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O R G A N I Z A D O R E S Jorge O. Romano e Marta Antunes DEZEMBRO 2002 Empoderamento e direitos no combate à pobreza

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O R G A N I Z A D O R E S

Jorge O. Romanoe Marta Antunes

DEZEMBRO 2002

Empoderamentoe direitos nocombate à pobreza

XXXX Empoderamento e direitos no combateà pobreza. � Rio de Janeiro : ActionAid Brasil116p. 25cm

ISBN 85-XXXXX-XX-X

1. Desenvolvimento, 2. Poder, 3. PobrezaI. Jorge O. Romano � 1950, Marta Antunes � 1977

CDD XXX.XXX

Empoderamento e direitosno combate à pobreza

COPYRIGHT (C) 2002 BY ACTIONAID BRASIL

ActionAid BrasilRua Corcovado, 252 � Jardim BotânicoCEP 22460-050 Rio de Janeiro � RJTel.: +(21) 2540-5707 � Fax: +(21) 2540-5841Email: [email protected]: www.actionaid.org.br

COORDENAÇÃO EDITORIALActionAid Brasil

REVISÃOClóvis Moraes

TRADUÇÃOGlauce Arzua

PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃOMais Programação Visual

CAPAArte sobre fotos de arquivo da ActionAid Brasil

FOTOLITOQuadratin Artes Gráficas

IMPRESSÃOEditora Lidador

TIRAGEM500 exemplares

O conteúdo desta publicação pode ser reproduzido, desde que citada a fonte.

Sumário

Introdução ao debate sobre empoderamentoe direitos no combate à pobreza ............................................................................... 5Jorge O. Romano e Marta Antunes

Empoderamento: recuperando a questãodo poder no combate à pobreza ............................................................................... 9Jorge O. Romano

Algumas considerações sobre estratégiasde empoderamento e de direitos ............................................................................ 21Cecília Iorio

Metodologias e ferramentas para implementarestratégias de empoderamento ............................................................................... 45Alberto Enríquez Villacorta e Marcos Rodríguez

Empoderamento, teorias de desenvolvimentoe desenvolvimento local na América Latina ....................................................... 67Enrique Gallichio

O caminho do empoderamento: articulando as noçõesde desenvolvimento, pobreza e empoderamento .......................................... 91Marta Antunes

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Introdução ao debatesobre empoderamentoe direitos no combateà pobreza

Jorge O. Romano1

e Marta Antunes2

As abordagens de empoderamento e de direitos estão presentes nas estra-tégias e práticas de campo das ONGs que promovem um desenvolvimento alternativo, visando àsuperação da pobreza.

A noção de empoderamento começa a ser utilizada na década dos 70, com os movimentos sociaise, posteriormente, passa a permear as práticas das ONGs. Nos últimos anos, o conceito e aabordagem foram gradualmente apropriados pelas agências de cooperação e organizações finan-ceiras multilaterais (como o Banco Mundial). Nesta apropriação o conceito e a abordagem sofreramum processo de despolitização � ou pasteurização � ao ser enfatizada sua dimensão instrumentale metodológica. Assim, junto com conceitos como capital social e capacidades, o empoderamentopassa a ser um termo em disputa no campo ideológico de desenvolvimento.

Por sua vez, nos últimos anos, percebe-se que um número crescente de instituições da Socie-dade Civil introduz em sua estratégia a abordagem baseada em direitos, a qual tem sua origem naluta pelo reconhecimento e promoção do conjunto de direitos humanos (civis, políticos, eco-nômicos, culturais, etc.). As próprias agências de cooperação e organizações financeiras mul-tilaterais vêm progressivamente adotando esta nova conceitualização na formulação de suaspolíticas e estratégias. Dessa forma a noção de direitos e a abordagem baseada em direitospassam também a ser motivo de debate e disputa no campo de desenvolvimento, tal como ocorreno caso de empoderamento.

No Brasil os fundamentos da abordagem baseada em direitos estão muito mais presentes nosdebates sobre desenvolvimento e combate à pobreza, tanto no espaço governamental de políticaspúblicas, como entre os movimentos sociais, ONGs e o mundo acadêmico, devido à importânciaque têm assumido as análises de luta pela cidadania e de construção de direitos sociais.

Por sua vez, as discussões que têm como enfoque o empoderamento são incipientes, estandoassociadas, principalmente, às propostas de agências de cooperação. Entre os movimentos sociais,ONGs e a academia especializada nestes temas, além de desconhecimento existe, em geral, umaampla margem de desconfiança, por conta do uso instrumental da abordagem feito por entidadescomo o Banco Mundial.

1 Antopólogo, ActionAid/CPDA-UFRRJ, Brasil.

2 Economista, CPDA-UFRRJ, Brasil.

� EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA �

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Dentro do mundo das ONGs, a ActionAid é uma das que têm adotado uma estratégia centradano diálogo entre as abordagens de direitos e de empoderamento.3 Atuando no país desde 1999,em seu trabalho de combate à pobreza a ActionAid Brasil tem colocado a noção de empodera-mento como elemento central de sua estratégia. Esta tem sido implementada através de projetosde desenvolvimento local, de campanhas nacionais e do trabalho de advocacy nos níveis nacional,regional e local.

Partindo do reconhecimento de que o Brasil é um dos países de maior desigualdade no mundo eque essa é a principal causa da pobreza e da exclusão social, a ActionAid Brasil considera que parasuperar a pobreza se faz necessário promover a construção de um projeto crítico e alternativo dedesenvolvimento fundado no empoderamento dos pobres e de seus representantes e aliados.

O empoderamento dos pobres e das comunidades viria a ocorrer pela conquista plena dos direitosde cidadania. Ou seja, da capacidade de um ator, individual ou coletivo, usar seus recursos econô-micos, sociais, políticos e culturais para atuar com responsabilidade no espaço público na defesade seus direitos, influenciando as ações do Estado na distribuição dos serviços e recursos públicos.

Ao mesmo tempo, a ActionAid Brasil considera que os movimentos sociais e as organizaçõespopulares são os principais agentes de transformação do Estado num instrumento para a erradicaçãoda pobreza e da desigualdade no país. As ONGs e suas redes dariam suporte a estes atores.4

Atualmente, os projetos de desenvolvimento local promovidos pela ActionAid Brasil, em parceriacom ONGs e movimentos sociais, são levados a cabo em diversas microrregiões, que incluemdesde favelas do Rio de Janeiro e de São Paulo até as áreas rurais pobres do Nordeste. Ao mesmotempo, a ActionAid Brasil impulsiona e participa de três campanhas nacionais: CampanhaNacional pelo Direito à Educação, Campanha por um Brasil Livre de Transgênicos e Campanha deComércio e Segurança Alimentar.

Nos últimos anos a ActionAid tem realizado um esforço de propiciar espaços de reflexão e debateque permitam o esclarecimento da abordagem de empoderamento e de direitos, que fundam suaestratégia, visando a ressaltar as possíveis sinergias entre as mesmas.

Um dos espaços criados para essa reflexão e debate foi o seminário internacional Os Enfoques deEmpoderamento e Direitos no Combate à Pobreza, realizado no Rio de Janeiro, nos dias 4 a 6 desetembro de 2002, e que congregou mais de 30 profissionais da entidade, assim como especialistasda América Latina, Europa, Ásia e África.5

O seminário, privilegiando a reflexão sobre empoderamento e sua prática na América Latina,procurou estabelecer pontos de divergência e convergência entre as abordagens de empodera-mento e direitos; identificar nas experiências de trabalho as práticas e metodologias adotadas,ressaltando seus limites e potencialidades; e, finalmente, refletir acerca das implicações práticas epolíticas de adotar essas abordagens no combate à pobreza.

3 A organização, fundada no Reino Unido em 1972, tem uma longa tradição de trabalho com desenvolvimento, envolvendoas populações pobres, movimentos sociais e organizações de base, em mais de 30 países na Ásia, na África e naAmérica Latina e Caribe.

4 ActionAid Brasil. Estratégia Nacional, 2001-2003.

5 O seminário e esta publicações foram possíveis de realizar graças ao apoio da ActionAid UK.

� INTRODUÇÃO AO DEBATE SOBRE EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA �

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Assim, uma série de questões foi levantada como desafios para o debate entre os participantes:

� O empoderamento praticado pelas ONGs é visto como um meio? Para quê? É umpoder sobre recursos e ideologias que nos leva a situações de soma zero? Seráque isso significa que as ONGs estão adotando uma abordagem instrumental?Ou que estão pensando o empoderamento como um objetivo (fim)? Um poderpara? Um poder com? Um poder de dentro? Resultante de capacidades indi-viduais, de ser e de se expressar? As ONGs estão adotando uma abordagem deprocesso? Em que nível as perspectivas de empoderamento e direitos são exclu-dentes ou se reforçam nas práticas das ONGs?

� Em que medida as práticas das ONGs têm seu foco no empoderamento de indi-víduos ou de grupos? As ONGs estão colocando as pessoas ou os grupos nocentro do processo? São duas formas distintas? São complementares?

� Quem empodera quem? Quais as vantagens e limites do empoderamento porONGs, por movimentos sociais, pela atuação conjunta de ONGs e governo e poragências multilaterais?

� Em que medida estamos conscientes de que empoderamento é um processorelacional e conflituoso? Na prática, como as estratégias das ONGs estão lidandocom essas relações conflituosas?

� Quais as potencialidades e limites apresentados pelo empoderamento quandoeste é adotado como estratégia de combate à pobreza nos campos da política,informação, cultura institucional, construção de capacidades e participação?

� No seu trabalho, como as ONGs lidam com os limites da abordagem de empode-ramento? O que significa perguntar, como se asseguram a continuidade e oaprofundamento das conquistas? Esta é uma abordagem de custos elevados?É possível adotá-la em programas de nível superior, de maior escala e mais com-plexos? Que procedimentos de mensuração, monitoramento e avaliação de difi-culdades podem ser utilizados?

� A abordagem de empoderamento é utilizada da mesma forma que a abordagembaseada em direitos? Quais as vantagens e limites de unificar as duas abordagens?

� Em que medida a abordagem baseada em direitos lida com a necessidade dediscutir poder e desenvolvimento no combate à pobreza? Como isso está sendofeito pelas ONGs?

� Como, na prática, as ONGs superam os limites da abordagem baseada em direi-tos? Como lidar com a inadequação permanente da legislação como mecanismode controle de poder? Como lidar com o gap existente entre a percepção dosdireitos humanos básicos e as diferentes percepções de direitos nos várioscontextos políticos e culturais? Como as ONGs lidam com o fato de a violaçãodiária de direitos ter-se tornado algo tão comum?

� Sabendo que exercer direitos econômicos, sociais e culturais é uma questão emconfronto e que para estabelecer esses direitos as estruturas de poder têm de seralteradas, como as ONGs estão lidando com isso em seu trabalho?

� EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA �

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Para subsidiar o debate no seminário, foi elaborada uma série de textos e comunicações, os quaisfazem parte desta coletânea.

No primeiro ensaio, Empoderamento: recuperando a questão de poder no combate à pobreza,Jorge O. Romano procura recuperar na utilização da noção de empoderamento a importância dasquestões relativas à análise de poder, apagadas com a popularização dessa abordagem entre asagências de cooperação multilateral.

Cecília Iorio, em Algumas considerações sobre estratégias de empoderamento e direitos, exploraas dinâmicas das abordagens de empoderamento e direitos no combate à pobreza, buscandoresgatar a conceitualização, contextualizar o debate e apontar fortalezas e fragilidades de ambasas abordagens.

No texto seguinte, Algumas considerações sobre estratégias de empoderamento e de direitos,Alberto Enríquez Villacorta e Marcos Rodríguez buscam fazer um balanço crítico das metodologi-as e ferramentas utilizadas na América Latina, na implementação de estratégias de empodera-mento. Para isso, partem de uma reflexão sobre o conceito de empoderamento, ressaltandosuas semelhanças e diferenças com a abordagem baseada em direitos.

Enrique Gallichio, em seu trabalho Empoderamento, teorias de desenvolvimento e desenvolvi-mento local na América Latina, foca sua atenção no mapeamento dos modelos de desenvolvi-mento adotados na América Latina e dos paradigmas que os sustentam. Dentre eles ressaltaas concepções alternativas, em particular as que se sustentam no aportes de Pierre Bourdieu.O trabalho finaliza com uma proposta de abordagem para o desenvolvimento local, que ressaltaa dimensão de poder.

Finalmente, o ensaio O caminho do empoderamento: articulando as noções de desenvolvimento,pobreza e empoderamento, de Marta Antunes, procura uma articulação teórica das noções dedesenvolvimento, pobreza e empoderamento, partindo das abordagens de Desenvolvimento comoliberdade, de Amartya Sen, e de Rural livelihoods, de Robert Chambers, na forma como foramaplicadas � por autores como Bebbington � na América Latina.

Assim, esta coletânea visa a trazer ao leitor brasileiro trabalhos que apontam para o uso daabordagem de empoderamento na América Latina e que enfatizam a importância e complexidadedas questões de poder, buscando contribuir para o fortalecimento do diálogo entre esta aborda-gem e a baseada em direitos. Consideramos que nem a abordagem baseada em direitos nem aabordagem de empoderamento são suficientes em si mesmas, mas que ambas são necessáriase complementares. Principalmente quando temos como foco, no combate à pobreza, os proces-sos de luta pela cidadania e de construção de sujeitos sociais.

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Empoderamento:recuperando a questãodo poder no combateà pobreza

Jorge O. Romano1

O empoderamento no debate ideológicosobre desenvolvimento

O empoderamento é uma dentre as categorias e/ou abordagens � como, por exemplo, participação,descentralização, capital social, abordagem de direitos (rights-based approach) � que de formaexplícita ou implícita está inserida no debate ideológico em torno do desenvolvimento. Este debatetem sido polarizado nos últimos tempos entre os defensores de uma globalização regida pelomercado (ou, dito de outra forma, pelo Império, pelo Consenso de Washington, pelo neoliberalismo)e os críticos que defendem que �a construção de um outro mundo é possível�.

Essas categorias, originadas em sua maioria em discursos críticos ao desenvolvimento vigente,têm sido apropriadas e re-semantizadas nos discursos e nas práticas dominantes do mainstream,expressos principalmente através dos bancos e das agências de desenvolvimento multilaterais ebilaterais, dos governos e de diversas organizações da sociedade civil.

Inevitavelmente, como em geral acontece, quando atores sociais com ideologias, enfoques epráticas muito diversas confluem num conjunto comum de conceitos, existe uma considerávelfalta de clareza e até confusão com o seu significado real. Ao mesmo tempo existe uma descon-fiança � justificável pela experiência recente � entre os críticos do desenvolvimento dominanteque usaram inicialmente essas idéias, sobre os perigos de cooptação, diluição e distorção dasmesmas (Sen, G: 1997).

Assim, para ONGs que têm no empoderamento um elemento central de sua estratégia de�combater juntos a pobreza�, é fundamental enfrentar os problemas e limites que esta generali-zação do uso do conceito e da abordagem de empoderamento apresenta.2 Isto é, ao final, do queestamos falando quando falamos de empoderamento?

Um caminho para enfrentar essa confusão e desconfiança que apontava G. Sen é propiciar areflexão conjunta e o debate, procurando clarificar nossa abordagem de empoderamento, delimitaro uso do conceito e identificar seus limites e potencialidades a partir da nossa experiência. As idéias ereflexões contidas neste texto procuram contribuir nesse caminho.

1 Antropólogo, ActionAid/CPDA-UFRRJ, Brasil.

2 Cabe ressaltar que um conjunto equivalente de problemas e limites, associados a este tipo de generalização de uso por atoresdiversos, ronda também a abordagem de rights based approach.

� EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA �

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1. O que não entendemospor empoderamento

1.1. O empoderamento como transformismo (gattopardismo).

Empoderamento, como comentamos inicialmente � junto com participação, descentrali-zação, capital social e abordagem baseada em direitos (rights-based approach) � é um conceito euma abordagem que tem sido re-apropriada pelo mainstream e que virou moda nos anos 90entre os atores do desenvolvimento. O conceito não só virou moda, mas também � o que é maisdanoso � foi apropriado como uma forma de legitimação de práticas muito diversas, e não neces-sariamente �empoderadoras� como as propostas nos termos originais.

Assim, o empoderamento invocado pelos bancos e agências de desenvolvimento multila-terais e bilaterais, por diversos governos e também por ONGs, com muita freqüência vem sendousado principalmente como um instrumento de legitimação para eles continuarem fazendo, emessência, o que antes faziam. Agora com um novo nome: empoderamento. Ou para controlar,dentro dos marcos por eles estabelecidos, o potencial de mudanças impresso originariamentenessas categorias e propostas inovadoras. Situação típica de transformismo (gattopardismo): apro-priar-se e desvirtuar o novo, para garantir a continuidade das práticas dominantes. Adaptando-seaos novos tempos, mudar �tudo� para não mudar nada.

Num dos recentes informes do Banco Mundial sobre empoderamento e redução depobreza (World Bank, 2002) são apresentadas, vestindo a roupagem nova do empo-deramento, centenas de atividades e iniciativas apoiadas e promovidas pelo Banco.A proliferação de exemplos é deslumbrante. Assim, hoje, o Banco Mundial se apresen-taria como quem mais promove o empoderamento no mundo. Porém, um conhecimentomais cuidadoso da prática e dos resultados reais desses mesmos exemplos podequestionar essa visão otimista da adoção e difusão da abordagem de empodera-mento pelos bancos e agências multilaterais.

Até onde, na grande maioria dos casos � como, por exemplo, em projetos de irrigação,difusão de telefonia ou de fundos de desenvolvimento social � não se continua fazendoem essência, ainda que de outro modo, o que se fazia? Isto é: roupagens novas paraações velhas... Ou até onde o potencial de mudança das ações novas tem sido limitado� ou anulado � pela prática e a cultura política e institucional dominantes na entidadee nos governos que promovem essas ações? Isto é: ações novas aprisionadas emroupagens velhas...

Entre as próprias ONGs, até onde a prestação ou promoção de serviços sociais básicostem-se transformado, verdadeiramente, num meio de empoderamento e não um fimem si mesmo? Isto é, até onde, em alguns casos, a cultura institucional, os habitus dosseus funcionários, a correlação de forças intra-institucionais, os compromissos cristali-zados com parceiros e comunidades e o peso da forma mais segura de obtenção derecursos financeiros (sponsorship) e sua dificuldade em consolidar �novos produtos� �entre outros fatores � levam a que se reproduza a prestação e a promoção de serviçoscomo um fim. E que o empoderamento, perigosamente, fique reduzido a um papel delegitimação dessa �prática assistencialista�.

� EMPODERAMENTO: RECUPERANDO A QUESTÃO DO PODER NO COMBATE À POBREZA �

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1.2. Um empoderamento sem poder?

Em várias das propostas que proliferaram com a generalização do uso do termo, modificou-sesubstancialmente a abordagem. Nelas tem sido colocada em segundo plano a questão essencialda noção e da abordagem de empoderamento. Isto é, a questão do poder. Mais precisamente, amudança nas relações de poder existentes tem sido deslocada de seu papel central, virando umaquestão implícita ou diluída entre os elementos que comporiam o empoderamento.

Voltando ao relatório já mencionado do Banco Mundial, no balanço apresentado sobrea prática de empoderamento promovida pela instituição, vemos que a questão de mu-danças nas relações de poder fica diluída na forma como são definidos os quatro ele-mentos que comporiam a abordagem: acesso à informação, inclusão e participação,prestação de contas e capacidade organizacional local. Essa diluição também se mani-festa na forma de definir as áreas onde os princípios do empoderamento se aplicam:acesso a serviços básicos, promoção da governança local, promoção da governançanacional, desenvolvimento de mercados em favor dos pobres, acesso à justiça e ajudalegal. Tanto nos elementos como nas áreas não se dá destaque ao poder, às relações depoder existentes e às que se pretende mudar. O �corpo� do empowerment do BancoMundial tem ficado sem o seu coração...

1.3. Um empoderamento neutro e sem conflitos?

Na generalização do uso da abordagem de empoderamento, e em particular no promovidoatravés de governos e de agências multilaterais, tem-se procurado despolitizar o processo demudança impulsionado através dele. Nesse sentido, a questão tática de iniciar o processo a partirde um foco relativamente neutral inunda toda a estratégia. Essa suposta neutralidade, na prática,funciona como um limite ao processo de empoderamento. E a continuar se mantendo, vem afuncionar como um elemento importante no controle do processo de mudança pelo status quo.

Fazendo parte dessa visão de neutralidade apresenta-se uma aversão aos conflitos. Procura-setecnicizar os conflitos, tirando deles suas dimensões ideológicas e políticas, de forma a domesticá-los.Os conflitos perturbam o resultado esperado. A mudança procurada seria o fruto do progressodas relações sociais, do desenvolvimento das instituições e da superação das falhas do mercado.O empoderamento, nessa visão, seria um acelerador ponderado desse progresso. Uma técnica deadministração e neutralização de conflitos. Busca-se reduzir os efeitos do empoderamento, nomelhor dos casos, aos de uma progressão aritmética e não potencializar suas possibilidadesenquanto desencadeador de progressões geométricas. Com essa pasteurização do empodera-mento, tem-se procurado eliminar seu caráter de fermento social.

Não é de qualquer poder que estamos falando quando enfrentamos a pobreza. Estamosfalando de situações caracterizadas por relações de dominação; situações onde existem � ainda quepor vezes seja difícil delimitar claramente � atores que têm algum tipo de beneficio por ocuparposições dominantes. Estamos falando de relações de dominação que envolvem � voluntária ouinvoluntariamente � opressores e oprimidos. A abordagem de empoderamento não pode serneutral nem ter aversão aos conflitos e a seus desdobramentos. O desdobramento dos conflitossignifica que o processo de mudança, uma vez deslanchado, permeia e se infiltra em outrasdimensões vividas pelas pessoas e grupos sociais. Empoderamento implica contágio, não assepsia.É fermento social: está mais para inovação criativa que para evolução controlada.

� EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA �

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Através do empoderamento se busca conscientemente quebrar, eliminar as relações dedominação que sustentam a pobreza e a tirania, ambas fontes de privação das liberdades subs-tantivas. Com o empoderamento se procura combater a ordem naturalizada ou institucionalizadadessa dominação (seja ela pessoal, grupal, nacional, internacional; seja ela econômica, política,cultural ou social) para construir relações e ordens mais justas e eqüitativas. O empoderamentoimplica em tomar partido (ou relembrando a antiga palavra de ordem: �compromisso�) pelospobres e oprimidos e em estar preparado para lidar quase todo o tempo com conflitos.

1.4. O empoderamento como dádiva

Nas práticas de empoderamento das pessoas através de programas e projetos promovidaspelos governos, bancos e agências de desenvolvimento multilaterais e bilaterais é recorrente queesse conceito assuma caráter de uma dádiva, de algo que pode ser outorgado. Nesses casos ofoco passa a ser a maior facilidade de acesso a recursos externos, bens ou serviços, secundarizandoou deixando de lado os processos de organização do grupo e de construção de auto-estima econfiança das pessoas. Ainda que a participação seja propalada, seu conteúdo fica estreito, redu-zido a algumas consultas rápidas no inicio dos programas (Sen, G: 1997).

O empoderamento não é algo que pode ser feito a alguém por uma outra pessoa. Os agentesde mudança externos podem ser necessários como catalisadores iniciais, mas o impulso doprocesso se explica pela extensão e a rapidez com que as pessoas e suas organizações se mudama si mesmas. Nem o governo, nem as agências (e nem as ONGs) empoderam as pessoas e asorganizações; as pessoas e as organizações se empoderam a si mesmas. O que as políticas e asações governamentais podem fazer é criar um ambiente favorável ou, opostamente, colocarbarreiras ao processo de empoderamento (Sen, G: 1997).

1.5. O empoderamento como uma técnica que se aprende emcursos (ou a pedagogização e a tecnicização do empoderamento)

A generalização do uso do conceito e da abordagem veio acompanhada com uma reduçãoda prática social e política do empoderamento a questões técnicas e instrumentais. Isto é, oempoderamento passou a ser considerado principalmente como uma técnica que compreendemetodologias específicas e menos como um complexo processo social e político.

Esta redução � ou tecnicização do empoderamento � veio a solucionar o problema de suadifusão. Na grande maioria dos projetos e programas propiciados pelos bancos e agências dedesenvolvimento multilaterais e bilaterais, governos e ONGs, a componente capacitação é umadas principais. Proliferaram cursos de capacitação ministrados por consultores � agora � enquantoespecialistas em �metodologias participativas de empoderamento�. O empoderamento passou aser ensinado em salas de aula, em detrimento da troca de experiências e da construção de respostasconjuntas em face de situações de dominação específicas. Isto é, se supervalorizaram os efeitospolíticos da ação pedagógica em detrimento dos efeitos pedagógicos da ação política.

� EMPODERAMENTO: RECUPERANDO A QUESTÃO DO PODER NO COMBATE À POBREZA �

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1.6. A superpolitização e a atomização do empoderamento

Finalmente, gostaríamos de levantar dois riscos � opostos � que se apresentam na generali-zação e uso da abordagem do empoderamento. Os riscos da superpolitização e da atomização.

Por um lado, as teorias mais antigas de empoderamento têm ignorado, e até negado, oelemento individual desse processo, acreditando que o foco na autonomia individual implicariana atomização e na negação dos interesses e interações de grupo (Sen, G.: 1997). Ante esseperigo, se recomendava que a ênfase no trabalho fosse colocada nos grupos e suas organizações.

Esta visão do empoderamento como um processo que diz respeito, basicamente, às relaçõesde poder entre grupos sociais e organizações veio ao encontro da orfandade paradigmática epolítica criada no final do século com a crise do marxismo e o fracasso do socialismo real e dasrevoluções nacionais-populares. Para um grande número de intelectuais, de agentes de desenvol-vimento e de organizações �populares� � ou de esquerda �, o discurso e a prática do empodera-mento passou a ser uma nova esperança na construção da revolução socialista ou antiimperialista.Esta legítima expectativa de mudança, porém, introduziu no trabalho de combate à pobrezaatravés do empoderamento o risco de sua superpolitização. Este risco implica na redução doempoderamento a um tipo de ação coletiva. Isto é, quando só dizem respeito ao trabalho deempoderamento as práticas e discursos políticos contestatórios, que tenham nas organizações oumovimentos seus atores quase exclusivos.

Num pólo oposto, as propostas de empoderamento vêm sofrendo a influência das tentativasde despolitização, fragmentação e atomização das situações de dominação, propiciadas peloavanço do neoliberalismo, das teorias que vaticinam o fim das ideologias e da supervalorizaçãoda individualidade. Para enfrentar a dominação assim caracterizada, a lógica da ação coletiva quese promove é aquela cuja racionalidade fica reduzida ao principio do interesse egoísta individual,excluindo outros princípios fundamentais, como os de solidariedade e de valores compartilhados.A identidade da pessoa � como um produto histórico, social e cultural � é secundarizada emfunção do interesse atomizado do indivíduo, enquanto produto do mercado.

Em sua grande maioria, o empoderamento promovido pelos bancos e agências de desen-volvimento multilaterais e bilaterais e pelos governos tem-se sustentado numa expectativa deação racional dos atores centrada no interesse individual. Esses interesses e preferências sãovistos como propriedades dos indivíduos, não importando que sejam produto da interaçãogrupal, da prática social e cultural. Invertem-se assim a expectativa e o caminho da mudança.Passa-se a se investir prioritariamente na mudança dos indivíduos, ou no máximo, das instituições.A mudança nos grupos e nas organizações seria, em última instância, um subproduto da agre-gação dessas mudanças atomizadas individuais. Dá-se um descompasso entre a ênfase colocadano empoderamento individual e institucional, em relação ao descaso no empoderamento grupale das organizações.

Para concluir, cabe reafirmar que o questionamento da superpolitização não implica emnegar que o empoderamento através dos processos grupais pode vir a ser altamente efetivo tantona mudança de estruturas que sustentam as situações de dominação como nas mudanças emnível individual, em termos de maior controle sobre recursos externos ou de maior autonomia eautoridade na tomada de decisões. Por sua vez, o questionamento da atomização não implica emdesconhecer que a mudança na consciência de dominação, ainda que catalisada em processosgrupais, é profunda e intensamente pessoal e individual. Nem também em negar a importânciada autonomia individual através de lutar para fazer do pessoal algo político, como, por exemplo,o vem promovendo e construindo o movimento de mulheres (Sen, G. 1997).

� EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA �

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2. Enfrentando aquestão do poder

A promoção de um novo modelo de desenvolvimento que permita a expansão das liberdadessubstantivas e instrumentais das pessoas (Sen, A. 2001) e que tenha no empoderamento umcaminho principal para a superação da pobreza e da tirania � enquanto seus principais obstá-culos � necessita enfrentar a questão do poder.

2.1. E o que é o poder?

Entre os múltiplos debates sobre a questão do poder, tendo em vista nosso interesse emdelimitar o conceito e a abordagem de empoderamento, e procurando não entrar demais nateoria, nos deteremos rapidamente em só duas grandes concepções sobre o poder.

A primeira, inscrita na vertente do pluralismo norte-americano da ciência política, vê o podercomo capacidade de controle sobre algo ou alguém: �quando uma pessoa ou grupo é capaz decontrolar de alguma forma as ações ou possibilidades de outros�. A idéia força é �poder sobre�.O �poder sobre� se apresenta como uma substância, finita, transferível, tomável: se alguémganha poder, outros o perdem (isto é, um jogo de soma zero). Ele pode ser delegado (por exemplo,em representantes), ou tirado (por exemplo: das bases). Havendo uma reversão na relação depoder, as pessoas que atualmente têm o poder não apenas o perderão senão que o verão sendousado contra elas (Iorio, 2002).

A segunda concepção, que tem origem na visão de Foucault, não considera o poder comouma substância finita e que pode ser alocada a pessoas e grupos. O poder é relacional; consti-tuído numa rede de relações sociais entre pessoas que têm algum grau de liberdade; e somenteexiste quando se usa. O poder está presente em todas as relações. Sem poder as relações nãoexistiriam. Nesta concepção a resistência é uma forma de poder: onde há poder há resistência(Iorio, 2002).

A partir da visão foucaultiana, se amplia a noção de poder. O poder não é só �poder sobre�recursos (físicos, humanos, financeiros) e idéias, crenças, valores e atitudes. É possível, e necessário,diferenciar outros tipos de exercício do poder. Por exemplo, o �poder para� fazer uma coisa (umpoder generativo que cria possibilidades e ações); o �poder com� (que envolve um sentido de queo todo é maior que as partes, especialmente quando um grupo enfrenta os problemas de maneiraconjunta, por exemplo, homens e mulheres questionando as relações de gênero); e o �poder dedentro�, isto é, a força espiritual que reside em cada um de nós, base da auto-aceitação e doauto-respeito, e que significa o respeito e a aceitação dos outros como iguais. Estes últimos tiposde poder � poder para, poder com e poder de dentro � não são finitos, podem crescer com o seuexercício (Iorio, 2002). Um grupo exercendo estes poderes não necessariamente reduz o poderdos outros, porém, de toda forma esse desenvolvimento implica mudanças nas relações.

Em síntese, nas diversas sociedades, em todas as relações sociais é possível identificar oexercício de poder, seja qual for o tipo (poder sobre, poder para, poder com, poder de dentro...).Nas situações de pobreza confluem todos esses tipos de poder, mas de modo diferente segundoas especificidades dos contextos. Isto coloca o desafio de ter que identificar as relações de poder e ostipos de exercício de poder principais e secundários que caracterizam cada situação de pobreza.

� EMPODERAMENTO: RECUPERANDO A QUESTÃO DO PODER NO COMBATE À POBREZA �

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2.2. A necessidade da análise das relações de poderno combate à pobreza

O enfrentamento da pobreza através de uma abordagem de empoderamento requer, conse-qüentemente, uma clara compreensão das relações de poder e dos tipos de exercício de poderprincipais e secundários que as conformam.

A análise das relações de poder e das situações de dominação resultantes tem que estarconstantemente em foco no trabalho de empoderamento, seja qual for o nível (pessoal ou grupal),o território (local, regional, nacional, global), a dimensão (social, política, econômica, cultural,ambiental) ou os objetivos (estratégicos ou organizacionais) que se privilegiem.

No caso do trabalho em parceria entre ONGs e com organizações de base, a análise dasrelações de poder deve estar presente não só no diagnóstico inicial, mas também na construçãoconjunta da estratégia de ação; no planejamento participativo das ações; no acompanhamentocotidiano das atividades; nos exercícios de revisão e reflexão; e na avaliação final de resultados.Como também na própria avaliação organizacional de nossa entidade.

A análise das relações de poder e das situações de dominação resultantes implica em discutire refletir, junto com os parceiros e as populações pobres, sobre questões que permitam dar contade aspectos como:

� Qual é o espaço social considerado no qual se manifestam as relações de poder?

Por exemplo:� da família, da comunidade, da região etc.� do mercado, do Estado, da sociedade civil.

� Que tipo de exercício de poder principal e secundário se manifesta nasdiferentes relações?

Por exemplo:� poder sobre, poder para, poder com, poder de dentro

� Que forma de poder é predominante nessas relações?

Por exemplo:� poder econômico, político, social, cultural, psicológico.

� Que está em jogo nessas relações de poder?

Por exemplo:� o acesso a recursos (ambientais; econômicos; político-institucionais; culturais; humanos);� a transformação desses recursos em ativos; ou dito de outra forma, a produção, circulação,

acumulação e uso de capitais específicos (ambiental, econômico, político, cultural, social);� questões de hierarquia e/ou prestígio.

� Que campo específico essas relações de poder delimitam?

Por exemplo:� campo das relações familiares de gênero;� campo da luta pela terra;� campo do desenvolvimento local;

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� campo das políticas nacionais de combate à pobreza;� campo dos acordos nacionais de paz;� campo dos acordos internacionais de comércio agrícola.

� Quais são os atores principais envolvidos nessas relações?

No caso do campo do desenvolvimento local, por exemplo:� governo municipal; agências específicas do governo estadual ou federal presentes no

âmbito local; elites (fundiárias, financeiras, comerciais, industriais) locais e suas entidadesde representação; moradores urbanos e suas associações; agricultores familiares e suasassociações; ONGs.

� Quem tem o poder? Ou em termos analíticos mais precisos: quem ocupa a posiçãode dominação e quais são os seus aliados no campo em consideração?

No caso do campo do desenvolvimento local, por exemplo:� o governo municipal e as elites locais e suas entidades de representação;� tendo como aliadas as agências do governo estadual ou federal presentes no âmbito local.

� Quem ocupa a posição de dominado e quem podem ser seus aliados?

No caso do campo do desenvolvimento local, por exemplo:� moradores urbanos e suas associações; agricultores familiares e suas associações;� tendo como aliadas as ONGs.

� Que compreensão têm os atores principais sobre a situação analisada?

Isto é:� quem fala o que e de qual posição?� identificar e caracterizar os principais elementos do discurso dominante e suas variantes;� identificar até onde os principais elementos do discurso dominante estão presentes nas

versões dos atores dominados (predomínio do �senso comum� ideológico);� identificar e caracterizar os principais elementos das versões críticas (presença do �bom

senso� ou até de discursos contra-hegemônicos).

� Como se exerce a dominação?

Isto é, através:� da coerção (poder físico);� de leis, regimentos ou contratos (poder institucional);� e/ou dos costumes e da ideologia (poder simbólico).

� Como se reproduz a situação de dominação?

Por exemplo, no campo de luta pela terra, entre outros mecanismos, através:� do não reconhecimento da posse tradicional das comunidades camponesas como um

direito de acesso à terra legítimo e legal;� da corrupção (grilagem) na titulação de terras pelos latifundiários;� do controle dos preços do mercado de terras;

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� da implementação pelos latifundiários, em aliança com as elites comerciais locais, de me-canismos laborais e mercantis de apropriação de renda que limitem a possibilidade deacumulação por parte dos agricultores sem terra ou com pouca terra;

� da formação de milícias privadas e/ou da fácil disponibilidade de uso da força pública paraevitar ocupações de terra;

� da matança seletiva de lideranças de sem-terra e/ou de seus aliados.

� Quais são as formas de resistência?

Isto é:� as estratégias são individuais ou existem estratégias grupais?;� resistência passiva, mobilização e conflito aberto.

� Como está sendo e como pode vir a ser mudada a situação de dominação?

Isto é:� que condições e oportunidades são necessárias para que essa mudança se efetive ou inten-

sifique? Em particular, que alianças ou redes podem ser construídas?;� quais capacidades das pessoas e das organizações necessitam ser desenvolvidas?

� Como podemos monitorar e avaliar as permanências e as mudanças nasrelações de poder?

Por exemplo, através de:� construir exercícios de revisão e reflexão;� estabelecer conjuntamente procedimentos e indicadores.

A lista de questões que se acaba de discriminar não pretende ser exaustiva. Ao mesmotempo, cabe ressaltar que não estamos sugerindo que todas elas tenham que ser respondidas notrabalho das ONGs. As ONGs não são instituições de pesquisa. O objetivo da apresentação destalistagem é o de exemplificar o tipo de aspectos e questões que podem ser formuladas sobre asrelações de poder. A escolha das questões e a linguagem a ser utilizada em sua formulaçãodependerão de cada caso.

3. O que entendemospor empoderamento

3.1. O empoderamento como abordagem e como processo

Segundo nossa perspectiva, o empoderamento é:

� uma abordagem que coloca as pessoas e o poder no centro dos processos de desenvol-vimento;

� um processo pelo qual as pessoas, as organizações, as comunidades assumem o controle deseus próprios assuntos, de sua própria vida e tomam consciência da sua habilidade ecompetência para produzir, criar e gerir.

� EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA �

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No combate à pobreza, a abordagem de empoderamento implica no desenvolvimento dascapacidades (capabilities) das pessoas pobres e excluídas e de suas organizações para transformar asrelações de poder que limitam o acesso e as relações em geral com o Estado, o mercado e asociedade civil.3 Assim, através do empoderamento visa-se a que essas pessoas pobres e excluídasvenham a superar as principais fontes de privação das liberdades, possam construir e escolhernovas opções, possam implementar suas escolhas e se beneficiar delas.

As capacidades (capabilities) são poderes para fazer ou deixar de fazer coisas. Assim, oconceito de capacidades não significa só as habilidades (abilities) das pessoas, mas também asoportunidades reais4 que essas pessoas têm de fazer o que querem fazer (Sen A, 1992).

O empoderamento, enquanto desenvolvimento das capacidades das pessoas pobres e excluídase suas organizações, é um processo relacional e conflituoso.

� Relacional, no sentido de que sempre envolve vínculos com outros atores. Não dá paraanalisar e trabalhar no processo de empoderamento em termos atomizados individuais.Sempre temos que pensar no tecido de relações de poder nas quais o indivíduo, ou melhor,a pessoa está inserida.

� Conflituoso, no sentido de que o empoderamento diz respeito a situações de dominação �explícitas ou implícitas � e à busca de mudanças nas relações de poder existentes. O empodera-mento leva a mudanças tanto da posição individual como grupal nas relações de poder/dominação. Essas mudanças não ocorrem, em geral, sem conflitos de alguma ordem. Assim, notrabalho de empoderamento, estamos lidando com a resolução � negociada ou não � deconflitos. A participação nesse processo não pode ser neutra. Ela implica assumir uma posiçãode aliado dos pobres e excluídos e, como tal, fazer parte dos conflitos que levam à modificaçãodas relações de poder que mantêm a situação de dominação existente.

3.2. As características da abordagem do empoderamento

Além do seu caráter processual, a abordagem do empoderamento apresenta um conjuntonão hierárquico e inter-relacionado de características (Shetty, s/d):

� Holístico: o empoderamento implica numa abordagem geral e não num conjunto de inputs;não pode ser limitado às noções de atividades ou setores que se desenvolvem nas diferentesetapas de um projeto; é o resultado da sinergia entre o conjunto de atividades e ações.

� Especificidade contextual: o empoderamento só pode ser definido em função de contextoslocais específicos em termos sociais, culturais, econômicos, políticos e históricos.

� Focalizado: o empoderamento diz respeito aos grupos excluídos e vulneráveis urbanos e rurais.

� Estratégico: o empoderamento se refere a aspectos estratégicos que procuram atacar ascausas estruturais e práticas da despossessão de poder (powerlessness).

3 Agradeço a Nelson G. Delgado seus comentários sobre esta definição que levaram a reforçar nela a ênfase na transformaçãodas relações com o Estado, o mercado e a sociedade civil.

4 As oportunidades se referem às limitações e possibilidades apresentadas pelas condições externas, entre as quais se destacamas relações de poder e as situações de dominação nas quais as pessoas, os grupos e as organizações estão inseridos.

� EMPODERAMENTO: RECUPERANDO A QUESTÃO DO PODER NO COMBATE À POBREZA �

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� Democratização: no empoderamento o aspecto chave é a democratização e a participação(como meio e como fim).

� Construto ideológico: o empoderamento depende da percepção que os indivíduos e osgrupos tenham de si mesmos e de sua situação.

� Sustentabilidade: o empoderamento diz respeito à auto-realização e à sustentabilidadedas práticas.

3. O empoderamento como estratégia de combate à pobreza

Nos discursos do mainstream, diluído em digressões sobre o progresso em termos econô-micos, técnicos ou informacionais, cada vez mais se oculta a discussão das relações entre de-senvolvimento e poder. Esse ocultamento não é sem conseqüências, já que dificulta identificartanto a própria concepção de desenvolvimento como os entraves para a construção de umprojeto alternativo.

Desde a nossa perspectiva, seguindo A. Sen, um projeto alternativo implica na promoção deum modelo de desenvolvimento que permita a expansão das liberdades substantivas e instru-mentais das pessoas.5 Ou seja, um projeto em aberto, orientado para as pessoas enquanto agentese que respeita a diversidade humana e a liberdade de escolha. Nesse projeto a pobreza e a tiraniasão os principais entraves a serem enfrentados.

Da mesma forma que se ocultam as relações entre poder e desenvolvimento, também sediluem as relações entre poder e pobreza. A pobreza constituída é perpetuada por relações depoder. A pobreza é um estado de desempoderamento.

Ver a pobreza como um estado de desempoderamento tem como ponto de partida o pressu-posto de que os indivíduos e os grupos pobres não têm poder suficiente para melhorar suascondições nem a sua posição nas relações de poder e dominação nas quais estão inseridos. Isto éparticularmente destacável no caso dos grupos mais desempoderados e vulneráveis, isto é, dasmulheres, dos idosos e das crianças.

O empoderamento é um meio e um fim para a transformação das relações de poder existentese para superar o estado de pobreza. É um meio de construção de um futuro possível, palpável,capaz de recuperar as esperanças da população e de mobilizar suas energias para a luta pordireitos no plano local, nacional e internacional. Mas o empoderamento também é um fim,porque o poder está na essência da definição e da superação da pobreza. O empoderamentonecessita constantemente ser renovado para garantir que a correlação de forças não volte areproduzir as relações de dominação que caracterizam a pobreza.

Assim, as estratégias de combate à pobreza inscrevem-se num processo essencialmentepolítico, que precisa de atores capazes de alterar correlações de força em níveis macro, meso emicro articulados em torno de temas e lutas comuns. Neste marco, o empoderamento é essencial.

Atores com poder diferente são necessários como catalisadores no processo de empodera-mento. Ao mesmo tempo, as características desses processos, suas potencialidades e limites, são

5 As liberdades estão inter-relacionadas e podem se fortalecer umas às outras. As liberdades políticas ajudam a promover asegurança econômica. As oportunidades sociais facilitam a participação econômica. As facilidades econômicas podem ajudar agerar a abundância individual além de recursos públicos para serviços sociais (Sen, 2001).

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diversas em função do tipo de mediadores � por exemplo: movimentos sociais, ONGs, governos,agências multilaterais � que atuam como catalisadores.

No combate à pobreza, o empoderamento dos pobres e de suas organizações se orientapara a conquista da cidadania, isto é, a conquista da plena capacidade de um ator � individual oucoletivo � de usar seus recursos econômicos, sociais, políticos e culturais para atuar com respon-sabilidade no espaço público na defesa de seus direitos, influenciando as ações dos governos nadistribuição dos serviços e recursos.

Os processos de transformação do Estado e de mudança social orientados para a superaçãoda pobreza assentam na construção de redes e de amplas alianças dos movimentos sociais e dasorganizações populares no campo da sociedade civil. As ONGs vêm tendo um papel fundamentalna construção e no suporte dessas redes e alianças.

Finalmente, a adoção do empoderamento como estratégia central no combate à pobrezanão é gratuita para uma ONG. Além de qualificar e enriquecer a compreensão de sua missão evalores, a adoção do empoderamento tem conseqüências significativas no campo de sua políticainstitucional. Por exemplo, a importância do papel das ONGs na construção e suporte de redes ealianças no combate à pobreza, o fato de que o empoderamento não é um processo neutro e oreconhecimento do intenso debate ideológico no qual esta abordagem hoje está inseridaobrigam-nos a posicionarmos claramente nossa estratégia de combatermos juntos a pobreza.Onde ela se situa e constrói alianças: em Davos ou em Porto Alegre?

BIBLIOGRAFIA

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ACTIONAID-LAC. Regional Strategy 2001-2003. Guatemala, 2000.

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SHETTY, S. (s/d): Development projects in assessing empowerment, OccasionalPaper Series Nº 3, New Delhi, Society for Participatory Researchin Asia, (s/d).

World Bank. Empowerment and poverty reduction: a soucerbook.Washington, PREM, 2001.

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Algumas consideraçõessobre estratégias deempoderamento e dedireitos

Cecília Iorio1

As desigualdades se verificam não apenas entre países, mas também dentrodos países entre grupos étnicos, entre regiões, entre gêneros.

Em um cenário onde se ampliam e agudizam as situações de pobreza, uma variedade deatores do campo do desenvolvimento passaram a realizar revisões estratégicas de seus trabalhos.A busca de novos paradigmas e conceitos que conduzam a um melhor entendimento das comple-xas questões que envolvem a pobreza e a sua superação, a busca de maior eficácia e eficiência nocombate à pobreza são alguns elementos que em graus e combinações variadas orientam asdiscussões realizadas pelos distintos atores do campo do desenvolvimento.

Este documento explora as dinâmicas de duas abordagens de combate à pobreza: a perspec-tiva de empoderamento e a perspectiva baseada nos direitos. Buscamos resgatar a conceitualização,contextualizar o debate e apontar fortalezas e fragilidades de ambas as perspectivas. Este �Estadoda Arte� visa a contribuir com a ActionAid Brasil e LAC em seu processo de discussão de interna ede elaboração de positional paper.

1. Histórico sobre o conceitode empoderamento

Identificar a origem do conceito de empoderamento é uma tarefa que resulta inconclusiva. A origemdo conceito é disputada tanto pelos movimentos feministas, como pelo movimento AmericanBlacks, que nos anos 1960, movimentou o cenário político norte-americano exigindo o fim dopreconceito e da discriminação que marcavam a vida dos negros nos EUA.

Contudo, é na interseção com gênero que o conceito de empoderamento se desenvolvetanto em nível teórico como instrumento de intervenção na realidade. Nos anos 1970 e 1980,feministas e grupos de mulheres espalhadas pelo mundo desenvolveram um árduo trabalho deconceitualização e de implementação de estratégias de empoderamento, com o qual buscaramromper com as diferentes dinâmicas que condicionavam a existência e impediam a participação ea cidadania plena das mulheres.

Nos anos 1990 observa-se a expansão do uso deste conceito para outras áreas do debatesobre desenvolvimento, especialmente a partir das grandes conferências oficiais e paralelasmundiais, notadamente Cairo e Beijing.

1 Socióloga � Brasil.

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O reconhecimento da necessidade de se empoderar as pessoas e grupos que vivem na pobrezapassa a ser percebido, com maior ou menor ênfase, como uma condição para o sucesso depolíticas, programas, ou mesmo projetos, por um amplo leque de organizações, representantesde diferentes perspectivas políticas, de diferentes tamanhos, capacidade de influência e natureza.

A ampliação do uso do conceito e de estratégias de empoderamento coloca o desafio deembasar este conceito de forma que o seu uso não seja apenas uma moda no campo do desen-volvimento, mas sim produza mudanças nas práticas e políticas destes atores.

O empoderamento dentro do movimento feminista.2 

A abordagem instrumental � empoderamento como um resultado

As primeiras conceitualizações sobre poder e empoderamento dentro do campo do desenvolvi-mento surgem nos anos 1970 principalmente dentro do movimento feminista, vinculado ao grupoconhecido como WID � Women In Development (Mulheres no Desenvolvimento). A conceitualizaçãopor elas usada reconhece sua origem nas ciências sociais, mais especificamente na ciência política� onde a idéia força é a de �poder sobre�. Nesta conceitualização, uma pessoa ou um grupo depessoas é capaz de controlar de alguma forma as ações ou as possibilidades de outros (Dahl;Polsby). Esse controle sobre pode ser �evidente� através de, por exemplo, o uso da força física,mas também pode ser �oculto�, quando internalizado através de processos psicológicos. Ele podeser muito sutil, levando a situações de �opressão internalizada� onde o uso de poder �evidente�não é mais necessário (ex.: o �bom� escravo).

A partir desta perspectiva de poder a estratégia de empoderamento que prevalecia no WIDera de que, para romperem a situação de dominação, as mulheres deveriam ser �empoderadas�de forma a conquistar espaço nas estruturas econômicas e políticas da sociedade e, dessaforma, vir a participar do processo de desenvolvimento. As mulheres deveriam conquistar eocupar posições de poder.

O poder sobre se apresenta como uma substância, transferível, �tomável� e finita, ou seja, sealguém ganha poder outros perdem. O poder sobre pode também ser delegado de uma pessoa aoutra. A questão é que se ele pode ser delegado, ele também pode ser tirado.

A perspectiva de empoderamento ancorada neste conceito de poder sobre representou intrin-secamente uma ameaça para os homens (e o temor dos homens foi um obstáculo para o empo-deramento das mulheres). Nesta conceitualização de soma zero é fácil entender por que a resis-tência à idéia de empoderamento das mulheres. Subjaz a esta idéia que, havendo uma reversãoda relação de poder, as pessoas que atualmente têm poder não apenas o perderão senão queverão esse poder sendo usado contra elas, ou melhor, contra eles.

As estratégias de empoderamento dentro desta perspectiva não propõem mudanças estruturaisnas relações de poder dentro de uma sociedade e nem questiona a forma como o poder é distri-buído na sociedade. Não dá atenção a uma questão importante como ética e poder.3 

2 Utilizamos para a analise desta parte um texto de Rowlands.

3 Mas é importante perguntar: o empoderamento das mulheres deve necessariamente significar que os homens percam poder?Ou a perda de poder é algo que os homens devem necessariamente temer? As mesmas perguntas podem ser feitas em relaçãoa qualquer grupo detentor de poder.

� ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE ESTRATÉGIAS DE EMPODERAMENTO E DE DIREITOS �

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A abordagem processual ou generativa

Em finais dos anos 1970 e início dos 1980, novos esforços analíticos apontam para novasconceitualizações de poder. Focalizando em processos e não nos resultados, o poder pode assumiroutras formas que, de maneira geral, podem ser descritas como poder para, poder com e poderde dentro, que levam à construção de outras perspectivas de empoderamento.

Poder para não envolve necessariamente a dominação de alguém sobre outro, mas o poderé enfocado como um processo generativo que leva à realização de capacidades em outros(Hartsock). É o tipo de liderança que decorre do desejo de ver um grupo desenvolver suas capaci-dades, e onde não há necessariamente conflito de interesses.

Foucault utiliza uma outra perspectiva de poder. Para ele o poder não é uma substância finitaque pode ser alocada a pessoas ou grupos. Para Foucault, o poder é relacional, é algo que somenteexiste quando se usa, é constituído numa rede de relações sociais entre pessoas que têm algumgrau mínimo de liberdade. Sem poder as relações não existiriam. Esta compreensão inclui a resis-tência como uma forma de poder (uma ação sobre outra ação), onde há poder há resistência.Foucault focaliza na micropolítica, no exercício do poder em pontos localizados e enraizados emredes sociais.

Esta linha do movimento feminista constrói um modelo de poder tendo como base muito domodelo de Foucault, mas incorporando a análise das relações de gênero, o que incluiu a opressãointernalizada percebida como sendo uma barreira ao exercício do poder por parte das mulheres elevando à manutenção das desigualdades com os homens.

É importante diferenciar os vários tipos de exercício de poder. O poder sobre como controleque pode ser respondido com resistência ou aceitação. O poder para como um poder generativoou produtivo que cria possibilidades e ações sem dominação. Pode-se também diferenciar o podercom, que envolve um sentido de que o todo é maior do que a soma das partes, especialmentequando um grupo enfrenta os problemas de maneira conjunta. A união faz a força. Muitas pessoasagindo juntas podem produzir mudanças mais facilmente. Há também o poder de dentro, que éa força espiritual que reside em cada um de nós e que nos faz humanos � é a base da auto-aceitação e do auto-respeito, que por sua vez significa o respeito e aceitação dos outros comoiguais. Este poder pode permitir que uma pessoa mantenha uma posição ainda que a grandemaioria possa estar contra.

Empoderamento não é somente o resultado de se alcançar o poder sobre, mas pode sertambém o desenvolvimento de poder para, poder com ou poder de dentro. Estes tipos de podernão são finitos (com princípio e fim), mas ele pode crescer com o seu exercício. Um grupoexercendo estes poderes não necessariamente reduz o poder dos outros.

Nesta perspectiva de empoderamento, a compreensão da dominação está associada às relaçõesde poder, que são múltiplas e estão profundamente enraizadas em sistemas de redes sociais.O empoderamento de pessoas ou grupos nesta perspectiva não implica necessariamente a perdade poder de outros, embora implique mudanças que podem levar a que isso possa ocorrer.

Então, temos várias possibilidades de empoderamento, processos que levam os grupos aposições de poder sobre, mas também a possibilidade de exercício de poder generativo. Como isto serelaciona com o processo histórico do empoderamento das mulheres?

�Poder com�, �poder de dentro� ou �poder para� levam a uma conceitualização de empode-ramento bastante diferente. Aqui a noção de poder privilegia a capacidade do ser humano deexpressão e ação, a capacidade de realização do ser, sua liberdade de expressão.

� EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA �

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Esta forma relacional de entender e de analisar a situação das mulheres conduziu a umavisão sobre o processo de dominação das mulheres que, ao invés de focalizar nos resultados,focaliza no processo. Aqui as possibilidades de exercício de poder focalizam as relações humanase sociais. O movimento Gênero e Desenvolvimento (GAD) começa a abordar não apenas a naturezados papéis das mulheres � como no WID � mas as interações desses papéis com os homens e,portanto, a dinâmica e estrutura das relações de gênero na sociedade. As mulheres não são donasde casa no vácuo, mas num contexto onde homens e outras mulheres esperam que ela secomporte como dona da casa. As relações de gênero passam a ser vistas como centrais aosprocessos e organizações sociais e, portanto, ao processo de desenvolvimento.

Resumindo, a perspectiva do WID vê o empoderamento como um meio que deve levar asmulheres às posições de poder, revertendo em benefícios sociais, econômicos e políticos para asmulheres. A perspectiva do GAD está mais vinculada a processos de mudança mais amplos, umavez que entende que a mudança na situação subordinada das mulheres está vinculada a contextosmais amplos e requer mudanças econômicas, políticas e culturais. É importante salientar que asperspectivas de empoderamento acima descritas, embora façam parte da importante história domovimento feminista, são hoje de interesse de um amplo leque de movimentos sociais, organizaçõesnão-governamentais e outros atores do campo do desenvolvimento.

2. Uma propostade empoderamento

Sumariamente descrevemos algumas conceitualizações � e suas conseqüências práticas � sobrepoder que têm relevância no debate sobre empoderamento não apenas dentro do campo feminista.Mas a questão que permanece ainda é: são na verdade conceitualizações mutuamente excludentes?Colocando a questão em outros termos: é o �poder sobre� recursos (físicos, humanos, finan-ceiros) ou sobre ideologias (crenças, valores e atitudes) o que empodera, ou é o �poder para� ou�de dentro�, como habilidade, capacidade de ser ou de se expressar por si mesmo que conduz aoacesso e controle de meios necessários à existência? Ou seja, é o controle e poder sobre recursosexternos ou é o processo de transformação interna que leva ao empoderamento das pessoasvivendo na pobreza?

Parece-nos que as perspectivas, antes que excludentes, se reforçam mutuamente e estãointrinsecamente vinculadas (Gita Sen). O controle sobre recursos externos pode possibilitar aexpressão (self-expression) e a ação das pessoas vivendo na pobreza, por outro lado, maior auto-estima e autoconfiança (transformação interna) podem levar a vencer as barreiras externas noacesso aos recursos. Não há garantia de que um processo leve inevitavelmente ao outro, masexistem numerosos exemplos, em diferentes partes do mundo, que apresentam resultados emambas as direções. Qualquer que seja o processo, um verdadeiro processo de empoderamentodeve envolver os dois elementos, uma vez que dificilmente um será sustentável sem o outro.

Resgatando ambas as dimensões, empoderamento das pessoas vivendo na pobreza é umprocesso de obter acesso e controle sobre si e sobre os meios necessários para a sua existência.Assim sendo, o empoderamento é raramente um processo neutro. Precisamente porque asituação de pobreza e dominação vivenciada por milhões de pessoas tem base no poder depoucos sobre recursos e sobre as possibilidades de existência social de outros. O empoderamentodeve implicar uma mudança nas relações de poder em favor das pessoas vivendo na pobreza.

� ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE ESTRATÉGIAS DE EMPODERAMENTO E DE DIREITOS �

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Essa discussão se vincula à questão já anteriormente mencionada: é o empoderamen-to um jogo de soma zero?

Não há uma resposta unívoca a esta pergunta, a resposta dependerá do contexto em que oprocesso de empoderamento aconteça, de quem faça a pergunta (ou dê a resposta) e da escala detempo referido. Analisemos, por exemplo, o empoderamento que resulta de um processo dereforma agrária. O acesso à terra por grupos sem-terra pode produzir ganhadores e perdedores,dependendo de quem ganha e de quem �perde terra�. Mas se o detentor da terra teve um preçojusto (segundo o mercado), seria possível considerar que os dois lados �ganharam�. Mas tambéma redistribuição da terra pode levar, por exemplo, a aumentos na produtividade e na oferta deprodutos agrícolas ou ainda ao aumento de divisas de um país e à melhoria da economia local.Neste nível, pode-se considerar que houve um benefício para o governo, independente do ganho(ou perda) político que um processo de reforma agrária possa significar.

A sociedade como um todo também pode vir a ser beneficiada com o aumento na produçãoagrícola e pela melhora nos níveis de segurança alimentar. Como vemos, uma perspectiva pode �ou não � ser compartilhada pelos diferentes atores do processo. Todavia, ao longo do tempo apercepção sobre essas transformações pode mudar. Se os beneficiados com acesso à terra nãoconseguem se manter no processo produtivo, a percepção pode mudar e o grupo passar a seconsiderar prejudicado pelo processo num segundo momento.

Parece-nos que a perspectiva de análise baseada em soma zero pouco contribui para entendera complexidade que envolve o processo social de empoderamento de grupos sociais.

Podemos fazer uma análise similar quando o que está em jogo é o empoderamento interno� auto-estima e capacidades. O processo de empoderamento aqui não significa inicialmenteperda para outros, embora possa, em seu final, produzir perdas para alguém. Contudo, é impor-tante perceber que a perda de poder nestes casos não é necessariamente prejudicial para quemperde. Existem inúmeros exemplos onde a mudança nas relações de gênero traz benefícios paraos homens também. Por exemplo, quando uma mulher consegue estabelecer uma relaçãobaseada no mútuo respeito e com responsabilidades compartilhadas, as melhoras atingem tantoa mulher quanto o homem. O marido perdeu o poder de impor sua vontade unilateralmente asua mulher, mas aquele poder o tornava menos humano e diminuía suas próprias capacidadescomo resultado da sua relação violenta com sua mulher. Nesta mudança houve um ganho paraambos os lados.

Empoderamento de pessoas ou de grupos?

O empoderamento é um processo de grupos ou de indivíduos? Esta é outra questão a sercontemplada nas estratégias de empoderamento.

Durante um período de tempo, muita ênfase foi dada ao grupo, ficando a importância doindivíduo secundarizada ou mesmo esquecida. Como ocorreu em outros processos políticos quebuscaram a superação de desigualdades sociais, o indivíduo foi visto como a negação dos interessese atividades de grupos sociais. Muitos exemplos existentes sobre empoderamento de grupos, emmuitos países, têm-se mostrado efetivos e têm sido fundamentais para romper isolamentos emudar a correlação de forças em favor dos excluídos. Contudo, as análises também mostram queo empoderamento deve levar a processos de mudança a nível individual, não apenas em termosde controle de recursos, mas também em termos de uma maior autonomia e autoridade sobre asdecisões que têm influência sobre a própria vida.

� EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA �

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A efetividade de estratégias de empoderamento para o combate à pobreza depende do grauem que estas duas dimensões se articulem na apreensão das causas que originam a pobreza dogrupo e do indivíduo. Assim, processo de empoderamento deve responder a estes dois níveis, oindividual e o coletivo.

É importante, contudo, salientar que qualquer processo efetivo de combate à pobreza e àexclusão social que tenha como estratégia o empoderamento deve ser capaz de enfrentar ascausas que dão origem à pobreza e à exclusão nos grupos sociais.

A face da pobreza é grupal, ela afeta mulheres, favelados, sem-terra, grupos étnicos etc.Cada grupo é excluído ou pobre por motivos diferentes, embora esses motivos muitas vezes sejustaponham. Os membros desempoderados de cada grupo tendem a estar na parte de baixo dosmercados, ou excluídos, ou inteiramente marginalizados do processo econômico e social. A pobrezade grupos sociais tem freqüentemente histórias longas, onde fatores econômicos, sociais e culturaisinteragem, perpetuando a experiência de exclusão e de pobreza.

Uma estratégia de combate à pobreza que privilegia o empoderamento pode ser capaz deenfrentar a natureza multidimensional da pobreza melhor que outras estratégias pelo fato decolocar as pessoas vivendo na pobreza no centro da questão. Ela unifica os elementos quecompõem a situação das pessoas vivendo na pobreza ao mesmo tempo em que resgata a dimensãoética do poder para um mundo sustentável em todos os sentidos.

O empoderamento é uma perspectiva que coloca as pessoas no centro do processo dedesenvolvimento. Pode parecer simples esta afirmação, mas ela muda radicalmente a perspectiva e aestrutura na qual o desenvolvimento costuma ser pensado. Apesar de ser uma questão em disputa,hoje prevalece uma compreensão que equaciona desenvolvimento como crescimento econômico� e por este caminho se construíram análises, abordagens, políticas e programas. Recolocar aspessoas e os grupos vivendo na pobreza ou excluídos no centro do processo de desenvolvimentosignifica colocar as instituições econômicas (mercados) e políticas a serviço destes grupos.

Quem pode empoderar quem?

Uma outra questão importante na elaboração de estratégias sobre empoderamento é: quemempodera quem?

A afirmação de que o empoderamento não pode ser feito em nome das pessoas que necessi-tam ser empoderadas é um pressuposto de qualquer processo de empoderamento. Isto, no entanto,não significa dizer que as pessoas vivendo na pobreza devem sozinhas enfrentar este desafio.Atores ou agentes, em geral, são necessários em processos de empoderamento, intervindo comocatalisadores destes processos. Uma tentativa de classificação pode identificar dois tipos de atores:

� Agentes externos (como ONGs, agências de desenvolvimento, governos) podem contribuir nacriação de um meio ambiente favorável ao empoderamento, ou bem agir como uma barreira.

� O empoderamento pode ocorrer dentro do grupo, através de organizações de base, comosão os movimentos sociais, onde o agente pode ser uma liderança interna ao grupo.

Uma vez que a natureza e o papel do agente catalizador têm conseqüências sobre o processode empoderamento, é interessante pensar também outra tipologia segundo o ator social prota-gonista da intervenção. Gita Sen propõe a seguinte tipologia:

a. Empoderamento por ONGsb. Empoderamento por movimentos sociais

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c. Empoderamento por ONGs e governosd. Empoderamento por multilaterais

Empoderamento por ONGs

As experiências onde as ONGs têm um papel catalisador têm sido as mais inovadoras, flexíveise onde o método de intervenção e o conteúdo são os mais adequados aos indivíduos, grupos ecomunidades. A razão deste sucesso reside, com poucas exceções, no fato de que estas expe-riências começam pequenas, permanecem pequenas e próximas do grupo.

Em geral, nesta combinação ONGs/grupos, geram-se interessantes comunidades e novosexperimentos de intervenção, seja em termos metodológicos, em termos de prestação de serviçoou de organização comunitária. Por outro lado, se identificam algumas dificuldades nestasexperiências com relação a sua replicabilidade em outros contextos e/ou sua expansão. Elas têm atendência de serem fechadas em si, por diversas razões: limitação de recursos humanos e finan-ceiros (limitação de profissionais qualificados, de lideranças do grupo), falta de capacidadesespecíficas para os trabalhos de advocacy e lobby, infra-estrutura deficiente, defasagem de infor-mações maiores e até princípios ou posicionamentos políticos.

Este tipo de experiência tem apresentado algumas fraquezas no que diz respeito a sua capa-cidade de alterar duradouramente as condições de vida dos grupos/comunidades envolvidos, deampliar sua base de intervenção ou de ser um modelo replicável em outros contextos. Análisesapontam que estas fragilidades muitas vezes resultam do fechamento em si que marcam estasexperiências, sua dificuldade de se relacionar com o governo e políticos. Em geral, dado o contex-to adverso (especialmente o contexto político) que circunda estas experiências, a ONG e/ou grupobuscam manter sua autonomia a todo custo. E nas interações necessárias para melhorar a situa-ção do grupo (com o governo, as agências de desenvolvimento e políticos), a ONG e/ou gruporesistem, pois sabem que serão desafiados a negociar.

Empoderamento por movimentos sociais

O empoderamento que ocorre dentro do grupo, através de organizações de base ou movi-mentos sociais, onde o agente é interno ao grupo, não vivencia este problema de fechamento em si.Ao contrário, a relação com agentes externos como o governo � ainda que possa ser conflitiva �é uma de suas metas, uma vez que estes são vistos como responsáveis pelo status quo e comocapazes de alterar a situação de pobreza em que vive o grupo. Quando obtêm sucesso, estesgrupos ou movimentos sociais tendem a se estender e a se ampliar.

Uma de suas fortalezas é que eles têm clareza dos pontos, das questões que realmenteimportam e interessam ao grupo. Vão direto ao centro das questões que perpetuam sua situaçãode pobreza e de falta de poder e trabalham para mudar e transformar a situação.

Uma das fraquezas que se verifica nestas experiências é que o grupo, nesta atitude decontestação, de demanda por mudanças estruturais, aumenta sua vulnerabilidade à violência deseus oponentes, dos detentores do poder e dos recursos. Violência da qual o grupo raramentetem condições de se proteger e que recai especialmente sobre suas lideranças ou sobre osmembros mais fracos e menos empoderados do próprio grupo. No Brasil são muitos os exemplos.Eles vão desde os freqüentes assassinatos de lideranças de trabalhadores que lutam pela posse daterra e pela reforma agrária até os assalariados da zona canavieira do Nordeste (que quando

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reclamam salários atrasados ou a correta medição da cana cortada sofrem ameaças e até morte),passando pelas lideranças urbanas de favelas, que acabam constantemente ameaçadas pelapolícia e por grupos de traficantes.

Empoderamento por ONGs e governos

Processos de empoderamento que combinam a ação de ONGs e governo têm mostradoresultados interessantes em muitos casos. Este tipo de empoderamento resolve o problema deescala da intervenção, de impacto e também a questão da replicabilidade. Também apresentacomo fortaleza o aumento da proteção do grupo, diminuindo a incidência de violência por partede oligarquias e seus interesses.

Mas na fortaleza deste tipo de experiência também reside sua maior fraqueza. Esta interaçãoentre ONGs, comunidades e Estado se dá sob constante pressão por uma adaptação aos métodose à agenda do governo. E o perigo de cooptação ou de sucumbir às pressões políticas e burocrá-ticas do governo está permanentemente presente tensionando as relações, podendo gerar desen-tendimento ou divisão entre ONG e grupo de base.

Empoderamento por multilaterais

O empoderamento proposto por agências multilaterais tem também pontos fortes e fracos.O reconhecimento de que o empoderamento é um elemento chave para romper o ciclo da pobrezaabre possibilidades para o desenho de políticas mais adequadas de combate à pobreza, comotambém espaços de participação na elaboração e implantação dessas políticas que podem favoreceros grupos vivendo na pobreza.

As fragilidades, no entanto, ainda são muitas para que o discurso e as intenções de mudançaexistentes em documentos de organismos como o Banco Mundial possam alterar a presenterealidade de exclusão e de aumento da pobreza.

O empoderamento ganha uma perspectiva funcional que pouco contribui para a agency daspessoas/comunidades vivendo situações de pobreza. O reconhecimento da necessidade de empo-deramento dos �pobres� ganha sentido em um contexto marcado pela busca de eficiência deprogramas e projetos (o que não é razão para desmerecer a proposta, pois eficiência em programasde combate à pobreza deveria ser a norma e não exceção). Todavia, uma perspectiva instrumentalde empoderamento dificilmente implicará o desenho de políticas e instrumentos que sejam capazesde empoderar os grupos em uma perspectiva sustentável, que considerem os constrangimentosexistentes em níveis local, nacional e global que reforçam a situação de desempoderamento dosgrupos vivendo em extrema pobreza.

Uma perspectiva instrumental de empoderamento afasta a possibilidade de alterações políticassubstantivas em favor dos pobres, ficando muitas vezes o empoderamento circunscrito aos programase projetos de combate à pobreza ou, quando muito, a alguma intervenção pontual no cenárionacional. Contudo, no âmbito político e das políticas macro (nacionais e internacionais), as regras quegeram e perpetuam os mecanismos de exclusão social continuam fora do alcance destes grupos.

A tipologia acima descrita pode ajudar a entender o papel e a contribuição potencial deagentes externos enquanto catalisadores de processos de empoderamento. Em última instância éimportante ter presente que o empoderamento é algo que não pode ser feito em nome daquelesque devem ser empoderados. Processo de empoderamento precisa ter no centro as pessoas egrupos desempoderados, suas visões, aspirações e prioridades.

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Os agentes externos podem contribuir de maneira fundamental para dar corpo a este processo,tornando acessíveis instituições e níveis de decisão política que na maioria dos casos estão inacessíveisa estes grupos, compartindo informações qualificadas, construindo alianças, apoiando a inter-venção destes grupos, facilitando a sua presença em fóruns e redes, contribuindo para a construçãoda identidade e da representação política destes grupos e construindo uma visão compartilhadasobre o desenvolvimento. Além destas possibilidades e oportunidades de ação, o agente externotem particular responsabilidade de construir uma relação e uma forma respeitosa de trabalharcom os grupos vivendo na pobreza. Abandonar o top-down approach, as soluções pensadaspelos experts conhecedores dos problemas sociais mundiais e se acercar à realidade do contextolocal conhecendo os mecanismos locais de perpetuação da pobreza e da exclusão e vinculando-oscom os mecanismos em nível macro são exigências para um efetivo trabalho de empoderamento.Algumas ONGs estão em excelente posição para liderar este processo.

3. Empoderamento como estratégiade combate à pobreza

Como já foi afirmado, as pessoas empoderam-se a si mesmas. Entretanto, governos, ONGs eoutros atores sociais podem desempenhar um papel vital tanto em bloquear estes processosquanto em criar um ambiente onde políticas, recursos financeiros e humanos, informação, conheci-mento, acesso a instituições e apoio para mudar a cultura institucional de atores importantes docampo do desenvolvimento possam impulsioná-los.

No campo das políticas

Em contexto onde existe democracia, um procedimento que contribui na criação de ambientefavorável é a mudança ou aprovação de novas leis que apóiem as iniciativas dos excluídos epobres. Estas leis podem cobrir um amplo espectro de questões, como discriminação, mudançana legislação civil sobre herança, sobre proteção de áreas comunais de acesso a recursos e sobrepopulações indígenas, ou ainda a introdução de normas que facilitem o acesso a crédito embancos públicos, por exemplo. Nenhum destes mecanismos por si só constitui uma garantia deempoderamento, mas a existência deles sem dúvida remove barreiras � o que pode contribuirpara que o grupo e as pessoas desempoderadas tenham acesso a recursos e possam desenvolversuas capacidades.

Mas as leis por si só, e freqüentemente, não são suficientes, porque em todos os países do�Sul� são pobremente implementadas. Outros passos mais ativos precisam ser dados. É importantea promoção e implementação de processos participativos na gestão das políticas. Os governos devemassegurar canais para que os grupos e pessoas vivendo na pobreza possam fazer parte de instânciasde definição, implantação e monitoramento de políticas mais gerais (como orçamento participativo,conselhos de políticas sociais, segurança alimentar, previdência, conselhos de saúde, educação) etambém dentro de programas de combate à pobreza e à exclusão (mas não somente nestesespaços). A participação é um elemento constitutivo das estratégias de empoderamento. 4

4 Analisaremos logo em seguida as limitações e dificuldades da participação.

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A descentralização de governos centrais pode pavimentar o caminho para uma maior parti-cipação de grupos sociais no nível local e, nesse sentido, atender melhor às necessidades dosexcluídos. Mas o processo de descentralização pode também ser feito sem o empoderamento dosexcluídos. Isto é particularmente verdade em lugares onde existem oligarquias ou famílias comforte controle do poder local. Nestes casos, o processo de descentralização pode desempoderarainda mais os excluídos.

É importante analisar cuidadosamente a relação existente entre empoderamento e descen-tralização. Descentralização é um meio que serve a várias finalidades. Embora possam estar rela-cionados, empoderamento e descentralização não são sinônimos. A contribuição que um processode descentralização pode fazer ao empoderamento de grupos e pessoas depende do contexto,das questões envolvidas (etnia, gênero, rel igião) na manutenção de processos dedesempoderamento e de exclusão.

No campo da informação

Uma outra política em direção a remover barreiras e a viabilizar processos de empoderamentoé promover o acesso à informação para as pessoas vivendo na pobreza. Informação é freqüente-mente um dos recursos mais guardados e controlados em programas de desenvolvimento.Como é de conhecimento geral, o controle de informação ou a falta de transparência é o meca-nismo mais usado pela corrupção. Ter controle sobre informações é um elemento fundamentalpara o empoderamento. Com informações as pessoas, os grupos, têm uma oportunidade de sairda condição de �beneficiário� para ser um agente ativo do processo.

O controle sobre o conhecimento e a informação pode levar à mudança nas relações de podere, portanto, estratégias de geração de conhecimentos e difusão de informações sobre os níveislocais, regionais e globais são fundamentais como mecanismos de empoderamento. Entretanto,conhecimento não é como uma laranja a ser colhida de uma árvore. Pelo contrário: é um elementoembebido no contexto social e ligado às diferentes posições de poder. Metodologias de participaçãoque têm como objetivo o empoderamento não devem assumir que os pobres e excluídos possuama priori conhecimentos e capacidades analíticas de interpretação e análise da informação, inde-pendente do grau de educação ou capacitação, ou do lugar que ocupam na estrutura social local.Se bem que estas capacidades são fortalecidas pelo método participativo, a promoção de capaci-dades analíticas e de planejamento é um elemento fundamental dentro deste processo.

Governos, agências multilaterais e ONGs, ao mesmo tempo em que podem disponibilizar eviabilizar o acesso livre à informação de variadas naturezas (sobre programas, gerenciamento,direitos, economia etc.) que têm impacto sobre a pobreza, tem também como tarefa fundamentalinvestir na construção de capacidades em nível local.

No campo da cultura institucional

O que tem permanecido como uma barreira para o empoderamento de grupos e pessoas é aprevalência de visões autoritárias, políticas feitas �de cima para baixo�, de pouca ou nenhumaprestação de contas, de posturas arrogantes, arbitrárias ou assistencialistas, por parte dos governos,de organizações privadas e também de alguns atores do campo do desenvolvimento. Esta talvezseja a mudança mais difícil de se realizar � mudança nas instituições e na cultura institucionaldestes atores. A cultura institucional dos grandes atores do desenvolvimento tem hoje um impactobrutal, e em geral negativo, nos processos de empoderamento dos grupos.

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Apesar de haver movimentos que integram práticas participativas e burocracias governa-mentais, a maioria dos funcionários do governo tem pouco entendimento e simpatia pelas técnicasparticipativas e ainda tendem a não acreditar na capacidade das pessoas que vivem na pobreza depensar e propor políticas de desenvolvimento. A participação dos mais pobres é freqüentementeneutralizada pelos funcionários do governo que operam em um contexto que desvaloriza as opiniõese contribuições, particularmente das mulheres, em assuntos públicos.

Tomando como foco o governo, muito ainda há para fazer. As mudanças nesta área devemser precedidas de análises cuidadosas para se identificar onde estão os gargalos e nós procedendo amudanças estratégicas ao invés de medidas confrontativas com o corpo funcional como um todo.A reorientação através de treinamento e introdução de novos protocolos para os funcionáriospodem também se mostrar efetivas. O apoio de agentes externos se mostra fundamental para queestas mudanças ocorram. Em nível local este aspecto é ainda mais crucial. As ONGs que trabalham emparceria com governos devem desenvolver atividades e estratégias direcionadas a mudar a culturainstitucional dos órgãos governamentais, visando a mudanças nas atitudes e práticas dos servidorespúblicos Um exemplo que tem tido sucesso no Brasil é a implantação do Programa de Proteção aTestemunhas, que deixa atividades de treinamento para policiais, entre outras ações, a cargo deONGs de direitos humanos. Este trabalho tem sido capaz de criar uma nova cultura dentro desetores da polícia.

No campo da construção de capacidades: participação

O tema da participação tem ganhado destacada relevância como mecanismo de empodera-mento. Quase todas as instituições de estudo, pesquisa e apoio voltadas para a cooperação aodesenvolvimento têm produzido muitas análises sobre processos participativos.5 Grande partedestas análises compõe-se de pesquisas de campo que relacionam os temas participação, cidadania,poder e políticas de combate à pobreza. A abundância de material nos levou a dedicar algumaslinhas a este tema.

A crítica à performance da cooperação oficial e de seus programas motivou o surgimento demetodologias que rejeitavam as práticas de �cima pra baixo�. Muitos esforços foram consagrados abuscar caminhos alternativos que respeitassem o conhecimento e as experiências locais das pessoasque vivem na pobreza em sua luta pela cidadania. Estas metodologias introduziram práticasparticipativas que buscavam resgatar a centralidade dos grupos e das pessoas no processo dedefinir prioridades, encontrar soluções para os problemas e serem sujeitos de programas, projetose políticas visando ao empoderamento das organizações de base e das comunidades.

As metodologias participativas desenvolvidas por estudiosos como Freire, no Brasil, e Chambers,na Inglaterra, tornaram-se a bíblia de ativistas e profissionais engajados em processos de desenvol-vimento participativo e em desenvolverem estratégias de empoderamento em nível local.

Algum tempo foi preciso até que participação se tornasse uma das palavras-chave para todos osatores do campo do desenvolvimento, inclusive instituições como o Banco Mundial, agênciasoficiais de cooperação e governos.

Hoje o processo de empoderamento é visto como estreitamente relacionado ao de participação.Experiências em diversas partes do mundo têm mostrado que processos de participação possibilitam

5 A participação aparece como um tema prioritário de pesquisa em instituições como IDS, University of Sussex , Centre forDevelopment Studies, SWANSEA, University of Wales e Intrac.

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processos de empoderamento e que estas metodologias favorecem o estabelecimento de políticase práticas de desenvolvimento que contemplam as necessidades das pessoas vivendo na pobreza.

As metodologias participativas, como o PRA e suas variantes, que emergem nos anos 1980,são ainda hoje atuais. Têm o mérito, entre outros, de mudar o lócus do conhecimento, deslocando-odas instituições (do Estado, por exemplo) para as pessoas e organizações de base do local; deencorajar o desenvolvimento das capacidades do grupo local; de analisar sua situação; e de identificarproblemas e soluções.

As metodologias participativas são desenhadas para trazer os menos privilegiados para dentrodo processo de desenvolvimento. A inclusão assistida por comunicação verbal e visual é o pilarque Chambers considera vital para o empoderamento das pessoas e que pode provocar umamudança fundamental em suas vidas. Chambers, e outros, estão conscientes de que não se tratade um processo simples. Contudo, crêem que os impedimentos e os obstáculos existentes noprocesso podem ser ultrapassados pelos participantes com a ajuda de �facilitador/as�.

A ênfase no local tem sido objeto de muitas análises que apontam que ela precisa ser comple-mentada com uma análise das estruturas de poder, dos discursos e das práticas em nível nacional eglobal. Esta vinculação entre o micro e o macro tem-se mostrado muito necessária e é um dos elemen-tos diferenciais (value added) que uma ONG internacional (ou agência de cooperação) pode aportar aprocessos de empoderamento de grupos, movimentos sociais e comunidades desempoderados.

Constrangimentos de ordem política ou econômica, como programas de ajustes estruturais,também impedem mudanças apesar da participação. Aqui o apoio no desenvolvimento de estra-tégias que façam o vínculo entre questões macro e micro é também importante. O estabelecimentode alianças e redes Norte�Sul e a formação de redes globais são estratégias que tiram o processode empoderamento da sua condição de processo localizado. Este é mais um importante espaçoonde as ONGs internacionais podem desempenhar um papel de grande relevância.

As metodologias participativas que visam ao empoderamento de grupos não devem subestimara complexidade e a tenacidade das estruturas do poder local. É preciso estar atento à multidimen-sionalidade de fatores que produzem e reproduzem a exclusão e a pobreza. Discursos muitas vezesdemocráticos e de participação podem esconder as estruturas de poder local, tornando difícil atarefa de estabelecer o empoderamento dos mais fragilizados dentro de grupos (mulheres, negros,índios etc.). A intervenção de ONGs é também importante para dar maior visibilidade a estesgrupos mais vulneráveis e aumentar sua proteção contra a violência do Estado ou de oligarquias.

Agentes externos como as ONGs internacionais podem contribuir em trabalhos de persuasãoe discussão, bem como apoiar as ações de mobilização social dos grupos locais em nível local,nacional e internacional. A formação de alianças tanto interna (com instâncias nacionais do governo,por exemplo) quanto externa (com outros grupos sociais locais ou internacionais com maiorcapacidade de influenciar o poder local) é um aspecto fundamental.

Já mencionamos também a necessidade de investir na construção de capacidades que sãoimportantes para possibilitar uma participação completa em todas as fases de desenvolvimentodas políticas, programas e projetos. O apoio à construção de representação política de gruposvivendo na pobreza é também fundamental para que a participação se dê dentro de um marcocivil e político e não se reduza à administração de problemas da pobreza.

É importante evitar que os processos participativos sejam superficiais, feitos para satisfazerexigências de doadores e se reduzindo, na prática, a processos meramente consultivos. Muitos têmsido os casos (Uganda, Nigéria e Casaquistão, por exemplo) onde a elaboração dos PRCR temresultado em consultas e não em participação.

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Este elenco de questões aqui apresentado tem sido debatido por muitos pesquisadores epractitioners que buscam tanto entender melhor estes processos quanto aperfeiçoar as metodo-logias participativas. Aprofundar a análise sobre poder parece ser um caminho. Para algunsestudiosos, no marco atual das metodologias participativas, é fácil entender por que hoje elas,as abordagens participativas, são tão amplamente aceitáveis para tão variadas, diferentes econflitantes organizações.

Essas questões sobre participação servem de alerta para processos de empoderamento.Entretanto, é preciso ter claro que são conceitos diferentes. Enquanto empoderamento pode serconsiderado um fim em si mesmo, participação é um meio para se atingir fins e esse fim pode ou nãoser o empoderamento das pessoas excluídas e vivendo na pobreza. Se as metodologias participativasnão ficarem limitadas ao nível micro e forem capazes de romper o isolamento de alguns grupossociais, poderão impulsar processos de empoderamento fundamentais para mudar relações sociais,políticas e econômicas e criar identidades positivas para as pessoas que vivem na pobreza.

Uma sociedade mais eqüitativa em termos de distribuição de poder na estrutura social écondição fundamental nas estratégias de combate à pobreza e à exclusão nas sociedades latino-americanas. Diferentemente de alguns outros países na Ásia ou na África, nos países da AméricaLatina � com poucas exceções � há recursos econômicos que podem ser redistribuídos e apropriadospor grupos sociais hoje submergidos na pobreza e na exclusão, há processos de democratizaçãoque precisam ser aprofundados e há movimentos sociais que precisam ser ampliados e fortalecidos.Neste contexto, as estratégias de empoderamento são cruciais na luta pela inclusão social eeconômica e para a cidadania na região.

4. Criticas à estratégia de empoderamento

Muitas experiências de desenvolvimento espalhadas pelo mundo têm mostrado que o empodera-mento é uma perspectiva que toma seriamente o desafio da sustentabilidade das mudanças obtidaspelos grupos, comunidades. Quando as diferentes dimensões, aumento da auto-estima, do despertarda capacidade de ação dos grupos e pessoas e o acesso aos meios de vida, se conjugam e produzemno grupo, nas pessoas, mudanças em sua situação, o desafio que se coloca é como garantir apermanência e o aprofundamento destas conquistas.

Poucas intervenções de desenvolvimento conseguem avançar no crucial elemento da susten-tabilidade. Seja porque não há uma mudança nas relações de poder, seja porque ao terminar oapoio a experiência não conseguiu consolidar as bases para seguir adiante, seja porque o gruponão rompeu com o status de beneficiários e não alcançou a dimensão de ser também um propositorde políticas,6 de programas, nem construiu alianças. Enfim: não se empoderou.

Apesar de apresentar vantagens em relação a outras abordagens, a perspectiva do empode-ramento parece complicada aos olhos de perspectivas mais pragmáticas. De modo geral, os mal-entendidos e críticas à perspectiva do empoderamento podem ser sumarizados em três aspectos:

6 Mesmo no campo da relação entre ONGs do Norte e seus parceiros do Sul, o empoderamento dos parceiros deve ter efeitos.Os parceiros devem ser empoderados de forma que possam ser capazes de propor políticas, dialogar com os níveis de tomadasde decisão sobre suas perspectivas e necessidades. Deve haver a possibilidade de construção de uma visão compartilhada sobremétodos de trabalho, sobre prioridades, sobre políticas. Não havendo esta possibilidade, corremos o risco de repetircomportamentos que estamos cansados de criticar na cooperação oficial e multilateral.

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Custos

Uma primeira crítica levantada é sobre o custo da perspectiva de empoderamento. Para algunsela é muito custosa em termos de tempo e recursos. Sen rebate esta crítica lembrando que �osprogramas tradicionais de erradicação da pobreza são conhecidos pela sua ineficiência e desper-dício de recursos precisamente porque as pessoas pobres não têm poder para exigir de burocratas,oficiais do governo ou dos políticos uma prestação de contas dos fundos e recursos gastos emnome dos pobres�. Estes desperdícios e ineficiência dos milhões de recursos aplicados nestesprogramas são fortes razões instrumentais para se adotar a perspectiva de empoderamento que,se não é barata, leva a que os milhões de recursos destinados �aos pobres�, as políticas sociais,não sejam mal-empregados ou embolsados pela corrupção.7

Metodologia

Uma segunda preocupação é sobre a metodologia. Para muitos as metodologias de empode-ramento parecem muito complicadas para programas de larga escala. Exemplos também mostramque estas metodologias obtêm sucesso em programas grandes e se mostram efetivos. A questãoda metodologia, na opinião de Sen, está mais ligada à questão de se mudar os paradigmas dosgrandes programas. Ainda se observa que a orientação nestes projetos segue a lógica top-down,da expertise do corpo técnico.

A questão não é que uma metodologia seja mais ou menos complicada que a outra. As dificul-dades estão em ambos os lados e se trata de fazer uma escolha: fazer os grupos e comunidadesentenderem a lógica dos técnicos ou fazer os técnicos entenderem a lógica das comunidades.Parece-nos que até por uma questão de escala deveria ser mais fácil fazer um grupo de técnicosentenderem as necessidades e aspirações das comunidades. A não ser que a questão em jogo nãoseja a de metodologias, mas sim de poder. Ao se decidir por valorizar o conhecimento, porconsiderar a multidimensionalidade das necessidades das pessoas vivendo na pobreza, assim comosuas capacidades, estaremos enfrentando metodologicamente os reais problemas, os reais desafios.

Mensuração

Uma terceira questão muito freqüente é: pode o empoderamento ser acuradamente mensurávelde forma que programas com esta perspectiva possam ser avaliados? Para Sen esta questão não é maisou menos complexa que a que se pode fazer a qualquer outro indicador qualitativo. Indicadoresobjetivos como subjetivos têm sido usados por programas que adotam a perspectiva de empodera-mento. Se os programas têm objetivos específicos como educação, crédito, saúde ou geração derenda, os standards padrões usuais de mensuração podem ser usados. Entretanto, estas medidaspodem ser somente aproximações com relação à mensuração de processos de empoderamento denatureza mais qualitativa. É de particular importância que métodos de avaliação sejam construídosonde as respostas e o feedback sobre as preocupações das pessoas e das comunidades sejam avaliados.

7 A perspectiva do empoderamento é importante em diferentes contextos políticos. Nos países latino-americanos, onde ademocracia foi restabelecida combinando mobilização social com processo orquestrado pelas elites, a chamada �transição porcima�, é fundamental assegurar o fortalecimento da sociedade civil para que haja governabilidade, para que a cidadania e ademocracia finquem raízes sólidas. Tomar os processos políticos existentes nestes países como completos, acabados, é um erronão só de julgamento, mas sobretudo de análise. As situações da Argentina, Venezuela e Colômbia não deixam dúvida quantoàs fragilidades existentes na região.

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5. Aproximações e distanciamentoscom a abordagem baseada em direitos

Entre as abordagens no campo do desenvolvimento percebe-se, nos últimos anos, que umnúmero cada vez maior de instituições começa a utilizar a perspectiva baseada em direitos (basedrights approach). Os direitos humanos, tais como são conhecidos hoje, são o resultado de umprocesso longo de lutas e acordos sobre princípios e padrões legais e morais. No entanto, ummomento fundamental em matéria de afirmação de direitos em nível global é a ConferenciaMundial da ONU realizada em Viena em 1993. Nela se afirmam a indivisibilidade e universalidade dosdireitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais dentro do conjunto dos direitos humanos.

É também de particular importância o Relatório de Desenvolvimento Humano das NaçõesUnidas de 2000, que explora esta abordagem apontando que a perspectiva de desenvolvimentohumano deve ter como base os direitos que são, antes de tudo, complementares. O Banco Mundialparece estar também avançando nessa linha como estratégia para suas políticas, como indicamalguns de seus documentos mais recentes (setembro de 2000). Várias ONGs européias tambémestão trabalhando dentro desta perspectiva: na Inglaterra, Oxfam GB, Cafod, Christian Aid e Savethe Children; na Alemanha, EED e PPM; na Holanda, Icco, Novib e Cordaid; e também grandesalianças como Oxfam Internacional e Save the Children Alliance (ver no anexo da p.41 a perspectivada Oxfam Internacional).

O conceito: perspectiva baseada nos direitos

A abordagem com base em direitos para o desenvolvimento é uma estrutura conceitual8 queassenta em padrões e operacionalização voltadas para a promoção e proteção dos direitos humanos.Ela integra as normas, padrões e princípios do sistema internacional de direitos humanos emplanos, políticas e processos de desenvolvimento.

As normas e standards são aqueles contidos no rico acervo de tratados e declarações inter-nacionais. Os princípios incluem: igualdade, eqüidade, prestação de contas, empoderamento eparticipação. A perspectiva baseada em direitos se assenta nos seguintes elementos:

� expressam ligação entre os direitos

� prestação de contas em sentido amplo (accountability)

� empoderamento

� participação

� não discriminação e atenção a grupos vulneráveis.

A definição de objetivos de desenvolvimento em termos de direitos específicos, como umatitulação legalmente exigível, é um elemento essencial da perspectiva baseada em direitos, assimcomo a criação de vínculos normativos e instrumentos que liguem os direitos humanos em nívelinternacional, regional e nacional.

8 Apesar de existirem variações na conceitualização da perspectiva baseada em direitos, de maneira geral todos estes atoresreconhecem o ser humano como o centro do processo de desenvolvimento. Na definição de Amartya Sen, a perspectiva dosdireitos humanos engloba três importantes aspectos: 1. a intrínseca importância dos seres humanos; 2. o seu papelconseqüência no desenvolvimento econômico; e 3. o seu papel construtivo, na gênese de valores e prioridades. Direitoshumanos têm valor intrínseco e também instrumental para o desenvolvimento. Desenvolvimento humano requer direitoshumanos no sentido de reconhecimento legal e político da liberdade das pessoas, bem como de seus direitos fundamentais.

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A conceitualização de direitos humanos considera-os um múltiplo conjunto indivisível, inter-dependente e inter-relacionado de direitos: civil, político, econômico, cultural e social. Isto implicaque a estrutura de direitos internacionalmente garantida cobre, por exemplo, saúde, educação,moradia, acesso à justiça, segurança pessoal e participação política.

Segundo o relatório das Nações Unidas é inaceitável que sejam implementadas políticas,projetos ou atividades que tenham como efeito a violação de direitos ou que os direitos sirvamcomo base de negociação para o desenvolvimento (trocar direitos trabalhistas por acesso a inves-timento de capitais transnacionais em zonas francas tem sido uma política bastante freqüente emvários países de América Central).9

A intervenção desta perspectiva busca aumentar os níveis de prestação de contas, através doexercício de identificação de quais são os direitos existentes e acordados, quem são os titularesdesses direitos (entitlements) e os correspondentes responsáveis por realizar e promover o acessoa estes direitos. A orientação adotada por muitos que estão trabalhando no campo dos direitostem sido a de identificar um amplo leque de relevantes atores que têm responsabilidade napromoção, provisão e proteção dos direitos, elencando neste rol governos, autoridades e organi-zações locais, companhias privadas e instituições e doadores internacionais.

Um dos sentidos desta abordagem é a adoção dos atuais standards de direitos humanoscomo um marco universal para se mensurar a promoção e progresso dos direitos humanos emtodas as partes do mundo, assim como para assegurar um patamar para a prestação de contas.

Pela Convenção Internacional de Direitos Civis e Políticos, os Estados nacionais são os primeirosresponsáveis por prover, assegurar e proteger direitos. A impossibilidade de realizar este conjuntode direitos por parte dos Estados nacionais implica que a comunidade internacional deve assegurarmeios para garantir estes direitos.

Pela Convenção Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, o Estado nacionaltambém é o primeiro responsável por assegurar o respeito a este conjunto de direitos. Todavia, anão realização por parte do Estado nacional de alguns dos direitos contidos nesta declaração nãopode ser contestada perante nenhuma corte, uma vez que não existe jurisdição para seu julga-mento. São direitos, mas necessariamente não contam com mecanismos de exigibilidade.

As perspectivas mais recentes adotam o empoderamento como um elemento dos direitos.Contudo, múltiplas interpretações e intenções estão em jogo neste ponto em particular. O lequede interpretações que sustentam a presença e a importância do empoderamento dentro dosdireitos humanos vai de uma recusa a trabalhar o desenvolvimento como uma questão de caridade(criando e recriando a dependência), passando por criar a figura do beneficiário de projetos eprogramas (como portador de direitos com capacidades de monitorar os projetos), até questõesligadas à eficácia/eficiência de programas nos quais a participação das pessoas pobres na concepção,implementação e avaliação de projetos/programas/políticas aparece como uma garantia para seusucesso. Uma interpretação que vem ganhando força é a que busca juntar e não dissociar osdireitos civis e políticos (o direito a ter voz, o direito a ser escutado) dos direitos econômicos,sociais, culturais e ambientais.

A importância que a participação tem ganho na agenda de atores-chave do desenvolvimentotem levado à incorporação do empoderamento ao arcabouço do desenvolvimento e das políticas.

9 Os exemplos na história recente de América Latina, onde os governos militares que aboliram direitos civis e políticos � entreoutros � com base em argumentos de ordem e crescimento econômico, parecem não combinar com esta argumentação, nemtampouco os programas de ajuste propostos pelo FMI à Argentina e outros países da região.

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Todavia, há que se ressaltar que esta permanente tentativa de acomodar todos os elementos(antes particulares às visões alternativas de desenvolvimento) produzindo uma visão de consensosobre o desenvolvimento tem dificultado a emergência de discussões sobre as relações de poderque perpetuam a pobreza. Discutir poder e desenvolvimento está cada vez mais fora de questão.

Oportunidades da perspectiva baseada em direitos

Algumas oportunidades e vantagens têm sido apontadas por aqueles que têm adotado orights based approach.

� O fortalecimento da prestação de contas (accountability) através da identificação de respon-sáveis e daqueles que têm tido seus direitos negados, negligenciados ou não protegidos.O fortalecimento da prestação de contas tem sido visto como um mecanismo de quebra depoder arbitrário e de visões assistenciais e caritativas no desenvolvimento.

� Maiores níveis de empoderamento, apropriação, liberdade e participação colocando osbeneficiários no centro do desenvolvimento.

� Maior clareza e detalhamento das normas, provisionadas pelos instrumentos e interpretaçõesinternacionais que listam e definem o conteúdo, incluindo-se os requerimentos para direitoscomo saúde, educação, moradia e governabilidade. Os standards, tratados, convenções eguias de princípios são públicos e estão acessíveis, descrevendo em detalhes os requerimentosinstitucionais de vários direitos garantidos.

� Consenso mais fácil, aumento de transparência e menos barganha política em processosnacionais de desenvolvimento. Objetivos, indicadores e planos podem ser baseados empadrões universais de direitos humanos ao invés de modelos importados, soluções prescritasou perspectivas partidárias ou políticas arbitrárias.

� Uma mais ampla e completa compreensão baseada em direitos abarcando todas as áreas dedesenvolvimento humano (segurança, moradia, justiça, participação, saúde, educação).

� Um conjunto integrado de salvaguardas contra danos não intencionais de projetos dedesenvolvimento.

� Uma análise mais completa e efetiva da pobreza, ultrapassando análises baseadas emindicadores econômicos. A perspectiva baseada em direitos revela a preocupação com ospobres, incluindo o fenômeno da ausência de poder e a exclusão social. Uma análise maiscorreta sobre a pobreza corresponde a melhores respostas e melhores resultados.

� Uma base de maior autoridade para trabalhos de advocacy no reclame de recursos e obriga-ções em níveis internacionais e nacionais. Por exemplo, nesta perspectiva se pode advogarque um Estado gaste menos em despesas militares e dirija os recursos para a promoção doacesso à saúde.

Fragilidades da perspectiva baseada em direitos

Identificadas as fortalezas da perspectiva baseada em direitos, cabe também dar atenção aalgumas dificuldades e limitações desta perspectiva. A pergunta-chave: como implantar direitos játão longamente estabelecidos? Ela mostra um ponto crucial das limitações que existem nestaperspectiva e que ainda não foram profundamente abordadas.

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Como afirma Fortman, �o mundo inteiro parece ter a boca cheia de direitos humanos, masem termos de implementação se pode dizer que ainda persiste uma crise. Apesar da retórica e daeuforia (em torno dos direitos humanos), o que vemos é um grande déficit�.

Os sinais desta fragilidade de implementação estão por todos os lados. Os exemplos dadificuldade de se punir governos que perpetram violência a direitos civis e direitos contra seushabitantes e de Estados que suprimem pela força e violência direitos de outros povos e minoriaslotam os noticiários internacionais.

Uma outra fragilidade é a própria linguagem. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, porexemplo, reflete um discurso cuja base moral e ética é forte, mas a linguagem é fraca. Por exemplo,�avançar na dignidade... dos indivíduos�, ao invés de proteger a dignidade dos indivíduos; �aidéia que outros têm responsabilidades de facilitar e fortalecer o desenvolvimento humano� e nãoque outros têm a obrigação de implementar e assegurar o desenvolvimento humano; �direito apedir a ajuda de outros� ao invés de direito a reclamar de outros a responsabilidade/obrigação degarantir os direitos.10

Um outro aspecto importante diz respeito à falta de estratégias para combater a violação dedireito nas esferas privadas, situação que afeta particularmente as mulheres em todos ospaíses e continente.

A fragilidade dos direitos humanos se estabelece quando se conectam os direitos à realidade(tanto em nível nacional como internacional). Idealmente, o direito tem poder e status paraproteger através de mecanismos de justiça, mas a realidade mostra que a força para sua imple-mentação depende igualmente de os direitos serem social e politicamente reconhecidos.

A idéia de direitos humanos assenta sobre o princípio de que toda violação deverá ser evitadae reparada por ações que recuperem os direitos. Todavia, a falha existente tanto na prevençãocomo na reparação parece ainda não ter encontrado uma solução. Esta falha está vinculada a doisfatores cruciais: primeiro se verifica, de modo geral, uma permanente inadequação da legislaçãoenquanto um mecanismo de controle do poder; e segundo, uma defasagem da percepção destesdireitos em muitos contextos culturais e políticos (e aqui não estamos tratando das diferençasculturais que os ocidentais consideram extravagantes, como a de alguns grupos na África, Ásia,América do Sul e Central). Como resultado destes dois fatores, é visível que os direitos humanoscomo estão colocados em tratados e declarações, entre outros formatos, sofrem de uma funda-mental falta de integração com a vida cotidiana e com o uso do poder em todas as sociedades.

Como Fortman nota, a idéia de que no centro estão os direitos e que violação é algo marginal éamplamente contestada pela realidade. �Freqüentemente o que vemos é diferente: no centroestão as violações e na margem, os direitos�.11

Na situação que vivemos hoje, os direitos têm sido subordinados ao poder econômico, quese manifesta na distância entre a integração destes direitos com o cotidiano de tomada de decisõespolíticas. Isso se reflete, por exemplo, na própria estrutura da ONU, que separa em três instânciasos componentes de um único sistema de direitos. Direitos humanos ficam a cargo da Ecosoc,desenvolvimento econômico fica com as poderosas agências de Bretton Woods e segurança, como Conselho de Segurança.

10 Estes exemplos são do texto Rigths-based approaches: any new thing under the sun, de Bas de Gaasy Fortman.

11 Esta constatação é reconhecida por alguns atores. Atualmente Kofi Annan vem liderando uma campanha chamadaMainstreaming Human Rights.

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Na perspectiva otimista do Relatório de Desenvolvimento Humano da ONU de 2000, umavez mais se propõe uma visão integrada de desenvolvimento humano, onde a segurança, odesenvolvimento econômico e o acesso aos direitos humanos devem estar juntos. Para que hajadignidade humana é preciso que estes elementos estejam juntos, coloca o referido relatório.Todavia outras tentativas de juntar estes três elementos já ocorreram no passado sem conseguir semanter e influenciar políticas nas três esferas.

Ao analisar este relatório, Fortman denota que são grandes as falhas e dificuldades que estãoà frente da perspectiva baseada em direitos. Considerando-se um direito econômico básico, porexemplo, o direito a um padrão decente de vida (UDHR, art. 25), como um indivíduo pode reclamaro acesso a este direito? Os pobres, sem trabalho, sem moradia, sem seguridade social, têm direitoa reclamar por estes direitos, mas como torná-los reais? Confrontamo-nos novamente com arealidade de um lado e com um direito de outro. As pessoas têm seu direito econômico, mas issonão significa que, quando privado dele, o indivíduo possa recorrer à lei e obter um resultadoconcreto que restabeleça sua dignidade humana. Como Amartya Sen coloca, �direitos naturais eimprescritíveis� acabam sendo �nonsense�.

A distinção de Dworkin entre �direitos abstratos� e �direitos concretos� mostra bem o problemaque temos diante. Nesta concepção o indivíduo teria direito a políticas apropriadas para a garantia deseus direitos e não garantia de ter comida, moradia ou emprego, que são considerados direitosabstratos. A questão que fica é: os direitos são abstratos enquanto que o direito a reclamar poreles é concreto. Assim temos que um direito não implica que automaticamente a reclamação domesmo possa ser honrada, e isso não depende apenas da força do direito em questão, comopressupõem a norma jurídica e o tipo de proteção oferecida. Isso tem relação especialmente com asexistências material e política para seu preenchimento, em última instância, as correlações de força epoder, a competição com outros atores, para que este direito possa ser reclamado e obtido.12

Retomando o ponto de fragilidade sobre a linguagem, temos muitas expressões em tratadose convenções que enfraquecem a própria exigibilidade. Isto se aplica especialmente aos direitoseconômico, social e cultural, que estão expressos em termos como �progressiva realização�, termoadotado também pela RDH 2000. O pressuposto é que a falta de recursos pode atrasar ou implicarna não realização destes direitos. E mais importante, a realização de direitos econômicos, sociaise culturais é uma matéria confrontacional, uma vez que para sua implementação as estruturas depoder existentes são desafiadas.

A dificuldade verificada no reclame de direitos econômicos, sociais e culturais por parte dosmais pobres é já uma decorrência da negação de direitos básicos, de injustiças e do uso do poderpolítico e econômico sobre estes segmentos. Assim, o que é possível constatar é que, mais quediscursos sobre o que são direitos e quais são esses direitos, o que de fato existe é uma luta pelaexistência mesma de direitos.

Para os mais pobres, lutar pelo direito é uma questão extremamente confrontacional e perigosa(são inúmeros os casos onde a reclamação de um direito termina com a morte do solicitante;retomando nossos exemplos, a realidade da Zona da Mata pernambucana mostra que ainda hojeé freqüente a violência e o assassinato de trabalhadores por exigirem um pagamento atrasado ouuma revisão nos cálculos do corte de cana, como também são freqüentes as arbitrariedades e aviolência da polícia junto à população dos morros do Rio de Janeiro ou na periferia de São Paulo,

12 Este ponto nos sugere que a perspectiva de empoderamento devia precedência à dos direitos.

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para não mencionar trabalhadores que estão reduzidos à situação de escravidão por dívida emfazendas espalhadas pelo interior do Brasil ou mesmo em cidades grandes como São Paulo, ondeimigrantes ilegais [bolivianos, coreanos] estão trabalhando em oficinas de fundo de quintal semacesso a direitos mínimos).

Um outro problema que se pode mencionar diz respeito ao déficit de instrumentos que possamassegurar a implantação dos direitos. Apesar do avanço do relatório em estabelecer indicadores edemonstrar os efeitos que têm a negação dos direitos, parece-nos que a questão maior não residenos indicadores, Aliás, os indicadores até se tornam pouco efetivos se não existem instrumentosque os conectem com mecanismos/instrumentos que possam ser empregados em ações concretaspara implementação dos direitos. Neste ponto reside um dos maiores desafios da perspectivabaseada em direitos.

Por outro lado, é o governo o primeiro responsável pela implementação de direitos. Aqui surgeoutro problema: os governos muitas vezes representam interesses econômicos contrários à imple-mentação dos direitos mais básicos.

É possível perceber hoje um aumento de importância da lei entre as pessoas. Mais pessoasrecorrem à lei tentando solucionar problemas, todavia a eficácia destas ações legais está condicionadaà existência de um ambiente favorável. Em ambientes adversos onde o Estado e a economia vivemem permanentes crises, a realização dos direitos através de ações judiciais mostra pouco efeito.O que não significa dizer que os direitos não tenham sentido nestes ambientes, mas há que seconstruir um patamar de legitimidade dos direitos, e não já pressupor sua existência. Este pontorecoloca uma séria questão para os direitos: a da legalidade e da legitimidade.

6. À guisa de conclusão

A luta contra a pobreza e a exclusão social tem passado por diferentes fases ao longo das últimasdécadas. Nos anos 1950 pensava-se que as dificuldades para o desenvolvimento, e a conseqüenteeliminação da pobreza, se encontravam na carência de infra-estrutura. Atores globais, o Banco Mundialentre outros, passaram a apoiar obras de infra-estrutura. Pouco depois se percebeu que o desen-volvimento não acontecia como resultado da mudança em condições materiais. Era necessárioinvestir nas pessoas. Saúde e educação passaram a receber quantias volumosas de recursos.

Nem toda a comunidade internacional apostou no welfare state. Muitas energias e recursosapostaram em processos de mudança mais radicais.

As décadas passaram e a distância entre ricos e pobres, excluídos ou incluídos tem aumentadoem proporções alarmantes. Ao mesmo tempo, nunca a humanidade produziu tanta riqueza e aideologia neoliberal ganhou tanta hegemonia em todo o planeta.

Talvez possamos dizer que aprendemos muitas lições das experiências tão ricas que passamosnos últimos anos no campo da cooperação. Hoje vemos as bandeiras e discursos alternativossendo incorporados por um amplo leque de atores. Estratégias de empoderamento ficaram namoda e, mais recentemente, a baseada em direitos.

Uma é mais efetiva que a outra? São ambas estratégias mutuamente excludentes?

Não parece haver uma só resposta para essas perguntas.É evidente, no entanto, que qualquer estratégia de luta por um mundo melhor dificilmente

será uma receita que possa ser aplicada em qualquer realidade, independentemente do contextoem que seja utilizada.

� ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE ESTRATÉGIAS DE EMPODERAMENTO E DE DIREITOS �

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As estratégias de combate à pobreza são um processo essencialmente político, que precisade atores capazes de alterar correlações de força em níveis macro, meso e micro articulados emtorno de temas e lutas comuns. Neste marco, estratégias de empoderamento são uma parteessencial de qualquer processo social que busque um mundo melhor para a grande maioria desteplaneta. Ela poderá ser articulada com outras várias perspectivas, mas certamente não poderáestar ausente nem cumprindo um papel subordinado.

Anexos

A abordagem da Oxfam13 

A Oxfam GB tem trabalhado por muitos anos dentro de uma abordagem baseadaem direitos como estratégia de combate à pobreza, entendendo pobreza comoum processo complexo e multidimensional.

Baseada na Conferência Mundial da ONU, realizada em Viena, em 1993, aOxfam desenvolveu uma carta global de direitos básicos, onde retoma os pontosda declaração da conferência, segundo a qual toda pessoa tem o direito a um lar,água limpa, comida suficiente, educação etc. Contudo, a Oxfam entende que nopresente momento a melhor forma de contribuir para a realização dos direitoshumanos, em face também das atividades e da experiência de outras organizações, é,dentro do continuum que são os direitos humanos, focalizar suas energias e recursosnos direitos sociais e econômicos, incluídos aqui os humanitários. Esta perspectivaenvolve também a análise e aprofundamento dos vínculos existentes entre direitossociais, econômicos e culturais com os civis e políticos.

A partir de 1998, a Oxfam focalizou seu trabalho em cinco direitos básicosvinculados a objetivos específicos de intervenção. A Oxfam Internacional, confe-deração de 11 Oxfams que inclui a Novib e a Intermon, se envolve neste processodesde 1999. De tal forma, o plano de trabalho do conjunto das Oxfams para 2001-2004 tem como base o esquema de direitos Right-based framework. A OxfamInternacional focaliza na realização de direitos econômicos e sociais. Estes cincodireitos, que estão assegurados em convênios e acordos internacionais, funda-mentam o planejamento estratégico da Oxfam Internacional e são:

a. O direito a meios de vida sustentáveis (eqüidade econômica e ambiental emeios de vida para as gerações futuras).

b. O direito a serviços sociais básicos (acesso eqüitativo à saúde e à educação).

13 Baseado no documento Oxfam GB conference paper on Social and Economic Rights, de Chris Rochee Caroline Roseveare.

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c. O direito à vida e à segurança (provisão eqüitativa de projeção, ajuda, reliefe reabilitação).

d. O direito a ser escutado (participação eqüitativa em elaboração de políticase tomadas de decisão econômicas, políticas e socais).

e. O direito à identidade (eqüidade de gênero e diversidade).

É objetivo do trabalho da Oxfam assegurar que os direitos humanos sejampromovidos e respeitados. Esse compromisso se implementa em diferentes níveis:trabalhando com indivíduos e grupos para fortalecer sua capacidade de se orga-nizar e de se manifestar; em nível de governos e instituições internacionaisatravés de lobby e advocacy para mudar políticas que negam ou infringemdireitos; em nível do público em geral para conscientizar sobre direitos e os meiospara redress, através da educação para o desenvolvimento, informação para opúblico e campanhas.

A estratégia de combate àpobreza do Banco Mundial

Para o Banco, pobreza é o resultado de processos sociais, econômicos e polí-ticos que interatuam e freqüentemente se reforçam mutuamente, de forma aexacerbar o processo de exclusão em que vivem os pobres. Bens escassos, falta deacesso a mercados e escassez de emprego prendem as pessoas no círculo dapobreza material. Por tal motivo, estimular o crescimento econômico, fazer osmercados trabalhar para os pobres e incrementar seus bens é fundamental parareduzir a pobreza. Mas essa é apenas uma parte da história. Num mundo ondea distribuição de poder acompanha a distribuição de riqueza, o modo como osEstados funcionam pode ser particularmente desfavorável aos pobres. Por exemplo:os pobres raramente recebem os benefícios dos investimentos públicos em edu-cação ou saúde. E ainda são freqüentemente vítimas da corrupção e das arbitra-riedades dos órgãos públicos.

A pobreza é também muito afetada por normas, valores sociais e praticastradicionais que dentro da família, da comunidade ou do mercado levam aprocessos de exclusão social de mulheres, grupos étnicos ou grupos socialmentedesempoderados.

É por isso que facilitar o empoderamento dos pobres, fazendo com que oEstado e as instituições sociais atendam mais a eles, é também fundamental paracombater a pobreza.

Vulnerabilidade a eventos externos e fora de controle, epidemias, violência echoques econômicos reforçam o senso de dificuldade, de pobreza material edebilidade para barganhar suas posições. É importante aumentar a segurançareduzindo os riscos a eventos externos para combater a pobreza.

� ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE ESTRATÉGIAS DE EMPODERAMENTO E DE DIREITOS �

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A estratégia

A abordagem para combate à pobreza do Banco Mundial a partir do ano2000, em face do contexto de globalização, efetiva-se através de três elementos:

a. Promover oportunidades. Oportunidades significam emprego, crédito, caminhos,escolas, eletricidade, mercados para os seus produtos, água, saneamentobásico e serviços de saúde. O crescimento econômico é crucial para geraroportunidades. Reformar os mercados pode ser essencial para expandir opor-tunidades para os pobres, mas as reformas devem refletir as instituições eestruturas locais. E mecanismos devem ser criados para compensar os potenciaisperdedores da transição. Em sociedades muito desiguais, mais igualdade éfundamental para acelerar os processos de redução da pobreza.

b. Facilitar o empoderamento. A escolha e implementação de ações públicasque atendam as necessidades dos pobres dependem da interação de processossociais, econômicos e políticos. O acesso a mercados e a serviços públicos éfreqüentemente influenciado pelo Estado e por instituições sociais que devematender e serem accountable para os pobres. Atingir esse acesso, atender asnecessidades e a prestação de contas (accountabilty) é um processo intrinse-camente político e precisa de ativa colaboração dos pobres, das classes médiase de outros grupos sociais. A colaboração ativa pode ser grandemente facili-tada por mudanças na governança do Estado, tornando a administraçãopública, as instituições legais e os serviços públicos mais eficientes eaccountables para todos os cidadãos; a colaboração ativa também pode serfacilitada fortalecendo-se a participação dos pobres nos processos políticos enas tomadas de decisão local. É também importante remover as barreirasinstitucionais e sociais que resultam da distinção de status social, de gênero ede etnia. Instituições que atendam as necessidades existentes não são apenasimportantes para os pobres, mas também para o processo de crescimentocomo um todo.

c. Expandir a segurança. Reduzir a vulnerabilidade a desastres naturais, choqueseconômicos, epidemias e violência é parte intrínseca do aumento do bem-estare promove o investimento em capital humano. Requer ação nacional e meca-nismos efetivos para reduzir os riscos enfrentados pelos pobres. Requer tambémconstruir bens para os pobres, diversificar a renda do grupo familiar e promovermecanismos de seguro � podem ser trabalho público e seguros de saúde �para enfrentar os choques adversos.

Para o Banco não há hierarquia de importância entre os três mecanismos,eles são complementares.

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Metodologias e ferramentaspara implementarestratégiasde empoderamento

Alberto Enríquez Villacorta1

e Marcos Rodríguez2

O presente documento foi feito com base nos termos de referência estabelecidospela ActionAid a fim de gerar mais e melhores insumos à reflexão e ao debate abertos dentro daorganização a respeito das decisões e projeções impulsionadas, por um lado, na África e Ásia, epor outro, na América Latina e Caribe, que mudaram o enfoque do trabalho institucional.

No caso da África e da Ásia, os programas começaram a dar mais enfoque a um �desenvolvi-mento baseado em direitos�, enquanto no caso da América Latina e do Caribe, tanto a estratégiaregional como a de cada país individualmente se baseiam num enfoque de �empoderamento�.

Neste marco, a ActionAid precisa aprofundar a análise com o propósito de determinar qualdos dois enfoques tem mais consistência, poderá gerar melhores resultados e alcançar maioresíndices de sustentabilidade.

Com o fim de contribuir para esta análise, o presente documento se estruturou em três partes.Na primeira se estabelece o conceito de empoderamento e o marco para desenhar estratégias queo tornem possível, assinalando, ao mesmo tempo, as principais semelhanças e diferenças com oenfoque de desenvolvimento baseado em direitos.

Na segunda parte, se faz uma espécie de balanço crítico de estratégias, metodologias eferramentas utilizadas na América Latina para implementar processos de empoderamento.

Finalmente, na terceira parte, se fazem algumas recomendações à ActionAid, visando àanálise e ao desenvolvimento de metodologias que permitam formular e implementar estratégiasde empoderamento.

1. Marco analítico para formularestratégias de empoderamento

1.1. Empoderamento, desenvolvimento e combate à pobrezae à exclusão

Assim como muitos outros, o termo �empoderamento� começou a ser utilizado com muitafreqüência, tanto por organizações sociais e políticas como por analistas e centros acadêmicos

1 Doutor em Filosofia, Funde (Fundação Nacional para o Desenvolvimento), El Salvador.

2 Economista, Funde, El Salvador.

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que trabalham no campo do desenvolvimento, servindo de marco ou enfoque para a formulaçãode estratégias ou políticas e programas implementados em diversas zonas geográficas,microrregiões, municipalidades, setores sociais e instituições.

Baseado nisso, consideramos importante, não só do ponto de vista teórico, mas também deuma perspectiva política e operativa, fazer um esforço de delimitar o conceito de empoderamento.Não se trata de estabelecer uma definição que encerre e enquadre, mas sim uma delimitação queaproxime e se mantenha aberta, ao mesmo tempo em que permita um horizonte que dê sentido,marco e suporte a diversas estratégias, metodologias e instrumentos.

No presente trabalho, o empoderamento está vinculado fundamentalmente ao estímulo deum desenvolvimento sustentável.

Entendemos por desenvolvimento sustentável aquele que tem como propósito a geração deriqueza e bem-estar para as presentes e futuras gerações. Considerando que o que ele busca nãoé só gerar riqueza, mas também bem-estar, tanto das presentes como das futuras gerações, não sepode reduzi-lo ou fazê-lo sinônimo de crescimento econômico (o que muda radicalmente a pers-pectiva e estrutura em que habitualmente se pensa o desenvolvimento), pois, além da econômica,ele inclui diversas dimensões ou esferas da vida humana, como a política, a social, a cultural,a ambiental, a espacial, a espiritual etc. Por isso, trata-se de um fenômeno multidimensional.

Uma das características fundamentais do desenvolvimento assim entendido é a inclusão detodas as forças e atores de uma sociedade, seja esta local, regional, nacional ou global. Por isso,um dos desafios centrais que enfrenta o desenvolvimento na América Latina é como resolver esuperar a realidade da exclusão e da pobreza.

Um desenvolvimento excludente, por um lado, é mau desenvolvimento e, por outra, carecede sustentabilidade.

Visto de outro ângulo, uma das características típicas do mau desenvolvimento é a geraçãode pobreza e exclusão. Isto é evidente na América Latina, que é a região do mundo com o maiorabismo entre os mais ricos e os mais pobres.

O desenvolvimento sustentável implica, portanto, ainda que não se reduza a isto, uma luta porerradicar a pobreza e a exclusão, o que significa que uma estratégia de desenvolvimento passapor conseguir que os setores, grupos e pessoas que vivem na pobreza e na extrema pobreza, ou quetenham sido excluídos e marginalizados por diversas razões como gênero, etnia ou religião, não sósejam levados em conta como objeto de programas ou estratégias contra a pobreza, mas que, aban-donando sua condição de excluídos e marginalizados, se convertam em atores do próprio desenvol-vimento, participando das decisões fundamentais que o impulsionam e dos benefícios que gera.

O processo que torna esse �trânsito� possível passa por resolver outro problema crucialcomo o do poder. Isto em duas dimensões: uma é a distribuição do poder na sociedade; e a outra,o modo de exercício do poder.

Aqui é justamente onde entra o enfoque do �empoderamento� dos setores, grupos e pessoaspobres e excluídas como um fator-chave para avançar em direção ao desenvolvimento sustentável.

Por isso, não é casual que historicamente o conceito de empoderamento tenha sido introdu-zido nos anos 60 e 70 pelo movimento American Black e por grupos feministas e de mulheres quelutavam respectivamente contra a discriminação das minorias negras nos Estados Unidos e poralcançar a plena cidadania das mulheres.

Por isso, delimitar o conceito de empoderamento é uma questão-chave. Não só nem principal-mente com uma pretensão acadêmica, mas, sobretudo, visando à implementação de políticas e estra-tégias. Trata-se de avançar em direção a um conceito que se converta em marco e horizonte para a ação.

� METODOLOGIAS E FERRAMENTAS PARA IMPLEMENTAR ESTRATÉGIAS DE EMPODERAMENTO �

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Para entender bem o significado, o alcance e as implicações do conceito de empoderamentonão basta conhecer sua origem etimológica ou seu vínculo com o conceito de poder. É necessáriocompreender que ele nasce de uma busca de paradigmas que permitem conhecer e explicarmelhor fenômenos como a pobreza e a exclusão e encontrar caminhos e formas concretas paracombatê-los, superá-los e, se possível, erradicá-los.

Que é, então, o empoderamento?

É uma perspectiva que coloca as pessoas excluídas dos processos prevalecentes de desenvolvi-mento e do poder (sua distribuição e exercício) no centro do processo de desenvolvimento.Situar as pessoas e grupos sociais que vivem na pobreza ou são excluídos no centro do processode desenvolvimento significa colocar as instituições econômicas (mercados) e as políticas (Estado)ao serviço desses grupos, e não o contrário.

O empoderamento:

� Parte do entendimento de que a situação de pobreza e dominação experimentada pormilhões de pessoas, não só na América Latina, mas também no resto do mundo, é umimpedimento ao desenvolvimento que tem em sua base o poder de uns poucos sobre osrecursos e sobre as possibilidades de existência social de outros.

� É basicamente um processo de criar poder e ganhar poder de e para os setores pobres eexcluídos. Ganhar implica diminuir o poder que têm outros, redistribuir o poder e, nestesentido, é um processo conflitivo. Criar poder é gerar capacidades inexistentes e, por isso,implica claro lucro para a sociedade.

� É o processo de obter acesso e controle sobre si mesmo e sobre os meios necessários parasua existência.

� É um processo de construção e/ou ampliação das capacidades que têm as pessoas e grupospobres e excluídos para:

� Assumir o controle de seus próprios assuntos;� Produzir, criar, gerar novas alternativas;� Mobilizar suas energias para o respeito a seus direitos;� Mudar as relações de poder;� Obter controle sobre os recursos (físicos, humanos e financeiros) e também sobre a ideo-

logia (crenças, valores, atitudes);� Poder discernir como escolher;� Levar a cabo suas próprias opções.Tudo isso com o propósito de se converter em sujeitos do desenvolvimento sustentável.

� É um processo ao mesmo tempo interno (relacionado com auto-estima, autopercepção) eexterno (que tem a ver com controle ou influência sobre o meio a sua volta).

� É pessoal e organizacional. Não pode ser feito de fora pra dentro, mas pode ser facilitadoatravés de ações estimulantes e criando um ambiente amistoso, favorável. Implica açõessimultâneas e complementares de cima para baixo e de baixo para cima.

� EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA �

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� Não é um processo neutro, pois deve implicar necessariamente mudanças nas relações depoder a favor dos que vivem na pobreza ou são excluídos. Deve gerar processos de mudançano nível individual e coletivo, tanto em termos de controle de recursos, como em termos deuma maior autonomia e autoridade sobre as decisões que têm influência na sua própria vida.

� Também não é um processo natural. É induzido. Não nasce por geração espontânea, mas éimpulsionado intencionalmente. É socialmente construído.

� É um elemento-chave para romper o ciclo da pobreza e da exclusão, já que abre possibilidadespara a formulação de políticas mais adequadas de combate à pobreza, como também espaçosde participação na elaboração e implementação dessas políticas que podem favorecer osgrupos pobres e excluídos, convertendo-os em agentes de desenvolvimento.

� É um processo através do qual grupos que têm sido excluídos e marginalizados por causaseconômicas, sociais, políticas, de gênero etc., buscam mudar essa situação e se incorporar nadeterminação do rumo que suas localidades, países, regiões e o mundo devem tomar. Por isso, asestratégias de empoderamento são caminhos para sociedades locais ou nacionais mais democrá-ticas, via pela qual grupos, atores e setores mais excluídos entram nos processos onde sedecide o rumo daquelas.

O empoderamento combina duas dimensões:

� A introdução no processo de tomada de decisões das pessoas que se encontram fora dele.Aqui a ênfase está no acesso às estruturas políticas e aos processos formalizados de tomardecisões; e, no âmbito econômico, no acesso aos mercados e à renda que lhes permitamparticipar da tomada de decisões econômicas. Tudo isso remete a pensar em pessoas capazesde aproveitar ao máximo as oportunidades que se lhes apresentam sem, ou apesar das,limitações de caráter estrutural ou impostas pelo Estado.

� O acesso a processos intangíveis de tomada de decisões, através dos quais as pessoastomam consciência de seus próprios interesses e de como estes se relacionam com os inte-resses dos outros, com o fim de participar da tomada de decisões a partir de uma posiçãomais sólida e, de fato, influir nessas decisões.

Concluindo, podemos afirmar que não há desenvolvimento sustentável sem processos efetivosde empoderamento, mediante os quais se incrementam os ativos e as capacidades dos pobres eexcluídos para participar, negociar, articular e mudar não só sua própria condição mas a do seumeio, com o propósito de melhorar sua qualidade de vida e a da sua comunidade.

Mas, ao mesmo tempo, há que se levar em conta que os setores empoderados só poderão seconsolidar e exercer um papel positivo à medida que o desenvolvimento for se ampliando e transfor-mando as raízes e as bases estruturais que tornaram possíveis a pobreza e a exclusão social.

A partir desta perspectiva, tem sentido refletir sobre as estratégias, metodologias e ins-trumentos de empoderamento que vêm sendo implementados e, à luz de sua análise crítica,avançar algumas propostas e recomendações que contribuam para revisá-los, melhorá-lose transformá-los.

� METODOLOGIAS E FERRAMENTAS PARA IMPLEMENTAR ESTRATÉGIAS DE EMPODERAMENTO �

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1.2. Enfoque de empoderamento versus enfoque de direitos?

Do mesmo modo como acontece com o enfoque de empoderamento, diversos atores nocampo do desenvolvimento vêm aplicando um enfoque baseado em direitos. Não é nossa pretensãoaqui fazer uma comparação entre esses dois enfoques para estabelecer qual é o melhor, ou se sedeve adotar um deles, eliminando o outro. Tal como ficou assinalado, o desenvolvimento susten-tável e a luta contra a pobreza e a exclusão, como componente fundamental do mesmo, são porsua natureza multidimensionais. Quer dizer, implicam processos de altos níveis de complexidadeque, por isso mesmo, requerem diversas abordagens e enfoques.

A abordagem de desenvolvimento baseada em direitos �é uma estrutura conceitual que seapóia em padrões e modos de operar voltados à promoção e proteção dos direitos humanos.Integra normas, padrões, princípios do sistema internacional dos direitos humanos contidos emtratados e declarações, em planos, políticas e processos de desenvolvimento�.3

Além disso, esta perspectiva baseada em direitos se fundamenta em vários elementos, taiscomo: a conexão entre os diferentes direitos, eqüidade, igualdade, prestação de contas em sentidoamplo, empoderamento, participação e a não discriminação e atenção a grupos vulneráveis.

O valor do enfoque baseado em direitos é que parte de uma base ética e moral que conferea todas as pessoas humanas só pelo fato de serem direitos iguais. Por isso, é um enfoque quecontém e estimula uma vocação democrática.

Sem dúvida, como bem se assinalou, na prática, a realidade atual nos mostra que ao longodo continente latino-americano e de outras partes do mundo, o que está no centro da práticasocial é a violação e o desrespeito aos direitos.

Como aponta Cecilia Iorio, �a fragilidade dos direitos humanos se estabelece quando seconectam com a realidade. Idealmente, o direito tem um poder ou status para proteger através demecanismos de justiça, mas a realidade mostra que a força para sua implementação depende deque os direitos sejam social e politicamente reconhecidos�.4

A idéia ou perspectiva baseado em direitos se fundamenta no princípio de que toda violaçãodeve ser evitada e reparada por ações que recuperam os direitos. Porém, as falhas existentes tantona prevenção como na reparação não parecem haver encontrado uma solução. Estas falhas estãovinculadas a dois fatores cruciais:

� Uma permanente inadequação da legislação quanto a mecanismos de controle do poder.

� Um abismo na percepção destes direitos em muitos contextos culturais e políticos.

Como resultado desses dois fatores, é claro que os direitos humanos tal como estão nostratados, declarações e outros formatos sofrem de uma falta fundamental de integração com avida cotidiana e com os modos do uso ou exercício do poder em todas as sociedades.

Se uma perspectiva baseada em direitos coloca a força no direito mesmo, em sua base éticae moral, a perspectiva de empoderamento, por seu lado, põe a força naqueles que têm sidoexcluídos, nos pobres, nos desempoderados.

A partir da perspectiva do empoderamento, a violação dos direitos humanos sucede porqueos setores desfavorecidos socialmente carecem do poder suficiente para garantir o respeito a seusdireitos ou para exigir a reparação quando estes são violados.

3 IORIO, Cecilia, 2002, p.18.

4 Idem, p.21.

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Não obstante, um enfoque excessivamente centrado na questão do poder, que não leve emconta os direitos inerentes a todas as pessoas humanas, pode conduzir, como já sucedeu aolongo da história, a caminhos autoritários que não resolvem o problema das desigualdades e dodesenvolvimento humano.

Daí que o enfoque de direitos pode ser visto como complementar ao enfoque de empodera-mento. Isto começou a se evidenciar com o recente surgimento de interpretações que sustentama presença e importância do empoderamento dentro dos direitos humanos. Tais interpretaçõesvêm ganhando força e buscam articular, e não dissociar, os direitos civis e políticos (direito a tervoz e direito a ser escutado) com os direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais.

Em suma, não há dúvida de que desencadear processos de desenvolvimento sustentável queincluam o combate à pobreza e à exclusão requer atores que tenham a capacidade e o podersuficiente para produzir mudanças profundas na correlação de forças tanto nos níveis locais emicrorregionais, como nos nacionais e mundiais.

Por isso, o empoderamento daquelas pessoas, grupos e setores que vivem na pobreza ousão excluídos e marginalizados é fundamental e se caracteriza por ser um processo essencial-mente político. Porém, isto não significa que não existam outros enfoques que o possamenriquecer e complementar, ainda que jamais devam substitui-lo. Um desses é, sem dúvida, oenfoque baseado em direitos.

2. Estratégias, metodologias e ferramentasutilizadas para o desencadeamento deprocessos de empoderamento

O conceito de estratégia faz alusão aos caminhos que se devem transitar para que, partindo deuma situação determinada, se consiga alcançar um ou vários objetivos também pré-determinados,da maneira mais eficaz e eficiente possível. Toda estratégia, portanto, inclui um ponto de partida,um ponto de chegada e o caminho que une a ambos.

O ponto de partida geral de uma estratégia de empoderamento é a existência de pessoas,grupos ou setores sociais que vivem em condições de pobreza ou sofrem de exclusão e carecemde poder suficiente para conseguir uma situação melhor em seu contexto social. O ponto dechegada é uma situação em que esses grupos ou setores saíram da pobreza e da exclusão e seintegraram na sociedade como agentes de desenvolvimento.

O desafio que deve enfrentar a estratégia de empoderamento é o que fazer para conseguiresta mudança, quais são os passos para gerar esse poder em termos de criação das capacidadesdas pessoas, grupos ou setores pobres e excluídos e de produzir as transformações necessárias nomeio à sua volta, de modo que sua nova condição seja sustentável no tempo.

2.1. Sujeito e agentes do empoderamento

O primeiro ponto que deve definir uma estratégia é quem ou quais devem levá-la adiante.Neste sentido, diversas experiências e aportes sobre o empoderamento nos ensinam que este nãopode ser desenvolvido em nome daqueles que devem ser empoderados, que os processos deempoderamento devem centrar-se necessariamente nas pessoas e grupos desempoderados, emsuas visões, interesses e prioridades. Isto significa que nenhum grupo pode ser empoderado demaneira sustentável desde fora, dado que as mudanças na consciência e na autopercepção, assim

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como a construção de capacidades, tanto pessoais como coletivas, são próprias e singulares, demaneira que ninguém as pode conseguir em nome de outrem.

Por isso, como afirma um analista nicaragüense, fazendo alusão à sua própria experiêncianacional, existem diversos exemplos de projetos e, inclusive, processos políticos que, apoiando-seprincipalmente em fatores externos, realizaram ações que pareciam demonstrar empoderamento,com o aparente beneplácito dos �empoderados�, mas cujos resultados se reverteram tão rápidoquanto desapareceram aqueles fatores externos que os motivaram. Disso conclui que nestas situ-ações só houve um empoderamento não muito avançado ou definitivamente aparente.5

As estratégias de empoderamento, portanto, só as são de fato se situam como sujeito doempoderamento as pessoas e grupos ou setores desfavorecidos, pobres e excluídos.

Porém, isto não significa que o empoderamento seja uma questão exclusiva dos setoressociais desfavorecidos. Ao contrário. Devemos recordar que estamos situados no campo do desenvol-vimento e que se trata de que os grupos ou setores empoderados exercitem o poder adquiridoincidindo positivamente nas dinâmicas de desenvolvimento. Isto só é possível com a intervenção deoutros atores que contribuam na criação de um ambiente que seja favorável para que isso acon-teça. A mesma situação de desvantagem que os setores pobres e excluídos têm na sociedade evidenciaa necessidade de estabelecer vínculos e alianças com outros agentes que contribuam com estímulose ações positivas para a criação de um ambiente que favoreça os processos de empoderamento.

Isto permite situar adequadamente a dimensão e a importância do papel e a contribuição deagentes externos como catalisadores de processos de empoderamento. Os agentes externosnunca podem substituir o sujeito da estratégia, mas podem definitivamente contribuir de maneirafundamental para a construção destes processos.

É, portanto, necessária a ação de outros atores, como governos centrais, governos locais,organizações da sociedade civil, ONGs e cooperação internacional, que são atores indiscutíveis nocampo do desenvolvimento e que assim como podem favorecer os processos de empoderamento,também podem obstruí-los e bloqueá-los.

Em outras palavras, uma estratégia de empoderamento deve contemplar a construção dealianças do sujeito das mesmas, os pobres e excluídos, com a mais diversa gama de atores nocampo do desenvolvimento com o propósito de transformar o meio a sua volta e abrir caminhoaos processos de empoderamento.

Aqui entra, portanto, que um componente fundamental das estratégias de empoderamentoé a participação. A participação não é um componente secundário, mas um elemento constitutivodas estratégias de empoderamento.

É por isso que �muitas análises e investigações de campo relacionam os temas participação,cidadania e poder com políticas de combate à pobreza�.6

São muitas e muito diversas as experiências na América Latina e em outras partes do mundoque vêm mostrando que os processos de participação possibilitam processos de empoderamentoe favorecem o estímulo de políticas e práticas de desenvolvimento que contemplam as necessida-des das pessoas e grupos pobres e excluídos. Isto será abordado detidamente mais adiante.

Neste sentido, experiências como a aprovação e implementação da Lei de Participação Popular naBolívia, a concordância governamental para colaborar com o Serviço de Informação de Orçamento

5 ULLOA, L. F. ¿Empoderamiento de las organizaciones de base desde proyectos de desarrollo?, s/d.

6 IORIO, Cecilia, 2002.

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para a Democracia na África do Sul e o papel desempenhado pela autoridade federal durante ogoverno de Kennedy para romper a oposição local à votação dos afro-americanos no sul dosEstados Unidos demonstram a importância que pode ter a ação do governo nacional na criaçãode condições no meio à sua volta que favoreçam processos de empoderamento.

Da mesma forma, o partido político e o governo local têm tido um papel-chave como umagente facilitador de empoderamento no caso do Orçamento Participativo no sul do Brasil.

Além disso, existem inúmeras experiências de ONGs que, apoiadas por agências de cooperaçãointernacional, facilitaram processos inovadores e flexíveis de empoderamento que serviram debase para sua posterior adoção por entidades governamentais e internacionais.

2.2. Espaços de empoderamento

O empoderamento faz referência a produzir mudanças nas relações de poder que afetamnegativamente o desenvolvimento da sociedade em seu conjunto e, em especial, aos setoressociais em desvantagem. Porém, a própria idéia de desvantagem é relativa em função da presençade outros setores sociais que detenham cotas maiores de poder em um determinado âmbitosocial. Assim, o empoderamento da mulher é relativo ao poder que detenham os homens; oempoderamento dos pobres é relativo ao poder dos ricos e dos setores médios; e o empodera-mento das etnias indígenas é relativo ao poder social dos mestiços.

Ao mesmo tempo, todas estas relações de poder não se produzem no abstrato, mas emespaços sociais concretos, nos quais os diferentes atores sociais e organizações interagem produ-zindo valores, tomando decisões e alocando recursos.

Devido ao que foi exposto, as estratégias de empoderamento devem se perguntar quais sãoos âmbitos sociais onde se cabe incidir, quais as características deles e que oportunidades deincidir criam para construir novas relações de poder.

Neste sentido, é possível tipificar pelo menos cinco espaços sociais de ação para as estratégiasde empoderamento: a família, a comunidade, o município ou a região, o país e o global. Exporemosresumidamente a seguir as potencialidades que na nossa opinião oferecem cada um desses espaços.

A família

É o menor espaço de organização social e mostra-se fundamental no estabelecimento de relaçõesde poder entre gêneros, assim como entre pais e filhos. Daí que as estratégias orientadas àeqüidade de gêneros, ao apoio à infância e à adolescência e à diminuição da violência intrafamiliardevem considerar incidir de alguma forma neste espaço social.

A comunidade

É um espaço social mais complexo que a família, mas ainda relativamente homogêneo, no qualprimam as relações estabelecidas pela proximidade física e o fato de que as pessoas compartilham, emgeral, uma situação similar no que se refere ao acesso a recursos e serviços, como a moradia, oemprego, a água e o saneamento, a educação, a saúde etc.

Durante as décadas de 80 e 90, na América Latina, as organizações comunitárias rurais eurbanas pobres desempenharam um papel fundamental para resolver um conjunto de serviçosbásicos e construir normas de convivência, que resultaram indispensáveis diante da debilidadehistórica do papel social do Estado. A ponto de se poder afirmar que uma boa parte da infra-estrutura social que existe neste tipo de comunidades se deve mais à autogestão comunitária

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apoiada pelas ONGs e pela cooperação internacional do que pela ação do Estado. Esta situação éainda mais clara nas zonas que foram cenários de conflitos armados onde, diante do virtualdesaparecimento do poder do Estado, as organizações comunitárias demonstraram uma apreciávelcapacidade de autogestão, sem a qual não teria sido possível sua sobrevivência.

Estas experiências permitiram que, no mencionado período, se atribuísse uma considerávelimportância àquilo que se convencionou chamar de �desenvolvimento comunitário�. Porém, como tempo, este espaço de empoderamento demonstrou não só suas virtudes mas também suasrestrições, principalmente no que se refere a sua limitada massa crítica para gerar dinâmicassustentáveis de desenvolvimento.

O local e o regional

Durante os últimos anos, o município e a região adquiriram especial relevância na América Latinacomo espaços para a implementação de estratégias de desenvolvimento e de empoderamento.Isto se produziu como resultado de duas megatendências. A primeira delas vem de cima parabaixo e tem relação com a pressão que exercem os organismos multinacionais para descentralizaro Estado, como meio de torná-lo menos burocrático e mais eficaz, assim como para fortalecer afraca governabilidade nos países da região. A segunda tendência corre de baixo para cima e tema ver com a crescente pressão da sociedade civil e suas organizações para ganhar maior ingerênciana gestão do Estado através da participação cidadã.

Nesta conjunção se misturam também tendências ideológicas de significado diferente.Uma de corte neoliberal que aposta na debilidade do poder do Estado e na transferência para asociedade civil de uma parte do custo que implica o investimento e o gasto social. Outra, decaráter popular, vê na descentralização do Estado e na participação cidadã uma oportunidadepara aprofundar os processos democráticos e conseguir maior influência dos setores populares nadefinição de políticas públicas.

Em todo caso, a partir do enfoque do desenvolvimento e do empoderamento, o município e,em menor medida, a região oferecem a potencialidade de serem os menores espaços de ação nosquais a sociedade civil se encontra com o Estado. Isto significa que os grupos em processo deempoderamento têm aqui maiores possibilidades de influenciar o estabelecimento de políticaspúblicas que levem em conta seus interesses, mas também possibilita empreender iniciativas apartir dos municípios ou dos governos locais que propiciem processos de empoderamento.

O país

É o espaço tradicional para a formulação e a execução de políticas públicas de caráter macro,setorial e territorial que constitui o meio fundamental que facilita ou dificulta os processos locaise comunitários. Além disso, é nos governos nacionais que se concentram os principais recursospara investir em desenvolvimento.

A implementação de estratégias que propiciam empoderamento no espaço nacional carece,em geral, da especificidade e da profundidade que permite o espaço local. Porém, pode influenciarconsideravelmente o empoderamento de setores populacionais amplos como as mulheres, ainfância e a adolescência, os trabalhadores rurais sem terra e as etnias minoritárias mediante aaprovação de marcos jurídicos que defendam os direitos civis destes setores, a criação de meca-nismos que os façam cumprir e a alocação de recursos que os privilegiem.

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O global

É junto ao local, um dos espaços que adquiriu maior vigência durante os últimos anos comoconseqüência do processo de globalização, da crescente interdependência política entre os Estados ea evidência cada vez mais clara de desigualdades internacionais, que deram lugar a amplos movi-mentos sociais e cidadãos como o movimento antiglobalização ou o Fórum Social Mundial.

Porém, a globalização abriu ao mesmo tempo a oportunidade de impulsionar estratégiasvoltadas a influenciar grandes decisões que têm um inquestionável impacto sobre o empodera-mento de grupos sociais nos níveis nacional e local.

Os perigos maiores são a falta de compreensão da relação que existe entre os processos, aabsolutização de alguns espaços e sua conseqüente desvinculação dos outros. Por isso, aquelesque pensam que não há nada a fazer no terreno local porque tudo vem determinado pelosprocessos internacionais e pelas grandes empresas transnacionais, ou os que pensam que a soluçãode todos os problemas está nos espaços locais e municipais, não poderão criar estratégias deempoderamento genuínas.

As estratégias de empoderamento devem situar-se prioritariamente em um desses espaços,mas devem estar articuladas aos demais.

2.3. Estratégias de empoderamento

As estratégias voltadas para promover ou facilitar o empoderamento dos setores sociais emdesvantagem devem ser orientadas a incidir em duas dimensões:

a. O incremento das capacidades internas.

b. A criação de condições a sua volta que favoreçam os processos de empoderamento.

A efetividade das estratégias de empoderamento voltadas para o desenvolvimento e, conseqüen-temente, para sua luta contra a pobreza e a exclusão dependerá do grau em que essas duasdimensões se desdobrem e se articulem.

2.3.1. Estratégias para o fortalecimento de capacidades internas

De acordo com a experiência, podem se identificar pelo menos quatro eixos de ação para fortaleceras capacidades internas dos grupos sociais em desvantagem:

� o fortalecimento de suas organizações,� a criação de novos conhecimentos e habilidades,� o fortalecimento de sua auto-estima e valores e� a construção de vínculos e alianças com outros setores.

Vejamo-lo mais detidamente:

Fortalecimento organizacional

Diversos autores insistem que o empoderamento possui uma dimensão pessoal, mas tambémorganizacional. Isto se deve a que a capacidade que têm os setores sociais em desvantagem deapoiar-se a si mesmos e de influenciar as decisões que se tomam na sociedade depende, em boamedida, de sua capacidade de unir-se e atuar coordenadamente frente às estruturas de poderestabelecidas. Porém, não se trata somente do simples fato de criar organizações, mas de conseguirque estas sejam autônomas, democráticas, inclusivas e influentes.

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Olhando para a história dos países da Europa Ocidental, por exemplo, se vê que as organiza-ções de massas (sindicais, de consumidores etc) que se constituíram no começo do século passadodesempenharam um papel fundamental no estabelecimento de iniciativas de cooperação grupal ede um conjunto de direitos políticos e sociais que hoje distinguem as sociedades modernas.No final do século, estes modelos organizacionais começaram a se esgotar, mas surgiram outros,como os movimentos de mulheres, os ambientalistas e os da solidariedade internacional, quetambém adquiriram grande influência. Na América Latina se constituíram também importantesorganizações sociais que alcançaram menor ou maior influência segundo suas potencialidadesinternas e o âmbito nacional que enfrentaram.

Estas experiências, entre muitas, permitem afirmar com bastante segurança que existe umaforte correlação positiva entre o poder organizacional que adquirem as organizações dos setoressociais em desvantagem e o nível de desenvolvimento democrático e de inclusão social que alcançamas sociedades onde atuam.

Durante os últimos anos na América Latina se difundiu consideravelmente a organizaçãocomunitária. Em El Salvador, por exemplo, existem evidências que demonstram que aqueles muni-cípios onde durante o conflito armado se constituíram fortes redes de organizações comunitárias(como Tecoluca, Suchitoto e o norte do município de Chalatenango), se enfrentam os desafios dodesenvolvimento local de maneira mais democrática, inclusiva e inovadora que nos municípiosnos quais a organização comunitária é mais incipiente. Isto á válido inclusive quando se comparammunicípios que se encontram governados pelo mesmo partido político.

Mas o fortalecimento da capacidade organizacional dos setores sociais em desvantagem nãodeixa de ser problemático.

Uma das debilidades que se apresenta é a dispersão em muitas e pequenas organizaçõessociais que, apesar de se encontrarem muito ligadas com sua gente, carecem da força necessáriapara influenciar os tomadores de decisão locais, regionais, nacionais e globais.

Outro problema é a pouca capacidade que têm estas organizações de manter sua autonomiafrente ao Estado, os partidos políticos e outras instituições de poder. A experiência demonstra quea subordinação destas organizações às estruturas tradicionais de poder pode favorecer sua forteexpansão no curto prazo, mas as debilita e desnaturaliza no longo prazo.

O problema da pouca autonomia tem muitas vezes relação com a dificuldade deste tipo deorganizações para financiar seu funcionamento. O apoio financeiro da cooperação internacionalestimulou a autonomia de muitas organizações sociais frente aos poderes estabelecidos, mastambém teve o efeito negativo de desestimular as contribuições dos associados e transformaralgumas organizações de base em fazedoras de projetos, o que gera grandemente novas e, àsvezes muito sutis, formas de dependência.

Fortalecimento e criação de novos conhecimentos e habilidades

Um dos fatores que situam determinados grupos sociais em posição de desvantagem éterem sido discriminados negativamente na provisão social de conhecimento e de habilidades-chave para discernir alternativas, criar propostas próprias e manejar seus assuntos com a habi-lidade que exige um meio que se mostra cada vez mais exigente. Isto tem a ver com o acesso àeducação formal, mas também com um conjunto de habilidades específicas que são necessáriaspara se manejar tanto no mercado como na esfera pública. Daí que o empoderamento não podepassar por cima da criação de conhecimentos e habilidades.

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As campanhas de alfabetização como a que se realizou na Nicarágua durante o período revoluci-onário, as escolas populares nas zonas de conflito de El Salvador ou a campanha total de alfabe-tização que se desenvolveu na Índia a partir de 19897 evidenciaram uma incidência maciça no fortale-cimento das capacidades dos setores sociais em desvantagem para melhorar sua situação. Porém,estes são empreendimentos que dificilmente podem se realizar sem o envolvimento do Estado.

De maneira mais seletiva, os cursos de formação e capacitação que realizam as ONGs, algumasuniversidades e as próprias organizações sociais para dirigentes nacionais e locais apresentamuma enorme quantidade de exemplos que demonstram sua incidência positiva na elevação dacapacidade de empoderamento que têm os setores sociais em desvantagem.

O problema das atividades de formação e capacitação é seu alto custo e o tempo que levapara alcançar níveis de acumulação que permitam dar saltos de qualidade. Outro elemento quetambém se deve levar em conta é a baixa qualidade em muitas atividades desse tipo, sejamcursos, oficinas ou seminários.

Todavia, estamos diante de um campo em que se devem investir recursos humanos, técnicose financeiros e no qual é necessário avançar permanentemente no aperfeiçoamento de conteúdose metodologias.

Aumento da auto-estima e transformação de valores

Um dos principais mecanismos que se criam socialmente para justificar a exclusão social éargumentá-la ideologicamente, com preconceitos que subestimam o valor dos setores pobres eexcluídos, sejam estes mulheres, classes sociais ou grupos étnicos. Mas para que o sistema deexclusão funcione, é necessário que os setores desempoderados se assumam estes preconceitosque paradoxalmente os desfavorecem. Por esta razão, as estratégias de empoderamento devemcontribuir por um lado, para mudar estes valores nos setores desempoderados e, por outro, paratransformar os valores predominantes na sociedade.

Os projetos orientados para a eqüidade de gênero, relativamente recentes numa perspectivahistórica, estão demonstrando que a mudança na auto-estima dos participantes é o resultado maisdestacado por eles e que esta mudança tem um importante efeito desencadeador de outras transfor-mações positivas nas relações familiares e comunitárias. Neste sentido, as ações genéricas têm muitoque contribuir para as estratégias e metodologias de empoderamento de outros setores sociais.

O trabalho no campo dos valores, tanto dos setores em desvantagem como da sociedade emseu conjunto, é algo que, em geral, tem pouca presença nos projetos de desenvolvimento, o quedetermina seu pouco desenvolvimento teórico. Isto é grave num contexto mundial em que o valorda �solidariedade� perdeu peso frente à �competitividade� e em que as relações humanas tendemcada vez mais a serem apreciadas como �relações de mercado�.

Influência e alianças

A experiência parece demonstrar também que é fundamental o fortalecimento da capacidadedos setores pobres e excluídos de influir nos tomadores de decisão, de modo que seus interessese propostas sejam levados em conta.

Isto significa desenvolver capacidades de mobilização social e luta reivindicativa de maneiraajustada às condições de cada sociedade e momento político, mas também estabelecer aliançascom outros setores-chave para criar correlações sociais e políticas favoráveis. Significa também

7 SEN, Gita: El empoderamiento como un enfoque a la pobreza, http://www.dawn.org.fj/publications/ losdesafios.html

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desenvolver capacidades mais sutis de criação de vínculos, lobby e influência sobre os políticoscom poder de decisão no nível local, nacional e global.

O que dissemos acima implica necessariamente a construção de propostas de desenvolvi-mento. Uma das capacidades dos grupos de poder que mais se destacam consiste em gerarpropostas que na realidade privilegiam seus próprios interesses, embora sejam apresentadas ejustificadas como de interesse para toda a sociedade. Os setores carentes de poder raramente têmesta capacidade devido ao fato de que suas propostas geralmente se expressam em forma deplataformas reivindicativas pouco fundamentadas que, se expressam bem seus interesses de setor,não chegam a transmitir o motivo pelo qual representam mais um lucro que um custo para oconjunto da sociedade.

2.3.2. Estratégias para a criação de um meio favorável ao empoderamento

As estratégias para a criação de um meio favorável ao empoderamento dos setores em desvantagemsocial não se encontram isoladas das orientadas a fortalecer suas capacidades internas, mas sim seinter-relacionam mutuamente. Isto significa que quanto maiores forem as capacidades internas dossetores em processo de empoderamento, tanto maiores serão suas possibilidades de influenciar omeio ao redor. Mas também o inverso é verdadeiro: quanto mais favoráveis forem as condições domeio, tanto maiores serão as possibilidades de incrementar as capacidades internas destes setores.

Fazendo uma leitura da experiência latino-americana dos últimos anos, as estratégias voltadaspara modificar o meio visam a promover:

� a descentralização do Estado e o desenvolvimento local,� a participação cidadã e a atuação em rede,� a transparência e o acesso à informação compreensível,� a criação de serviços de apoio,� a geração de mudanças na cultura institucional, particularmente no Estado, e� a influência nas alocações orçamentárias do Estado.

Descentralização do Estado e desenvolvimento local

A descentralização do Estado e o desenvolvimento local são duas políticas de Estado queestão em moda e podem representar uma oportunidade considerável para o empoderamento dossetores sociais pobres e excluídos.

A descentralização do Estado pode permitir às comunidades pobres se acercarem dopoder de decisão e de recursos e fortalecerem sua capacidade de influenciar os poderes públicos.O desenvolvimento local permite também pensar e realizar o desenvolvimento a partir de umâmbito mais próximo das pessoas e desde uma perspectiva na qual os pobres e excluídos seconvertam em protagonistas e não sejam só demandantes ou beneficiários.

Neste sentido, a Lei de Participação Popular e Descentralização da Bolívia (1989) e a aplicação deseus conteúdos são um bom exemplo de uma mudança radical no sistema jurídico e nas políticasde Estado que ampliou as possibilidades de empoderamento. O mesmo se pode dizer da influênciapositiva que teve o incremento das transferências do governo nacional às municipalidades deEl Salvador (1997), correspondente a 6% da renda bruta do primeiro; e das leis de Descentrali-zação do Estado, Código Municipal e de Conselhos de Desenvolvimento que recentemente foramaprovadas na Guatemala.

Porém, a descentralização do Estado não realizada ou mal aplicada também pode significaruma ameaça para os setores e territórios desempoderados, já que pode acarretar conseqüências

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como a transferência do custo dos serviços públicos aos pobres, aprofundar as atuais disparida-des territoriais e, inclusive, fortalecer as elites locais.

A participação cidadã e a atuação em redes

Na mesma linha de pensamento se pode afirmar que a participação cidadã é a condição quepode permitir que a descentralização do Estado não se limite a beneficiar as elites locais, já queabre as portas para que os setores desempoderados acedam ao poder de decisão e aos recursostransferidos. Neste sentido, o Orçamento Participativo de Porto Alegre, hoje replicado em numerososmunicípios da América Latina, é o exemplo mais radical da oportunidade que representa a participa-ção cidadã para o empoderamento dos setores que foram tradicionalmente excluídos. Mas existemtambém outros exemplos que se experimentam em numerosos países, como os comitês ou conselhosde desenvolvimento local, os exercícios de planejamento local participativo, os comitês de moni-toramento e controle social etc., que permitem depositar esperanças neste tipo de mecanismosde participação cidadã como meios facilitadores de processos de empoderamento.

A atuação em redes e as alianças para o desenvolvimento territorial permitem também queos setores tradicionalmente excluídos incorporem sua própria perspectiva na construção de acordose vínculos de cooperação com outros setores sociais. Porém, a utilidade destas formas de relaçãosocial para o empoderamento dependerá em boa medida da capacidade que as organizaçõespopulares tenham de fazer valer seus próprios interesses e formular iniciativas que sejam atrativaspara os outros setores. Neste sentido, os Fundos para o Desenvolvimento Local que se constituíramem alguns municípios salvadorenhos entre o setor empresarial, o governo local, as organizaçõescomunitárias e algumas ONGs são uma experiência interessante de construção de alianças queinclui as organizações populares como parceiras.

Mesmo que o âmbito local seja especialmente favorável para promover a participação cidadã,esta não deve se limitar ao mesmo, dando as costas ao fato de que um conjunto de decisões,geralmente as mais importantes, se realizam nos âmbitos nacional e global. A experiência sul-africana de promover a participação cidadã na elaboração do orçamento nacional e as cada vezmais recorrentes iniciativas cidadãs para promover mudanças legais ou de políticas nacionais queestão se desenvolvendo na América Latina parecem indicar uma tendência em ascensão. Por outrolado, a participação cidadã nas questões globais como os Tratados de Livre Comércio (TLC), oPlano Puebla-Panamá e as regras do comércio parecem um imperativo que precisa encontrar viasde realização nos anos vindouros.

Acesso à informação compreensível

O acesso à informação é outra questão-chave para o empoderamento dos grupos sociais, jáque deste depende sua capacidade de controlar e exercer influência sobre o Estado no campopolítico e social, e de aceder a mercados no campo econômico.

Durante os últimos anos foram realizadas algumas iniciativas interessantes, mesmo que aindaembrionárias, destinadas a tornar pública certa informação do Estado via internet e os meios decomunicação de massas. Porém, como se afirmou numa oficina sobre empoderamento realizadano Peru, �não é muito útil tornar a informação disponível se as pessoas não a podem entender.O verdadeiro desafio, então, consiste não tanto em torná-la disponível, mas sim em fazê-lacomunicável e compreensível�.8.

8 Oficina Internacional sobre Participação e Empoderamento: http://www.bancomundial.org/ sociedadcivil/lessons.html, p.12.

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Neste sentido, existem algumas experiências como o Orçamento Participativo em váriascidades brasileiras; os repórteres populares na Índia; a análise, disseminação e educação paracompreender o orçamento na África do Sul; e a recente montagem de um sistema de informaçãoà cidadania na prefeitura de San Salvador, El Salvador, que demonstram que este é um campopromissor para as estratégias de empoderamento.

Acesso a serviços de apoio

No mundo moderno se fala cada vez mais da importância dos serviços de apoio às empresascomo um fator-chave de competitividade. Porém, se o acesso a serviços apropriados é importantepara as empresas, é ainda mais para os setores populacionais com menor poder na sociedade.As ONGs se destacaram neste papel durante os últimos anos, oferecendo tipos de serviçosdiferenciados para estes setores, de modo que, em muitos casos, se converteram em parceirasnecessárias para a cooperação internacional. Existem também organizações sociais que oferecemserviços apropriados para seus associados.

Entre as experiências de serviços de apoio que favorecem processos de empoderamento,cabe destacar a prestação de serviços legais, a prestação de serviços para facilitar o acesso amercados de produtores rurais e micro empresários e os serviços de capacitação.

Porém, nesses casos, o importante para o empoderamento não é somente o serviço em si,como propõem algumas ONGs ou programas governamentais, que vêem a assistência aos gruposvulneráveis com uma ótica de mercado ou assistencialista, mas que esta atividade se realize forta-lecendo o protagonismo e a criação de capacidades autogestoras dos setores desempoderados.Isto é uma questão de filosofia, cultura e metodologia institucional.

2.4. Princípios metodológicos

Ao analisar os diferentes casos de empoderamento, se descobre que não existe uma seqüênciametodológica única, devido à diversidade de estratégias e âmbitos em que estas se implementam.Porém, é possível sim identificar a aplicação dos princípios metodológicos que se descrevem a seguir:

Envolvimento do sujeito

Todos os projetos bem-sucedidos voltados para a criação de capacidades internas, e boa partedaqueles voltados para criar condições favoráveis, buscam o maior envolvimento possível dossetores que se pretende apoiar, ainda que a iniciativa não tenha partido destes. O que significadizer que os grupos com os quais se trabalha são concebidos como sujeitos da mudança, mais doque como �clientes� ou �beneficiários� da ação do projeto.

Respeito às diferentes naturezas e papéis

Nos processos de empoderamento internacional atuam diversos setores e atores, cada um comsua própria natureza e com um papel específico de acordo com ela. Respeitar essas naturezas epapéis a fim de que nenhum substitua ou desloque o outro é fundamental para o êxito.

Gradação

A maior parte dos projetos começou com iniciativas simples que se foram complexificandoprogressivamente, vale dizer, que avançaram do simples para o complexo.

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Aprendizagem e inovação

Alguns projetos de empoderamento, sobretudo os que são apresentados em foros públicos, sãosumamente inovadores, por parecerem que foram inventados de repente. Porém, ao analisar global-mente a realidade se descobre que a maioria dos projetos surge como réplica de outros, aos quaisse introduziram pequenas inovações que produzem saltos de qualidade.

Diferenciação

A maioria das iniciativas voltada para o empoderamento se orienta num princípio de iniciar nossetores mais avançados ou conscientes da população-alvo que, com o tempo, vão agregandosetores mais amplos, mas raramente se chega a comprometer toda a população. Dá a impressãode que a metodologia se poderia resumir em �atuar com os avançados, para ganhar os interme-diários e arrastrar os atrasados�.

Propositividade

Outra característica metodológica das iniciativas empoderadoras parece ser a busca em elaborarpropostas de solução antes de assinalar problemas ou carências.

2.5. Ferramentas

Existe um grande número de ferramentas que se utilizaram durante os últimos anos paratornar viáveis as estratégias de empoderamento que têm sido desenvolvidas em diferentes contextos.A seguir apresentamos algumas:

Técnicas participativas de planejamento

Estas técnicas têm sido desenvolvidas com muitas variações devido à ampla difusão tida peloplanejamento participativo local. Entre elas se encontram desde a metodologia conhecida comoZOP e adaptações do Marco Lógico, especialmente apropriadas para identificar projetos, até adap-tações para o planejamento estratégico desenvolvido por Carlos Mattos, mais apropriadas paraplanejamentos de caráter estratégico.

Técnicas de comunicação

Como se assinalou anteriormente, a comunicação é chave para trabalhar os valores nos setorespobres e excluídos e na sociedade civil, para tornar pública e compreensível a informação sobre oEstado e o acesso aos mercados, assim como para difundir as propostas voltadas para alcançarmudanças nas condições políticas e econômicas da sociedade. Porém, foi pequeno o avanço nestesentido, se comparado ao alcance adquirido pelos meios de comunicação de massas, que estãomais voltados para a alienação e a desinformação que ao empoderamento.

Técnicas para influência e lobby

As técnicas de influência e lobby são relativamente recentes, mas adquiriram uma grande impor-tância para aumentar a influência da sociedade civil nos grupos de poder e naquelas instânciasonde se decidem as políticas públicas. Estas técnicas se destinam, por um lado, à construção depropostas e à busca de apoio social e político para as mesmas; e, por outro, a identificar oscaminhos, formas e mecanismos para levá-las adiante. Isto inclui para os grupos excluídos epobres o crescente conhecimento dos centros de poder e a lógica com que funcionam e decidem.

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Técnicas de resolução ou transformação de conflitos

Dado que os processos de empoderamento são sempre altamente conflituosos, cresce cada vezmais a preocupação em estudar a natureza do conflito e as formas de compreendê-lo, analisá-lo,gerenciá-lo e encontrar soluções para ele. Por isso, vêm sendo desenvolvidas mais e melhorestécnicas não só para conhecer e gerenciar os conflitos, mas também para resolvê-los ou transformá-los, de maneira que se contribua para a consolidação do empoderamento. Porém, uma tarefapendente é que os próprios sujeitos principais dos processos de empoderamento sejam aqueles queconheçam e dominem estas técnicas.

Intercâmbios de conhecimentos e de experiências

O intercâmbio de experiências e de conhecimentos aumentou consideravelmente durante os últimosanos entre os profissionais do desenvolvimento. Não obstante, ainda são escassas as atividadesdeste tipo que envolvem diretamente os sujeitos das estratégias e das ações de empoderamento.

A ampliação deste instrumento poderia contribuir consideravelmente para estabelecer sinergiasque potencializem a aprendizagem e a inovação no campo do empoderamento.

Foros de análise, reflexão e debate

A experiência se encarregou de mostrar que o intercâmbio de experiências não é suficiente paraelevar o nível de reflexão sobre os desafios que coloca o desenvolvimento. Pode-se afirmar inclu-sive que durante os últimos anos este nível de reflexão diminuiu, concentrando-se mais na buscade receitas de sucesso que em análises profundas e no contraste de idéias e propostas. Istoconstitui uma ameaça, lamentavelmente pouco tangível, para os processos de empoderamento edesenvolvimento. Daí ser imprescindível promover mais e melhores atividades deste tipo.

Sistematização de experiências

A maioria dos projetos de desenvolvimento que se realizam não é sistematizada por seus protago-nistas, de maneira que se perde muito da riqueza das lições que produz, sejam êxitos ou fracassos.Isto se deve em parte à crescente escassez de recursos e tempo para a execução de projetos, assimcomo à falta de metodologias e hábitos de sistematização por parte dos profissionais do desenvolvi-mento. Porém, são evidentes a necessidade e a urgência de ampliar os esforços deste tipo paraelevar a qualidade do trabalho dentro dos processos de empoderamento e para se apropriar daslições que eles vão assumindo.

Estudos e investigações

Os estudos e investigações a partir de e voltados para os processos de empoderamento ainda sãoescassos. Porém, para que os setores em desvantagem possam realizar propostas para a sociedade écada vez mais imprescindível que vão além de suas plataformas reivindicativas e consigam contra-balançar o domínio que exerce o pensamento dos grupos hegemônicos. A construção destasferramentas é estratégica para os processos de empoderamento.

Cursos, oficinas e seminários para fortalecer a formaçãoe a capacitação dos atores

Sua importância e seu papel já ficaram assinalados no ponto anterior.

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3. Recomendações à ActionAid para aanálise e o desenvolvimento de estratégiase metodologias de empoderamento

Um aspecto central no momento de fazer recomendações é precisar o sujeito das mesmas, valedizer, a quem se fazem tais recomendações. Em outras palavras, quem se espera que as ponha emprática. Neste caso, o destinatário é a ActionAid.

Tendo presente isto e tudo o que foi colocado anteriormente, alguns aspectos e componentespara o desenvolvimento de estratégias, metodologias e instrumentos de empoderamento são:

3.1. Que fazer?

Sugere-se:

� Partir de uma delimitação conceitual de empoderamento que, mesmo que se mantenhaaberta a enriquecimentos e aprimoramentos posteriores, permita um horizonte que dêsentido, marco e suporte às diversas estratégias, metodologias e instrumentos.

De acordo com o que foi colocado neste trabalho, o empoderamento não é um fim em simesmo. Refere-se a processos vinculados medular e vertebralmente ao desenvolvimento e,nessa medida, à redução substantiva da pobreza e da exclusão.

Em conseqüência, as estratégias de empoderamento têm como ponto de chegada não sósujeitos empoderados, que conseguiram romper sua condição de pobreza e exclusão, massujeitos que exercem esse poder adquirido em dinâmicas de desenvolvimento que impactampositivamente e de modo crescente e sustentável a qualidade de vida deles e dos demaissetores da sociedade.

� Ter presente, em todo momento, que os sujeitos do processo de empoderamento são ossetores desempoderados, mas que este processo demanda o envolvimento de outros atores-chave como os governos central e locais, setores organizados da sociedade civil e daempresa privada.

Neste marco, é indispensável conseguir que as grandes necessidades e reivindicações dosgrupos pobres e excluídos não fiquem somente na formulação de plataformas ou pacotes dedemandas (como aconteceu com muitos sindicatos, associações de agricultores e movimen-tos rurais em diferentes países da América Latina), mas que se convertam em propostas detransformações do Estado e da sociedade que também beneficiem o coletivo e os demaissetores, convertendo nos únicos perdedores do processo aqueles pequenos grupos quefizeram da concentração excludente da riqueza e do poder seu fim supremo e exclusivo.

� Combinar de maneira profunda e permanente, ao longo de todos os passos e momentos daestratégia, as duas dimensões dos processos de empoderamento:

� O aumento das capacidades internas dos setores pobres e excluídos;� A criação de condições que favoreçam os processos de empoderamento destes setores.

� Mesmo que os processos de empoderamento devam priorizar e enfatizar uma dimensão,econômica (mercados) ou política (Estado), devem ser impulsionados de maneira multidi-mensional e integral. Não existe um processo de empoderamento genuíno que sejaunidimensional.

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� Selecionar, com base em critérios claros, os espaços desde onde se pretende apoiar osprocessos de empoderamento.

À luz da situação atual nos países da América Latina e tomando por base as lições apren-didas nos últimos 10 anos, é recomendável privilegiar os espaços locais, tendo o municípiocomo ponto de partida, dado que ali, pela primeira vez, se encontram os atores funda-mentais dos processos de empoderamento com o Estado e o governo.

Isto significa que os grupos em processo de empoderamento têm ali maiores possibilidadesde influenciar o estabelecimento de políticas públicas e que seus interesses, demandas epropostas sejam levadas em conta. Mas também é possível empreender iniciativas a partir damunicipalidade ou dos governos locais que propiciem processos de empoderamento.

A partir dos espaços locais, as estratégias de empoderamento devem estar articuladas e se articu-larem aos demais espaços: a comunidade e a família, desde baixo, o país e o global desde cima.

3.2. Como fazer?

� Tomar a decisão e criar as condições para se envolver como parceiro externo estratégico.Ser parceiro implica compromisso e responsabilidade. Supõe um envolvimento ativo, siste-mático e criativo nos processos. Trata-se de um ator que aporta e cuja participação agregavalor em termos quantitativos e qualitativos. Por isso é estratégico. Externo faz alusão à suanatureza e ao papel que desempenha. Destaca que não é o protagonista principal, mas quesem sua presença o processo pode seguir adiante, que nunca deve substituir aquele e quemuito menos deve ser o que marca o ritmo do processo, mas sob nenhum ponto de vista ésinônimo de alheio ou de passivo.

Envolver-se nesta condição implica fazê-lo com perspectiva de médio e longo prazo. Isto nãocontradiz, mas destaca o sentido de urgência de que os processos de empoderamentodeslanchem e avancem.

Concentrar e não diluir esforços e recursos. Comprometer-se seriamente com processos eestratégias de empoderamento requer esforços e recursos concentrados. Estamos falando demudanças profundas e estáveis na distribuição e no exercício do poder. A menos que seconte com recursos humanos, institucionais e financeiros em grande escala, isto não se podefazer participando simultaneamente em demasiados processos e em muitas alianças estra-tégicas. Por isso, se recomenda investimento concentrado, seleção cuidadosa de poucosparceiros, mas com importância estratégica. Não tem mais impacto nem maior incidênciaaquele que participa em mais processos, mas o que seleciona e participa melhor.

Pôr os recursos da ActionAid em função dos processos, dado que sua natureza de agênciainternacional pode contribuir, ao comprometer-se com processos nacionais ou locais, a umatomada de consciência gradual sobre a necessidade e utilidade de uma perspectiva globaladequada, que contemple também as questões do poder.

Isso significa que a ActionAid não deve reduzir seu papel a um mero apoio financeiro, mascombiná-lo com apoio técnico e profissional, contribuir para a geração de espaços de encontroentre atores do processo, para estender pontes, promover intercâmbios de conhecimentose experiências, criar condições para alianças e ações conjuntas.

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Também significa se deixar impregnar pelos processos concretos de empoderamento. Um dosaspectos para medir a profundidade e o alcance do compromisso da ActionAid é o quantoaqueles o impactam, o quanto o impulsionam a mudanças, ajustes e readequações a fim dedesempenhar um papel que cada vez mais contribua melhor em termos qualitativos. Istodemonstra o quão sensível é a organização aos processos em que se envolve.

� Partindo dos espaços selecionados para atuar, identificar de fato o sujeito do empoderamento,isto é, as pessoas e grupos ou setores desfavorecidos, pobres e excluídos, no marco de umaanálise das formas concretas de exclusão, de distribuição do poder e de seu exercício naqueleespaço em que se quer trabalhar, seja este um país, uma região ou uma localidade.

� Identificar os outros atores que podem contribuir para criar um meio favorável já que, paraque o processo de empoderamento se realize com êxito e seja sustentável, é necessário saberquais são aqueles setores, forças ou organizações com quem os setores pobres e excluídospodem estabelecer vínculos e alianças, dado que com seu peso e capacidade podem ajudarna criação de um meio que favoreça os processos de empoderamento.

� Redimensionar a importância, natureza e papel dos diagnósticos:

Os dois passos anteriores implicam um diagnóstico do qual devem participar os própriosatores. Não é um trabalho de consultores externos. Em todo caso, o papel dos consultoresdeve ser o de facilitar o processo de diagnóstico, que deve ser já o primeiro passo da estra-tégia. Sua primeira pedra. E é preciso assegurar que seja sólida. É importante conceber odiagnóstico como uma primeira fase de aprofundamento e ampliação de conhecimento econsciência, isto é, de empoderamento.

O diagnóstico como ponto de partida do processo de empoderamento é, por isso, necessa-riamente participativo, de modo que se faz desde dentro e desde baixo.

O diagnóstico deve ser dinâmico e permanente. Um processo de constante ampliação doconhecimento e de ir registrando as mudanças e os impactos do empoderamento.

� Promover a participação da sociedade civil e a construção de alianças:

Aqui entra como componente fundamental a participação que, como já assinalamos, é umelemento constitutivo das estratégias de empoderamento. Trata-se de participação crescentedos pobres e excluídos, assim como de outros setores e forças da sociedade civil, nos proces-sos de tomada de decisão que tem a ver com formulação e implementação de políticaspúblicas seja no nível local, regional ou nacional.

Junto a isto, a estratégia de empoderamento deve contemplar a construção de alianças dosujeito das mesmas, os pobres e excluídos, com a mais diversa gama de atores no campo dodesenvolvimento, com o propósito de transformar o meio e abrir caminho aos processos deempoderamento.

� Promover espaços e formas diversas e articuladas para a formação e a capacitação dos sujeitosque impulsionam o processo e as estratégias de empoderamento. Aqui podem desempenharum papel central instâncias governamentais e não-governamentais, assim como universidadese centros acadêmicos.

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� Promover estratégias e processos que contribuam para modificar o meio, gerando condiçõesfavoráveis ao empoderamento, à redução da pobreza e da exclusão e ao desenvolvimentosustentável. Entre eles:

� Descentralização do Estado;� Institucionalização da participação cidadã e da articulação em redes;� Instalação de sistemas de informação transparente e compreensível em todos

os níveis de governo;� Geração de mudanças na cultura institucional, tanto do Estado como da sociedade civil; e� Influência nos orçamentos no nível nacional e local.

� Estabelecer critérios e indicadores que permitam medir se um processo de empoderamentoavança e vai na direção do desenvolvimento.

3.3. Com que ferramentas fazer?

Os processos, estratégias e metodologias de empoderamento requerem sem dúvida a utilizaçãode certos instrumentos ou ferramentas básicas. Considerando o que já foi colocado antes e osprocessos e experiências em curso na América Latina, pode se concluir que as mais importantes eefetivas são:

� técnicas participativas de planejamento;� técnicas de resolução ou transformação de conflitos;� técnicas de comunicação;� técnicas e instrumentos de difusão: audiovisuais;� técnicas para a influência e o lobby;� intercâmbios de conhecimentos e de experiências;� sistematização de experiências;� estudos e investigações;� estudos comparativos de processos e/ou experiências;� foros de análises, reflexão e debate; e� cursos, oficinas e seminários para fortalecer a formação e a capacitação dos atores.

Para terminar, é importante destacar que cada um destes instrumentos tem sua naturezaprópria, seu papel e seu valor. Porém, eles ganham maior força e alcance quando são vistos comopeças de uma caixa de ferramentas e, conseqüentemente, são utilizadas de maneira combinadapor uma mesma estratégia, dentro de um mesmo processo de empoderamento.

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Empoderamento, teoriasde desenvolvimentoe desenvolvimento localna América Latina

Enrique Gallichio1

O presente trabalho procura avançar na discussão de três temas:

� Uma análise dos modelos de desenvolvimento vigentes na América Latina nas últimasdécadas, seus resultados e conclusões.

� As implicações das teorias do poder e do desenvolvimento na América Latina e no Caribe.As principais concepções, evolução, tendências, debates e estado da arte sobre as mesmas.

� Alguns elementos de busca e construção de alternativas, formulação de proposta(s) erecomendações concretas.

Para desenvolver o primeiro tema, nos basearemos na análise dos paradigmas do desenvolvi-mento que inclui Arocena (1995). Assim, avançamos sobre as principais implicações da discussãodo desenvolvimento num contexto de globalização.

Em relação ao segundo tema, vinculado às teorias do poder, nos baseamos fortemente nascontribuições de Pierre Bourdieu, sobretudo no que diz respeito a sua forma de conceber aspráticas sociais, a dinâmica dos campos e as formas de fazer e sentir por parte dos atores.Também nos apoiaremos em alguns aspectos da obra de Michel Foucault.

No segundo bloco se afirma a importância do desenvolvimento local como forma de ver e deatuar neste contexto. As principais teses do trabalho assinalam que os diferentes modelos/relaçõesde poder tomam corpo e se materializam em nossas sociedades de diferentes maneiras. No quediz respeito aos processos de empoderamento, o âmbito local surge como o meio mais relevantepara dar-lhes corpo.

O desenvolvimento local será tomado como eixo numa perspectiva não localista, que assumeas interações e as mútuas determinações local-global.

A importância de discutir os paradigmas do desenvolvimento e do poder se dá fundamentalmenteno papel que cada um deles atribui aos atores. Os processos de empoderamento devem estar forte-mente ligados ao território, este entendido como o contínuo entre identidade, história e projeto.

Enquanto alternativas, esta forma de ver o desenvolvimento local somada à perspectiva daanálise e do combate à exclusão social são as dimensões mais relevantes, na medida em que sãocapazes de discutir as mútuas determinações entre ator e sistema.

1 Sociólogo, Claeh (Centro Latino-Americano de Economia Humana), Uruguai.

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1. Teorias do desenvolvimentona América Latina

Portes2 assinala que �à medida que nos aproximamos do fim do milênio, as persistentes desigual-dades econômicas e sociais tomaram um rumo inesperado: deixa-se de realizar esforços parareduzir estas desigualdades e reconhece-se sua permanência, e até sua funcionalidade, para odesenvolvimento da economia global. Neste contexto, a sociologia do desenvolvimento parece terperdido muito de seu fundamento, devido ao predomínio do enfoque orientado para o mercadoe a disposição dos governos para seguir essa perspectiva�.

O mesmo autor analisa os pontos fortes e as limitações de duas das principais teorias latino-americanas do desenvolvimento: a da modernização e a da dependência. Mais adiante analisaremosas implicações do paradigma neoliberal, se é que se lhe pode chamar desta forma.

1.1. As teorias �latino-americanas� do desenvolvimento

A modernização, o desenvolvimentismo

Nesta perspectiva, segundo a análise de Cardoso:3 �Se em algo se baseou a perspectivadesenvolvimentista, pelo menos a que se elaborou na América Latina, foi precisamente na capaci-dade de identificar problemas, tentar superar obstáculos e abrir caminhos para a acumulação deriqueza e para que se pudessem compartilhar os frutos do progresso técnico.� E segue: �Se houveuma instituição na qual nossos reformadores iluministas tiveram fé, foi no Estado.� Assim, Cardosoressalta que a preocupação central destes autores (Prebisch, a Cepal e também, em seu primeiromomento, Furtado, Sunkel, Paz) não era uma teoria de desenvolvimento, mas sim dar uma expli-cação às desigualdades entre economias nacionais que vinham se acentuando através do comérciointernacional. Isto se opunha fortemente às expectativas da economia neoclássica, que previauma tendência à igualação relativa da remuneração dos fatores de produção.

Em suma, a teoria desenvolvimentista impulsionada pela Cepal negava a importância docomércio internacional como promotor de oportunidades iguais, incorporando à discussão fatoresde cunho institucional e estrutural situados para além do mercado. Insistia-se, portanto, na tomadade medidas políticas para permitir que a racionalidade técnica resultasse num progresso para asnações e os estratos sociais mais prejudicados.

Neste marco, como se ressaltou, o ator principal era o Estado, a partir da criação de �agênciaspúblicas de desenvolvimento�, da promoção do investimento em tecnologia e da necessidade deexpandir os mercados internos.

Como Cardoso demonstra, a crítica a estas políticas veio da direita e da esquerda. Mostra quepara a direita, as teses cepalinas seriam �erros grosseiros ou argumentos maliciosamente usadospelos que, sendo na verdade contrários ao sistema capitalista, preferiam iniciar a batalha porpartes: primeiro propunham quimeras, como a industrialização e o estatismo, para depois abrir ojogo diretamente a favor do socialismo� (Cardoso, 1980). A crítica da esquerda argumentava que asteorias do desenvolvimento obscureciam o principal: que não há desenvolvimento sem acumulaçãode capital e que esta não é mais que a expressão de uma relação de exploração de classes.

2 PORTES, Alejandro, 2001.

3 CARDOSO, F. H, 1980.

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Este enfoque é ainda bastante vigente em vários de nossos países, nos quais se derivoualgumas vezes para modelos populistas e outras, para modelos autoritários.

O enfoque da dependência

Diversos autores, inclusive alguns dos assinalados dentro do modelo desenvolvimentista, come-çam a questionar os principais pontos da teoria da modernização. A partir deste ponto de vistaalternativo, Portes destaca que �a modernização não era outra coisa senão o verniz ideológico docapitalismo ocidental, cujas incursões no resto do mundo geravam paralisação permanente�(Portes, 2001). Autores como Frank ou Baran começam a defender a tese do �desenvolvimento dosubdesenvolvimento�, para a qual o subdesenvolvimento é um fenômeno ativamente manejadoem detrimento dos produtores de bens primários e dos Estados mais vulneráveis. Ao mesmotempo, na América Latina, surge vigorosamente a escola da dependência (Cardoso e Faletto,Sunkel, Furtado). Portes ressalta: �Com suas raízes teóricas firmemente plantadas na economiapolítica marxista, os escritos sobre a dependência ignoraram o peso de ideologias e valoresculturais e responsabilizaram as corporações multinacionais pela pobreza do Terceiro Mundo�(Portes, 2001).

Cardoso assinala que o enfoque da dependência não enfatizou só a �dependência externa�,mas também a análise dos padrões estruturais que vinculam, assimétrica e regularmente, aseconomias centrais com as periféricas. Introduzia-se o conceito de dominação, que destacava queum desenvolvimento autônomo não era possível e que a única saída era o socialismo. É nestesentido, na crítica à possibilidade de um desenvolvimento nacional, que surgem tantos autorescomo Santos, Quijano, Marini, Cardoso e Faletto. A dominação, definitivamente, era uma domi-nação entre classes e não entre nações.

Com relação aos atores para superar esta situação, aí é onde provavelmente se encontra aprincipal debilidade dos teóricos da dependência. Cardoso conclui destacando que �em lugar doEstado-reformador dos cepalinos, apresentamos uma imagem da sociedade reformada, mas nãolevamos às últimas conseqüências as duas questões-chave que se percebiam no horizonte: quetipo de sociedade reformada e por quem?� (Cardoso, 1980).

Portes enfatiza que é necessário, na busca de alternativas, abandonar os debates �moderni-zação versus dependência� e ir além de declarações históricas gerais.

1.2 O ajuste neoliberal

�Em meados dos anos 80, uma equipe de economistas neoclássicos produziu o equivalentea um �manifesto capitalista� para o desenvolvimento da América Latina� (Portes, 2001). Da crítica�ortodoxa� ao modelo de substituição de importações, proclamaram um modelo novo queconduziria ao �desenvolvimento�: levantamento unilateral de barreiras econômicas, abolição dossubsídios ao consumidor, expulsão do Estado da economia, estímulo ao fluxo de capital estran-geiro (Balassa et al, 1986).

Portes continua: �O desaparecimento do bloco soviético e o descrédito de sua estratégia dedesenvolvimento estatista abriram caminho para a expansão global do capitalismo e, junto comele, para a hegemonia da escola teórica mais voltada para o mercado� (Portes, 2001).

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Díaz4 assinala sete passos da execução do ajuste neoliberal:1. a abertura unilateral ao comércio estrangeiro;2. a privatização de empresas estatais;

3. a remoção de regulações nos mercados de bens, serviços e trabalho;

4. a liberalização do mercado de capital com ampla privatização dos fundos de pensão;

5. o ajuste fiscal, baseado na drástica redução do gasto público;

6. a reestruturação e redução de programas sociais, concentrando-se estes em esquemascompensatórios para os grupos mais atingidos; e

7. o fim de qualquer forma de capitalismo estatal e a reestruturação do estado à administra-ção macroeconômica.

Junto a isto, coloca Portes, o neoliberalismo trouxe também mudanças socioculturais importantes:

1. a reavaliação da acumulação capitalista como desejável e congruente com os interessesnacionais;

2. o descrédito dos sindicatos e da indústria nacional protegida como redutos de privilégioopostos à eficiência econômica;

3. o apoio do investimento estrangeiro como necessário ao crescimento sustentável;

4. a renovada fé nos efeitos do trickle down para a redução da desigualdade social;

5. a reorientação das fontes de identidade nacional a partir da capacidade de resistência àhegemonia estrangeira até a reinserção inteligente no sistema econômico mundial.

Evidentemente, as conseqüências da aplicação deste modelo apontam para as limitações doparadigma neoclássico e também dos paradigmas alternativos e para a necessidade de construiruna perspectiva teórica alternativa.

1.3 Novas propostas

É neste marco que aparecem algumas novas propostas, como a chamada �terceira via� � araiz do manifesto Blair-Schroeder. Dahrendorf resume alguns dos principais postulados desta li-nha de pensamento: �Giddens situa a tarefa de alcançar a combinação de criação de riqueza comcoesão social no contexto das grandes mudanças produzidas pela globalização, o �novo diálogo�com a ciência e a tecnologia, e a transformação dos valores e os estilos de vida�. Determina,depois, seis áreas de política da terceira via:

� uma nova política ou �segunda onda de democratização� em que se socorre diretamente o povo;

� una nova relação entre o Estado, o mercado e a sociedade civil que os �una entre si�;

� políticas de oferta através do investimento social, principalmente em projetos de educação einfraestrutura;

� a reforma fundamental do Estado de bem-estar social mediante a criação de um novo equi-líbrio entre o risco e a segurança;

4 DÍAZ, Alvaro, 1996.

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� uma nova relação com o meio ambiente através da �modernização ecológica�;

� um forte compromisso com as iniciativas transnacionais num mundo de �soberania confusa�.

No marco de ásperos debates, autores como Touraine afirmaram que �não se deve ver nela(a terceira via) um programa político, mas um sinal emitido por alguns dirigentes que com eleindicam claramente a prioridade que dão às exigências do mercado internacional, ainda que, aomesmo tempo, queiram fazer notar sua preocupação em resolver os problemas sociais, que sevêm agravando há 20 anos. Há duas formas de avaliar a terceira via. Ou é um anúncio da reapariçãodos temas próprios da esquerda num mundo dominado por políticas de direita ou, o que meparece mais apropriado, o modo que têm os políticos de centro-esquerda de fazer uma políticade centro-direita� (os destaques são meus).

Partindo de uma perspectiva latino-americana, Ricardo Lagos ressaltou:

�Mas existem matizes de diferença entre o debate europeu e o latino-americano.Enquanto na Europa os social-democratas buscam estimular um crescimento que nãodeixe de lado o papel do Estado no desenvolvimento, enfatizando o fomento do empregoprodutivo, o avanço tecnológico para uma maior competitividade, assim como a necessi-dade de seguir garantindo os direitos dos cidadãos ao bem-estar social, reestruturandoo antigo Estado de bem-estar social, na América Latina se observa um debate similar,mas com ênfase na busca de maiores níveis de eqüidade e integração social frente àpersistente cristalização de desigualdades sociais que originam mobilizações e demandaspopulares legítimas.

Não é que não tenhamos feito nossas tarefas no sentido de estimular um crescimentoeconômico estável, melhorar a eficácia do gasto social ou manter os equilíbrios macro-econômicos. Em grande parte da América Latina se fez tudo isso, e muito bem, mas,apesar disto, se mantêm os problemas sociais que, supostamente, deveriam desaparecer,tais como o endurecimento de uma pobreza rural e urbana, a manutenção ou inclusiveo aumento do abismo na distribuição de riqueza ou a agudização de problemas deviolência, insegurança e exclusão juvenil.

A terceira via não pode então ter a mesma ênfase numa Europa de US$ 30 mil percapita que numa América Latina de menos de US$ 5 mil dólares per capita. Mais aindase levamos em conta que a América Latina é a região com a distribuição de renda maisdesigual do mundo. Em nossa região, conseqüentemente, a ênfase deve estar na inclusãodos excluídos melhorando sua vida sem que isto ocorra a expensas do resto. A idéia é queninguém perca no processo de inclusão social, para o qual se requer, simultaneamente,progresso material e progresso social, tal qual o postulam nossos amigos europeus�.

Em suma, nesta discussão sobre as alternativas, as propostas de corte latino-americanoaparecem, todavia, bastante ausentes.

É no contexto da realidade que coloca Lagos para a América Latina, que a idéia de combateà pobreza e à exclusão social mediante a perspectiva do empoderamento aparece como suma-mente relevante. A idéia de processo pelo qual se obtém acesso ao controle sobre si e sobre osmeios necessários para a existência (Iorio, 2002) é sumamente relevante numa estratégia dedesenvolvimento.

Creio que pode ajudar muito na discussão sobre dentro de que e como empoderar, a visão apartir da teoria e da prática do desenvolvimento local. É para essa linha de análise que nosdirigimos a seguir.

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2. Paradigmas dodesenvolvimento

Para começar este debate, gostaria de ressaltar a análise feita por Arocena sobre os principaisparadigmas do desenvolvimento e suas implicações sobre o local.

Para falar de desenvolvimento local é necessário explicitar os pressupostos teóricos: quandoestudamos o local não nos situamos em um universo à parte dos processos de desenvolvimentonacional ou regional; não partimos do zero como se nunca tivesse sido tratada a questão dodesenvolvimento. É então necessário explicitar alguns pressupostos básicos. Arocena assinala que�não há uma teoria sobre o desenvolvimento local, mas teorias de desenvolvimento que diferementre elas na forma de considerar o local�5 e analisa três grandes paradigmas.

2.1 Evolucionismo

Neste paradigma, o desenvolvimento está ligado ao processo evolutivo e se compõe deetapas às quais é necessário recorrer para chegar a um final previamente conhecido. Este modeloparte do pressuposto de que existe uma dinâmica evolutiva positiva em direção ao progresso; eque existem freios impostos pelas tradições locais opondo-se a essa dinâmica. Vai-se então dotradicional (algo negativo a superar) ao moderno (e avançado, o objetivo).

Aqui o modelo industrial representa a superação ou destruição da sociedade tradicional.Em 1963, um de seus principais expositores, W. W. Rostow, estabeleceu cinco etapas de cresci-mento econômico: a sociedade tradicional, as condições prévias para o crescimento, a decolagem,a entrada na maturidade e o consumo de massa.6

A crítica a este modelo foi realizada entre outros por Touraine, que assinala que o desenvol-vimento esteve mais marcado por relações de dependência, de interdependência e de dominaçãoque por uma racionalidade universal de crescimento econômico; e se pergunta se o subdesenvol-vimento é um atraso ou uma posição no sistema, afirmando esta última concepção. Desse modo,as especificidades locais determinam que os processos dificilmente sejam comparáveis; e, sobretudo,o desenvolvimento não significou necessariamente progresso, evolução.

Para esta posição � o paradigma evolucionista � os atores locais não têm papel algum acumprir, salvo seguir o melhor possível os ditados das demandas do crescimento econômico.Em geral, atuam mais como freio que como impulsionadores do desenvolvimento.

2.2 Historicismo

Neste enfoque, o essencial não é o ponto de chegada, mas o ponto de partida, semprediverso em função dos perfis nacionais e locais específicos.

A história é um ponto de partida fundamental. A palavra-chave neste caso não é progresso,como no evolucionismo, mas estratégia. Para esta forma de ver a realidade, não existem leis pré-determinadas. O modelo é o da contingência pura. A idéia de novidade é chave, todo processo éinédito. O endógeno se privilegia claramente e não se dá importância aos fatores estruturais ouglobais. Nos anos 70, o �Small is beautiful� era o slogan desta linha de pensamento, que tevecomo principal linha de investigação os estudos de corte antropológico-cultural.

5 AROCENA, José, 1995.

6 ROSTOW, W. W, 1963.

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A crítica a este modelo está dada no fato de que sem dúvida é possível identificar pautascomuns em diferentes processos. Por outra parte, para esta concepção nem todos os atores fazemparte do processo, o qual é dirigido por elites. Não é um processo orientado pela sociedade.

Neste enfoque, os atores locais são tudo, mas as dinâmicas globais existentes estão ausentes.

2.3 Estruturalismo

Para esta concepção, o desenvolvimento é um processo sistêmico cujos componentesestruturais são interdependentes. Há diferentes posições no sistema: dominantes e dominados.A determinação não vem de uma lei evolutiva ou da história, mas da racionalidade de um sistema.A análise da mecânica social é mais forte que a análise da mudança. Todo sistema tem sempreuma contradição que pode fazê-lo explodir. A busca de qual ou quais são os fatores determinan-tes passa a ser central: qual a zona sensível do sistema (economia, política, cultura?). Para osteóricos desta linha, o sistema se reproduz constantemente e a margem de ação é unicamenterevolucionária, de destruição do sistema. Não existe a idéia de desenvolvimento do sistema.

O local é um lugar de reprodução das relações de dominação globais. As sociedades locaisserão lidas a partir das contradições fundamentais que atravessam o sistema. Esta teoria, de fortebase marxista, teve seus principais expositores nos teóricos da dependência.

A crítica mais forte a esta concepção foi feita por um dos próprios teóricos da dependênciacomo Cardoso, que assinalou que não se promove um novo modelo de desenvolvimento, mas simo mesmo tipo de desenvolvimento em benefício de outras classes. Por outro lado, destaca que éinútil propor uma teoria do desenvolvimento de um sistema que se diz que fatalmente produzsubdesenvolvimento. Os atores locais não têm nenhum papel, já que são reprodutores nesse nívelda lógica do sistema.

2.4 Concepções alternativas

Existem diversas concepções alternativas. Autores como Touraine, Morin ou Bourdieu desen-volveram diferentes linhas de análise que, com diferentes ênfases, dão conta destes problemas.

Em todo caso, Arocena assinala que não é possível analisar os processos de desenvolvimentosem fazer intervir as três dimensões destacadas pelos paradigmas analisados: a história (mudança,especificidade, autonomia), o sistema (funcionamento, universalidade, interdependência) e omodelo (representações, generalização, utopia).

Estas dimensões, articuladas de maneiras diferentes, são as que definem os perfis dos pro-cessos de desenvolvimento. Não se pode pensar isoladamente as ênfases postas por estes trêsníveis de análise expressos nos paradigmas. Ao contrário, é necessário colocar-se simultanea-mente nos três níveis, o que significa dar conta de fatores como a complexidade, a diferença, aincerteza, ou a integralidade dos processos de desenvolvimento.

A esta altura, tendo dado conta de sensibilidades e enfoques teóricos diferentes, o problemada relação entre indivíduos e sociedade, ou entre a ação (individual ou coletiva) e a estruturasocial, é um ponto nodal, central, da teoria e da prática social.

Em suma, cremos que este tema da margem de ação do ator (por ator entendemos sujeitosindividuais ou coletivos) subjaz à discussão que encara linhas de intervenção que promovem tanto oempoderamento como a perspectiva dos direitos sócio-econômicos e culturais. Enfim, se o ator

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está totalmente constrangido pela estrutura social, ou se tem margem de manobra, em que osatores podem mudar a estrutura e, finalmente, quais são as relações de poder e como se expressaesse poder em nossas sociedades.

2.5 O ator e o sistema

Aqui nos parece relevante incluir outro autor-chave no pensamento contemporâneo: PierreBourdieu.7 Suas preocupações se centram em desvendar a contradição entre a igualdade quepromove e que está no discurso da modernização e a exclusão social que esta produz, e de queforma culturas que exaltam a igualdade como valor social produzem processos de exclusão edivisão. Bourdieu assinala que as diferenças e os processos de exclusão não são exclusivamenteeconômicos, mas também culturais. Daí seu interesse em mostrar a relação existente entre cultu-ra, dominação e desigualdade social.

Os conceitos-chave para este autor são reprodução cultural, legitimação, classe social, habitus,campo e espaço social, entre outros. É neste sentido que nos interessa trazer este autor, dadas asimplicações de sua construção teórica sobre o tema do poder e da dominação.

Suas raízes se encontram na teoria clássica e as reinterpreta a partir da problemática socialde nossos dias. De Marx, toma o programa para uma sociologia da reprodução, de Durkheim, asociologia genética das formas simbólicas, e de Weber, as funções sociais dos bens simbólicos edas práticas simbólicas.

Dentro deste marco, pretende explicar as ações sociais a partir uma perspectiva sociológica.Aproxima-se de Marx pela referência ao histórico; e de Durkheim, na explicação pelo social e a partirdo social. Pretender explicar as ações sociais a partir de uma perspectiva social implica a convicçãode que só a descrição das condições objetivas não chega a explicar totalmente o condicionamentosocial das práticas: é preciso resgatar o agente social que produz as práticas e seu processo deprodução. Mas trata-se de resgatá-lo não enquanto indivíduo, mas como agente socializado,como �agente de desenvolvimento�. Substitui-se a relação ingênua entre indivíduo e sociedadepela relação construída entre os dois modos de existência do social: as estruturas sociais externas eas estruturas sociais internalizadas: o social feito coisas e o social feito corpo. As primeiras se referema campos de posições sociais historicamente constituídos e as segundas, a habitus, ou seja,sistemas de disposições incorporados pelos agentes ao longo da sua trajetória social.

Para Bourdieu, as estruturas sociais existem duas vezes: o social está conformado por relaçõesobjetivas, mas também os indivíduos possuem um conhecimento prático dessas relações. Isto impõea quem intervém sobre a realidade uma dupla leitura de seu objeto de estudo. Estes conceitosteóricos são chaves para compreender a atuação do indivíduo numa perspectiva de empodera-mento. Segundo Bourdieu, objetivismo e subjetivismo são perspectivas parciais, mas não irrecon-ciliáveis. Ambas representam dois momentos da análise, momentos que estão numa relaçãodialética. A construção do mundo dos agentes se opera sob condições estruturais e segundo seuhabitus, como sistema de esquemas de percepção e apreciação, como estruturas cognitivas evalorativas adquiridas através da experiência duradoura de uma posição no mundo social.

Faz alusão ao �sentido das práticas� e aponta para a reflexão sobre as possibilidades deapreender a lógica que põe em marcha os agentes sociais que produzem sua prática e que atuamnum tempo e num contexto determinado.

7 GUTIÉRREZ, Alicia, 1995.

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Bourdieu define seu enfoque teórico como construtivismo estruturalista ou estruturalismoconstrutivista. Por estruturalismo entende que no próprio mundo social existem estruturas objetivas,independentes da consciência e da vontade dos agentes, que são capazes de orientar ou decoagir suas práticas ou suas representações. Por construtivismo entende que há, de um lado, umagênese social dos esquemas de percepção, de pensamento e de ação que são constitutivos do quechama habitus; e, de outro, também uma gênese social das estruturas, particularmente do quechama de campos e grupos, e em especial do que se denomina geralmente como classes sociais.

O conceito de habitus coloca uma perspectiva relacional, identificando o real com relações.Pensar relacionalmente é centrar a análise na estrutura das relações objetivas que determina asformas que podem tomar as interações e as representações que os agentes têm da estrutura, desua posição nela mesma, de suas possibilidades e de suas práticas.

O enfoque de Bourdieu considera como princípios de estruturação de práticas não só aposição e a trajetória do agente no sistema de relações, mas também os habitus incorporadospelo agente, enquanto esquemas de percepção, de avaliação e de ação. Como podem ser explicadasas práticas sociais a partir da ótica de Bourdieu? Quais são os princípios a partir dos quais seestruturam as práticas dos diversos agentes sociais segundo esta perspectiva teórico-metodológica?

A reprodução cultural

Bourdieu afirma que o sistema escolar e universitário funciona como instância de seleção, desegregação social em benefício das classes sociais superiores e em detrimento das classes médiase, mais ainda, das populares. Os privilegiados do sistema são os filhos das diferentes frações daburguesia. São os herdeiros, cuja herança não é só econômica, mas também, sobretudo, cultural.

A escola cumpre a função de legitimação, transformando os privilégios aristocráticos emdireitos meritocráticos, compatíveis com os princípios da democracia. Privilegiam-se os privilegia-dos, aos quais se dá a vantagem de não aparecerem como privilegiados. Corresponde, portanto,a um primeiro direito ao qual não se acede universalmente: a educação.

A legitimação

Bourdieu toma emprestada de Marx a idéia de que a realidade social é um conjunto de relaçõesde força; e, de Weber, a noção de que a realidade social é também um conjunto de relações desentido e que toda dominação social deve ser reconhecida, ser aceita como legítima e ganharsentido. Legitimar um tipo de dominação é dar toda a força da razão ao interesse do mais forte.É a violência simbólica, onde o poder se impõe mediante significações. Conseqüentemente, impõe-seuma arbitrariedade cultural. Geram-se culturas dominantes e culturas dominadas.

Neste caso, estamos claramente posicionados dentro da lógica do poder. Este possui, comose assinala, um forte componente simbólico, cultural, de forma que a análise dos processos deconstrução de identidade adquire grande relevância.

O habitus

Este é um conceito-chave que permite articular o individual com o social, as estruturas internas dasubjetividade e as estruturas sociais externas.

O habitus é um sistema de disposições para atuar, sentir e pensar de uma determinadamaneira, interiorizada e incorporada pelos indivíduos no transcurso da história. Manifesta-se pormeio do sentido prático, que é a aptidão para se mover, para atuar e para se orientar segundo a

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posição que se ocupa no espaço social. Tudo isto sem recorrer a uma reflexão consciente, graçasàs disposições adquiridas que funcionam automaticamente. É ao mesmo tempo um sistema deprodução de práticas e um sistema de percepção e de apreciação de práticas.

O conceito de habitus se constitui numa espécie de dobradiça na construção teórica deBourdieu, já que permite articular o individual e o social como sendo dois estados da mesmarealidade, da mesma história coletiva que se deposita e se inscreve simultânea e indissoluvelmentenos corpos e nas coisas. Bourdieu o vê como perpetuador e reprodutor das condições objetivas edestaca a irreversibilidade do processo de formação dos habitus.

Pode-se dizer então que o habitus é ao mesmo tempo possibilidade de invenção e necessidade,recurso e limitação. Trata-se de uma estrutura estruturante. Falar de habitus é também recordar ahistoricidade do agente, é afirmar que o individual, o subjetivo, o pessoal é social, é produto damesma história coletiva que se deposita nos corpos e nas coisas.

Habitus e prática: o sentido prático e a prática como estratégia

As práticas e as representações geradas pelo habitus podem estar objetivamente adaptadas a seufim, sem pressupor a busca consciente dos fins. Podem ser objetivamente regradas e regulares,sem ser o produto de obediência a regras. Elas são o produto de um sentido prático, de umaaptidão para se mover, para atuar e para se orientar segundo a posição ocupada no espaço social,segundo a lógica do campo e da situação na qual se está comprometido.

O sentido prático implica o encontro entre um habitus e um campo social, entre a históriaobjetivada e a história incorporada. Possui ao mesmo tempo um sentido objetivo e um sentidosubjetivo: é produto das estruturas objetivas do jogo e das experiências dos agentes nesse jogo.O sentido prático (o sentido do jogo social) possui uma lógica própria, que é necessário apreenderpara poder explicar e compreender as práticas. Este sentido não pode funcionar fora de todasituação. Estimula a atuar em relação a um espaço objetivamente constituído como estrutura deexigências, como as �coisas a fazer� diante de uma situação determinada.

Sistematicidade dos habitus e das práticas: os habitus de classe

As práticas que os habitus produzem são sistemáticas e compreensíveis. Todas as práticas de ummesmo agente estão harmonizadas entre si e objetivamente orquestradas com as de todos osmembros da mesma classe.

Falar de habitus de classe implica falar de um sistema de disposições comum a todos osindivíduos biológicos que são produto das mesmas condições objetivas. Trata-se do fato de quetodos os membros da mesma classe têm mais probabilidades de enfrentar as mesmas situações eos mesmos condicionamentos entre si, que com membros de outra classe.

Em suma, e em relação a este conceito, sua relevância em termos de empoderamento signi-fica que todos os atores �sabem� atuar em seu meio, conhecem os códigos e, em todo caso, osprocessos de desenvolvimento local necessitam de articuladores entre essas diferentes lógicas,saberes e relações de poder.

Campo/capital

Um campo é um sistema específico de relações objetivas, que podem ser de aliança ou conflito, decompetição ou de cooperação. As posições que se ocupam são independentes dos sujeitos que asocupam em cada momento. Toda interação se desenvolve dentro de um campo específico e estádeterminada pela posição que ocupam os diferentes agentes sociais no sistema de relações específicas.

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Em cada campo existem diferentes bens que estão permanentemente em jogo: econômicos,culturais e sociais. São três tipos de capital. Todo campo é um mercado onde se produz e senegocia um capital específico. A discussão, sobre a qual não nos alongaremos neste trabalho, éacerca da dinâmica dos campos, as lutas por eles e mecanismos de reprodução. Em particular,qual é a forma em que se distribui o capital específico, quais são as estratégias de conservaçãodos capitais e, também, quais são as estratégias de subversão. Sempre, em toda sociedade, épreciso pagar um direito de entrada para chegar ao campo, já que existe uma cumplicidadeobjetiva comum entre todos os membros do campo, sejam ou não antagonistas.

No campo da construção do desenvolvimento local, é possível identificar estas relações, mas,sobretudo, é possível estabelecer esses acordos que permitam caminhar em direção ao bemcomum, o que não significa desconhecer � os atores não o desconhecem � as assimetrias depoder existentes.

O campo e o habitus são dois modos ou maneiras de existência do social. Ao campo pertencemas instituições e ao habitus, a ação individual. Não se excluem, já que a visão deve ser elaborada apartir da dupla existência do social: a história feita corpo, o habitus; e a história feita coisa, o campo.

Bourdieu define os campos sociais como espaços de jogo historicamente constituídos comsuas instituições específicas e suas leis de funcionamento próprias.

Os campos se apresentam como sistemas de posições e de relações entre posições. Trata-sede espaços estruturados de posições, ligadas a certo número de propriedades, que podem seranalisadas independentemente das características daqueles que as ocupam. Um campo se definedefinindo o que está em jogo e os interesses específicos do mesmo, que são irredutíveis aoscompromissos e aos interesses próprios de outros campos. A estrutura de um campo é um estadoda distribuição do capital especifico que está em jogo ali, num momento dado do tempo, levandoem conta as lutas anteriores e as estratégias. Sua estrutura é um estado das relações de forçaentre os agentes ou as instituições comprometidos no jogo. Constitui um campo de lutas destinadasa conservar ou a transformar esse campo de forças. Os agentes comprometidos nas lutas têm emcomum um certo número de interesses fundamentais, causas compartilhadas e aceitas. Os limitesde cada campo e suas relações com os demais campos se definem e se redefinem historicamente.

3. O local como dimensãode análise

Uma das primeiras perguntas que se fazem quando se fala de desenvolvimento local é sobre suasrelações e vínculos com a globalização. Em particular, por que e como falar de desenvolvimentolocal num contexto tão fortemente marcado pela globalização? Sobretudo, qual é o sentido e osconteúdos desta categoria conceitual, quando uma primeira leitura reflete um avassalamento dosâmbitos locais pelas dinâmicas globais?

Há várias repostas para esta pergunta, que foram compiladas por Arocena.8 Umas afirmam ocaráter determinante do global sobre o local e os processos de �desterritorialização�. Nesta ótica,o local é subordinado às dinâmicas globais. Sob este ponto de vista, o trabalho no nível local nãotem sentido, já que a globalização impede pensar em �chave� local.

8 AROCENA, José, 1999.

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Outros postulam o local como alternativa aos �males� da globalização. O local é visto assimcomo a única alternativa frente a uma análise da globalização que mostra exclusão, pobreza einjustiça. O desenvolvimento local é visto como uma política compensatória, como uma respostaàs dinâmicas globais. Nesta proposta, o local adquire sentido, mas num marco no qual não temdestino propositivo. Ao contrário: é uma resposta, uma reação a um estado de coisas.

Finalmente, a terceira resposta, embora minoritária, destaca a articulação local-global, dentrode uma compreensão complexa da sociedade contemporânea.

As duas primeiras respostas têm a virtude de serem coerentes e claras. Porém, do nossoponto de vista, são profundamente equivocadas. A terceira é mais complicada, contraditória, dedifícil compreensão, buscando articular categorias que aparecem como incompatíveis. Contudo,creio que é a única que dá conta plenamente do significado do desenvolvimento local. Trata-se daarticulação entre o local e o global, que faz a própria definição de desenvolvimento local.

O desenvolvimento local consiste em crescer a partir de um ponto de vista endógeno etambém obter recursos externos, exógenos (investimentos, recursos humanos, recursos econômicos),assim como deter a capacidade de controle do excedente que se gera no nível local. O desafiopassa, então, pela capacidade dos atores em utilizar os recursos que passam, e ficam, em seuâmbito territorial, para melhorar as condições de vida dos habitantes.

Trabalhar articulando estes nexos, estas pontes entre o local e o global levaram Alain Touraine aassinalar que �a sociedade necessita hoje de engenheiros de pontes e caminhos�. Certamente não sãoos engenheiros tradicionais, mas atores locais que pensam e atuam nesta lógica que mencionamos.

É neste sentido que tentamos uma primeira aproximação ao conceito de desenvolvi-mento local:

O desenvolvimento local surge como uma nova forma de olhar e de atuar a partir doterritório neste novo contexto de globalização. O desafio para as sociedades locais estácolocado em termos de inserirem-se de forma competitiva no global, capitalizando aomáximo suas capacidades locais e regionais, através das estratégias dos diferentesatores em jogo.

3.1 O território e �o local�

Os processos de desenvolvimento local transcorrem em um território específico. Por isso,quando falamos de desenvolvimento local, falamos de desenvolvimento de um território. Mas oterritório não é um mero espaço físico. Ele não deve ser visto como um lugar onde as coisasacontecem, mas sim como uma variável, uma construção social. O território é ao mesmo tempocondicionador e condicionado por e a partir das ações dos atores e das comunidades.

�O local� é um conceito relativo que responde a um estado da sociedade atual e pressupõeuma definição de ator social bem precisa. Situa-se ao mesmo tempo na afirmação do singular e dasregras estruturais. Para defini-lo, é necessário tomar distância, ao mesmo tempo, do isolamentoautárquico e do reducionismo globalizador.

Existem definições possíveis do �local� no nível de escala (em número de habitantes ouquilômetros quadrados); ou de sistema de interações com certa autonomia; ou de unidade político-administrativa. Mas para definir de forma precisa �o local�, não há outro caminho senão referi-loa sua noção correlativa: o global. Se algo se define como local é porque pertence a um global.

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Não se pode analisar um processo de desenvolvimento local sem se referi-lo à sociedadeglobal em que está inscrito. O global está presente em cada processo de desenvolvimento. Mas, oglobal, a análise das grandes determinações sistêmicas e estruturais, não esgota o conhecimentoda realidade. Portanto, no nível local se encontram aspectos que lhe são específicos e que não sãoo simples efeito da reprodução das determinações globais. Definir o local como uma noção rela-tiva permite evitar a armadilha do localismo. Mas é preciso ir mais além. Nem toda subdivisão doespaço nacional é uma sociedade local. Para que exista uma sociedade local devem dar-se condi-ções de dois níveis: o sócio-econômico e o cultural.

Para chamar uma sociedade de local, lhe pedimos uma condição sócio-econômica (a possibi-lidade de que os atores disponham e discutam a geração e o uso do excedente econômico aligerado) e uma condição cultural (sentirem-se pertencentes ao território, a identidade).

4. A discussão naAmérica Latina

A discussão na América Latina em relação a estes temas tem sido intensa. E neste debate não faltaramcríticos nem apologistas. Do nosso ponto de vista, é necessário tomar cuidado tanto com as eufo-rias localistas utópicas como com os mecanicismos inspirados em determinismos estruturais.

�O fato de que o tema desenvolvimento local esteja em evidência não significa quehaja uma compreensão unívoca em torno de seu sentido. Das discussões internacio-nais, se pode depreender uma expectativa de que com a reforma neoliberal do Estado� que supõe a redução da capacidade dos Estados nacionais em atender as demandassociais � se possa transferir, em parte ou no todo, uma agenda de responsabilidadespara os municípios.

Tal entendimento acaba por transferir aos governos locais a gestão do conflito social,originado a partir das demandas sociais insatisfeitas e alimentadas pela dinâmica eco-nômica e social de níveis mais abarcadores. Há aí um reconhecimento de que o processode globalização leva inexoravelmente a um aprofundamento da dualização da nossasociedade, com o crescimento da pobreza e da exclusão social, e que nada se podefazer nos diferentes níveis de governo para enfrentar a questão social.

Baseada na idéia da irreversibilidade dos efeitos do processo de redução da intervençãodo Estado nacional nos grandes processos econômicos e na produção de serviços públicos,ganhou força a idéia de que os governos locais devem assumir um comportamentocada vez mais de agentes de desenvolvimento econômico, preocupando-se centralmenteem garantir a competitividade do município dentro da dinâmica econômica �globalizada�.A partir desta perspectiva, eles perdem o papel regulador e de re-distribuidores dariqueza e da renda e se tornam incapazes de atuar no resgate da dívida social, naconstrução de cidades justas, democráticas e sustentáveis� (BAVA, Silvio Caccia, 2001).

O único caminho que pode dar conta destes processos sem cair em aproximações redutorasdo desenvolvimento local parece ser dirigir-se para uma compreensão complexa dos processos dedesenvolvimento que fale de paradoxo, de coexistência de contrários, de articulação.

Mais que nunca é preciso vincular estes processos de desenvolvimento local aos processos deglobalização. Vários autores destacaram a ameaça de uma �globalização desabitada�, caracteri-zada pelo achatamento dos mais vulneráveis, tanto como grupo social como a partir dos territórios.Há um mal-estar generalizado acompanhado pelo risco de ver a globalização como o mal absoluto,voltando aos discursos messiânicos, de defesa das identidades (característicos da globalização de

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princípios do século XX). Surgem dois discursos e duas posturas possíveis: a uniformização/homogeneidade versus a complexidade/articulação.

Do nosso ponto de vista, o desafio consiste em construir a unidade na diferença. A vitalidadedas sociedades se expressa na emergência do singular diverso e não nas tendências uniformizadoras.

No caso latino-americano, concentrar a atenção no local é uma via para superar as aproxi-mações demasiado globais e mecanicistas e tratar de construir a partir de cada singularidade,considerando as determinações globais.

A época das macroteorias explicativas dos processos de desenvolvimento está definitivamen-te encerrada. Em seu lugar se buscam respostas adaptadas, pertinentes, que partem muito maisdos atores que dos planejadores e especialistas em desenvolvimento. Os teóricos do �planejamentoterritorial� também fracassaram, assim como muitos processos que sob a definição de �desenvol-vimento local� levaram adiante processos de ordenamento territorial.

Um objetivo de fundo é a geração de políticas nacionais de desenvolvimento local. Estas sedão quando o nível central é consciente da importância da diferença nos processos de desenvol-vimento, gerando reformas descentralizadoras e criando os marcos legais propícios para o desen-volvimento das diferenças.

Certamente estes processos geram incerteza; passa a se expressar uma cultura do singular,do múltiplo, do diverso, do movimento onde antes reinava o universal, o único, o uniforme, aordem. Por outro lado, enfrentamos a pergunta: as sociedades locais têm capacidades paragerar iniciativas próprias? Há um certo ceticismo, relacionado à fragilidade que se lhes atribui.O centralismo minou a capacidade de iniciativa das sociedades locais.

É relevante também destacar as diferentes dimensões do desenvolvimento. Esta visão multi-dimensional concebe o desenvolvimento de um território em relação a quatro dimensões básicas:

� Econômica: vinculada à criação, acumulação e distribuição de riqueza;

� Social e cultural: referente à qualidade de vida, à eqüidade e à integração social;

� Ambiental: referente aos recursos naturais e à sustentabilidade dos modelos adotados nomédio e no longo prazos;

� Política: vinculada à governabilidade do território e à definição de um projeto coletivoespecífico, autônomo e sustentado nos próprios atores locais.

Assim como quando nos referimos à descentralização falamos de �reinvenção da política�,no nível de desenvolvimento local devemos falar da �reinvenção do território�.9

Este desafio se concebe em três dimensões:� O conhecimento � apontando a renovação dos paradigmas e as disciplinas científicas

envolvidas nos processos de desenvolvimento local.

� A política � com o objetivo da construção do projeto coletivo, que gere políticas numalógica horizontal e territorial (redes) mais que na tradicional lógica vertical e setorial(centralista).

� A gestão � encarregando-se da necessária adequação institucional dos órgãos degoverno local.

9 BERVEJILLO, Federico, 1999.

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Outros elementos especialmente relevantes a considerar são a capacidade de visão estratégicados atores envolvidos, sua capacidade de iniciativa e a existência de um processo de identidadeque atue potencializando o processo geral e não o impedindo, como nos processos determinadospor uma forte presença de �identidade nostálgica�.

Em suma, desenvolvimento local pressupõe:� visão estratégica de um território;

� atores com capacidade de iniciativa;

� identidade cultural como alavanca do desenvolvimento.

Algumas das características específicas do desenvolvimento local são:� trata-se de um enfoque multidimensional, onde coexistem no mínimo as dimensões

econômica, ambiental, cultural e política;

� é um processo orientado para a cooperação e negociação entre atores;

� é um processo que requer atores e agentes de desenvolvimento.

5. Como abordar odesenvolvimento local

Do ponto de vista metodológico, um dos principais desafios do desenvolvimento local é definirsuas principais categorias de análise. Partindo da experiência do Claeh, é necessário identificartrês variáveis básicas:10

� Modelo de desenvolvimento: as diferentes formas que a estrutura sócio-econômica localassumiu nas últimas décadas. Quão integral foi o processo.

� Sistema de atores: quais são as relações e vínculos entre o subsistema governamental, oempresarial e o socioterritorial.

� Identidade cultural: identificar as características de identidade que têm incidência nos pro-cessos de desenvolvimento.

Não nos estenderemos nestes aspectos que beiram o metodológico, mas gostaria de destacarpelo menos os principais conceitos que configuram cada uma destas variáveis.

5.1. O modelo de desenvolvimento

A análise do �modelo de desenvolvimento� se refere às diferentes formas que a estruturasócio-econômica local foi adquirindo ao longo das últimas décadas no território estudado.Nesse sentido, é relevante a reconstrução do processo, assim como das lógicas que pautaram asgrandes transformações.

Trata-se, antes de tudo, de identificar o grau de integralidade do processo. Assim, estamosdiante de modelos de desenvolvimento integral; modelos de desenvolvimento de incipiente articula-ção; modelos de desenvolvimento desarticulado dual; modelos de desenvolvimento desarticulado.

10 AROCENA, José, 1995.

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Desse modo, é evidente que existem territórios �com projeto� (poucos), sem projeto, ou comprojetos truncados.

5.2. A identidade como alavanca de desenvolvimento

A identidade reúne o passado, o presente e o projeto numa única realidade interiorizadapelo conjunto dos membros da sociedade. Desenvolve-se numa realidade cultural na qual sevalorizam a inovação, o trabalho e a produção, marcando a diferença e a especificidade parasituar-se em relação a outras diferenças e especificidades. Consolida-se, então, um processo quemantém grande fidelidade ao passado, possui capacidade de resposta ao novo, permite superaras dificuldades e cujos membros podem constituir-se numa minoria articulada no meio nacionale transnacional.

A identidade nostálgica reconhece o passado com ar nostálgico, desejando uma forma deconvivência social e de desenvolvimento econômico aparentemente muito superior às atuais eimpedindo de se seguir adiante. Como representação coletiva, o futuro se desenha como umavolta ao passado: ressuscitar essa ou aquela empresa, recuperar uma dinâmica setorial, voltar aser um pequeno centro financeiro. O campo das representações mentais está totalmente invadidopelo que se teve e se perdeu e não é possível imaginar alternativas. Esta identidade é uma fontepermanente de geração de obstáculos. Nestes casos, trabalhar no nível das representações é umaprioridade absoluta.

Falamos da extrema fragilidade da identidade local quando não se criam processos queautorizem a falar de identidade local ou quando o tecido social está tão gasto que os referenciaisde identidade desapareceram. Trata-se de grupos humanos que habitam um território, mas quenão poderíamos considerar sociedades locais. Isto pode obedecer a duas situações: crise ou faltade identidade.

5.3. O sistema de atores

A análise da forma e da dinâmica que toma o sistema local de atores é fundamental. Masantes gostaria de dar uma primeira definição do que se entende por �ator local�.

Podemos dar uma primeira definição de acordo com a cena em que atua:

�Ator local é todo aquele indivíduo, grupo ou organização, cuja ação se desenvolvedentro dos limites da sociedade local�.

Também podemos defini-lo em função do sentido de sua ação:

�Ator local é aquele agente que no campo político, econômico, social e cultural éportador de propostas que tendem a capitalizar melhor as potencialidades locais�.

Esta segunda definição liga as noções de �ator local� e de �desenvolvimento�, levando-nospara o ator como agente de desenvolvimento local. É a definição pela qual optamos, é maisrestritiva, mas exige do ator-agente determinadas características.

Entre os atores locais que atuam em um território, encontramos:

� O ator político-administrativo, constituído pelo governo local, pelas agências do governonacional, pelas empresas públicas.

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� O ator empresarial, constituído pela microempresa e o artesão, a pequena e média empresa,a grande empresa.

� O ator socioterritorial: associações de bairro, organizações não-governamentais, igrejas etc.

5.4. Os agentes de desenvolvimento local

Outro fator crucial nesta discussão é o tema dos agentes do desenvolvimento local. Do nossoponto de vista, nem todos os atores presentes num território podem ser considerados atores-agentes de desenvolvimento local num sentido propositivo.

O Claeh identificou o agente de desenvolvimento local � chave neste processo � com asseguintes características:

Papel do agente de desenvolvimento local (ADL)

O agente de desenvolvimento local (ADL), então, é preparado para desempenhar os papéis que sedescreveram, que são chaves para o desenvolvimento local. É um facilitador dos processos, basi-camente um profissional da gestão pró-ativa, capaz de antecipar-se aos acontecimentos, trabalharantevendo cenários, articulando atores e mediando entre: os recursos privados e estatais e apopulação beneficiária; os discursos oficiais e os dos cidadãos; as soluções propostas pela políticapública (ou vazios desta) e as iniciativas dos grupos sociais; os interesses daqueles que concedemos recursos e os dos destinatários; o poder constituído e a base constituinte. O agente de desenvolvi-mento local é um articulador global que media entre relações de poder desiguais num processode articulação-tensão-rearticulação. Este processo é o que valoriza o potencial dos atores parareestruturar seus discursos, suas práticas, seu poder, seus recursos em função do bem comum,sem hegemonizar nem ser pura auto-referência, sem medo de enfrentar o diálogo, permitindouma saída criativa para os conflitos e a geração e regeneração do tecido social.

Fernando Barreiro denomina três funções-chave do agente de desenvolvimento local: inte-gração (articulação local-global); mediação (ponto de apoio, gerar condições para o diálogo);inovação e mobilização (de todos os recursos locais). Tanto indivíduos como grupos de indivíduosou agências podem ser agentes de desenvolvimento local

Nem todos os processos são iguais. Interessa-nos destacar especialmente alguns elementos:Características das elites dirigentes: um tema importante passa pela capacidade de gerar um

grupo dirigente fortemente legitimado e com possibilidades reais de conduzir o processo e aelaboração do projeto coletivo através do estabelecimento de vínculos com os quadros técnicos.

Neste sentido é comum encontrar grupos dirigentes localmente desarticulados, elites locaisfragilmente constituídas.

Um fator relevante é a forma da interação com atores extralocais. Esta pode inscrever-senum sistema regulado pela negociação ou em um sistema regulado pela dependência.

Portanto, a capacidade de elaborar respostas diferenciadas é um fator absolutamente crucialdos atores locais. Podemos identificar sociedades e sistemas de atores com alta capacidade deresposta diferenciada em processo de construção de respostas diferenciadas no plano do discursoou ausência de referências na diferenciação da resposta. Os processos de �empoderamento� possuemrelação direta com a capacidade das sociedades locais, e seus atores, de elaborar respostas diferen-ciadas em relação a seus territórios.

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5.5. As lógicas de ação local

É evidente que no nível dos atores existem lógicas de ação distintas, racionalidades diferentese, naturalmente, diferentes relações de poder.

Nossos países vêm de uma tradição vertical-centralista que determina a forma de sentir e deatuar de boa parte dos atores. Pelo contrário, os processos de desenvolvimento local pressupõemarticulação, negociação e interação entre atores.

O ator político-administrativo pode operar através de uma lógica centralizada setorial-vertical(o mais freqüente em nossos países) ou descentralizada territorial-horizontal. Esta última formade ação, que implica a ruptura da velha ordem de elaboração e gestão de políticas, pressupõetambém a existência de redes locais-regionais, com alguns atores-chave que operam comoarticuladores-nexos dessas redes. Mas, em todo caso, pressupõe também processos de empo-deramento, porque a mudança de lógica implica igualemente uma mudança nas relações depoder vigentes.

No nível dos atores socioterritoriais é possível também identificar diferentes lógicas:

A lógica reivindicativa

Trata-se de atores que atuam basicamente na defesa da qualidade de vida. A mobilização perma-nente como o ideal de expressão popular � e essa seria, para aqueles que atuam nesta lógica, averdadeira participação. Prioriza-se a estratégia de pressão e se desdenha da estratégia de gestão.Os conflitos com o setor político são freqüentes, por questionamento de sua legitimidade.

A lógica do voluntariado

Baseia-se no serviço prestado à comunidade sem receber uma remuneração em troca. Não se propõe,como a lógica anterior, a organizar ou gerar um movimento, mas sim satisfazer uma necessidade,por isso não dá respostas globais. Esta é a lógica de organizações de serviço (laicas ou religiosas).O voluntariado está desempenhando um papel crescente em muitas áreas diferentes e é altamentereconhecido por parte da sociedade.

A lógica profissional

Trata-se de trabalhadores sociais, educadores, docentes, dirigentes religiosos, juristas, psicólogos,sociólogos, antropólogos, agrônomos, veterinários, arquitetos, médicos, profissionais da áreamédica e da comunicação, ou ainda organizações não-governamentais que têm em comum aintervenção a partir de uma competência técnica determinada em uma área da atuação social.Todos eles vivem de sua atividade, recebendo uma remuneração em troca da tarefa que realizam.

Um tema crucial é se esse ator reside na área local ou fora dela. Se são locais, terminamcertamente enraizados nos processos locais. Assim, no profissional residente há uma dupladimensão: a remunerada e a participação em instâncias coletivas. Em contrapartida, se são defora, a lógica é de intervenção externa.

A lógica profissional parte de objetivos e técnicas pré-definidos. Atualmente se debate alegitimidade deste tipo de intervenção. A crítica principal é que se parte de alguém que �sabe� e�leva� esse conhecimento. A defesa é que esta metodologia não pressupõe uma substituição dopapel protagonista dos atores locais. O profissional é mais um catalisador, um facilitador, que umiluminado. O papel das ONGs tem sido e é importante.

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A lógica política

Como destacamos, há uma mudança na demanda para este tipo de ator: caminha de correia detransmissão de processos nacionais para o papel de canalizador da demanda social. Enfim, o atorpolítico local está passando da lógica de controle para a lógica de co-responsabilidade em inicia-tivas e projetos.

Em resumo, a ação local exige a superação das lógicas que atravessam os diferentes siste-mas: equilibrar a lógica vertical-setorial com a horizontal-territorial, o estabelecimento de redesque fortaleçam a sociedade civil, a articulação institucional público-privada.

Contudo, existem mecanismos muito fortes de defesa do centralismo. Desconfia-se da capa-cidade dos atores locais, argumentando-se, assim, a necessidade de um �centro� que assegure aunidade nacional e a eqüidade social.

O sistema empresarial

Notoriamente, as transformações no modo de acumulação são importantes. Fatores como a des-concentração de atividades empresariais, a flexibilidade, a articulação com o meio, a produçãodiferenciada, a qualidade, a qualificação dos recursos humanos são elementos que conduzem agrandes mudanças na forma que o setor empresarial vê, e necessita, do local. Trata-se de fatoresque favorecem o caráter de �ator local� da empresa, já que a competitividade vem tendo crescen-temente uma dimensão territorial muito forte. Além do mais, dentro dos fatores de competitivi-dade sistêmica, a competitividade territorial é um dos mais relevantes.

Com a pequena empresa é mais factível chegar a um acordo localmente, mas também hásérias dificuldades de articulação, de capacidade de visão estratégica.

A racionalidade deste sistema se dá ao mesmo tempo pelas lógicas dos atores e pelas exigên-cias dos processos de desenvolvimento.

5.6 Identidade

Retomaremos, finalmente, o conceito de identidade, que nos parece essencial para a açãoneste nível. A identidade local se constrói sobre duas dimensões: a história e o território.

A história é a memória viva de um grupo humano que se reconhece num passado e repre-senta continuidade e ruptura entre o passado, o presente e o projeto.

O território é o espaço significativo para o grupo que o habita, que gera uma relação desen-volvida em um nível profundo da consciência. Representa permanência e ausência, continuidadee ruptura.

Identidade e desenvolvimento

Aproximando-nos de um conceito de identidade desde uma perspectiva de desenvolvimento,podemos falar de um fio condutor entre passado, presente e projeto através de um processo deconstrução de identidade. Este processo se produz em um sistema de relações (a dimensão derelação com outros é muito relevante); se apóia na idéia de unidade de si mesmo através de certolapso de tempo (permanência); se apóia também na idéia de diferença (um é um si mesmo e nãooutro); permite a existência de limites (como fronteiras, não como cercas) que permitem inter-câmbios seletivos com outros; e se afirma na capacidade de rememorar o que se viveu e o que seé, e adequar-se a novos contextos, gerando a capacidade de reconstruir a identidade.

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A identidade em sujeitos coletivos implica ter algo que se compartilhe com os que estãodentro e que nos diferencie dos que estão fora, numa relação de continuidade e ruptura. Há relaçãoentre a dimensão de identidade e os processos de desenvolvimento local, enquanto a primeira éum componente-chave para pensar e para gerir o desenvolvimento local. Esta dimensão não foisuficientemente trabalhada, apesar de sua relevância. A evidência empírica reunida nos estudosde caso do Claeh lança algumas linhas de trabalho para seguir explorando e complementando:

� Nem todo processo de consolidação de identidade é uma �alavanca de desenvolvimento�;também pode operar como freio ou obstáculo ao desenvolvimento.

� A fragilidade de identidade é uma desvantagem em termos de desenvolvimento.

� Os processos de formação-capacitação para o desenvolvimento local devem abordar o temada mudança cultural e o fortalecimento da identidade. Nos aspectos culturais e na base deidentidade que tenha uma sociedade local, existem recursos-chave para impulsionar e orientaro desenvolvimento sócio-econômico (reação diante das crises, diversidade de respostas).

� A identidade é uma combinação de fatores similares que não se repetem.

Uma das grandes dificuldades que afronta o desenvolvimento é o nível das mentalidades. Amudança põe em questão os costumes, os hábitos adquiridos, os modelos tradicionais deconduta. O risco e o fracasso são comuns.

Em qualquer caso, não é possível pensar em processos de desenvolvimento local sem consi-derar a dimensão de identidade como chave, como condição do empoderamento.

5.7. O poder

Aqui vale destacar alguns dos elementos que Michel Foucault assinala em relação ao temado poder.

Este autor marca importantes diferenças em relação a concepções mais �tradicionais� oureducionistas do poder como sendo exercido exclusivamente a partir dos aparatos estatais. Pelocontrário, adota uma noção de poder que não faz referência exclusiva ao plano estatal, mas seencarrega da multiplicidade de poderes que se exercem na esfera social, os quais se podem definircomo poder social.

Desta forma, fala do subpoder como �uma trama de poder microscópico, capilar�, que nãoé o poder político nem os aparatos de Estado nem o de uma classe privilegiada, mas o conjuntode pequenos poderes e instituições situadas num nível mais baixo. Nesse sentido, não existe umpoder único, pois na sociedade há múltiplas relações de autoridade situadas em diferentes níveis,apoiando-se mutuamente e manifestando-se de maneira sutil. Um dos grandes problemas quese devem enfrentar no momento das mudanças é, precisamente, que não persistam as atuaisrelações de poder.

Para o autor da Microfísica do poder, a análise deste fenômeno só se efetuou a partir de duasrelações, a contratual � de caráter jurídico, baseada na legitimidade ou ilegitimidade do poder �e a dominação � de caráter repressivo, apresentada em termos de luta-submissão. Não se podereduzir o problema do poder ao da soberania, já que entre homem e mulher, aluno e professor eno interior de uma família existem relações de autoridade que não são projeção direta do podersoberano, mas muito mais condicionantes que possibilitam o funcionamento desse poder, quesão o substrato sobre o qual se assegura.

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O poder se constrói e funciona a partir de outros poderes, dos efeitos destes, independentesdo processo econômico. As relações de poder se encontram estreitamente ligadas às familiares,sexuais, produtivas; intimamente entrelaçadas e desempenhando um papel de condicionante econdicionado. Na análise do fenômeno do poder não se deve partir do centro e descer, mas simrealizar uma análise ascendente.

Em Os intelectuais e o poder, Foucault coloca em questão o papel dos intelectuais, quedescobriram que as massas não têm necessidade deles para conhecer: elas sabem muito mais.Porém, existe um sistema de dominação que obstaculiza, proíbe, invalida esse discurso e o conhe-cimento. O poder que não se encontra só nas instâncias superiores de censura, mas em toda asociedade. A idéia de que os intelectuais são os agentes da �consciência� e do discurso formaparte desse sistema de poder. O papel do intelectual não residiria em situar-se adiante das massas,mas em lutar contra as formas de poder ali onde realiza seu trabalho, no terreno do �saber�, da�verdade�, da �consciência�, do �discurso�; o papel do intelectual consistiria assim em elabo-rar o mapa e as apostas sobre o terreno onde se vai desenvolver a batalha, e não em dizer comolevá-la a cabo.

Como bem disse Foucault, a estrutura exerce por si mesma um poder de dominação que nãoé necessariamente ativo e com uso de força, mas que na maioria dos casos (e é aí que reside seumaior perigo) é passivo e se caracteriza por manifestar-se em forma de consenso entre os indivíduos(aceitação das normas). A origem está no conjunto de relações de poder que se estabelecem emcada sociedade em particular. Com esta característica podemos ver que seu estruturalismo, dife-rentemente do marxista ou do durkheimiano, antes de ser universal é particular a cada objetoespecífico de análise.

Finalmente, outra característica de sua obra que merece ser ressaltada é a constante evolução desua estrutura que avança junto com a sociedade, melhorando seus mecanismos de dominação.

Desse modo, abandona a antiga noção de que o poder se relaciona claramente com asnormas jurídicas que o fazem legítimo ou ilegítimo e centra sua atenção nas noções de estratégias,mecanismos e de relações de força como suas formas de manifestação.

Com base no que já dissemos, podemos deduzir que para analisar as relações de poder sedeve ter em conta:

1. O sistema de diferenciações econômicas, jurídicas, de status, culturais etc., já quetoda relação de poder implica diferenciações que surgem como condições e efeitos aomesmo tempo.

2. O tipo de objetivos: o que se busca.

3. As modalidades instrumentais: desde o uso da palavra até a ameaça e o uso da violência.

4. As formas de institucionalização: os diferentes tipos de dispositivos.

5. Os graus de racionalização, já que as relações de poder toleram um amplo campo depossibilidades, no qual se tem em conta �a eficácia dos instrumentos� em relação aoobjetivo.

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6. A título de conclusão

No marco deste documento, considerado explicitamente como sujeito a discussão e reelaboração,gostaria finalmente de deixar alguns elementos para discussão. Das experiências analisadas peloClaeh, surgem algumas conclusões para compartilhar:

O desenvolvimento local como idéia mestra

A maior parte das experiências vinculadas ao empoderamento ou à abordagem baseada em direitosreconhecem uma dimensão territorial. A maior parte das mesmas, embora não sejam experiênciasde desenvolvimento local num sentido �estrito�, apontam para essa forma de ver a realidade.

Não nos encontramos necessariamente diante de processos de geração de riqueza ou decontrole do excedente econômico num território, mas de geração de massa crítica e de definiçãode plataformas para projetos de desenvolvimento local, já que boa parte das experiências que sepossa relatar são processos orientados para ou em perspectiva de desenvolvimento local.

O desenvolvimento local como estratégia de construção de cidadania

A construção de cidadania � em sua diversidade de direitos e deveres � é um processo social e culturalcomplexo que implica um forte trabalho no tecido social para o empoderamento das pessoas afim de reconhecer suas necessidades econômicas, sociais e culturais e buscar soluções para estas.

Assim, uma meta-chave nestes processos de desenvolvimento local é que as pessoas e oscoletivos sejam capazes de moldar seus próprios processos e projetos de desenvolvimento e quesejam parte ativa neles. A partir das experiências analisadas, evidencia-se a necessária inserçãolaboral para a construção de cidadania; o trabalho como chave para integração social, criação decidadania e mobilidade social e espacial.

Não basta somente a declaração e o reconhecimento dos direitos de cidadania, é necessáriocriar os mecanismos de exigência e os espaços de proposição, diante dos quais a sociedade toda� não só o governo � se comprometa para a garantia deste direito básico. É o caminho para oempoderamento.

A participação é compartilhada como valor e meio para a governança, para a apropiação dogoverno pela sociedade local, sendo que um dos seus nós críticos é a sua relação com a tomadade decisão e com o planejamento. Porque um dos objetivos últimos do desenvolvimento é darsentido e significação à participação na sociedade.

Atores e agentes do desenvolvimento local

Entendendo a construção da cidadania como uma dinâmica de gerações � não uma norma �,cabe perguntar-nos quem é o ator que deve fortalecê-la; como iniciar os processos de consti-tuição de atores; e qual é o sentido último da ação. Ganham força a questão dos deveres sociaise, em particular, a relativa ao papel que cabe a outros agentes diferentes da burocracia estatal,neste processo de construção de cidadania. Quais são os pontos fortes e fracos da sociedade civil.

Reforma do Estado

A reforma do estado como condição necessária, mas não suficiente. Nos processos de descentrali-zação, o espaço local aparece como propício para a execução de programas sociais num trabalhosimultâneo de participação e prestação de serviços. Neste novo papel dos municípios, os proces-

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sos de tomada de decisões, a superação do político como pragmático, ganham vital importância.E mais que a busca de resultados ou de benefícios, a geração de espaços de conversação, devisibilidade de experiências e a incorporação do público para além do governamental.

O papel do Estado segue sendo insubstituível na promoção da eqüidade, mas ao mesmotempo é imperioso avançar no reconhecimento da constituição de práticas sociais autônomas nasociedade civil.

Sociedade civil

A sociedade civil em seus diversos modos de organização apresenta graus de associativismo rela-tivamente densos, de alto potencial mobilizador em nossos territórios latino-americanos, ao mes-mo tempo que a grande fragmentação e atomização desta sementes de ação independenteslimita sua possível articulação sob uma matriz que gere projetos coletivos.

Identidade

A identidade aparece como uma possível ferramenta de entrada em suas múltiplas dimensões:simbólica, de patrimônio físico, complexa, que apela para a memória como capital na busca destaarticulação.

Luzes e sombras da interação entre atores

Ao incorporar redes horizontais-territoriais e se organizar em função destas, a descentralizaçãomuda radicalmente a forma de produção das políticas públicas. Assim, a governabilidade éalcançada se o Estado é capaz de articular a participação destes atores na formulação e imple-mentação de políticas.

É necessário identificar segmentos de organização com a idéia do interesse comum (de assumircomo próprios os interesses do público) e fortalecer as redes sociais em sua diversidade parapotencializar a negociação, já que as redes homogêneas podem não colaborar para sair de situa-ções de exclusão ou de segregação social.

O território como recurso

O território como variável pertinente, sendo a mínima unidade com sentido e capacidade deiniciativa para deslanchar processos de desenvolvimento e como variável complexa em sua poten-cialidade de operar a partir de diferentes dimensões ou escalas; e em sua necessária articulaçãocom a região, não como conceito geográfico ou virtual, mas como desafio político, resultado dosatores num projeto estratégico próprio.

O território, a partir de sua diversidade, no sentido do múltiplo pertencimento territorial deque desfruta o cidadão (como habitante, eleitor, ou trabalhador), apresenta dificuldades paramanejar a diversidade e para inovar nos vínculos necessários com outros territórios.

Nos níveis de interação local-municipal-nacional e diante do desafio da intersetorialidade nocampo da articulação e das alianças, resgatamos o valor específico do local para preparar amotricidade fina, o valor do central para desenvolver a motricidade grossa e a potencialidadedo local para alcançar o nível de sincronia entre as duas modalidades para a organização depolíticas públicas.

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Diversidade metodológica, sustentabilidade dos processos, necessidadede espaços de reflexão, sistematização e avaliação

Desde as experiências de planejamento e monitoramento mais tradicionais até a criatividade nasferramentas de trabalho que utilizam as histórias de vida como método de aproximação e diag-nóstico da realidade, mostra-se o rico leque metodológico possível nestes processos.

A consciência � como agente � da fragilidade dos processos de desenvolvimento local, suasuscetibilidade a processos externos e internos. A sustentabilidade dos processos em função daformação de agentes de desenvolvimento local, de lideranças diferentes e do questionamentosobre o desenvolvimento local e o empoderamento: por onde começar. A necessidade de umtrabalho conjunto, paralelo, de fortalecimento dos atores locais e mais o reconhecimento dasantenas locais de ONGs nacionais como atores territoriais. A importância do fator tempo para anecessária compreensão e prosseguimento dos processos e dos âmbitos de análise e reflexãoacerca dos fatores detonantes ou iniciadores de processos, suas marcas como também os possíveisfatores comuns que surgem das sistematizações. As experiências apresentadas são um mostruáriointeressante que nos aporta insumos para capitalizar nos processos em que entramos.

BIBLIOGRAFÍA

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O caminho do empoderamento:articulando as noções dedesenvolvimento, pobrezae empoderamento

Marta Antunes1

Neste ensaio é apresentada uma articulação teórica das noções de desenvolvi-mento, pobreza e empoderamento, partindo das abordagens de desenvolvimento como liberdade,de Amartya Sen, e de rural livelihoods, de Robert Chambers.

Este balanço teórico tem como fim contribuir para a reflexão em curso na ActionAid Brasilacerca de sua abordagem estratégica, que coloca o empoderamento como principal meio decombate à pobreza.

Para esta discussão, tomaremos como base uma experiência de pesquisa em andamento2

sobre duas ONGs � Assema3 e AS-PTA4 �, parceiras da ActionAid Brasil no Nordeste brasileiro.Como salientamos, o objetivo deste ensaio não é apresentar nem discutir essas duas

experiências, mas contribuir com um modelo analítico que articule desenvolvimento, pobreza eempoderamento. Para tal, começaremos por apresentar um balanço teórico das noções de desen-volvimento, pobreza e empoderamento.

Em seguida, apresentaremos a abordagem de rural livelihoods, de Chambers, na forma comoesta foi aplicada por Bebbington (1997 e 1999) à análise de pobreza e viabilidade dos camponesesda região andina da América Latina. Esta última ajuda a colocar as pessoas, famílias e comunidadesno centro da discussão de pobreza, enfocando nas estratégias que as mesmas estão empreendendopara superar sua condição de pobreza, acessando a recursos e (re)construindo o acesso à sociedadecivil, ao Estado e ao mercado.

Ao falar na relação entre pessoas, famílias e comunidades com o Estado, com a sociedadecivil e dentro da própria família e comunidade, é necessário entrar na discussão de accountabilitye participação, o que será realizado em seguida. No final, serão apresentadas nossas contribui-ções para a reflexão em curso na ActionAid Brasil.

1 Economista e mestranda do CPDA/UFRRJ.

2 A reflexão apresentada neste ensaio tem a contribuição das entrevistas realizadas nas áreas de assentamento de atuação daAssema com técnicos desta organização e de suas organizações parceiras de base, assim como de lideranças locais, no âmbitoda pesquisa Cooperação Internacional, ONGs e Superação das Pobrezas no Nordeste Brasileiro: O Caminho doEmpoderamento. Tem também a contribuição das discussões realizadas com a equipe da AS-PTA Paraíba e com seus parceiroslocais, no âmbito do diagnóstico em curso sobre os caminhos da inclusão dos mais pobres.

3 Assema � Associação em Áreas de Assentamento do Maranhão.

4 AS-PTA Paraíba � Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa.

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1. Desenvolvimento alternativo:as noções de desenvolvimento, pobrezae empoderamento

Para entender melhor os conceitos e noções a serem utilizados na discussão, apresentamos ocontexto em que os mesmos surgiram e evoluíram, ou seja, os debates sobre a �ascensão equeda� da economia do desenvolvimento (Hirschman, 1986).5

Durante a �ascensão� da economia do desenvolvimento, vários teóricos defendiam o desen-volvimento como crescimento e progresso econômico.6 Segundo Hirschman (1986), a teoria docrescimento, embora orientada para a reconstrução das economias européias, a partir dos anos50 começa a ser aplicada nos países em desenvolvimento. De acordo com Maluf (1997), estaexerceu forte influência na fundamentação de diversos diagnósticos da realidade latino-americanado pós-guerra, inclusive, e principalmente, os da Cepal, que defendia a industrialização como oparadigma do crescimento econômico. Em relação à agricultura, era necessária a sua modernização,para que esta cumprisse suas funções no processo de industrialização como substituição deimportações, o que levou ao favorecimento da agricultura patronal e à expulsão prematura demão-de-obra do campo para a cidade.7

Os resultados dessas teses estão aí � o crescimento econômico não originou o desenvolvi-mento dos países latino-americanos e a pobreza mantém-se em nível elevado nestes países �e levaram ao início da �queda� da disciplina.

Segundo Hirschman (1986), quando se revelou que as medidas destinadas a favorecer ocrescimento econômico estiveram freqüentemente na origem de uma série de eventos que setraduziram em graves regressões nos domínios social, político (ciclo de ditaduras latino-americanas)e cultural, a tranqüila segurança que animava a economia do desenvolvimento foi abalada e estacomeça a duvidar de si mesma.

Em 1970, Dudley Seer anuncia o destronar do PIB per capita como objetivo exclusivo dodesenvolvimento. Em finais dos anos 1980, Sen (1988) reivindica que é necessário que se recusea visão do desenvolvimento econômico como mero crescimento econômico, defendendo queexistem muitas outras variáveis que também influenciam as condições de vida, cujo papel oconceito de desenvolvimento não pode ignorar.

Segundo Stewart (1995), em muitos países o crescimento da renda per capita foi acom-panhado por elevados níveis de pobreza, com aumento dos mesmos, e por um problema cres-cente de desemprego. A distribuição da renda não era eqüitativa e tornou-se ainda mais desigual.Embora a esperança de vida e a educação tenham melhorado em termos médios significativa-mente, alguns países com crescimento acelerado (ex.: Paquistão e Brasil) tiveram fracas notasneste tema, enquanto países de baixa renda alcançaram bons níveis em termos de indicadoreshumanos (ex.: Sri Lanka).

5 Nosso objetivo neste ponto não é esgotar a discussão acerca da �ascensão e queda� da economia do desenvolvimento, massim fazer uma breve apresentação do contexto em que surgiu a abordagem do desenvolvimento alternativo.

6 Segundo Leys (1996), a teoria de desenvolvimento era na sua origem apenas uma teoria acerca da melhor forma para colôniase ex-colônias acelerarem o crescimento econômico nacional no ambiente internacional do pós-guerra.

7 Ver Armani (1998: 28/9), Binswanger (1995: 2/5-11/13-5), Throsby (1986: 23-6), World Bank (1995).

� O CAMINHO DO EMPODERAMENTO: ARTICULANDO AS NOÇÕES DE DESENVOLVIMENTO, POBREZA E EMPODERAMENTO �

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Surge então a questão: O que fazer? Que origina várias outras questões.

� É o fim da economia do desenvolvimento, que se fragmentou, caminhou para a interdiscipli-naridade?

� Há que negar a possibilidade de domesticar o processo de desenvolvimento imanente, ouseja, negar a prática de desenvolvimento intencional, quer pelo Estado, quer pela sociedadecivil � defesa da era pós-desenvolvimento8 e do desenvolvimento livre de tutela?9

� Deve-se insistir no crescimento econômico acompanhado das políticas compensatórias �dasevidentes mazelas sociais e ambientais geradas pelos padrões de crescimento que vigoramaté aos dias atuais�? (Maluf, 2000: 55)10 Deixar ao Estado a mera função de regular omercado e compensar os excluídos?

� Optar por políticas de desenvolvimento alternativo?11

É, então, neste contexto de incerteza quanto ao futuro da economia do desenvolvimentoque surge a abordagem de desenvolvimento alternativo, da qual o empoderamento é umconceito-chave. Este modelo tem como reivindicações políticas-chave a integração política (demo-cracia participativa), a integração econômica (crescimento econômico adequado), a integraçãosocial (igualdade de gênero) e a integração futura (sustentabilidade).

Os autores do desenvolvimento alternativo defendem os direitos humanos universais e osdireitos particulares dos cidadãos em determinadas comunidades políticas, especialmente os di-reitos das pessoas até então sem voz, os pobres sem poder, que constituem a maioria. O modelode desenvolvimento alternativo envolve um processo de empoderamento cujo objetivo a longoprazo é reequilibrar a estrutura de poder na sociedade, tornando a ação do Estado mais sujeita àprestação de contas, aumentando os poderes da sociedade civil na gestão de seus próprios assun-tos e tornando o mercado mais responsável.12 Um desenvolvimento alternativo consiste na prima-zia da política para proteger os interesses do povo, especialmente dos setores desempoderados,das mulheres e das gerações futuras assentes no espaço de vida da localidade, região e nação(Friedmann, 1996, 33).

Embora um desenvolvimento alternativo seja inicialmente baseado em localidades particulares,seu objetivo a longo prazo é transformar a totalidade da sociedade através da ação política aosníveis nacional e internacional. Sem este salto qualitativo do local para o global, �o desenvolvi-mento alternativo continuará encapsulado dentro de um sistema de poder altamente restritivo,incapaz de progredir em direção ao genuíno desenvolvimento que procura� (Friedmann, 1996, 33).

O desenvolvimento alternativo tem como objetivo procurar uma mudança nas estratégiasnacionais existentes através de uma política de democracia participativa, de crescimento econô-mico apropriado, de igualdade de gêneros e de sustentabilidade ou eqüidade entre gerações.

8 Sobre o enfoque pós-moderno ver Maluf (2000: 65/6).

9 Cowen e Shenton (1996), citados por Maluf (2000: 68/70).

10 Para crítica à combinação crescimento econômico com políticas sociais compensatórias ver Maluf (2000: 60/1).

11 Pieterse (1998), citado por Maluf (2000: 68/9), critica o desenvolvimento alternativo por considerá-lo um campo fragmentadoem termos teóricos e pela perda de seu sentido alternativo na medida em que a corrente tradicional incorporou muitos de seuslemas � embora na verdade o que fez foi cooptar seus conceitos e noções para simplesmente os agregar a suas estratégiascentradas no crescimento, caso do Banco Mundial.

12 O que se pode considerar como uma forma de equilibrar os desequilíbrios dos níveis de poder entre as três esferas: Estado,mercado e sociedade civil.

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Embora defenda uma política de unidades de base, um desenvolvimento alternativo necessita deum Estado forte (democrático e não autoritário) que instaure as suas políticas. Um Estado queaposte numa democracia participativa, em que os poderes para gerir problemas sejam entregues ainstâncias locais e ao próprio povo, organizado em comunidades. É, então, necessário transformardramaticamente o Estado e a doutrina dominante para possibilitar que os setores desprovidos depoder sejam incluídos nos processos políticos e econômicos, tenham os seus direitos de cidadaniae sejam reconhecidos como seres humanos (Friedmann, 1996).

Contudo, a ação local encontra-se fortemente restringida por forças econômicas globais,estruturas de bem-estar desiguais e alianças de classe hostis. Se estas não forem modificadas, odesenvolvimento alternativo restringir-se-á a uma ação sustentada para manter os pobres afasta-dos de uma miséria ainda maior e para conter a devastação da natureza. Assim, se o desenvolvi-mento alternativo encara a mobilização da sociedade civil a partir das bases, tem também que,num segundo passo, lutar pela emancipação num território maior � nacional e internacional(Friedmann, 1996, XI).

1.1. Desenvolvimento e combate às pobrezas

As noções de desenvolvimento e pobreza a serem utilizadas têm como base as apresentadaspor Sen em sua abordagem mais recente � Desenvolvimento como liberdade �, que pode ser vistacomo o amadurecimento da abordagem de titularidades13 e capacidades14 da mesma autoria.

Nesta abordagem, o desenvolvimento é visto como um processo de eliminação de privaçõesde liberdades e ampliação das liberdades substantivas15 interligadas de diferentes tipos que aspessoas têm razão para valorizar. Ou seja, uma noção aberta, que respeita a diversidade humanae sua liberdade de escolha.

E a pobreza é vista como privação de capacidades em vez de meramente como baixo nível derenda. O que não significa uma negação da idéia sensata de que a renda baixa é claramente umadas causas principais da pobreza, pois a falta de renda pode ser uma razão primordial da privaçãode capacidades de uma pessoa. Porém, ao colocar a ênfase da análise da pobreza nas capacidades,é possível melhorar o entendimento da natureza e das causas da pobreza e privação desviando aatenção principal dos meios (e de um meio específico que geralmente recebe atenção exclusiva,ou seja, a renda) para os fins que as pessoas têm razão para buscar e, correspondentemente, paraas liberdades de poder alcançar esses fins.

13 A abordagem das titularidades tem três conceitos básicos: o conjunto de dotações de recursos (endowment set), que se definecomo a combinação de todos os recursos legalmente possuídos por uma pessoa (tangíveis e intangíveis); o conjunto detitularidades (entitlement set), conjunto de todas as combinações possíveis de bens e serviços que uma pessoa pode obterlegalmente através do uso do seu conjunto de dotações de recursos; e o mapa de titularidades (entitlement mapping ouE-mapping), que é a relação entre o conjunto de dotações de recursos e o de titularidades, i.e., mostra a taxa pela qual osrecursos do conjunto de dotações podem ser convertidos em bens e serviços do conjunto de titularidades. O mapa detitularidades terá três componentes: um componente de produção, um componente de troca e um componente detransferência. É possível identificar quatro fontes de falha de titularidade: perda de dotação de recursos, falha de produção,falha de troca e falha de transferência (Osmani, 1995).

14 A abordagem de capacidades (ou de desenvolvimento como expansão de capacidades) baseia-se na avaliação da mudançasocial em termos de enriquecimento da vida humana como seu resultado (desenvolvimento humano), onde a vida humana évista como sendo constituída de modos de fazer e de ser (doings and beings) que em conjunto se definem como modos defuncionar (functionings). O objetivo fundamental do desenvolvimento é o de expandir as capacidades das pessoas para fazer eser. As capacidades determinam as várias combinações de modos de funcionar que uma pessoa pode atingir exercendo suaopção de escolha (Stewart, 1995).

15 Capacidades possuídas por uma pessoa.

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Segundo esta abordagem, para que ocorra desenvolvimento é preciso que se removam asprincipais fontes de privação de liberdades e que se ampliem as liberdades substantivas.

Como primeira fonte de privação de liberdades temos a pobreza econômica, que rouba daspessoas a liberdade de saciar a fome, de obter uma nutrição satisfatória ou remédios para doençastratáveis, a oportunidade de vestir-se ou de morar de modo apropriado, de ter acesso a águapotável e saneamento básico. Como segunda, a carência de serviços públicos e de assistênciasocial, que se traduz na ausência de programas epidemiológicos, de um sistema bem planejadode assistência médica e educação ou de instituições eficazes para a manutenção da paz e daordem locais. E, ainda, a negação de liberdades políticas e civis por regimes autoritários e derestrições impostas à liberdade de participar da vida social, política e econômica da comunidade.Ou seja, a pobreza e a tirania, a carência de oportunidades econômicas e a destituição socialsistemática, a negligência dos serviços públicos e a intolerância ou interferência excessiva deEstados repressivos, são vistas como obstáculos ao exercício e à expansão de liberdades.

Sen considera cinco tipos de liberdades substantivas,16 vistos numa perspectiva instrumental:liberdades políticas, facilidades econômicas, oportunidades sociais, garantias de transparência esegurança protetora.

As liberdades políticas referem-se às oportunidades que as pessoas têm para determinarquem deve governar e com base em que princípios, além de incluírem a possibilidade de fiscalizare criticar as autoridades, de ter liberdade de expressão política e uma imprensa sem censura, deter liberdade de escolher entre diferentes partidos políticos etc. As facilidades econômicas dizemrespeito a oportunidades que os indivíduos têm para utilizar recursos econômicos com propósitode consumo, produção ou troca. As oportunidades sociais são disposições que a sociedade esta-belece nas áreas de educação, saúde etc., que influenciam a liberdade substantiva de o indivíduoviver melhor. As garantias de transparência referem-se às necessidades de sinceridade que aspessoas podem esperar: a liberdade de lidar uns com os outros sob garantias de segredo e clare-za. Estas têm um claro papel instrumental como inibidoras da corrupção, da irresponsabilidadefinanceira e de transações ilícitas. A segurança protetora é necessária para proporcionar uma redede segurança social, impedindo que a população no limiar da vulnerabilidade seja reduzida àmiséria e, até mesmo, à fome e à morte. Esta incorpora disposições institucionais fixas e medidasad hoc em caso de emergências.

Embora Sen centre sua análise nas esferas do Estado e do mercado, ao longo de seu livro épossível perceber que estas liberdades individuais poderão ser expandidas através do acesso àsorganizações da sociedade civil, ao Estado e ao mercado.

Nesta abordagem, a liberdade é considerada o fim primordial e o principal meio do desen-volvimento, isto é, respectivamente, o papel constitutivo e o papel instrumental da liberdade nodesenvolvimento.

As liberdades instrumentais tendem a contribuir para a capacidade geral de a pessoa vivermais livremente (fim), mas também têm o efeito de complementar-se mutuamente (meios), contri-buindo para o desenvolvimento via expansão de liberdades. Ou seja, as liberdades instrumentaisaumentam diretamente as capacidades das pessoas, mas também ligam-se umas às outras econtribuem para o aumento da liberdade humana em geral, que permite às pessoas levarem omodo de vida que elas com razão valorizam (Sen, 2000).

16 Sen reconhece que não é uma listagem completa.

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Esta análise de desenvolvimento considera as liberdades dos indivíduos os elementos consti-tutivos básicos. Atenta-se particularmente para a expansão de capacidades (capabilities) das pessoasde forma a que estas levem o tipo de vida que com razão valorizam. Ou seja, o papel consti-tutivo relaciona-se à importância da liberdade substantiva no enriquecimento da vida humana.As liberdades substantivas incluem capacidades elementares como, por exemplo, ter condições deevitar privações como a fome, a subnutrição, a morbidez inevitável e a morte prematura, bemcomo as liberdades associadas a saber ler e fazer cálculos aritméticos, ter participação política eliberdade de expressão etc. Essas capacidades podem ser aumentadas pelas políticas públicas e adireção de políticas públicas pode por sua vez ser influenciada pelo uso efetivo das capacidadesparticipativas do povo � relação de mão dupla.

O papel instrumental da liberdade diz respeito ao modo como diferentes tipos de direitos,oportunidades e titularidades (entitlements) contribuem para a expansão da liberdade humanaem geral e, assim, para a promoção do desenvolvimento. A eficácia da liberdade como instrumentoreside no fato de que diferentes tipos de liberdade se inter-relacionam. E um tipo de liberdadepode contribuir imensamente para promover liberdades de outros tipos, sendo o processo dedesenvolvimento crucialmente influenciado por essas inter-relações (Sen, 2000).

Observe-se que, para responder às múltiplas liberdades inter-relacionadas, existe a necessi-dade de desenvolver e sustentar uma pluralidade de instituições, como sistemas democráticos,mecanismos legais, estruturas de mercado, provisão de serviços de educação e saúde, facilidadespara a mídia e outros tipos de comunicação etc. (Sen, 2000). Contudo, é necessário que essasinstituições considerem e respeitem o tecido social existente.

Sen ainda salienta duas razões pelas quais a liberdade é central para o processo de desenvol-vimento: a razão avaliatória e a razão da eficácia.

Segundo a razão avaliatória, a liberdade substantiva é considerada essencial, uma vez que oêxito de uma sociedade, nesta visão de desenvolvimento como expansão de liberdades, deve seravaliado primordialmente segundo as liberdades substantivas que os membros dessa sociedadedesfrutam. Ter mais liberdade para fazer as coisas que são justamente valorizadas é importantepor si mesmo para a liberdade global da pessoa � e importante porque favorece a oportunidadede a pessoa ter resultados valiosos. Ambas as coisas são relevantes para a avaliação da liberdadedos membros da sociedade e, conseqüentemente, cruciais para a avaliação do desenvolvimentoda sociedade.

A razão da eficácia diz-nos que a liberdade substantiva é não apenas a base da avaliação doêxito e do fracasso, mas também um determinante principal da iniciativa individual e da eficáciasocial. Ter mais liberdade melhora o potencial das pessoas de cuidar de si e de influenciar omundo, questões centrais para o processo do desenvolvimento. Quem se relaciona com o aspectode condição de agente do indivíduo (como membro do público e como participante de açõeseconômicas, sociais e políticas) é alguém que age e ocasiona mudança e cujas realizaçõespodem ser julgadas de acordo com seus próprios valores e objetivos, independentemente de asavaliarmos ou não também segundo algum critério externo.

Os fins e os meios do desenvolvimento exigem que a perspectiva da liberdade seja colocadano �centro do palco�. Nessa perspectiva, as pessoas têm de ser vistas como ativamente envolvidas� dada a oportunidade � na conformação de seu próprio destino e não apenas como beneficiáriaspassivas dos frutos de engenhosos programas de desenvolvimento. O Estado e a sociedade têmpapéis amplos no fortalecimento e na proteção das capacidades humanas.

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Então, no combate à pobreza rural no Nordeste brasileiro, seguindo as noções de desen-volvimento e pobreza de Sen, é necessário direcionar os esforços para combater as principaisfontes de privação de liberdades no campo e ampliar as liberdades substantivas da população rural.

Como principais fontes de privação no campo temos: a pobreza econômica, cujos principaisalvos são os agricultores familiares do Nordeste;17 a carência de serviços públicos e assistênciasocial, sendo necessário que os investimentos em serviços públicos (ex.: educação, saúde) deixemde privilegiar o urbano e comecem a olhar mais para o rural; e a negação de liberdades políticase civis, o que no Nordeste rural se traduz, por exemplo, no poder das elites oligárquicas e noseu acesso privilegiado ao Estado e capacidade de influenciar a formulação de políticas eprogramas em seu favor, criando simultaneamente uma relação clientelista com a populaçãorural (ex.: política de seca).

Para ampliar as liberdades substantivas da população rural é necessário ampliar suas liberda-des políticas (que podem incluir descentralização, accountability e participação), ampliar suasfacilidades econômicas (acesso a recursos � ex.: terra e financiamento � para consumo, produçãoe troca), suas oportunidades sociais (ex.: educação e saúde), as garantias de transparência(ex.: ausência de corrupção) e a segurança protetora (rede de segurança social, ex.: aposentadoriarural). O que terá de ocorrer juntamente com um processo de empoderamento desses atores esuas organizações locais para que estes possam ter �vez e voz�18 nas três esferas de atuação �Estado, mercado e sociedade civil. Ou seja, apostar num tipo de desenvolvimento que olhe para opotencial de desenvolvimento da agricultura e para a possibilidade de os agricultores familiaresse tornarem agentes do seu próprio desenvolvimento.

1.2. Empoderamento

O empoderamento é encarado como estímulo e motor do processo de desenvolvimento esuperação das pobrezas. Um processo contínuo e em constante renovação que permite a susten-tabilidade dos processos locais de desenvolvimento a longo prazo, por exemplo, com a saída dasONGs internacionais e nacionais da gestão do projeto de desenvolvimento e com a passagem daresponsabilidade de gestão do mesmo às comunidades locais.

Consideramos interessante apresentar algumas das diversas noções de empoderamento quese podem encontrar na literatura como contribuição para a discussão final.

Cornwall (2000) refere-se ao termo empoderamento como o mais maleável, aquele queapresentou maiores mudanças de significado nas últimas três décadas do século XX no contextodo desenvolvimento, e ao seu esvaziamento por uso generalizado e não muito cuidado. Segundoa autora, os discursos de desenvolvimento alternativo dos anos 1970 viam empoderamento comoo processo através do qual as pessoas se envolviam ativamente na luta para aumento de controlesobre recursos e instituições (Cornwall, 2000: 74).

17 Os pobres do Nordeste agrário correspondem hoje a 63% da pobreza rural do país e a 32% dos pobres brasileiros. Eles são 9%dos brasileiros, mas recebem menos de 1% da renda familiar nacional. Destes, em 1990, viviam da agricultura de auto-subsistência 83% dos chefes de famílias pobres, cuja renda familiar dependia em 76% daquela atividade. (DESER, 1997, citadopor Armani, 1998: 32).

18 No decorrer de uma reunião no âmbito do diagnóstico sobre os caminhos de inclusão dos mais pobres na AS-PTA, umaliderança sindical, Nelson Ferreira, do STR de Lagoa Seca, colocou que, além de serem sem voz os excluídos são também semvez � �sem vez e sem voz!�.

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Muitas vezes associado com a simples participação nos processos de desenvolvimento einterpretado de forma restrita como ganho individual, a linguagem do empoderamento, no iníciodos anos 1990, tornou-se um termo confortável para o mainstream do desenvolvimento. Para algunso termo adquiriu um significado ainda mais amplo. O Banco Mundial19, por exemplo, vê o empo-deramento dos sem voz como uma faceta da participação. Segundo seu relatório, ao dar informaçãoao público e descentralizar a tomada de decisão as agências governamentais empoderam automa-ticamente os diferentes stakeholders e grupos de interesse, se a tomada de decisão for flexível porparte das agências.

Para Cornwall (2000), não aparece nestas visões de empoderamento o reconhecimento dasrelações de poder existentes que podem impedir o uso de espaços políticos que podem ser abertospelos esforços de empoderá-los.

Mas essas não são as únicas relações de poder excluídas dessas visões. A noção de empode-ramento precisa também considerar as relações de poder existentes na família, nas próprias comuni-dades e organizações e nos movimentos da sociedade civil que, voluntária ou involuntariamente,excluem alguns de seus membros da tomada de decisões, do acesso aos recursos e do exercício desuas capacidades; as relações de poder dentro da esfera do mercado, que subordinam ou excluemtotalmente os agricultores familiares do acesso ao mesmo em condições de maior eqüidade, querpara comprar, quer para vender; e o fato de o empoderamento não ser algo que se possa fazerpelas pessoas, mas sim algo que as pessoas têm de fazer por elas mesmas, ou seja, que não épossível empoderar alguém, mas sim estimular o processo individual e coletivo de empoderamento.É um processo que tem origem dentro das pessoas, no seio das comunidades e das organizaçõeslocais, que não pode ser pensado de cima para baixo (medidas assistencialistas e políticas cliente-listas não se enquadram neste processo), nem de fora para dentro.

Segundo Costa (2000), o conceito de empoderamento surgiu com os movimentos de direitoscivis nos EUA nos anos 1970, através da bandeira do poder negro, como uma forma de autovalo-rização da raça e conquista de uma cidadania plena. Esta autora define empoderamento como�o mecanismo pelo qual as pessoas, as organizações, as comunidades tomam controle de seuspróprios assuntos, de sua própria vida, de seu destino, tomam consciência da sua habilidade ecompetência para produzir e criar e gerir (Costa, 2000: 7). Este conceito começou a ser utilizadopelas feministas, no mesmo período, para se referirem à alteração radical dos processos e estruturasque reduzem a mulher a uma posição subordinada. �As mulheres tornam-se empoderadas atravésde decisões coletivas e mudanças individuais� (Costa, 2000: 7).

Segundo Stromquist,20 ainda dentro da linha feminista, os parâmetros do empoderamentosão: a construção de uma auto-imagem e confiança positiva, o desenvolvimento da habilidadepara pensar criticamente, a construção da coesão de grupo, a promoção da tomada de decisõese a ação. E este processo dá-se através de cinco níveis de igualdade: de bem-estar; de acesso aosrecursos; de conscientização; de participação e de controle.

Ainda segundo esta autora, uma definição de empoderamento deve incluir os componentescognitivos, psicológicos, políticos e econômicos. O componente cognitivo refere-se à compreensãoque as mulheres têm da sua subordinação, assim como das causas desta em níveis micro e macroda sociedade. Envolve a compreensão de ser e a necessidade de fazer escolhas, mesmo que

19 Relatório de 1994, citado pela autora.

20 Stromquist, N. La busqueda del empoderamiento: em qué puede contribuir el campo de la educación. In: Leon, M. (org.) Podery empoderamiento de las mujeres. Bogotá, MT Editores, 1997, citada por Costa (2000).

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possam ir contra as expectativas culturais e sociais. O componente psicológico inclui o desenvol-vimento de sentimentos que as mulheres podem pôr em prática no nível pessoal e social paramelhorar sua condição, assim como a ênfase na crença de que podem ter êxito nos seus esforçospor mudanças: autoconfiança e auto-estima são fundamentais. O componente político supõe ahabilidade para analisar o meio circundante em termos políticos e sociais, que também significa acapacidade para organizar e promover mudanças sociais. O componente econômico supõe aindependência econômica das mulheres. É um componente fundamental de apoio ao componen-te psicológico, pois possibilita o fim da dependência financeira.

Por outro lado, Blackburn (1993: 5), em seu estudo sobre educação popular na AméricaLatina, vê educação como um processo de empoderamento através do qual os oprimidos setornam conscientes das injustiças sistemáticas que os mantêm pobres e decidem agir para aliviaressas injustiças.

Por seu lado, Friedmann (1996), em sua abordagem do empoderamento, coloca a ênfase naautonomia das tomadas de decisão de comunidades territorialmente organizadas, na autode-pendência local (mas não na autarcia), na democracia direta (participativa) e na aprendizagemsocial pela experiência. E considera empoderamento todo o acréscimo de poder que, induzidoou conquistado, permite aos indivíduos ou unidades familiares aumentarem a eficácia do seuexercício de cidadania.

O ponto de partida do processo de empoderamento é a localidade, porque a sociedade civilé mais prontamente mobilizável em torno de temas locais, mas o objetivo é de que este processoavance para o nível regional, nacional e internacional.

Segundo o autor, na sua luta pela vida e condições de vida, as unidades domésticas dispõemde três tipos de poder: o social, o político e o psicológico.

O poder social é entendido como o acesso a certas bases de produção doméstica, como ainformação, o conhecimento e as técnicas, a participação em organizações sociais e os recursosfinanceiros. Quando uma economia doméstica incrementa o acesso a estas bases, sua capacidadede estabelecer e alcançar objetivos aumenta também.

O poder político diz respeito ao acesso dos membros individuais de unidades domésticas aoprocesso pelo qual são tomadas decisões, particularmente as que afetam o seu futuro comoindivíduos, inclusive dentro do agregado familiar nas decisões tomadas dentro da casa. O poderpolítico não é apenas o poder de votar, mas também o poder da voz e da ação coletiva (parti-cipação em associações políticas, como partido, movimento social, grupo de interesse, sindicatode trabalhadores ou agricultores).

O poder psicológico é visto como uma percepção individual de força e sua presença mani-festa-se num comportamento de autoconfiança. O empoderamento psicológico é, muitas vezes,o resultado de uma ação vitoriosa nos domínios social e político, podendo resultar de um trabalhointersubjetivo. O poder psicológico terá efeitos positivos na luta continuada da unidade domésticapelo aumento dos seus poderes social e político efetivos.

O objetivo é então o empoderamento das unidades domésticas e dos seus membros indivi-duais nos três sentidos. É um processo que começa por baixo e pelo interior de formações sociaisespecíficas territorialmente � comunidades, aldeias, vizinhanças (Friedmann, 1996).

Friedmann (1996) vê pobreza como um �estado de desempoderamento� que tem comoponto de partida o pressuposto de que as famílias pobres não têm poder social para melhorar ascondições de vida dos seus membros. A pobreza é encarada como a falta de acesso às bases depoder social, ou seja, a privação de: espaço de vida defensável, tempo excedente, conhecimentos

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e técnicas, informação adequada, organização social, redes sociais, instrumentos de trabalho,condições de vida e recursos financeiros. Estas bases são interdependentes, pois todas elas seligam a meios de obtenção de outros meios num processo espiral de aumento de poder social(Friedmann, 1996).

De acordo com esta abordagem, a superação das pobrezas passa pela aquisição de podersocial e sua transferência para poder político efetivo, possibilitando que os interesses das unidadesdomésticas e das localidades sejam efetivamente defendidos e aceitos na macroesfera da políticaregional, nacional e mesmo internacional (Friedmann, 1996), ou seja, na relação com atores daesfera do Estado, nos diferentes níveis.

Para Gita Sen (1997), empoderamento relaciona-se, primeiro e antes de tudo, com o poder,mudando as relações de poder em favor daqueles que anteriormente tinham pouca autoridadesobre suas próprias vidas. Para a autora, empoderamento é o processo de ganhar poder, tantopara controlar recursos externos como para o aumento da auto-estima e da capacidade interna.Ela considera que o verdadeiro empoderamento inclui tipicamente dois elementos e raramente ésustentável sem algum deles. Uma mudança no acesso a recursos externos sem uma mudança naconsciência pode deixar as pessoas sem flexibilidade, motivação e atenção para fazer frente a e/ouobter esse poder, deixando um espaço aberto para que outros o obtenham. Para ser sustentável,o processo de empoderamento deve modificar tanto a autopercepção das pessoas como o con-trole sobre suas vidas e sobre seus ambientes materiais. Considera, ainda, que embora os agentesexternos de mudança possam catalisar ou criar um ambiente de apoio, são as pessoas que empo-deram a si mesmas.

Tomaremos então como base as diferentes noções de empoderamento apresentadas para adiscussão final.

2. Estratégias de reprodução individuaise coletivas na (re)construção do acessoao Estado, ao mercado e à sociedade civil

Se são as pessoas que empoderam a si mesmas e se aos agentes externos de desenvolvimentocabe o papel de facilitador e de catalisador do processo (e por vezes de estimulador), é interessanterefletir sobre como as pessoas, famílias e comunidades estão-se empoderando. Quais suas estra-tégias tradicionais (individuais e/ou coletivas) de melhoria de suas condições de vida? Qual opapel das organizações e movimentos da sociedade civil? E do Estado? E do mercado?

Para embasar esta discussão apresentaremos a abordagem de rural livelihoods de Chambers,na forma como esta foi aplicada por Bebbington (1997 e 1999) à análise da pobreza e viabilidadedos camponeses da região andina da América Latina.

Destes trabalhos de Bebbington surge um esquema analítico21 que se propõe a desenvolver earticular as abordagens anteriores. Apresentaremos então este esquema que servirá de base àdiscussão final.

21 Este esquema analítico inova ao levantar uma das principais críticas à abordagem de capacidades de Sen � a de realizar umaanálise estática que ignora a variável tempo � ao analisar as trajetórias de reprodução rurais (rural livelihoods).

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O DFIF, adaptando a definição de rural livelihoods de Chambers,22 compreende livelihoodcomo o conjunto de capacidades, ativos e atividades necessários para viver. Uma livelihood ésustentável quando consegue lidar com e recuperar de crises e choques e manter e aumentar suascapacidades e ativos tanto no presente como no futuro, sem dilapidar a base de recursos naturais.De forma simplificada, o DFID apresenta o esquema analítico de livelihoods sustentáveis comovendo as pessoas operando num contexto de vulnerabilidade. Neste contexto, estas têm acesso acertos ativos (capital humano, capital natural, capital financeiro, capital social e capital físico) oufatores redutores da pobreza. Estes ganham seu significado e valor através do ambiente social,institucional e organizacional prevalecente. Este ambiente também influencia as estratégias delivelihoods � formas de combinar e usar os ativos � que são abertas às pessoas na perseguição deresultados benéficos de livelihoods que vão ao encontro de seus próprios objetivos de livelihoods(DFID, 1999, 2000).

De suas análises, Bebbington (1997 e 1999) conclui que apesar da diversidade das estratégiasadotadas e dos seus, cada vez mais, componentes não-agrários,23 é possível detectar temas comunsem termos de trajetórias de reprodução rurais (rural livelihoods) bem sucedidas. Temas esses quecirculam em torno da questão do acesso e, em particular, acesso a: diferentes recursos (crédito,terra, qualificações, trabalho etc., dependendo das estratégias de reprodução rurais); diferentesoportunidades para transformar esses recursos em fontes de otimização de livelihoods (acesso anovos mercados de trabalho e de produto, por exemplo); acesso a meios que permitam melhoraras formas existentes através das quais esses recursos contribuem para as suas estratégias dereprodução; e, de modo a alcançar cada um dos acessos, as pessoas têm sido dependentes dacapacidade de alcançar essas diferentes formas de acesso, o que pode vir de forma muito variadade redes de parentesco ou étnicas, de organizações sociais, de organizações estatais e não-gover-namentais intermediárias e também de outros atores intermediários do mercado.

Por outro lado, as falhas de melhoria das rural livelihoods parecem ter como principaisrazões a falha ou incapacidade para: defender os seus ativos existentes (perda de terra, de capitalfinanceiro), identificar e assegurar oportunidades para transformar ativos em livelihoods eproteger meios existentes de transformar ativos em livelihoods (perder um lugar num mercado).Bebbington chama atenção para um fator importante na contenção das forças que gerampobreza, que é a capacidade das pessoas para construir e utilizar adequadamente redes e ligaçõescom atores do Estado, do mercado e da sociedade civil, que ajudam as famílias a aceder, defendere capitalizar seus ativos. E para o fato de as pessoas apresentarem fortes limitações neste tipo decapacidade (Bebbington, 1999).

Conseqüentemente, um esquema analítico para analisar estratégias de reprodução ruraiscapazes de reduzir a pobreza necessita, no mínimo, de levar em conta: o acesso das famílias acinco tipos de ativos24 de capital (natural, produzido, humano, social e cultural); os modos comoelas combinam e transformam esses ativos na construção de livelihoods que, na medida do

22 Chambers, R. & Conway, G. Sustainable rural livelihoods: practical concepts for the 21st century. IDS Discussion Paper 296,Brighton: IDS, 1992, citado por DFID (1999, 2000).

23 Transição para agricultura familiar capitalizada e atividades agrossilvícolas e pastoris; proletarização rural; migração temporáriaou permanente; indústria rural; e comércio rural e periurbano.

24 Por ativos entendem-se os recursos acessados. Não são apenas recursos que as pessoas usam na construção de suaslivelihoods, são ativos que lhes dão a capacidade de ser e agir, no sentido de Sen. Os ativos não são somente coisas quepermitem sobrevivência, adaptação e alívio da pobreza, mas também a base do poder do agente para agir e para reproduzir,desafiar ou mudar as regras que governam o controle, o uso e a transformação dos recursos.

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possível, satisfaçam as suas necessidades; os meios pelos quais as pessoas são capazes de acessar,defender e manter esses ativos; os modos através dos quais são capazes de expandir os seusativos-base através do engajamento com outros atores por meio de relações sujeitas às lógicas doEstado, do mercado e da sociedade civil; e os modos como são capazes de desenvolver eintensificar as suas capacidades não apenas para dar à vida mais significado, mas também, emais importante, para mudar as regras dominantes e as relações que governam as maneiraspelas quais os recursos são controlados, distribuídos e transformados em fluxos de renda(Bebbington, 1999).

Assim, através das capacidades, é possível transformar os ativos em: níveis de consumo quereduzam sua pobreza (econômica); condições de vida que impliquem uma melhoria da sua quali-dade de vida, de acordo com os critérios próprios a essas pessoas; capacidades humanas e sociaispara usar e defender os ativos de maneira sempre mais efetiva; e um ativo-base que continuará apermitir os mesmos tipos de transformações (Bebbington, 1999).

Para Bebbington os cinco capitais são, ao mesmo tempo, os recursos (inputs) que tornampossíveis as estratégias de reprodução, os ativos que dão capacidades às pessoas e os resultados(outputs) que tornam as livelihoods significativas e viáveis.25 O seu foco é o agregado familiar e asrelações intra-agregado e suas formas de engajamento e de relações com os atores do mercado,Estado e sociedade civil, e as implicações desse engajamento para a distribuição e a transfor-mação dos ativos.

Em termos esquemáticos, temos que os agregados familiares e seus membros, ao teremacesso a pelo menos um dos cinco capitais, através de seu uso e/ou transformação e/ou repro-dução, irão construir maior bem-estar material, expandir capacidades e aumentar o significadode suas vidas, num círculo virtuoso de acesso constante a capitais, sua acumulação e troca entreos diferentes capitais. Além disso, as relações que permitem o acesso, uso e transformação dessescapitais ocorrem nas esferas do Estado, mercado e sociedade civil, com suas lógicas próprias.Estas relações com atores das três esferas podem ocorrer quer individualmente, quer através deorganizações locais, e têm como objetivos demandar, defender, transformar e receber ativos, alémde desafiar a lógica governamental de distribuição de ativos e sua transformação.

É através das relações com os atores que operam dentro das três esferas que as famíliasrurais e suas organizações buscam reafirmar ou renegociar as regras (como definidas dentro decada esfera) que governam o acesso aos recursos na sociedade. Cada esfera tem a sua lógicaprópria que influencia a distribuição, o controle e a transformação de ativos. Através dessasrelações os atores buscam defender seus ativos, defender ou aumentar os benefícios que derivamde seus ativos ao transformá-los (transformando dotações em titularidades [Sen]) e lutar paramelhorar as taxas de troca que governam as transações através das quais as dotações são trans-formadas em titularidades. Como cada esfera opera de acordo com sua própria lógica, isso esta-belece os limites do que pode e não pode ser obtido através da ação dentro de uma esfera.Assim, para ser eficaz no fortalecimento de livelihoods é necessário capacidade de administrarrelações e transações dentro de cada uma das esferas, aproveitando o que pode ser obtido através deuma esfera e complementando esse resultado com atuação nas outras esferas (Bebbington, 1999).

25 Ao se incluir tanto a noção de viabilidade e significação, o que se espera é que o esquema analítico proposto permita aconsideração tanto de noções de pobreza mais estritas (baseados na renda/gasto) como de noções mais amplas (baseadas nadignidade/segurança).

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A habilidade das famílias rurais para ganharem acesso a estas três esferas é fortementeafetada pelas capacidades que elas detêm, como resultado de suas dotações iniciais de diferentestipos de capitais. Um ponto importante, então, é compreender as condições sob as quais aspessoas com menos dotações podem ser capazes de incrementar seu acesso aos atores que operamdentro dessas diferentes esferas e as maneiras pelas quais as organizações podem começar a agirmais em favor daqueles menos dotados. Apesar do papel de todos os capitais como meios paraexpandir capacidades e iniciar processos de empoderamento, Bebbington centra sua análise naforma como o capital social pode ampliar o acesso a outros atores geridos pela lógica do Estado,mercado e sociedade civil e assim afetar a sustentabilidade das livelihoods e combater a pobreza(Bebbington, 1999).

Convém esclarecer o que se entende, nesta abordagem, por capital natural, produzido, humano,social e cultural, apesar da dificuldade de encontrar consenso na sua definição e da necessidade decontextualizar estes capitais na realidade em análise, para que o esquema analítico tenha significado.

DFID (1999, 2000) considera capital humano como qualificações, conhecimento, habilidadepara trabalho e boa saúde que em conjunto possibilitam à pessoa seguir diferentes estratégias dereprodução e alcançar seus objetivos de livelihoods. No nível do agregado familiar, o capitalhumano é um fator da quantidade e qualidade de trabalho disponível, o que varia de acordo como tamanho do agregado familiar, nível de qualificações, potencial de liderança, estado de saúdeetc. O capital humano aparece no esquema como um ativo de livelihood, ou seja, como um meiopara atingir resultados das estratégias de reprodução. Contudo, a sua acumulação pode ser umfim em si mesmo � desenvolvimento humano. Além de seu valor intrínseco, sua importânciareside no fato de este capital ser necessário para se poder usar quaisquer outros tipos de capitais.Este é necessário, embora não suficiente, para alcançar resultados das estratégias de reprodução.

O capital natural é utilizado para se referir ao estoque de recursos naturais dos quais seretiram recursos e serviços necessários às livelihoods. Existe uma grande variedade nos recursosque constituem o capital natural, desde bens públicos intangíveis, como atmosfera e biodiversida-de, até bens divisíveis utilizados diretamente para produção. Este capital é muito importante paratodos aqueles que retiram toda ou parte de suas livelihoods de atividades baseadas em recursos(agricultura, pesca, extrativismo etc.). Contudo, sua importância vai mais além. Ninguém sobrevi-veria sem a ajuda de serviços ambientais chave e comida produzidos do capital natural. A saúde(capital humano) tende a sofrer em áreas onde a qualidade do ar é baixa, como resultado deatividades industriais ou desastres naturais. (DFID, 1999, 2000)

O capital produzido é encarado como resultado do crescimento econômico na abordagemdo Banco Mundial. Acredito que este terá mais significado para a análise se englobar o capitalfísico e financeiro apresentados pelo DFID (1999, 2000).

Este compreende por capital físico a infra-estrutura básica e bens de produção que ajudamas livelihoods, sendo que a infra-estrutura consiste em mudanças realizadas no ambiente físicoque ajudam as pessoas a satisfazer suas necessidades básicas e serem mais produtivas. Bens deprodução são ferramentas e equipamentos que as pessoas usam para funcionar mais produtiva-mente. Os componentes de infra-estrutura normalmente essenciais às livelihoods sustentáveissão: transporte a preços acessíveis, habitação e construções seguras, oferta de água de qualidadee saneamento básico, energia limpa e a preços acessíveis, e acesso à informação (comunicação).Muitas avaliações participativas de pobreza mostram que a falta de tipos específicos de infra-estrutura é considerada uma dimensão fundamental da pobreza. Bens de produção insuficientesou inadequados também restringem a capacidade produtiva das pessoas e, por isso, o capital

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humano à sua disposição. Maior tempo e esforço são despendidos para satisfazer as necessidadesbásicas, para produzir e ganhar acesso ao mercado.

E por capital financeiro entendem-se os recursos financeiros que as pessoas utilizam paraalcançar seus objetivos de livelihoods, isto é, a disponibilidade de dinheiro ou equivalente quepermita às pessoas adotar estratégias de reprodução diferentes. São duas as fontes principais decapital financeiro consideradas pelo DFIF (1999, 2000): os estoques disponíveis, normalmentepoupanças e crédito; e recebimentos regulares de dinheiro, além da renda, aposentadorias eoutras transferências do Estado. A importância deste tipo de capital deve-se à sua flexibilidade.Ele pode ser convertido em outros tipos de capitais (com maior ou menor dificuldade); pode serutilizado diretamente para obter alguns resultados das estratégias de reprodução (ex.: comprarcomida para combater a insegurança alimentar); e, certo ou errado, pode transformar-se eminfluência política e pode libertar as pessoas para participação mais ativa em organizações queformulam política e legislação e gerir o acesso a recursos.

O capital cultural é introduzido por Bebbington (1999), devido ao fato de este ter verificadoa importância dada à residência rural pelas populações analisadas. A residência parece estar asso-ciada à manutenção de um conjunto de práticas que são valorizadas pelo seu significado: partici-pação em festas, certas formas de trabalho agrícola. O que o leva a concluir que, além do signi-ficado atribuído a um conjunto de ativos, existe um significado associado a um conjunto depráticas culturais tornado possível (ou restringido) por padrões de co-residência ligados a certasestratégias de reprodução rurais � tornando-se uma dimensão de pobreza ou riqueza significativa.Estas práticas são também facilitadoras e empoderadoras, uma vez que impulsionam formas deação e de resistência que os outros quatro tipos de capitais não conseguiriam por si só tornarpossíveis. Podem também ser a base de manutenção e reprodução dos outros tipos de capitais.Adotando certas formas de manutenção de identidade e padrões particulares de interação possi-bilitam, inspiram e de fato empoderam. São outro insumo importante para as estratégias dereprodução rurais e o alívio da pobreza.

Em relação ao capital social, várias definições podem ser apresentadas, mas vamos nos centrarnas dos impulsionadores dessa discussão � Bourdieu, Coleman e Putnam.

Bourdieu26 define capital social como o agregado de recursos atuais ou potenciais que estãoligados à posse de uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de conheci-mento e reconhecimento mútuo � ou, por outras palavras, ser membro de um grupo � que fornece acada um de seus membros o apoio de um capital possuído coletivamente. Afirma, também, queo volume de capital social possuído por um dado agente depende do tamanho da rede de conexõesque ele consegue efetivamente mobilizar e do volume de capital (econômico, cultural ou simbólico)possuído por cada um dos indivíduos com quem ele se encontra conectado.

Coleman27 introduz capital social como uma ferramenta conceptual para a compreensão deuma orientação teórica da ação social que combina componentes da perspectiva econômica esociológica. Tem como objetivo importar o princípio econômico de ação racional para usá-lo naanálise de sistemas sociais, Coleman discute como o capital social é criado e examina três formas

26 Bourdieu, P. The forms of capital. In: Richardson, J. (ed.) Handbook of theory and research for the sociology of education.Westport, CT: Greenwood Press, 1986, citado por Feldam et alii (1999).

27 Coleman, J. S. Social capital in the creation of human capital. American Journal of Sociology 94 (Supplement), 1988, pp. S95-S120, citado por Feldam et alii (1999).

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diferentes nas quais ele se manifesta. E, utilizando dados empíricos, mostra como o capital socialé utilizado na criação de capital humano. Então, as três formas de capital social são: obrigações eexpectativas que dependem da confiança criada pelo ambiente social, a capacidade da informaçãofluir pela estrutura social de forma a fornecer a base para a ação e a presença de normasacompanhadas por sanções efetivas.

Putnam (2000) apresenta o que entende por capital social no âmbito dos dilemas da açãocoletiva e do oportunismo daí resultante. Afirma que a cooperação voluntária é mais fácil numacomunidade que tenha herdado um bom estoque de capital social sob a forma de regras dereciprocidade e sistemas de participação cívica. Identifica capital social como as características daorganização social, como confiança, normas e sistemas, que contribuem para aumentar a eficiênciada sociedade, facilitando a coordenação e cooperação para benefício mútuo. E conclui que ocapital social facilita a cooperação espontânea e que sua oferta aumenta com o uso e que esteesgota-se se não for utilizado.

Bebbington recorre à definição de capital social de Woolcock (1998)28 como um termo amploque inclui as normas e redes que facilitam a ação coletiva para benefício mútuo. Noção queescolhe por considerar que consegue acomodar as noções de Bourdieu, Coleman e Putnam. Considera,também, a existência de capital social em vários níveis. Na escala local, as redes de confiança eaccountability mútua ligando indivíduos nas comunidades (normalmente não em toda a comuni-dade) que aumentam a confiança e capacidade das pessoas de trabalhar juntas e expandir seuacesso a outras instituições políticas ou civis; facilitam ainda a cooperação, reduzem os custos detransação e fornecem a base para redes de segurança locais entre os pobres. Na escala meso,alguns trabalhos empíricos demonstraram que organizações regionais e nacionais fortes comredes que as ligam a outros atores da sociedade civil e do Estado podem ser eficazes para impe-direm outros atores de expropriarem os recursos naturais, ao facilitar o acesso a outros tipos deinvestimento (ex.: educação e saúde) através de sua demanda e conquista de uma presença maispermanente em certos foros definidores de regras e tomadores de decisões na sociedade civil e noEstado (Fox, 1990; Bebbington, 1996).29 De forma semelhante, organizações fortes com redesque as liguem a atores na esfera do mercado podem ajudar a abrir possibilidades de mercado aosprodutores rurais. Na escala nacional, capital social forte na forma de organizações regionais enacionais e suas ligações com funcionários governamentais podem ser um mecanismo pelo qualas populações rurais podem influenciar as regras gerais que governam a distribuição do investi-mento público de vários tipos e a defesa e o uso do capital natural (Fox, 1996; Bebbington ePerreault, 1998).30

Considerando-se que os capitais não são apenas vistos pelo seu significado ou fonte desustento das famílias, estes são também uma fonte de poder. Podem ser vistos como meios para odesenvolvimento, como as liberdades instrumentais de Sen, e como meios do processo de empode-ramento, possibilitando às famílias tornarem-se agentes de seu próprio desenvolvimento.

28 Woolcock, M. Social capital and economic development: toward a theoretical synthesis and policy framework. Theory andSociety, 27(2) : 151-208, 1998, citado por Bebbington (1999).

29 Fox, J. (ed.) The challenge of rural democratisation: perspectives from Latin America and the Philippines. London: Frank Cass,1990; e Bebbington, A. Organizations and intensification: small farmer federations, rural livelihoods and agriculture technologyin the Andes and Amazonia. World Development, 24(7) : 1161-78, 1996, citados por Bebbington (1999).

30 Bebbington, A. e Perrault, T. Social capital and political ecological change in highland Ecuador. Paper presented to the AnnualMeetings of the Association of American Geographers, Boston, March 1998, citado por Bebbington (1999).

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Então, de acordo com o esquema analítico de Bebbington, nas suas estratégias de reproduçãorurais as pessoas, famílias e comunidades necessitam de ter acesso às organizações e movimentosda sociedade civil e aos atores das esferas do Estado e do mercado, para usar, trocar, combinar,transformar, defender, manter, reproduzir e expandir suas dotações de capitais. O acesso a estasesferas possibilita, assim, que as pessoas, famílias e comunidades alcancem os resultados esperadosde suas estratégias de reprodução rurais.

Mas de que tipo de acesso estamos falando? Não é suficiente que as pessoas, famílias ecomunidades tenham acesso às diferentes esferas, é necessário que esse acesso se dê em condiçõesde igualdade, de forma a que suas estratégias se operacionalizem e se potencializem. É, então,necessário considerar as relações de poder existentes nas relações estabelecidas entre pessoas,famílias e comunidades com os atores das diferentes esferas, assim como dentro das própriasfamílias e comunidades, que limitam ou negam o acesso.

3. Accountability e participação

Como vimos, para superar sua condição de pobreza as pessoas, famílias e comunidades precisamnão só ampliar seu acesso às organizações e movimentos da sociedade civil e aos atores dasesferas do Estado e do mercado, como também garantir que esse acesso se dê em condições deigualdade. Uma forma de alcançar maior igualdade nessas relações é favorecendo a accountabilitye a participação efetiva nas três esferas.

Consideramos, assim, relevante apresentar as diferentes noções de accountability que têmsido utilizadas para a análise da relação entre os atores do Estado e da sociedade civil, queacreditamos que também possam ser aplicadas à relação entre organizações e movimentos dasociedade civil e pessoas, famílias e comunidades.

Segundo O�Donnell (1997), existem duas dimensões de accountability, a horizontal e a vertical.A dimensão horizontal está fortemente relacionada com a operação eficaz do sistema de checksand balances e com a transparência nos processos de tomada de decisão governamental. Esta operamediante uma rede de poderes relativamente autônomos (institucionais) que podem examinar equestionar e, se necessário, sancionar atos irregulares cometidos durante o desempenho de cargospúblicos. Já a dimensão vertical tem como foco central as eleições (prestação periódica de contasdos governantes nas urnas) e outros mecanismos que os cidadãos utilizam para controlar o governo(O´Donnell, 1997; Smulovitz et alii, 2000).

Teoricamente, enquanto os mecanismos horizontais controlam e monitoram a legalidade dasações de oficiais públicos e de agências governamentais, os verticais permitem aos cidadãos ocontrole das ações de seus representantes e orientações das políticas. Em ambos os casos, assume-seque os agentes controlados irão atuar de acordo com a lei ou de acordo com as preferênciaseleitorais porque querem evitar a imposição de potenciais custos. No caso dos mecanismos hori-zontais, os custos que pretendem evitar vão das sanções penais ao impeachment. No caso dosmecanismos verticais, o custo a ser evitado é a perda das eleições.

Smulovitz et alii (2000) chamam a atenção para o fato de existir uma terceira dimensãode accountability � a accountability societal � ignorada pelas análises tradicionais. Segundo osautores, através de uma multiplicidade de atividades de monitoramento e de estabelecimentode agenda, a sociedade civil acrescenta-se ao tradicional repertório de instituições eleitorais econstitucionais.

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Embora não seja eleitoral, a accountability societal estabelece mecanismos verticais decontrole que têm como base ações de um variado conjunto de associações e movimentos e dosmeios de comunicação, ações que têm como objetivo expor a má atuação governamental, trazernovas questões à agenda pública, ou ativar a operação de agências horizontais. E emprega tantoinstrumentos institucionais (ativar ações legais ou queixas) quanto não institucionais (mobili-zações sociais ou exposição na mídia) (Smulovitz et alii, 2000: 150).

Para ser eficaz, a accountability societal requer uma sociedade civil organizada capaz deexercer influência no sistema político e nas burocracias públicas � uma sociedade civilempoderada. Ao contrário dos mecanismos eleitorais, a accountability societal pode ser exer-cida entre eleições e não depende de calendários fixos. Pode ser ativada com a demanda e podeser dirigida para o controle de questões específicas, de políticos ou burocratas (Smulovitz et alii,2000: 150, grifo nosso).

Tal como os mecanismos horizontais, os societais podem monitorar os procedimentos dospolíticos e funcionários públicos enquanto fazem política. Ao contrário dos mecanismos horizontais,as medidas de accountability societal realizam estas funções de �cão de guarda� sem a necessidadede maiorias especiais ou de titularidades constitucionais (Smulovitz et alii, 2000: 150).

Enquanto a accountability vertical é justificada pelo princípio da maioria, a accountabilitysocietal retira sua legitimidade do direito de petição � um direito que não requer que a demandase encontre espalhada pela população. Em ambos os casos, a �voz� é o mecanismo disponívelpara controle. Nos mecanismos societais, embora necessite ser forte e intensa, a voz não necessitaser extensivamente representada. Esta característica revela uma das desvantagens deste tipo decontrole: as preferências de uma minoria persistente e barulhenta acabam sobre-representadas(Smulovitz et alii, 2000: 150).

Os mecanismos societais de accountability diferem também dos mecanismos horizontais everticais na medida em que as sanções que eles provocam não são mandatárias nem legais, massimbólicas. Embora os atores que exercem accountability societal sejam incapazes de aplicar puniçõeslegais por si mesmos, seus esforços ajudam a despontar procedimentos em tribunais ou agênciasque levam a eventuais sanções legais, além de poderem também destruir capital político com asdenuncias realizadas (Smulovitz et alii, 2000: 151).

Smulovitz et alii (2000) consideram então a existência de dois tipos de accountability,horizontal e vertical, sendo que a vertical se divide em eleitoral e societal. Os atores que controlama accountability horizontal são os membros do poder executivo, legislativo e judicial, juntamentecom as agências reguladoras. Os que controlam a accountability vertical eleitoral são os partidospolíticos com participação parlamentar e os cidadãos. Os atores que controlam a vertical societalsão as associações civis, as ONGs,os movimentos sociais e a mídia. Por seu lado, os mecanismosde controle de políticos e burocratas ao dispor das associações civis, ONGs e movimentos sociaissão a mobilização social com exposição pública e/ou denúncia, a investigação pelas agênciasresponsáveis e a formulação de agenda. Os ao dispor da mídia são investigação e denúncia/exposição pública e definição de agenda (Smulovitz et alii, 2000: 153).

Para ser eficaz, a accountability societal necessita de visibilidade dada pela mídia. Contudo,apesar de sua eficácia, o uso da mídia levanta alguns problemas, uma vez que as acusações damídia, mesmo que infundadas, criam a percepção de culpa, até prova em contrário � pode seruma ameaça aos direitos individuais (Smulovitz et alii, 2000: 154).

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Analisando a relação Estado-sociedade civil, em termos de accountability,31 é possível verificarque tanto os mecanismos de controle verticais eleitorais quanto os horizontais mostram sinais dedebilidade (Blair, 1997; Cornwall, 2000; O´Donnell, 1997; Narayan et alii, 2000; Smulovitz, 2000;Smulovitz et alii, 2000). E que existe um gap entre o Estado e os cidadãos. Segundo Cornwall(2000), esse gap só poderá ser eliminado através da participação cidadã32 e do exercício deaccountability. Blair (1997) vê também no fortalecimento da sociedade civil a chave para fortalecera democracia, em particular através da participação e accountability.

O que se relaciona com o que Smulovitz et alii (2000) denominaram de accountability societal,mecanismo ativado por vários atores da sociedade civil, onde se destaca o papel das ONGs inter-nacionais e locais. Ressaltando ainda que as próprias pessoas em estado de pobreza demandam oexercício deste mecanismo às ONGs, �elegendo-as� como seus representantes, pela falta de capa-cidades individuais, recursos financeiros, tempo e medo de represálias33 (risco de ofender os patrõese oficiais poderosos e de incorrer em perdas de emprego, multas, violência e outras penalidades)(Narayan, 2000; Smulovitz, 2000).

�A ONG deveria monitorar a performance dessas agências [estatais] e deveria tentar serimparcial nos assuntos internos da comunidade� � Participante de um grupo de discus-são, Entra a Pulso, Brasil (Narayan et alii, 2000: 231)

Contudo, a accountability societal deixa muitas questões em aberto e apresenta váriaslimitações que convém analisar.

A principal limitação deste mecanismo, salientada por Smulovitz (2000) e Smulovitz et alii(2000), diz respeito ao fato de nos mecanismos societais a �voz� precisar ser forte e intensa, masnão ser necessária uma representação ampla dessa voz na sociedade. O que pode levar a que asatividades de controle sobre os governantes sejam centradas em interesses de atores fortes eorganizados. E pode levar, também, à exclusão dos interesses de alguns atores e alguns temas.Temos assim três tipos de riscos, segundo Smulovitz (2000): risco de clientelismo, riscos envolvi-dos em qualquer processo de participação e riscos que resultam da especificidade de temas quepodem ser controlados.

Por todas estas limitações e questões apresentadas, acreditamos ser importante analisar aquestão da accountability das ONGs internacionais e locais, principalmente em relação às pessoasem estado de pobreza e de exclusão com que elas trabalham. É necessário que estas promovamum engajamento ativo das pessoas com que trabalham, cultivando voz, criando consciência crítica,defendendo a inclusão de mulheres, crianças, analfabetos, pobres e excluídos, ampliando os es-paços de envolvimento na tomada de decisão e construindo capacidades políticas para engaja-mento democrático (Cornwall, 2000: 75). E também estimulando seu processo de empodera-mento e aumentando sua demanda por accountability, quer em relação às ONGs que com elastrabalham, quer em relação às instituições estatais.

31 Análise realizada no ensaio Não é apenas do Estado que a população está demandando accountability, mas também dasociedade civil. Como ela está respondendo? O caso da ActionAid Brasil, apresentado como trabalho final da disciplina deOrganizações, Política e Poder do mestrado em Estudos Internacionais Comparados do CPDA/UFRRJ.

32 Segundo Gaventa e Valderrama (citados pela autora), a participação cidadã é definida como formas diretas pelas quais oscidadãos influenciam e exercem controle na governança, sendo um meio de ampliar a accountability (Cornwall, 2000: 60/1).

33 Ou seja, pela sua posição subordinada na teia de relações de poder estabelecidas no meio que as rodeia.

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Segundo Narayan alii (2000),34 apesar da grande variedade de critérios apresentados pelaspessoas em estado de pobreza para avaliar o caráter das instituições, estes podem ser divididos emtrês grandes categorias: qualidade de relações, valores comportamentais e eficácia. A maior ênfase édada, pelas pessoas pobres, a uma grande variedade de critérios de relacionamento. Estes incluemconfiança, participação, accountability, união e capacidade de resolução de conflitos. Critérios com-portamentais incluem respeito, honestidade, transparência, ouvir, gostar, ter carinho e trabalho duro.Eficácia inclui tempo para apoiar, acesso e contato com a instituição (Narayan et alii, 2000: 180).

Destes critérios, os que merecem atenção, no âmbito desta análise, são a participação e aaccountability.

As pessoas definiram, em geral, participação como engajamento na tomada de decisões,juntar-se para participar em discussões e reuniões, expressar opiniões e serem ouvidas, e tercontrole e influência nas decisões tomadas.

�Participação é a capacidade de ter voz no que acontece� � participante de um grupode discussão, Thompson Pen, Jamaica.

�... quando as pessoas têm acesso a participar e expressar sua opinião em qualquerprocesso de tomada de decisão sem ter medo� � participante de um grupo de discussão,Dewangonj, Bangladesh (Narayan alii, 2000: 181).

De acordo com a avaliação de várias pessoas em estado de pobreza por �todo o mundo�(Terceiro Mundo), os autores fizeram a classificação de várias instituições, sendo que as ONGs(que trabalham com emergências e provisão de serviços) pontuam negativamente nos critérios departicipação e accountability, enquanto as organizações locais pontuam positivamente.35

�Só Deus nos escuta� � participante de um grupo de discussão, Zawyet Sultan, Egito.

�Ninguém pergunta nada às pessoas� � Sekovici, Bosnia Herzegovina (Narayan et alii,2000: 181).

Embora nem todas as pessoas em estado de pobreza procurem estar ativamente envolvidasna gestão das ONGs, várias pessoas se referiram à falta de accountability destas. E, embora asONGs sejam bastante apreciadas pelas pessoas pobres, estas gostariam que respondessem às suasnecessidades e de estar envolvidas na tomada de decisão das ONGs (Narayan et alii, 2000: 228/232).

�Gostaríamos de ter mais controle sobre o governo e as ONGs� � homem, Adaboya,Gana (Narayan et alii, 2000: 185).

Roche (1997), analisando o caso específico da Acord,36 verificou que a accountability doconsórcio era maioritariamente dirigida aos seus fundadores e pessoal, que por sua vez prestavam

34 Este livro tem como base testemunhos de 20 mil mulheres e homens pobres, resultantes do trabalho de campo realizado em1999 em 23 países da Ásia, África, América Latina e Caribe e Leste europeu, onde foram utilizados métodos participativos equalitativos de pesquisa. Embora a riqueza dos testemunhos dessas pessoas, de certa forma, se perca com a agregação enecessária generalização de realidades tão distintas, acreditamos que se trate de uma contribuição fantástica para sabermosum pouco mais sobre o que dizem �as vozes dos pobres�.

35 Mais uma vez gostaríamos de chamar a atenção para o nível de generalidade do estudo. Gostaria também de salientar o tipode ONG considerada.

36 A Acord � Agency for Co-operation and Research in Development (Agência para a Cooperação e Pesquisa em Desenvolvimento)é um consórcio internacional de ONGs européias e canadenses que trabalham juntas em prol do desenvolvimento de longoprazo na África.

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contas a seus boards e público e que, apesar de algum trabalho em processos de avaliaçãomútua, não existia nenhum mecanismo real através do qual o consórcio prestasse accountabilitypara aqueles com quem trabalhava. Ou seja, a accountability era apenas vista pelo consórcio nasua dimensão reduzida de prestação burocrática de contas e não como instrumento de controlede poder entre atores. Tal fato levou a um descolamento entre o trabalho da ONG e as necessidadesdas pessoas a quem se dirigia esse trabalho.

Conclui-se, então, que participação e accountability são demandas das pessoas em estadode pobreza em relação às ONGs que com elas trabalham, que estas pessoas não querem mais serreceptoras passivas de serviços e pretendem tornar-se agentes de seu próprio desenvolvimento.

Torna-se então necessário garantir accountability e participação, não só na relação entreEstado e sociedade civil como nas relações estabelecidas dentro da própria sociedade civil.

Um caminho possível para analisar a questão da accountability das ONGs internacionais elocais seria recorrer a um �jogo metodológico� com os conceitos de accountability horizontal evertical, tomando em consideração as relações de poder subjacentes a estas noções. E utilizando-seo conceito de accountability horizontal para os mecanismos de controle e prestações de contasestabelecidos entre atores com �níveis� de poder equivalentes � membros com o mesmo nívelhierárquico dentro das ONGs, seus diferentes departamentos �, ou atores em que, as relações queestabelecem são na sua maioria de aliança e cooperação, isto é, onde operam mais as relações deinfluência que as relações de poder (dominação/subordinação) � ONGs e outros atores da socie-dade civil, Estado37 e mercado.

O conceito de accountability vertical seria utilizado para os mecanismos ativados por atoresque detêm menos poder � parceiros e comunidades � para controlar ações, exigir prestação decontas e participar das decisões de atores com maior poder � ONGs. Assim, as ONGs prestariamaccountability vertical para com as pessoas, famílias e comunidades com que trabalham, seusparceiros e, dentro das ONGs, dos diretores para os restantes membros das equipes.

As ONGs têm ainda o papel fundamental de exercer accountability societal, principalmenteem relação ao Estado. E este tipo de accountability pode ser exercido também em relação a atoresda esfera do mercado e outros atores da esfera da sociedade civil.

4. Considerações finais

Com base no balanço teórico realizado, apresentamos agora uma possível articulação das noçõesde desenvolvimento, pobreza e empoderamento. As noções de pobreza e de empoderamentoapresentadas em seguida visam a levantar algumas questões para a reflexão em curso na ActionAidBrasil sobre empoderamento como meio de combate à pobreza.

A discussão tem a seguinte idéia base: pobreza é um estado de desempoderamento e deprivação que apresenta várias dimensões e se manifesta de forma diferenciada de pessoa parapessoa, de família para família e de comunidade para comunidade; e para superar as pobrezas énecessário enfrentar suas várias dimensões, percorrendo os caminhos individuais e coletivosde empoderamento.

37 Quando este não é o principal financiador da ONG.

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4.1. Noção de pobreza

A pobreza é compreendida como um estado de privação e de desempoderamento. Uma noçãocomplexa que apresenta várias dimensões: a falha na dotação e titularidade sobre os recursos, aprivação de capacidades individuais e coletivas, a falta de acesso às organizações e movimentosda sociedade civil, ao Estado e ao mercado e a falta de poder pessoal, social, político e econômico.

Consideramos que existem pobrezas, isto é, diferentes níveis de pobreza, pois a desigualdademanifesta-se também entre os pobres e não só entre as diferentes classes. As diferentes dimensõesde pobreza manifestam-se de forma diferenciada e agravada no caso de alguns grupos sociaismais discriminados e mais sujeitos a relações de dominação e exclusão, como é o caso das mulheres,dos jovens, dos idosos, dos negros, dos indígenas, das minorias sexuais, dos deficientes. Ou seja,existem diferentes tipos de desigualdade que agravam estas dimensões de pobreza.

Falha na dotação e titularidade sobre os recursos38 

Na sua trajetória as pessoas, famílias e comunidades definem estratégias de reprodução e/ousobrevivência e os resultados esperados das mesmas. Para operacionalizar e potencializar essasestratégias é necessário mobilizar recursos, que podem ser tangíveis ou intangíveis, e de titularidadedas pessoas, famílias e/ou comunidades ou não.

Consideraremos quatro grandes tipos de recursos: naturais, humanos, econômicos e sociais.

� Recursos naturais: atmosfera, biodiversidade, terra, água etc.;

� Recursos humanos: pessoais (qualificações, conhecimentos, habilidades, saúde etc.) e dafamília e comunidade (quantidade, qualidade e diversidade, em termos de gênero e de gera-ção, do trabalho disponível etc.);

� Recursos econômicos: infra-estrutura básica (transporte a preços acessíveis, habitação econstruções seguras, oferta de água de qualidade e saneamento básico, energia limpa e apreços acessíveis, acesso à informação, etc.), bens de produção (instrumentos e equipamentosde trabalho) e recursos financeiros (estoques disponíveis em poupanças e crédito, por exemplo,e recebimentos regulares de dinheiro além da renda, como aposentadoria, outras transferênciasdo Estado e remessas de familiares que migraram);

� Recursos sociais: identidade, cultura, saber tradicional e local, formas de interação social,normas de reciprocidade e redes de sociabilidade, movimentos, associações e ONGs locais eregionais, redes de organizações da sociedade civil ligadas ao local etc.

A falha na dotação e/ou titularidade sobre os recursos necessários a operacionalizar e/oupotencializar as estratégias de reprodução e/ou sobrevivência das pessoas, famílias e comunida-des é considerada como uma dimensão da pobreza, na medida em que retira das pessoas, famílias ecomunidades a liberdade de alcançar os resultados por elas valorizados de suas estratégias dereprodução e/ou sobrevivência.

38 Optamos por denominar de recursos os capitais do esquema de Bebbington e considerar capital cultural e social como umconjunto de recursos sociais.

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Privação de capacidades individuais e coletivas

As pessoas, famílias e comunidades possuem diferentes capacidades de ser e de fazer que possi-bilitam gerir recursos (usar, trocar, combinar, transformar, defender, manter, reproduzir, expandir),definir e escolher entre diferentes estratégias de reprodução e/ou sobrevivência e alcançar osresultados por elas valorizados das mesmas.

Como exemplos de capacidades de ser temos a auto-estima, a identidade, a cultura e o sabertradicionais e locais, entre outras. E como exemplos de capacidades de fazer temos: capacidadede estar livre de doenças que podem ser evitadas, de poder escapar da morte prematura, de evitarprivações como fome e desnutrição, saber ler, saber escrever, saber fazer cálculos aritméticos,capacidade de utilização das informações disponíveis, capacidade de participar social e politica-mente, capacidade de expressão, capacidade de gerir os recursos disponíveis, capacidade deinfluenciar e ter voz nas tomadas de decisão que afetam seu destino, entre outras.

Outra dimensão de pobreza manifesta-se pela privação de capacidades individuais e coletivasde ser e de fazer. Para definir se a pessoa, família e/ou comunidade se encontra num estado deprivação de capacidades é necessário analisar o contexto em que a mesma se encontra inserida,isto é, em relação a outras pessoas dentro da mesma família, outras famílias dentro da mesmacomunidade, outras comunidades dentro da mesma região. E deixar as próprias pessoas, famíliase comunidades definirem seu estado de privação de capacidades: quais as capacidades que valo-rizam e de que se sentem privadas, quais as capacidades que necessitariam para superar seuestado de pobreza.

Além das pessoas, famílias e comunidades em estado de pobreza se encontrarem privadas decapacidades, por vezes as capacidades que possuem são desvalorizadas por elas mesmas e pelosoutros, isto é, não têm suas capacidades reconhecidas, o que limita que estas sejam exercidas emesmo expandidas. O que pode ser visto como falta de poder pessoal, que se traduz em falta deauto-estima, de autoconfiança e de identidade.

Falta de acesso às organizações e movimentos dasociedade civil, aos atores do Estado e do mercado

Outro fator que bloqueia o livre exercício e a expansão das capacidades é a falta de acesso àsorganizações e movimentos da sociedade civil, aos atores do Estado e do mercado, que limitatambém a titularidade sobre os recursos.

A falta de acesso pode-se traduzir tanto na falta de espaços nessas três esferas que permitama participação das pessoas, famílias e comunidades e/ou seus representantes, quanto na impossi-bilidade de uma utilização efetiva desses espaços pelas pessoas, famílias e comunidades e/ou seusrepresentantes devido às relações de poder existentes. Essas relações de poder limitam as liberdadesindividuais e coletivas nos níveis político, social e econômico e bloqueiam o livre exercício e aexpansão das capacidades individuais e coletivas, diminuindo o poder político, econômico e socialdas pessoas, famílias e comunidades.

Essas relações de poder estão presentes na família e nas próprias comunidades, que voluntáriae/ou involuntariamente, excluem alguns de seus membros da tomada de decisões, do acesso arecursos e do exercício de suas capacidades. Algumas organizações da sociedade civil limitam aparticipação dos mais desempoderados e privados de suas dinâmicas, voluntária ouinvoluntariamente, e não promovem accountability para com as pessoas, famílias e comunidadescom que trabalham, bloqueando assim o livre exercício e expansão de capacidades das últimas.

� O CAMINHO DO EMPODERAMENTO: ARTICULANDO AS NOÇÕES DE DESENVOLVIMENTO, POBREZA E EMPODERAMENTO �

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Na esfera do Estado, as relações de poder podem assumir a forma de clientelismo, troca defavores por voto e de dependência, de falta de accountability horizontal e da não abertura deespaços para participação das pessoas, famílias, comunidades e/ou seus representantes.

As relações de poder existentes na esfera do mercado subordinam, exploram ou excluemtotalmente as pessoas, famílias e comunidades do acesso ao mesmo, quer para comprar, querpara vender bens, serviços ou força de trabalho.

4.2. O caminho do empoderamento na superação das pobrezas

O empoderamento é entendido como um processo contínuo e em constante renovação deaumento do poder pessoal, social, político e econômico das pessoas, famílias, comunidades eorganizações da sociedade civil, que se traduz na ampliação das capacidades individuais e coletivas,no aumento do controle, sobre recursos e ampliação do acesso às organizações da sociedadecivil, ao Estado e ao mercado, em condições de maior eqüidade e accountability, contribuindopara o aumento das liberdades em geral.

Empoderamento é um meio de construção do desenvolvimento local alternativo sustentável,que tem origem dentro das pessoas, no seio das famílias, das comunidades e das organizações emovimentos locais e que não pode ser pensado de cima para baixo nem de fora para dentro.Embora os agentes externos de mudança possam catalisar ou criar um ambiente favorável aodesenrolar do processo, o empoderamento não é algo que se possa fazer pelas pessoas, mas algo queas pessoas têm de fazer por elas mesmas, ou seja, são as pessoas que se empoderam a si mesmas.

Consideramos que este processo tende a seguir um �caminho�, tendo como ponto de partidao empoderamento individual (pessoas e famílias) e crescendo no sentido do empoderamentocoletivo (comunidades, movimentos, organizações e redes da sociedade civil). Tem como objetivos atransformação das relações de poder e um maior nivelamento dos níveis de poder, originandomaior eqüidade na sociedade.

É um processo de aumento do poder das pessoas, famílias, comunidades e organizações emovimentos da sociedade civil que possibilita um maior controle sobre os recursos disponíveis e olivre exercício e a expansão de suas capacidades individuais e coletivas, de forma a que estastenham liberdade para atingir os resultados por elas valorizados de suas estratégias de reprodução.

Esse �caminho do empoderamento� teria então como ponto de partida o aumento da auto-estima e da autoconfiança das pessoas, famílias e comunidades que se encontram em estado depobreza, ou seja, o aumento de seu poder pessoal.

Esse aumento da auto-estima e autoconfiança individual e coletiva poderia ser conseguidoatravés da (re)valorização e do estímulo à expansão das capacidades das pessoas, famílias ecomunidades. Cumpre então resgatar sua cultura e saber tradicionais, (re)construir sua identidade,aumentar a capacidade de gestão de recursos que viabilizam e potencializam suas estratégiasde reprodução, incentivar a mobilização e organização das pessoas, famílias e comunidades,estimular sua inclusão nas dinâmicas sociais, ampliar seu acesso às organizações e movimentos dasociedade civil e levar as pessoas, famílias e comunidades a se transformarem em agentes de seupróprio desenvolvimento.

Outra forma de dar o primeiro estímulo ao processo de empoderamento é através da conscien-tização das pessoas e famílias em relação às privações de que são alvo e sobre seus direitos,incentivando sua mobilização e organização para a implementação dos mesmos. Neste caso serátambém necessário um processo de aumento de auto-estima e de autoconfiança dessas pessoas,famílias e comunidades.

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Como um segundo passo39 do processo de empoderamento, temos a alteração das relaçõesde poder existentes entre as pessoas, famílias, comunidades e as organizações e movimentos dasociedade civil, os atores da esfera do Estado e do mercado, rompendo os laços de dependênciae subordinação que bloqueiam o livre exercício e a expansão de suas capacidades.

Nas relações estabelecidas dentro da família, na comunidade, nas organizações e movimentosda sociedade civil e nas relações estabelecidas entre as pessoas, famílias, comunidades e organizaçõese movimentos da sociedade civil com o Estado, a principal demanda é por maior accountability,participação e respeito aos processos, estratégias, tecido social e identidade locais. Ou seja, oaumento de poder social (relação com organizações da sociedade civil), o aumento do poderpolítico (relação com o Estado) e o aumento do poder econômico (relação com o mercado).

Para que a participação seja efetiva é necessário que os espaços de participação sejam ocupadospor pessoas e/ou organizações e movimentos da sociedade civil empoderados, que além de teremvoz nesses espaços possam num segundo momento ter meios para exercer a accountability societal,ou seja, que exijam transparência e participação nas tomadas de decisão, coloquem pontos naagenda, exponham corrupção e má atuação e exijam accountability horizontal. Que as organizaçõesda sociedade civil promovam accountability vertical para com as pessoas, famílias e comunidadescom que trabalham e que sejam abertos espaços à participação destas nas suas dinâmicas.

É preciso que as organizações e movimentos da sociedade civil se empoderem, expandamsuas capacidades coletivas, valorizem sua auto-estima coletiva, criando uma identidade forte, e searticulem entre si, trocando experiências, conhecimentos e propostas, formando redes e fortale-cendo a esfera da sociedade civil, para que a lógica desta última comece a permear as lógicas dasduas outras esferas, as do Estado e do mercado. Desta forma, equilibram-se os poderes entre astrês esferas e transforma-se a relação entre elas, que deixa de ser uma relação de subjugação/subordinação e dominação para se tornar uma relação pautada no diálogo e na negociação � o quecontribuirá para o aumento das liberdades em geral.

Existem no mercado espaços socialmente construídos que se pautam pelos princípios dasolidariedade e onde as relações entre agentes se pautam pelos princípios da cooperação, diminuindoas relações de dominação e sujeição típicas do mercado capitalista ao eliminar os atravessadorese propor uma relação direta entre produtores e consumidores organizados de forma solidária,possibilitando assim o pagamento de um preço justo aos produtores e diminuindo, ao mesmotempo, o preço nos consumidores � são as experiências de economia solidária. Existem, também,nichos de mercado que valorizam o produto da agricultura familiar, pagando um preço justo porele e, o mais importante, dando oportunidade para o acesso dos agricultores familiares ao mercado.A aposta nos produtos orgânicos e na agroecologia também abre oportunidades de acesso aomercado em condições mais favoráveis para a agricultura familiar. É preciso ocupar e ampliaresses espaços. Embora estes sejam pequenas ilhas abertas à agricultura familiar dentro da esferado mercado, várias têm sido as iniciativas de construção de pontes entre essas experiênciasbem sucedidas.

Estas são apenas algumas questões que consideramos capazes de contribuir para a reflexãoem curso na ActionAid Brasil sobre empoderamento e combate à pobreza.

39 Note-se que, apesar de falarmos em primeiro e segundo passo, consideramos empoderamento um processo contínuo e comrecuos e avanços constantes, uma espiral de conquistas e aprendizado que se renova constantemente.

� O CAMINHO DO EMPODERAMENTO: ARTICULANDO AS NOÇÕES DE DESENVOLVIMENTO, POBREZA E EMPODERAMENTO �

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