílogo: “Paro de escrever, levanto os

66 SABINO, Fernando – O menino no espelho, p 196. 67 Idem, p 196.

22

olhos do papel para o relógio de parede: cinco horas. As sonoras pancadas começam a soar

(...).”68

Enquanto as badaladas se sucedem, ele atravessa o corredor, passa por seus pais,

pela cozinheira, desce a escada, se encontra com o garotinho, ouve toda a história das suas

aventuras69 e o aconselha., despede-se e refaz o caminho até a janela. Neste instante é que soa

a última das cinco badaladas: “Ouço o relógio soando a última pancada das cinco horas.” – e

da mesma forma como nos lapsos temporais anteriores, retorna ao início do círculo atemporal:

“Viro-me, e me vejo de novo no meu apartamento.” - pronto para retomar sua tarefa de

escrever: “Caminho até a mesa, debruço-me sobre a máquina que abandonei há instantes. Leio

as últimas palavras escritas no papel”, - que são as mesmas palavras que encerram o parágrafo

final das aventuras contadas na etapa dos capítulos: “... até desaparecer em direção ao

infinito.”

E, num gesto que resume toda a atemporalidade presente no romance, escreve a

palavra que encerrará, simultaneamente, as histórias que o narrador-protagonista, Fernando,

contava a respeito de sua infância, o romance que o autor ficcional da obra dentro da obra,

Fernando, escrevia naquele momento e o próprio romance O menino no espelho, no qual o

autor real, Fernando, parece querer se inserir:

“FIM”

4 – AS DUAS PRODUÇÕES

Em O tabuleiro de damas, Fernando Sabino reconhece que pretendia, à época em

que escreveu a novela “O homem feito” surpreender suas emoções e sentimentos vividos

durante o sono, por isso, utilizou um sonho no qual afogava o menino que fora para conseguir

estabelecer seus rumos e decidir seu destino de adulto: “Queria me apanhar dormindo e

penetrar no mistério de alguns sonhos para, através deles, descobrir o que se ocultava atrás da

realidade”.70

68 SABINO, Fernando – O menino no espelho, p 193. 69 Logicamente, este “ouvir a história” é uma sugestão de seqüência linear de leitura, proposta pelo autor no prólogo e utilizada como efeito estilístico e de enredo, uma vez que as aventuras são reminiscências da própria infância do narrador e, por isso, mesmo, possíveis de serem apenas recordadas por ele, durante o seu lapso temporal. 70 SABINO, Fernando - O tabuleiro de damas – Rio de janeiro: Record, 1988 – p 28.

23

E, segundo ele, embora consciente de que havia coisas mais sérias para tratar, “se

conseguíssemos recuperar o menino (...) vivo dentro de nós, nos entenderíamos muito mais.

Haveria mais paz e alegria se os homens voltassem a ser meninos”. 71

Lembrando que ele escrevia aquela novela de dentro do Modernismo, quando o

mundo vivia o momento conturbado do pós-guerra, é possível deduzir que os conflitos

narrados naquela história tenham a ver com a procura da identidade pessoal que se buscava

naquela época, ainda mais quando se lembra que ele era um jovem interiorano que escrevia,

ainda, em Belo Horizonte. O fato é que o desfecho da narrativa não poderia ser outro, para

aquele Fernando Sabino, a não ser a morte da criança, afinal, era latente àquela altura que o

homem moderno, a espécie humana, não tinha caminho de retorno e quem não se adaptasse a

esta nova realidade estaria fora dela e seria obrigado, na sua sandice, a viver num mundo

insano e incivilizado, fosse no alto da montanha ou em outro lugar fora de si.

Avaliando pelo aspecto característico de Fernando Sabino, ou seja, o

autobiográfico, é útil sua própria auto-análise, ainda n’O tabuleiro de damas:

Se eu fizer um levantamento de minha vida literária, vejo que em tudo que escrevo, não tenho feito outra coisa senão me revelar, me expor, contar aquilo que vivi, que testemunhei, que pensei, que aconteceu e chegou ao meu conhecimento – sempre visto através da minha maneira de imaginar, de recriar a realidade.72

Com esta avaliação, ele mesmo começa a definir os encontros descritos na novela:

do adulto com o menino - retratando a desilusão e a frustração de não ter conseguido alterar

os rumos da sua existência; do menino com o adulto num outro momento – quando, o contato

do que ele é com aquilo que ele será faz prever que decisões importantes e definitivas devem

ser tomadas durante o norteamento da sua condição humana; finalmente, é a busca do

encontro do escritor jovem, com tudo aquilo que ele poderia esperar da sua carreira.

A confissão, dentro do Tabuleiro de damas, da condição autobiográfica em “O

homem feito” faz crer que o encontro, ali descrito, fosse um momento de crise do escritor em

início de carreira e que fosse hora dele repensar o que planejava, naquele momento, para sua

vida, pessoal e artística. Esta observação fica ainda mais clara vinda do homem maduro que

revisitava seu passado e sua obra, em O tabuleiro de damas.

71 Idem, p 29. 72 Ibidem , p 42.

24

É possível acreditar que naquele jovem escritor dos anos 1940 estivesse um

homem pronto para receber influências das mais diversas, provenientes, por exemplo, da

ficção científica,73 visto que esta forma de criação artística foi comum na fase inicial da

corrida espacial, que se dava naquele momento,74 quando os meios artísticos imaginavam as

viagens atemporais e sonhavam com “máquinas do tempo”, descritas em aventuras de Buck

Rogers e Flash Gordon, mais exatamente nos quadrinhos, naqueles anos 1940 e 1950,

especificamente, e em seriados da televisão norte-americana, como Terra de Gigantes e O

Túnel do Tempo, um pouco mais tarde, entrados os anos 1960.75

Como foi visto em “O homem feito” e em O menino no espelho, em ambas

existem a alusão às viagens no tempo e a situação dos encontros atemporais; a realidade e o

presente subjetivos, entrecortados pelo passado e pelo futuro.

A passagem inexorável do tempo é, enfim, a grande causadora da angústia do

autor, representada em seus personagens: a eternidade é o tempo caminhando para a

eternidade, como proposto pelos círculos atemporais dos lapsos temporais, em O menino no

espelho.

A propósito, esta discussão filosófica de Fernando Sabino ainda não estava

amadurecida o suficiente em “O homem feito”, o que pode ser percebido no decorrer do texto

que, embora possua um enredo intrincado e que, àquela época, impressionava pela novidade

do sobrenatural, manifestado nos encontros virtuais e atemporais dos protagonistas, fossem

eles reais ou psicológicos, apresenta algumas imperfeições (ou, pelo menos, inconsistências)

de ordem técnica, relacionadas ao encadeamento do enredo e à clareza textual.

73 O gênero ficção científica foi estabelecido por volta de 1926. Um dos responsáveis pela sua divulgação foi Hugo Gersnback, editor da revista norte-americana Amazing Stories, que criou o nome pelo qual foi difundido: scientifiction, que derivou em science fiction. O gênero é dividido, basicamente, em hard e soft. O estilo soft remete às ciências humanas, como a sociologia, a antropologia, a história e a psicanálise. Tende a valorizar a postura científica, enquanto ao outro só interesse os assuntos ligados à tecnologia. Suas narrativas especulam em torno de temas humanistas como a morte, o sexo e O ENCONTRO COM O OUTRO. Disponível em < http://www.intempol.com.br/upload%5CAPPLICATION262.pdf> acesso em 30/05/2006. 74 As origens da ficção científica proviriam “(...) de fontes como a literatura utópica exemplificada por Thomas More e Johnatan Swift; dos scientific romances ingleses, com Mary Shelley e H.G. Wells; do romantismo de Charles Baudelaire e Arthur Rimbaud; das voyages extraordinaires, também francesas, da qual o principal expoente foi Julio Verne; e mesmo de certa literatura gótica norte-americana, na qual se destaca Edgar Allan Poe (...)” Idem. 75 Além de sugerirem a idéia de encontros atemporais, esses novos formatos de linguagem (como as HQs), aliás, podem ter influenciado vários autores, dentre os quais Fernando Sabino, na escolha do gênero que utilizariam nas suas criações literárias: as de narrativas curtas. Quase na mesma época, nos anos 1940, autores como Monteiro Lobato, com O choque das raças e Érico Veríssimo, com Viagem à aurora do mundo já faziam suas incursões no território atemporal.

25

Fica difícil explicar, por exemplo, a presença do capítulo X, “As lavadeiras”, e a

aventura que o narrador insinua haver existido entre o protagonista e uma das lavadeiras,

adolescente de treze anos. A única explicação plausível é a de que o protagonista, naquela

situação, seja o Luís criança, ao invés do Luís adulto. Mesmo com esta explicação, faltam

elementos claros para esta afirmação.76

No afã de não deixar furos no enredo produz um texto por demais explicado, como

na passagem “Em sucessivas incursões à cidade próxima, trouxera um rifle, um catre, alguns

objetos de uso e provisão para muitos meses.”77 Querendo, evidentemente, esclarecer que,

embora eremita, possuía recursos para sobreviver ao abandono do lugar, afinal, nem tão

abandonado assim. Essas explicações detalhadas tornam a literatura muito “mastigada”, que

o afasta do seu pretenso estilo erudito.

Noutro momento:

Quando, porém, nuvens inesperadas baixavam ao redor do monte, estendendo-se aos meus pés feito um mar, era como se o mundo houvesse desaparecido e só eu restasse, testemunha do naufrágio. Olhava com prazer as nuvens dóceis e me lembrava das formas fantásticas que elas assumiam quando em criança me deitava no chão para melhor contemplá-las. No dia em que, em vez de baixarem o morro, o envolveram de todos os lados, vi-me de súbito como um deus cego girando tonto à procura da cabana, esperando que um passo falso me precipitasse no abismo. A idéia de estar dentro de uma nuvem me perturbava como se eu tivesse vivido todos esses anos apenas para realizar o que sonhara na infância. Por um momento ela se esgarçou e distingui o vulto da cabana, mais perto do que imaginara. Contudo, não pude avançar; pareceu-me ver, alguns passos à minha frente, a figura de um menino de seis ou sete anos olhando-me curioso... No primeiro instante o susto me paralisou, mas quando vi que ele fugia, saí em seu encalço. Logo as nuvens se adensaram entre nós e nada mais pude ver.78

o texto causa uma certa confusão ao abandonar o plural “nuvens” pelo seu singular “nuvem”

e retomá-lo novamente sem motivos justificáveis. No mesmo parágrafo introduz a

informação do sonho de criança abruptamente, sem nenhum referente anterior, ou seja, sem

preparação, quebrando o formato altamente descritivo que o texto adotava até então.

Ainda neste trecho, fica difícil o entendimento do que seja “um deus cego girando

à procura da cabana, esperando que um passo em falso me precipitasse no abismo”. Ou “ela

se esgarçou”, cujo “ela” pode, por engano, ser auferido à cabana ao invés de à nuvem. “O

vulto” da cabana, que por sua vez pode ser confundido como sendo do menino. E por que a

figura de um menino pôde impedi-lo de avançar? Além disso, em dois casos utiliza a ênclise 76 “O homem feito”, in A vida real - pp 105 a 107. 77 “O homem feito” in A vida real - p 72. 78 “O homem feito” in A vida real, p 72 e 73.

26

quando o melhor, segundo o estilo erudito adotado, seria a próclise: “...estendendo-se aos

meus pés...” e “...vi-me de súbito...”.

Deficiente, também, é seu desfecho. O conflito parece ter sido abreviado por

algum motivo. Torna-se inverossímil que, após aquele intenso conflito psicológico, o

protagonista tenha se livrado tão instantaneamente da sua aflição, ao ponto de abandonar a

montanha sem mais explicações, se for levado em consideração, novamente, o teor didático

que o texto assumia até determinada altura da trama.

Na época da produção desta novela, sob o ponto de vista técnico, Fernando Sabino

ainda desenvolvia seu estilo de escrever. Sua preocupação com o cânone estava, ainda, muito

acentuada.

Em “O homem feito”, essas preocupações ficam, muitas vezes, evidentes demais.

Um exemplo disso é a opção pelo pretérito mais-que-perfeito durante boa parte da narrativa,

muito embora possam os puristas argumentar que, àquela época, este tempo verbal fosse de

uso comum, pelo menos na literatura. Que os puristas não esqueçam, porém, que o

Modernismo já existia.

Outra demonstração canônica nesta novela é sua escolha pelo narrador em

primeira pessoa e o pacto firmado com o leitor, numa acepção tradicional de que os

acontecimentos narrados pertencem ao passado da sua voz, marcando constantemente a

indicação da anterioridade da narrativa, porquanto uma narração que possibilitasse uma

leitura sob o prisma do menino proporcionasse, ou melhor, necessitasse da anulação ou

suspensão, em determinados momentos, dessa marcação de anterioridade. Com isso, a leitura

psicológica para a qual o texto quer encaminhar o leitor, e que foi aqui sugerida, tornaria a

interpretação, ao mesmo tempo que mais fluida, também mais sutil, favorecendo uma

elaboração mais requintada do texto.

Logo quando Fernando Sabino despontou para a literatura, Mário de Andrade

demonstrou interesse por ele. Começaram, então, uma troca de correspondências, que foi a

grande influência estilística para o jovem escritor. Nas suas primeiras considerações, o papa

do modernismo brasileiro, como Mário passou a ser conhecido, já chamava a atenção de

Fernando Sabino para esta “ganância estética” exacerbada. A preocupação com a erudição e

com o estilo, observadas na pesquisa estética elaborada pelo novo escritor, deixava as novelas

de A vida real, em certos aspectos, “pesadas”, tornando seu enredo e sua fluência carregados,

arrastados. Isto lhe rendeu alguns “puxões de orelha” por parte de seu mentor, registrados em

27

Cartas a um jovem escritor.79 Para ele, com estes recursos, Fernando Sabino mais parecia

querer assegurar um lugar na posteridade.

Mais tarde, o próprio Sabino reconhecerá esse erro e acrescentará: “que me

interessa a posteridade, porém, se já estarei morto? De repente eu me percebi como um idiota

que se enfeitava todo para uma festa que, afinal, não haveria.”.80

Fernando Sabino escreveu e publicou o romance O menino no espelho do alto dos

seus cinqüenta e nove anos de experiência, o que lhe deu autoridade para recuperar o

importante tema, o encontro, iniciado trinta anos antes em “O homem feito”, de uma maneira

mais concisa.

A história ainda é narrada em primeira pessoa. O narrador, entretanto, é mais

experimental do que o seu antecessor e isto lhe possibilita uma independência maior, dentro

da trama. Esta liberdade gera um efeito de verossimilhança natural ao enredo, muito embora,

pela análise aqui apresentada, tenha ficado claro que, diferentemente do que sugira uma

leitura despretensiosa, linear, o enredo seja muito elaborado e sofisticado.

O efeito de verossimilhança natural acima referido é aquele toque sutil dos grandes

mestres, que facilita e possibilita a vários tipos de leitores, como o público infantil, por

exemplo, se encantar, se divertir, se emocionar e refletir com o texto.

Enquanto na novela o aspecto principal seja o da rudeza, influenciado por leituras

de Baudelaire e Victor Hugo, que segundo suas correspondências com Mário de Andrade, o

autor fazia à época, no romance o que se destaca é o tom sentimental, nostálgico, carregando

como principal aspecto, a singeleza. Agora ele era influenciado por ele mesmo e sua

experiência de vida própria.

Destas leituras comparativas e críticas observou-se, portanto, uma flagrante

evolução estilística de Fernando Sabino, de uma para outra das obras analisadas. Apesar de

todo o valor que aquele primeiro texto pôde exercer para a sua carreira, é do segundo que

emanam as considerações mais importantes, baseadas nos aspectos ressaltados pelo atual

estudo e nos comentários expostos nesta monografia.

Do romance é possível apreender um conselho que resumiria tudo o que o autor

Fernando Sabino quis dizer aos seus personagens em crise. Esse conselho seria,

79 ANDRADE, Mário de – Cartas a um jovem escritor / de Mário de Andrade a Fernando Sabino – Rio de Janeiro: 3ª ed. Record, 1993. 80 SABINO, Fernando, 1923 - Fernando Sabino/ seleção de textos, notas, estudos biográfico, histórico e crítico e exercícios por Flora Christina Bender. – São Paulo: Abril Educação, 1981. (Literatura Comentada) – p 10.

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provavelmente, o mesmo que ele daria a si próprio, caso pudesse voltar no tempo para se

auto-aconselhar: “Pense nos outros”.81

Não é difícil aceitar esta afirmação, pois em vários lugares Fernando Sabino

deixou indícios deste conselho. Numa passagem de O encontro marcado, por exemplo, o

personagem principal, Eduardo Marciano, tem uma conversa com um padre, diretor do seu

colégio, que lhe diz as seguintes palavras: “Você precisa perder esse hábito de responder.

Precisa aprender a ouvir, quando os outros falam.(...) Limite-se a responder o que lhe for

perguntado.”82. É o mesmo conselho, dito de forma diferente. O detalhe primordial reside em

que Fernando Sabino, com cinqüenta e nove anos, estava auto-suficiente o bastante para fazer

essa afirmação. Era capaz de decidir, inclusive, o seu próprio epitáfio, já citado anteriormente.

Por tudo isso é que a conclusão se encaminha para a afirmação de que foi com O

menino no espelho que Fernando Sabino iniciou a terceira fase do seu encontro pessoal. As

três fases serão expostas adiante, nas considerações finais.

5 – O AUTOR E SEUS ENCONTROS

Fernando Sabino, numa determinada circunstância da sua vida, decidiu pela não-

publicação tempestiva de Os movimentos simulados. Foi por volta deste mesmo momento

que se iniciou aquela que seria sua grande dúvida: poderia sua capacidade inventiva

sobreviver ao tempo, não se esgotar rapidamente?

O grande encontro da sua vida literária, e por que não dizer da sua vida inteira (em

2004 ele já estava à beira da morte), foi a publicação tardia daquele livro83, em cuja última

capa, pode-se ler o seguinte texto:

Ao terminar a leitura dos originais deste seu romance escrito aos 22 anos de idade, o autor daria tudo para saber a opinião dos três melhores amigos da sua vida inteira. Ao segundo uísque, resolveu interpelá-los na eternidade onde se encontram: - Você, Otto, não acha que devo publicar o livro tal como está, sem modificar nada? Otto Lara Rezende concordou, mas discordando, como era de seu feitio: - Você tem razão. Só acho que talvez seja o caso de fazer no texto uma cuidadosa revisão... - E você, Hélio? Hélio Pellegrino não perdeu tempo em reagir, lá dos espaços etéreos, naquele jeito todo seu: - Cuidadosa revisão coisa nenhuma! O livro não é seu, Fernando, e sim de um rapaz de 22 anos que você foi e não é mais. Acho que tem de publicar tal e qual, sem tirar nem pôr!

81 SABINO, Fernando - O menino no espelho – Rio de Janeiro: 4ª ed. Record, 1982 – p 17. 82 _________ - O encontro marcado – Rio de Janeiro: 75ª ed. Record, 2004 - p 39. 83 Tardia em termos, pois, afinal, como afirmar que esta não fosse a sua real intenção?

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Paulo Mendes Campos continuava calado, tomando o seu uisquezinho. Mas, interpelado pelo autor seu amigo, acabou confessando, para si mesmo: - Não digo nada, estou arrasado, na maior inveja. Quem me dera ter uma obra minha escrita pelo jovem de 22 anos que eu fui e nunca mais serei.84

Analisando as publicações mais recentes do autor - Livro aberto, onde reunia as

suas “páginas soltas ao longo do tempo”, e Cartas perto do coração, sua correspondência

mantida com Clarice Lispector, ambos de 2001; Cartas na mesa e a correspondência mantida

com seus melhores amigos da vida inteira (Otto Lara Resende, Hélio Pellegrino e Paulo

Mendes Campos), 2002; finalmente, a última publicação, Os movimentos simulados. – todos

foram divulgados como sua “obra póstuma antecipada”, com a intenção de que não fossem

publicadas após sua morte. E enquanto ele a aguardava a própria (sua morte), tratava de

realizar seu encontro real, que uniria as duas pontas da sua vida de autor - a sua infância com

sua madureza literárias - e tudo aquilo que da sua existência lhe foi possível apreender.

Durante toda sua produção escrita, literária ou não, uma das características de

Fernando Sabino foi recriar, reescrever, reeditar, compilar, ampliar e reduzir aquilo que já

havia escrito antes. Por isso, normalmente, fica difícil catalogar sua obra. Muitas vezes, o

leitor se depara com um texto que lhe soa familiar, embora nunca tenha lido aquele livro.

Esse déja-vu é freqüente quando do contato com sua literatura. É possível, até,

acreditar que este recurso seja uma forma de encontro, que o escritor tenha definido para sua

carreira.

Se, num dado momento de sua vida, algumas escolhas foram tentativas de

enfrentar suas dúvidas e angústias e as cobranças que lhe eram feitas, com a madureza essas

escolhas passaram a ser respostas definitivas para suas dificuldades. Por isso, a sua decisão de

lançar obras, na forma de romances, apenas depois de já haver quase esgotado a capacidade

de utilização, até mesmo comercial, daqueles escritos no formato de narrativas curtas. É

evidente que o lançamento desses romances não impediu que os textos fossem desmembrados

e reaproveitados novamente, dependendo da sua necessidade, vontade ou interesse

particulares.

6 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nunca é demais lembrar que, na mesma época de Fernando Sabino, escreviam

Herberto Sales, José Cândido de Carvalho, Osman Lins, Autran Dourado, Clarice Lispector,

84 Contra-capa de Os movimentos simulados - Rio de Janeiro: Record, 2004.

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Samuel Rawet, Dalton Trevisan, J. J. Veiga, José Louzeiro, Luiz Vilela, Jorge Medauar,

Rubem Fonseca, José Edson Gomes, Louzada Filho. Lembrar que na mesma época surgia a

poesia concreta, com Décio Pignatari, Haroldo e Augusto de Campos, Ferreira Gullar, José

Lino Grunewald, Reinaldo Jardim, Ronaldo Azeredo, Edgard Braga, Pedro Xisto. Era

inventada a Poesia-práxis e o Poema-processo, com Mário Chamie e Wlademir Dias Pino. E

lembrar a poesia de João Cabral de Melo Neto, lembrar a fase de renovação e experimentação

que atravessava a literatura brasileira, lembrar dos que vieram pouco antes ou pouco depois.

Lembrar, ainda, que Fernando Sabino não era o único escritor mineiro, e dentre os demais

existia, especialmente, Guimarães Rosa, que lhe dizia para não escrever biscoitos, mas

escrever pirâmides.85

Fernando Sabino, tiradas as suas pretensões literárias iniciais, em determinado

momento, descobriu que biscoitos podiam ser menores, mas não eram piores que pirâmides e

nem eram dispensáveis para a humanidade, tanto quanto elas: “Quando li Dostoiévski pensei

em desistir, porque ele já tinha escrito tudo o que eu queria escrever. Você percebe então, que

tem alguma coisa a dizer que é pequenina, um biscoitinho, mas que vale tanto quanto a

pirâmide dos outros, porque é sua. É a sua visão de mundo.”86

Aceitou a idéia de que, em algum lugar, existiam pessoas que não sobreviveriam

sem biscoitos.87

E, para um escritor, aceitar a realidade de que a grande maioria das grandes coisas

que necessita e pretende escrever já foi escrito, seja por mãos como as de Dostoiévski,

Tolstói, Karl May, Garcia Lorca, Artur de Azevedo ou Guimarães Rosa, não é algo fácil de

ser aceito.

Por isso, o seu encontro, num primeiro momento, ou no momento da sua

juventude, era a angústia da sua condição humana em busca de uma resposta que, ali ele

acreditava, nunca viria. Eram as suas crises existenciais focadas intensamente, querendo

indicar a crise do “eu” na literatura ocidental, marcadas nele pelos ensaios filosóficos de Jean

Paul Sartre ou pelo catolicismo de Georges Bernanos, como está indicado no romance O

encontro marcado. 85 Esta história, a dos biscoitos e pirâmides, foi contada por Fernando Sabino em sua entrevista à Biblioteca Pública do Paraná, em 24 de junho de 1985, p 16. 86 Idem, p 23. 87 Segundo Fábio Lucas, autor de “A ficção de Fernando Sabino e Autran Dourado” (1983), incorporado como prefácio de Obra reunida, da Editora Nova Aguilar, “não foi nada ocasional o fato de ter traduzido Gustave Flaubert e Henry James, escritores dos escritores”.

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Numa outra fase, a fase adulta, o encontro assume uma dimensão reflexiva,

disfarçada em narrativas curtas, sejam contos, crônicas ou, simplesmente, histórias, baseadas

em experiências do seu dia-a-dia e publicadas em jornais e revistas, como Folha de São Paulo

e Veja e reunidas depois nas suas várias antologias, como “O galo músico”.88

Finalmente, o encontro em sua vida e sua literatura, assume dimensões de

redenção, de libertação: o momento em que ele já não precisava se preocupar com engajament

ou escolas e escolhas literárias, e nem em escrever os trinta, cinqüenta, noventa, ou quantos

anos fossem, dele ou dos seus leitores. Ele já percebera, então, que seus biscoitos eram

importantes e saborosos. Era possível fazer uma pilha do tamanho de uma pirâmide com

aqueles biscoitos, dada a quantidade (e, por que não, a qualidade?) daquilo que ele havia

produzido até ali.

Este foi o momento crucial da sua produção literária: ele era Fernando Sabino,

assim como Machado era Machado e Shakespeare era Shakespeare. Podia abandonar a busca

frenética pela perfeição estilística e outras cobranças que ele próprio se fazia constantemente,

até há pouco.

Pela liberdade estilística que assume no romance aqui analisado, pela fluência

técnica e pela proximidade que o texto exprime com o bom humor e o lirismo sutil, quase

camuflado, que Fernando Sabino costumou utilizar nos seus contos e crônicas,89 é possível a

afirmação de que a partir desta obra se inicia a sua terceira fase de encontro.

O encontro do escritor com seus escritos, muitas vezes deixados esquecidos dentro

das gavetas, como foi feito com O grande mentecapto, abandonado durante trinta e três anos,

e Os movimentos simulados, durante quase sessenta anos, assunto já tratado aqui.

88 SABINO, Fernando - O galo músico –Rio de Janeiro: 2ª ed. Record, 1998. 89 Sugestões de leituras para esta constatação: Texto bem humorado: “A nudez da verdade” in Aqui estamos todos nus. – Rio de Janeiro: Record, 1993. Texto lírico: “A última crônica” in No fim dá certo. – Rio de Janeiro: Record, 1998.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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1967.

ANDRADE, Mário de – Cartas a um jovem escritor / de Mário de Andrade a Fernando

Sabino – Rio de Janeiro: 3ª ed. Record, 1993.

COUTINHO, Afrânio – A literatura no Brasil – Rio de Janeiro: José Olympio, 1986.

JOUVE, Vincent – A leitura; tradução Brigitte Hervor - São Paulo: Editora Unesp, 2002.

LUFT, Celso Pedro - Dicionário de Literatura Brasileira e Portuguesa - Porto Alegre: Globo,

1973.

NUNES, Benedito – O tempo na narrativa – São Paulo: 2ª ed. Editora Ática, 1995.

SABINO, Fernando – Fernando Sabino / seleção de textos, notas, estudos biográfico,

histórico e crítico e exercícios por Flora Christina Bender. – São Paulo: Abril Educação,

1981 - (Literatura Comentada).

________________ - Cronologia biográfica. Minas Gerais. Suplemento Literário – Belo

Horizonte, 893:11, 1983.

________________ - O grande mentecapto – Rio de Janeiro: 23ª ed. Record, 1984.

________________ - O menino no espelho – Rio de Janeiro: 4ª ed. Record, 1982.

________________ - O galo músico –Rio de Janeiro: 2ª ed. Record, 1998.

________________ - “O homem feito” in A vida real – Rio de Janeiro: Editora do Autor,

1952.

________________ - O encontro marcado – Rio de Janeiro: 75ª ed. Record, 2004.

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________________ - O tabuleiro de damas – Rio de Janeiro: Record, 1988.

________________ - Os movimentos simulados – Rio de Janeiro: Record, 2004.

________________ - Um escritor na biblioteca: Fernando Sabino, Curitiba, BPP/SECE,

1985 – 32 p.

WERNECK, Humberto – O desatino da rapaziada: jornalistas e escritores em Minas Gerais

/ Humberto Werneck. – São Paulo: Cia. das Letras, 1992.

<http://www.releituras.com/fsabino_bio.asp> acesso em 28 mai 2006.

<http://www.intempol.com.br/upload%5CAPPLICATION262.pdf> acesso em 30 mai 2006.