encarte especial viagem À nhande ru marangatu 274.pdf · vale postal em nome de cimi-porantim ......

16
Povo Guarani durante Aty Guasu - Dourados (MS) - Foto: Egon Heck ISSN 0102-0625 Ano XXVI N 0 274 Brasília-DF Abril-2005 R$ 3,00 Abril indígena: mobilizações, luta e acampamento Página 5 A resistência indígena por Blanca Chancoso Páginas 12 e 13 ENCARTE ESPECIAL ENCARTE ESPECIAL VIAGEM À NHANDE RU MARANGATU VIAGEM À NHANDE RU MARANGATU VIAGEM À NHANDE RU MARANGATU

Upload: trandat

Post on 26-Jan-2019

228 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: ENCARTE ESPECIAL VIAGEM À NHANDE RU MARANGATU 274.pdf · vale postal em nome de CIMI-PORANTIM ... Registro nº 4, Port. 48.920, Cartório do 2º Ofício ... ainda foi à tribuna

Povo

Gua

rani

dur

ante

Aty

Gua

su -

Dour

ados

(MS)

- Fo

to: E

gon

Heck

ISSN

010

2-06

25

Ano XXVI • N0 274 • Brasília-DF • Abril-2005R$ 3,00

Abril indígena: mobilizações,luta e acampamento

Página 5

A resistência indígenapor Blanca Chancoso

Páginas 12 e 13

ENCARTE ESPECIALENCARTE ESPECIAL

VIAGEM ÀNHANDE RUMARANGATU

VIAGEM ÀNHANDE RUMARANGATU

VIAGEM ÀNHANDE RUMARANGATU

Page 2: ENCARTE ESPECIAL VIAGEM À NHANDE RU MARANGATU 274.pdf · vale postal em nome de CIMI-PORANTIM ... Registro nº 4, Port. 48.920, Cartório do 2º Ofício ... ainda foi à tribuna

2Abril - 2005

FFFFFaça sua assinatura,aça sua assinatura,aça sua assinatura,aça sua assinatura,aça sua assinatura,enviando cheque ou

vale postal em nome deCIMI-PORANTIM

PREÇOSPREÇOSPREÇOSPREÇOSPREÇOS:

Ass. anual: Ass. anual: Ass. anual: Ass. anual: Ass. anual: R$ 30,00

Ass. de apoio: Ass. de apoio: Ass. de apoio: Ass. de apoio: Ass. de apoio: R$ 50,00

América latina: América latina: América latina: América latina: América latina: US$ 25,00

Outros POutros POutros POutros POutros Países: aíses: aíses: aíses: aíses: US$ 40,00

Edição fechada em 12/04/2005

PPPPPublicação do Conselho Indigenistaublicação do Conselho Indigenistaublicação do Conselho Indigenistaublicação do Conselho Indigenistaublicação do Conselho IndigenistaMissionário (Cimi), órgão anexo àMissionário (Cimi), órgão anexo àMissionário (Cimi), órgão anexo àMissionário (Cimi), órgão anexo àMissionário (Cimi), órgão anexo à

Conferência Nacional dos Bispos do BrasilConferência Nacional dos Bispos do BrasilConferência Nacional dos Bispos do BrasilConferência Nacional dos Bispos do BrasilConferência Nacional dos Bispos do Brasil(CNBB).(CNBB).(CNBB).(CNBB).(CNBB).

Na língua da naçãoindígena Sateré-Mawé,

PORANTIMsignifica remo, arma,

memória.

Dom GianfrancoDom GianfrancoDom GianfrancoDom GianfrancoDom GianfrancoMasserdottiMasserdottiMasserdottiMasserdottiMasserdottiPRESIDENTE

Cristiano NavarroCristiano NavarroCristiano NavarroCristiano NavarroCristiano NavarroRP 32374/144/35/SP

EDITOR

Redatora:PPPPPriscila Driscila Driscila Driscila Driscila D. Carvalho. Carvalho. Carvalho. Carvalho. Carvalho

CONSELHO DE REDCONSELHO DE REDCONSELHO DE REDCONSELHO DE REDCONSELHO DE REDAÇÃOAÇÃOAÇÃOAÇÃOAÇÃOAntônio C. Queiroz

Benedito PreziaEgon Heck

Nello RuffaldiPaulo Guimarães

Paulo MaldosPaulo Suess

Editoração eletrônica:Editoração eletrônica:Editoração eletrônica:Editoração eletrônica:Editoração eletrônica:Sapiens Comunicação/

Licurgo S. Botelho(61) 248-1810

Revisão:Revisão:Revisão:Revisão:Revisão:Leda Bosi

Impressão:Impressão:Impressão:Impressão:Impressão:Gráfica Terra

(61) 225-8002

Administração:Administração:Administração:Administração:Administração:Dadir de Jesus Costa

Redação e Administração:Redação e Administração:Redação e Administração:Redação e Administração:Redação e Administração:SDS - Ed. Venâncio III, sala 310

Caixa Postal 03.679CEP 70.084-970 - Brasília-DF

TTTTTel: (61) 322-7582el: (61) 322-7582el: (61) 322-7582el: (61) 322-7582el: (61) 322-7582FFFFFax: (61) 225-9401ax: (61) 225-9401ax: (61) 225-9401ax: (61) 225-9401ax: (61) 225-9401

E-mail:E-mail:E-mail:E-mail:E-mail: [email protected] InternetCimi InternetCimi InternetCimi InternetCimi Internet: www.cimi.org.br

Registro nº 4,Port. 48.920,

Cartório do 2º Ofíciode Registro Civil - Brasília

Permitimos a reprodução de nossas matérias e artigos, desde que citada a fonte. As matérias assinadas são de responsabilidade de seus autores.

Opinião

É

Direitos indígenas sãoviolados em Santa Catarina

extremamente preocupante eangustiosa a situação vivida pe-los povos indígenas em SantaCatarina. Uma onda de absur-

dos vem sendo praticada em desfavor delideranças e dos direitos indígenas. Os trêspovos existentes no estado catarinense,Guarani, Kaingang e Xokleng têm sido víti-mas constantes. Alguns casos sãoemblemáticos e causadores de grande in-dignação e revolta.

No caso do povo Guarani, dois fatossão exemplares. Em outubro de 2003, aFunai enviou ao Ministério da Justiça o pro-cesso que visa regularizar a Terra IndígenaMorro dos Cavalos, área localizada no mu-nicípio de Palhoça. Após dezoito meses deindecisão e marasmo, o Ministério, ao in-vés de declarar a tradicionalidade da TerraIndígena, devolveu o processo, em 4 demarço de 2005, solicitando mais informa-ções à Funai. Essa atitude contraria o De-creto 1775/96 que estipula um prazo de 30dias, após o recebimento do processo paraque o Ministro decida sobre a questão.

O povo Guarani também reivindica oretorno à terra ‘Guarani do Araça’í’, locali-zada no município de Cunha Porã. Em ju-lho do ano 2000, os Guarani retomaram aterra pela qual lutam desde 1998. Com isso,em setembro, a Funai criou um grupo detrabalho para identificação e delimitação(GT) da mesma. Em outubro do mesmoano, porém, o grupo foi violentamente

ISS

N 0

102-

0625

O jornal Porantim circula em algumas bancas de jornais do Distrito Federal, ao custo unitário de R$ 3,00.

despejado de sua terra. Seus barracos fo-ram derrubados e queimados pelas Polí-cias Militar e Federal do estado. Os índi-os foram carregados em caminhões e le-vados, à força, à terra indígena Nonoai,no Rio Grande do Sul. Um Juiz Federal da1ª. Vara da Justiça Federal de Chapecó,emitiu liminar proibindo os mesmos deretornarem a Santa Catarina. Após umano, em outubro de 2001, o grupo deGuarani foi acolhido solidariamente pelopovo Kaingang da Terra Indígena ToldoChimbangue, onde se encontram proviso-riamente. O GT concluiu o relatório antro-pológico da área em março de 2004, mas,após um ano, o presidente da Funai tem senegado a assiná-lo e, com isso, identificare delimitar a área.

Os povos Xokleng e Kaingang das áre-as indígenas La Klaño e Toldo Chimbangue,respectivamente, após anos de luta, enfren-tam a incerteza e a lentidão dos processosjudiciais. Há um ano, decisões em primei-ra instância da Justiça Federal cancelaramos efeitos das portarias declaratórias desuas terras tradicionais. Os Xokleng ocu-param a Barragem Norte, na região deIbirama e Blumenau, para exigir o cum-primento de indenizações acordadas hámais de duas décadas com o governo bra-sileiro. Neste período, dezenas de indí-genas já morreram afogados na referidabarragem, que alaga boa parte da terradeste povo.

MARIOSAM

Reflexoda política

A Presidência da República, fazen-do um balanço dos seus dois anos demandato, lançou no início deste anoum encarte especial divulgando todosos seus principais feitos. Apesar deanunciar logo em sua primeira páginaque “O Brasil mudou nos últimos doisanos”, o material divulgado é pífio ereflete o que tem sido até hoje o go-verno do presidente Lula.

Em um dos capítulos mais impor-tantes, o de políticas sociais, surgemas medidas adotadas pelo governo para“O combate à desigualdade social es-teve presente em ações de saúde, edu-cação e saneamento”.

Ao se referir à política indigenistaa única ação que consta no encarte é“promoção dos jogos indígenas, emPorto Seguro, em 2004, em Palmas em2003” para “integração dos povos”.Nada de homologações. Nada no cam-po da saúde. Nada na educação.

De perseguidora presidente

Em novembro de 1980, o PadreVito Miracapillo foi expulso do Brasil apedido de um, hoje, famoso deputa-do, o presidente da Câmara, SeverinoCavalcanti. Naquela época Cavalcantianunciava que Miracapillo era um es-trangeiro que por seu trabalho “comu-nista” com os trabalhadores rurais doestado de Pernambuco trazia riscos àsoberania do País.

Não satisfeito com a expulsão dopadre, ainda foi à tribuna da Câmarapara dizer que iria pedir a expulsão deoutro lutador do povo também ligadoà igreja católica, o bispo da prelaziade São Félix do Araguaia (MT), DomPedro Casaldáliga. No entendimentodo atual presidente da Câmara,Casaldáliga era um “comunistaespanhol que age como bispo”, e, poreste motivo, deveria ser expulso doBrasil.

Porantinadas

Os Kaingang do Toldo Chimbangue,área localizada no município de Chapecó,por sua vez, no dia 21 de março, foram sur-preendidos com uma inesperada e desres-peitosa invasão da Polícia Federal em suaterra e residências. De acordo com relatodos próprios indígenas, denunciado em“Nota à Opinião Pública”, “Os policiais che-garam dando chutes e ordenando que to-dos se colocassem imóveis, na parede dacasa”. Segundo a nota, ao revistarem osKaingang, os policiais os chamavam de “ne-gros, sujos, vagabundos e vadios”. Na mes-ma data, a Polícia também teria amedron-tado um grupo de crianças, ao revistar oveículo que as conduzia. Na ação, forampresas duas lideranças. Horas depois, osmesmos conseguiram a liberdade por meiode habeas corpus.

No dia 22 de março, a Polícia Federalingressou na Terra Indígena Kaingang, Tol-do Imbú, no município de Abelardo Luz, eprendeu o cacique, Valdecir de Oliveira, emais duas lideranças. Os mesmos respon-dem a processo judicial impetrado pelo Mi-nistério Público Federal de Chapecó, emconseqüência de uma mobilização organi-zada pelos Kaingang com intuito de cha-mar a atenção das autoridades para a de-marcação de suas terras. As três lideran-ças permanecem presas. Com o processoadministrativo no Ministério da Justiça des-de de dezembro de 2002, a portariadeclaratória da área ainda não foi assina-da. Há informações de que o Ministério daJustiça está tentando reduzir em 1000 hec-tares, o que beneficiaria exclusivamenteaos fazendeiros.

Com tudo isso, fica evidente o desres-peito aos direitos dos povos indígenas.Enquanto a organização e a luta dessespovos pela garantia de seus direitos sãopunidas por medidas judiciais, em um cla-ro intuito por parte do poder local decriminalizar as lideranças, o Estado perma-nece descumprindo os preceitos constitu-cionais e administrativos que fundamentamtais direitos, sustentando a onda de absur-dos em Santa Catarina.

CimiRegional Sul

APOIADORES

UNIÃO EUROPÉIA

Page 3: ENCARTE ESPECIAL VIAGEM À NHANDE RU MARANGATU 274.pdf · vale postal em nome de CIMI-PORANTIM ... Registro nº 4, Port. 48.920, Cartório do 2º Ofício ... ainda foi à tribuna

3 Abril - 2005

Conjuntura

ÉCláudio Beirão

Assessor jurídico do Cimi

com muita mobilização e articu-lação que os povos indígenas têmconseguido fazer com que os seusdireitos sejam reconhecidos e in-

seridos na legislação do Estado brasileiro.Dois exemplos são possíveis de se demons-trar. O primeiro deles foi na AssembléiaNacional Constituinte em 1988, onde seinseriu um capítulo para os índios, comdois artigos importantes o art. 231 e art.232, além de diversos dispositivos garan-tindo aos índios os seus direitos. Todas asconquistas dos povos indígenas naquelaConstituição foram fruto de uma intensamobilização e articulação dos diversos se-guimentos do movimento indígena e enti-dades indigenistas.

Outro exemplo da importância de mo-bilizações como esta foi a ratificação daConvenção 169 da OIT (Organização Inter-nacional do Trabalho). O projeto de decre-to legislativo tramitou no Congresso Naci-onal por longos anos até que em 2002foi aprovado pelo Senado. Mesmo comessa aprovação o governo federal, já nogoverno Lula, relutou em assinar o decre-to que passasse a dar validade a essa Con-venção para fazer parte do arcabouço dalegislação brasileira. Foi preciso umamobilização muito forte por parte do mo-vimento indígena na Semana dos PovosIndígenas, em abril de 2004, em especialcom o Acampamento Terra Livre, para queo presidente da República enfim editasseo Decreto n° 5.051, de 19 de abril de 2004.

Caso contrário ainda estaríamosno aguardo dessa importan-

te decisão política dogoverno.

O Congresso Nacional e os direitos indígenas

Contudo, não é só o movimento indí-gena e as entidades indigenistas que semobilizam e fazem valer as suas reivindi-cações. Alguns setores da sociedade cha-mados de antiindígenas, por se posicio-narem contra as conquistas dos povos in-dígenas, também fazem as suas movimen-tações e conseguem colocar no CongressoNacional propostas de legislação que flu-em em sentido contrário aos direitos indí-genas já conquistados.

Ao longo do governo FHC, esses seto-res começaram a se rearticular em tornode propostas que negavam os direitos ori-ginários dos índios, principalmente aque-les relacionados à posse das terras tradici-onais e ao usufruto exclusivo das riquezasnaturais existentes nessas terras. Nos oitoanos de FHC vimos o Projeto Lei de mine-ração do senador Romero Jucá ser o carro-chefe dessa articulação pseudodesenvol-vimentista com o propósito exclusivo deexplorar as terras indígenas.

Essa era apenas uma das inúmeras pro-postas antiindígenas que tramitavam noCongresso Nacional. Mas, foi outro sena-dor de Roraima, Mozarildo Cavalcanti, quetrouxe uma novidade para impedir a de-

marcação das terras indígenas, a autoriza-ção do Poder Legislativo para que o Execu-tivo concluísse essa obrigação constituci-onal. Foi com muito esforço e mobilizaçãoque se conseguiu impedir a aprovação dafamosa PEC n° 38/99 durante o governoFHC, sempre com apoio da heróica banca-da petista no Senado.

Com a posse de Lula em 2002, acen-deu-se a esperança de que projetos comoos da bancada de Roraima fossem jogadosde vez na lata de lixo do Congresso Nacio-nal. Afinal de contas, “a candidatura Lulahavia se comprometido com o movimentoindígena em trabalhar junto ao CongressoNacional para eliminar entraves políticos,jurídicos, ideológicos e burocráticos noprocesso de demarcação de terras indíge-nas” como consta no documento de cam-panha do presidente (Compromisso com osPovos Indígenas do Brasil – Programa deGoverno 2002 Coligação Lula Presidente ,p. 13).

Infelizmente, nesse dois anos de go-verno, propostas semelhantes ao do sena-dor Mozarildo choveram na Câmara e noSenado. Com destaque para o projeto apre-sentado pelo senador Delcídio Amaral (PT-MS) que conseguiu juntar todas as propos-tas antiindígenas da bancada ruralista numsó projeto de lei. O PL n° 188/2004 tem o

claro objetivo de impedir qualquer demar-cação de terra indígena, especialmenteaquelas que estiverem em conflito – refe-rindo-se ao seu estado, Mato Grosso do Sul,praticamente todas.

Na Câmara, não é só a bancada deRoraima que prima por fazer propostascontrárias aos direitos indígenas. Em 2004o então deputado do PT do Rio de Janeiro,Lindberg Farias, apresentou um Projeto deEmenda Constitucional semelhante ao deoutros deputados e senadores, já conheci-dos como contrários aos direitos indíge-nas. Mesmo com Lindberg longe de Brasília,depois de ter sido eleito prefeito de NovaIguaçu (RJ), sua PEC continua tramitandona Câmara. Para a memória dos índios, essedeputado deixa de ser o “cara pintada”, queatuou no movimento estudantil peloimpeachment do presidente Collor, para sermais um parlamentar antiindígena.

Mas, felizmente, o movimento indíge-na não ficou parado e conseguiu estabele-cer nesse período um diálogo com setoresdo Congresso que continuam apoiando assuas “bandeiras de luta”, principalmente osparlamentares que fazem parte da FrenteParlamentar Indígena.

Outro apoio importante nessalegislatura será na Comissão de DireitosHumanos e Minorias da Câmara dos Depu-tados. Assumiram recentemente a direçãodessa comissão dois deputados. Irine Lopese Luís Couto (PT), que têm na sua históriauma atuação de solidariedade e diálogorespeitoso com o movimento indígena.

Nessa disputa, o governo federal temque abandonar essa postura cômoda de“árbitro” e assumir o seu papel constituci-onal de demarcar as terras indígenas, derespeitar e fazer respeitar os direitos ori-ginários dos povos indígenas a essas ter-ras. Essa mudança de postura deve come-çar com um chamamento a sua base parla-mentar rebelde, pois a maioria das propos-tas antiindígenas tem sua origem nessabase, por vezes em seu próprio partido.

Em 2005, o movimento indígena pre-cisará aglutinar forças para impedir de vezque as propostas antiindígenas ganhemforça no Congresso.

É sempre bom lembrar que no próxi-mo ano ocorrerão eleições para diversoscargos e a depender da postura dos gover-nos (federal e estaduais) e dos parlamen-tares (deputados e senadores) poderá sermontado um quadro de quem realmenteassume os compromissos com os povosindígenas ou apenas faz promessaseleitoreiras. Esse levantamento deverá serlevado às aldeias para que as comunida-des indígenas possam dar o troco nas ur-nas. Talvez, seja essa a resposta do movi-mento indígena a esses anos de esforço emobilizações.

A mobilizaçãona esplanadadosministérios,em abril de2004, é umaprova de quesó com luta omovimentoindígena podefazer adiferença

Fotos: Navarro

Page 4: ENCARTE ESPECIAL VIAGEM À NHANDE RU MARANGATU 274.pdf · vale postal em nome de CIMI-PORANTIM ... Registro nº 4, Port. 48.920, Cartório do 2º Ofício ... ainda foi à tribuna

4Abril - 2005

Entrevista

N

Brasil de Fato - Que balanço o senhor fazda política indigenista do governo Lula?

Dom Franco Masserdotti – Nosso ba-lanço não é positivo. Eu diria que existeuma continuidade, até agora, daquilo quejá estava acontecendo no governoFernando Henrique Cardoso. Tínhamosconfiado muito na possibilidade de umamudança, inclusive com base nas promes-sas de campanha de Lula. Nos primeirosmeses de 2003, encaminhamos ao Minis-tério da Justiça um miniprojeto para con-cretizar algumas idéias que o próprio Lula,em campanha, havia apresentado. Reforça-mos nossa visão a respeito da necessidadede fazer da questão indígena uma ocasiãopara uma nova política de democraciaparticipativa.

BF - O Cimi defende o fim da FundaçãoNacional do Índio (Funai)?

Dom Masserdotti – A Funai podia serrepensada não mais como um organismovinculado ao Ministério da Justiça, mascomo braço executivo das políticasindigenistas, que seriam pensadas e plane-jadas por meio da participação popular.Haveria um conselho superior das políti-cas indigenistas com representantes dogoverno, dos povos indígenas e das enti-dades indigenistas e interessadas. Isso con-fluiria depois nesse conselho superior daspolíticas indigenistas. Quando apresenta-mos essa proposta, até fomos bem recebi-dos, ouvimos elogios. Mas, depois, nuncamais fomos consultados.

BF – O projeto foi engavetado?Dom Masserdotti – Sem dúvida. Não é

que pretendessemos que o nosso projetofosse aprovado, mas que pelo menos todaa problemática fosse reexaminada, entras-se no debate político, levando em contatambém o fato de que isso fazia parte dacampanha política do candidato Lula. Po-rém, praticamente, isso deu em nada.

BF – A criação desse conselho é uma su-gestão do Cimi, apoiado pelos movimentosindígenas?

Dom Masserdotti – É uma sugestãonossa, mas já estava embutida nas própri-as propostas políticas da campanha eleito-ral do Lula. Era uma tentativa de concreti-zar aquilo que estava sendo previsto emlinhas gerais. Entre os povos indígenas,hoje, o clima é de total decepção, porquenão aconteceu nada daquilo que se espe-rava. A minha impressão é que há uma di-ferença entre o atual governo e os anterio-res: o diálogo é muito mais fácil. Porém,esse diálogo termina em nada. Quer dizer,nascem novas promessas, mas não se che-ga a qualquer conclusão.

BF – Isso vale para a situação da terraindígena Raposa/Serra do Sol, em Roraima?

Dom Masserdotti – Se o presidenteassinar o decreto de homologação, semdúvida vai abrir as portas para outras ho-mologações que estão emperradas. O pro-blema é que não temos sinais de que issopossa acontecer. Dias atrás, o ministro daJustiça, Márcio Thomaz Bastos, prometeumais uma vez que o decreto seria assina-do. De novo, mais uma promessa.

BF – Por que essa recusa em assinar ahomologação da Raposa/ Serra do Sol. Háempecilhos políticos?

Dom Masserdotti – Eu acho que a ra-zão da recusa é simbólica. É paradigmáticadaquilo que, também, provoca recusa emoutros lugares no resto do Brasil, no senti-do de que o governo é bastante vacilantee está cada vez mais direcionado a forçaspolíticas contrárias aos povos indígenas. O

Lula foi eleito, mas a maioria das bancadasparlamentares não está de acordo com oprograma apresentado em campanha. Sãoforças contraditórias na coalizão que dásustentação ao governo e que, às vezes,são um pouco oportunistas. Para mim, émuito esquisito conviver numa mesma co-alizão siglas tão opostas como o Partidodos Trabalhadores e o Partido Liberal.

BF – Como o senhor avalia essas alian-ças políticas em nome da governabilidade?

Dom Masserdotti – A grande heresiado governo é o fato de que em nome dagovernabilidade não se governa. Em nomeda governabilidade não se avança. Eu achoque o Lula é refém dos poderes econômi-cos e políticos locais e centrais, quecondicionam demais as políticas econômi-cas do governo e o desenvolvimento depolíticas sociais mais audaciosas. Sempreacreditei que o poder econômico – querdizer, quem detém os meios de produção– condiciona a política de um país. É isso oque está acontecendo. Mas eu gostaria

também de fazer uma outra observação: aeleição do Lula tinha criado um caminhoum pouco milagreiro. Temos um presiden-te que é do povo, então ele vai resolvertodos os nossos problemas. Acontece que,na história, nunca se deu uma democraciade cima para baixo. Uma democracia é sem-pre feita de lutas populares. Por isso, é pre-ciso continuar o diálogo. Sem muita espe-rança, mas sem perder por completo a es-perança. É necessário também que, de for-ma democrática e articulada, os movimen-tos sociais e populares se juntem para fa-zer pressão social, superando pequenasdiferenças. Que possam se unir para seresse movimento de força, de pressão po-pular que vem da rua, que vem do mundorural, para realmente exigir que se realizea democracia que está dentro das normase do espírito da atual Constituição cidadã.

BF – Como seria esse movimento de con-testação ao governo?

Dom Masserdotti – Nós não queremosfazer uma contestação ao governo, no sen-tido de querer derrubar Lula, sonhando umoutro governo que possa fazer melhor pe-las causas populares. A gente sabe muitobem que não é por aí. Um cacique indíge-na lá da Bahia, eleito vereador pelo PT, dis-se que o seu partido traiu um pouco a cau-sa dos índios, mas também que no PT ain-da restaria uns 30% de petistas que amamos índios. Nos outros partidos não há nem3%. Não é dizer: “Vamos agora derrubaresse governo para construir outro que sejamais de esquerda!”. Não estamos trabalhan-do nessa perspectiva. Queremos ajudar oatual governo para que realmente ele seabra para uma visão mais corajosa, quedeixe de lado essa política tão vacilante,tão condicionada. Deixe de lado tambémaquela obsessão pela reeleição em 2006,que parece paralisar uma agenda políticado governo mais aberta ao social.

BF – Essa política de alianças partidári-as em vista da reeleição pode prejudicar ain-da mais os povos indígenas?

Dom Masserdotti – Acho que sim. Éclaro que na política a gente não deve seringênuo, mas também não é justocondicionar demais a construção de umanova democracia participativa, da atuaçãodas normas constitucionais, a esses ventosque sopram de um lado para o outro emfunção de uma reeleição. No governo Lulaforam assassinados 63 índios, a maioriadeles por problemas de conflitos de terra.Isso também é devido ao terrível fenôme-no da impunidade. Essa violência não érestrita aos povos indígenas, mas faz par-te de uma violência maior, que envolvetodo o Brasil, muito ligada à problemáticada terra. A violência no campo tem comoum dos capítulos aquela contra os índios.E se trata de um problema ainda mais

Governo vacila e o cerco político se fechaa primeira quinzenade março, em entrevistaao jornalista Paulo Lima

do Jornal Brasil de Fato, opresidente do Cimi, Dom FrancoMasserdotti (foto), analisou aatual conjuntura políticaindigenista do governo Lula eas mobilizações e reações domovimento indígena. A seguirreproduzimos os principaistrechos publicados.

“Se o presidente assinar odecreto de homologação,sem dúvida vai abrir as

portas para outrashomologações que estão

emperradas. O problema éque não temos sinais de

que isso possa acontecer”

Foto

: Arq

uivo

Cim

i

Page 5: ENCARTE ESPECIAL VIAGEM À NHANDE RU MARANGATU 274.pdf · vale postal em nome de CIMI-PORANTIM ... Registro nº 4, Port. 48.920, Cartório do 2º Ofício ... ainda foi à tribuna

5 Abril - 2005

anaus, São Paulo, Cuiabá, BeloHorizonte, Salvador por diversaspartes do País, o mês de abril serámarcado por uma protestos e

mobilizações indígenas. O momentomaior, planejado para o mês que já estásendo chamado de abril indígena, será oAcampamento “Terra Livre”, quando apro-ximadamente 600 lideranças de povos detodo o Brasil estarão reunidas em Brasília.

No último dia de Março foi lançado ummanifesto, assinado por entidades indíge-nas e indigenistas que apresentou as pers-pectivas para o Abril Indígena.

No dia do lançamento do manifesto foichamada atenção para a importância doAcampamento Terra Livre, já que foi gra-ças as pressões exercidas durante sua pri-meira versão, em abril do ano passado, queo Estado brasileiro passou a reconhecer aimportante a convenção 169 da OIT. Esteano o acampamento está com data marcadaentre 25 e 29 de abril.

O Manifesto de lançamento denunciouque o número de terras declaradas comode posse indígena é, no governo Lula, opior desde o fim do regime militar. Foramdeclaradas 13 terras indígenas nos doisanos de gestão, enquanto o governoFernando Henrique Cardoso, também in-diferente à matéria, declarou a média de14 terras indígenas por ano de mandato.“Terras Indígenas viraram moeda de trocana barganha política com governadores dealguns estados”, afirmam as entidades doFórum em Defesa dos Direitos Indígenasque assinam o texto.

As críticas são estendidas à FundaçãoNacional do Índio (Funai). “O órgãoindigenista proclama, por meio do seu pre-sidente Mércio Gomes, o ´fim das demar-cações´, cujo prazo por ele definido coin-

cide com o fim do mandato do atual go-verno. Ao mesmo tempo a Funai reduz pro-gressivamente o número de Grupos Técni-cos para identificar Terras Indígenas e serecusa a reconhecer aquelas áreasindevidamente excluídas das terras jádemarcadas”.

grave dada a particularidade em que se en-contram esses povos, pela disposição cons-titucional que exige que essas terras tradi-cionais sejam devolvidas a eles. Até agora,somente 30% das terras foram demarcadase, muitas vezes, são ameaçadas e invadi-das por garimpeiros e madeireiros. Tudoisso faz parte de uma violência mais geral.Só no Pará, epicentro da violência no mun-do rural, nos últimos 20 anos houve maisde 800 assassinatos de posseiros em con-fronto com grileiros e fazendeiros. O casoda irmã Dorothy Stang é símbolo dessa si-tuação que se torna cada vez mais grave.

BF – Como o senhor avalia a nova presi-dência na Câmara dos Deputados?

Dom Masserdotti – Parece que estáprevalecendo um corporativismo escanda-loso entre os parlamentares, e cada vezmenos é dada atenção a assuntos como oEstatuto dos Povos Indígenas, engavetadohá anos. A conjuntura atual torna mais di-

fícil a articulação em favor dos povos indí-genas e movimentos populares.

BF – A morte de crianças indígenaspor desnutrição no Mato Grosso do Sul tam-bém revela um descaso do governo e doCongresso?

Dom Masserdotti – Esses casos são aponta do iceberg que revela o mal-estar deuma sociedade que não está assumindoseus problemas com seriedade suficiente.Os povos indígenas recebem também pou-ca atenção da opinião pública. É precisoque casos como esse chamem atenção,muitas vezes do ponto de vista negativo,como no ano passado, quando houve amorte de garimpeiros em Rondônia, na re-serva Roosevelt. A imprensa caiu em cimadaquele fato, e recordo que naquele diaestávamos juntos na assembléia dos bispos,e dom Antônio Possamai (bispo da diocesede Ji-Paraná) disse: “Nós condenamos essecomportamento, mas devemos também

condenar as provocações, condenar o fatode que os Cinta-Larga eram 70 mil e foramreduzidos a 7 mil”.

BF – A retomada das terras pelo movi-mento indígena tem ganhado força nos últi-mos anos?

Dom Masserdotti – Os povos indíge-nas não estão apenas cansados de esperarpor mudanças. Eles estão vendo que estáacontecendo justamente o contrário doque eles esperavam. Um exemplo é o avan-ço do agronegócio como algo fundamen-tal para o equilíbrio da balança de paga-mentos, que se apresenta como salvaçãoda economia brasileira. O agronegócioavança, destruindo a natureza e ocupandoas áreas dos povos indígenas. Para essespovos, a terra não é apenas um lugar parao trabalho e para a sobrevivência econô-mica. É também espaço de sobrevivênciacultural, e por isso precisam de terras, ede terras que não estejam ameaçadas.

Abril indígena: mobilizações, luta e acampamento

M

“Parece que estáprevalecendo umcorporativismo

escandaloso entre osparlamentares, e cada vezmenos é dada atenção a

assuntos como o Estatutodos Povos Indígenas”

5

Representantes das entidades do Fórum dos Defesa dos Direitos dos Povos Indígenaslançam manifesto do Abril Indígena

Foto: Navarro

• que o Congresso rejeite a Propostade emenda constitucional n.º 38/1999 e oPLS n.º 188/2004 dos Senadores MozarildoCavalcante e Delcídio Amaral, bem comooutras iniciativas legislativas que visemobstruir ou impedir o reconhecimento dosterritórios indígenas. Neste sentido, pro-põe também que os direitos indígenas se-jam regulamentados dentro do Estatutodas Sociedades Indígenas e não de formaisolada.

• que o Ministro da Justiça declare ime-diatamente como de posse indígena as ter-ras: 1. Morro dos Cavalos (SC), 2. Las Casas(PA), 3. Aldeia Condá (SC), 4. Toldo Imbu(SC), 5. Piaçaguera (SP), 6. Toldo Pinhal (SC),7. Yvy-Katu (MS), 8. Cachoeirinha (MS), 9.Batelão (MT) e 10. Balaio (AM). Que a TIRaposa Serra do Sol seja homologada emárea contínua.

• que se garanta, em lei, dos mecanis-mos previstos na Convenção da Diversida-de Biológica, de repartição justa e eqüita-tiva de benefícios e anuência prévia e in-formada, para o acesso aos conhecimen-tos dos povos indígenas e das populaçõeslocais.

Relatório da AnistiaInternacional

Focado nas violações dos direitos hu-manos dos povos indígenas brasileiros, orelatório da AI, lançado no dia anterior, tra-balhou em duas frentes principais: a priva-ção dos grupos indígenas de suas terras –ocupadas ilegalmente por fazendeiros, nãodemarcadas ou apropriadas pelas forçasarmadas -, e os casos de conflitos e assas-sinatos, envolvendo os cinta larga emRondônia, os Xucuru em Pernambuco, osGuarani- Kaiowá do Mato Grosso do Sul eos Kaingang no Rio Grande do Sul.

Para a estruturação de uma políticaindigenista consistente, o documento apre-senta como propostas:

• a criação de um Conselho Nacionalde Política Indigenista com a efetiva parti-cipação indígena e da sociedade civil emsua composição.

Antes do acampamento uma série de mobilizações, protestos e debates estãoprevistas para acontecer nos mais diferentes estados.

SÃO PAULO: confraternização das comunidades indígenas em São Paulo(Pankararu, Pankararé, Fulni-ô, Atikum, Kariri-Xokó, Potiguara, Terena, Kaingang,Xavante), na favela do Real Parque, no Centro de Cultura Casulo

CUIABÁ: Semana dos Povos Indígenas a ser realizada nos dias 18 a 20 de abril,com diversas atividades concentradas no Sesc Arsenal. Ciclos de debates, galeriade vídeos, fotos e livros, exposição de acervo material, danças e rituais indígenas,pinturas corporais indígenas, contação de contos

MANAUS: representantes das organizações e comunidades indígenas encon-tram-se dia 19, na praça da Saudade, pra debates, apresentação e marcha.

BELO HORIZONTE: No Auditório das Edições Paulinas – Afonso Pena, 2.142, dodia 16 a 21, lideranças e indigenistas debatem conjuntura e o futuro do movimen-to indígena

SALVADOR: seminário indigena: “Presença, Resistência e Perspectivas”, de 26 a28 de abril de 2005, na Faculdade de Medicina da Bahia, no Terreiro de Jesus.Contará com a participação de 150 lideranças de 13 povos.

Alguns das ações previstas para Semana

Page 6: ENCARTE ESPECIAL VIAGEM À NHANDE RU MARANGATU 274.pdf · vale postal em nome de CIMI-PORANTIM ... Registro nº 4, Port. 48.920, Cartório do 2º Ofício ... ainda foi à tribuna

6Abril - 2005

O

Truká

Priscila D. CarvalhoRepórter

povo Truká vive em ilhas do rio SãoFrancisco, num arquipélago forma-do pela Ilha de Assunção e por di-versas ilhotas. O rio de água verde

é tratado por este povo com tanta intimida-de que aqui ganha outro nome: são chama-das de rio Grande e rio Pequeno as duas per-nas do São Francisco que margeiam a terraTruká.

“Na parte do rio Grande não tem caatin-ga, tem terra boa. Enchente grande cortou aterra e aí ficou a Ilha de Assunção”, conta ocacique mais antigo deste povo, JoaquimPereira da Silva, chamado de seu Quinca. Nasmargens da estrada de terra de 19 km quecorta a Ilha de ponta a ponta, a paisagem sealterna entre arroz – principal cultura destepovo e uma de suas fontes de sobrevivênciaeconômica- , o coco plantado pelos possei-ros que viveram na ilha até a década de 1990e a caatinga, com os mandacarus caracterís-ticos desta vegetação.

“Não apenas os Truká, mas todas as co-munidades que vivem às margens do rio sãodependentes de forma incondicional daságuas do São Francisco”, ressalta o missio-nário Roberto Saraiva, do Cimi.

Nas ilhas do povo Truká, ainda é possí-vel tomar água gelada do rio São Francisco.Nas tardes quentes do interior dePernambuco, a água é prontamente ofereci-da aos visitantes que passam pelas casas dosindígenas que, hospitaleiros, costumam ser-vir também café.

“No meu tempo, pra gente pegar peixeera ligeiro demais. Hoje, a senhora bota umarede, bota duas, três redes de noite e não

amanhece nenhum peixe grande. Só unspeixinhos desse tamanhozinho”, conta seuQuinca. A pesca ficou mais difícil depois daconstrução das barragens de Três Marias,Sobradinho, Xingó e Itaparica, e muitos dosantigos pescadores tiveram que ir trabalharna cidade de Cabrobó, que começa do outrolado de uma ponte que liga a ilha ao restode Pernambuco.

Neste processo, a agricultura foi toman-do o lugar da atividade pesqueira como fon-te de alimento e também como fonte de so-brevivência econômica. As razões para issonão se encontram apenas nas mudanças físi-cas ocorridas no rio, mas também no fato deos Truká terem, por muitos anos, trabalhadocomo mão-de-obra nas fazendas que invadi-ram seu território e instalaram-se dentro daIlha de Assunção. “A gente sempre foi umpovo trabalhador. Tivemos que alterar simas nossas formas de vida. O próprio desen-volvimento foi quem mais penalizou a gen-te. Então mudamos do povo que era pesca-dor e caçador para sermos agricultores”,conta Aurivan dos Santos Barros, tambémchamado de Neguinho Truká, cacique maisjovem da aldeia. “Quando Cabrobó era omaior produtor de cebola do estado, essacebola saía de dentro da ilha. Quem produ-zia aqui eram os índios, e nós éramos em-pregados dos fazendeiros”.

AgriculturaAtualmente, o rio irriga as plantações de

arroz, cebola, tomate, pimentão, milho emandioca, das quais os Truká retiram seusustento.

A maior cultura da ilha é o arroz. OsTruká contam com orgulho que são os maio-

res rizicultores de Pernambuco e que o seugrão costuma ser até 30 % maior do que amédia do arroz que vem de outros estados.Para eles, reafirmar sua capacidade de pro-dução e as quantidades produzidas é umaforma de se contrapor ao preconceito quesofrem na região. Anualmente, são cultiva-dos 2000 hectares de arroz. Cada hectareproduz cerca de 6000 kg, segundo os indí-genas. “A nossa produção alimenta a cidadee ainda dizem que a gente não faz nada”,reclama a liderança Adenilson Santos Vieira,o Dena.

O preço da saca de 60kg de arroz, quejá esteve em 45 reais, chegou a 12 reais e,no início do ano, estava em 23 reais. Segun-do os índios, o custo de produção de umasaca fica em torno de 30 reais.

Os indígenas afirmam também que alter-nam as culturas dependendo do valor demercado dos produtos. Assim, a tendência éque, neste ano, se aumente a produção decebola, por exemplo. Já em 2004 foram 1400sacas de 60 kg de cebola, plantadas em qua-se 200 hectares.

Os desafios deste povo hoje sãoviabilizar a distribuição de sua produção semdepender de intermediários e ter maquináriosuficiente para plantar, colher e beneficiar oarroz. Segundo os indígenas, todo o arrozcultivado na ilha é vendido ao único com-prador que existe na região, e que estipulao preço do grão. “Apesar de sermos os maio-res produtores do estado, nosso povo depen-de do maquinário e a mesma firma que alu-ga os tratores e as colheitadeiras compranossa produção. A gente paga 13% da pro-dução em aluguel das máquinas, mais o pes-soal pra trabalhar na colheita e na safra, eainda tem descontos pelo arroz chocho epelo arroz molhado. Só de desconto deixa-mos de 40 a 45% da produção”, calculam.

“Estamos fazendo projetos para umabeneficiadora de arroz, para podermos pro-duzir o arroz e nós mesmos ensacarmos,além de aproveitar o xerém, o puim, a mas-sa que serve pra alimentar porcos e gali-nhas”, conta a liderança Damião Pereira daSilva.

Neste ponto, os problemas dos indíge-nas se assemelham àqueles vividos pelospequenos produtores rurais: “Nas conversascom o Ministério do Desenvolvimento Agrá-rio e com outros ministérios , a gente insis-

Um povo que vive ecultiva nas margensdo rio São Francisco

“Estamos fazendo projetos para uma beneficiadora de arroz”,Damião, Líder indígena Truká, e família

O povo Truká , maior produtor de arroz do estado de Pernambuco,está preocupado com a transposição, pois depende do rio SãoFrancisco para viabilizar sua auto sustentabilidade

Foto

s: P

risci

la C

arva

lho

Page 7: ENCARTE ESPECIAL VIAGEM À NHANDE RU MARANGATU 274.pdf · vale postal em nome de CIMI-PORANTIM ... Registro nº 4, Port. 48.920, Cartório do 2º Ofício ... ainda foi à tribuna

7 Abril - 2005

te na necessidade que o nosso povo tem demaquinário. Aqui, na época de safra, a genteusa 15 a 20 tratores por dia”, diz Dena.

Outro ponto central para a estabilidadeda economia deste povo é o acesso ao crédi-to. Os problemas com capital para a produ-ção foram agravados pelas enchentes de ja-neiro de 2004, que destruiu também casas eescolas. “Com as enchentes do início do anopassado, perdemos 80% da produção. O ca-pital de giro todo foi embora”, afirma a lide-rança. Os indígenas relatam dificuldades paraobterem financiamento nos bancos.

Atualmente, os Truká se organizam paraa apresentação de projetos para a CarteiraIndígena, programa do Governo Federal quedisponibiliza recursos até 10 mil, 30 mil ou50 mil reais para apoio a projetos de segu-rança alimentar e desenvolvimento susten-tável em comunidades indígenas, com focona produção sustentável de alimentos, doagroextrativismo e do artesanato. No entan-to, na longa busca deste povo por autonomia,eles ressaltam que o que querem mesmo époder ter acesso a crédito e poder pagar suasdívidas com o dinheiro da própria produção:“Nós Truká não queremos ser dependentes denenhum sistema, de fundo perdido ou de ces-tas básicas. Nós queremos condições para nosauto-sustentar e queremos ter condições depagar o crédito. Tem que ser possível pragente acessar estes créditos e tem que terinteresse em trazer o comércio aqui pragente”, diz Neguinho Truká.

Criminalizaçãodas lideranças

A terra onde hoje os Truká vivem e plan-tam voltou a ser sua através de um longoprocesso de retomadas que começou em1994. Outras duas grandes retomadas foramfeitas em 1995 e 1999, e só assim este povoconseguiu o reconhecimento de seu territó-rio, de 5769 hectares, que ainda precisa serhomologado pelo presidente da Repúblicapara ter seu processo de reconhecimentoconcluído.

Na luta pela terra, os Truká enfrentaramo poder econômico, já que retiraram os 63fazendeiros que invadiram sua terra tradici-onal. Entre os fazendeiros, havia desde pe-quenos posseiros até grandes proprietários.

Na região onde este povo vive - assimcomo acontece em todo o interior do Brasil- quem detém o poder econômico está tam-bém presente nas instâncias de administra-ção pública, como as prefeituras, e tem gran-de influência sobre o poder judiciário local.

Assim, como conseqüência de sua lutapela terra os Truká convivem com um pro-cesso de criminalização de suas lideranças.“A gente era pobre, vivia na periferia deCabrobó. Os fazendeiros não se conformamcom o fato de nós sermos os donos das ter-ras e de hoje estarmos dentro da Ilha. Temvários fazendeiros na justiça contra isso. Eeles têm influência dentro da política, da jus-tiça, da polícia e até em Recife” , conta umadas lideranças.

Nestes processos, os indígenas sãoindiciados por furtos e por formação de qua-

drilha. Segundo os Truká, não apenas as li-deranças políticas, mas até os líderes religi-osos do povo respondem a processos.

Uma das lideranças conta que respondea nove processos e que já teve quatro pri-sões preventivas decretadas. “Os processosvêm da época das retomadas das terras. Eles[os fazendeiros] alegam que a gente roubougado, que o gado deles não saiu completo.Isso não existiu, eles levaram tudo o que elestinham. Na verdade, todas essas acusaçõessão mesmo para impedir a atuação externade muitas lideranças”, afirma. “E esses pro-cessos são lentos. A Justiça daqui não teminteresse nenhum que o índio fique livre dis-

so”. Apesar de serem motivados por dispu-tas de terras e de, pela legislação brasileira,as disputas ligadas aos direitos indígenasserem de responsabilidade da Justiça Fede-ral, os processos dos Truká estão sendo tra-tados pela Justiça estadual. Esta situaçãodeixa os indígenas ainda mais expostos aosinteresses políticos e econômicos da região.

Outra ponta deste processo decriminalização está na relação que a polícia,em especial a Polícia Militar, mantém comos indígenas. “Os jovens dependem de ir àcidade não só pra estudar, mas também prase divertir, ir para uma festa ou algo assim.Quando a polícia aborda os jovens indíge-

nas, eles são marginalizados, são tratadossempre como bandidos, assaltantes. A rea-lidade é que você não pode se identificarcomo índio na cidade”, exemplifica outraliderança.

Um episódio que ocorreu na semana se-guinte à visita da reportagem do Porantimao povo Truká ajuda a ilustrar essa relaçãodifícil entre os indígenas e a polícia local. Nodia em que haveria uma reunião sobre atransposição do rio São Francisco na cidadede Cabrobó, a polícia se posicionou na cabe-ceira da ponte, revistando e exigindo docu-mentos de todos os indígenas que passavampara a cidade. Segundo os indígenas, nãohavia nenhuma explicação ou justificativapara esta atitude. (Mais sobre este episódiofoi publicado no Porantim 273, página 13).

O projeto de transposição do rio SãoFrancisco é, mais uma vez, razão para osTruká baterem de frente com os poderes eco-nômico e político. Neste caso, os indígenasestão enfrentando os planos e as vontadesnão dos poderes locais, mas do governo fe-deral. Os Truká afirmam estar decididos alutar contra a implementação da transposi-ção e têm contribuído com questionamentossobre o projeto. Junto com outros povos in-dígenas, como os vizinhos Tumbalalá, elesestiveram nas audiências públicas, em reu-niões de movimentos sociais e em encontrosde indígenas.

As reflexões contra o projeto vêm tantodas lideranças mais novas quanto dos maisvelhos. Em uma das tardes quentes dePernambuco, seu Waldemar, um anciãoTruká,contava que, na ilha, a água que irrigaarroz sai do rio e volta para o rio. “E se levara água para outro lugar onde não volte, podeser que dê problema”, diz.

Os Truká são um povo de cerca de 3.500pessoas. Em uma manhã de domingo do

mês de fevereiro, 37 lideranças discutemsoluções para a comunidade por meio deuma democracia intensa e participativa.

“Nasci e me criei com o Toré. Can-tar, dançar, beber Jurema. Maracá era daboca da noite até o amanhecer, era desábados e quartas. Encanto não se pegacom a mão. A gente se concentra naJurema e aquilo entra na cabeça e dátudo certo”, conta um livro, chamado“O índio na visão dos índios”, e queapresenta aspectos da vida dos Trukácontado por eles mesmos.

O Toré, nos Truká, costumava serrealizado às quartas-feiras e aos sába-dos, e reunia toda a comunidade. Re-centemente, depois de desavenças in-ternas, ele deixou de reunir toda a co-munidade e não tem acontecido todasas semanas.

No sábado em que a reportagem doPorantim esteve na Ilha dos Truká, hou-ve Toré na aldeia Caatinga Grande.

Quando anoiteceu, apareceram ca-deiras em frente às casas, e as pessoasque moravam mais longe foram chegan-do a pé, de bicicleta ou de caminhão. A

dança ritual aconteceu no centro da aldeia,onde fica uma casa redonda e de palha.Antes do começo do Toré, seu AntônioChico, o contra-mestre, prepara a Jurema,bebida amarga que faz parte do ritual e queé servida durante o Toré.

A dança começa no início da noite edura até que a comunidade canse.

Há muitos adultos, mas o que chama aatenção é o fato da presença de pelo me-nos 25 crianças. Seguindo os pais, tios eavós, as crianças aprendem a dançar e acantar as músicas.

A presença das crianças contrasta coma pouca participação dos jovens na dança. Adiversão deles, como afirmou uma das lide-ranças Truká, está mais ligada à vida da ci-

dade, que freqüentam diariamente parair à escola, já que as escolas que existemdentro da ilha – com trabalho de educa-ção diferenciada – têm turmas apenas atéa 4a série do ensino fundamental.

Mas muitos jovens também estãopreocupados em conhecer mais a orga-nização do povo Truká e sua história deluta e resistência. Está se formando, naterra Truká, um grupo de jovens inte-ressados em discutir e atuar na vida dacomunidade. No próximo encontro des-te grupo, programado para abril, as dis-cussões serão sobre um dos assuntosmais emergenciais para este povo nes-te momento, a transposição do SãoFrancisco.

Toré reúnecrianças e adultos

Seu AntônioChico, contra-mestre Truka,serve Juremadurante ritual

Page 8: ENCARTE ESPECIAL VIAGEM À NHANDE RU MARANGATU 274.pdf · vale postal em nome de CIMI-PORANTIM ... Registro nº 4, Port. 48.920, Cartório do 2º Ofício ... ainda foi à tribuna

8Abril - 2005

AOs debates e as propostas

Os depoimentos e debates foram marca-dos por forte emoção e determinação. Nomomento em que foi lembrada a luta da or-ganização das Aty Guasu, iniciada em 1984, equando se lembraram de tantos que tomba-ram nessa luta pela terra e pela vida Guarani,lágrimas carregadas de revolta e indignaçãorolaram pelos rostos cansados. Porém, umairresistível vontade animava a todos. Umaenergia perpassava o ambiente e as mentes,fazendo pulsar forte os corações e espíritosaguerridos. Nada os abatia. Mesmo dormin-do ao relento, tendo como travesseiro a pe-quena bolsa com um pouco de roupa e muitaesperança.

As propostas dos grupos giraram basica-mente em torno da questão da luta pela ter-ra e a questão concreta do Ñande RuMarangatu. O grupo que tratou das áreas emconflito reforçou a necessidade de criaremmaior união para poder enfrentar as crescen-tes dificuldades e as violências a que são sub-metidos na luta e retomadas de seus tekoha.Falaram que precisam discutir bem como tra-balhar juntos nas 32 áreas de conflito exis-tentes atualmente.

Com relação ao Cerro Marangatu, as po-sições foram unânimes em torno de juntaremas forças de todos os parentes Guarani e

KAIOWÁ GUARANI

Nutrindo a esperança, construmesmo de outros povos que prometeram aju-dar para evitar a expulsão. Também decidi-ram fazer pressão sobre o presidente Lulapara que homologasse a terra o quanto antes.Chegaram a sugerir a permanência (como re-féns) de todos os que vieram até a Aty Guasuno domingo, como forma de fazer com queseus direitos à terra fossem reconhecidos. Po-rém a proposta que prevaleceu foi a da ida deuma comissão indígena a Brasília para conta-tos, inclusive com o presidente da República.

Algumas das decisões e deliberações fi-caram mais internamente com os Guarani,pois foram tratados e decididos na próprialíngua.

É importante destacar a participação ex-pressiva e determinada das mulheres, que alémde prepararem comida muito gostosa, foramas que com mais radicalidade e firmeza expres-saram a decisão de lutarem até o fim, e exigi-ram igual compromisso dos aliados.

Homenagem aos lutadorese heróis de seu povo

Quando foi escolhido esse local para aGrande Assembléia tinham também em men-te homenagear e pedir a força dos seus guer-reiros que ali tombaram, especialmenteMarçal de Souza, assassinado em 25 de no-vembro de 1983, e D. Quitito que acabou

Egon D.HeckCimi – MS

ntonio João, um pequeno municí-pio na fronteira com o Paraguai,preparava-se para a festa, pois a“terra de heróis”, anunciada, co-memoraria 41 anos de sua eman-cipação. Seguindo alguns quilô-

metros por estrada de chão e muita poeira,chegamos em Campestre, lugarejo dentro daterra indígena, onde vivem menos de 30 fa-mílias de não índios e um pouco mais de 50famílias indígenas. Ali, está em lugar discre-to uma pequena cruz amarrada com arame,junto da qual cresceu um bonito pé de goia-ba. Local testemunho da morte do grande lí-der Marçal de Souza, Tupã-i. Mais alguns qui-lômetros e uma placa junto a um mata burroanuncia os invasores: Fazendas Fronteira,Barra e Morro Alto. No outro lado, na dire-ção do bonito monte, uma faixa: “Aty GuasuCerro Marangatu – Queremos nossa TerraDemarcada”. Daí até o local da Grande Reu-nião, e dos humildes casebres dos índios sãomais uns dois mil metros. Próximo à lindapaisagem do vale, o Cerro Marangatu, refe-rência histórica e sagrada desse povo. Localpropício para um grande momento.No convite estava expressa a razão da esco-lha desse local “Vamos realizar essa grande

reunião – a Aty Guasu na Terra IndígenaÑande Ru Marangatu, que foi demarcada noano passado. Nossos parentes retomaram eplantaram parte dessa terra. Por isso nosconvidaram para ver a situação e nos alimen-tar com parte da mandioca, milho e outrasplantações que estão amadurecendo. Vamostodos nos reunir nessa importante terra detantos anos de luta, e que é sagrada, poisnela estão enterrados muitos guerreiros...”De fato esse encontro teve um sabor, um jei-to e uma luz especial. A iluminação ficou porconta da lua e das estrelas, a animaçãocelebrativa por conta dos Nhanderu (caci-ques) e a expressão política por conta dosmuitos líderes e representantes das lutasorganizadas das mulheres, professores,agentes indígenas de saúde e dos mais ido-sos. Foi uma reunião especial porque o mun-do e o Brasil estavam de olho neste povo,que estava perdendo inúmeras crianças, ví-timas de uma história de invasão, saque,confinamento, exploração, destruição efome. Ela tinha um objetivo muito concretoe imediato: impedir a expulsão dos índios (aliminar de reintegração de posse tinha sidoadiada até 31 de março), exigir o reconheci-mento e regularização das terras indígenasno Mato Grosso do Sul, e, desta forma, daruma resposta e contribuição para a discus-são da desnutrição e morte das crianças.

Foto

s: E

gon

Hec

k

Page 9: ENCARTE ESPECIAL VIAGEM À NHANDE RU MARANGATU 274.pdf · vale postal em nome de CIMI-PORANTIM ... Registro nº 4, Port. 48.920, Cartório do 2º Ofício ... ainda foi à tribuna

9 Abril - 2005

havia sido derrubada. Conforme anunciouo nhanderu Getúlio Kaiowá, vamos fazerGuaxiré (ritual) para comemorar “a doraliviada”.

Todos estão convencidos de que essa foiuma vitória importante, um tempo de respi-rar, mas que a luta continua. Afinal de contasos fazendeiros, e especialmente Pio Silva eRoseli Silva estão prometendo resistir na ter-ra indígena agora homologada. Dizem só sairse pagarem a terra, e até colocaram preço:“R$ 46.500.000,00 (quarenta e seis milhões equinhentos mil reais)”.

Enquanto isso os jornais locais continu-am anunciando quase que diariamente a mor-te de mais crianças indígenas, com manche-tes como “o genocídio continua”. Apesar devermos no momento em curso quatro comis-sões buscando as causas e responsáveis poressa situação de subnutrição, fome, violên-cia e mortes – uma da Câmara de Vereadoresde Dourados, uma da Assembléia Legislativado Mato Grosso do Sul, uma na CâmaraFederal e outra no Senado – a sensação quese tem, a partir de quem acompanha o de-senrolar dos fatos dentro da realidade indí-gena, é de que se montaram vários palanquespara não chegar ao essencial, ou seja, reco-nhecer que a causa principal a ser atacada é aquestão fundiária, do reconhecimento erespeito aos territórios indígenas.

Saída de Dourados, no caminho deItaporã (pedra bonita em Guarani). Nembem acaba a cidade e uma grande placaadverte: Cuidado, Reserva Indígena. Umasérie de quebra-molas tentam evitar a ve-locidade que tem vitimado dezenas de ín-dios. Adentrando um dos ramais de acesso

às aldeias um olhar umtanto estupefato so-bre plantações desoja. “70% das planta-ções da terra aqui sãode soja. E muitos de-les são em parceriacom não índios”, co-menta alguém que nosacompanhava.

O que pode pare-cer uma grande con-tradição, é na verdadeo resultado de políti-cas desenvolvidas peloextinto Serviço deProteção ao Índio edepois Funai, que fa-vorecendo alguns quedemonstravam maio-

res habilidades de produção foi acentuan-do a concentração de terra e bens. Políticaessa agravada pela ação de aproveitadoresinescrupulosos. “Isso é fruto de muita vio-lência e opressão que foi instalada e esti-mulada pelos órgãos indigenistas dosdiversos governos durante muito tempo”,

uindo a união

Nos caminhosdas aldeias

morrendo em Coroa Vermelha-BA dia 19 deabril de 2000, quando participava da Marchae Conferência Indígena.

Por isso o ritual de encerramento da AtyGuasu foi ao redor do local em que tombouMarçal, alvejado pelos tiros dos jagunços amando de alguns fazendeiros da região. Foicomovente o sentir da presença do espíritolutador, ajudando superar a dor enquantoestimulava a continuar na luta. Foi feito umforte apelo para que os jovens conheçam, sin-tam e vivam essa história de luta e esse tes-temunho.

Homologação: festejando avitória – a luta continua

Enquanto uma comissão indígena estavaem Brasília, e uma campanha nacional e in-ternacional de cartas a Lula estava em curso,eis que chega a notícia alvissareira – o presi-dente da República, naquele final do dia 28de março, assinara a homologação de ÑandeRu Marangatu. Os 230 líderes indígenas reu-nidos em Dourados, dentre os quais a pro-fessora Léia, uma das lutadoras, foram toma-dos de grande alívio e alegria. Foi realizadoritual de felicidade à noite.

Encontrei com Léia, em Dourados. Elaestava sorridente, feliz por saber que aguilhotina que estava pesando sobre eles,

comentou uma liderança indígena. Estamosdiante de uma situação de fato, que mere-ce muita reflexão e posicionamento daspróprias comunidades.

É claro que serão oportunas reflexõescoerentes também da parte de quemapenas vê isso como uma grave distorçãoentre os índios, e alimenta igual ou piordesigualdade na nossa sociedade. Talvez,uma atitude bem coerente seria pelaerradicação da concentração de terras ecapital em nossa sociedade. Só então esta-ríamos livres da advertência bíblica:“hipócrita, só vês o cisco no olho do teuirmão e não vês a trave no teu próprioolho”. Nada de acobertar oportunismos oumalandragens. Porém, não podemos cair nosimplismo de julgar essa situação sem umacompreensão mais profunda, do ponto devista histórico e antropológico, das causasdessa realidade de hoje.

Estamos novamente diante de algo bemmais complexo do que um simples julga-mento com olhares e compreensões estra-nhos à cultura de um povo indígena. E nãoprecisamos ser antropólogos ou indige-nistas para saber que cada cultura desen-volve os melhores mecanismos possíveispara garantir a vida e harmonia de seu povo.E é, no mínimo, um desrespeito e agressãosimplesmente produzir uma avaliação e jul-gamento sem conhecer esses mecanismose explicações a partir da cosmovisão decada povo.

Um dos caciques (nhanderu ou líderreligioso) ao se referir à morte de trêscrianças de seu grupo, identificou comoprincipais sugestões para enfrentar essequadro de desnutrição e mortes, a atuaçãodo próprio governo com sua políticaassistencialista. “ Ao invés de dar comidadeviam ajudar na preparação de roças, umou dois hectares por família onde se plan-taria um pouco de cada coisa: cana, milho,batata, banana...A cesta básica acaba numasemana ou um pouco mais. Já a roça duramuito tempo e se pode ir lá e pegar comi-da quando a criança quer...” Citou tambémo trabalho nas usinas como agravante nes-sa situação de fome e desnutrição “hojequando os homens vão trabalhar na usinajá recebem um vale quinze dias antes...Aívai gastando e quando vai trabalhar a famí-lia já fica praticamente sem nada”. Tambémfalou do esforço de manter viva a culturado seu povo Guarani Kaiowá, dizendo quelamentavelmente alguns rituais e práticasestão sendo deixadas. “Já são poucos osque usam tembetá” (uma espécie de talalocalizada no lábio inferior). Até o “batis-mo do milho” (ritual por ocasião da

As saídas que vem do povomaturação do milho) já estava sendo dei-xado. Mas na semana passada fiz um aqui”,comentou um cacique.

Porém, todos se manifestaram commuita ênfase sobre a necessidade de reali-zarem as Aty Guassu (Grande Reunião dosGuarani) como momentos fortes para deci-dir as lutas e juntar as forças para garantira vida do povo. “Nós não vamos deixar nos-so maracá, nosso canto, nossa dança”. Jáum dos mais reconhecidos nhanderu da al-deia foi enfático ao falar da importância demanter e construir casas de reza pois “quan-do se plantou a casa de reza a terra já énossa”. E referiu-se à não existência aindade casa de reza no Cerro Marangatu, poisali ainda estavam com medo de seremexpulsos.

Nos caminhos da aldeia a gente vaiaprendendo e compreendendo um poucomais da vida, lutas e dramas, mas este é ape-nas mais um passo no longo caminhar pelavida desse sofrido, porém resistente e dig-no povo. Quem sabe a sociedade brasileiravenha a conhecer e ser mais solidário comos Guarani Kaiowá e todos os povos indíge-nas do Brasil e do mundo. (Egon D. Heck)

Aty Guasu, em CerroMarangatu, foi umimportante momentopara reunir as forçasantes da conquistaque veio com ahomologação da terraGuarani Kaiowá

9 Abril - 2005

Page 10: ENCARTE ESPECIAL VIAGEM À NHANDE RU MARANGATU 274.pdf · vale postal em nome de CIMI-PORANTIM ... Registro nº 4, Port. 48.920, Cartório do 2º Ofício ... ainda foi à tribuna

10Abril - 2005

L

Em debate

Sinais de crise nasaúde

O Subsistema de Saúde Indígenaapresentou graves retrocessos após a pos-se do governo Lula. A Portaria 70 editadapelo presidente da Funasa acabou com apequena autonomia administrativa con-quistada pelos distritos, passando toda aresponsabilidade para as coordenações re-gionais do órgão. Foi também revogado odispositivo que determinava a indicaçãosomente de técnicos do Ministério da Saú-de para as coordenações regionais daFunasa e as chefias dos distritos, dandoinício a um loteamento político sem pre-cedentes na gestão da saúde indígena nopaís. Cabe ressaltar que boa parte destasindicações políticas atende a interesses degrupos políticos claramente antiindígenas,com a conivência do governo federal.

Os escândalos sobre corrupção, inefi-cácia, uso político da instituição e excessode burocracia acompanham a Funasa des-de a sua criação no início do governo Collor.O Distrito Sanitário Yanomami, por exem-plo, realizou na década de noventa um con-

Autogestão na saúde indígena (II)curso em caráter de excepcionalidade, ten-do contratado mais de 400 servidores dosquais menos de 40 estavam indo para cam-po após algum tempo, conforme denúnci-as na época do Núcleo Interinstitucionalde Saúde Indígena (NISI-RR). Inúmeras au-ditorias confirmaram o mau uso de recur-

sos públicos destinadosà saúde e ao saneamen-

to básico nas áreas in-dígenas, sem que mui-tos dos envolvidostenham sido afastados.

A implantação dosDistritos Sanitários Indí-

genas, apesar das inúmeras deficiênciasque apresentaram nos últimos cinco anos,permitiu o desenvolvimento de programasde saúde com nítidas características de“Autogestão na Saúde Indígena”, não so-mente no seio de organizações indígenas,como a Coiab, Foirn, CIR, CGTT e Uni-Tefé,como também entre seus parceiros tradi-cionais, como a Diocese de Roraima queatua há 40 anos na assistência à saúde jun-to a comunidades do povo Yanomami. Osproblemas enfrentados por organizaçõesindígenas como a Uni-Acre, Cunpir e Civaja,além de outras do campo indigenista, sedevem principalmente à falta de solidarie-dade da Funasa na solução de problemasdecorrentes da situação convenial, que aca-baram gerando uma “reação em cascata”que levou à inadimplência estas organiza-ções.

Os próximos passos A Terceira Conferência Nacional de

Saúde Indígena aprovou de maneira incon-testável a opção preferencial pelas Organi-zações Indígenas no estabelecimento dasparcerias para a saúde indígena, cabendoao governo federal as iniciativas para re-gulamentar e fortalecer esta decisão. Osdesafios para a Quarta Conferência, já apro-vada para realizar-se no segundo semestrede 2005, envolvem a criação de uma Se-cretaria Especial de Saúde Indígena parauma gestão mais democrática e efetiva dosubsistema, a conquista da autonomia ad-ministrativa e financeira para os DistritosSanitários Indígenas, e o estabelecimentode um efetivo controle social em todas asinstâncias da saúde indígena.

Paulo Daniel Moraes é coordenadormédico do Projeto de Saúde do CIR emembro da coordenação da PastoralIndigenista da Diocese de Roraima.

“O Subsistema de Saúde Indígena apresentou gravesretrocessos após a posse do governo Lula. A Portaria 70,

editada pelo presidente da Funasa, acabou com apequena autonomia administrativa conquistada

pelos distritos, passando toda a responsabilidade para ascoordenações regionais do órgão”.

Paulo Daniel MoraesMédico - Assessor do CIR

ogo após a realização da Segun-da Conferência Nacional de Saú-de Indígena em 1993, fui convi-dado pelo Porantim para escre-

ver um artigo comentando a situação dasaúde indígena no país. O artigo, que saiuem forma de editorial, intitulava-se“AutoGestão na Saúde Indígena”, evo-cando uma das principais bandeiras daOrganização Mundial de Saúde - OMS des-de a década de setenta, após a Conferên-cia de Alma Ata. O Fórum Social Mundialem Porto Alegre em boa hora retomou comforça esta idéia, tão cara aos povos indíge-nas em sua luta por maior protagonismo eautonomia.

Um breve históricoA criação dos Distritos Sanitários Indí-

genas como base de um Subsistema deSaúde Indígena diferenciado e vinculado aogoverno federal foi uma das maiores con-quistas do movimento indígena no país navirada do milênio. O subsistema começoua ser efetivamente implantado no ano2000, sob a coordenação do diretor doDepartamento de Saúde Indígena da Fun-dação Nacional de Saúde - Desai/Funasa,Dr. Ubiratan Moreira.

A idéia dos Distritos Sanitários Indíge-nas nasceu por iniciativa do CIMI, nos En-contros Nacionais de Saúde que ocorriamanualmente sob a coordenação damissionária Mirthes Versiani dos Anjos,envolvendo representantes de todos osregionais e convidados de diversas insti-tuições. Inúmeros colaboradores podemser citados, instituições como a FundaçãoOsvaldo Cruz (FioCruz), Escola Paulista deMedicina (hoje Unifesp), Universidades deMinas Gerais (UFMG) e do Amazonas(Ufam), e organizações indígenas como aCoordenação das Organizações Indígenasda Amazônia Brasileira (Coiab), a Federa-ção das Organizações Indígenas do RioNegro (Foirn), e o Conselho Indígena deRoraima (CIR), entre outras.

Convém lembrar que a aprovação da“Lei Arouca”, que regulamentou o funcio-

namento do Subsistema de Saúde Indíge-na no país, só aconteceu em 1999 após umagrande pressão do movimento indígena,que culminou em uma manifestação daSexta Câmara do Ministério Público Fede-ral cobrando a omissão do governo fede-ral em assumir a sua responsabilidade cons-titucional, e reconhecendo a inconstitu-cionalidade da “municipalização” da saú-de indígena.

Em 2001 a Terceira Conferência Naci-onal de Saúde Indígena, que contou comuma expressiva participação de lideran-ças indígenas de todo o país, deliberoupela continuidade da política vigente ba-seada em uma gestão compartilhada en-tre o órgão gestor federal - a Funasa, eparcerias com Prefeituras Municipais ecom Organizações Não-Governamentais(organizações indígenas, religiosas, de en-sino ou de ação indigenista). A escolhaquanto à forma de execução das ações desaúde e os critérios de seleção das orga-nizações parceiras deveriam ser debatidose aprovados nos Conselhos Distritais deSaúde, com participação paritária de re-presentantes indígenas.

www.cimi.org.brO espaço renovado

da luta indígena

Page 11: ENCARTE ESPECIAL VIAGEM À NHANDE RU MARANGATU 274.pdf · vale postal em nome de CIMI-PORANTIM ... Registro nº 4, Port. 48.920, Cartório do 2º Ofício ... ainda foi à tribuna

11 Abril - 2005

Antônio DinizEspecial para o Porantim

o dia 8 de março, Dia Internacio-nal da Mulher, o Conic (ConselhoNacional de Igrejas Cristãs do Bra-sil) em parceria com diversas en-

tidades civis brasileiras – como o Cimi, aCáritas realizou em Brasília a 1a Conferênciada Paz no Brasil. O objetivo do encontro foia criação da Defensoria da Paz, órgão desti-nado a encontrar e aplicar soluções para ascausas do problema da violência: a desigual-dade, a discriminação e a exclusão.

Nas palestras e seminários foi debati-da a problemática do enraizamento ideo-lógico de uma “Cultura da Guerra”, ineren-te à estrutura patriarcal vigente, em quevalores como dominação, exploração ecompetitividade geram uma sociedade vi-olenta e excludente. Com o capital suplan-tando os direitos humanos, os processosdesta ordem patriarcal intensificam a ex-clusão; seja social, política e econômica donegro, do índio ou da mulher.

J. Rosha

nquanto não sai a homologaçãoda terra indígena Raposa Serra doSol, em Roraima, os problemasfundiários vão se agravando e

nem mesmo as terras já homologadas es-capam da ação dos invasores, especialmen-te quando eles são incentivados por políti-cos e autoridades do Estado. No morro doQuiabo, localizado na terra indígena SãoMarcos, distante aproximadamente 250quilômetros da capital Boa Vista, invaso-res já estão se apossando de terrenos“loteados” por funcionários da prefeiturade Pacaraima. A invasão, porém, vai maislonge e já chega à divisa da terra indígenaRaposa Serra do Sol, também naquele mu-nicípio.

Além da invasão, outros conflitos es-tão acontecendo e podem ter desfechomais violento nos próximos dias. Na regiãode Surumu, entre as terras indígenas SãoMarcos e Raposa Serra do Sol, no dia 15passado, alunos da escola agrícola localforam ameaçados de morte por homensarmados comandados por um posseiro co-nhecido como “Ceará do Dimas”. Ele haviadestruído um roçado feito pelos alunos nasproximidades da maloca Tukuiém em no-vembro passado. Quando estes se dirigi-am para o local, encontraram o posseiro eos outros homens.

O tuxaua da aldeia São Miguel, Valterde Oliveira Level, disse estar preocupadocom impactos causados pela invasão na-quela terra indígena.

Os invasores, segundo Valter de Oli-veira, já começaram a abrir as picadasusando inclusive máquinas pesadas no lo-cal causando danos às nascentes do rioMiang. Pelo menos quatro comunidadescom uma população em torno de 300 pes-soas já estão afetadas pela poluição dorio. “No inverno – a época das chuvas na-quela região começa a partir de abril –vai ter mais problemas para a comunida-de, pois todo tipo de sujeira vai descerpelo rio”, alerta o tuxaua.

Conic e entidades propõem defensoria poruma “Cultura de Paz”

Entre os palestrantes houve unanimi-dade sobre a necessidade de um resgatedos princípios materno, amoroso e gentil,para a criação de uma sociedade partici-pativa; em que valores femininos como so-lidariedade, afetividade e sensibilidade se-jam as bases de uma “Cultura de Paz” e deum sistema socioeconômico de inclusão.“Devemos nos reconciliar com esses valo-res femininos que deixamos para trás. Sãoindissociáveis os conceitos da paz e o damulher. O conceito de meio-ambiente etodos estes valores femininos devem agirconjuntamente, ou não teremos um mun-do melhor” afirmou Alexandre Camanho deAssis, Procurador da República.

Cada vez mais ameaçado em nosso paíspelos interesses predatórios sobre os re-cursos naturais, o meio-ambiente tambémé vítima da violência. Rosane Lacerda, as-sessora jurídica do Conselho IndigenistaMissionário (Cimi), ressaltou o papel da“Cultura da Guerra” no comportamentobeligerante e arrogante no chamado pro-cesso civilizatório em seu relacionamento

distanciado e possessivocom a natureza: “Nós que vi-vemos na sociedade capita-lista temos um senso de su-perioridade, de espécie ca-paz de domar a natureza. Deque os recursos dessa natu-reza não têm valor em si, queexistem unicamente paranos servir e que podemosexplorá-los à exaustão. Nes-te caminho chegamos à dis-puta da terra detentora des-sas riquezas. Na história dahumanidade, quantas guer-ras não foram iniciadas pelatentativa de controle desses recursos?”.

O processo de colonização do conti-nente americano que se deu pela cobiçadesses recursos naturais existentes em ter-ras indígenas é um bom exemplo. A explo-ração dos recursos, vinculada com a idéiada guerra, da conquista, produziu, nestes504 anos, um verdadeiro genocídio dospovos indígenas, vistos como um entrave

ao desenvolvimento eprogresso.

Segundo Camanho,um projeto de paz sóserá implantado com oengajamento cada vezmaior dos cidadãos,conscientes dos seus de-veres com a sociedade eo meio-ambiente. “Nãoadianta invocarmos ospagamentos de impos-tos para transferirmosunicamente às autorida-des o dever de cuidar danossa saúde e do nosso

meio-ambiente.Se nós ficarmos nos utili-zando desse argumento, jamais as coisassairão dessa situação. Não podemos depo-sitar todas as nossas esperanças nas auto-ridades públicas. O mundo tem uma sériede mazelas e passamos do momento de ser-mos vítimas delas, para adotarmos ummodelo em que passamos a ser protago-nistas” concluiu Camanho.

Funai aciona MPF contra invasão em terra indígena

Esses casos foram levados ao conheci-mento do Conselho Indígena de Roraima –CIR, que informou a administração regio-nal da Fundação Nacional do Índio – Funai,em Boa Vista. Segundo o administrador doórgão, Gonçalo Teixeira dos Santos, a de-núncia foi encaminhada ao Ministério Pú-blico Federal.

Gonçalo Teixeira informou que, no fi-nal de março, enviou ao local uma equipecomposta por um chefe de posto e doisservidores do órgão, logo após a denúnciados indígenas, para uma primeira averigua-ção. Foi constatada abertura das picadas,mas os invasores não se encontravam nolocal no momento da chegada da equipe.

”Nós já encaminhamos as informações aoMinistério Público e solicitamos a partici-pação da Polícia Federal na retirada dosinvasores”, disse Gonçalo Teixeira.

O Ministério Público em Roraima faráprimeiramente um levantamento no localpara depois efetivar a ação policial, infor-mou o antropólogo Marcos Gonçalves.“Nós precisamos saber quem são essas pes-soas para depois retirar”, disse. Conformeexplicou Marcos Gonçalves, o MinistérioPúblico recebeu denúncia do loteamentono morro do Quiabo e há suspeitas de in-centivo por parte de funcionários da pre-feitura local comandada por Paulo CésarQuartieiro.

N

E

As invasõesdas terrasindígenas emRoraima,como a daterra RaposaSerra do Sol,no final doano, muitasvezes sãofeitas demaneiraviolenta

Foto

s: A

rqui

vo C

IR

Page 12: ENCARTE ESPECIAL VIAGEM À NHANDE RU MARANGATU 274.pdf · vale postal em nome de CIMI-PORANTIM ... Registro nº 4, Port. 48.920, Cartório do 2º Ofício ... ainda foi à tribuna

12Abril - 2005

O presidente Lúcio Gutiérrez foi elei-to presidente do Equador, em 2002,sendo apontado como um esquerdis-ta com grande apoio popular, prin-

cipalmente do movimento indígena, comoestá a situação política hoje no Equador?

O Equador se transformou em umquintal do senhor Bush, da política dosEstados Unidos. O país é o laboratório deuma integração, que na verdade significao submetimento do povo equatoriano àpolítica neoliberal. A dolarização da mo-eda causou o aumento da pobreza. Hámais desemprego e há mais gente saindodo país, do campo e da cidade, para bus-car trabalho. A dívida externa aumentou.O preço do petróleo subiu. Não há con-trole para onde vai o dinheiro público,então também aumentou a corrupçãogovernamental.

Definitivamente o governo está renun-ciando à soberania do país e armando umaestratégia para fazer uma entrega à políti-ca americana. Lúcio Gutiérrez nos envol-veu no Plano Colômbia, que é outra inten-ção do governo norte-americano não decombater a guerrilha, mas de se apropriardas terras, dos territórios indígenas daAmazônia, da América do Sul, para fazeruma concessão aberta às petroleiras e aapropriação das fontes de água.

Estamos vivendo uma espécie de dita-dura no Equador, pois o governo violou asnormas constitucionais e nomeou a cortesuprema de maneira irregular, e o Congres-so Nacional aceitou esta situação. Todas asinstâncias políticas regulares dos poderesdo Estado estão sendo violadas.

E isto é uma cortina de fumaça. En-quanto as pessoas estão brigando para de-fender estes espaços, o governo acelera aaceitação de tratados de livre comércio.

Como explicar as posições do presidenteLúcio Gutiérrez?

Podemos ter duas interpretações da si-tuação de Lúcio Gutierrez. Uma, de que seaproveitou da necessidade do povoequatoriano, que estava cansado de gover-nos neoliberais e que tinha esperança demudanças. Outra, é que podemos pensarque sua projeção, durante as manifesta-ções, pode ter sido preparada pelo gover-no estadunidense, pelos interesses impe-rialistas, empresariais, de colocar um ele-mento diferente para frustrar um proces-so que poderia gerar mudanças reais.

Antes das manifestações, LúcioGutiérrez não era conhecido e apareceucom um discurso muito popular, de fazermudanças, de combater a corrupção, e

contra a ALCA. Mas, no processo eleitoral,já vimos que Lúcio Gutiérrez buscou o sus-tento nos partidos tradicionais e no“senhor” Bush. Depois de ganhar, mudouseu discurso. Por esse lado fomos engana-dos. Não combate a corrupção, não hámudanças e continua a mesma política queempobrece há anos o povo equatoriano.

E o segundo aspecto para dizer que opresidente foi preparado pelo governoestadunidense é que com Lúcio Gutiérrez,na presidência, o FMI ofereceu facilmentemuito mais crédito. Ele ampliou o convê-nio militar com Bush. A escola das Améri-cas que havia no Panamá foi mudada parao Equador.

Com a quase total interferência do mer-cado internacional e empresas transnacionaisnos rumos das economias dos Países, comovocê vê as relações entre as lutas dos povosindígenas e as decisões sobre as políticas dosEstados?

O problema é que os governos não es-tão governando, converteram-se em vassalosdo governo dos Estados Unidos. São

peões. Não decidem, só cumprem ordens.Para nós, os povos, espaços como do

Fórum Social Mundial são importantes.Nestes espaços, podemos nos escutar, nosconhecer, fazer trocas. Como, por exem-plo, criar uma agenda em que possamosestar todos lutando ao mesmo tempo, paraque não seja só um povo.

Quando nós, os povos, nos levantamosem luta os governos dizem “não reconhe-cemos”. Deslegitimam ou legitimam o quefazemos. Então, nós deveríamos estar aten-tos, os povos indígenas, as mulheres, osjovens, deveríamos também ver a agendaunida. Temos pontos particulares, mas épreciso fazer com que outros setores co-nheçam a situação dos indígenas para quehaja solidariedade. Mas também temos queter solidariedade entre nós. Tem que ha-ver uma proposta política com a união detodos. Por isso temos falado na unidadena diversidade, para que se possa traçaruma política de Estado no marco daplurinacionalidade dos países. Os governostêm que ter políticas para os povos queatendam suas necessidades.

Aqui no Brasil ainda encontramos, porparte do Estado e da sociedade, muita resis-tência à participação de lideranças indíge-nas nas decisões políticas. Em outros paísesda América Latina esta participação tambémnasce como fruto de muita luta. A senhoraacredita que esta resistência tenha origem nopreconceito contra os povos indígenas?

Realmente não é fácil, com toda difi-culdade que encontramos ainda temos quelutar contra esta questão racista, de queos indígenas não sabem de política. É pre-ciso que a sociedade reconheça os indíge-nas como atores políticos também. Somosum povo que tem cultura, tem arte, masque também faz política e estamos contri-buindo. Olhando a partir desta participa-ção, temos que ter confiança e uma

Ameríndia

A resistência indígenapor Blanca Chancoso

Entre um debate e outro realizado no Puxirum – espaço indígena no V Fórum Social Mun-dial, em Porto Alegre –, o jornal Porantim teve a oportunidade de conversar com uma das

mais expressivas líderes populares da América Latina, a indígena do povo Quéchua,Blanca Chancoso.

Sempre com um tom doce e tranqüilo, Blanca, que faz parte da Conferência dasNacionalidades Indígenas do Equador (Conaie) e coordena o capítulo equatoriano doFórum Social Mundial, abordou com desenvoltura temas árduos e delicados como aintromissão do governo estadunidense na política latino-americana, a decepção das

forças populares com o governo equatoriano de Lúcio Gutiérrez e a participação e oenvolvimento do movimento indígena com partidos políticos e a administração dos Estados.

Participaram da conversa com a líder Quéchua as jornalistas Tatiana Lortiezo, PriscilaCarvalho e Cristiano Navarro.

O problema é que osgovernos não estão

governando,converteram-se em

vassalos do governo dosEstados Unidos. São

peões. Não decidem, sócumprem ordens.

Blanca: “Para nós, os povos, espaços como do Fórum Social Mundial são importantes.Nestes espaços, podemos nos escutar, nos conhecer, fazer trocas”

Foto

: Ego

n H

eck

Foto

: Nav

arro

Page 13: ENCARTE ESPECIAL VIAGEM À NHANDE RU MARANGATU 274.pdf · vale postal em nome de CIMI-PORANTIM ... Registro nº 4, Port. 48.920, Cartório do 2º Ofício ... ainda foi à tribuna

13 Abril - 2005

Agência Adital

o histórico processo de discri-minação na Guatemala, osjuízes do Décimo Tribunal deSentença Penal, condenaram

os cinco acusados de discriminação,ameaças, coação e desordem pública a38 meses de prisão. As ofensas contra alíder indígena Rigoberta Menchú foramfeitas por Elvia Morales, Ana CristinaLópez Kestler, Vilma Orellana Ruano,Enma Concepción Samayoa Roblese Juan Pablo Ríos Ramírez, neto doex-ditador Efraín Montt. Os cinco sãomembros da Frente RepublicanaGuatemalteca e seus advogados disse-ram que apelarão da sentença.

A indígena Rigoberta Menchú, prê-mio Nobel da Paz em 1992, denunciouque, no dia 9 de outubro de 2003, quan-do se apresentou a uma audiência pú-blica para se opor à inscrição de Montt,novamente, para a candidatura de Pre-sidente da República, foi vítima de ra-cismo por parte dos acusados. Expres-sões como “Vai vender tomates em LaTerminal (grande mercado da Cidade daGuatemala)” e “índia”, foram usadaspara coagir Rigoberta.

Rigoberta afirmou que, por ques-tões ética, moral e espiritual, impulsio-na a luta contra o racismo e a discrimi-nação na Guatemala, onde 60% da po-pulação é indígena. Para a tambémembaixadora da boa vontade da ONU,

exigência mútua para estarmos aliadoscom os pobres.

E entre nós, indígenas, às vezes, co-metemos o erro de pensar que não que-remos fazer política. É um grande erro,nós sempre fazemos política.

No Equador o presidente LúcioGutiérrez nomeou indígenas para cargosem ministério, estes não ficaram muitosmeses em seus cargos por discordarem deGutiérrez. Como a senhora entende estaparticipação de lideranças indígenas emcargos de poder público?

O problema da participação é queas estruturas do Estado não são as quequeremos, não são nossas, e não busca-mos isso.

Quando se entra numa disputa elei-toral e se ganha, ocupa-se o espaço doEstado. Mas este não é o espaço quebuscamos. Não se pode confundir umaestratégia cotidiana, com o que quere-mos para depois. Então, os que detêmo poder se aproveitam desta confusão.

Nós, indígenas, temos esta forma devida coletiva e, por isso, em um momen-

Saúde indígena

Recursos serãorepassados em dia

J. Rosha

e não houver contingenciamento por par-te do governo federal todos os recursosdestinados ao atendimento aos povos in-dígenas do Amazonas serão repassados

em dia. A informação foi prestada pelo assessordo Departamento de Saúde Indígena – Dsai,da Funasa, Fundação Nacional daSaúde, Edgard Dias Magalhães.

Ao longo de 2004, 11 indígenasdo povo Deni, na região do rio Juruá(sul do Amazonas), morreram devi-do à falta de assistência provocadapelo atraso no repasse dos recursosao Distrito Sanitário Especial Indígena responsá-vel pelo atendimento àquele povo. Outros povostambém ficaram sem atendimento devido tambémao atraso das parcelas dos convênios. Magalhãesdisse que todas as ações a serem desenvolvidaseste ano estão no orçamento. “A menos que hajaum severo contingenciamento pelo governo fe-deral não haverá atraso no repasse dos recursospara as organizações conveniadas”, ressaltou.

O coordenador da Funasa no Amazonas, Se-bastião de Souza Nunes, também assegura queneste ano não ocorrerão problemas como os veri-ficados no ano passado. Além de provocar inter-rupção no atendimento às aldeias que, em algunscasos, resultaram na morte de indígenas, a demorano repasse das verbas às instituições conveniadaslevou lideranças de vários povos e organizaçõesindígenas a ocupar a sede do órgão em algunsmunicípios.

Fórum - Para envolver todas as organizaçõese instituições responsáveis pela assistência à saú-de dos povos indígenas e buscar soluções para osproblemas enfrentados pelas aldeias e comunida-des, a coordenação da Funasa, do Amazonas, irápromover fóruns de discussão nos sete DistritosSanitários Especiais Indígenas – DSEI‘s, do esta-do, anunciou o coordenador regional do órgão.

A criação dos fóruns faz parte da nova estra-tégia da Funasa. Sebastião Nunes explica que ogoverno federal tem repassado recursos para or-ganizações e prefeituras, por meio de convênios,que muitas vezes não são aplicados corretamen-te. ”Muitas vezes os conveniados mandam os in-dígenas procurar a Funasa estando com recursosem mãos para aplicar no atendimento aos indíge-nas”, explica Nunes.

Nunes também anunciou a iniciativa para pres-tar assistência aos indígenas que moram na cida-de de Manaus. A coordenadoria regional da Funasacriou um grupo de trabalho composto por repre-sentantes da Fundação Nacional do Índio – Funai,Coordenação das Organizações Indígenas – Coiab,Fundação Estadual de Política Indigenista – Fepie organizações representativas dos povos que mo-ram em Manaus para realizar levantamento da po-pulação indígena urbana, mapeamento das famí-lias e os principais problemas enfrentados poreles. “Nossa proposta é criar um centro de apoioe referência, dirigido pelos próprios indígenas,para encaminhar os doentes ao sistema públicode saúde com toda a atenção necessária”, explicaSebastião Nunes.

Condenados os acusados dediscriminação contra Rigoberta Menchú

to acreditamos que, porque um indíge-na está lá [no poder] podemos estar to-dos lá. Mas a estrutura em que entra-mos não é nossa. Colocamos um indí-gena, mas os demais já não podem en-trar, têm que estar do lado de fora. Cri-am-se barreiras.

Precisa-se entender esta situaçãopara poder interpretar em termos polí-ticos as realidades que vivemos.

Em sua opinião quais são as maioresdificuldades e desafios para o movimentoindígena introduzir suas pautas a partirdo seu ponto de vista?

No Equador, nós construímos umaproposta política a partir dos movimen-

tos indígenas. Mas, às vezes, uma agen-da nacional, mais ampla que os indíge-nas, nos engole, não nos permite desen-volver tudo o que propomos. Temos quecontinuar discutindo esta proposta, masnão apenas os indígenas, também todosos que buscam mudanças.

Precisamos de uma mudança real,mas não podemos pensar que vai seramanhã ou daqui a um ano. É um traba-lho permanente. A nós, indígenas, noscabe um trabalho triplo. Precisamosentender a cultura do outro, porque apolítica é feita com base em uma cultu-ra que não é a indígena. Em segundolugar, as pessoas pobres, que são a mai-oria, têm que entender que somos iguaise que temos os mesmos direitos, parasermos mais solidários. E, por fim, jun-tos, precisamos buscar construir algopróprio, onde estejam todos. Há que seconstruir um mundo onde caibam mui-tos mais. Este é um processo longo, querequer um trabalho diário, e tambémuma decisão, uma esperança profunda.(editado por Cristiano Navarro)

para os povos indígenas, “uma palavracausa mais danos que uma bala”. Entreas 35 testemunhas que se apresenta-rem para declarar, há peritos em socio-logia, psicologia e outras especialida-des. Também estão dando seu testemu-nho antropólogos e lingüistas, com oobjetivo de precisar que o contexto, asexpressões e motivações dos insultos,ofensas e agressões contra Rigobertaforam racistas.

Ainda que a condenação de 32 me-ses por discriminação e seis meses pordesordem pública possa ser convertida

em um pagamento de mul-ta (75 quetzales – quase30 reais- por cada dia deprisão, 5.000 quetzales demulta e os custos proces-suais) a Fundação Rigo-berta Menchú Tum (FRMT)considera que a sentença“abriu um precedente quedeterminará a forma emque nos relacionaremos deagora em diante todas asguatemaltecas e guatemal-tecos. A sentença serviupara reivindicar o direito adiversidade no país e parareinstalar parcialmenteuma dignidade ofendidadurante décadas de injus-tiças, marginalidade e ini-qüidade. A discriminação eo racismo já não serão ex-

pressados tão facilmente em públiconem serão atos que ficam na impunida-de”. Esta é a primeira vez que ocorreum julgamento por discriminação racialna Guatemala.

A Fundação convoca a todos osguatemaltecos que sofreram discrimina-ção a denunciar os racistas e espera queesta sentença sirva para fortalecer o Mi-nistério Público quando este receber de-núncias de discriminação. A FRMT disseque esta “é a única forma de estimularas mudanças transcendentais que estepaís (Guatemala) requer”. 13 Abril - 2005

N

É preciso que a sociedadereconheça os indígenascomo atores políticos

também. Somos um povoque tem cultura, tem arte,

mas que também fazpolítica e estamos

contribuindo.

AforaPaís

S

Por questões ética, moral e espiritual, Rigobertaimpulsiona a luta contra o racismo

Foto

: Arq

uivo

Cim

i

Page 14: ENCARTE ESPECIAL VIAGEM À NHANDE RU MARANGATU 274.pdf · vale postal em nome de CIMI-PORANTIM ... Registro nº 4, Port. 48.920, Cartório do 2º Ofício ... ainda foi à tribuna

14Abril - 2005

AforaPaís

Clovis BrighentiMarina de Oliveira

Cimi Sul Equipe Palhoça

esde o dia 28 de fe-vereiro, até o fecha-mento desta ediçãodo Porantim, o povo

Xokleng, localizado no AltoVale do Itajaí, em SC, tomou ocontrole da Barragem Norte ecomeçou a destruir a casa demáquina para obrigar os go-vernos estadual e federal acumprir acordos firmados paraindenização da comunidadepelos prejuízos causados pelaobra, “queremos que o gover-no cumpra os convênios firma-dos com o extinto DNOS e aFunai em 1981, Protocolo deIntenções e o Projeto Ibirama,em 1992 e 1998”, reivindica acomunidade.

Em meados de março umadelegação das lideranças este-ve em Brasília tentando bus-car uma solução juntoà Funai e Ministério da Inte-gração Nacional (MIN), masvoltaram preocupados, porqueficou em promessas. Segundoo cacique geral Aniel Priprá, “oMIN quer concluir as obras doantigo Departamento Nacionalde Obras e Saneamento -DNOS para repassar a barra-gem ao Estado, e nessas obrasestá incluída a comunidadeindígena, mas não se compro-meteram com prazo”.

O clima está muito tensono local, o Procurador da Re-pública em Blumenau já soli-citou a interferência da Polí-cia Federal para despejar a co-munidade indígena. A qual-quer momento poderá ser efe-

tuada a ação, porém, a comuni-dade diz que não pretende dei-xar o local. Priprá foi enfático aoafirmar que “a comunidade vaipermanecer até que se decida al-guma coisa”, afirmação que foiendossada pelo cacique regionalAntonio Caxias Popó, “até hojenão tive resposta nenhuma, nãoteve nenhuma ação concreta, porisso não vamos sair”, frisou Popó,a comunidade toda aplaudiu.

Sobre as acusações de queestariam destruindo o patrimôniopúblico, o cacique regional da al-deia Bugiu, João Adão, foi enfáti-co ao afirmar que “será que ummotor tem mais valor que umavida? Mais de uma dezena de pes-soas de nossa comunidade mor-reram por causa desse lago, quemvai pagar por isso?” indagou.

Entendendo o caso:A Barragem Norte faz parte

de um conjunto de obrasconstruídas pelo extinto DNOSnas décadas de setenta e oitentapara evitar cheias no rio Itajaí,que provocava alagamento em ci-dades como Blumenau. Mas a Bar-ragem Norte foi construída den-tro da terra indígena, ocupandopraticamente toda a terraagricultável, especialmente as ter-ras planas e férteis na beira do rioonde viviam os Xokleng.

Foram muitas promessas,acordos e planos descumpridos.Devido aos protestos da comuni-dade, em 1981 foi firmado umConvênio (Convênio N° 029/81)entre o extinto DNOS (executorda barragem) e a Funai, mas nadafoi feito. Em 1987 foi assinado umProtocolo de Intenções entre osmesmos órgãos, 22 casas come-

Q

Português

Influência dasLínguas Indígenas

no Benedito PreziaToponimista

A lingua geral maranhenseuando nos referimos às línguas gerais tupis em coluna anterior(Porantim, dez. 2004, p. 15), não falamos da língua geralmaranhense, que foi falada nas regiões urbanas do Maranhão entre

os séculos 17 e 18. Por ter sido essa região marcada por populaçõestupis, especialmente Tupinambá, não é de se admirar o surgimento deuma forma mestiça, à medida que a população indígena migrava para ascidades, sobretudo após a expulsão dos jesuítas em meados do século18.

Vários documentos e vocabulários retratam essa alteração lingüística,como o catecismo do jesuíta Pe. Felipe Bettentorff, publicado em Lisboaem 1687. O título já era sugestivo: Doutrina Christaã, em língua geral dosÍndios do Estado do Brasil e Maranhão, traduzida em língua irregular, evulgar uzada nestes tempos. A assim denominada língua “irregular evulgar”, era a língua geral que estava surgindo no meio urbano.

Podemos comparar essa forma dialetal com a de outro catecismopara as aldeias tupis, escrito pelo Pe. Antônio de Araújo, em 1618. Àpergunta “A quem Deus criou primeiro como habitante da terra”, ocatecismo tupi responde: Asé rubypyrama, isto é, o nosso pai. Usa asé,que é pronome na forma inclusiva, com um significado de “nosso, todomundo” e um segundo vocábulo, cuja tradução literal é: “o pai primeirodos que viriam nascer”. O catecismo na língua geral terá uma respostamais simples: Nhandé paîypy, que é também o nosso pai. Mas já usanhandé, que é a forma exclusiva, englobando apenas os interlocutores, eque passou a ser a única forma da 3a. pessoa do plural nas línguas gerais;o segundo vocábulo — pai primeiro —, é composto de paî, que é a formaapocopada de paya, que por sua vez é um lusitanismo, derivado dovocábulo português pai (Edelweiss, 1969:138-141).

Três vocabulários, elaborados na segunda metade do século 18registrarão esse tupi mestiço: o mais antigo é de autoria de Frei Onofre,franciscano, e foi recolhido por Frei Francisco de N. S. dos Prazeres, em1751. Ficou conhecido como Dicionário português-brasiliano, tendo sidopublicado em Lisboa, em 1795, como de autor anônimo, mas sob osauspícios de Frei José M. da Conceição Velloso. O outro é o Dicionáriobrasiliano-português, compilação de alguns vocabulários da época, feitapelo mesmo Fr. Velloso, e que foi visto como a reversão do primeiro.Essas duas obras foram publicadas em um só volume, em São Paulo, em1934, por Plínio Ayrosa. O terceiro é o Caderno da Língua, organizado porFrei João de Aronches, que é uma cópia mais fiel do primeiro dicionário,já que muitos lusitanismos haviam sido eliminados por Frei Velloso naedição de 1795. Foi publicado em São Paulo, em 1938, como separata daRevista do Museu Paulista, v. 21.

O que chama a atenção é o nome brasiliano, que no Nordeste foidado aos indígenas tupi-falantes, como os Potiguara e Tobajara. E tambémnota-se uma certa quantidade de lusitanismos que traduziam nomes dolinguajar diário. Assim temos até agora (ate cuyr), chave (xavî), hoje (hóji),Igreja (Tupánróca), mãe (máya), mestiço (carybóca, que no Pará foi dar adança mestiça carimbó) ministro do altar (missa pytubonçára), pai (páya),pano fino (pána poî), prata, dinheiro (itâ juba= pedra amarela; nessecaso a prata foi chamada de ouro, antiga designação de dinheiro), senhor(páy tinga= senhor branco; numa sociedade escravista o senhor sempreera branco), xeringa ou seringa (xeringa).

Convém notar que essa língua foi aprendida não apenas pelo povo,como também por pessoas da elite, como o governador da Província,Antônio de Albuquerque. Um episódio, ocorrido em 1708, conta quequando foi transferido para São Paulo como governador, esteve em Minas,incógnito, para surpreender paulistas e portugueses (emboabas) que sedigladiavam. No caminho deparou-se com um grupo paulista que,imaginando que fosse mais um aventureiro português, quiseram matá-lo,falando entre eles na língua geral: Mandemos matar este p..... emboyaba!E o cronista comenta que o governador, como vinha do Maranhão, entendiaessa língua, e assim conseguiu escapar de um atentado (Dom Braz daSilveira, 1750. In: Taunay, 1981:72).

Somente em 1758, com a promulgação do Diretório pelo Marquês dePombal as línguas indígenas e gerais foram desaparecendo.

BIBLIOGRAFIA

AYROSA, Plínio M. da Silva (org.). Diccionário Portuguez-Brasiliano eBrasiliano-Portuguez. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1934.(Separata da Revista do Museu Paulista, vol. 18, 1934).

EDELWEISS, Frederico. Estudos tupis e tupi-guaranis. Rio de Janeiro:Brasiliana Ed., 1969.

SILVEIRA, Braz da. Relação do princípio descoberto destas Minas Gerais...In: TAUNAY, Afonso de E. Relatos sertanistas, Belo Horizonte: Itatiaia;São Paulo: Edusp, 1981, p. 65-86. (Col. Reconquista do Brasil, NovaSérie, v. 34).

(Um agradecimento especial à profª Margarida Davina Andreatta,pela doação que nos fez do Dicionário Portuguez-Brasiliano).

çaram a ser construídas mas nãoforam concluídas. Em 1990 osXokleng ocuparam a barragempor dois anos, e levaram a Secre-taria de Desenvolvimento Regio-nal, Funai e governo do estadode SC a assinar um novo Proto-colo de Intenções (assinado em29-01-1992) que previa a constru-ção de casas, benfeitorias, estra-da e rede elétrica além da execu-ção de um programa de sustenta-bilidade da comunidade indíge-na. Até 1997 o protocolo nãohavia sido concretizado. Revolta-da a comunidade ocupou nova-mente a Barragem e controlou oscomandos das comportas. O mo-vimento levou à assinatura de umnovo Convênio (Convênio n°041/98) entre o governo do estado, oMinistério do Orçamento e Pla-nejamento para executar o Pro-tocolo de Intenções. Os Xoklengforam obrigados a ocupar maisduas vezes a barragem para queas obras começassem a serconstruídas, mesmo assim dosProtocolos e Convênios assina-dos apenas uma parte das casasforam construídas (cerca de 200edificações), as demais obras nãosaíram do papel.

A situação da comunidade éde muita fome, porque emboraocupe 14 mil ha de terra, 86% éde cobertura florística da mataatlântica, 9% é área reservada aolago, restando apenas 5% paracasas, estradas, plantações. Adevolução dos 37.108 ha estáparalisada na Justiça Federal queem liminar suspendeu os efeitosda Portaria Declaratória do MJ, de13 de agosto de 2003. A popula-ção Xokleng é de 204 famílias, emtorno de 2 mil pessoas.

Xokleng ocupam barragem paraexigir cumprimento de acordos

D

Vista dabarragemde Barra

Grandeocupada

pelo povoXokleng

Foto: MAB-Divulgação

Page 15: ENCARTE ESPECIAL VIAGEM À NHANDE RU MARANGATU 274.pdf · vale postal em nome de CIMI-PORANTIM ... Registro nº 4, Port. 48.920, Cartório do 2º Ofício ... ainda foi à tribuna

15 Abril - 2005

P R E Ç O S

Ass. anual: R$ 30,00 *Ass. de apoio: R$ 50,00 América Latina: US$ 25,00 Outros países: US$ 40,00

Assin

e o

* Com a assinatura de apoio você contribui para o envio do jornal a diversas comunidades indígenas do País.

Faça sua assinatura pela internet: [email protected]

Envie cópia do depósito bancário para o fax (61) 225-9401, especificando a finalidade do mesmo.

Para fazer a sua assinatura, envie vale postalou cheque nominal em favor de Cimi/Porantim:(somente por meio de carta registrada)

Caixa Postal 03679 - CEP: 70.084-970 - Brasília-DFInclua seus dados: Nome, endereço completo, telefone, fax e e-mail.

Se preferir faça depósito bancário: Banco Real Ag: 0437 C/C: 7011128-1 - Cimi-Porantim.

Leda BosiSedoc

ste número da revista publicada peloConselho Indigenista Missionário mos-tra o avanço que as reflexões em tornodo tema Educação Escolar Indígena

tem alcançado. Além da presença numérica , aparticipação indígena tem alcançado projeçãopolítica uma vez que a temática passou a serinserida em espaços onde por vezes não era con-siderada e a ser discutida com representantesautorizados dos próprios povos indígenas.

No artigo “Professores e Professoras Indíge-nas presentes em Fóruns sobre Educação” sãoapresentados relatos da participação indígena emdiversos fóruns como foi o caso do III FórumMundial de Educação, Porto Alegre, RS; na 56ªReunião Anual da Sociedade Brasileira para o Pro-gresso da Ciência (SBPC) em Cuiabá, ambos emjulho de 2004 e na Conferência Nacional por umaEducação do Campo, em Brasília, em agosto domesmo ano. Na reunião da SBPC foi realizado oevento “A SBPC e a Ciência Indígena” reconhe-cendo a contribuição dos conhecimentos indí-genas na construção dos saberes universais. Par-ticiparam cerca de 200 representantes indígenasentre professores e lideranças de diversos po-vos. No encontro foram apresentados vários re-latos de projetos que envolvem alunos e profes-sores indígenas como o de Eliel Benites e MariaCelina, do povo Guarani Kaiowá, MS, envolvidoscom o apoio da Universidade Católica Dom Boscona recuperação de microbacias com trabalhosque buscam recompor as matas ciliares. Maria DevanildesKayabi apresentou o processo de elaboração do currículoda escola do povo Kayabi, MT, desenvolvido com o apoiodo Cimi MT. Durante três anos foram realizadas oficinasenvolvendo os professores, os alunos e a comunidade, re-sultando num processo extremamente rico de pesquisassobre a história do povo e como a escola está sendoinserida no cotidiano da comunidade. Destaca-se tambémo contundente depoimento da cacique Creuza Umutina,MT, mostrando que razões históricas como a repressãopraticada pelas forças colonizadoras forçaram um povoa não usar mais sua própria língua. Hoje, a escolaestá fazendo um trabalho de recuperação lingüística,

contando com a colaboração das pessoas mais idosas.O texto de Josimar Xawapare ymi Tapirapé, profes-

sor da Escola Indígena Estadual “Tapi´itãwa, apresentaum estudo realizado em 2003, na área de linguagem –Língua Tapirapé, com alunos na faixa etária de nove anoscom o objetivo de recuperar palavras da língua tapirapéque não estavam mais sendo usadas pelas crianças e cri-ar nomes em tapirapé para objetos que antes não existi-am na cultura do povo. O método utilizado por Josimarmostrou-se bastante criativo. Além de incluir em suasanotações as palavras usadas pelos mais velhos, ele usoua dramatização de situações próprias da comunidade,mostrando aos alunos como a língua portuguesa estava

ocupando o espaço da l íngua tapirapé.No trabalho de Ninfa Rosas (Cimi Norte I),

temos um breve histórico do povo Katukina naterra indígena Rio Biá. Eles se denominamTakyna, porém esta denominação não é reco-nhecida pelos que mantêm contato com a co-munidade. O nome Kaktukina foi dado pelosnão-indígenas. O texto privilegia a forma comoesse povo desenvolve a educação escolar quepode ser considerada socializante, uma vez quetodas as crianças têm acesso a ela, ao mesmotempo em que gozam de grande liberdade emseus atos. Os Takyna são os agentes principaisdo processo, mantendo sua autonomia comopovo morador da floresta. A comunidade équem educa.

O texto da equipe Guajá do Cimi/MA socia-liza uma experiência de três anos do projetode alfabetização, desenvolvido em duas aldei-as (Awá e Tiracambu) com um povo de poucocontato com a sociedade envolvente. O proje-to surgiu a partir de uma necessidadevivenciada pelas próprias lideranças. Ao finalde um encontro que discutia seus problemasos Awa perceberam que não tinham condiçõesde entender as discussões e os conteúdos dosdocumentos por não possuírem conhecimen-tos da língua portuguesa.

O resultado do trabalho, a partir do estu-do da língua e da construção coletiva da gra-mática experimental que prioriza a participa-ção dos indígenas na criação da sua própriaortografia, permitiu que um grupo de jovensconclua o processo de alfabetização na língua

materna, tendo uma compreensão maior da língua portu-guesa na sua forma oral, o que favorece uma melhor co-municação com a sociedade envolvente, repercutindo nasua organização política. Começam a participar de encon-tros que discutem as questões indígenas e estão ocupan-do uma vaga no Conselho de Organização e Articulaçãodos Povos Indígenas no Maranhão – COAPIMA.

Esses relatos de experiências pedagógicas não se re-duzem ao espaço da escola, a educação é entendida comoum ato político atrelada a um projeto de libertação.

A revista “Textos e PreTextos” pode ser adquirida juntoaos regionais do Cimi ou em seu Secretariado Nacional.

Textos e PreTextos – Sobre Educação Indígena

Cimi-Conselho Indigenista MissionárioBrasília – DF – Ano IV – nº 4 – Janeiro/2005

E

Page 16: ENCARTE ESPECIAL VIAGEM À NHANDE RU MARANGATU 274.pdf · vale postal em nome de CIMI-PORANTIM ... Registro nº 4, Port. 48.920, Cartório do 2º Ofício ... ainda foi à tribuna

16Abril - 2005

No meio da noite, os guerreiros Tupinikim, liderados por Pikerobi(Peixinho verde) e por seu filho, o jovem Jaguanharon (Onça brava) chegaramperto da antiga aldeia de Tibiriçá (Formiga da terra), agora totalmente deserta,pois ele havia decidido ir morar na missão de São Paulo de Piratininga. Mesmoassim, um mês antes, Jaguanharon tentara convencer seu tio Tibiriçá aabandonar a colina, pois o ataque que desfechariam seria arrasador. O tio, nãosó ficou, como também revelou aos padres o plano dos parentes.

Por isso os padres tiveram tempo de pedir reforço aos moradores deSantos e transformaram a colina onde estava a missão numa pequena fortaleza,erguendo uma paliçada.

No dia 12 de julho, de 1562, ao sinal de Pikerobi, os Tupinikim atacarama colina. O estrondo dos gritos e dos instrumentos de guerra foi tão grandeque “parecia que o mundo vinha abaixo e se arruinavam os montes vizinhos”,escreveu um jesuíta da época.

O confronto mais perigoso foi sustentado pelo grupo de Pikerobi, quetinha o combate frontal. As armas de fogo dos portugueses faziam grandesestragos entre os indígenas e a cerca se mostrava muito resistente. O quemais dificultava o ataque era a escarpada colina, que com a cerca alta, formavauma muralha quase intransponível.

16Abril - 2005

A Guerra de PiratiningaO sol já ia alto e a luta continuava indefinida. Os Tupinikim já tinham

perdido alguns de seus mais valentes guerreiros.Conhecedor da área, Jaguanharon, com a ajuda de outros atacantes,

resolveu transpor a cerca da missão, numa parte mais baixa e que dava parahorta. Por lá poderia surpreender o inimigo e atingir o próprio convento.

No alto da cerca, o jovem sentiu um golpe no ventre. Embora tenhaarrancado a flecha que o atingira, caiu para frente, sobre os canteiros da horta.Momentos depois, morria como outros valentes Tupinikim.

Parte de seu grupo, surpreendido com este insucesso, começou a recuar.Com o sol a pino, a ofensiva foi retomada, mas sem grandes resultados. OsTupinikim começaram abandonar Piratininga e, na retirada, foram queimandoas plantações e matando o gado que encontravam pelo caminho.

Por várias noites após o sangrento ataque, ouviram-se urros de umaonça nas imediações da colina de Piratininga. Ninguém a viu e nem poderiavê-la. Diziam que era o bravo Jaguanharon que cobrava a traição de seu tio epedia vingança pela escravização de seu povo.

Benedito Prezia