empreeendedorismo

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microempreendedorismo em Portugal experiências e perspectivas José Portela (Coordenação) Pedro Hespanha Cláudia Nogueira Mário Sérgio Teixeira Alberto Baptista “POEFDS - Medida 4.2.2.1. - Estudos e Investigação Projecto n.º 87/2006” Junho 2008

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  • microempreendedorismoem Portugal

    experincias e perspectivas

    Jos Portela (Coordenao)Pedro Hespanha

    Cludia NogueiraMrio Srgio Teixeira

    Alberto Baptista

    POEFDS - Medida 4.2.2.1. - Estudos e InvestigaoProjecto n. 87/2006

    Junho 2008

  • Ficha Tcnica

    TtuloMicroempreendedorismo em Portugal. Experincias e Perspectivas.

    Equipa Tcnica do EstudoA proposta e o delineamento inicial do estudo foram iniciativas do CETRAD e o trabalho de campo foi realizado por uma equipa composta por investigadores e tcnicos de vrias unidades: INSCOOP, CETRAD, CES, ANDC, IN LOCO, BEIRA SERRA e ESDIME. A anlise e o tratamento da informao recolhida foi operao conjunta duma equipa do CETRAD Centro de Estudos Transdisciplinares para o Desenvolvimento, da Universidade de Trs-os-Montes e Alto Douro (UTAD) e do CES Centro de Estudos Sociais, da Universidade de Coimbra (UC).

    Entidade PromotoraINSCOOP Instituto Antnio Srgio do Sector CooperativoMorada: Rua D. Carlos de Mascarenhas, n. 46, 1070-083 LISBOA

    Coordenao Tcnico-cientficaJos Portela (CETRAD)Morada: CETRAD/UTAD, Avenida Almeida Lucena, 1 5000-660 VILA REAL

    Equipa Responsvel pelo EstudoJos Portela (CETRAD)Pedro Hespanha (CES)Cludia Nogueira (CES)Mrio Srgio Teixeira (CETRAD)Alberto Baptista (CETRAD)

    Equipa Responsvel pelo Trabalho de CampoAlberto Baptista (CETRAD)Ctia Cohen (INSCOOP)Cludia Nogueira (CES)Conceio Silva (ESDIME)David Merritt (ESDIME)Edite Faria (CETRAD)Graa Rojo (BEIRA SERRA)Lurdes Barata (INSCOOP)Maria Joana Veloso (ANDC)Mrio Srgio Teixeira (CETRAD)Paula Correia (INSCOOP)Paula Quintas (IN LOCO)Paulo Rafael (ESDIME)Pedro Hespanha (CES)Ricardo Ramalho (ESDIME)Snia Abreu (CETRAD)

    SecretariadoPaula Correia (INSCOOP)Manuela Mouro (CETRAD)

    RevisoIsabel Tamen

    Designwww.hldesign.pt

    ImpressoGRECA - Artes Grficas

    Tiragem400 exemplares

    Data da Edio2008

    microempreendedorismoem Portugal

  • microempreendedorismo em Portugal

    a propsito...palavras do Presidente do INSCOOP

    O tema do empreendedorismo reveste-se hoje de grande actualidade e, no seu mbito, o mi-croempreendedorismo interessa igualmente e de forma especial os estudiosos e os polticos, sobretudo quando preocupao econmica se junta a preocupao social. Considerando que a realidade empreendedora esteve sempre presente na organizao da sociedade, a ques-to primeira com que nos confrontamos tem a ver com a razo que justifica actualmente este interesse pelo tema, em termos de reflexo terica e de discusso poltica.

    cada vez mais forte na sociedade actual a conscincia de que o crescimento econmico e tecnolgico, que caracteriza as sociedades desenvolvidas, no corresponde a um igual e necessrio desenvolvimento humano. Da mesma forma se reconhece que a globalizao que prometia, como alguns afirmavam, tornar o mundo mais cooperativo, tem pelo contrrio cavado entre os povos maiores distncias econmicas e sociais. perante esta situao de de-sordem e de injustia econmica e social que tem sentido, como necessria e oportuna, uma reflexo/aco sobre o modo como os homens se relacionam e se organizam para responder s suas necessidades individuais e colectivas.

    O empreendedorismo uma manifestao de liberdade e de responsabilidade dos indivduos na resposta s suas necessidades, mas simultaneamente um factor de promoo humana para alm de um instrumento de criao de riqueza. Foi durante o sculo XIX e como uma das consequncias da revoluo industrial, por vezes pouco referida, que despertou a ateno para esta realidade e se passou a considerar o empreendedorismo como fora de promoo humana e de coeso social, para alm de instrumento econmico. O empreendedorismo e duma forma mais profunda o microempreendedorismo quando bem compreendido, preten-dem assim dar ao homem e mulher que nele se envolvem no s uma melhor qualidade de vida, mas uma mais profunda conscincia de si mesmos e da sua dignidade.

    So muito distantes no tempo e no espao a experincia da cooperativa de Rochdale, na Inglaterra de meados do sculo XIX e a experincia do Grameen Bank no Bangladesh da segunda metade do sculo XX. So contudo dois exemplos cheios de significado e de impor-tncia, bem manifestada nos muitos milhes de pessoas hoje envolvidas em empresas coo-perativas e em projectos apoiados por sistemas de microcrdito. Mas a razo profunda dessa importncia reconhecida a este tipo de organizaes est tambm no facto de em ambas o objectivo se alargar, para l da criao de riqueza, promoo e dignificao dos homens e mulheres abrangidos.

    Sobre empreendedorismo em sentido lato diversas tm sido as obras e as ocasies de debate. Trata-se de um tema a que continuam a dedicar-se muitas organizaes, na rea da formao, do ensino e nas reas financeira e econmica.

    a propsito...

    palavras do Presidente do INSCOOP

  • microempreendedorismo em Portugal

    a propsito...palavras do Presidente do INSCOOP

    Sobre microempreendedorismo, o interesse tem igualmente existido ainda que os estudos e as ocasies de debate sejam mais raros e mais recentes. Com alguma facilidade se poder atribuir essa menor ateno ao facto de se considerar que ao micro se podem atribuir as mesmas reflexes e fazer as mesmas propostas que se fazem ao macro. Tratar-se-ia assim nesta perspectiva de uma simples questo de dimenso. Percorrendo contudo esta obra e contactando nela com os testemunhos de vida de microempreendedores, sua principal fonte de informao, e de responsveis de organizaes que com eles contactam, verificamos como so diversos para as pessoas que trabalham como microempreendedores, a razo que os motiva para o projecto, os recursos de que lanam mo para o realizar, o objectivo que os incentiva no esforo para a sua sustentabilidade. Atravs destes testemunhos descobre-se essa forma micro de empreender, sem tantas vezes distinguir onde termina a histria da pessoa que a viveu e onde comea a histria do micro empreendedor que teve a iniciativa e a le-vou prtica. o microempreendedorismo manifestado nesse contacto pessoal que aqui se procura analisar e sistematizar, deixando aparecer a sua fora, na forma de estruturar vidas, de dignificar pessoas, de construir futuros, de formar comunidades.

    Entre as razes que levam a optar pelo microempreendedorismo a procura de trabalho, de auto-emprego, que tem o primeiro lugar. Esta a necessidade primeira a que responde, como meio de garantir condies de vida digna em termos individuais e familiares, sobretudo nos tempos presentes em que a falta de trabalho e de trabalho digno, pe em risco a dignidade da pessoa e da famlia. Como acontece com outras formas de empreender, o microempreende-dorismo, individual ou colectivo ainda e de forma muito relevante um factor de promoo pessoal e de insero social.

    Quando, para alm de assegurar o posto de trabalho, identificamos outros objectivos na ori-gem do projecto, o microempreendedorismo manifesta-se como resposta a um vasto conjun-to de necessidades individuais e colectivas. No se limita a proporcionar melhores condies a nvel individual mas pela promoo da pessoa aumenta a coeso social dentro da prpria comunidade e, quando em moldes cooperativos, consegue ser um factor importante de de-senvolvimento local, sobretudo em zonas esquecidas ou pouco atractivas para os grandes empreendedores.

    Esta condio de microempreendedor, conseguida individualmente, em famlia ou em pe-quenos grupos, quando nos referimos a microempreendedorismo de raiz cooperativa, est sujeita a riscos acrescidos que se apresentam no s na manuteno da empresa mas na sua constituio e nos recursos que para tal se encontram disponveis. esta dificuldade de sustentabilidade da microempresa que justifica a necessidade, tambm apontada no presente trabalho, de uma ateno especial ao desenvolvimento de apoios especializados para as for-mas de microempreendedorismo e a um mais fcil acesso das mesmas aos apoios j existentes para outras formas empreendedoras.

    Foi nesta linha de reflexo e de interesse sobre o empreendedorismo e dum modo especial sobre o microempreendedorismo que h pouco mais de trinta anos se idealizou e estruturou o Instituto Antnio Srgio do Sector Cooperativo. Orientado para o empreendedorismo de matriz cooperativa, o seu trabalho tem-se centrado especialmente no cooperativismo. Mas est atento e interessado em todas as outras formas de empreendedorismo.

    A promoo e participao do Instituto no presente estudo inscreve-se na misso que lhe foi atribuda, com a conscincia de que a todos compete desenvolver um trabalho de formao e de apoio no fomento de iniciativas empreendedoras e microempreendedoras que se tornem instrumentos para um correcto desenvolvimento humano.

    Manuel Canaveira de Campos(Presidente do Instituto Antnio Srgio do Sector Cooperativo)

  • microempreendedorismo em Portugal

    ndice

    ndice CAPTULO 1. Introduo ...........................................................................................................13 CAPTULO 2. Empreendedorismo: um Conceito Plural ........................................................1

    2.1. Da aura em redor do termo ...................................................................................................19

    2.2. A aco de empreender ...........................................................................................................24

    2.3. O empreendedor como agente econmico ........................................................................24

    2.4. O microempreendedorismo: uma questo de escala? ....................................................32

    2.5. Das actividades informais margem do quadro legal ....................................................33

    2.6. O empreendedorismo social ..................................................................................................35

    2.7. Microempreendedorismo e microcrdito ...........................................................................38

    2.8. O empreendedorismo, ou o seu dfice, como produtos associados ao meio ..........40

    2.9. Empreendedorismo no feminino ..........................................................................................43

    2.10. Empreendedorismo: elementos duma viso sinttica ...................................................45

    CAPTULO 3. As Experincias dos Microempreendedores ....................................................1

    3.1. Brevssima introduo para longo captulo ........................................................................51

    3.2. Os 70 microempreendedores entrevistados ......................................................................53

    3.3. Os primeiros passos da ideia de negcio ...........................................................................65

    3.4. Os recursos mobilizados para o projecto .........................................................................101

    3.5. Do Projecto sua execuo ..................................................................................................119

    3.6. Sntese de 70 casos transbordantes ...................................................................................140

  • microempreendedorismo em Portugal

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    ndice

    11

    CAPTULO . Apoios ao Microempreendedorismo em Portugal ........................................1

    4.1. Entre factos e opinies ..........................................................................................................145

    4.2. Misso e praxis nas organizaes ........................................................................................145

    4.3. Perspectivando opinies .........................................................................................................161

    4.4. Uma nota final ...........................................................................................................................165

    CAPTULO . Microempreendedorismo na Unio Europeia: em busca de boas prticas .1

    5.1. Duas observaes ......................................................................................................................167

    5.2. As organizaes europeias visitadas ....................................................................................168

    5.3 Das lies da visitao ..............................................................................................................182

    CAPTULO . Microempreendedorismo em Portugal: sete notas em tom dissonante ......1

    6.1. Duas notas prvias ....................................................................................................................189

    6.2. Os doze casos estudados a trao grosso ............................................................................190

    6.3. O microempreendedor: entre o eu e os outros .............................................................199

    6.4. O curriculum vitae do microempreendedor .....................................................................202

    6.5. O microempreendedor precisa de meios, como os aero-geradores do vento ..........205

    6.6. O microempreendedor domestica o sonho e a viso .....................................................212

    6.7. O microempreendedor corre seca e meca ..........................................................................216

    6.8. O microempreendedor: um operrio do futuro? ............................................................218

    6.9. O microempreendedorismo, afinal, o que ? ....................................................................224

    6.10. O empreendedorismo: uma noo a dez dimenses ....................................................229

    CAPTULO . Concluses em nove pontos e uma outra interrogao ...............................231

    7.1.Experincias e perspectivas ..................................................................................................231

    7.2. Partida e trajectos dos microempreendedores: so muitos e bem distintos ..........232

    7.3. Em regra, a ideia de negcio endgena ........................................................................234

    7.4. Os microempreendedores deitam mo aos recursos mo .......................................235

    7.5. Embaraos de tesouraria e estratgias de sobrevivncia .............................................236

    7.6. Meter as mos na massa do prprio projecto de negcio ...........................................237

    7.7. Mudar a relao entre o Estado e o cidado e entre o cidado e o Estado .............239

    7.8. O microempreendedorismo no se decreta, anima-se ................................................240

    7.9. O microempreendedorismo varia com o microclima e com a macro-atmosfera ...242

    7.10. Uma outra interrogao ......................................................................................................245

    Bibliografia .......................................................................................................................................247

    ndice Analtico ...............................................................................................................................255

    Lista de Siglas ..................................................................................................................................259

    Lista de Quadros ............................................................................................................................262

    ANEXOS ............................................................................................................................................264

  • microempreendedorismo em Portugal

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    Cap. 1 Introdio

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    captulo 1

    Introduo

    Esta obra sobre o microempreendedorismo. , sem dvida, um termo composto e longo, difcil de dizer. Embora ele se enrole na boca do falante comum, a noo est agora em voga em crculos acadmicos e polticos. Em qualquer caso, como se ver ao longo de toda a obra, em particular no Captulo 2, trata-se dum conceito plural e complexo. Em Portugal cresce tanto a variedade como a complicao.

    Nas duas ltimas dcadas tem sido dado grande relevo s problemticas da criao do auto-emprego e do empreendedorismo. A popularidade de que se reveste este conceito, dado a controvrsia, no propriamente infundada. Resulta em larga medida, do reconhecimento crescente, designadamente por parte das polticas pblicas, do contributo muito significativo das pequenas e microempresas para trs eixos motores da sociedade actual: o emprego, a vitalidade da economia e o crescimento econmico. A criao daquelas unidades do tecido empresarial passa a ser encarada, cada vez mais, como uma modalidade de activao da mo--de-obra desempregada e uma forma de reduo da dependncia dos sistemas de proteco social pblica. O que no coisa de somenos, reconhea-se desde j.

    Este livro colectivo, um desiderato submetido a dificuldades e limites prprios, e ainda sujeito s marcas de vrios obreiros, tem naturalmente uma base, a qual foi entretanto reta-lhada, refundida e limada. Mas, reproduz-se aqui, no essencial, o relatrio final do Estudo de Avaliao Prospectiva do Microempreendedorismo em Portugal. Este estudo decorreu entre Fevereiro de 2006 e Dezembro de 2007 e foi financiado pelo Programa Operacional Emprego, Formao e Desenvolvimento Social (POEFDS). Mais precisamente, o estudo teve lugar no quadro da Aco-tipo 4.2.2.1 Estudos / Investigao, da Medida 4.2 Desenvolvimento e Modernizao das Estruturas e Servios de Apoio s Polticas de Emprego e Formao.

  • microempreendedorismo em Portugal

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    Cap. 1 Introduo

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    O INSCOOP foi a Entidade Promotora do Estudo, cabendo ao Centro de Estudos Transdisci-plinares para o Desenvolvimento (CETRAD) da Universidade de Trs-os-Montes e Alto Douro (UTAD) e ao Centro de Estudos Sociais (CES) da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra a concepo e a direco tcnico-cientfica do estudo. Outras instituies foram parceiras do estudo e colaboraram activamente na sua execuo, em fases distintas. Alm do INSCOOP, CETRAD e CES, integraram a equipa tcnica do estudo a Associao Nacional de Direito ao Crdito (ANDC), a IN LOCO, a BEIRA SERRA e a ESDIME.

    O estudo subjacente a esta obra tomou como territrio de anlise todo o continente portugus e os objectivos inicialmente fixados foram os seguintes:

    ! Proceder sistematizao, transferncia e apropriao, pelos agentes relevantes, dos conhecimentos presentes em estudos e investigaes j realizados sobre a proble-mtica do microempreendedorismo a nvel nacional e internacional, bem como sobre a legislao nacional relevante para as microempresas portuguesas;

    ! Fazer uma recolha de boas prticas facilitadoras da criao com sucesso de microempresas, com uma anlise de benchmarking de estudos de caso de vrias regies europeias e de microempresas portuguesas bem sucedidas que foram apoiadas pelos programas e medidas nacionais de apoio ao microempreendedorismo;

    ! Identificar e analisar obstculos e estrangulamentos sentidos por microempre-endedores nacionais, atravs de estudos de caso de microempresas portuguesas mal sucedidas;

    ! Propor mudanas de normas, medidas ou programas de apoio ao microempreen-dedorismo, de forma a dinamizar a criao de microempresas bem sucedidas;

    ! Elaborar uma proposta de estatuto do microempresrio e da microempresa, que reconhea a sua especificidade e importncia para a economia portuguesa, em geral, e para as economias locais, em particular.

    No encalo destes objectivos que, reconhea-se, so muito ambiciosos relativamente s circunstncias envolventes (por exemplo, a durao prevista para o projecto), recorreu-se a uma metodologia variada, com o cruzamento de vrias tcnicas e instrumentos de recolha de informao. Fez-se uso, sobretudo, de metodologias de natureza qualitativa e as respostas aos objectivos enunciados acima foram procuradas atravs da realizao de cinco actividades principais, que se passam a enunciar.

    A primeira operao metodolgica visou prover o contexto e fazer o enquadramento terico e normativo do microempreendedorismo. Para este efeito foi recolhida documen-tao diversa (v.g. artigos, documentos, estudos, regulamentos e normas), designadamente

    focando aspectos tais como quadro territorial, actividade econmica, responsabilidade am-biental e igualdade de oportunidades. Em simultneo, realizou-se uma pesquisa bibliogrfica sobre os conceitos e a problemtica do microempreendedorismo, em particular na Europa e em Portugal. O Captulo 2, intitulado Empreendedorismo: um conceito plural, reflecte em boa medida o esforo de delimitao conceptual da noo de partida do estudo.

    Uma segunda actividade do estudo subjacente a esta obra traduziu-se na inquirio de 70 microempreendedores, repartidos por todo o continente portugus, por sectores diversos e por nveis de xito variados. Obviamente, o respectivo guio de entrevista individual foi previamente sujeito a discusses aprofundadas, bem como ao pr-teste, e cada inquirio deu lugar feitura de um relatrio especfico. No incio do Captulo 3, intitulado As Experin-cias dos Microempreendedores o leitor achar uma apresentao detalhada da metodologia relativa inquirio dos entrevistados referidos, mas desde j se ressalva que a amostra no pretendeu ser propriamente representativa do universo dos microempreendedores em Por-tugal, mas antes uma base ampla que faculta a explorao de um objecto, o qual se aborda, de modo relativamente aprofundado, em toda a sua complexidade e diferenciao interna. Perscrutam-se, entre outras, experincias de vida e de trabalho, de iniciativa e frustrao, de solido e de solidariedade, todas elas em redor dos empreendimentos dos entrevistados. Ao longo da obra, estes microempreendedores sero tratados como pessoas, embora obvia-mente por via de um nome fictcio. Alm desta designao, para cada um deles o leitor tem sempre mo uma pequena srie de dados complementares (vd. Anexo 1), os quais garantem um certo enquadramento do caso sob apreo.

    A partir da base de dados relativa aos inquiridos j mencionados, realizaram-se 12 estudos de caso de microempreendedores, entre os bem e os mal sucedidos. Nesta terceira opera-o metodolgica procedeu-se a uma inquirio mais detalhada e aprofundada em redor de aspectos tidos por relevantes, tais como o perfil dos empreendedores, o seu curso de vida e itinerrio profissional, e as redes de relaes sociais de apoio, baseadas estas tanto no parentesco e/ou amizade como na colegialidade e/ou interconhecimento. A riqueza dos dados bem como a percepo mais funda sobre o nosso microeempreendedorismo, assim alcan-ados, foram vertidos no Captulo 6, o penltimo, intitulado Microempreendedorismo em Portugal: sete notas em tom dissonante, que possui j um cariz de texto de sntese.

    No s da viso de microempreendedores se fez o estudo. A quarta actividade principal realizada no seu mbito centrou-se na recolha e anlise da experincia e viso de 15 respon-sveis de organizaes nacionais que apoiam, com meios e modos muito distintos, o empre-endedorismo. Buscou-se a maior diversidade possvel entre as entidades seleccionadas, tendo em conta critrios como o seu estatuto formal (pblico, privado, associativo, misto), a loca-lizao (Norte, Centro, Sul; Litoral, Interior) bem como a misso e objectivos face criao

  • microempreendedorismo em Portugal

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    Cap. 1 Introduo

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    de novas unidades empresariais. Foram, assim, includas quatro instituies pblicas; duas organizaes promotoras do microcrdito; duas associaes empresariais; duas associaes de desenvolvimento local e outras duas ONG similares; e, por fim, trs organizaes que so ns de redes de apoio ao empreendedorismo de base tecnolgica. Note-se que este conjunto inclui quatro empresas: um banco com servios de microcrdito, uma cooperativa prestando servios de consultoria, e duas unidades empresariais de interface entre a universidade e o mercado. A inquirio aqui realizada visou identificar obstculos insero dos novos micro-empreendedores no mercado e colher propostas de mudana no quadro dos incentivos vigen-tes. Elementos sobre as organizaes nacionais inquiridas e sobre os resultados desta opo metodolgica so expostos no Captulo 4, intitulado Apoios ao Microempreendedorismo em Portugal.

    Alm de se colocar em perspectiva quer a viso plural de 70 microempreendedo-res quer a de 15 organizaes nacionais, o estudo incorpora os contributos colhidos junto de um conjunto variado de 12 organizaes de quatro pases europeus, a saber: Espanha (2), Frana (7), Itlia (1) e Irlanda (2). Organizaes estas que se sabia constitui-rem casos de sucesso na promoo do microempreendedorismo, em particular entre pes-soas e grupos vivendo quotidianamente na periferia da sociedade. No mbito de visitas de estudo, a foram entrevistados alguns responsveis, tendo sido previamente definidos pro-cedimentos metodolgicos com vista colecta estruturada e sistemtica de dados sobre boas prticas, ou seja, medidas e aces facilitadores da criao e instalao bem sucedi-da de microempresas. Cada visita deu origem a um relatrio cujo teor permitiu elaborar o Captulo 5, assim designado: Microempreendedorismo na Unio Europeia: em busca de boas prticas.

    Como se disse j, o Captulo 6, o penltimo, possui a natureza de texto de sntese e intitula-se Microempreendedorismo em Portugal: sete notas em tom dissonante. Natural-mente, o Captulo 7, o final, Concluses em nove pontos e uma outra interrogao, remata os esforos envidados ao longo do projecto de pesquisa no sentido de alcanar os objectivos inicialmente traados.

    A concluir esta introduo, importa ainda reconhecer que s foi possvel obter a infor-mao copiosa e relativamente aprofundada constante desta obra graas participao com-prometida de um grupo numeroso de 70 microempreendedores e do conjunto de 15 orga-nizaes nacionais, entre entidades pblicas, privadas e do terceiro sector. Todos, de norte a sul do pas, acederam a responder s questes que lhe foram colocadas. A todos eles se deve um caloroso agradecimento. Do mesmo modo, o estudo beneficiou da cooperao das 12 organizaes visitadas em quatro pases europeus, em particular, dos seus representantes entrevistados, que ficaram por isso credores do nosso maior reconhecimento.

    Finalmente, o empenhamento das unidades parceiras neste estudo foi decisivo e mis-ter que tal seja aqui expressamente mencionado: o INSCOOP assegurou em larga medida a coordenao geral do projecto e a pesquisa documental, sobretudo legislativa; a ANDC, a IN LOCO, a BEIRA SERRA e a ESDIME foram, desde sempre, companheiros de jornada e, em particular, entrevistadores incansveis. Uma meno particular devida ainda a dois cole-gas do CES Slvia Ferreira e Rui Namorado cujo conselho ajudou a aperfeioar o desenho do estudo e dos instrumentos de recolha de dados. equipa constituda pelos membros do CETRAD e do CES coube a responsabilidade de tratar e analisar toda a informao recolhida no mbito do projecto e proceder redaco do relatrio final do estudo em que se baseia esta obra.

  • microempreendedorismo em Portugal

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    Cap. 2 Empreendedorismo: um conceito plural

    1

    captulo 2

    Empreendedorismo: um conceito plural

    2.1. Da aura em redor do termo

    Logo na abertura desta obra se disse que o conceito de microempreendedorismo complexo e polmico. Na verdade, no h uma definio simples e incontroversa dessa noo, que, por sua vez, depende da perspectiva que se tenha acerca da economia, bem como dos seus actores, em particular os ditos motores. Para uma percepo clara da grande dificuldade desta tarefa, bastar, por exemplo, ter presente que, num inventrio das contribuies para as teorias econmicas do empreendedorismo relativo aos ltimos 200 anos, se identificaram 12 abordagens distintas, quer quanto ao conceito, quer quanto ao papel dos empreendedores (Philipsen, 1998). Antes de proceder ao aprofundamento conceptual da noo de partida do estudo, meta final deste Captulo 2, convm ainda atentar na aura prodigiosa de que goza actualmente o conceito de empreendedorismo e na reputao de todos quantos detm tal herana, seja por via gentica, ambiental ou, mesmo, por hibridismo. Note-se, a propsito, que no raro responsveis polticos da Unio Europeia proferirem afirmaes grandiloquentes, laudatrias, do gnero os empreendedores so o DNA econmico de que precisamos para elevar a competitividade e a inovao na Europa.

    As ideias e as palavras tm vida, alcanam picos ou planaltos elevados de popularidade em certos crculos e ocasies. Ora, nas ltimas duas dcadas, tem sido dado grande relevo s problemticas da criao do auto-emprego e do empreendedorismo. Aparentemente, ao invs do que ocorreu durante muitas dcadas, ideias tais como, por exemplo, small is beautiful, ou o que grande no intrnseca e necessariamente bom tm agora aceitao. A somar a projectos de pesquisa e aos seus produtos (palestras, artigos, livros, etc.), h reunies polti-cas, declaraes e outros documentos oficiais, bem como seminrios e prmios empresariais,

  • microempreendedorismo em Portugal

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    Cap. 2 Empreendedorismo: um conceito plural

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    que ilustram bem o apreo por tais temas. Eis apenas alguns exemplos: em 1998, surge a comunicao da Comisso Europeia ao Conselho intitulada Fostering entrepreneurship in Europe: priorities for the future1; dois anos depois, o Conselho Europeu de Lisboa toma como objectivo a expanso do empreendedorismo; em 2003 a Comisso publica o Livro Verde O Empreendedorismo na Europa, obra esta que analisa as razes que levam a que a criao do negcio prprio seja mais reduzida na Europa do que nos EUA; o debate gerado pelo Livro Verde conduz a um plano de aco conhecido por Agenda Europeia para o Empreendedorismo.

    Assim sendo, como explicar a reputao actual do conceito e as elevadas expectativas quanto ao impacto scio-econmico causado pelos empreendedores? O peso dado noo em causa no um acaso. Resulta, sim, em grande medida, do reconhecimento crescente por parte das polticas pblicas do contributo muito significativo das pequenas empresas para o emprego, a vitalidade da economia e o crescimento econmico.

    Atente-se em grandes nmeros do emprego, bem inestimvel. Segundo dados oficiais, nos EUA, onde pesam muito as empresas grandes e muito grandes, entre 1993 e 1996 as PME tero contribudo para a criao de 350.000 novos empregos (EC, 2003: 6). Na Europa refora-se a relevncia das novas e pequenas unidades, pois neste quadro geoeconmico cerca de 23 milhes de PME so responsveis pela criao de mais de 2/3 dos postos de trabalho do sector privado, o que corresponde a 75 milhes de empregos (EC, 2006: 3). Em Portugal, por exem-plo, no perodo de 1991-2000, 93% das novas empresas criadas so unidades muito pequenas, com menos de nove trabalhadores (Baptista e Thurik, 2005). Hugh Richardson, alto quadro no Joint Research Centre of the European Commission, numa comunicao intitulada The European Commissions Entrepreneurship Policies and Measures chamou a ateno para as duas estimativas seguintes2. Mesmo nos EUA, onde o fordismo teve uma forte expresso e a estrutura empresarial conta com muitas unidades de grande dimenso, as Pequenas e Mdias Empresas (PME) no sector das high-tec tero contribudo para 1/3 do crescimento do emprego naquele pas em anos recentes. Alm deste dado que corresponde a uma grossa fatia , h outro indicador que, mesmo sendo aproximado, pertinente e incontornvel: para os EUA e para o perodo que decorre da II Grande Guerra aos nossos dias: estima-se que 50% das inovaes de todos os tipos, e 90% a 95% das inovaes radicais, provieram das empresas novas e mais pequenas.

    Pode, pois, dizer-se que a inovao radical nasce e cresce entre gente de mente macro em uni-dades micro. Sem dvida, h pequenas e muito pequenas empresas que cada vez mais atraem o olhar de acadmicos e outros investigadores, precisamente pela capacidade que possuem

    1 European Commisson (1998), COM (98) 222 final, Brussels, 07.04.1998.2 Hugh Richardson, The European Commissions Entrepreneurship Policies and Measures, Documento nodatado do Joint Research Centre of the European Commission, p.6.

    de gerar no seu seio e no meio envolvente prximo (v.g. a empresa-rede, os distritos indus-triais, os clusters) inovaes de tipo diverso: inovaes de ideias, de organizao e gesto, de processos, de produtos e servios, e novos mercados. O peso assumido pela inovao e saber tecnolgico est relacionado com a reestruturao do tecido industrial, na sequncia da crise do fordismo. O domnio das indstrias pesadas foi substitudo pelo vigor das indstrias e servios em reas tecnologicamente mais complexas (v.g. a electrnica, o software e a bio- tecnologia), que esto dotados de uma maior flexibilidade produtiva e so enquadrados numa nova perspectiva da economia do conhecimento. A sua importncia est bem ilustrada, por exemplo, na chamada Estratgia de Lisboa. Neste contexto, Ferro et al. (2005: 80), na linha de outros autores, fazem notar que o empreendedorismo e as PME desempenham um papel importante, por duas razes principais: o uso de novas tecnologias reduziu a importncia das economias de escala; o ritmo crescente da inovao e o encurtamento dos ciclos de vida das tecnologias parecem favorecer a ecloso de novos operadores e de pequenas empresas com maior flexibilidade para lidar com mudanas radicais.

    Afinal, sempre certo que small is beautifull. Afinal, as pequenas unidades so fonte de emprego, fermento de inovao e motor de dinamismo empresarial. Aquietem-se os receosos e ansiosos: a Europa pode ser competitiva e crescer.

    A ateno suscitada pelo auto-emprego e (micro)empreendedorismo deve-se ainda a outras razes. Entre elas, as profundas mudanas ocorridas nas polticas pblicas dos pases desen-volvidos a partir dos anos 80, como a desregulamentao e a privatizao de vrios sectores, ou a alterao dos regimes de proteco social dos desempregados, destinada a promover o regresso destes ao mercado de trabalho. Como meio de aquecer a economia e arrefecer o desemprego, as polticas pblicas passaram a dar maior peso ao empreendedorismo e ao auto-emprego. Assim, muitos Estados passaram a prestar apoio tcnico, financeiro e informa-tivo s PME. Alm disso, a criao de pequenas empresas , cada vez mais, encarada como uma modalidade de activao da mo-de-obra desempregada e uma forma de reduzir a sua dependncia dos sistemas de proteco social pblica. Embora sejam complementares, estas duas perspectivas das novas polticas pblicas crescer e inovar e activar ( from welfare to work) nem sempre so coerentes e, por isso, tm conduzido amide, ora a uma orien-tao workfare da activao, ora gerao de PME reduzidamente inovadoras (Hespanha, 2007). Finalmente, a Estratgia Europeia Para o Emprego, lanada em 1998 aps a Cimeira do Luxemburgo, estabelece como orientao a seguir pelos Estados-Membros o desenvolvimento do esprito empresarial (Pilar II), atravs da reduo dos obstculos formais constitui-o de empresas (directriz 10), do incentivo ao desenvolvimento da actividade independente (directriz 11), da criao de emprego escala local (directriz 12), da explorao das potencia-lidades de emprego no sector dos servios (directriz 13) e da reduo da presso fiscal sobre o trabalho (directriz 14).

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    Cap. 2 Empreendedorismo: um conceito plural

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    Importa fazer notar que o relevo de que gozam hoje os conceitos e problemas associados ao empreendedorismo se deve tambm prpria histria de expanso desse conceito. A expan-so acaba por construir e integrar uma noo plural. Como assinala Ferreira (2005), embora a utilizao inicial do termo tenha ocorrido no mbito da actividade econmica (em especial, dos processos de desenvolvimento econmico), essa noo extravasou da rea econmica convencional para outras, como a rea da economia informal ou a rea social (social entre-preneur) e a rea poltica e institucional (policy entrepreneur, institutional entrepreneur). revelador que este conceito tenha sido exportado para campos to diversos e, entre eles, o das instituies polticas. O conceito de institutional entrepreneur reporta-se ao indivduo cuja aco desencadeia o aparecimento ou modificao de instituies3.

    A diversidade conceptual cresce com a exploso das novas tecnologias, associada globali-zao dos mercados e, consequentemente, a oportunidades de negcio em mltiplas reas (como, v.g., sade, biotecnologia, novos materiais e design, electrnica, software, informao e comunicao, multimdia). Tudo isto abriu caminho cunhagem de termos como empre-endedorismo de alta tecnologia, de base cientfica, de base tecnolgica ou de conhecimento intensivo. Ou empreendedorismo originado em universidades, e/ou politcnicos e/ou em grandes empresas, os designados spin-off 4 e seus derrames (spill over) por espaos geo-econmicos. Trata-se da comercializao da cincia e tecnologia atravs da criao de novas empresas por cientistas e engenheiros, sejam juniores ou seniores, talvez desiludidos com os entraves administrativos das universidades, dos laboratrios estatais, ou mesmo das grandes empresas.

    No plano mais estrito dos actores implicados, importa referir que tambm se verifica um alar-gamento conceptual, falando-se, por exemplo, de empreendedor interno (intrapreneur) no seio de uma dada organizao, ou de empreendedor feminino e/ou de empreendedor imi-grante, ou ainda de empreendedor colectivo. Neste caso, a noo est associada ao desen-rolar de um projecto de um certo grupo, comunidade ou associao, ou seja, a uma iniciativa de um dado agregado de pessoas, que traduz os valores dessa mesma unidade social. O que em todas estas utilizaes do conceito se enfatiza o papel de indivduos e grupos (micro e

    3 Hwang e Powell (2005) consideram aces de mudana institucional como casos de empreendedorismo, embora tais aces, sendo propositivas, muitas vezes no sejam directamente intencionais. Isto, dados os efeitos das estruturas existentes, das contingncias histricas e das consequncias imprevistas. Alm disso, fazem notar que os empreendedores institucionais tambm podem surgir a partir de oportunidades abertas pela modificao de instituies, amide aproveitando mesmo as resultantes de efeitos no previstos. Os autores apontam para as prticas do empreendedor, articulando assim os aspectos estruturais e individuais deste papel, a recordar-nos as abordagens sobre a natureza e o papel da liderana. Segundo os autores refe-ridos, a aco essencial do construtor de instituies produzir consensos e criar cenrios que induzem colaborao entre as pessoas, apelando sua identidade e aos seus interesses.

    4 Spin-off um termo utilizado para descrever uma nova empresa que nasceu a partir de um grupo de investi-gadores de uma dada firma, universidade ou centro de investigao (pblico ou privado), normalmente com o objectivo de explorar um novo produto ou servio de alta tecnologia.

    pequenos) na mudana de instituies, polticas, condies sociais, etc. Assim, os empreen-dedores so, no apenas empresrios com ideias novas, mas tambm polticos, profissionais, peritos e activistas. Alm disso, o empreendedorismo j no se verifica s entre os capitalistas com recursos e acesso a oportunidades, mas tambm nos indivduos e comunidades sem meios suficientes. Sejam eles motivados pela necessidade ou pela oportunidade, em qualquer caso, estes microempreendedores no esto a resolver apenas o seu problema mas, ao faz-lo, contribuem para o desenvolvimento local e para o progresso econmico geral. Efeitos estes que no so, evidentemente, de somenos importncia.

    Note-se ainda que o empreendedorismo e os termos relacionais no so s adoptados no contexto dos chamados pases desenvolvidos. H muita bibliografia paralela sobre o (micro)empreendedorismo, bem como sobre ideias que lhe esto associadas. Sublinhe-se, por exemplo, as fontes da ONU (v.g. Relatrio das Naes Unidas de 2004, Unleashing Entrepreneurship: Making Business Work for the Poor5) e as teses dos economistas e Prmios Nobel Amartya Sen e Muhammad Yunus, bem como obras que debatem a questo da falta de acesso propriedade privada como o principal problema dos pobres.

    Expostas as razes da popularidade corrente de que se reveste o conceito de empreendedo-rismo em certos fora hora de ir no encalo da sua amplitude e profundidade conceptual. Ou seja, face ao vigor terico e prtico do conceito de empreendedorismo e das noes conexas, justifica-se o seu aprofundamento. Mas como se deixou entrever, misso impossvel abarcar, aqui e agora, toda a extenso e penetrao dos contributos existentes para as teorias em redor do empreendedorismo. H legado conceptual para dar e vender.

    Assim, a partir de certos trabalhos tidos por pertinentes, expe-se a seguir uma viso sin-ttica da problemtica do (micro)empreendedorismo, o que se faz em trs andamentos. Num primeiro, atenta-se sobretudo no actor comeando-se por ajuizar do sentido da aco de empreender, segundo o senso comum. Depois aborda-se o empreendedor como agen-te econmico; como indivduo alegada e singularmente sobredotado ou praticante de uma gesto extraordinria; como fundador de novas organizaes, tanto por necessidade como por oportunidade. Num segundo tempo, presta-se ateno escala dos empreendimentos, ao cariz informal de muitos deles, ao empreendedorismo social (onde se incluem velhas e novas formas cooperativas e mutualistas, organizaes caritativas, empresas sociais, etc.) e relao forte entre o microempreendedorismo e o microcrdito. O andamento final ergue a questo do empreendedorismo estar correlacionado com uma atmosfera propcia, ou mesmo com uma dada cultura vigente, ponto este que se ilustra muito concretamente com o tema do empreendedorismo no feminino. Logo de seguida remata-se o Captulo 2 com uma viso sinttica acerca da noo de partida.

    5 http://undp.org/cpsd/report/index.html

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    Cap. 2 Empreendedorismo: um conceito plural

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    2.2. A aco de empreender

    Antes de mais, atente-se nos significados da linguagem comum relativamente aos trs termos seguintes, todos com a mesma raiz: empreender, empreendedor e empreendimento. Empre-ender significa criar (v.g. uma empresa), intentar, decidir-se. Empreendedor, naturalmente, aquele que empreende, o sujeito activo, arrojado, tal como empreendimento o acto de empreender, o cometimento, a empresa, a tentativa. Por outras palavras, empreender pode entender-se numa acepo dupla: decidir levar a cabo uma tarefa ou aco (que amide dif-cil), ou seja, planear, propor-se a algo; e levar a cabo ou a efeito qualquer aco ou empreen-dimento, isto , fazer, pr em execuo, realizar. Empreendimento (v.g. turstico, industrial, imobilirio) adquiriu, entretanto, o sentido mais restrito de actividade econmica que visa a produo ou a comercializao de bens e servios.

    Empreendedorismo e microempreendedorismo no so, de modo nenhum, palavras cor-rentes na linguagem comum (percebe-se facilmente porqu, elas so longas, enrolam-se e estacam na boca do falante), mas a ltima um termo composto que remete, por um lado, para uma escala de actividades e, por outro, para uma qualidade ou capacidade do sujeito, o empreendedor. Ou, por certo, remete para um trao ou atributo duma certa atmosfera pro-pcia envolvente, ou mesmo duma dada cultura vigente. H razes para se dissociar o sujeito das suas circunstncias?

    2.3. O empreendedor como agente econmico

    O empreendedor parece ser uma figura de caleidoscpio, pois so mltiplas as vises e mes-clas possveis. Em certa medida, isto mesmo nos d conta a linguagem comum da nao, quando recorre a termos e expresses do mesmo sentido: fura-vidas, mulher de armas, ter nariz de co perdigueiro. Todos estes indivduos so capazes de ir mais alm do que governar o barco. Decididamente, sabem governar-se com a prata da casa, mas isso s no lhes basta.

    Por comodidade de exposio e de leitura, passa-se, agora, a uma boa safra de sentidos expos-tos na bibliografia e que so apresentados concisa e esquematicamente no texto subsequente. No h aqui, insiste-se, uma preocupao de se ser exaustivo, nem se deseja incorrer no risco de certo academismo.

    Algum capaz de ter arrojo, gerir bem negcios e assumir riscos

    Ainda antes da Revoluo Francesa, R. Cantillon (1931) foi o primeiro a reconhecer o papel crucial do empreendedor na teoria econmica. Certamente para surpresa de muitos, este pioneiro da economia dava como exemplo precisamente o campons-rendeiro. Na verdade,

    ele tem arrojo, j que promete melhor dizendo, arrisca-se a prometer pagar uma renda ao proprietrio das terras pelo uso das mesmas (a explorao agrcola do rendeiro), mesmo sem a garantia de resultados deste seu cometimento. Cantillon afirma, assim, a funo eco-nmica central do empreendedor, no a sua personalidade, nem o seu estatuto social, confi-gurando a incerteza como um elemento inerente ao mercado. Ele motiva-se para a actividade tendo em vista lograr uma remunerao potencial, mas esta incerta. Mesmo muito incerta, sujeita aos quatro ventos, beneficiando ou sendo prejudicada pelo sol. Fazendo uma aluso ao risco, esse autor define o empreendedor como o agente que compra meios de produo a determinado preo tendo em vista consider-los um produto que vender a preos que, data em que se compromete, so incertos.

    O termo entrepreneur veio a generalizar-se na lngua francesa, significando algum que inicia ou empreende um projecto ou uma actividade significativa, e, mais especificamente, todos aqueles que, sendo mais arrojados, acabam por estimular o progresso econmico ao desco-brirem novas e melhores formas de fazer as coisas (Dees, 2001). Esta viso muito ligada ao lado mais operacional das iniciativas antiga. Com efeito, J. B. Say (1821) veio a popularizar esta acepo no incio do sculo XIX, referindo-a s pessoas que geram riqueza deslocando recursos das reas de baixa produtividade para as de alta produtividade e maior produo. Este autor destaca a congregao, combinao e transferncia dos recursos, no chegando se-quer a aludir ao risco. Para ele, os empreendedores caracterizam-se por gerar valor e a funo empresarial define-se como uma actividade de combinao e transformao de factores em bens, assim como de concepo, planeamento e direco da produo.

    As ideias acerca da gesto dos negcios seriam reformuladas e ampliadas por J. S. Mill no seu livro Principles of Political Economy (1848). Embora este autor tenha incorporado o risco na anlise do lucro e tenha ligado estas noes ao empreendedorismo, ele tomou, de facto, o empreendedor e o capitalista como sinnimos. Importa acrescentar ainda que tambm Knight (1921) sublinha a incerteza e o risco como alicerces em que assenta o empreendedoris-mo, chamando a ateno para o facto dos bens serem produzidos, no para o autoconsumo dos prprios produtores, mas para consumidores desconhecidos. Assim, quem decide produ-zir assume a responsabilidade de fazer uma previso duma procura impessoal e incerta.

    Algum que detecta oportunidades e introduz inovaes destruidoras e criadoras

    Com a sua influente obra de 1934, The Theory of Economic Development, J. Schumpeter abala a teoria do empreendedorismo ento vigente, enxertando nela a noo de inovao j ento um conceito plural e escrutinando a ideia de risco. Para este economista, tanto os empreendedores como os capitalistas partilham riscos, sim, mas em campos separados: o papel dos primeiros o de assumir um risco relativo inovao; o papel dos segundos o de assumir um risco relativo ao lucro potencial. Enquanto os indivduos que detm negcios e

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    Cap. 2 Empreendedorismo: um conceito plural

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    assumem riscos sobre o seu capital com vista obteno de lucro, mas no inovam, so capi-talistas, os que assumem riscos por adoptarem modos de agir inovadores6, esses, sim, so os empreendedores. Trata-se de gente peculiar, que faz parte duma classe sociolgica distinta. Para Schumpeter o processo de descoberta e inovao que descreveu como o processo de destruio criativa do capitalismo modifica o passado e gera novas oportunidades para a criao de riqueza no futuro. Ou seja, o empreendedor , diga-se assim, um agitador do statu quo econmico do simples reformador ao revolucionrio , um portador do mecanismo para a mudana, a qual pode surgir quer de dentro quer de fora da economia. A mudana definida pela realizao de novas combinaes que abrem caminhos, que resultam em xitos. Nesta ptica, a capacidade para identificar novas oportunidades no mercado uma actividade central, que cria desequilbrios na economia: para Schumpeter, o que est em causa a reforma ou a revoluo dos padres de produo e estes so os desempenhos dos empreendedores. Por isso, a funo administrativa que consista numa mera repetio de rotinas de gesto no corresponde figura de um empreendedor em sentido estrito. Decidida-mente, este algum que cria de novo as combinaes econmicas. No as herda do passado e simplesmente as mantm.

    Embora os autores contemporneos tenham apresentado um amplo leque de conceitos e matizes do empreendedorismo, a maior parte dos pensadores e agentes de primeira linha continuam, no fundo, fiis tradio Say-Schumpeter que, em essncia, define os empreen-dedores como catalisadores e inovadores que esto por detrs do progresso econmico (Dees, 2001). Veja-se, agora, mais trs matizes conceptuais que nela radicam.

    Algum que tira proveito de uma informao, cuja distribuio imperfeita

    I. Kirzner (1973, 1982, 1985), por exemplo, aceita que o empreendedor busque oportunida-des, mas destaca como essencial a questo da distribuio imperfeita da informao. Por um lado, a economia vista como um processo caracterizado pela descoberta e aprendizagem e, por outro lado, o empreendedor algum que beneficia da distribuio imperfeita de infor-mao e tenta tirar vantagem disso. Para tal ele precisa de vigilncia e prontido, de manter um estado permanente de alerta (alertness). Nas suas palavras, este elemento responsvel pela nossa compreenso da aco humana como activa, criativa e humana, ao invs de pas-siva, automtica e mecnica. Um empreendedor puro reconhece-se por este atributo. Ter, diga-se, olho vivo. E rolante. Olhos bem abertos.

    6 Como, por exemplo, a introduo de um novo bem ou de uma nova qualidade em produto corrente; a adopo de um novo mtodo de produo; a abertura de um novo mercado; a utilizao de novas fontes de proviso de matrias-primas ou bens intermdios e a implantao de uma nova forma organizativa.

    Algum que explora a mudana, vendo oportunidades onde outros vem problemas

    P. Drucker, na sua obra de 1985, Innovation and Entrepreneurship, centra-se igualmente na noo de oportunidade, mas, para ele, os empreendedores no tm propriamente de provo-car mudanas, tm, sim, de explorar as oportunidades que so criadas pela mudana (v.g. na tecnologia, nas preferncias dos consumidores, nas normas sociais). Diz o autor: eis o que define o empreendedor: algum que est sempre procura da mudana, reage mudana e a explora como uma oportunidade. Os empreendedores tm uma atitude mental que os leva a verem oportunidades criadas pela mudana precisamente onde outros vem, ou tendem a ver, problemas. Para Drucker, comear um negcio no condio necessria nem suficiente para o empreendedorismo, afirmando explicitamente que nem todos os novos pequenos negcios so empreendedores ou representam o empreendedorismo. No exemplo que d do casal que abre mais uma loja de mercearias finas ou mais um restaurante mexicano nos subrbios de uma qualquer cidade americana no existe nada de especialmente inovador, ou orientado para a mudana.

    Saliente-se, entretanto, um outro aspecto. Drucker tambm deixa claro que o empreende-dorismo no implica o lucro como meta. No se reduz a tanto. Logo no incio do livro refe-rido afirma no ser possvel achar melhor exemplo para uma histria do empreendedorismo do que a criao da universidade moderna e, em especial, da universidade americana. Mais adiante, o autor dedica um captulo inteiro ao empreendedorismo nos servios pblicos. Mas, de igual modo, nem todas as novas organizaes no lucrativas sero empreendedoras se no houver um aproveitamento de oportunidades trazidas pela mudana.

    Algum que detecta oportunidades para l dos recursos disponveis

    Como assinala G. Dees (2001: 2), um outro terico da Harvard Business School, H. Stevenson, reforou a definio de empreendedorismo centrando-a na oportunidade. Che-gou l a partir da investigao que levou a cabo para determinar o que distingue uma gesto empreendedora das formas mais comuns de gesto administrativa. Depois de identificar vrias dimenses dessa diferena, conclui que o cerne da gesto empreendedora deve ser a busca da oportunidade sem ter em conta os recursos sob o seu controlo no momento. Segundo ele, os empreendedores, no s detectam e perseguem oportunidades que passam despercebidas aos gestores administrativos, como no deixam que os seus prprios recursos iniciais limitem as suas opes. Vem, diga-se, longe, vem atravs do aparentemente opaco. como se a sua capacidade excedesse os seus limites, mas tal no os refreia na reflexo e na aco. Na verdade, eles mobilizam os recursos dos outros para alcanar os seus objectivos, enquanto os no-empre-endedores ficam limitados nas suas perspectivas e aces aos meios e ao tipo de trabalho de que dispem. Estes enclausuram-se a si mesmos. Aqueles so do tipo fura-paredes.

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    Cap. 2 Empreendedorismo: um conceito plural

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    O empreendedor como homo oeconomicus singularmente dotado

    H uma longa tradio de pesquisa em torno da identificao de traos essenciais de perso-nalidade, ou caractersticas pessoais relativamente estveis dos empreendedores (entrepre-neurial traits), com vista a compreender e explicar o prprio empreendedorismo. Entre estes traos conta-se, por exemplo, a percepo da capacidade de controle das condies essenciais de que depende o xito da sua aco. Este locus of control, por sua vez, seria influenciado por outros traos do perfil do empreendedor. Mais recentemente este eixo de investigao alargou-se aos nascent e infant entrepreneurs, ou seja, aos potenciais promotores da criao de novas empresas, mais precisamente, aqueles que pela primeira vez se lanam no processo de implantao de um novo negcio que ainda no ocorreu, ou que, pelo menos, ainda no arrancou. Espera-se, assim, um aprofundamento da compreenso das questes que rodeiam a identificao, anlise e apropriao de oportunidades de negcio.

    O senso comum7 segue intuies e percursos paralelos e h, evidentemente, quem entenda que os empreendedores so pessoas sobredotadas, em cujo perfil emergiriam, por exemplo: dotes de imaginao, auto-confiana e optimismo; traos de iniciativa, flexibilidade e tole-rncia ao erro; linhas de intuio e viso para negcios futuros; e, talvez, muitos rasgos de originalidade.

    Viu-se j acima que Schumpeter se inclinou para a ideia de que os seus empreendedores, quando comparados com os seus capitalistas, constituiriam uma classe singular de actores sociais. A resposta, porm, no est isenta de problemas e controvrsias, como a dita abor-dagem dos traos individuais prosseguida com denodo sobretudo na psicologia o tem demonstrado saciedade.

    mister referir o trabalho j remoto mas influente de McClelland et al. (1953) mas simulta-neamente acrescentar que est hoje desacreditado (Swedberg, 2000: 33), trabalho esse que tentou explicar o empreendedorismo, e deste modo o desenvolvimento econmico, a partir da noo need for achievement, que pode ser convertida para necessidade de realizao, ou sede de sucesso. Estudos subsequentes muito fizeram crescer a lista das caractersticas-chave, que compem o perfil dos empreendedores ganhadores: locus of control interno, baixa aver-so ao risco, agressividade, ambio, optimismo, desejo de autonomia, marginalidade, valo-res pessoais incomuns e sede de poder. H quem desenhe o perfil do criador de uma nova empresa a partir de outras linhas, tais como uma infncia desfavorecida, filiao em grupos minoritrios e certas vivncias e experincias (v.g. de actividade econmica) na adolescncia. Para Casson (1982), por exemplo, o perfil em causa faz-se com outros traos: auto-conheci-

    7 Surpreendentemente, esta viso popular perpassa atravs de alguns discursos polticos e mesmo de certa prtica. Por exemplo, a ANJE prope que o jovem empreendedor avalie as suas competncias atravs do teste do empreendmetro e quem alcanar os 100 pontos ser, evidentemente, um empreendedor nato.

    mento, imaginao, capacidades de comunicao, pesquisa, anlise e previso, e at mesmo capacidades de computao. Enfim, as listas de atributos so longas.

    Insista-se, porm, em que esta tradio est repleta de armadilhas, que negam a ideia de que os traos de personalidade possam ser nucleares numa definio do empreendedorismo, ponto este que expresso por numerosos autores. Refira-se, antes de mais, o facto de alguns dos traos de personalidade serem contraditrios entre si. Depois, h situaes em que os indivduos manifestamente reconhecidos como empreendedores no fundaram nenhuma empresa nem iniciaram um negcio e h outras em que o empreendedorismo se parece esgotar com o prprio sucesso. H casos em que os empreendedores fugiram, eles prprios, tomada de riscos, conseguindo, sim, que outros os suportassem. Desses se poderia dizer que foram finos como azeite, ou como o alho. Noutros casos a criatividade dos empreendedores foi insignificante, pois eles limitaram-se a fazer boas cpias de outrem. Realizaram assim os seus intentos, aproveitando-se do esforo alheio. Em linguagem verncula, tais alegados empreendedores souberam tirar as castanhas do lume.

    Em suma, como assinala, no rasto de outros, Philipsen (1998: 9), tomados como um todo, os estudos deste tipo so inconclusivos e contraditrios, no conduzindo a uma fundamentao cientfica das diferenas entre empreendedores e no-empreendedores relativamente a certos traos e grupos de traos psicolgicos. Uma concluso generalizada aponta para a contingn-cia do empreendedorismo: nenhuma das suas formas, tal como nenhum caso de liderana, um sucesso duradouro, antes constitui uma cadeia de comportamentos e decises que podem mudar ao longo do tempo. Para um bom rol de investigadores, o cerne da questo est em averiguar se os traos psicolgicos so necessrios ou suficientes para o desenvolvimento do empreendedorismo.

    O empreendedor como praticante duma gesto extraordinria

    Vrios autores, entre eles Stevenson e Sahlman (1987) e Philipsen (1998), negam que o empreendedorismo seja definido como um trao de personalidade. Vem-no como uma pr-tica, ou melhor, como uma sequncia de comportamentos variveis ao longo do tempo e orientados para a organizao dos factores de produo numa dada unidade econmica. Tais comportamentos no so s individuais, mas igualmente colectivos, isto , de uma organi-zao, e a natureza empreendedora ou a sua ausncia refere-se tanto aos indivduos como s firmas. Para vrios autores, o empreendedorismo uma praxis comportamental situada entre dois extremos: num deles, o empreendedor (em lngua inglesa, the promotor) confiante na sua capacidade de agarrar a oportunidade independentemente dos recursos que tem; no outro, est o gestor (the trustee), que procede a uma gesto eficiente ao fazer um bom uso dos meios de que dispe.

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    Cap. 2 Empreendedorismo: um conceito plural

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    Num esforo de clarificao e sistematizao, Stevenson e Sahlman (1987: 18) indicaram seis dimenses crticas que podem ser usadas para distinguir um empreendedor de iniciativa empresarial (diga-se um promotor) de um gestor vulgar, este mais orientado para a rotina das tarefas e problemas administrativos. Relativamente orientao estratgica, o empreendedor mover-se- pela percepo da oportunidade, enquanto o segundo se orienta pelos recursos disponveis que controla. Este poder tambm ser inovador, mas sempre no quadro e nos limites dos recursos que tem mo. Quanto oportunidade um segundo critrio o empenho do promotor elevado, e at mesmo revolucionrio, embora possa ser pontual. O gestor, esse, mais um evolucionista. Deste ponto de vista, o empreendedor algum que rene trs comportamentos prprios: percepciona a oportunidade, ou seja, tem olho clnico; considera que, no quadro da sua situao de vida, tem de a agarrar; e cr que o sucesso possvel. Quanto afectao e controlo dos recursos, as posies so igualmente diversas: o gestor tende a gerir os recursos prprios de um modo progressivo, fase aps fase, enquanto o promotor conta mais com recursos externos a utilizar de uma s vez. As arquitecturas empre-sariais que so avaliadas por um e por outro tambm no so coincidentes: o gestor tende a preferir a hierarquia formal; o promotor, por sua vez, as estruturas simplificadas, as mltiplas redes informais. A distino faz-se ainda quanto poltica de remunerao. O empreendedor valorizar, por exemplo, os resultados de equipas, e no de cada membro, tendo em conta o percurso j feito e a fazer a longo prazo; ao invs, o gestor ver mais o desempenho pessoal no passado recente e cingir-se- muito aos recursos sob o seu prprio controlo.

    Importa ainda acrescentar um aspecto crucial: h factores que levam a que, tanto o com-portamento individual quanto a praxis organizacional, se aproximem mais de um plo ou do outro. Nesta ptica, para Stevenson e Sahlman (1987) irrelevante a distino entre sempreendedor e intra-empreendedor; o que importa que num dado tempo e lugar, quer os indivduos quer as firmas estejam a ser, ou no, empreendedores.

    O empreendedor como fundador de novas organizaes, quer por oportunidade, quer por necessidade

    A pesquisa bibliogrfica revela que h um rol considervel de investigadores [(v.g. Gartner (1985, 1989) e Gartner, Bird, and Starr (1992)] que subscrevem uma definio do empreen-dedorismo que no anda longe da exposta no ponto anterior e que se poderia classificar de empreendedorismo contingente, isto , no necessariamente duradouro. Esta caracterstica radica mister reconhec-lo na perspectiva de Schumpeter, para quem um empreende-dor s alcana esse estatuto quando efectivamente faz novas combinaes e perde-o logo que tenha montado o negcio e atingido a calma suficiente para o gerir. Alis, como fazem habitualmente os empresrios comuns.

    Para os autores referidos, o empreendedorismo o conjunto de comportamentos implicados nos processos de criao, emergncia e operao inicial de uma nova organizao e cessa logo que a ecloso desta esteja consumada. Nesta linha de compreenso do fenmeno, relevante entender as motivaes das pessoas que integram as organizaes. Ou seja, importa responder questo: quais as razes para fazerem o que a fazem? Radica nesta mesma linha de pensamento uma primeira pergunta: o que leva um indivduo a decidir criar uma firma, escolhendo o auto-emprego em vez do emprego por conta de outrem? A resposta abre cami-nho adopo de mais dois termos: empreendedorismo de necessidade, ou de refgio, e em-preendedorismo de oportunidade. Ali, as vicissitudes empurram algum, aqui h um sujeito de quem, na linguagem vulgar, se diz que atirado para a frente, atiradio, ousado.

    A bibliografia8 indica que a opo individual de construir uma empresa resulta de dois tipos de motivao de cariz econmico. Por um lado, temos os indivduos que, possuindo maior capital pessoal (v.g., capacidades empreendedoras e de gesto, menor averso ao risco, in-formao e saber assimtrico acerca de tecnologias, processos, produtos e mercados, etc.), iro detectar precocemente uma dada oportunidade de negcio potencialmente lucrativa e acreditar que alcanaro maiores nveis de utilidade e rendimento caso se tornem empres-rios. Estes so os empreendedores da tradio schumpeteriana, indivduos impelidos para o auto-emprego e responsveis pelo dito empreendedorismo de oportunidade. Por outro lado, h quem se veja arrastado pelas circunstncias e ouse criar uma empresa, no por identificar sagazmente a designada janela de oportunidade de negcio, mas por instante necessidade. Estes agentes do empreendedorismo por necessidade vem-se num quadro vazio de opes mais favorveis para a sua sobrevivncia: que fazer perante a falta de oferta de emprego? Ou que fazer quando s h empregos inadequados, particularmente inadequados s suas com-petncias, modos de pensar, sentir, agir e sonhar? Frente ao deserto do mercado de trabalho, ou frente sua secura repulsiva, natural que qualquer indivduo tenha a miragem da em-presa-osis e se decida a avanar. Pode meter-se num entalano, certo, mas tambm certo que entalado est. importante reconhecer que os microempreendedores que montam um negcio nestas circunstncias no tm de se comportar necessariamente como trabalhadores desempregados espera de um emprego, mas assumem, ou facilmente assumem, um com-portamento de clara maximizao do lucro, ou de procura de vantagens atravs do mercado. precisamente esta perspectiva de distino entre empreendedores de necessidade e de oportunidade que o Global Entrepreneurship Monitor valoriza na sua anlise, atravs do uso das categorias estatsticas total entrepreneurial activity (TEA), opportunity entrepreneurial activity (OEA) e necessity entrepreneurial activity (NEA). O TEA corresponde proporo, na populao activa, de indivduos que so titulares de uma nova empresa ou se encontram activamente envolvidos na criao de uma nova empresa. O OEA corresponde proporo, na populao activa, de indivduos que so titulares de uma nova empresa, ou se encontram

    8 Entre ns, veja-se, por exemplo, Ferro et al. (2005: 101-103).

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    activamente envolvidos na criao de uma nova empresa em resultado da deteco e explo-rao de uma oportunidade de negcio. O NEA corresponde proporo, na populao activa, de indivduos que so titulares de uma nova empresa, ou se encontram activamente envolvidos na criao de uma nova empresa em resultado da inexistncia ou insuficincia de alternativas de sobrevivncia.

    2.. O microempreendedorismo: uma questo de escala?

    Como seria de esperar, o conceito de microempreendedorismo no remete para empreende-dores com talentos, rasgo e capacidades de gesto micro, isto , reduzidas, ou at insigni-ficantes, mas sim para a escala da sua unidade econmica, as microempresas e os microem-preendimentos. Assim, importa agora proceder identificao das definies operacionais daquilo que constitui uma grande, mdia, pequena e microempresa, embora uma anlise dos respectivos contextos (v.g., espacial, temporal, poltico, etc.) fosse tambm desejvel.

    As definies operacionais so, em regra, de cariz institucional. o caso da Recomendao 96/280 da Comisso Europeia, de 3 de Abril de 1996, que definiu as mdias empresas como tendo entre 50 e 250 empregados e um volume de negcios inferior a 40 milhes de euros; as pequenas, entre 10 e 49 empregados e um volume de negcios inferior a 7 milhes de euros; e as microempresas como tendo menos de 10 trabalhadores. Mais tarde, em 6 de Maio de 2003, uma outra Recomendao da Comisso acrescenta definio anterior de microem-presa baseada no nmero de pessoas empregadas a condio de ter um volume de negcios anual, ou o balano total anual, no superior a 2 milhes de euros. O mbito de actividades exercidas pelas microempresas tambm veio a ser abordado na mesma Recomendao (artigo 1), como critrio definitrio: so consideradas microempresas as entidades que exercem uma actividade artesanal, ou outras actividades a ttulo individual ou familiar; as sociedades de pessoas; ou as associaes que exercem regularmente uma actividade econmica.

    Em Portugal, os programas com financiamento comunitrio de incentivos e apoio s micro-empresas e pequenas empresas (veja-se, por exemplo, o Programa de Incentivos Moderni-zao da Economia) seguem de perto as definies de micro, pequenas e mdias empresas adoptadas pela Unio Europeia. J nos EUA os conceitos so diferentes destes, tornando-se assim mais difceis as comparaes. Ali, enquanto as pequenas empresas tm at um mximo de 49 empregados, as mdias empresas podem ir at aos 500 empregados (Storey, 2003: 474).

    2.. Das actividades informais margem do quadro legal

    Tema pouco estudado o das relaes entre microempreendedorismo e informalidade econmica. Trata-se de uma problemtica certamente mais comum nos pases onde a econo-mia informal tem maior expresso e envolve diferentes aspectos com relevncia prtica e te-rica. Por exemplo, o de saber em que medida a percepo de risco elevado pode levar a uma ocultao temporria da actividade por parte de quem quer lanar-se num pequeno negcio. Ou, em que medida a experincia poder dizer-se estgio? de informalidade constitui um perodo de adaptao ao mercado. Ou ainda, em que medida as opes pelo regime informal traduzem uma defesa contra a hostilidade da esfera legal que enquadra a actividade econmi-ca para com os empreendedores mais dbeis, os menos dotados em recursos?

    Na Resoluo da 15 Conferncia Internacional de Estatsticos do Trabalho de 1993, intitulada Estatsticas de Emprego no Sector Informal estas pequenas actividades no sector informal so definidas como unidades de produo de bens e servios com o intuito primordial de gerar emprego e rendimento para as pessoas nelas envolvidas e caracterizam-se pelo baixo nvel de organizao e a pequena escala, pela pouca ou nenhuma diviso entre trabalho e capital como factores de produo e pelo facto das relaes de trabalho, quando existentes, serem baseadas na maior parte das vezes em empregos ocasionais, relaes de parentesco ou relaes pessoais e sociais, em lugar de relaes contratuais com garantias formais (OIT, 2006: 24).

    Os aspectos negativos destes empreendimentos informais so bem conhecidos, por constitu-rem quase sempre o lado mais divulgado do fenmeno: o seu carcter ilegal (no conformi-dade com leis e regulamentos); o seu carcter fraudulento (no contriburem para as receitas governamentais devido evaso de impostos); o seu carcter de concorrncia desleal (com-petem em desigualdade com empresas formais ao evitarem custos a que estas esto sujeitas); e o seu carcter eventualmente criminal. sabido, algumas actividades informais so ilegais, ou eventualmente mesmo criminosas, num sentido jurdico mais rigoroso.

    No entanto, as actividades informais e, sobretudo, as de pequena escala so, na maior parte dos casos, a alternativa possvel para muita gente, uma oportunidade de obteno de ren-dimento para aqueles que de outra forma estariam sem meios de subsistncia. Em vez de existir nessas pessoas uma espcie de preferncia pelo regime informal, o que se verifica que este a sua escolha mais racional. Para quem tem falta de recursos (no s monetrios, mas tambm educacionais e sociais), a soluo formal pode ser invivel. A incerteza acerca do xito do negcio torna proibitivo e muito arriscado o investimento na formalizao desse negcio: autorizaes, licenas, impostos, etc. O sistema fiscal e de segurana social e as leis laborais so excessivamente restritivos ou complexos para um empreendimento de pequena

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    dimenso9. Por outro lado, no estando assegurada a clientela e sendo o ambiente comercial muitas vezes hostil para o incio, crescimento e desenvolvimento de negcios, a passagem transitria por um perodo de informalidade vista como a melhor forma de reduzir o risco de no ter clientela e de no dominar o mercado. Finalmente, a falta de recursos materiais e de bens de propriedade limitam a responsabilidade e impedem o acesso ao crdito insti-tucional, abrindo a porta ao crdito fiducirio das redes sociais primrias, mas tambm ao crdito usurrio, como Muhammad Yunus verificou no Bangladesh. Apenas razes deste tipo explicam a insegurana e o risco suportados pelos empreendedores informais: multas fiscais, confiscao, punio por delito econmico, condenao por ilicitude, etc.

    Um estudo como este no poderia deixar de atender importncia desta realidade em Portugal, desde logo pela sua condio de patamar para empreendimentos mais consoli-dados. Parte-se da hiptese de que, num pas em que a economia informal tem um peso significativo, muitos dos pequenos negcios tero tambm eles um incio informal, ou sero fortemente sustentados em ajudas informais cujo estatuto no empreendimento no fica claro. Estas iniciativas no sector informal da economia sero consideradas modalidades atpicas de negcio que mantm uma relao processual com o empreendedorismo: o seu potencial para desenvolver a capacidade de iniciativa, empreendimento, inovao e criatividade. Ao habili-tarem os seus promotores a operar com alto grau de flexibilidade, ao familiariz-los com o negcio nas suas vertentes de organizao e de mercados (v.g. gesto de recursos e comercia-lizao dos produtos) e ao ajud-los a consolidar uma relao estvel com o mercado, estas actividades informais condicionam o modo como o fenmeno se expressa entre ns.

    A reestruturao das economias e dos mercados de trabalho tm favorecido o recrudescimen-to das prticas informais. Isto, note-se, mesmo nos pases mais desenvolvidos. Existe hoje por parte dos governos a conscincia de que essas actividades desempenham um importante papel de adaptao s situaes de crise e, por essa razo, feita sobre elas uma avaliao menos negativa do que se verificava no passado. Nalguns pases procura-se mesmo conferir alguma proteco ao sector informal, sem, no entanto, o promover. Tenta-se designadamente prover maiores incentivos s empresas informais, atravs da reduo de custos e do aumento dos benefcios para se tornarem e permanecerem legais. Quem quer montar um pequeno

    9 A informalidade do negcio arrasta assim a informalidade da relao laboral. O mesmo documento enuncia as desvantagens da condio de trabalhador informal: estar desprotegido, no reconhecido e desorganizado e, portanto, estar altamente vulnervel e inseguro; no ter proteco da legislao laboral, ter condies insatisfatrias de trabalho, de segurana e de sade; ter pouca ou nenhuma proteco social; ser incapaz de fazer valer contratos ou ter segurana de seus direitos de propriedade; no estar organizado para se fazer representar efectivamente e no ter o poder de obter reconhecimento e proteco para seu trabalho; estar excludo ou ter acesso limitado infra-estrutura e benefcios pblicos; depender de arranjos institucionais informais e quase sempre abusivos para obter informao, crdito, treino ou benefcios sociais; estar sujeito a perseguies pelas autoridades pblicas; exercer actividade remunerada que legal por natureza mas que as autoridades pblicas desconhecem trabalho no declarado.

    negcio no tem, em geral, acesso a servios de marketing, de formao em competncias bsicas, ou de transferncia de tecnologias. Uma orientao recente vai no sentido de tornar mais fcil o acesso a esses servios e de ajudar formalizao das empresas. Isto , busca-se o seu deslizamento de estatuto, o envolvimento no mercado, no se busca a sufocao. Esta aco pode, de modo contraproducente, incentivar a reproduo do regime informal. Equilbrio na interveno, eis a meta.

    2.. O empreendedorismo social

    Logo na introduo se disse que no h definio simples e incontroversa de empreendedo-rismo, conceito este que, por sua vez, no deixa de ser afectado pela percepo que se tenha acerca da economia, bem como dos seus actores, em particular os seus alegados motores. Quando se fala de economia, de que economia se fala: da capitalista ou da chamada econo-mia social? Na reflexo sobre o empreendedorismo social mais frequente encontrar a linha de demarcao tipicamente europeia entre a economia capitalista e a economia social, ou seja, a primeira referente s actividades que tm por objectivo a apropriao individual do lucro, e a segunda referente s que possuem um interesse geral (Borgaza e Defourny, 2001). Lvesque (2002), um dos autores prximos desta perspectiva, distingue o empreendedoris-mo capitalista, por um lado, e o empreendedorismo social e colectivo, por outro, referindo-se o primeiro aco individual no sentido em que Schumpeter o colocou.

    Ora, no foi s a figura do empresrio fulgurante, ou do empreendedor econmico, puro e duro, que se popularizou como modelo a seguir para se reduzir o desemprego e as desigual-dades sociais no seio de uma nao. Tambm, e cada vez mais, o conceito de empreendedor social est associado a este objectivo, designadamente porque a doutrina social da Igreja catlica lhe acrescentou essa funo. Erradamente ele confundido com o empresrio que subscreva a designada responsabilidade social, ou com o fundador de uma iniciativa no-lucrativa, ou ainda com o lder duma organizao no-lucrativa que implante actividades remuneradas.

    Importa, ento, clarificar que o empreendedorismo social anda associado ao desenvolvimento de projectos (de indivduos ou de comunidades, mas no necessariamente envolvidos numa organizao) que visam alcanar o interesse geral, o chamado bem comum, ou dar resposta a necessidades sociais no satisfeitas. Mas, dentro desta grande moldura, possvel identificar, pelo menos, quatro significados de empreendedorismo social, que variam quanto ao peso das actividades no mercado, natureza da mudana que infundida e ao contexto em que se desenvolve a aco empreendedora (Ferreira, 2005).

    Uma primeira verso de empreendedorismo social centra-se na finalidade social das organi-zaes que realizada atravs de actividades de carcter mercantil. Ou seja, a prossecuo

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    da sua misso social, a resoluo de problemas sociais, d-se pela gerao de rendimentos a partir da sua actuao no mercado. Esta verso est prxima das perspectivas sobre a empre-sa social nos EUA (Young, 2003).

    Uma segunda verso adopta igualmente a ptica organizacional, mas sublinha ainda o carcter inovador da actividade. Diferentemente da ptica anterior, estas empresas no so inovadoras por via da sua face comercial, mas sim por proporem novas configuraes organi-zacionais, ou novas solues para os problemas. Esta verso est prxima da viso europeia que associa o empreendedorismo criao de empresas sociais.

    Uma terceira variante do empreendedorismo social associa sustentabilidade econmica e im-pacto de larga escala, considerando virtuosa a mistura de mtodos vindos do mundo dos negcios e do campo filantrpico. semelhana da segunda verso (a empresa social euro-peia), ela tambm enfatiza a inovao social. Segundo este ngulo de viso, no a busca de rendimentos que define o empreendedorismo social, pois pode mesmo haver actividades fora do mercado. Para, por exemplo, G. Dees (2001), os empreendedores sociais so um tipo especial de empreendedores, que enfrentam alguns reptos distintos, designadamente pelo facto de estarem libertos da disciplina do mercado. Tm uma misso social, trao este que explcito e central, afectando necessariamente o modo como percebem e avaliam as oportunidades. O impacto relacionado com a misso social para eles um critrio-chave, sendo a gerao de riqueza apenas um meio para outros fins maiores, ao invs do que sucede com os empreendedores de negcios que medem assim a criao de valor. Segundo aquele autor, o empreendedor social um agente de mudana no sector social, a que se associa um rol de comportamentos-tipo muito exigentes e s acessveis a pessoas muito especiais. Su-cintamente, o empreendedor social age de modo particular: adopta uma misso para criar e manter valor social (e no apenas valor privado); reconhece e procura obstinadamente novas oportunidades para servir essa misso; empenha-se num processo contnuo de inovao, adaptao e aprendizagem; actua com ousadia sem estar limitado pelos recursos disponveis no momento; e ainda presta contas dos resultados obtidos s clientelas que serve.

    Numa quarta verso, o significado que se atribui ao empreendedorismo social est revestido de uma certa radicalidade. O que est em causa nesta acepo a inovao sistmica, ou seja a identificao de novas solues para a resoluo de problemas sociais, frequentemente associadas a transformaes globais. Segundo o dirigente da Ashoka, Bill Drayon, os empre-endedores sociais no se contentam apenas em dar o peixe ou a ensinar a pescar (Ashoka, 2004). Esta verso valoriza o impacto global das inovaes e, talvez por isso, tem maior curso quanto ao desenvolvimento das sociedades do designado Sul. Referem alguns dos seus auto-res que enquanto o teste de sucesso do empreendedorismo no mundo dos negcios consiste na criao de negcios viveis, o teste do empreendedorismo social pode consistir numa

    mudana na dinmica e nos sistemas sociais que criaram e alimentaram um dado problema, podendo a organizao criada para resolver o problema, tornar-se menos vivel medida que vai tendo sucesso (Alvord, Brown e Letts, 2002).

    Pela sua expresso em termos numricos, cabe especificar aqui uma modalidade prxima deste quarto tipo e que se costuma designar por empreendedorismo econmico solidrio. Nesta modalidade integram-se todas as formas de associao produtiva entre trabalhadores, como alternativa ao desemprego, falta de rendimento e marginalizao pelo mercado de trabalho. Situadas no domnio do que convencionalmente tem sido designado por autogesto e cooperao, estas formas caracterizam-se por um conjunto de princpios que as permite dis-tinguir de outras modalidades de empreendedorismo. De entre esses princpios, destacam-se: a autogesto e cooperao no trabalho, a participao, o igualitarismo, a auto-sustentao, o desenvolvimento humano e a responsabilidade social (Gaiger, 2004: 11).

    A relao entre o lado solidrio e o lado empreendedor destas iniciativas explica-se por um srie longa de razes interrelacionadas, a saber: a necessidade de novas modalidades de associativismo num perodo marcado pela globalizao econmica; o sistema das cadeias produtivas e a crise do sistema de trabalho assalariado; e ainda pela preocupao de escapar ao desemprego macio e excluso social dos trabalhadores a que estes factores tm condu-zido sobretudo na periferia do sistema mundial. A sada empreendedorista representa uma valorizao simultnea das vantagens da cooperao em torno de objectivos de melhoria das condies de vida e da eficincia econmica para um uso mais adequado e flexvel dos recursos, incluindo o trabalho. A economia solidria tem vindo a desenvolver-se muito escala mundial, mesmo em pases desenvolvidos da Unio Europeia, como a Frana, a Itlia, a Blgica e a Espanha. A caracterstica mais marcante a pluralidade e novidade de formas: antigas e novas formas cooperativas e mutualistas, organizaes caritativas, empresas sociais e solidrias, empresas auto-geridas e alternativas, iniciativas colectivas de alojamento, siste-mas de trocas locais, comrcio justo, instituies financeiras solidrias, padres alternativos na relao entre a produo e o consumo, empresas de insero e outras formas de inicia-tivas de economia solidria dirigidas ou conduzidas por desempregados, mulheres, mino-rias tnicas e outras pessoas desfavorecidas social e/ou economicamente. Em regra, essas iniciativas mobilizam uma grande diversidade de recursos e, no raro, beneficiam de apoios importantes por parte das entidades pblicas e, designadamente, das autarquias locais. Isto assim , precisamente pela capacidade que tm de encontrar uma sada para problemas que as polticas pblicas convencionais no resolvem. A sua relao com a sociedade civil e com o Estado , portanto, muito prxima, mas pautada por princpios de solidariedade e de reconhecimento mtuo.

    Em Portugal, o empreendedorismo colectivo e solidrio ainda dbil, apesar de uma expe-rincia muito rica havida na segunda metade dos anos 70 (Lima, 1986: 539; Santos, Lima e

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    Matias, 1977; Leo, 1992: 175; Franco, 1994: 201), a qual conjugou os efeitos de uma crise aguda do sector empresarial (associado a, por exemplo, encerramento de empresas, descapi-talizao, abandono) com as aspiraes dos trabalhadores a um modelo autogestionrio.

    Actualmente as frmulas associativas autnomas de produo de bens e servios so clara-mente subalternizadas pelas entidades pblicas na sua estratgia de promoo do microem-preendedorismo, ao mesmo tempo que faltam outros apoios indispensveis na sociedade civil, designadamente dirigidos a cooperativas, que possam ajudar concretizao de projec-tos viveis. Quando se criam raras oportunidades deste tipo, a porta de acesso estreita: s as organizaes cooperativas maiores so elegveis; s o corpo material das ditas financi-vel. As pequenas unidades enfrentam atitudes e comportamentos estereotipados que nutrem incompreenses e obstculos. rural, l na provncia, coisa pequena, sem dimenso, sem visibilidade ou padrinho, a tempo parcial, , enfim, coisa de mulheres. Em suma, no h enquadramento burocrtico que resista s macro-vises urbanas de hostilidade (vd. Portela e Cristovo, 1991; Portela 1994; Marques e Portela, 1994, Portela, 1999). As micro--cooperativas no esto em nenhuma agenda oficial, sim, mas esta ausncia comea por ser um buraco mental. Talvez por isto mesmo as microempresas em Portugal so sobretudo de trabalhado-res isolados. numa atmosfera geral de grande insensibilidade e dificuldade aco grupal e colectiva que se devem entender os esforos feitos, ao longo dos anos, duma organizao como o INSCOOP.

    2.. Microempreendedorismo e microcrdito

    Finalmente, uma referncia inevitvel a um dos instrumentos mais importantes e eficazes de capacitao para o empreendedorismo em comunidades pobres: o microcrdito. Em muitas sociedades, designadamente as do dito Sul, microempreendedorismo e microcrdito apare-cem juntos, quer na literatura quer nas polticas. A falta de recursos logo, a falta de garantias pessoais ou reais torna a questo do financiamento uma varivel crtica. Noutras socieda-des, como a portuguesa, onde existe uma proporo significativa de populao em situao de pobreza, o microcrdito pode desempenhar um papel importantssimo para quem tem ideias de negcio mas no tem capital nem garantias para o obter.

    O acesso ao crdito para o lanamento de novos empreendimentos torna-se decisivo, uma vez que dificilmente as camadas mais pobres da populao podem garantir, para alm da sua palavra honrada, o pagamento das dvidas contradas para montar os negcios. Por isso o crdito particularmente caro muitas vezes, objecto mesmo de usura para essas camadas. Ou, o que se observa com frequncia, mesmo inexistente.

    O microcrdito, na configurao e com a filosofia que lhe deu M. Yunus, veio revolucionar o sistema de financiamento dos pequenos empreendimentos dos pobres, fornecendo-lhes

    crdito na base da confiana pessoal e da viabilidade dos negcios em contexto de economias pobres. A ideia de que os pobres podem tirar proveito do sistema de mercado para melho-rar a sua sorte pde ser concretizada atravs de um banco privado, operando no mercado, mas animado por uma preocupao de bem-estar social, como tem sido o caso do Banco Grameen (Yunus, 2001: 264). Isto, em vez de um outro pensamento e uma outra preocupa-o, a da ganncia. O que faz a diferena da banca institucional precisamente esta filosofia de desenvolvimento que aposta na reduo da pobreza e do mal-estar atravs do estmulo das pequenas actividades autnomas. Estas, ao invs de serem vistas com desconfiana pela sua reduzida escala, so valorizadas pelo rol de potencialidades que evidenciam de fazer melhorar a vida das pessoas: pela flexibilidade de horrios e de tarefas; pela valorizao dos conhecimentos prticos baseados na experincia; pela converso de um mero expediente em actividade remunerada; pela libertao de hierarquias demasiado rgidas; pela fuga dependncia face ajuda social; pelos custos relativamente baixos da criao de um negcio; e, por fim e ainda essncia, pelo reforo da auto-estima que confere aos desempregados, ou aos inactivos pobres.

    Como deixa claro M. Yunus (2001: 270) o trabalho autnomo tem os seus limites, mas em muitos casos a nica soluo para melhorar a sorte daqueles que as nossas economias se recusam a empregar e cuja carga os contribuintes se recusam a suportar.

    Na sua configurao matricial o microcrdito apresenta um conjunto de traos que depois no se encontram em muitas das suas concretizaes nacionais. o caso da no exigncia de formao profissional como pr-requisito; da complementaridade dos sistemas de ajuda na sade, na educao, na segurana social, na informao, etc.; ou da prioridade, ou exclusivi-dade, da atribuio do crdito s mulheres.

    No caso portugus, a Associao Nacional de Direito ao Crdito (ANDC), pioneira na difu-so do microcrdito (vd. Captulo 4), sublinha as capacidades deste para a integrao dos desempregados e dos desocupados, principalmente mulheres, que no encontram resposta no mercado de trabalho por razes de idade e/ou de falta de qualificaes. Ou porque vivem em regies de baixo dinamismo econmico. Trata-se de pessoas que possuem um saber-fazer marcante ou c