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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FFCLRP - DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Encantaria na umbanda Júlia Ritez Martins Dissertação apresentada à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP, como parte das exigências para a obtenção do título de Mestre em Ciências, Área: Psicologia. RIBEIRÃO PRETO SP 2011

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FFCLRP - DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM PSICOLOGIA

    Encantaria na umbanda Jlia Ritez Martins

    Dissertao apresentada Faculdade de Filosofia, Cincias e

    Letras de Ribeiro Preto da USP, como parte das exigncias

    para a obteno do ttulo de Mestre em Cincias, rea:

    Psicologia.

    RIBEIRO PRETO SP

    2011

  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO FFCLRP - DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA E EDUCAO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM PSICOLOGIA

    Encantaria na umbanda

    Jlia Ritez Martins Prof. Dr. Jos F. Miguel H. Bairro (Orientador)

    Dissertao apresentada Faculdade de Filosofia, Cincias e

    Letras de Ribeiro Preto da USP, como parte das exigncias

    para a obteno do ttulo de Mestre em Cincias, rea:

    Psicologia.

    RIBEIRO PRETO SP

    2011

  • Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

    FICHA CATALOGRFICA Martins, Jlia Ritez

    Encantaria na umbanda. Ribeiro Preto, 2011. 117 p. ; 30 cm

    Dissertao de Mestrado, apresentada Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de Ribeiro Preto USP. Orientador: Bairro, Jos Francisco Miguel Henriques. 1. Etnopsicologia. 2. Encantaria. 3. Umbanda. 4. Cultos afro-brasileiros. 4. Psicologia da Religio

  • Nome: Jlia Ritez Martins Ttulo: Encantaria na umbanda

    Dissertao apresentada Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de Ribeiro Preto da USP, como parte das exigncias para obteno do ttulo de Mestre em Cincias, rea: Psicologia.

    Aprovado em: _________________ Banca Examinadora Prof (a) Dr (a) ______________________________________________________________

    Instituio:_________________________ Assinatura: ______________________________

    Prof (a) Dr (a) ______________________________________________________________

    Instituio:_________________________ Assinatura: ______________________________

    Prof (a) Dr (a) ______________________________________________________________

    Instituio:_________________________ Assinatura: ______________________________

  • Ao meu marido Cristiano, por sua firmeza, carinho e capacidade de ver alm.

  • AGRADECIMENTOS

    Ao lugar de onde vim, Niteri, do qual me lembro de uma ponte e um elevador verde. A ponte me levou para fora e o elevador para cima.

    Ao meu Pai no cu, ao pai no Rio (Ademar) e minha me (Soyanne) num outro Rio,

    o Claro, pela vida, por me ensinar a mergulhar apesar do medo e pelas to diferentes histrias

    que me marcaram e inspiraram.

    minha av Id que viu em mim desde pequena a fora, coragem e doura de

    Jurubeba. meu av Geraldo (in memoriam ) pelas caretas, pelo seu jeito teimoso, terno e

    tambm firme.

    Aos meus irmos caulas Natlia e Rafael, meus eternos ers, que me ensinam a ser

    alegre.

    Aos meus irmos Isis, Afonso, Renata, Adhemar, Ktia e Robson e a minha querida

    boadrasta R, pelas frias inesquecveis que tornavam minha vida mais leve e meu corao aquecido.

    s minhas amigas Carol, Celeste, Dani, Denise, Mariana que cresceram e se formaram

    comigo, sinto muita falta do tempo em que chorvamos, riamos e fazamos tudo juntas.

    s minhas amigas arretadas e cheias de ax Alice, a baiana, Amanda com sua

    sabedoria de preta velha, Raquel e sua Serena cabocla encantada, por serem brilhantes.

    todos do Laboratrio de Etnopsicologia pelas discusses que tanto contriburam

    com essa pesquisa.

    Ao professor Miguel Bairro por orientar, inovar, instigar e possibilitar que trabalhos

    como este sejam feitos.

    Aos mdiuns e entidades do Templo de Umbanda Caboclo Flecha de Ouro,

    principalmente Luciana e aos encantados que me acolheram e compartilharam comigo

    tantas lies e sentimentos. Me Tayanna por me encantar com suas histrias.

    Aos meus guias que me conduziram pelas matas, guas e estudos.

    Ao meu marido Cristiano que meu maior parceiro e f por estar sempre presente e

    ser o meu melhor sonho.

    Aos membros da banca de qualificao, professora Francirosy e Idalina, pelas criticas

    e sugestes ao trabalho.

    FAPESP e CAPES pelos apoios financeiros concedidos que possibilitaram o amplo

    envolvimento com a pesquisa.

  • As aventuras de Yasmim Yasmim no era uma gata das ruas

    do mato nem cheiro Seu focinho

    sempre no vidro da janelinha O Sol frestas

    Os barulhos que vinham l de fora a encantavam Com admirao, temeu

    pelas seis vidas que lhe restavam pois, em seu desejo de saber como era do outro lado

    Uma vida pulou-lhe a janela do terceiro andar O vidro que no a deixava sair

    para sua surpresa tambm no a deixou entrar.

    A mudana

    Que lugar esse? Que cheiro esse? Uma infinita combinao de cheiros!

    Como pode? Esse lugar vai para onde? E de onde veio?

    At onde posso chegar?

    A nova casa Medo, medo, medo da prpria sombra

    De tanto medo sentir O medo consumiu e sumiu

    Deixou o mundo novo invadir-lhe a alma Ficou amiga da sombra

    E foi na noite que se escondeu.

    Na primeira vez em que teve contato com a noite Achou que seria possuda pela lua

    Correu sentindo a terra molhada em suas unhas O cheiro do orvalho no mato

    a inebriava E um desespero por tudo que ainda no conhecia

    Tudo o que podia ser Transformou-se em serenidade.

    A mata vista de cima

    Ao subir numa rvore Sentiu o vento como nunca antes sentira

    L de cima, perto do lago O vento soprava Docemente frio

    E foi para casa, dormir sob as cobertas.

  • RESUMO

    MARTINS, J. R. Encantaria na umbanda. p. 117 Dissertao (Mestrado) Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de Ribeiro Preto, Universidade de So Paulo, Ribeiro Preto, 2011. Ultimamente tem se disseminado em alguns terreiros umbandistas do Sudeste o culto aos encantados, uma classe originalmente atinente a cultos do Norte e Nordeste. A literatura acadmica a seu respeito se restringe a estudos antropolgicos ou sociolgicos. O surgimento da categoria de encantado em outras religies e lugares, bem como hipteses sobre este fato, ainda no foram estudados do ponto de vista etnopsicolgico. Esta pesquisa objetiva contribuir para sanar esta lacuna. Para esse efeito, realizou-se um levantamento bibliogrfico do que tem sido dito a propsito do termo, procurando constncias entre vrios contextos da sua ocorrncia e contrastes do seu emprego. Alm disso, realizou-se um estudo de caso no Templo de Umbanda Caboclo Flecha de Ouro. Para colher estes dados, utilizou-se o mtodo psicanaltico (ateno flutuante, relao transferencial e contratransferencial) aplicado ao mbito etnogrfico (escuta participante). Deu-se ouvidos as histrias e as narrativas a respeito dos encantados, participou-se dos cultos, realizaram-se entrevistas com mdiuns e entidades, utilizou-se dirio de campo e observaram-se caractersticas do espao fsico e a dinmica ritual. A anlise dos dados foi realizada considerando as caractersticas da noo de encantamento que se repetiram e contrastando-as com os resultados do levantamento bibliogrfico. A elaborao da encantaria nesse terreiro teve a participao de uma mdium que j havia tido contato com os invisveis da Mina num terreiro que frequentara anteriormente, mas a presena deles narrada como sendo anterior e atender a um propsito especfico neste contexto umbandista. Contribuiu tambm para a construo da noo de encantamento deste terreiro o estudo tanto da literatura a respeito dos encantados como atinente a tentativa de sistematizao doutrinria da umbanda. A anlise indica que os encantados surgiram nesse terreiro para desarranjar categorias saturadas de significado, cristalizadas, ou, nas palavras da encantada guia do terreiro, para bagunar. A introduo da categoria tem o sentido de restaurar e resguardar a aptido da umbanda para dar abrigo ao aspecto misterioso do contato com o sagrado e a abertura para o desconhecido e inusitado. Com o surgimento da encantaria, ao que tudo indica, o panteo umbandista passa a ter literalmente infinitas possibilidades de entidades e linhas espirituais, e todas as pr-existentes podem ser ressignificadas, possibilitando a ampliao e a aprofundamento dos sentidos de categorias espirituais potencialmente saturadas de significado. Deste modo, neste contexto, assegura-se a possibilidade de expressar nuances e sutilezas anmicas tanto de vivncias individuais como psicossociais. Palavras-chave: cultos afro-brasileiros, umbanda, etnopsicologia, encantaria, psicologia da religio.

  • ABSTRACT

    MARTINS, J. R. Encantaria in umbanda. p. 117. Dissertation (Masters Degree) Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de Ribeiro Preto, Universidade de So Paulo, Ribeiro Preto.

    The cult to the encantaria (enchanted being), originally related to cults in the North and Northeast regions in Brazil, has lately been propagated in some umbandista houses in the Southeast too. Academic literature concerning the theme is usually restricted to anthropological or sociological studies. Manifestations of the encantados category have not already been studied from an ethno-psychological point of view. This research aims to help filling that gap. Thus a bibliographic study concerning the term has been developed in order to find out both similarities in its occurrence and contrasts in its use in different contexts. Templo de Umbanda Caboclo Flexa de Ouro was the locus of a case study. Data collecting was based on the psychoanalytical method (fluctuating attention, transferential and countertransferential relation) applied to the ethnographic field (hearing participation). Besides giving ear to stories and narratives concerning the encantados, the following procedures were also used: cult participation, interviews involving mediums and entities, field journal, observation of physical space and ritual dynamic features. Data analysis was based on the contrast between the enchantment concept characteristics which frequently appeared, and the results obtained by means of bibliographical study. The encantaria manifestation in the studied terreiro occurred through a medium who had already been in contact with Mina invisibles in another house that she once used to frequent. But according to reports, these entities purpose in this umbanda context is specific, and they had already been present formerly. Both literature study concerning the enchanted and the search for umbanda doctrine systematization have contributed to build up the enchantment concept in this terreiro. Analysis has indicated that the enchanted emerged in the place to unsettle highly meaningful established categories or, according to the terreiro enchanted guide, to make disorder. The category introduction carries the meaning of restoring and guarding umbanda capability of giving shelter to the mysterious aspect involved in the contact with the sacred, and of being opened to the unknown and unusual. The encantaria emergence, as evidence shows, not only enables umbanda pantheon to assume literally uncountable entities and spiritual lines, but also to re-signify all pre-existent ones, besides allowing the enlargement and deepening of potentially meaningful spiritual category senses. Finally, the possibility of expressing animic nuances and subtleness of individual and psychosocial liveliness is assured. Key-words: Afro-Brazilian cults, umbanda, ethno-psychology, encantaria, religion psychology.

  • SUMRIO

    1. INTRODUO ................................................................................................................. 17 1.1 O encantamento do Il de Xang Ka.......................................................................20 1.2 L vem o seu navio, com a bandeira verde azul ................................................... 24 1.3 Luz que veio de Aruanda para tudo iluminar ....................................................... 31

    2. MTODO ........................................................................................................................... 36

    2.2 Mas que terreiro esse? Pisa devagar.................................................................43 Anlise dos dados..............................................................................................49

    3. RESULTADOS E ANLISES .......................................................................................... 52 3.1 O Templo de Umbanda Caboclo Flecha de Ouro .................................................... 54

    3.2 Encantaria no Flecha de Ouro ................................................................................... 60

    3.3 Baio de princesas .................................................................................................... 65

    Herundina ......................................................................................................... 66

    Mariana ............................................................................................................ 72

    Jarina ................................................................................................................ 75

    Rainha Dina ..................................................................................................... 76

    3.4 Quer conhecer o mistrio, vai pras ondas do mar ............................................... 78 3.5 Ele pequenininho, mora no fundo do mar ......................................................... 87 3.6 Quem desencantar Lenol, pe abaixo o Maranho ........................................... 92 3.7 Herundina, a flor que brilha o dia, ela a pororoca, ela a luz do dia........97

    4. CONSIDERAES FINAIS ........................................................................................... 101 REFERNCIAS ................................................................................................................... 107 ANEXOS ............................................................................................................................... 114

  • 17

    1. INTRODUO

  • 18

  • 19

    Atualmente o interesse dos psiclogos em estudar temas ligados religiosidade tem

    aumentado (PAIVA, 2009). O estudo das diferentes formas de conceber o mundo,

    compreender e lidar com o divino extremamente pertinente Psicologia. De acordo com

    Safra (2006, 2007), cada homem cria sua concepo do absoluto e a partir dela que significa

    suas aes e cria um projeto de futuro.

    Alm de entender o sagrado como fundamental na constituio da pessoa, Safra (2005,

    2006, 2007) considera o ser humano um ser aberto, influenciado tanto pela presena do outro

    alm de si, como do outro dentro de si, aberto aos sentidos do mundo e afetado pelo passado e

    por aquilo que ainda est por vir. O homem, constitudo como compreenso, sempre busca o

    sentido das coisas, questiona-se sobre sua origem e ressignifica constantemente o mundo e os

    elementos sua volta de acordo com o sentido ltimo criado para justificar sua existncia

    (SAFRA, 2006).

    Os cultos afro-brasileiros expressam e explicitam etnoteorias psicolgicas brasileiras,

    guardam memrias sociais, mobilizando intensa e profundamente vivncias psquicas;

    portanto, trata-se de um campo rico para estudos em etnopsicologia. Nesses cultos, so

    comuns termos tais como encantos, encantes, linha da encantaria, encantados,

    desencanto, ou at mesmo dizer de algum que se encantou. No entanto, esta categoria

    ou conceito no tem recebido muita ateno por parte dos estudiosos, salvo relatos

    etnogrficos que evidenciam tanto a sua difuso (o Maranho e a Amaznia parecem ser o seu

    epicentro, seguidos pelo catimb nordestino) como tambm, progressivamente, a sua

    expanso e generalizao um pouco por todo o pas.

    Considerando que o surgimento da categoria de encantado em outros cultos e lugares,

    bem como hipteses sobre este fato, ainda no foram estudados do ponto de vista psicolgico,

    esta pesquisa objetiva contribuir para sanar esta lacuna, mediante a investigao, numa

    perspectiva etnopsicolgica, do sentido dessa introduo.

  • 20

    1.1 O encantamento do Il de Xang Ka

    A primeira vez que tive contato com a encantaria foi num terreiro de umbanda da

    cidade de Senador Jos Porfrio, ou como os moradores preferem chamar, Sousel, no Par, s

    margens do imenso rio Xingu. Um rio que mais parecia mar, numa Amaznia com cara de

    deserto. A ambiguidade estava em toda parte nessa terra de encantos e sofrimento.

    A viagem era por conta do Projeto Rondon e o terreiro foi encontrado por acaso nas

    andanas entre uma oficina e outra. A porta estava aberta e ao entrar encontrei Me Tayanna,

    que j me esperava. Disse que estava dormindo e foi acordada por seus guias avisando sobre

    minha visita.

    As histrias que Me Tayanna me contava faziam-me viajar para um outro mundo.

    Mulher forte, como todos em sua terra, seu rosto redondo com traos de ndia guardava um

    sorriso de criana e um olhar que parecia virar a gente do avesso.

    Ela dizia que eu era muito parecida com uma grande amiga sua, que morreu ainda

    criana. E como amigas de infncia, conversamos horas a fio, como se tivssemos a histria

    de uma vida inteira para por em dia. Ela me contou que benzedeira desde os quatro anos de

    idade e iniciou o desenvolvimento aps quase ter sido levada para o fundo do rio. Nadava

    com as outras crianas e puxaram sua perna, no conseguia ver o que a segurava, aterrorizada

    lutava para se soltar e quo grande foi seu espanto ao perceber que podia respirar em baixo da

    gua, desmaiou.

    Ao acordar, j em terra firme, viu o olhar de assombro naqueles que a resgataram e,

    em seguida, foi levada at a me-de-santo da cidade mais prxima para passar por uma srie

    de rituais de proteo e iniciar seu desenvolvimento.

    Nessas terras, conta-se que os encantados possuem um grande poder, so capazes de

    levar uma pessoa, sem deixar vestgios e tambm podem atribuir dons e curar doenas do

    corpo e da alma.

    Me Tayanna tambm me contou que costumava ter uns apages. Por alguns

    instantes perdia a conscincia de si, no se lembrando o que estava fazendo, ou mesmo quem

    era. Aps alguns minutos, recuperava aos poucos a memria e a percepo de tempo e espao.

    Essas sensaes no foram associadas na ocasio a nenhuma interferncia espiritual.

    Na semana em que passei em Sousel, fui a uma gira e conheci os guias de Me

    Tayanna. Igualmente, fui tratada como uma visita ilustre e ao mesmo tempo como se fosse da

    Casa. Eu me sentia em casa e num mundo distante. Conheci princesas, rainhas, animais em

  • 21

    corpos humanos que danavam, retorciam-se como se os mdiuns fossem desprovidos de

    ossos. O toque dos tambores tambm era diferente dos daqui, ressonavam em minha pele com

    fora. Tudo parecia dotado de mais fora, mais vida, mais encanto.

    Ao voltar para casa s pensava em uma maneira de voltar quele lugar, mas tal ideia

    tambm me assustava. Como tudo o que me pe medo desafia-me e ao mesmo tempo atrai,

    fui procurar os encantados aqui em So Paulo e comecei meus estudos no Templo de

    Umbanda Caboclo Flecha de Ouro. Pesquisa anterior desenvolvida no Laboratrio de

    Etnopsicologia da FFCLRP-USP (PELLICIARI, 2008) permitiu a identificao desse Templo

    como lugar propcio para o desenvolvimento do estudo com os encantados, pelo fato de l

    haver uma valorizao de seu culto a ponto da encantada que incorpora na dirigente ser uma

    das principais autoridades espirituais do terreiro.

    As questes que nortearam esse estudo sobre os encantados foram: 1- Haveria uma espcie de categoria conceitual a seu respeito, mais ou menos bem

    estabelecida ou em processo de construo, nesses cultos em que so

    incorporados? Para tentar responder a essa questo, realizei um levantamento do

  • 22

    que tem sido dito a propsito do termo, procurando constncias entre vrios

    contextos da sua ocorrncia e contrastes do seu emprego correlativamente a outras

    conceituaes ou formas de classificao vigentes no mesmo universo.

    2- A partir dos sentidos levantados sobre os encantados levantados, com base no

    estudo da literatura acadmica a seu respeito, principalmente sobre o tambor-de-

    Mina no Maranho e Par, outra questo surgiu: os encantados que tm sido

    incorporados umbanda na Regio Sudeste estariam relacionados aos dos cultos

    do Norte e Nordeste? Se sim, quais os pontos de convergncia e divergncia?

    3- E, por ltimo, considerando o acrscimo ao panteo umbandista dessa nova

    categoria, existiriam necessidades da comunidade em questo implcitas a essa

    adoo? Dito de outra forma, haveria vantagens em incluir os invisveis que no

    so espritos nos rituais em que normalmente se cultuam guias espirituais? Em sntese, o objetivo desta pesquisa foi o de contribuir para o esclarecimento da

    introduo do culto de encantados na umbanda e o seu concomitante alcance psicolgico

    mediante um estudo de caso.

    No intuito de construir um caminho a ser compartilhado sobre meu estudo dos

    encantados, dividi a Dissertao em trs partes.

    A primeira parte composta por captulos mais tericos: o Captulo 1.2, L vem o seu navio, com a bandeira verde azul, alm de tratar do uso do termo encantaria nos cultos afro-brasileiros, pretende apurar se seria possvel inferir desses empregos uma espcie de categoria

    informadora de alguma peculiaridade que nesses contextos simblicos no pudesse expressar-

    se por outro meio e que possa apresentar relevncia etnopsicolgica. Tambm com o intuito

    de situar o leitor que no possui qualquer vivncia relacionada a esses cultos, o Captulo 1.3,

    Umbanda: Luz que veio de Aruanda para tudo iluminar, trata de aspectos comuns ao

    universo umbandista e faz um apanhado geral do seu culto, guias e orixs, bem como sobre a

    relao dos mdiuns com esse universo.

    A segunda parte tem como objetivo apresentar o mtodo utilizado nessa pesquisa,

    procura reunir diferentes perspectivas para elaborar e explicitar como possvel, numa

    perspectiva etnopsicolgica, compreender a insero dos encantados na umbanda. O Captulo

    2.1, Mas que terreiro esse? Pisa devagar..., apresenta o meu percurso em campo,

    inquietaes, reflexes e perspectivas tericas utilizadas para a coleta de dados.

    A terceira parte apresenta os resultados e discusso. No Captulo 3.1, O Templo de Umbanda Caboclo Flecha de Ouro, fao uma descrio geral do terreiro estudado, incluindo

  • 23

    aspectos fsicos do lugar, composio do culto, guias, etc. No Captulo 3.2, Encantaria no Flecha de Ouro, apresento os encantados desse terreiro tal como se mostraram para mim, suas formas de trabalho, momentos em que eram incorporados e caractersticas gerais. No Captulo

    3.3, Quer conhecer o mistrio? Vai l pras ondas do mar, conto sobre meu processo de iniciao e meu relacionamento com a encantaria. No Captulo 3.4, Ele pequenininho,

    mora no fundo do mar, trato das semelhanas que percebi em campo entre os guias

    encantados e a linha das crianas. No Captulo 3.5, Quem desencantar Lenol, pe abaixo o Maranho, procuro compreender como se deu a insero dos encantados no Templo de Umbanda Caboclo Flecha de Ouro e, por fim, no Captulo 3.6, Herundina, a flor que brilha o dia, ela a pororoca, ela a luz do dia, levanto hipteses sobre o papel dessa linha nesse contexto e teo algumas reflexes sobre a importncia da encantaria para a umbanda.

  • 24

    1.2 L vem o seu navio, com a bandeira verde azul

    Chamada dos encantados1 Chamei na praia ningum atendeu Tornei a chamar

    ningum deu ateno Chamei na praia praia do Lenol

    pertencente ao Rei Sebastio

    A literatura acadmica a respeito dos encantados se restringe aos estudos

    antropolgicos ou sociolgicos, em sua maioria, provenientes de pesquisas realizadas nos

    estados do Par e Maranho sobre o tambor-de-mina, uma religio trazida para essas regies

    pelos africanos escravizados (CAMPELO, 2007; FERRETTI, S., 1996; FERRETTI, M.,

    2000, 2006, 2008; MAUS, 2005; MAUS; VILLACORTA, 2001). Mesmo nessas pesquisas desenvolvidas em cultos que j eram morada dos encantados

    antes da sua migrao em maior escala para a umbanda, a noo de encantado, tal como foi

    possvel descrev-la mediante as informaes colhidas em campo, apresenta-se envolta em

    mistrios e indefinies. Talvez por algum elo na cadeia de transmisso da tradio ter se

    perdido ou mais provavelmente por tambm l a categoria, parcialmente concebida como

    intrinsecamente incognoscvel, no ter se sistematizado conceitualmente.

    Nesses estudos os encantados so referidos como seres que teriam vivido na terra e

    no morreram, mas se encantaram, tornaram-se invisveis (FERRETTI, M. 2000, 2008;

    MAUS; VILLACORTA, 2001; PRANDI; SOUZA, 2001); ou que sempre estiveram na condio de encantados, nunca teriam sido mortais; e haveria mesmo alguns encantados de

    origem totalmente desconhecida (FERRETTI, S., 1996; LEACOCK, R.; LEACOCK, S.,

    1972).

    Segundo Seth e Ruth Leacock (1972) que estudaram as religies afro-brasileiras de

    Belm, principalmente o Batuque , os membros desse culto apontam a linha da encantaria

    como sendo um mistrio que os homens jamais entenderam. Seguindo essa mesma

    perspectiva, os estudos de Mercante (2000) dos rituais de cura da Barquinha (uma derivao

    1 Cantiga dos encantados tocada nos cultos do Templo de Umbanda Caboclo Flecha de Ouro.

  • 25

    do Culto do Santo Daime que, tal como este, se originou no Acre) mostraram que os

    encantados so considerados coisas secretas; sabe-se que so entidades2 com muitos

    conhecimentos, habitam o mundo espiritual, purificando-se ou cumprindo penitncia, e so

    fundamentais no desenvolvimento dos trabalhos espirituais.

    Um dos mistrios relacionado encantaria que essas entidades podem se

    manifestar na forma humana ou animal (FERRETTI, S., 1996; FERRETTI, M., 2000, 2008;

    MAUS; VILLACORTA, 2001). De acordo com Ferretti (2000, 2008), a transformao em animal pode ocorrer de maneira involuntria e ser considerada como uma espcie de priso,

    ou ser utilizada como uma estratgia de fuga ou para transpor algum obstculo.

    Acrescenta-se que so seres que moram no encante, uma regio subterrnea ou

    subaqutica (LEACOCK, R.; LEACOCK, S., 1972), local em que se encantaram quando

    foram atrados por outros encantados (MAUS, 2005; MAUS; VILLACORTA, 2001). A natureza e a localizao desses lugares variam de acordo com o tipo de encantado.

    Por exemplo, ndios encantados vivem nas profundezas das florestas virgens, espritos

    aquticos abaixo dos rios, lagos e mares, enquanto outros podem viver em elaboradas cidades

    abaixo das civilizaes humanas (LEACOCK, R.; LEACOCK, S., 1972).

    Para Ferretti (2008), o encante um local afastado dos homens, descrito como

    misterioso, de muito poder e reabastecimento de foras, mas quando cercado ou interditado

    por algum, isso pode resultar em muitas mortes. Portanto, representa tambm um lugar de

    grande risco. Segundo a mesma autora (2000), essas entidades podem habitar ainda rvores,

    matas, poos, baas, pedras, entre outros lugares.

    A crena nos encantados derivaria de lendas de origem europeia e relacionar-se-ia a

    histrias de prncipes e princesas encantadas, mas tambm influenciada por concepes de

    origem indgena, tais como a ideia de lugares situados abaixo da superfcie terrestre; e noes

    africanas como a de orix, que igualmente no se confunde com as entidades espirituais

    (MAUS, 2005; MAUS; VILLACORTA, 2001). Para Carneiro (1981), o culto aos encantados, nos candombls da Bahia, seria o resultado da mistura dos mitos dos negros

    bantos aos dos amerndios.

    Segundo Prandi e Souza (2001), que estudaram a encantaria do tambor-de-mina em

    So Paulo, essas entidades se organizam em famlias que, de maneira geral, manteriam as

    mesmas caractersticas nos terreiros do Maranho, Par e So Paulo. Para Seth e Ruth

    Leacock (1972), tambm haveria um consenso entre os adeptos com relao s famlias dos

    2 Utilizarei os termos entidades, guias e espritos como sinnimos, conforme a linguagem caracterstica dos meus interlocutores em campo, que utilizam tais termos para se referirem aos seres que so incorporados nos cultos.

  • 26

    encantados. Alm disso, o nmero de espritos no seria infinito, havendo uma relativa

    constncia, ainda que novas entidades sejam introduzidas de tempos em tempos, e outras

    percam sua popularidade e sejam esquecidas.

    As principais famlias so: a do Lenol, composta pelo rei Dom Sebastio, a Rainha

    Barba Soeira, Princesa Tia Jarina, Duque Marqus de Pombal, etc. A Famlia da Turquia,

    chefiada pelo Rei Mouro que travou batalhas contra os cristos. Uma das principais

    representantes da famlia dos mouros a Cabocla Mariana, grande porta-voz dos encantados

    em So Paulo. H ainda as famlias da Bandeira, da Gama, de Cod, da Baa, de Surrupira, do

    Juncal, dos Botos, dos Marinheiros etc (PRANDI, 2005).

    Cabe assinalar que, de acordo com Ferretti (1996, p. 4):

    Embora haja uma certa uniformidade na representao das entidades espirituais, a nao, a famlia e a idade de uma entidade pode variar de um terreiro para outro, uma vez que se apoiam em relaes mltiplas muito complexas.

    Ferretti (1992), em Repensando o turco no tambor-de-mina, apresenta a subdiviso

    a famlia da Turquia em trs subgrupos: a famlia de Ramos, Ferrabrs e a dos Mouros.

    Afirma ser a famlia da Turquia uma das linhas mais antigas e de maior prestgio no culto aos

    encantados. Os turcos, alm de serem uma reelaborao do romance de Carlos Magno e os Doze Pares de Frana, tambm so influenciados pelas mouriscas, danas populares realizadas em festas religiosas no Brasil e em Portugal. Considerando que, na qualidade de

    encantados, os membros da famlia da Turquia no se sujeitam a condicionamentos temporais

    e espaciais, h a possibilidade de incorporao de novos personagens ao panteo, mesmo que

    eles tenham vivido muitos sculos aps a morte de Carlos Magno. De maneira geral, ela

    composta por guerreiros identificados com lutas por questes religiosas.

    Meyer (2001), em seus estudos sobre os Caminhos do Imaginrio no Brasil, aponta

    para a persistncia de muitas formas e temas que remetem s mais antigas tradies

    europias, j, de h muito, mortas l (p. 148). Tambm trata da histria de Carlos Magno e os Doze Pares de Frana como pea importante presente no imaginrio dos nordestinos, provavelmente, por estes se identificarem com aspectos de bravura e determinao diante dos

    obstculos mostrados pelos guerreiros dessa histria. A autora entende o combate entre

    mouros e cristos, que encenado nas cavalhadas, folguedos e outras manifestaes

    populares, como uma metfora que permite compreender melhor o Brasil. Para ela, essas

    narrativas persistiram no imaginrio brasileiro, embora estejam to afastadas no tempo e

    espao de suas matrizes originais, possivelmente porque aqui tambm houve uma Guerra

  • 27

    Santa da Converso, com a imposio, muitas vezes violenta, dos valores, crenas e costumes dos europeus colonizadores sobre os colonizados. E mais do que isso, ela afirma que se trata

    de uma metfora que a histria recente da ptria amada ainda no permite aposentar (p.

    158), j que mudam as formas de exercer o poder, mas tm mudado bem pouco os modos de

    relao com e do poder (p. 159).

    A constituio do imaginrio de um povo pode seguir caminhos muitas vezes

    incompreensveis primeira vista, inicialmente, a presena nas memrias dos nordestinos de

    elementos provenientes de narrativas sobre fidalgos franceses pode parecer absurda. No

    entanto, Meyer (2001) relacionou essas imagens histria e vivncias dessa populao.

    Ferretti (1992), em seus estudos sobre o turco no tambor-de-mina, igualmente encontrou

    referncias que a levaram a concluir que o romance de Carlos Magno e os Doze Pares de Frana contribuiu para a elaborao das famlias turcas de encantados. Mas no se sabe se ao serem incorporados nos cultos afro-brasileiros do Sudeste os encantados tambm estariam

    associados a essas narrativas, ou mesmo se haveria outras histrias que poderiam ser

    relacionados a eles.

    De acordo com Prandi (2005), o culto aos encantados foi trazido para So Paulo em 1977, por Francelino de Xapan e, da sua Casa das Minas de Tia Jarina, derivaram diversos

    terreiros que se espalharam pela regio Sudeste. E o caminho de volta tambm muito

    percorrido, os cultos afro-brasileiros do Sudeste tambm exercem grande influncia na Mina

    da regio Norte e Nordeste.

    O contato das religies afro-brasileiras do Norte, ligadas tambm s tradies culturais

    indgenas, tais como o terec, paj ou brinquedo de Santa Brbara; com o tambor-de-mina,

    tanto nessa regio como no Sudeste, resultou em formas hbridas encontradas nos terreiros

    que vm sendo chamadas de umbanda (FERRETTI, M., 2001).

    Ferreti (2001), em seus estudos sobre a encantaria em Cod, apresenta a me-de-santo

    Antoninha, que recebeu os assentamentos de sua me, teve contato com a umbanda em suas

    viagens para o Sudeste, fez cursos por correspondncia e incorporou alguns elementos desse

    ritual, como a festa de Cosme e Damio. Seu salo se chama Tenda Espiritual de Umbanda,

    mas afirma ser mesmo apegada s suas pedrinhas, definindo sua religio como sendo da mata do coco, da pedra, do cho. Suas entidades so os encantados, ou invisveis, mas no fala muito a respeito deles. Durante seu desenvolvimento, conta que quem entrava no quarto

    no falava sobre o que via (ela fez comentrio e foi castigada); ficou recolhida por sete dias,

    bebia ch de capim-limo e gengibre, e comia papa de milho sem sal; rezava dia e noite; sua

  • 28

    me lhe dizia: o que voc v no fala, a encantaria tem mistrio, tem mironga; assim, tornou-se vodunsi de cabea amarrada, ouvidos tapados e ps no cho (p. 114-115). Com relao interao dessas entidades com os adeptos de seu culto, alguns

    mdiuns com um dom especial, a vidncia, podem v-los. possvel ainda aparecerem em

    sonhos e nos transes medinicos (FERRETTI, M., 2008). E quando so incorporados danam,

    bebem e conversam (PRANDI; SOUZA, 2001).

    O contato das pessoas da assistncia com os encantados geralmente se d atravs de

    consultas. Elas procuram os terreiros para perguntar algo ou pedir auxlio para essas

    entidades, que lhes prescrevem obrigaes, tais como acender velas, tomar banho de ervas ou

    outro tipo de ritual. Os consulentes, por sua vez, contribuem com dinheiro, ou algo de valor

    para o mdium ou lder da casa. O seu contato com o encantado ocorre, portanto, atravs dos

    mdiuns (LEACOCK, R.; LEACOCK, S., 1972).

    J a relao destes com os encantados extremamente ntima. Referem-no como me,

    pai ou filho. E, alm de ceder seu corpo, h uma srie de obrigaes que precisam cumprir,

    como restries alimentares e sexuais; ou ainda providenciar oferendas, roupas, acessrios e

    objetos rituais para eles e manter um santurio em casa, entre outras (LEACOCK, R.;

    LEACOCK, S., 1972).

    Segundo Seth e Ruth Leacock (1972), o encantado desencadeia o relacionamento com

    o ser humano. Potencialmente toda pessoa poderia receber um encantado. H encantados que

    incorporam mesmo contra a vontade do indivduo, enquanto algumas pessoas, apesar de

    desejarem incorporar um encantado, jamais conseguiro tal feito.

    H certa ambiguidade a respeito dessas entidades, j que podem atuar como curadores

    e protetores ou causar doenas (LEACOCK, R.; LEACOCK, S., 1972; MAUS, 2005).

    Podem ainda punir severamente seus protegidos e so, muitas vezes, responsabilizados por

    comportamentos, tais como o alcoolismo e a agressividade (FERRETTI, M., 2008). Segundo

    Boyer (1999), ora essas entidades so associadas aos orixs e santos catlicos, ora so

    considerados como mais prximas dos seres humanos, apresentando comportamentos como

    fumar, beber e xingar, alm de serem capazes de transitar por zonas sombrias, s quais

    outros guias no tm acesso. Da mesma maneira, Seth e Ruth Leacock (1972) encontraram

    vises distintas sobre esses seres que, s vezes, so vistos como mais caridosos do que a

    maioria das pessoas, outras so responsabilizados por vrios tipos de calamidades, podendo

    punir uma pessoa para demonstrar seu poder, ou at mesmo mat-la, causando um acidente.

    Poderiam ainda fechar as portas de uma fbrica, provocando demisses em massa, etc.

  • 29

    Acredita-se tambm que sejam capazes de provocar comportamentos estranhos que

    beneficiem seus devotos, como, por exemplo, induzir pessoas ricas a fazerem doaes a

    terreiros. Podem ainda viajar pelo vento e chegar a qualquer lugar da terra rapidamente. So

    capazes de ouvir o chamado humano de qualquer lugar e velar por seus seguidores. Eles

    tambm conhecem o futuro e sua habilidade para prev-lo um de seus maiores atributos

    (LEACOCK, R.; LEACOCK, S., 1972).

    Outra forma de demonstrao do poder dessas entidades se d durante a incorporao,

    ao afastarem o esprito da pessoa de seu corpo, tornando-o capaz de fazer coisas que

    normalmente no poderia, tal como passar a chama de uma vela por sua pele, faz-lo andar

    sobre carvo em brasa, ou lavar as mos com leo quente (LEACOCK, R.; LEACOCK, S.,

    1972).

    De acordo com Maus e Villacorta (2001), haveria ambiguidade tambm no fato

    dessas entidades incorporarem, j que no so espritos na acepo habitual e mais familiar de

    almas sem corpo, pessoas desencarnadas, comum no kardecismo e aplicvel generalidade

    dos guias da umbanda. Durante o transe medinico, a incorporao no seria apenas da alma

    do encantado, mas de seu corpo. J para Seth e Ruth Leacock (1972), quando os encantados

    esto em suas encantarias, so pensados como tendo corpos, porm, ao subirem terra, sobem

    como espritos, invisveis para os homens que, portanto, podem incorpor-los.

    Em pesquisa anterior no Templo de Umbanda do Caboclo Flecha de Ouro, Pelliciari

    (2008) deparou-se com os encantados que, na ocasio, no foram muito receptivos pesquisa.

    Apesar da encantada que incorpora na dirigente do terreiro ser uma das entidades mentoras da

    casa, responsvel pela proteo do terreiro e por passar importantes ensinamentos aos

    mdiuns atravs de palestras, por exemplo , ela se mostrou avessa exposio de seus

    mistrios. Solicitou que seu nome no fosse revelado, mas contou que trabalha na vibrao do

    orix Egunit, que gosta de acessrios e da cor vermelha, alm de ser enorme, no cabendo

    nas roupas da mdium. Ao incorporar, empurra o esprito da dirigente para longe e chega

    quando e da maneira que quiser, no obedecendo a regras.

    A dirigente revelou nesse estudo (PELLICIARI, 2008) que considera importante

    disponibilizar, nos rituais de sua Casa, a oportunidade para que as diferentes entidades

    trabalhem dentro de suas particularidades. No caso, os encantados trabalham na linha das

    guas, porm quando h um trabalho mais complicado a ser realizado, que envolva questes

    de doenas que possuam uma origem emocional, por exemplo, a encantada guia da casa

    incorporada e costuma trabalhar com pedras, fogo, punhais, faca, etc. Alm disso, a encantada

    se transforma em guia, possuindo uma viso em 360, uma viso de tudo.

  • 30

    Houve uma ocasio, por exemplo, em que a encantada apareceu para um dos mdiuns

    do terreiro como uma guia. Ele relatou que certo dia ouviu uma briga de pssaros em sua

    casa, um barulho infernal e avistou a ave, associando-a encantada. Em seguida, cochilou e viu o esprito de uma criana, que chorava muito. Como no sabia o que fazer para que ela

    parasse de chorar, levou-a at a encantada que j os esperava e cuidou da criana

    (PELLICIARI, 2008).

    Diversas so as histrias e verses a respeito desses seres. Trata-se, portanto, de um

    tema com mltiplos sentidos e aberto a ampliaes e reconfiguraes semnticas.

    No entanto, possvel perceber que alguns traos se repetem e podem, talvez, ou ser

    entendidos como traos que permitem inferir uma certa concepo do espiritual vagamente

    difundida, implcita, ou em construo, provavelmente alternativa a outras interpretaes

    disponveis.

    Nos encantados ressalta-se particularmente o mistrio e a invisibilidade. Longe da

    sistematizao do mundo dos espritos, disponibilizada pela literatura kardecista, os

    encantados ressaltam o desconhecido, no limite, sublinham uma certa irracionalidade da

    experincia espiritual.

    Igualmente na contramo dessa literatura, os encantados no precisam ser mortos

    nem desprovidos de corpo. Podem nunca ter nascido ou nem mesmo terem morrido. Sendo

    assim, tal como algumas categorias espirituais umbandistas (BAIRRO, 2008), parecem

    destitudos de compromissos com a necessidade de se mostrarem verossmeis luz de uma

    sistematizao metafsica, seja l ela qual for. Em vez de modelos cientficos, a literatura

    em que se inspiram claramente a narrativa ficcional e as suas fronteiras, as da inveno e do

    maravilhoso. Deste modo no apenas se distinguem, mas se contrapem a uma certa

    racionalidade esprita.

    Os encantados ultrapassam as fronteiras da lgica. No apenas driblam a barreira da

    morte, supostamente provando a imortalidade do esprito, como especialmente refutam a

    separao entre morte e vida. Tanto podem ser seres espirituais corpreos, como viventes que

    incorporam como se fossem espritos. Tambm evidenciam pouco apreo pelas demarcaes

    entre reinos naturais e a segregao entre formas de vida. Podem ser peixes gente, rvores

    pessoas e mesmo pedrinhas. Deste modo, justificvel que a generalidade da literatura a

    seu respeito se tenha detido na descrio particular de cada uso bem contextual da noo de

    encantado.

  • 31

    1.3 Umbanda: Luz que veio de Aruanda para tudo iluminar Aruand, Aruand refere-se, segundo os adeptos do culto umbandista, ao lugar onde

    ficam os espritos quando no esto trabalhando em terra. O culto umbandista se trata,

    portanto, de um ritual baseado na possesso. Converter-se umbanda significa aceitar a

    possesso, isto , a comunicao com os eguns e encantados, espritos desencarnados de

    origens msticas que se colocam a servio dos humanos aflitos. (SOUZA, 2001, p. 306).

    Esses espritos so incorporados nos rituais, tambm chamados de giras, visando caridade,

    que possibilita a evoluo espiritual tanto dos mdiuns como dos prprios espritos.

    Em sua histria, a umbanda passou por perodos de perseguio de seus adeptos por

    parte do Estado, durante a revoluo de 1930 at a redemocratizao em 1945, e por

    perseguies das igrejas catlica e neopentecostais, que continuam at os dias atuais. Na

    dcada de 50, com o intuito de proteger os terreiros e na tentativa frustrada de padronizao

    da religio, houve a criao das federaes e congressos. Em seu apogeu, a umbanda teve um

    grande crescimento do nmero de terreiros, alm de uma maior aproximao com a poltica,

    que buscava o apoio das massas (dcadas de 60 e 70), seguido por um decrscimo (dcada de

    80) e, segundo Negro (1996), passou de predominantemente negra e construo cultural

    marginalizada expresso de interesses das classes mdias.

    Esse culto rene elementos das culturas negra, amerndia e europeia (CONCONE,

    1987), alcanando todas as classes sociais. De acordo com Souza (2001), possui uma grande

    capacidade de autorredefinio e se adapta ao meio social em que se insere, sendo capaz de

    atender aos anseios das camadas mais populares ao buscar a resoluo de problemas de ordem

    material, mas tambm atrai as camadas mdias com mensagens racionalizadas e terapias para

    o corpo e para alma.

    , portanto, caracterstica marcante da umbanda o fato de no possuir um sistema

    rgido de regras, estando em constante reformulao. Segundo Souza (2001), o estilo do

    terreiro em grande parte resultado da influncia, personalidade e cosmoviso do pai-de-

    santo. H, no entanto, certa organizao que costuma se repetir:

    Segundo Birman (1985), Oxal, o Deus supremo, ocupa uma posio de destaque no

    panteo, seguido dos demais orixs africanos (Ogum, Oxum, Iemanj, Ians, Oxossi, Xang,

    Ibeji, etc) e espritos de vrias linhas que so vinculados aos orixs. Apesar das linhas serem

    variveis, h uma srie de caractersticas atribudas aos orixs que se manifestam tanto nessas

  • 32

    linhas a que pertencem, como na personalidade de seus filhos (cada adepto possui um ou mais

    orixs, donos de sua cabea, ou guias). As entidades que so incorporadas nos terreiros

    adquirem marcas de sua presena que se tornam inconfundveis, transformando-se em

    personagens com vida prpria.

    Cada categoria espiritual possui um significado prprio, alm de ser possvel um

    processo de constante mutao e reelaborao. Segundo Bairro (2004, p. 199), a umbanda

    inclui em seu panteo todos os tipos humanos com os quais socialmente ou pela memria e

    na fantasia convivemos. Nessa mesma linha, Concone (1987) afirma que a umbanda

    transforma em smbolos imagens do cotidiano popular, buscando assim o seu significado mais

    profundo. Sendo que, para essa autora, esses smbolos so polmicos, contestadores e

    densos, portanto, de possibilidades (CONCONE, 1987. p. 284).

    Eis os principais tipos que so incorporados nos terreiros e algumas caractersticas que

    podem ser associadas a eles:

    Os pretos velhos so os espritos de escravos, grandes curadores e benzedores, sua fala

    calma e comumente se mostram humildes, pacientes e com uma grande sabedoria,

    principalmente a respeito de ervas e seus efeitos (NEGRO, 1996). So ainda associados ao

    trabalho, ao ambiente rural (CONCONE, 1987) e feitiaria (BIRMAN, 1985).

    Os caboclos so os espritos de ndios, relacionados tambm cura, s ervas e mata,

    so srios e altivos (NEGRO, 1996). Vivem na natureza, so livres, fortes e justos

    (CONCONE, 1987). So referidos pelos adeptos da umbanda como um modelo ideal a ser

    alcanado, refletindo as potencialidades dos mdiuns (ROTTA, 2010).

    As crianas so espritos infantis associados pureza, alegria, ao doce e aos santos

    Cosme e Damio (NEGRO, 1996). So relacionados tambm ao orix Ibeji, cura, aos

    jardins floridos, futuridade e, por sua proximidade com Deus, totalidade, ao incio e fim e

    so grandes mensageiros do divino (BAIRRO; MARTINS, 2009).

    Os baianos so brincalhes, debochados, alegres e especialistas na resoluo de

    conflitos amorosos e na quebra de demanda (NEGRO, 1996). Adoram festas e tambm so

    associados malandragem (CONCONE, 1987).

    Os marinheiros so mulherengos, gostam de beber e so timos para quebrar demanda

    e auxiliar na cura de doenas (NEGRO, 1996).

    Os boiadeiros trabalham com o lao desmanchando demandas (NEGRO, 1996). So

    srios e bravos, associados ao trabalho (CONCONE, 1987).

    Os ciganos so alegres e, de acordo com os praticantes do culto, costumam realizar

    grandes trabalhos de cura e de prosperidade em diversos sentidos, financeira, afetiva, etc.

  • 33

    Zs Pelintras so bomios e malandros, podendo trabalhar em diferentes linhas

    (NEGRO, 1996).

    Os exus representam o lado ambguo e marginal da sociedade, so o povo da rua,

    responsveis pela abertura de caminhos (BIRMAN, 1985). Bebem pinga, trabalham em

    cemitrios e encruzilhadas, seu trabalho rpido e potencialmente perigoso (NEGRO,

    1996).

    As pombas-giras, segundo Negro (1996), possuiriam as mesmas caractersticas do

    exu. De acordo com Bairro (2003), so figuras associadas sexualidade, seduo,

    fertilidade e aos prazeres sensoriais. Barros (2010), que estudou os sentidos relacionados s

    pombas-giras, afirma que, muito alm de figuras estereotipadas de prostitutas, ou bruxas, as

    pombas-giras se relacionariam a um entendimento do feminino que inclui o cuidado e o

    acolhimento.

    Os exus mirins estariam relacionados ao adolescer e s crianas de rua (BAIRRO,

    2003).

    De acordo com Negro (1996), na umbanda no h uma clara diviso entre o bem e o

    mal, tem-se a direita composta por espritos de luz (caboclos, pretos velhos, crianas), as

    linhas intermedirias (marinheiros, baianos, boiadeiros, marinheiros, ciganos, zs pelintras) e

    a esquerda (exus, pombas-giras, exus mirins) com entidades que agem atravs da troca e

    muitas vezes fazem mais o bem do que as entidades da direita. As entidades da esquerda

    protegem as costas, enquanto as da direita ficam na frente e ambas so necessrias para o bom

    andamento dos trabalhos e desenvolvimento dos mdiuns.

    Mas as entidades no so importantes apenas nos rituais, elas fazem parte da vida dos

    adeptos de um modo geral, organizando a maneira como interpretam e lidam com os fatos do

    seu cotidiano, constituindo comportamentos e atitudes. Por exemplo: avistar um pssaro

    especfico em determinada ocasio, para quem no possui o domnio da linguagem

    umbandista, pode no ter significado algum. No entanto, a esse pssaro podem ser atribudos

    mltiplos sentidos dentro das concepes da umbanda, ele pode ser um mensageiro de algum

    guia, ou at mesmo ser a prpria entidade, que no caso dos encantados, pode se transformar

    em animais para cumprir alguma tarefa, como avisar sobre algum perigo.

    Portanto, conhecer o universo umbandista permite conhecer melhor o sujeito que

    vivencia esse fenmeno no apenas durante as giras, mas em seu dia-a-dia.

    Alm disso, na umbanda se recriam crenas e doutrinas, se incorporam e combinam

    velhos e novos elementos, de forma ativa, produzindo novos sentidos e usos originais de

    prticas antigas, sendo possvel que essa tendncia combinao seja uma herana africana,

  • 34

    j que comum na frica a associao entre deuses de diferentes etnias. Segundo Silva

    (1994): Entre os vrios fatores que contriburam para essa associao esto as semelhanas existentes entre o conceito de orix dos Irubs, de voduns dos Jejes e de inquices dos Bantos... A possibilidade dos devotos de incorpor-las pra que pudessem danar e receber homenagens foi outra caractersticas que aproximou seus cultos (p. 69).

    Segundo Silva (1994), na umbanda, se incorporam novos elementos devido crena

    de que, quanto maior nmero de linhas cultuadas no terreiro, maior o conhecimento do pai-

    de-santo sobre as diferentes entidades e mais poderoso ele considerado.

    Assim, cada entidade ou classe de espritos seria incorporada ao sistema para

    acrescentar ou contrapor perspectivas, contribuindo com uma polifonia acerca de diferentes

    temas (BAIRRO, 2002). No entanto, o que pouco se sabe como isso acontece.

    Pesquisar os encantados na umbanda no apenas uma oportunidade de estudar o

    sentido da sua introduo em um novo contexto, como tambm o modo como, em um culto de

    possesso como esse, surgem reinterpretaes conceituais das categorias espirituais, o seu

    alcance e o modo da sua instituio.

  • 35

  • 36

    2. MTODO

  • 37

  • 38

    Este estudo visa contribuir para o desenvolvimento de um programa cientfico em

    etnopsicologia e aumentar o conhecimento acadmico sobre a umbanda.

    A perspectiva etnopsicolgica foi utilizada no intuito de colaborar com uma viso no

    reducionista do culto umbandista e valorizar o conhecimento que produzido nesse contexto.

    Essa perspectiva compreende a psicologia como uma multiplicidade de saberes no restrita ao

    mundo acadmico, isto , considera a sistematizao de conceitos relativos ao psicolgico

    num determinado grupo cultural potencialmente to relevante quanto as perspectivas tericas

    aplicadas nos diferentes campos da psicologia. Portanto, traduz a idia de haver mltiplas

    concepes psicolgicas produzidas em contextos culturais distintos.

    Para Lutz (1985) todas as pessoas desenvolvem algumas formas de compreender

    aspectos do ser humano e da vida social e a etnopsicologia seria uma disciplina que se

    preocupa com a maneira como as pessoas orientam seus comportamentos e relacionamentos,

    bem como a forma como conceituam e discutem seus processos mentais e de terceiros.

    Portanto, o enfoque etnopsicolgico til para o estudo dos sentidos atribudos, no

    contexto umbandista, aos encantados, na medida em que valoriza a compreenso das sutilezas

    das construes categoriais do pensamento afro-brasileiro, desprovidas de autoria individual.

    Alm disso, lcito admitir que uma dada etnopsicologia, na qualidade de um saber

    socialmente construdo e compartilhado, comporte igualmente a possibilidade de revises e

    reinterpretaes do conhecimento previamente dado e critrios para a efetivao e legitimao

    dessas mudanas.

    De acordo com Bairro (2008), estudos etnopsicolgicos da cultura popular so

    importantes para o conhecimento de explicaes do psiquismo no acadmicas, alm de

    propiciarem o estabelecimento de um dilogo entre culturas e em situaes peculiares como a

    brasileira, inclusive intracultural (uma vez que a cultura afro-brasileira ou amerndia, ainda

    que marginalizadas, no podem ser entendidas como extrnsecas cultura nacional).

    Nessa perspectiva, a miscigenao da sociedade brasileira teria criado condies tanto

    para o estudo da interferncia de variaes culturais na delimitao do chamado psiquismo

    como tambm [para] o estudo das suas interpenetraes, recombinaes e dinamismo.

    (BAIRRO, 2008, p.251).

    Nesse sentido, a progressiva generalizao da categoria encantado se configura em

    uma oportunidade para compreender como, no universo da religiosidade popular e dos cultos

    de possesso, se processam reelaboraes. Dessa maneira, o estudo da incluso dos

    encantados, na medida em que no se trata de um mero acrscimo ao panteo, mas igualmente

    ao que tudo indica implica uma substancial reinterpretao de pressupostos vigentes sobre a

  • 39

    natureza dos espritos e um dilogo e debate profundo com pontos de vista de prticas

    religiosas diversas, constitui-se numa oportunidade mpar para trazer luz estes processos.

    No mbito da perspectiva etnopsicolgica, que prev uma explicitao das concepes

    acadmicas que sejam o ponto de partida do pesquisador, a psicanlise contribuiu para a

    elaborao de um mtodo que possibilitasse um espao em que diferentes vises pudessem ser

    discutidas, sem atribuio de valor.

    Segundo Bairro (2003, p. 157)

    Qualquer tomada de partido a respeito das construes do imaginrio social como cognies tem implicaes ticas e polticas. Define uma pr-concepo de lugar do sujeito popular relativamente ao poder de conhecer, bem como se, e em que medida, reconhecido como interlocutor ou reconduzido a objeto de anlise (na maioria das vezes) para reafirmar a superioridade da cultura das elites, em vez do reconhecimento das diferenas.

    Como ferramenta metodolgica, o mtodo psicanaltico ampliado ao social (escuta

    participante) se mostrou til para a apreenso de concepes etnopsicolgicas da comunidade

    estudada. A psicanlise foi utilizada como um mtodo que possibilita que o colaborador seja

    visto como interlocutor a quem dar ouvidos, respeitando tanto o significado manifesto da sua

    comunicao, como outros sentidos muitas vezes invisveis aos olhos da conscincia

    imediata. Segundo Bairro (2005, p. 443), A psicanlise proporciona meios para, mais do

    que atribuir significados, resgatar nas coisas da realidade cultural a sua dimenso enunciativa,

    situando, interpelando e responsabilizando sujeitos sociais.

    No entanto, cabe assinalar que no se trata de transpor todo o arcabouo terico

    psicanaltico do modelo clnico para a investigao no contexto social, nem de aplicar esse

    modelo para explicar as manifestaes umbandistas, reduzindo-as a teorias pr-estabelecidas.

    Utilizo a escuta analtica para dar ouvidos ao implcito na comunicao verbal

    (inconsciente), bem como ao que muitas vezes no falado, mas dito atravs de gestos,

    postura corporal, sensaes, tonalidade da voz etc.

    Segundo Bairro (2008, p.10),

    A psicanlise til para orientar a escuta para a percepo das mincias e articulaes significantes por meio das quais a umbanda produz sentidos, mas no serve para atribuir um significado aos acontecimentos do transe, que se sobreponha e silencie o modo como eles prprios se enunciam. No se alcana o significado total do fenmeno umbandista, apenas se pode circunscrever configuraes significantes do mesmo, que o contornam e produzem sentidos, mas no o reduzem nunca a significados completos.

  • 40

    Entendida desta maneira, a escuta analtica pode ser uma ferramenta importante para o

    estudo da umbanda, na medida em que assinala as mincias e sentidos implcitos ao sistema

    estudado e no atribui significados alheios ao campo. Este procedimento confia ao outro, e ao

    prprio movimento discursivo, a funo de interpretar a si prprio, a partir de sentidos a

    respeito do que dito e mostrado e que se precipitam durante a relao entre pessoas

    (pesquisador e umbandistas).

    Tambm foi utilizado o mtodo etnogrfico com vistas a possibilitar a compreenso -

    por dentro - do emprego e introduo da categoria de encantamento, bem como um

    entendimento profundo dos valores e crenas que guiam as aes dos indivduos. De acordo

    com Laplantine (2004), a etnografia permite a imerso na lgica prpria da cultura estudada,

    tendo isso em vista, busquei com esse trabalho apreender as estruturas conceituais por trs dos

    atos dos sujeitos.

    Para tanto, alm da etnografia, entendida em sua definio clssica, que se limita

    descrio do visvel, das imagens como aparecem (LAPLANTINE, 2004), utilizei a escuta

    participante (BAIRRO, 2005). Nessa perspectiva, procura-se ampliar as possibilidades de

    apreenso de sentidos, escutar e elucidar possveis ambiguidades. Deste modo, no lugar de

    privilegiar a observao em campo, o pesquisador utiliza recursos psicanalticos para ouvir

    as diferentes manifestaes do fenmeno.

    Portanto, o que distingue a escuta participante das demais tcnicas da etnografia o

    fato de que nessa perspectiva no se considera que haja um marco que separa o pesquisador

    daquilo que ele estuda. O distanciamento entre pesquisador e seu objeto de pesquisa, to

    enfatizado e discutido nas cincias humanas e necessrio quele que observa, j que

    impossvel ver algo que se encontra muito prximo dos olhos, no imprescindvel ao

    procedimento que se baseia na escuta. Autores como Brumana (2007) afirmam que, quanto mais o estudioso se identificar

    com seu objeto de estudo, menor a possibilidade de dar conta de seus sentidos, pois apenas

    um olhar externo e estranho estaria capacitado para formul-los. Para ele, ou se est na

    procisso ou se est repicando os sinos; no possvel estar numa coisa e noutra ao mesmo

    tempo. Sujeito e objetodo conhecimento etnolgico devem estar divididos por completo.

    (p. 189). A partir disso, Brumana (2007) critica Pierre Verger e Juana Elbein dos Santos por

    terem abraado os princpios religiosos, segundo ele, a ponto de se silenciarem diante dos segredos iniciticos, privando-se da liberdade de anlise de que gozariam os seus parceiros da

    academia.

  • 41

    Quando se trata do posicionamento do pesquisador, parece ainda haver certa dicotomia

    entre estar dentro ou fora do campo. De um lado, autores que se iniciaram em

    determinada religio possuem uma grande preocupao em no distorcer aquilo que

    vivenciaram em campo e criticam pesquisas que procuram enquadrar os dados obtidos numa

    perspectiva terica previamente adotada. Porm, muitas vezes os resultados disto so estudos

    muito descritivos, sem maiores reflexes. De outro lado, h os autores que consideram

    imprescindvel qualidade da pesquisa o cuidado dos estudiosos em se manterem distantes de

    seu objeto e acreditam que existe um posicionamento em campo, ou a adoo de uma dada

    teoria, que poderia proteg-los de se envolver com aquilo que estudam. Nesta perspectiva,

    questiono se o demasiado apego s teorias tambm no seria uma ameaa liberdade do

    pesquisador e qualidade da pesquisa.

    Neste estudo, reafirmo que parti do princpio de que no possvel um total

    distanciamento entre pesquisador e aquilo que ele se prope estudar. De acordo com

    Laplantine (2004), na preocupao em manter uma imaginada objetividade cientfica, o

    etngrafo, ao desconsiderar sua implicao pessoal com o assunto estudado, correria maior

    risco, pois no h como separar aquele que observa do que observado. No h neutralidade

    possvel quando o observador tambm observado pelos participantes da pesquisa. Assim, no

    contato com o campo, o pesquisador transformado: Construmos o que olhamos medida

    que o que olhamos nos constitui, nos afeta e acaba por nos transformar (p. 21).

    Assim, para a construo do mtodo, utilizei tambm a noo de campo-tema, de

    Spink (2003). De acordo com este autor, o campo no se restringe a um lugar especfico

    separado e distante do pesquisador, mas se refere a uma rede complexa de sentidos que se

    interconectam em momentos e lugares distintos. Tal rede tem seu incio a partir do momento

    em que o pesquisador define o assunto a ser pesquisado e pode seguir uma trajetria

    inesperada, pois se trata de um processo a ser construdo e negociado.

    Alm disso, segui as sugestes e orientaes dos colaboradores da pesquisa, optando

    pela possibilidade do pesquisador poder ocupar diferentes posicionamentos em campo sem

    abrir mo do olhar atento e de estranhamento, possibilitado pela psicanlise. Dessa

    perspectiva terica to ampla e diversa, utilizei especificamente os recursos psicanalticos que

    tratam de aspectos relacionais, a ateno flutuante3 e a ateno s relaes transferenciais e

    3 Consiste simplesmente em no dirigir o reparo para algo especfico e em manter a mesma ateno uniformemente suspensa (como a denominei) em face de tudo o que se escuta... Pois assim que algum deliberadamente concentra bastante a ateno, comea a selecionar o material que lhe apresentado; um ponto fixar-se- em sua mente com clareza particular e algum outro ser, correspondentemente, negligenciado, e, ao fazer essa seleo, estar seguindo suas expectativas ou inclinaes (FREUD, 1913).

  • 42

    contratransferenciais estabelecidas com a comunidade pesquisada. Desta forma, busquei

    estabelecer um vnculo com os colaboradores que levasse em conta os cuidados ticos, mas

    que tambm fizesse sentido e fosse til pesquisa.

    Perceber o lugar em que fui posicionada pelos colaboradores, as sensaes e

    sentimentos despertados neles e, alm disso, o que o campo despertou em mim, o que a

    psicanlise chama de transferncia e contratransferncia respectivamente, configurou-se,

    portanto, parte dos dados.

    Segundo Favret-Saada (2005), que pesquisou feitiaria no Bocage francs, seu estudo

    s foi possvel porque ela se deixou afetar pela feitiaria, experimentou pessoalmente os

    efeitos dessa forma de comunicao, sem a preocupao inicial de compreender o que se

    passava, mas deixando-se modificar pela experincia em campo e, a partir disso, pde

    estabelecer um vnculo diferenciado com os feiticeiros, o que permitiu a explorao muito

    mais ampla de aspectos de uma opacidade essencial do sujeito frente a si mesmo (p. 161)

    que em linguagem psicanaltica poderiam ser entendidos como aspectos inconscientes. Alm

    disso, a autora passou a considerar os rituais de feitiaria como mais um elemento dentro de

    um contexto, no atribuindo uma importncia central a esse evento (como provavelmente

    procederia um etngrafo) mas, por participar intensamente da vida dos praticantes, dentro e

    fora do ritual, percebeu que aquilo que vivenciado nos rituais refletir na maneira como os

    adeptos agiro em seu cotidiano.

    Cabe assinalar que poder escutar aquilo que reverberou em mim, o modo como se

    constituiu a relao com os colaboradores, foi revelador e mostrou o fenmeno estudado. O

    modo como me inseri em campo, a explicitao dos procedimentos realizados para apreender

    os sentidos sobre os encantados, ser descrito a seguir.

  • 43

    2.1 Mas que terreiro esse? Pisa devagar

    Nesta pesquisa realizei um estudo de caso no Templo de Umbanda Caboclo Flecha de

    Ouro. Os primeiros contatos com a Casa foram feitos no primeiro semestre de 2009.

    Apresentei-me para os mdiuns que so responsveis pelo contato com a assistncia e pedi

    para conversar com a dirigente do terreiro. Expliquei-lhe sobre a pesquisa, entreguei uma

    cpia do projeto de mestrado e do artigo redigido a partir da minha iniciao cientfica que

    estudou os sentidos da linha de Cosme e Damio na umbanda.

    Num segundo momento, obtive a autorizao para realizar a pesquisa, tanto da

    dirigente, quanto do Caboclo Flecha de Ouro, entidade chefe da casa e que d nome ao

    terreiro. Nesse contexto, a autorizao dos guias espirituais de fundamental importncia,

    pois nada feito sem a permisso deles. Portanto, a fim de se proceder de forma tica, no

    apenas procurei os mdiuns para apresentar as diretrizes do projeto e solicitar a eles que

    consentissem com a realizao da pesquisa, mas principalmente pedi a seus guias que me

    auxiliassem, protegessem e iluminassem meu caminho para que eu pudesse fazer um trabalho

    que fosse formoso aos olhos das entidades.

    Cabe assinalar que em trabalho de campo anterior, durante a realizao da iniciao

    cientfica, frequentei outros terreiros e tive a oportunidade de conviver com o contexto e a

    linguagem umbandista, fato que me possibilitou um maior traquejo na relao com as

    entidades. Segundo Lutz (1985), a aquisio etnogrfica da linguagem do outro a primeira e

    mais importante forma de apreender concepes etnopsicolgicas locais.

    Frequentei semanalmente os cultos da Casa abertos ao pblico, fiz registros em dirio

    de campo e realizei entrevistas com mdiuns e entidades. Primeiramente, observei

    caractersticas gerais do terreiro, tais como elementos do espao fsico, dinmica ritual, alm

    de dados acerca dos frequentadores e entidades incorporadas.

    A respeito dos encantados, observei suas manifestaes rituais, o modo e as ocasies

    em que apareceram no terreiro, alm de objetos, msicas rituais, seus gestos, formas de

    interao, etc. Tambm escutei as suas narrativas e histrias a seu respeito. De acordo com

    Segato (1997), que realizou um estudo etnogrfico do culto Xang de Recife, to essencial

    quanto a linguagem verbal a manifestao atravs do corpo, a aparncia fsica, os gestos,

    etc, porque muitas vezes no possvel para os participantes encontrarem as palavras certas

    para explicar os atributos dos santos.

  • 44

    Nas visitas semanais, o espao em que fui naturalmente acolhida foi o mesmo

    destinado aos consulentes, portanto, ao chegar para o ritual, solicitava uma ficha para

    conversar com alguma das entidades e esperava minha vez como os demais da assistncia. No

    entanto, quando os mdiuns sabiam que a linha dos encantados seria incorporada, eram

    orientados pela dirigente do terreiro a me disponibilizarem uma ficha que correspondesse a

    um dos mdiuns que giraria (incorporaria) a encantaria.

    Segundo Bairro (2005), no contexto umbandista os sentidos so revelados no cuidado

    para com o pesquisador. Assim, a possibilidade de fazer parte da assistncia, permitindo que

    os guias da casa cuidassem de mim, proporcionou um primeiro contato com a linha dos

    encantados. Isso porque, nesses rituais, ao conversar com as entidades e mdiuns, costumava

    comentar sobre minha inteno de pesquisar a linha dos encantados e a partir disso alguns

    sentidos relacionados encantaria eram revelados.

    No entanto, os encantados raramente eram incorporados nos rituais pblicos. Ao falar

    com a dirigente sobre minha dificuldade inicial em me aproximar dessa linha e tambm como

    demonstrei interesse em conhecer profundamente a religio, fui convidada a participar do

    curso de Magia do Fogo e, posteriormente, do sacerdcio (desenvolvimento medinico) e

    curso de Magia das Pedras.

    As aulas do curso de Magia do Fogo ocorreram quinzenalmente, durante o segundo

    semestre de 2010, e teve como foco os conhecimentos bsicos sobre o panteo umbandista,

    alm de magias ensinadas para os mais diversos tipos de problemas, sendo pr-requisito para

    o desenvolvimento medinico. O curso de sacerdcio teve incio em setembro de 2010 e

    trmino no final de junho de 2011, foi semanal e composto por aulas tericas com explicaes

    sobre os orixs e guias da umbanda e tambm vivncias prticas em que foram realizados

    rituais de iniciao. Posteriormente, participei ainda do curso Magia das Pedras, de junho a

    setembro de 2011, que ensinava sobre os benefcios e usos rituais de diversos tipos de pedras.

    No incio da pesquisa, em que apenas a posio de pesquisadora era possvel, as

    conversas eram mais difceis e, na maioria das vezes, eram reproduzidos os conhecimentos

    adquiridos atravs da leitura de textos e livros, pois havia uma preocupao, por parte dos

    mdiuns, em no dizer nada sobre os encantados (to pouco conscientemente compreendidos

    nesse contexto) que pudesse ser considerado equivocado luz de um suposto saber

    acadmico. Alm disso, a posio de algum de fora da religio, juntamente com sua funo

    de representante de um saber oficial, ligado s cincias e racionalidade, pareceu provocar

    formas especficas de interlocuo: os adeptos no se sentiram vontade para lidar com

    questes que envolviam sua crena mais ntima. Por causa disso decidi participar dos cursos

  • 45

    oferecidos no terreiro e j na posio de filha de santo pude ter acesso ao conhecimento

    intrnseco do campo. Tambm foi possvel minha participao em vivncias partilhadas pelos

    filhos de santo, onde sentidos sobre a linha de encantados, que no seriam abordados em

    simples entrevistas, vieram tona.

    Portanto, como mdium em desenvolvimento, frequentando a casa de duas a trs vezes

    por semana, o meu acesso s entidades e aos umbandistas foi significativamente facilitado, j

    que estava participando de algumas giras fechadas ao pblico em geral. Alm disso, a minha

    relao com o terreiro e com as entidades e colaboradores mudou desde que comecei a

    participar de cursos e iniciaes, permitindo assim um envolvimento profundo com a

    encantaria. No entanto, em momento algum se confundiu a minha posio com a dos demais

    participantes dos cursos que no possuam um foco numa investigao cientfica, isto ,

    mesmo na posio de mdium em desenvolvimento, ficava claro que meu objetivo era realizar

    uma pesquisa sobre encantados. Tratou-se mais propriamente de poder aceder aos lugares

    corretos para poder propiciar a fala e ouvir os sentidos fundamentais ao estudo, que de outro

    modo no me poderiam ter sido revelados.

    Na primeira aula do curso de Magia do Fogo, por exemplo, a dirigente do terreiro

    perguntou se havia algum que no era umbandista. Como ningum se manifestou, no curso

    foram utilizadas expresses prprias dos umbandistas e ele transcorreu com maior liberdade,

    isto , os participantes colocavam suas questes de forma mais espontnea e tambm era

    possvel notar que a dirigente se expressava com maior facilidade. J no curso de magia das

    pedras, em que um dos alunos disse que no era da mesma religio (umbanda), percebi certo

    incmodo no decorrer das aulas: a dirigente preocupava-se bastante em se explicar e traduzir

    seus conhecimentos de forma que um leigo pudesse entender, perdendo assim parte da

    espontaneidade. Alm disso, a prpria encantada guia da casa, durante uma gira fechada, aps

    contar muitas histrias sobre sua linha e a relao com os mdiuns, bem como ensinar

    algumas magias para cura e quebra de feitio, disse que nunca poderia falar da mesma

    maneira com todos os alunos do curso, pois no so seu povo (no so umbandistas).

    Assim, considerar o lugar em que o pesquisador colocado (transferncia), e permitir-

    se ter a experincia de estar ou ser umbandista, de ocupar outros lugares alm do de

    acadmico observador, de acordo com a abertura e a dinmica do campo para tal

    deslocamento, foi parte fundamental da pesquisa, pois facilitou o desvelamento dos sentidos

    implcitos no contexto. Apenas no lugar de filha da casa tive acesso s conversas informais

    mais reveladoras de sentidos sobre os encantados, principalmente, quando tais sentidos no

  • 46

    aparecem de uma forma organizada e racional, mas passando por sensaes corporais, por

    exemplo. Acrescento que esta disponibilidade e flexibilidade em nada estranha ao mtodo

    de investigao e mesmo clnica psicanaltica, que reconhecem que o analista levado e

    posicionado pelo seu interlocutor a ocupar diversas posies transferenciais (ou seja, lhe so

    atribudos papis e significados necessrios revelao de sentidos implcitos ou

    inconscientes que no poderiam apresentar-se de outro modo).

    A partir disso, cabe assinalar que a deciso de participar dos cursos foi tomada aps

    conversar com a dirigente do terreiro a respeito do tipo de comprometimento que estava em

    foco, pois eu no poderia garantir minha participao assdua nos rituais depois de concluir o

    mestrado. Por uma preocupao tica, foi preciso, por exemplo, certificar-me de que a

    participao nos rituais de desenvolvimento medinico no estava necessariamente atrelada

    ao trabalho como mdium neste templo. A dirigente esclareceu que o nico compromisso que

    uma pessoa neste tipo de desenvolvimento teria que assumir para participar dessas atividades

    restritas seria o de no utilizar os conhecimentos adquiridos para fazer o mal para outras

    pessoas. Com este compromisso esclarecido e assumido comecei os cursos de magia e

    desenvolvimento medinico.

    Silva (2000) afirma que ter acesso a informaes e percepes adquiridas em campo

    sinal de confiana e vnculo com a Casa estudada. A palavra falada considerada sagrada e os

    conhecimentos so adquiridos pelos mritos que se creditam s pessoas, pesquisadoras ou

    no. Alm disso, assinalo que a deciso de participar dos cursos, algo inicialmente no

    previsto no planejamento da pesquisa, foi tomada a partir da sugesto da dirigente e acatar as

    sugestes dos participantes da pesquisa, alm de uma atitude respeitosa, de grande utilidade na medida em que se procura apreender o universo do outro a partir dos seus

    prprios dizeres (ROTTA 2010, p. 31).

    Tambm considerei as sugestes dos prprios guias, tanto da linha da encantaria como

    de outras linhas. Como exemplo, o chefe dos caboclos, que incorpora na dirigente do terreiro,

    informou-me que para cumprir os objetivos da pesquisa seria necessrio unir diferentes tipos

    de conhecimentos, tais como a vivncia do ritual e leitura de textos a respeito dos encantados,

    entre outros. J a encantada guia da casa sugeriu-me que pedisse para sonhar com os

    encantados e depois que relatasse tais sonhos para ela, pois dessa forma seria mais fcil

    compreender os sentidos dessa linha de entidades.

    Portanto, recebi a orientao expressa para prestar ateno aos meus sonhos, pois os

    encantados se serviriam deles para se revelarem. Em decorrncia, considerei meus sonhos

    como parte do desvelamento do contexto simblico dos encantados, na medida em que foram

  • 47

    significados pelos umbandistas, alm das sensaes e percepes despertadas pelo meu

    envolvimento com o campo. Nesse sentido, poder-se-ia questionar qual a possibilidade dos

    resultados serem referentes ao foco deste estudo, ou somente ao meu processo subjetivo de

    transformao. Crapanzano (2005) defende que a subjetividade , na verdade, intersubjetiva.

    Afirma que sentimentos, humores e emoes, apesar de serem geralmente reduzidos a

    elementos decorativos ou epifenmenos, que no universo da racionalidade cientfica devem

    ser categoricamente evitados ou ignorados, constituem, a seu prprio e especial modo, uma

    dimenso significativa e efetiva do mundo em que vivemos, pensamos e agimos (p. 359). Ou

    seja, o que se sente de forma subjetiva diz sobre ns, e tambm a respeito do ambiente em que

    estamos.

    No mesmo sentido de superar a dicotomia entre interior e exterior, Bairro (2005)

    aposta na contribuio da psicanlise para a psicologia social, expandindo sua utilidade para

    alm de atendimentos individuais. Ele defende que, para Lacan, qualquer interlocutor,

    inclusive pesquisadores, s se constitui e tem lugar relativamente a uma alteridade

    fundamental, constituinte do eu (p.442), e este eu no pode ser considerado pela ordem de uma interioridade, pois circula social, cultural e temporalmente.

    Durante um ritual em que a linha das crianas era incorporada, um er me disse que

    para entender os encantados era preciso ter f, pois por no serem espritos, as pessoas no os

    entendem e no acreditam neles. Novamente, a questo do envolvimento com o campo (ser afetada) se manifesta como imprescindvel ao estudo dos encantados. Talvez se o objetivo da pesquisa fosse estudar outra linha espiritual, a nfase nesse aspecto no fosse to repetida.

    Entretanto, considerando que a encantaria vista como uma categoria muito avessa

    exposio de suas peculiaridades, desconfiada, alm de particularmente misteriosa,

    possivelmente se eu no tivesse tido abertura e disponibilidade para ocupar o lugar no qual fui

    transferencialmente colocada, estes encantados teriam continuado escondidos e inacessveis

    pesquisa.

    Corbin (1998), ao discorrer sobre as sucessivas escolas e mtodos adotados nos

    estudos de religio, afirma que a nica maneira de se poder falar significativa e

    convincentemente sobre fato religioso entrando na conscincia religiosa e evocando critrios

    que lhe so apropriados4. Este autor defende que as variaes e hesitaes das diferentes

    correntes de religio comparativa (no sculo XIX) so sintomas das dificuldades inerentes aos

    4 the only way we can hope to speak meaningfully and convincingly of religious fact is by entering into religious consciousness and invoking criteria which are appropriate to it. (Corbin, 1998, traduo livre)

  • 48

    prprios procedimentos. Aponta tambm para a limitao deles, desde que no considerada

    a viso das mltiplas ordens da realidade que correspondem a diferentes existncias

    objetivas, que no so reduzveis umas s outras, nem podem ser julgadas nos termos umas

    das outras. De acordo com ele, se no aceitarmos o que dado imediatamente por seu prprio

    modo de existncia, e se tentarmos evocar critrios estranhos ao ato religioso para entend-lo,

    andaremos em crculos toda vez que encontrarmos modos diferentes de ser, perguntando-nos

    se aquilo existe.

    Portanto, para estudar o fenmeno religioso necessrio fazer valer os critrios

    prprios do contexto, sendo pouco produtivo e mesmo estril alimentar questionamentos

    sobre a veracidade da experincia socialmente compartilhada pelos colaboradores. Pelo

    contrrio, a sua contestao, em nome de uma suposta realidade positiva contraposta a uma

    iluso religiosa que se configuraria numa tomada de posio religiosa

    A atitude cientfica consiste em dar ouvidos ao que se apresenta, suspendendo o juzo

    de realidade, no se trata, portanto, tambm, de numa atitude cnica do pesquisador fingir que

    possui uma crena inexistente, enganando os adeptos da religio para participar dos rituais e

    obter dados do campo. Questes de crena, por razes de cunho metodolgico, esto postas

    em suspenso, embora se saiba que a dvida uma possibilidade intrnseca participao em

    qualquer sistema religioso (BAIRRO 2004). Por exemplo, o mdium pode no ter certeza se

    o que sente resultado da aproximao dos guias ou coisa da sua cabea, assim como o

    pesquisador que se pergunta se os dados se referem ao coletivo estudado ou apenas prpria

    subjetividade. Os prprios guias relatam que os mdiuns convivem com a dvida e que ela

    tem um papel importante nesse contexto, pois os auxilia em seu trabalho com os consulentes,

    relaciona-se humildade e os situa como ser humano, pois apenas ao divino caberia certezas e saberes, diz uma das entidades. Da mesma forma, o pesquisador que se permite um maior envolvimento com o campo no passa a conviver com certezas absolutas, mesmo

    porque os colaboradores no compartilham dessas certezas. Considerando isso, possvel e

    aconselhvel ao pesquisador transitar entre diferentes posicionamentos em campo,

    permitindo-se ele mesmo adentrar em diferentes existncias objetivas, como diria Corbin

    (1998).

    Cabe ressaltar que ao agradecer aos encantados pelo que foi permitido aprender sobre

    eles, esses guias me agradeceram por minha f, esforo, motivao e persistncia, o que parece confirmar os sentidos levantados em relao necessidade, nesta pesquisa, de entrar

  • 49

    profundamente em campo e acreditar no que o outro diz, ou seja, ter como legtimo o

    conhecimento intrnseco ao campo que de fato o objetivo de pesquisas como esta.

    Afinal, vale retomar o autor j citado (CORBIN, 1998), para concordar com ele na

    afirmao de que tudo o que se pode revelar da experincia religiosa no um sistema de

    pensamento observvel, mas algo que lhe concerne pessoalmente. Nesta medida, alem de uma

    descrio objetiva, trata-se da sua compreenso do campo tal como este o interpelou. Bairro

    (2005) tambm j havia referido que na umbanda os espritos se mostram como alteridade que

    cuida dos seus interlocutores, inclusive estes pesquisadores, e foi principalmente atravs do

    cuidado que os encantados se mostraram em meu estudo. Deste modo, efetivamente fui

    transformada por esta experincia de pesquisa (LAPLANTINE, 2004) e aprendi coisas para

    alm das que posso apresentar aqui sobre o tema que me propus.

    Anlise dos dados A anlise dos dados se deu ao longo de todo o percurso da pesquisa. Sua finalidade

    ltima foi, portanto, a de resgatar o sentido e usos rituais dos encantados nos termos

    umbandistas. Considerei as caractersticas, traos, da noo de encantamento que se

    repetiram, mas sempre verificando se houve acentuaes e divergncias. Dessa maneira, a

    busca pela essncia do fenmeno, de forma abstrata, foi substituda pela tentativa de

    apreender os mltiplos significados da experincia vivida. Nesse sentido, a interpretao foi um processo construdo a partir da interlocuo e

    convivncia entre pesquisador e colaboradores, de maneira qualitativa, sem que houvesse a priori o estabelecimento de normas rgidas para a anlise.

    Busquei compreender quais necessidades individuais e coletivas estariam relacionadas

    ao surgimento e disseminao da linha da encantaria, a fim de elucidar que vantagens h em

    conceitu-los como encantados e no apenas como espritos ou almas humanas. Necessidades

    essas que provavelmente permanecem inconscientes para os praticantes.

    Levei em conta ainda se o uso da categoria dos encantados era equivalente, destoava

    ou acrescentava algo ao que dito a seu respeito em outras regies e cultos. Para tanto realizei

    um cruzamento entre as informaes obtidas por meio da pesquisa de campo e o encontrado

    na literatura. Levei igualmente em conta os eventuais indcios que permitiram discernir se o

    alastramento da encantaria se relacionaria a uma difuso cultural, uma interpenetrao de

  • 50

    prticas de diferentes partes do pas, devido a, por exemplo, migraes e a comunicao; ou

    se este processo estaria subordinado a uma seletividade, isto , se h uma recriao das

    concepes de encantados a partir de uma lgica interna ao grupo que as adota ou ainda se

    resultaria de uma combinao das duas coisas.

  • 51

  • 52

    3. RESULTADOS E ANLISES

  • 53

  • 54

    3.1 O Templo de Umbanda Caboclo Flecha de Ouro

    O templo se localiza em um bairro central da cidade de Jundia-SP, em frente casa da

    me da dirigente. Antes de ser um terreiro de umbanda era um centro kardecista, dirigido pelo

    av materno de Luciana (dirigente do terreiro), com quem ela teve pouco contato, pois ele

    faleceu quando ela era ainda muito criana.

    Luciana se autodenomina dirigente do terreiro, pois me-de-santo seria, segundo ela,

    um ttulo muito grande, pois teria ainda muito a aprender. No entanto, na prtica, ela atua mesmo como me-de-santo do terreiro, sendo para os frequentadores da casa uma figura que

    inspira respeito, confiana e admirao. Nos momentos de crises financeiras ou emocionais,

    problemas de sade, entre outros, tanto mdiuns, quanto consulentes recorrem a seus

    conselhos e prescries. As entidades incorporadas por Luciana so muito procuradas, poucas

    foram as ocasies em que tive a oportunidade de me consultar com elas, pois a prioridade era

    dos casos mais graves, principalmente relacionados a doenas.

    Sobre seus primeiros contatos com a espiritualidade, Luciana conta que nasceu em

    uma famlia kardecista e seu av, que trabalhava na mesa branca, tambm recebia entidades

    da umbanda (caboclos e pretos velhos), sem que as pessoas soubessem que entidades eram.

    Segundo ela, mesmo o kardecismo, na poca de seu av, era visto de forma depreciativa e a

    umbanda era proibida, por isso era muito comum guias da umbanda serem recebidos na mesa

    branca sem revelarem sua identidade.

    sabido que no kardecismo no vista com bons olhos a incorporao de entidades

    consideradas pelos adeptos como pouco evoludas. Entretanto, as entidades do Templo de

    Umbanda Caboclo Flecha de Ouro esclarecem que essas divises so realizaes humanas,

    no existem no mundo espir