emily rodda deltora quest 3 - a cidade dos ratos

80

Upload: lucas-ritter

Post on 12-Jul-2015

3.230 views

Category:

Documents


135 download

TRANSCRIPT

Page 1: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos
Page 2: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

DELTORA É UMA TERRA DE MONSTROS E MAGIA...

Lief, Barda e Jasmine, três companheiros que têm em comum somente o ódio

que nutrem pelo inimigo, saíram numa perigosa busca para encontrar as sete pedras

preciosas do mágico Cinturão de Deltora. Somente quando o Cinturão estiver completo

novamente, o malvado Senhor das Sombras poderá ser derrotado.

Eles obtiveram êxito em encontrar o topázio dourado e o grande rubi. Os

misteriosos poderes das duas pedras fortaleceram os amigos e lhes deram coragem

para prosseguir na busca pela terceira pedra. Contudo, nenhum deles sabe que

horrores os aguardam na proibida Cidade dos Ratos.

SUMÁRIO

A armadilha

Carne assada

Tudo para o viajante

Questões de dinheiro

A negociação

Noradz

Costumes estranhos

O julgamento

As cozinhas

O buraco

O preço da liberdade

Uma questão de negócios

Além do Rio Largo

A noite dos ratos

A cidade

Reeah

Esperança

Page 3: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

ATÉ AGORA...

Lief, de 16 anos de idade, cumprindo uma promessa feita pelo pai, antes que o

filho nascesse, saiu em uma grande busca para encontrar as sete pedras preciosas do

mágico Cinturão de Deltora. Somente o Cinturão poderia salvar o reino da tirania do

malvado Senhor das Sombras que, apenas alguns meses antes do nascimento de Lief,

invadira Deltora e escravizara o seu povo com a ajuda de feitiçaria e de seus temidos

Guardas Cinzentos.

As pedras — uma ametista, um topázio, um diamante, um rubi, uma opala, um

lápis-lazúli e uma esmeralda — foram roubadas a fim de permitir que o desprezível

Senhor das Sombras invadisse o reino. Agora, elas se encontram escondidas em locais

sombrios e terríveis em toda Deltora. Somente depois de recolocadas no Cinturão, é

que o herdeiro do trono poderá ser encontrado, e o Senhor das Sombras será derrotado.

Os companheiros de Lief são Barda, um homem mais velho que foi guarda do

palácio, e Jasmine, uma garota selvagem e órfã da idade de Lief. Os dois a conheceram

em sua primeira aventura nas temíveis Florestas do Silêncio.

Nas Florestas, os três companheiros descobriram os fantásticos poderes de

cura do néctar dos Lírios da Vida. Eles também conseguiram encontrar a primeira pedra

— o topázio dourado, símbolo da lealdade, que tem o poder de fazer os vivos entrar em

Page 4: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

contato com o mundo espiritual e de clarear e estimular a mente. No Lago das Lágrimas,

eles romperam o cruel encantamento da feiticeira Thaegan, libertaram o povo de

Raladin e de D'Or de sua maldição e encontraram a segunda pedra — o admirável rubi,

símbolo da felicidade, cuja cor perde a intensidade quando desgraças ameaçam quem o

usa.

Agora, continue a leitura...

Com os pés doloridos e fatigados. Lief, Barda e Jasmine dirigiram-se para o

oeste, na direção da lendária cidade dos ratos. Eles pouco sabiam sobre o seu destino,

exceto que se tratava de um lugar maligno e há muito abandonado por seu povo.

Entretanto, tinham quase certeza de que uma das sete pedras perdidas do cinturão de

Deltora estava escondida lá.

Os companheiros haviam caminhado sem parar o dia todo e, naquele

momento, quando o sol cintilante deslizava na direção do horizonte, ansiavam por parar

e repousar. Mas a estrada que percorriam, profundamente sulcada pelas rodas de

carroças, ziguezagueava por uma planície cujo solo se encontrava totalmente tomado

por arbustos espinhentos. Os espinheiros cobriam toda a estrada e se estendiam até

onde a vista podia alcançar.

Lief suspirou e tocou o Cinturão oculto debaixo da camisa em busca de

consolo. Agora ele continha duas pedras: o topázio dourado e o rubi escarlate. Ambas

haviam sido conquistadas com grandes dificuldades e, nesse processo, grandes feitos

haviam sido realizados.

O povo de Raladin, com quem haviam ficado nas duas últimas semanas,

desconhecia a busca pelas pedras perdidas. Manus, o pequeno ralad que os

acompanhara na busca pelo rubi, jurara silêncio. Mas não era segredo que os

companheiros haviam causado a morte da malvada feiticeira Thaegan, aliada do cruel

Page 5: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

Senhor das Sombras. E também não era segredo que dois dos 13 filhos da bruxa

tiveram o mesmo destino que a mãe. Os ralads, finalmente livres da maldição de

Thaegan, criaram muitas canções de alegria louvando os amigos por seus feitos.

Fora difícil deixá-los. Difícil abandonar Manus, a felicidade, a segurança, a boa

comida e as camas macias e quentes do vilarejo oculto. Mas ainda havia cinco pedras a

serem encontradas e, enquanto não fossem recolocadas no Cinturão, a tirania do

Senhor das Sombras não poderia ser derrotada. Os três companheiros precisavam

prosseguir.

— Esses espinheiros são intermináveis — Jasmine queixou-se, a voz

interrompendo os pensamentos de Lief, que se voltou para fitá-la. Como sempre, a

pequena criatura peluda chamada Filli encontrava-se aninhada no ombro dela e piscava

por entre a massa de cabelos negros de sua dona. Kree, o corvo, que nunca se afastava

muito da vista de Jasmine, esvoaçava sobre os espinheiros próximos e apanhava

insetos. Ao menos ele estava cuidando do estômago.

— Há alguma coisa adiante! — Barda avisou, apontando para um ponto branco

cintilante ao lado da estrada.

Curiosos e esperançosos, eles correram para o local onde, sobressaindo-se

dos espinheiros, havia uma estranha placa.

— O que isso significa? — Jasmine murmurou.

— Parece estar apontando a direção de algum tipo de loja — supôs Lief.

— O que é loja?

Lief olhou de relance para a garota perplexa e então lembrou que ela passara

a vida nas Florestas do Silêncio e que nunca vira muitas das coisas que ele considerava

normais.

— Uma loja é um lugar para comprar e vender mercadorias — Barda explicou.

— Hoje em dia, na cidade de Del, as lojas são malservidas, e muitas foram fechadas.

Mas antigamente, antes do Senhor das Sombras, havia muitas que vendiam alimentos,

bebidas, roupas e outros artigos.

Jasmine olhou para ele, intrigada. Lief se deu conta de que mesmo assim ela

Page 6: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

não compreendia. Para ela, os alimentos nasciam nas árvores e a bebida corria nos

riachos. Outros objetos eram encontrados ou fabricados, e o que não podia ser

encontrado ou fabricado era esquecido.

Eles caminharam com dificuldade estrada acima, conversando em voz baixa e

tentando esquecer o cansaço. Mas logo ficou escuro demais para enxergar alguma

coisa e eles tiveram de acender uma tocha para guiar-lhes o caminho. Barda segurava a

chama bruxuleante para baixo, porém todos sabiam que ela ainda podia ser vista do

alto.

O pensamento de que os seus passos poderiam ser seguidos com tanta

facilidade era desagradável. Mesmo àquela hora, os espiões do Senhor das Sombras

poderiam estar patrulhando os céus. Além disso, eles ainda não tinham saído do

território que fora de Thaegan. Embora ela estivesse morta, eles sabiam muito bem que

a maldade havia dominado por muito tempo e que o perigo era uma ameaça em todos

os lugares.

Cerca de uma hora depois de acenderem a tocha, Jasmine parou e olhou para

trás.

— Estamos sendo seguidos. Não só por uma criatura, mas por muitas — ela

sussurrou.

Embora não conseguissem ouvir nada, Lief e Barda não se preocuparam em

perguntar-lhe como percebera. Eles haviam aprendido que os sentidos de Jasmine

eram muito mais aguçados e afiados que os seus. Ela podia não saber o que eram lojas,

mas seus outros conhecimentos eram muito amplos.

— Eles sabem que estamos à frente deles — ela murmurou. — Eles param

quando paramos e andam quando andamos.

Em silêncio, Lief puxou a camisa para cima e olhou para o rubi cravado no

Cinturão. Seu coração acelerou quando viu, sob a luz bruxuleante da tocha, que o

vermelho vivo da pedra havia se transformado num cor-de-rosa pálido.

Barda e Jasmine também observavam a pedra. Assim como Lief, eles sabiam

que a cor do rubi esmaecia quando algum perigo ameaçava quem o usava. Sua

mensagem, naquele momento, era clara.

— Então, nossos seguidores têm más intenções — Barda murmurou.

— Quem serão eles? Será que Kree poderia voltar e...

— Kree não é uma coruja! — Jasmine disparou. — Ele não consegue enxergar

no escuro, não mais do que nós. — Ela se agachou, encostou o ouvido no solo e,

franzindo a testa, ouviu com atenção. — Pelo menos os nossos perseguidores não são

Guardas Cinzentos. São silenciosos demais e não estão marchando.

— Talvez seja um bando de ladrões que pretende armar uma emboscada

Page 7: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

assim que pararmos para dormir ou descansar. Precisamos voltar e lutar! — A mão de

Lief já se encontrava no punho da espada. As canções dos ralads soavam em seus

ouvidos. O que era um grupo de ladrões maltrapilhos comparado aos monstros que ele,

Barda e Jasmine haviam enfrentado e derrotado?

— O meio de uma estrada margeada por espinheiros não é um bom lugar para

oferecer resistência, Lief — argumentou Barda, sombriamente.

— E aqui não há nenhum lugar em que possamos nos esconder e pegar os

inimigos de surpresa. Devemos continuar e tentar encontrar um local melhor.

Os amigos recomeçaram a andar, dessa vez mais depressa. Lief olhava para

trás constantemente, mas não havia nada entre as sombras.

Eles alcançaram uma árvore morta que parecia um fantasma ao lado da

estrada, o tronco desbotado destacando-se entre os espinheiros. Momentos após eles a

terem ultrapassado, Lief sentiu uma mudança no ar e a sua nuca começou a formigar.

— Eles estão acelerando — Jasmine constatou, ofegante.

E então eles ouviram o som. Um uivo longo e baixo que gelava o sangue.

Filli, agarrado ao ombro de Jasmine, emitiu um leve som assustado. Lief viu

que o pêlo do animalzinho se arrepiara por todo o seu corpinho.

Seguiu-se mais um uivo e depois outro.

— Lobos! — Jasmine sussurrou. — Não vamos conseguir fugir. Eles estão

perto demais!

Ela preparou mais duas tochas com o material que levava na sacola e

acendeu-as na que já carregava. — Eles vão ficar com medo do fogo — ela disse,

colocando os dois fachos recém-acesos nas mãos de Lief e Barda. — Mas precisamos

enfrentá-los. Não podemos voltar-lhes as costas.

— Vamos ter de andar de costas até a loja de Tom? — agarrando a sua tocha,

Lief tentou fazer uma brincadeira, mas nem Jasmine, nem Barda acharam graça. O

homem fitava a árvore morta que cintilava fracamente ao longe.

— Eles só se aproximaram depois que passamos pela árvore — murmurou. —

Queriam impedir que subíssemos nela e escapássemos. Não são lobos comuns.

— Estejam preparados — Jasmine advertiu.

Ela já empunhava a adaga, e Lief e Barda desembainharam as espadas. Eles

permaneceram juntos, as tochas no alto, esperando.

E, acompanhando outro coro de uivos de gelar o sangue, da escuridão surgiu

o que pareceu um mar de pontos de luz amarela em movimento — eram os olhos dos

lobos.

Jasmine agitava a tocha à sua frente de um lado para o outro. Lief e Barda

faziam o mesmo, de modo que a estrada ficou bloqueada por uma linha de chamas em

Page 8: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

movimento.

Os animais diminuíram o passo, mas ainda avançavam, rosnando. À medida

que se aproximavam da luz, Lief podia ver que, de fato, não se tratava de lobos comuns.

Eram imensos, cobertos por um pêlo espesso e opaco com listras marrons e amarelas.

Os lábios se arregaçaram para trás, deixando à vista as mandíbulas furiosas, e o interior

das bocas abertas não era vermelho, mas preto.

Lief os contou rapidamente. Eram 11. Por algum motivo, esse número

significava algo para ele, mas não conseguia lembrar do que se tratava. De qualquer

forma, não havia tempo para preocupar-se com tais pensamentos. Acompanhado de

Barda e Jasmine, começou a caminhar para trás com a tocha em movimento contínuo.

Mas, a cada passo que os amigos davam, os animais faziam o mesmo.

Lief lembrou-se de sua piada tola, "Vamos ter de andar de costas até a loja do

Tom?", ele perguntara.

Naquele momento, parecia que era exatamente isso que seriam obrigados a

fazer. 'As bestas estão nos guiando", ele pensou.

As bestas estão nos guiando... Eles não são lobos comuns... Eles são 11...

— Barda! Jasmine! — sussurrou, com um frio no estômago. — Eles não são

lobos. Eles são...

Mas não conseguiu terminar, pois, naquele instante, ele e os amigos deram

outro passo para trás, a enorme rede que havia sido armada para eles se fechou e os

três ficaram pendurados no alto, aos gritos.

Page 9: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

Amontoados na rede tão juntos que mal podiam se mover, Lief, Barda e

jasmine balançavam no ar, indefesos e agoniados. As tochas e armas haviam voado de

suas mãos ao serem içados para cima. Kree esvoaçava ao redor deles, grasnando,

desesperado.

A rede pendia de uma árvore que crescia ao lado da trilha. Ao contrário de

qualquer outra árvore que tinham visto, ela estava viva. O galho que sustentava a rede

era grosso e forte, forte demais para quebrar.

Lá embaixo, os lobos passaram a emitir urros de triunfo. Lief olhou para baixo e,

sob a luz das tochas caídas, pôde ver que os corpos das bestas inchavam e tomavam

uma forma humana.

Alguns instantes depois, 11 criaturas hediondas e de dentes arreganhados

davam cambalhotas na trilha sob a árvore. Algumas eram grandes, outras, pequenas.

Algumas tinham o corpo coberto de pêlos, outras eram totalmente desprovidas de

cabelos. Eram verdes, marrons, amarelas, de um branco pálido e até de um vermelho

lodoso. Uma delas tinha seis pernas atarracadas. Lief sabia quem eram.

Eram os filhos da feiticeira Thaegan. Ele se lembrou do verso que listava seus

nomes.

Hot, Tot, Jin, Jod, Fie, Fly, Zan, Zod, Pik, Snik, Lun, Lod. E o temível Ichabod.

Jin e Jod estavam mortos, sufocados na própria armadilha de areia movediça.

Agora restavam somente 11. Mas estavam todos ali, reunidos para caçar os inimigos

que haviam provocado a morte da mãe e dos irmãos. Eles queriam vingança.

Grunhindo e fungando, alguns dos monstros arrancavam espinheiros pelas

raízes e os empilhavam sob a rede que balançava. Outros apanhavam as tochas e

dançavam em círculos, cantando:

Mais calor, mais calor,

Carne assada macia e suculenta!

Veja como é divertido

Page 10: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

Esperar que fique pronta.

Escute os gemidos,

O estalar dos ossos!

Mais calor, mais calor,

Carne assada macia e suculenta!

— Eles vão nos queimar! — grunhiu Barda, lutando em vão. — Jasmine, a sua

segunda adaga. Você consegue pegá-la?

— Você acha que eu ainda estaria pendurada aqui se pudesse? — Jasmine

sussurrou, furiosa.

Lá embaixo, os monstros se divertiam, jogando as tochas sobre a pilha de

espinheiros. Lief já podia sentir o calor e o cheiro de fumaça. Ele sabia que em breve os

arbustos verdes iriam secar e se incendiar. Então, ele e os amigos assariam no calor e,

quando a rede se queimasse, cairiam na fogueira.

Algo macio roçou o rosto de Jasmine. Era Filli. A pequena criatura conseguira

sair de seu esconderijo no ombro da dona e, naquele momento, estava se espremendo

para passar pela rede, ao lado da orelha de Lief.

Pelo menos ele estava livre. Mas, em vez de subir correndo pelas cordas para

se esconder nas árvores, como Lief esperava que fizesse, continuou segurando-se na

rede e começou a mordiscá-la desesperadamente. Lief percebeu que ele tentava abrir

um buraco grande o bastante para que passassem.

Era um esforço louvável, mas quanto tempo levaria para que os dentes miúdos

roessem aquelas cordas fortes e grossas? Tempo demais. Muito antes de Filli conseguir

abrir mesmo uma pequena abertura, os monstros perceberiam o que ele estava fazendo

e o afastariam ou então o matariam.

Ouviu-se um grunhido de raiva vindo do solo. Lief olhou para baixo, em pânico.

Os inimigos já teriam notado a presença de Filli? Não, eles não estavam olhando para

cima. Em vez disso, olhavam uns para os outros.

— Duas pernas para Ichabod! — rugia o maior, socando o peito vermelho e

encaroçado. — Duas pernas e uma cabeça.

— Não! Não! — rosnaram duas criaturas verdes, mostrando dentes escuros e

gotejantes. — Não é justo! Fie e Fly são contra!

— Eles estão brigando para saber que partes de nossos corpos irão comer! —

Barda exclamou. — Vocês acreditam nisso?

— Deixe-os brigar — Jasmine murmurou. — Quanto mais eles brigarem, mais

tempo Filli terá para fazer o seu trabalho.

— Vamos dividir a carne! — gritaram histericamente os dois monstros

menores, as vozes agudas erguendo-se acima do barulho ao redor. — Hot e Tot

Page 11: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

querem partes iguais.

Seus irmãos e irmãs grunhiram e resmungaram.

— Olhem só como eles são burros! — Lief gritou, de repente, fingindo estar

conversando com Barda e Jasmine. — Eles não sabem que não podem ter partes

iguais!

— Lief, você está maluco? — Jasmine sussurrou.

Mas Lief continuou gritando. Ele notou que os monstros haviam se calado e

estavam ouvindo.

— Nós somos três e eles são 11! — rugiu. — Não se pode dividir três em 11

partes iguais. É impossível!

Ele sabia tanto quanto Jasmine que estava assumindo um risco. Os monstros

poderiam olhar para ele e, ao mesmo tempo, ver Filli. Mas ele apostava na esperança

de que a suspeita e a raiva fariam os inimigos manter os olhos presos uns nos outros.

E, para seu alívio, percebeu que seu jogo estava dando certo. Os monstros

haviam começado a murmurar em pequenos grupos, enquanto se olhavam

dissimuladamente.

— Se fossem nove, eles poderiam cortar cada um de nós em três e ficar cada

um com uma parte — ele gritou. — Mas desse jeito...

— Partes iguais — guincharam Hot e Tot. — Hot e Tot dizem... Ichabod

agarrou a ambos e bateu as cabeças deles uma contra a outra, provocando um forte

ruído. Os dois caíram no chão, desacordados.

— Agora — rosnou Ichabod —, agora as partes serão iguais como vocês

querem. Agora somos nove.

O fogo começara a se inflamar e a estalar. A fumaça subia, fazendo Lief tossir.

Ele olhou para o lado e viu que Filli já conseguira abrir um pequeno buraco na rede e

tentava aumentá-lo. Mas ele precisava de mais tempo.

— Eles se esqueceram de uma coisa, Lief — Barda disse em voz alta. —

Mesmo que sejamos divididos em três, as partes ainda não vão ser iguais. Porque eu

sou duas vezes maior do que Jasmine. Quem ficar com uma terça parte dela vai se dar

mal. Na verdade, ela deveria ser dividida em dois.

— Sim — concordou Lief, em voz igualmente alta, ignorando os protestos de

raiva de Jasmine. — Mas assim só haverá oito pedaços, Barda. E há nove para

alimentar.

Ele observou pelo canto dos olhos quando Zan, o monstro de seis pernas,

assentiu, pensativo, e então se virou de repente, e atingiu a irmã Zie com um porrete,

derrubando-a no chão.

Fly, furioso com o ataque à irmã gêmea, saltou sobre as costas de Zan,

Page 12: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

guinchando e mordendo. Zan rugiu, girou o corpo e nocauteou o irmão cabeludo,

jogando-o para o outro lado. Este, por sua vez, caiu sobre a irmã à sua frente e ficou

espetado em seus chifres.

De repente, estavam todos brigando — gritando, mordendo e batendo —,

caindo sobre os espinheiros, tropeçando no fogo, rolando no chão.

A briga continuou, interminável. Assim, quando Filli concluiu seu trabalho e os

três companheiros escaparam da rede, e subiram na árvore, havia somente um monstro

de pé: Ichabod.

Cercado pelos corpos dos irmãos e irmãs, ficou parado perto do fogo, rugindo

e batendo no peito, triunfante. Ele iria olhar para cima a qualquer momento. Veria que a

rede estava vazia e que a comida pela qual havia lutado se encontrava na árvore — sem

ter para onde ir.

— Precisamos pegá-lo de surpresa — Jasmine sussurrou, apanhando a

segunda adaga escondida entre as roupas e verificando se Filli voltara à segurança de

seu ombro. — É a única maneira.

Sem mais nenhuma palavra, ela saltou, atingindo Ichabod nas costas com

ambos os pés. Sem equilíbrio, ele caiu na fogueira, onde se estatelou com um estrondo

e um rugido.

Dando-se conta da situação, Lief e Barda deslizaram árvore abaixo o mais

rápido possível e correram até Jasmine. Ela já recolhia sua adaga e as espadas dos

amigos.

— Por que demoraram tanto? — ela cobrou, jogando-lhes as armas. —

Depressa!

Com Kree esvoaçando sobre suas cabeças, eles correram como o vento ao

longo da trilha, sem se importar com os sulcos da estrada e com a escuridão. Atrás

deles, Ichabod rugia de fúria e dor. Arrastou-se para fora do fogo e começou a

persegui-los aos tropeços.

Page 13: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

Ofegantes, com o peito dolorido e os ouvidos atentos aos uivos atrás deles,

continuaram a correr. Eles sabiam que se Ichabod se transformasse num lobo ou em

outro animal os apanharia facilmente. Mas eles nada ouviram.

"Talvez ele não consiga transformar-se por estar ferido", Lief pensou. Nesse

caso, estamos salvos. Mas, assim como os companheiros, não ousou parar nem

diminuir o passo.

Finalmente, chegaram a um lugar em que a trilha atravessava um pequeno

córrego.

— Tenho certeza de aqui é o limite das terras de Thaegan — Barda informou.

— Prestem atenção. Não há espinheiros do outro lado. Ichabod não vai nos seguir até

lá.

Com as pernas trêmulas de cansaço, continuaram a caminhada, agitando a

água fria à sua volta. Do outro lado do riacho, a trilha continuava, mas ao seu lado

cresciam um capim verde e macio e pequenas árvores, e os amigos puderam enxergar

o contorno de flores silvestres.

Eles caminharam, cambaleantes, por mais alguns instantes. Então,

afastaram-se da trilha e deixaram-se cair no abrigo do pequeno bosque formado pelas

árvores. Com o sussurrar das folhas no alto e o capim macio sob suas cabeças,

adormeceram.

Quando despertaram, o sol estava alto e Kree os chamava. Lief

espreguiçou-se e bocejou. Seus músculos estavam tensos e doloridos por causa da

longa corrida, e seus pés estavam sensíveis.

— Deveríamos ter dormido em turnos — Barda resmungou, sentando-se e

movendo as costas com cuidado. — Foi perigoso confiar que estávamos em segurança

ainda tão perto da fronteira.

— Estávamos cansados. E Kree ficou vigiando. -Jasmine erguera-se de um

salto e já estava investigando o bosque. Aparentemente, o corpo dela não estava

dolorido.

Page 14: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

Ela pousou a mão no tronco áspero de uma das árvores. Acima dela, as folhas

moveram-se levemente. Jasmine inclinou a cabeça para o lado e pareceu escutar.

— As árvores dizem que ainda passam carroças nesta estrada com bastante

freqüência — ela anunciou, finalmente. — Carroças grandes, puxadas por cavalos. Mas

ontem não passou ninguém por aqui.

Antes de prosseguir em sua jornada, os companheiros comeram um pouco do

pão, do mel e das frutas que os ralads haviam lhes dado. Filli recebeu sua porção, além

de um pedaço de favo de mel, seu petisco favorito.

E, então, vagarosamente, eles se puseram a caminho. Após algum tempo,

viram outra placa que indicava o caminho para a loja de Tom.

— Espero que Tom venda algo para pés doloridos — Lief murmurou.

— A placa diz "Tudo para o viajante" — Barda repetiu. — Portanto, ele deve

ter algo. Mas devemos escolher somente o que realmente precisamos. Temos pouco

dinheiro.

Jasmine olhou os companheiros de relance. Não disse nada, mas Lief

percebeu que ela começou a caminhar um pouco mais depressa.

Ficou claro que ela estava curiosa para ver exatamente como era uma loja.

Uma hora mais tarde, logo depois de uma curva, eles viram, surgindo no meio

de um grupo de árvores, um sinal de metal recortado parecido com um raio e, ao seu

lado, imensas letras de metal.

Intrigados, continuaram a caminhar. À medida que se aproximavam do local,

notaram que as árvores estavam dispostas no formato de uma ferradura e se

agrupavam nas laterais e na parte posterior de um estranho e pequeno edifício de pedra.

O suporte recortado que sustentava as letras de metal encontrava-se espetado

Page 15: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

exatamente no centro do telhado pontiagudo, como se o edifício tivesse sido atingido

por um raio.

Sem dúvida, aquela era a loja de Tom, embora, à primeira vista, ela se

parecesse mais com uma pousada do que com um lugar em que fosse possível fazer

compras. Havia um espaço limpo e plano entre a casa e a estrada — grande o bastante

para receber carroças — e, aqui e ali, grandes gamelas de pedra com água para os

animais. Uma grande vitrine cintilava ao lado da porta e exibia o nome do proprietário

pintado em brilhantes letras vermelhas, dispostas na vertical, de cima para abaixo,

como se via na placa da chaminé e nas placas pelas quais haviam passado.

— Esse Tom realmente gosta de divulgar o seu nome — Barda gracejou. —

Muito bem, então. Vamos ver o que ele tem para nós.

Os companheiros atravessaram a clareira e espiaram pela vitrine. Ela estava

repleta de mochilas, chapéus, cintos, botas, meias, cantis, casacos, cordas, potes,

panelas e muitos outros objetos, inclusive alguns que Lief não reconheceu.

Estranhamente, não havia preços ou etiquetas, mas, bem no meio, havia um aviso

amarelo.

Um sino preso à porta tilintou quando eles entraram na loja, mas ninguém veio

recebê-los. Eles olharam ao redor, enxergando com dificuldade, pois estava muito

escuro. A sala abarrotada parecia muito mal iluminada em comparação com o sol que

brilhava lá fora. Corredores estreitos se estendiam entre as estantes que iam do chão ao

teto. As prateleiras estavam entulhadas de mercadorias. No final, havia um balcão com

pilhas de livros de contabilidade, várias balanças e o que parecia ser uma lata para

guardar dinheiro. Atrás do balcão, havia mais prateleiras, uma porta e outro aviso:

VIAJANTES!

ESCOLHAM COM CUIDADO.

NADA DE DEVOLUÇÕES.

NADA DE REEMBOLSOS.

NADA DE ARREPENDIMENTOS.

— Tom é um cara confiante — Barda deduziu, olhando à sua volta.

— Ora, nós poderíamos ter entrado aqui, roubado o que quiséssemos e já ter

Page 16: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

saído.

Para provar o seu ponto de vista, ele estendeu a mão na direção de uma

pequena lanterna na prateleira mais próxima. Quando tentou apanhá-la, porém, ela não

se moveu.

Barda, atônito, ficou boquiaberto. Puxou com força, mas nada. Finalmente, ao

ver Lief cair na gargalhada e Jasmine olhá-lo atentamente, desistiu. Mas, quando

procurou tirar a mão do objeto, não conseguiu fazê-lo. Ele se esforçou ao máximo,

blasfemando, mas seus dedos pareciam colados.

— Você quer uma lanterna, amigo?

Os três deram um salto, assustados, e viraram-se bruscamente. Um homem

alto e magro, com um chapéu na parte de trás da cabeça, estava parado no balcão, os

braços cruzados e um largo sorriso zombeteira nos lábios.

— O que é isso? — Barda gritou, zangado, tentando soltar a mão da lanterna.

— É a prova de que Tom não é um cara confiante — falou o homem atrás do

balcão, e seu sorriso ficou ainda mais largo. Ele colocou uma de suas mãos de dedos

longos debaixo do balcão e aparentemente apertou algum botão escondido, pois de

repente a mão de Barda foi libertada. Ele caiu para trás, chocando-se com força contra

Lief e Jasmine.

— Agora, o que Tom pode fazer por vocês? — o homem indagou.

— E, mais precisamente, o que Tom pode vender para vocês? — completou,

esfregando as mãos.

— Precisamos de uma corda forte e comprida — pediu Lief, vendo que Barda

nada iria dizer. — E, também, algo para pés doloridos, se você tiver.

— Se eu tiver? — Tom gritou. — É claro que eu tenho. Tudo para o viajante.

Você não viu a placa?

Ele saiu de trás do balcão e escolheu um rolo de corda fina em uma prateleira.

— Esta é a melhor que tenho — disse. — Leve e muito resistente. Três moedas

de prata e ela é sua.

— Três moedas de prata por um pedaço de corda? — Barda explodiu.

— Isso é um roubo!

— Não é roubo, meu amigo, são negócios — Tom retrucou com calma, o

sorriso ainda no rosto. — Pois onde mais você vai achar uma corda como esta?

Ele segurou uma das extremidades da corda e atirou-a para cima com um

movimento do pulso. Ela se desenrolou como uma cobra e prendeu-se firmemente ao

redor de um dos caibros do telhado. Tom puxou-a para demonstrar a sua resistência.

Em seguida, sacudiu o punho novamente; a corda se desenrolou do caibro e voltou para

as mãos dele, formando um rolo perfeito ao cair.

Page 17: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

— Isso foi um truque — Barda resmungou, furioso.

— Vamos levá-la — disse Lief, fascinado, ignorando o cotovelo do amigo em

suas costelas e o olhar desconfiado de Jasmine.

— Sabia que você era um homem que sabe fazer bons negócios

— Tom elogiou, esfregando as mãos. — Agora, o que mais posso lhes

mostrar? Vocês não são obrigados a comprar.

Lief olhou ao redor, excitado. Se essa loja tinha uma corda que agia como se

estivesse viva, que outras maravilhas poderia conter?

— Tudo! — ele exclamou. — Queremos ver tudo! Tom ficou radiante.

Jasmine não estava nem um pouco à vontade. Era evidente que não gostava

daquela loja abarrotada, de teto baixo, tampouco gostava muito de Tom.

— Filli e eu vamos esperar lá fora com Kree — anunciou. Virou-se e saiu.

A próxima hora voou. Tom mostrou a Lief meias almofadadas para pés

doloridos, telescópios que possibilitavam enxergar além de esquinas, pratos

autolimpantes e cachimbos que soltavam bolhas de luz. Mostrou máquinas que previam

o tempo, pequenos círculos brancos que pareciam papel, mas que inchavam e se

transformavam em pães enormes quando eram molhados com água, um machado que

nunca perdia o fio, um saco de dormir que flutuava, pequenas pedras que acendiam

fogo e mais uma centena de invenções surpreendentes.

Lentamente, Barda esqueceu a desconfiança e começou a observar, fazer

perguntas e participar. Quando Tom terminou, ele já tinha sido conquistado e estava tão

ansioso quanto Lief para possuir quantas maravilhas daquelas pudesse. Havia coisas

tão fantásticas... coisas que tornariam a jornada mais fácil, segura e confortável.

Finalmente, Tom cruzou os braços e deu um passo para trás, sorrindo para

eles.

— Então, Tom lhes mostrou tudo. Agora, o que posso lhes vender?

Page 18: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

Algumas das mercadorias de Tom, como o saco de dormir flutuante, custavam

mais dinheiro do que Barda e Lief possuíam, mas havia outras coisas que eles tinham

condições de comprar, e foi difícil decidir.

No final, além da corda que se enrolava sozinha, eles escolheram um pacote

de "Nada de Forno" — as rodelas brancas que se expandiam e se transformavam em

pães — um frasco de "Puro e Claro" — um pó que tornava qualquer água potável — e

algumas meias almofadadas. Era uma quantidade decepcionantemente pequena de

artigos, e eles tiveram de abrir mão de vários outros muito mais interessantes, inclusive

um frasco das pedras de acender fogo e o cachimbo que formava bolhas de luz.

— Se tivéssemos mais dinheiro! — Lief exclamou.

— Ah! — retrucou Tom, empurrando o chapéu um pouco mais para trás. —

Bem, talvez possamos negociar. Além de vender, eu também compro. — E lançou um

olhar astuto para a espada de Lief.

Contudo, o garoto balançou a cabeça numa firme negativa. Por mais que

quisesse as mercadorias de Tom, não desistiria da espada que o pai fizera para ele na

sua forja.

— O seu casaco está um pouco manchado — Tom prosseguiu casualmente,

dando de ombros. — Mas ainda assim é possível que eu lhe dê algo por ele.

Desta vez Lief sorriu. Por maior que fosse a indiferença que Tom aparentava,

era evidente que ele sabia muito bem que o casaco tecido pela mãe do garoto possuía

poderes especiais.

— Este casaco pode deixar quem o usa quase invisível — contou. — Ele

salvou as nossas vidas mais de uma vez. Acho que também não está à venda.

— Uma pena — Tom suspirou. — Então, está bem. — E começou a recolocar

as pedras de acender fogo e o cachimbo de luz no lugar.

Nesse momento, o sino da porta tilintou e um estranho entrou. Ele era tão alto

quanto Barda e tinha um aspecto tão imponente quanto o dele. Tinha longos cabelos

negros emaranhados e uma barba preta mal-cuidada. Uma cicatriz irregular

Page 19: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

marcava-lhe uma das faces, formando uma mancha branca na pele morena.

Lief percebeu que Jasmine esgueirou-se para dentro por trás do viajante. Ela

permaneceu parada de encontro à porta, a mão na adaga presa ao cinto. Era evidente

que estava preparada para problemas.

O estranho acenou brevemente para Lief e Barda, apanhou um rolo de corda

de uma prateleira, passou por eles e se inclinou sobre o balcão empoeirado.

— Quanto é? — perguntou a Tom, bruscamente.

— Para o senhor, uma moeda de prata — Tom respondeu.

Lief arregalou os olhos. Tom lhes dissera que o preço da corda era três

moedas de prata. Ele abriu a boca para protestar, mas sentiu a mão de Barda em seu

pulso, alertando-o. Lief olhou para cima e percebeu que o olhar do companheiro

encontrava-se fixo no balcão, perto de onde estavam pousadas as mãos do estranho.

Havia uma marca ali. O recém-chegado a havia desenhado na poeira.

O sinal secreto de resistência ao Senhor das Sombras! O sinal que haviam

visto rabiscado nas paredes tantas vezes em seu trajeto para o Lago das Lágrimas! Ao

desenhá-lo no balcão, o homem dera um aviso a Tom e este reagira abaixando o preço

da mercadoria.

O homem jogou uma moeda de prata na mão de Tom e, ao fazê-lo, a manga

de seu casaco casualmente apagou a marca. Tudo aconteceu muito depressa. Se Lief

não tivesse visto a marca com os próprios olhos, não teria acreditado que ela estivera

ali.

— Ouvi boatos sobre estranhos acontecimentos no Lago das Lágrimas e

também em todo o território ao longo do riacho — o estranho comentou, despreocupado,

quando se virou para sair. — Ouvi dizer que Thaegan é coisa do passado.

— É mesmo? — Tom comentou com naturalidade. — Não sei. Sou apenas um

pobre comerciante e não sei nada sobre isso. Que eu saiba, os espinheiros na beira da

estrada continuam tão selvagens quanto antes.

— Os espinheiros não são resultado de feitiçaria, mas de uma centena de anos

de pobreza e negligência — o estranho comentou em tom de desprezo. — Os

espinheiros do rei de Del, como eu e muitas outras pessoas os chamam.

Lief sentiu um peso no coração. Ao fazer o sinal secreto, o estranho provara

Page 20: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

que se dedicava a resistir ao Senhor das Sombras, mas estava claro que odiava a

lembrança dos reis e rainhas de Deltora tanto quanto o próprio Lief uma vez odiara e os

culpava pelas desventuras do reino.

Ele sabia que nada podia dizer, mas não pôde evitar olhar fixamente para o

homem quando este passou. O estranho retribuiu-lhe o olhar sem sorrir e saiu da loja,

roçando em Jasmine ao passar pela porta.

— Quem era ele? — Barda perguntou a Tom num sussurro.

— Não mencionamos nomes na loja de Tom, a não ser o dele próprio, senhor

— Tom respondeu com calma, ajeitando o chapéu na cabeça com firmeza. — Nesses

tempos difíceis, é melhor assim.

Lief ouviu a porta tilintar outra vez e, ao virar-se, viu Jasmine sair. A ameaça

de perigo havia passado e ela estava mais tranqüila, por isso decidiu ficar ao ar livre

mais uma vez.

Talvez Tom tenha percebido que Barda e Lief viram e entenderam a marca

que o estranho desenhara no balcão, pois de repente apanhou as pedras de acender

fogo e o cachimbo de luz e acrescentou-os ao pequeno conjunto de mercadorias.

— Sem custo extra — anunciou quando o fitaram, surpresos. — Como vocês

viram, Tom sempre fica satisfeito em ajudar um viajante.

— Um viajante que esteja do lado certo — Barda retrucou, sorrindo.

Tom, porém, ergueu levemente as sobrancelhas, como se não tivesse idéia do

que Barda dizia, e estendeu a mão para receber o pagamento.

— Foi um prazer servi-los, senhores — disse ele quando lhe entregaram o

dinheiro. Contou as moedas rapidamente, assentiu e guardou-as na caixa.

— E o nosso brinde? — Lief quis saber, ousado. — O aviso na vitrine diz...

— Ah, é claro — Tom lembrou. — O brinde. — Ele se inclinou e remexeu

debaixo do balcão. Ao se levantar, segurava uma pequena caixa achatada de lata que

entregou a Lief.

Ele examinou o objeto. A lata cabia facilmente na palma de sua mão e parecia

bastante velha. As letras desbotadas da tampa diziam simplesmente:

DEVORADORES DE ÁGUA

USEM COM CUIDADO

Page 21: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

— O que é isso? — Lief indagou, confuso.

— As instruções estão no verso — informou Tom.

Então o homem parou de falar, como se prestasse atenção em algo. De

repente, saiu de trás do balcão e disparou pela porta dos fundos da loja.

Na pressa, deixou a porta aberta, e Lief e Barda o seguiram. Para surpresa

deles, a porta conduzia diretamente a um pequeno campo rodeado por uma cerca

branca, completamente escondido da estrada pelas árvores altas que o cercavam. Três

cavalos cinzentos encontravam-se próximos à cerca e, sentada sobre ela, afagando-os,

estava Jasmine, com Kree empoleirado em seu ombro.

Tom caminhou a passos largos até a cerca, agitando os braços. — Não toque

nos animais, por favor! — ele gritou. — Eles são valiosos.

— Eu não os estou machucando — Jasmine se defendeu, indignada, mas

obedeceu. Os animais resfolegaram, desapontados.

— Cavalos! — Barda sussurrou para Lief. — Se tivéssemos cavalos... Nossa

jornada seria muito mais fácil.

Lief assentiu, movendo lentamente a cabeça. Ele nunca montara antes e tinha

certeza de que tampouco Jasmine o fizera, mas certamente eles poderiam aprender

depressa. No lombo de um cavalo, poderiam escapar do inimigo e até mesmo dos

Guardas Cinzentos.

— Você nos venderia os seus animais? — ele perguntou, quando se

aproximaram de Tom. — Por exemplo, se lhe devolvêssemos todas as mercadorias que

compramos, isso seria suficiente...

— Nada de devoluções — Tom disparou, áspero. — Nada de reembolsos,

nada de arrependimentos.

Lief mostrou-se profundamente desapontado.

— Do que você está falando? — Jasmine retrucou. — Que negócio é esse de

"comprar" e "vender"?

— Os seus amigos gostariam de ter alguns animais para montar, senhorita —

Tom lhe explicou, fitando-a, surpreso, como se Jasmine fosse uma criança. — Mas eles

não têm mais nada para me dar em troca. Gastaram todo o dinheiro em outras coisas.

E... — ele olhou de relance para o casaco e a espada de Lief — não querem trocar mais

nada.

Jasmine assentiu, devagar, procurando entender.

— Talvez, então, eu tenha algo para lhe dar em troca — ela disse. — Tenho os

meus tesouros.

Ela começou a remexer nos bolsos, de onde tirou uma pena, um pedaço de

barbante enrolado, algumas pedras, a segunda adaga e o pente de dentes quebrados

Page 22: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

que estava em seu ninho nas Florestas do Silêncio. Tom a observava, sorrindo e

sacudindo a cabeça.

— Jasmine! Nenhuma dessas coisas é... — Lief começou, sentindo-se um

tanto envergonhado.

E, então, ficou boquiaberto. Barda conteve um grito e Tom arregalou os olhos.

Jasmine havia apanhado uma bolsinha e a estava segurando de ponta-cabeça,

indiferente. De dentro dela, saíam moedas de ouro que saltavam brilhantes em seu colo.

"Mas é claro", pensou Lief, depois de passado o susto. Jasmine havia roubado

os guardas cinzentos, vítimas dos horrores das florestas do silêncio. Lief vira uma

grande quantidade de moedas de ouro e prata entre os tesouros que ela guardava no

ninho do alto da árvore, mas não se dera conta de que ela trouxera algumas quando

deixou as florestas para juntar-se a eles. Jasmine tinha se esquecido completamente

das moedas até aquele momento e, por não representarem nada mais do que belas

recordações, ela não as mencionara antes.

Algumas moedas caíram no chão. Barda apressou-se em apanhá-las, mas

Jasmine mal olhou para elas. Ela observava os olhos brilhantes de Tom. Talvez não

tivesse compreendido o processo de compra e venda, mas reconhecia a ganância

quando a via.

— Você gosta disso? — ela perguntou, erguendo a mão cheia de moedas.

— De fato, eu gosto, senhorita — Tom respondeu, recuperando-se. — E gosto

muito.

— Então, vai trocar os cavalos por elas?

Uma expressão estranha percorreu o rosto de Tom — uma expressão cheia de

dor, como se a sua cobiça pelo ouro estivesse em luta com outro sentimento. Como se

ele estivesse calculando, considerando os riscos.

Finalmente, ele pareceu chegar a uma decisão.

Page 23: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

— Não posso vender os cavalos — informou, pesaroso. — Eles foram

prometidos a outras pessoas. Mas... tenho algo melhor. Se vocês me acompanharem...

Tom conduziu-os a um galpão numa das extremidades do campo. Abriu a

porta e sinalizou para que entrassem.

Juntas, num canto, mastigando feno, havia três criaturas de aparência muito

estranha. O tamanho era praticamente o mesmo dos cavalos, mas tinham pescoços

longos, cabeças muito pequenas, orelhas estreitas e caídas e, o que era mais

surpreendente, apenas três patas — uma grossa na frente e duas mais finas atrás. O

corpo era coberto por manchas irregulares pretas, marrons e brancas como se tivessem

sido borrifadas com tinta e, em vez de ferraduras, tinham pés grandes, chatos e peludos,

cada um com dois dedões largos.

— Que animais são esses? — Barda perguntou, abismado.

— Ora, são muddlets — gritou Tom, dando um passo e virando um dos animais

na direção deles. — E excelentes exemplares da raça. Corcéis feitos para um rei,

senhor. Exatamente o que você e seus companheiros necessitam.

Barda, Lief e Jasmine entreolharam-se, hesitantes. A idéia de poder cavalgar

em vez de caminhar era muito atraente, mas os muddlets eram muito estranhos.

— Eles se chamam Noodle, Zanzee e Pip — informou Tom, e deu um tapinha

afetuoso na anca de cada um dos animais. Estes continuaram a ruminar o feno,

completamente impassíveis.

— Eles parecem bastante mansos — Barda disse, após um momento.

— Mas eles correm? São velozes?

— Velozes? — Tom exclamou, erguendo as mãos e revirando os olhos.

— Meu amigo, eles são tão velozes quanto o vento! E também são fortes,

muito mais fortes do que qualquer cavalo. E leais... ah, são famosos por sua lealdade.

Além disso, comem muito pouco e se desenvolvem com trabalho duro. Muddlets são as

montarias preferidas por todos nestas bandas. Mas é difícil consegui-los. Muito difícil.

— Quanto você quer por eles? — Lief perguntou, bruscamente.

— Que tal vinte e uma moedas de ouro pelos três? — Tom sugeriu,

esfregando as mãos.

— Que tal quinze? — Barda rugiu.

— Quinze? — Tom pareceu chocado. Por esses esplêndidos animais de que

gosto como se fossem meus próprios filhos? Você está querendo roubar o pobre Tom?

Quer que ele se transforme num mendigo?

Jasmine pareceu preocupada, mas a expressão de Barda não se alterou. —

Quinze — ele repetiu.

— Dezoito! — Tom rebateu, erguendo as mãos. — Com selas e arreios. Ora...

Page 24: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

há preço mais justo que esse?

Barda lançou um olhar rápido para Lief e Jasmine e ambos acenaram

vigorosamente.

— Muito bem — respondeu.

E assim a transação foi concluída. Tom apanhou as selas e os arreios e ajudou

Lief, Barda e Jasmine a carregar os muddlets com suas mochilas. Em seguida, conduziu

os animais para fora do galpão. Eles caminhavam com um estranho bambolear, a pata

da frente adiantando-se e as duas traseiras gingando juntas logo depois.

Tom abriu o portão da cerca e eles saíram do campo, observados pelos três

cavalos cinzentos. Lief sentiu uma pontada de arrependimento. No calor da negociação

com Tom, esquecera-se dos cavalos. Como seria bom sair cavalgando neles e não

nessas criaturas estranhas e saltitantes.

"Tudo bem", pensou ele, afagando a traseira larga de Noodle. Em breve nos

acostumaremos a estes animais. Não há dúvidas de que no final de nossa jornada

teremos nos afeiçoado muito a eles.

Mais tarde, ele se lembraria desse pensamento — com amargura.

Quando chegaram à frente da loja, Tom segurou as rédeas dos muddlets

enquanto os três companheiros montavam em seus lombos.

Após discutirem, Jasmine ficou com Zanzee; Lief, com Noodle; Barda, com Pip,

embora não houvesse muito o que escolher, pois os animais eram muito parecidos.

As selas cabiam exatamente atrás dos pescoços dos animais, onde seus

corpos eram mais estreitos. A bagagem foi amarrada atrás, sobre suas largas ancas.

Era um arranjo extremamente confortável, mas, ao mesmo tempo, Lief sentiu-se um

pouco ansioso. O chão parecia muito longe e ele estranhava as rédeas nas mãos. De

repente, perguntou-se se aquela tinha sido uma boa idéia, afinal, embora, é claro,

fizesse o possível para não demonstrar as suas dúvidas.

Os muddlets resfolegaram com prazer. Estavam claramente satisfeitos de sair

ao ar livre e esperavam ansiosamente pelo exercício.

— Segurem firme as rédeas — disse Tom. — Talvez eles fiquem um pouco

agitados no início. Digam Brix quando quiserem que eles andem e Snuff para que parem.

Falem alto, pois eles não ouvem muito bem. Amarrem-nos bem quando pararem para

que eles não se percam. E isso é tudo.

Lief, Barda e Jasmine assentiram.

— Mais uma coisa... — Tom murmurou, mexendo nas unhas. — Eu não lhes

perguntei para onde vão, pois não me interessa. Saber das coisas é perigoso nestes

tempos difíceis. Mas vou lhes dar um conselho. É um excelente conselho e eu sugiro

que vocês o sigam. Daqui a cerca de meia hora vocês vão chegar a uma bifurcação na

Page 25: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

estrada. Sigam pelo caminho da esquerda, a todo custo, por mais que se vejam

tentados a ir pela direita. Agora... boa viagem!

Ao dizer essas últimas palavras, ergueu uma das mãos, bateu nas ancas de

Noodle e gritou "Brix!" Com um movimento cambaleante, Noodle começou a andar,

seguido de perto por Pip e Zanzee. Kree pairava sobre eles, grasnando.

— Lembrem-se -Tom gritou atrás deles. — Segurem firme as rédeas! Sigam

pelo caminho da esquerda!

Lief gostaria de ter acenado para mostrar que tinha ouvido, mas não ousou

soltar as rédeas, pois Noodle estava acelerando o passo. Suas orelhas caídas eram

arremessadas para trás pelo vento e suas patas potentes saltavam para a frente.

Lief nunca havia visto o mar, pois, antes de ele nascer, o Senhor das Sombras

havia proibido a presença dos cidadãos de Del na costa, mas imaginou que a sensação

de cavalgar nas costas de um agitado muddlet devia ser muito parecida com a de

navegar num dia de tempestade. A tarefa exigia toda a sua atenção.

Após cerca de dez minutos, o entusiasmo dos animais diminuiu e eles

passaram a andar num ritmo regular e saltitante. Agora, Noodle fazia com que Lief se

lembrasse de um cavalo de balanço que teve quando criança, não mais de um barco em

um mar revolto.

Aquilo não era tão difícil, pensou. Na verdade, era fácil. Ele se sentia orgulhoso

e satisfeito. O que seus amigos diriam se pudessem vê-lo naquele momento?

A estrada era larga e os companheiros passaram a cavalgar lado a lado.

Embalado pelo movimento oscilante, Filli se ajeitou para dormir dentro do casaco de

Jasmine e, agora que sabia que tudo estava bem, Kree voava à frente, mergulhando no

ar vez ou outra para apanhar um inseto. Jasmine cavalgava em silêncio, a expressão

pensativa. Barda e Lief conversavam.

— Estamos viajando num ritmo muito bom — Barda concluiu com satisfação.

— Estes muddlets são mesmo excelentes montarias. Só não entendo por que nunca

ouvi falar deles antes. Nunca vi um deles em Del.

— Tom disse que é difícil consegui-los — respondeu Lief. — Sem dúvida, as

pessoas desta parte de Deltora os conservam para si mesmas. E Del sabe pouco sobre

o que acontece no interior desde a chegada do Senhor das Sombras.

Jasmine fitou-o rapidamente e pareceu prestes a falar, mas então fechou a

boca com firmeza e não disse nada. Sua expressão estava carrancuda.

Eles prosseguiram em silêncio por alguns instantes e então, finalmente,

Jasmine decidiu se manifestar.

— Esse lugar para onde vamos, a Cidade dos Ratos... Não sabemos nada

sobre ela, sabemos?

Page 26: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

— Somente que é cercada por muros, parece estar deserta e fica isolada na

curva de um rio chamado de Largo — disse Barda. — Ela foi vista por viajantes de longe,

mas nunca ouvi uma palavra sequer sobre alguém que tenha atravessado os seus

muros.

— Talvez ninguém que tenha entrado tenha sobrevivido para contar a sua

história — disse Jasmine, sombria. — Já pensou nisso?

Barda deu de ombros.

— A cidade dos ratos tem uma reputação maligna, e um Ak-Baba foi visto nos

céus acima dela na manhã em que o senhor das sombras invadiu Del. Provavelmente,

uma das pedras do cinturão foi escondida ali.

— Então, precisamos ir até lá, mas sabemos muito pouco sobre o que iremos

encontrar. E não temos como nos preparar ou pensar em algum plano — concluiu

Jasmine, com a voz dura.

— Não nos preparamos para o Lago das Lágrimas nem para as Florestas do

Silêncio — Lief argumentou com firmeza. — E mesmo assim fomos bem-sucedidos em

ambos os lugares. Da mesma forma como seremos neste.

— Palavras corajosas! — Jasmine disse, jogando a cabeça para trás. —

Talvez você tenha esquecido que nas Florestas do Silêncio você teve a mim para ajudar

e que no Lago das Lágrimas tínhamos Manus para nos guiar. Desta vez é diferente.

Estamos sozinhos, sem conselhos ou ajuda.

As palavras francas da companheira irritaram Lief, e ele percebeu que haviam

irritado Barda também. Talvez ela estivesse certa, mas por que desanimá-los?

Ele se afastou dela e fitou o caminho à sua frente. Os companheiros

prosseguiram em silêncio.

Page 27: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

Não muito tempo depois, a estrada se dividiu em duas, conforme Tom lhes

prevenira. Havia uma placa no centro da bifurcação, um lado apontando para a

esquerda; o outro, para a direita.

— Rio Largo! — Lief exclamou. — É o rio ao lado do qual foi construída a

Cidade dos Ratos. Puxa, que sorte!

Entusiasmado, começou a virar a cabeça de Noodle para a direita.

— Lief, o que você está fazendo? — Jasmine protestou. — Devemos tomar o

caminho da esquerda. Lembre-se do que Tom falou.

— Você não percebe, Jasmine? Tom nunca sonharia que iríamos à Cidade dos

Ratos por vontade própria — Lief olhava para ela por sobre o ombro e falava, enquanto

impelia Noodle a prosseguir. — Portanto, é natural que tenha nos advertido sobre esse

caminho. Mas, na verdade, é por ele que devemos seguir. Venha!

Barda e Pip já seguiam Lief. Ainda indecisa, Jasmine permitiu que Zanzee a

carregasse para junto dos dois.

A trilha era tão larga quanto a outra, e muito boa também, embora fosse

possível ver marcas de rodas de carroças. À medida que avançavam, o terreno que a

ladeava ficava cada vez mais verde e exuberante. Não havia áreas ressequidas nem

árvores mortas. Frutas cresciam à vontade em todos os lugares e abelhas zumbiam ao

redor das flores, as patas pesadas e carregadas de pólen.

Na extrema direita, viam-se colinas arroxeadas envoltas em névoa e, à

esquerda, o verde de uma floresta. Mais adiante, a estrada fazia várias curvas e, olhada

a distância, assemelhava-se a uma fita. O ar era fresco e doce.

Os muddlets fungaram, ansiosos, e começaram a acelerar.

— Eles estão gostando do lugar — Lief riu, afagando o pescoço de Noodle.

— E eu também — Barda acrescentou. — Como é bom finalmente poder

cavalgar por um campo fértil. Pelo menos esta terra não foi destruída.

Eles passaram por um bosque e notaram que, não muito longe dali, uma

estrada secundária saía da principal em direção às colinas avermelhadas.

Despreocupado, Lief perguntou-se para onde conduziria.

De repente, Noodle emitiu um som estranho e excitado, semelhante a um

latido, e esticou o pescoço, rebelando-se contra os arreios. Pip e Zanzee também

estavam agitados e começaram a saltar para a frente, avançando grandes distâncias a

Page 28: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

cada passo. Lief era jogado e sacudido na sela e precisou de todas as forças para não

cair.

— O que aconteceu com eles? — gritou, enquanto o vento lhe atingia o rosto.

— Eu não sei — Barda respondeu. Ele tentava fazer com que Pip diminuísse o

ritmo, mas o animal não lhe dava a menor atenção. — Snuff! — ordenou. Mas Pip só

fazia correr mais depressa, o pescoço estendido, a boca aberta e ansiosa.

Jasmine gritou quando Zanzee estendeu a cabeça para a frente,

arran-cando-lhe os arreios das mãos com violência. Ela escorregou para o lado e, por

um momento assustador, Lief pensou que ela iria cair, porém a garota conseguiu

envolver o pescoço de sua montaria com os braços e colocar-se sobre a sela outra vez.

Ali permaneceu agarrada, carrancuda, a cabeça curvada por causa do vento, enquanto

Zanzee continuava em sua disparada, espalhando as pedras da estrada atingidas por

suas patas voadoras.

Não havia nada que eles pudessem fazer. Os muddlets eram fortes — fortes

demais para eles. Os animais se dirigiram com estrondo para o ponto em que a trilha se

bifurcava, saíram da estrada principal numa nuvem de poeira e dispararam para cima,

na direção das enevoadas colinas avermelhadas.

Com os olhos lacrimejantes e a voz rouca de tanto gritar, Lief viu as colinas se

aproximando rapidamente, envoltas na névoa avermelhada em meio à qual vislumbrou

um vulto negro. Ele piscou e apertou bem os olhos, tentando ver do que se tratava. O

vulto se aproximava cada vez mais...

E, então, sem mais nem menos, Noodle parou de repente. Lief foi atirado por

cima da cabeça do animal, seu próprio grito de medo ecoando nos ouvidos. Ele mal

pôde ouvir os gritos de Jasmine e Barda quando estes também foram arremessados de

suas montarias. Caiu de encontro ao solo e perdeu os sentidos.

Todo o corpo de Lief doía. Algo cutucava o seu ombro e ele tentou abrir os

olhos. Parecia que estavam grudados, mas conseguiu abri-los depois de forçá-los um

pouco. Um vulto vermelho e sem rosto assomava sobre ele. Lief tentou gritar, mas um

gemido estrangulado foi tudo o que escapou de sua garganta.

O vulto vermelho recuou.

— Este está acordado — disse uma voz.

Uma mão se aproximou segurando um copo de água. Lief ergueu a cabeça e

bebeu sofregamente. Aos poucos, percebeu que estava deitado ao lado de Barda e

Jasmine no chão de um grande salão. Muitas tochas queimavam ao redor das paredes

de pedra, iluminando o aposento e espalhando sombras bruxuleantes sem, contudo,

conseguir aquecer o ar frio. Havia uma imensa lareira, num canto, cheia de grandes

pedaços de madeira, mas o fogo estava apagado.

Page 29: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

Um cheiro penetrante de sabão misturava-se ao das tochas acesas. Talvez o

chão tivesse sido lavado recentemente, pois as pedras sobre as quais Lief se

encontrava deitado estavam úmidas e não se via um grão de poeira sequer.

O aposento estava cheio de pessoas. Elas tinham as cabeças raspadas e

vestiam estranhos conjuntos negros apertados e botas altas. Todas fitavam fixamente

os companheiros no chão, fascinadas e atemorizadas.

A pessoa que ofereceu a água se afastou e a alta figura vermelha que tanto

assustara Lief quando este recuperou a consciência retornou ao seu campo de visão.

Naquele momento, ele pôde ver que se tratava de um homem vestido totalmente de

vermelho. Até mesmos as suas botas eram vermelhas. As mãos eram cobertas por

luvas e a cabeça estava envolta numa faixa apertada que lhe cobria o nariz e a boca,

deixando espaço somente para os olhos. Um longo chicote feito de couro trançado

pendia-lhe da cintura e se arrastava atrás dele, emitindo um som sibilante quando o

homem se movia.

Ele constatou que Lief voltara a si e o observava. — Noradzeer — murmurou,

passando as mãos por seu corpo, dos ombros até os quadris, o que certamente era

algum tipo de saudação.

Lief queria certificar-se de que aquelas pessoas, não importava quem fossem,

soubessem que ele era amigável. Esforçou-se para sentar-se e tentou imitar o gesto e a

palavra.

As pessoas de preto murmuraram e também passaram as mãos em seus

corpos de cima a baixo, sussurrando "Noradzeer, noradzeer, noradzeer...", até que as

suas vozes se fizeram ouvir em todo o aposento.

Lief olhou-os fixamente, sua cabeça parecendo flutuar.

— Que... que lugar é este?

— Aqui é Noradz — disse o homem de vermelho, a voz abafada pelo tecido

que lhe cobria a boca e o nariz. — Visitantes não são bem-vindos aqui. Por que vieram?

— Não era... a nossa intenção — Lief contou. — Nossas montarias dispararam

e nos desviaram do caminho. Nós caímos... — Ele fez uma careta ao sentir uma

pontada atrás dos olhos.

Jasmine e Barda também estavam se mexendo e receberam água. O vulto

vermelho se virou para eles e os cumprimentou da mesma forma que a Lief. Então falou

novamente.

— Vocês estavam caídos do lado de fora de nossos portões e seus pertences

estavam espalhados à sua volta — informou ele, com uma voz fria e desconfiada. —

Não vimos nenhum animal.

— Então devem ter fugido — Jasmine exclamou com impaciência.

Page 30: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

— É claro que nós não iríamos nos jogar no chão com tanta força a ponto de

ficarmos inconscientes.

O homem de vermelho se ergueu e agitou o chicote de modo ameaçador.

— Cuidado com a língua, ser impuro — disparou. — Fale com respeito! Não

sabe que sou Reece, primeiro entre os Nove Ra-Kacharz?

Jasmine recomeçou a falar, mas Barda ergueu a voz, encobrindo-lhe as

palavras.

— Sentimos muito, senhor Ra-Kachar — desculpou-se em voz alta.

— Somos estranhos e não conhecemos os seus costumes.

— Os Nove Ra-Kacharz fazem o povo seguir as leis sagradas da pureza, da

cautela e do dever — anunciou em tom monótono. — Por isso, a cidade está segura.

Noradzeer.

— Noradzeer — as pessoas murmuraram, curvando as cabeças calvas e

tocando os corpos dos ombros aos quadris.

Barda e Lief fitaram-se rapidamente. Ambos pensaram que, quanto antes

pudessem deixar aquele estranho lugar, mais felizes seriam.

Page 31: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

Jasmine ergueu-se com dificuldade e olhou ao redor do grande aposento,

irritada. As pessoas de preto murmuravam e se afastavam dela como se suas roupas

maltrapilhas e seus cabelos emaranhados pudessem contaminá-los.

— Onde está Kree? — ela quis saber.

— Há outro de vocês? — Reece indagou bruscamente, virando o rosto para

ela.

— Kree é um pássaro. — Lief explicou depressa, enquanto ele e Barda

também se levantavam. — Um pássaro preto.

— Kree deve estar esperando por você lá fora, Jasmine — Barda garantiu em

voz baixa. — Agora, fique quieta. Filli está em segurança, não é?

— Sim. Mas ele está escondido debaixo do meu casaco e não vai sair —

Jasmine murmurou, de mau humor. — Ele não gosta daqui, e eu também não.

Barda virou-se para Reece e fez uma reverência.

— Estamos muito gratos por sua atenção para conosco, senhor. — disse em

voz alta. — Mas pedimos a sua permissão para continuarmos a nossa jornada.

— É hora de comermos, e um prato foi preparado para vocês. — Reece avisou,

os olhos negros percorrendo-lhes os rostos como se os desafiasse a contestá-lo. — A

comida já foi abençoada pelos Nove. Depois de abençoada, deve ser consumida em

uma hora. Noradzeer.

— Noradzeer — repetiram as pessoas com reverência.

Antes que Barda pudesse dizer mais alguma coisa, gongos começaram a soar

e duas grandes portas no final do aposento se abriram, revelando uma sala de jantar.

Oito figuras altas, vestidas de vermelho como Reece, estavam paradas na entrada,

quatro de cada lado. Eram os outros oito Ra-Kacharz, deduziu Lief.

Longos chicotes de couro pendiam dos pulsos dos Ra-Kacharz. Todos muito

sérios, observavam as pessoas de preto passarem por eles.

A cabeça de Lief doía. Ele nunca sentira tão pouca fome em sua vida. Mais que

tudo, queria sair daquele lugar, mas estava claro que ele, Barda e Jasmine não teriam

Page 32: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

permissão de partir antes de comer.

Relutantes, eles atravessaram a sala de jantar, tão limpa e asseada quanto o

outro aposento e cuja generosa iluminação fazia com que todos os cantos ficassem

visíveis. Mesas simples, altas e com pernas finas de metal, dispostas em fileiras,

ocupavam o aposento. Em cada lugar, havia um prato e uma caneca, mas não havia

talheres, tampouco cadeiras. Aparentemente, o povo de Noradz comia com as mãos e

em pé.

Na extremidade do salão, um conjunto de degraus conduzia a um estrado

elevado onde havia uma outra mesa. Lief imaginou que era ali que os Ra-Kacharz iriam

comer, pois do alto poderiam ver tudo o que ocorria embaixo.

Reece conduziu Lief, Barda e Jasmine à mesa deles, que fora posta um pouco

afastada das demais. Em seguida, reuniu-se aos outros Ra-Kacharz que, como Lief

imaginara, aguardavam em pé junto à mesa no estrado, voltados para a multidão.

Quando assumiu o seu lugar no centro, Reece ergueu as mãos enluvadas e

inspecionou o aposento.

— Noradzeer! — saudou, deslizando as mãos dos ombros aos quadris.

— Noradzeer! — respondeu o povo.

Com um único movimento, todos os Ra-Kacharz afastaram a faixa que lhes

cobria a boca e o nariz. Imediatamente, os gongos soaram mais uma vez e mais

pessoas vestidas de preto entraram no salão carregando enormes bandejas cobertas.

— Não consigo imaginar uma maneira mais desagradável para fazer uma

refeição! — Jasmine sussurrou. Ela era a menor pessoa no aposento e o seu queixo mal

alcançava o tampo da mesa.

Uma copeira de mãos trêmulas aproximou-se e depositou sua carga sobre a

mesa deles. Seus olhos azuis demonstravam medo, pois servir os estranhos era

claramente assustador para ela.

— Não há crianças em Noradz? — Lief lhe perguntou. — As mesas são tão

altas.

— As crianças comem somente na sala de treinamento — a serva respondeu

em voz baixa. — Precisam aprender os ritos sagrados antes de poder assumir os seus

lugares no salão. Noradzeer.

Ela retirou a tampa da bandeja e os três companheiros quase gritaram de

espanto. A bandeja estava dividida em três partes. A maior exibia uma série de

minúsculas salsichas e outras carnes dispostas em palitos de madeira com vários

legumes de diversas cores e formatos. A segunda continha vários pastéis dourados e

apetitosos e pãezinhos brancos e macios. A terceira e menor estava repleta de frutas

em calda, bolinhos com cobertura cor-de-rosa adornados com flores de açúcar e

Page 33: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

estranhas sementes redondas e marrons.

Barda apanhou um dos doces e fitou-o fixamente, como que espantado.

— Será que isso é... chocolate? — exclamou. Empurrou o doce para dentro da

boca e fechou os olhos. — É! — murmurou alegremente. — Puxa, não como chocolate

desde que era guarda do palácio! Há mais de dezesseis anos!

Lief nunca vira alimentos tão sofisticados na vida e, de repente, apesar de tudo,

constatou que estava morrendo de fome. Apanhou um dos palitos e começou a

saborear a carne e os legumes. A comida estava deliciosa! Era diferente de tudo que

provara antes.

— Isso é muito bom! — murmurou de boca cheia para a copeira. Ela olhou para

ele de relance, satisfeita, mas um tanto confusa. Naturalmente, estava acostumada à

comida de Noradz e não conhecia nenhum outro tipo de alimento.

Nervosa, ela estendeu a mão para levar a pesada tampa embora. Ao fazê-lo,

seus dedos tremeram e a borda da tampa atingiu um dos pãezinhos, tirando-o do lugar.

O pão rolou pela mesa e, antes que Lief ou ela pudessem apanhá-lo, caiu no chão.

A garota gritou — um grito alto e estridente de terror. No mesmo momento,

ouviram-se urros de raiva vindos da mesa sobre o estrado. Todos no aposento ficaram

paralisados.

— Comida foi derrubada — rugiram os Ra-Kacharz em uníssono. — Recolham

a comida do chão! Prendam a ofensora! Prendam Tira!

Várias pessoas na mesa mais próxima aos visitantes viraram-se. Uma delas

disparou em direção ao pãozinho caído, apanhou-o e ergueu-o. As demais agarraram a

copeira, que gritou novamente quando começaram a arrastá-la para a mesa dos Nove.

Reece foi até os degraus e desenrolou o chicote.

— Tira derrubou comida no chão — trovejou ele. — Derrubar comida é um ato

maligno. Noradzeer. O mal deve ser expulso com cem chicotadas. Noradzeer.

— Noradzeer! — repetiram as pessoas de preto ao redor das mesas. Elas

observaram Tira, assustada e soluçando, ser atirada aos pés de Reece. Ele ergueu o

chicote...

— Não! — Lief deixou a mesa como um raio. — Não a castigue! Fui eu! A culpa

é minha!

— Você?! — Reece trovejou, baixando o chicote.

— Sim — confirmou Lief. — Eu fiz com que a comida caísse. Sinto muito. —

Ele sabia que estava sendo muito audacioso em assumir a culpa, mas, por mais

estranhos que fossem os costumes desse povo, não suportaria ver a garota ser punida

por um mero acidente.

Os demais Ra-Kacharz cochicharam entre si. O que se encontrava mais perto

Page 34: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

de Reece aproximou-se ainda mais e lhe disse algo. Houve um momento de silêncio,

quebrado apenas pelos soluços da garota, caída no chão. E, então, Reece encarou Lief

mais uma vez.

— Você é um intruso impuro — disse. — Você desconhece as normas. Os

Nove decidiram que será poupado do castigo.

Sua voz era severa e era evidente que ele não aprovava a decisão, mas o seu

voto tinha sido superado pelos dos demais.

Com um suspiro de alívio, Lief voltou à mesa em silêncio, enquanto Tira se

erguia do chão com esforço e fugia do aposento aos tropeços.

Barda e Jasmine cumprimentaram-no com um erguer de sobrancelhas.

— Essa foi por pouco — Barda murmurou.

— Valeu a pena correr esse risco — Lief respondeu alegremente, embora o

coração ainda batesse forte por causa da recente escapada. — Era provável que eles

não punissem um estranho da mesma forma que a um deles — pelo menos não na

primeira ocasião.

Jasmine deu de ombros. Ela tirara alguns legumes de um dos palitos e

segurava-os perto do ombro, tentando convencer Filli a sair e comer.

— Deveríamos sair daqui o mais rápido possível — disse ela. — Essas

pessoas são muito estranhas. Quem sabe que outras leis excêntricas... Ah! Filli, aí está

você.

Tentada pelo aroma dos petiscos, a pequena criatura finalmente se aventurou

a tirar o focinho de baixo da gola do casaco de Jasmine. Com cuidado, ela foi até o

ombro da dona, pegou um pedaço do legume apetitoso e começou a mordiscá-lo.

De repente, ouviu-se um som estranho e abafado na mesa do estrado. Lief

olhou para cima e, desconcertado, percebeu todos os Ra-Kacharz apontando para

Jasmine com as expressões transformadas em máscaras de terror.

As demais pessoas que se encontravam no aposento viraram-se para olhar.

Houve um momento de silêncio assustado e, então, subitamente, encaminharam-se

com passos pesados até a porta, gritando aterrorizados.

— A maldade! — A voz de Reece ecoou do estrado. — Os impuros trouxeram

a maldade para os nossos aposentos. Estão tentando nos destruir. Vejam! A criatura

rasteja ali, em seu corpo! Mate-a! Mate-a!

Os Nove Ra-Kacharz correram do estrado e investiram contra Jasmine como

se fossem um só, usando seus chicotes para abrir caminho entre a multidão em pânico.

— É Filli! — Barda exclamou. — Eles estão com medo de Filli.

— Mate-a! — os Ra-Kacharz berraram, já muito próximos. Barda, Lief e

Jasmine olharam ao redor, desesperados. Não havia para onde fugir. Várias pessoas

Page 35: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

empurravam-se em todas as portas, tentando passar.

— Corra, Filli! — Jasmine gritou, atemorizada. — Corra! Esconda-se!

Ela atirou Filli ao chão e ele partiu em disparada. As pessoas gritavam ao vê-lo,

tropeçavam, caíam e se pisoteavam, aterrorizadas. Ele escapou por uma brecha entre a

multidão e sumiu.

Lief, Barda e Jasmine, porém, viram-se encurralados, cercados pelos

Ra-Kacharz.

As grandes toras de madeira na lareira da sala de reuniões foram acesas e as

chamas espalharam uma luz vermelha e espectral sobre o rosto dos prisioneiros.

Os três amigos permaneceram ali parados durante quatro horas enquanto se

fazia uma inútil busca por Filli. Os Ra-Kacharz os vigiavam, carrancudos, e seus olhares

se tornavam cada vez mais sombrios à medida que os minutos passavam.

Exaustos e silenciosos, Lief, Barda e Jasmine aguardavam o seu destino. Já

se haviam dado conta de que era inútil discutir, enfurecer-se ou implorar, pois, ao

levarem um animal peludo a Noradz, eles haviam cometido o mais hediondo dos crimes.

Finalmente, Reece falou.

— Não podemos mais esperar. O julgamento deve começar.

Um gongo soou e pessoas de preto começaram a se enfileirar no aposento,

encarando os prisioneiros. Lief viu que Tira, a copeira que salvara do castigo, se

encontrava na primeira fila, muito perto dele. Ele tentou encontrar-lhe o olhar, mas ela

fitou o chão rapidamente.

Reece ergueu a voz para que todos pudessem ouvir.

— Por causa desses seres impuros, a maldade se espalhou em Noradz. Eles

quebraram a nossa lei mais sagrada. Eles alegam que agiram por ignorância. Eu

Page 36: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

acredito que estão mentindo e que merecem a morte. Outros entre os Nove acreditam

neles e são de opinião que a sua sentença deve ser o encarceramento. Portanto, a

decisão irá caber ao Cálice Sagrado.

Barda, Jasmine e Lief olharam-se furtivamente. Que nova loucura seria

aquela?

Reece apanhou uma brilhante taça de prata da prateleira acima da lareira —

antes usada para tomar vinho, talvez.

— O Cálice revela a verdade — trovejou ele. — Noradzeer.

— Noradzeer — murmuraram os que observavam.

Em seguida, Reece mostrou dois pequenos cartões, cada qual com uma

palavra escrita sobre ele.

— Um de vocês irá tirar um cartão do Cálice — ele instruiu, voltando-se para os

prisioneiros. Seus olhos escuros brilhavam. — Quem será essa pessoa?

Os companheiros hesitaram. Então Lief se adiantou.

— Eu — ofereceu-se, relutante.

— Vire-se para a frente — Reece ordenou com um gesto.

Lief obedeceu. Reece afastou-se dele e dos companheiros Ra-Kacharz e

colocou a mão enluvada sob o Cálice.

Lief percebeu que Tira observava Reece com muita atenção. De repente, os

seus olhos azuis se arregalaram com assombro e horror. Ela fitou Lief rapidamente e

seus lábios moveram-se, mudos.

O rosto de Lief começou a queimar quando ele decifrou as palavras.

Ambos os cartões dizem MORTE.

Tira deve ter visto Reece trocar o cartão VIDA por outro que dizia MORTE,

oculto na manga ou na luva. O primeiro Ra-Kachar estava determinado a ver os intrusos

morrerem.

O vulto alto e vermelho voltou-se para ele segurando o Cálice no alto.

— Escolha! — ordenou.

Lief não sabia o que fazer. Se anunciasse que o Cálice continha dois cartões

Page 37: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

de MORTE, ninguém acreditaria e todos pensariam que ele simplesmente estava com

medo de enfrentar o julgamento. Ninguém aceitaria a sua palavra ou a de Tira contra a

do primeiro Ra-Kachar de Noradz. E Reece poderia facilmente tornar a trocar as cartas,

caso fosse questionado.

Lief deslizou os dedos para dentro da camisa e agarrou o topázio preso ao

Cinturão. Ele o ajudara a encontrar respostas antes. Poderia ajudá-lo naquele

momento? O fogo crepitava atrás dele e iluminava a figura alta parada à sua frente com

um brilho sinistro. A taça de prata exibia um brilho vermelho, como uma chama sólida.

Chama. Fogo...

Com o coração batendo forte, Lief estendeu a mão para cima, mergulhou os

dedos na taça e escolheu um cartão. Então, como um raio, ele rodopiou, parecendo

cambalear para trás, e deixou cair nas chamas crepitantes o cartão. Este tremeluziu por

um momento e foi consumido pelo fogo.

— Peço perdão por minha falta de jeito — Lief gritou diante das exclamações

horrorizadas da multidão. — Mas pode-se facilmente saber qual cartão escolhi. É só

verificar o que continua no Cálice.

Reece permaneceu totalmente imóvel, perturbado por uma raiva contida,

quando um dos outros Ra-Kacharz tomou-lhe o Cálice da mão, retirou o cartão que se

encontrava em seu interior e o ergueu.

— O cartão que permaneceu diz MORTE — anunciou. — O prisioneiro

escolheu o cartão VIDA. O Cálice se manifestou.

Lief sentiu a mão de Barda agarrar-lhe o ombro. Com os joelhos trêmulos, ele

virou-se para fitar os amigos, cujo olhar demonstrava alívio, mas também muitas

perguntas. Eles suspeitavam que Lief tivesse queimado o cartão intencionalmente e

perguntavam-se qual seria o motivo.

— Levem-nos para as masmorras — trovejou Reece. — Ali ficarão até o final

de suas vidas, arrependendo-se do mal que fizeram.

Os outros oito Ra-Kacharz cercaram Lief, Barda e Jasmine e começaram a

conduzi-los para fora do aposento. A multidão sussurrante abriu caminho para eles. Lief

virou a cabeça e procurou Tira entre os vultos vestidos de preto, mas não conseguiu

vê-la.

Ao deixarem o salão, ouviram a voz de Reece erguer-se mais uma vez quando

ele se dirigiu ao povo.

— Continuem a procurar a criatura que maculou a nossa cidade -ordenou. —

Ela precisa ser encontrada e morta antes do cair da noite.

Lief olhou de relance para Jasmine, que não abriu a boca, mas exibia um rosto

pálido e preocupado. Ele sabia que ela estava pensando em Filli — caçado e

Page 38: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

amedrontado.

Os Ra-Kacharz empurraram os prisioneiros por um labirinto de corredores mal

iluminados e por escadas de pedra sinuosas. O cheiro de sabão pairava em todos os

lugares, e as pedras sob seus pés eram lisas de tanto serem escovadas.

No final dos degraus havia um amplo espaço ladeado de portas de metal, cada

qual com uma estreita abertura pela qual se podia passar uma bandeja de comida. O

Ra-Kachar que seguia na frente abriu uma das portas e seus companheiros

empurraram Lief, Barda e Jasmine para dentro.

Jasmine deu uma olhada na cela sombria e sem janelas que os aguardava e

começou a lutar ferozmente. Lief e Barda também brigaram por sua liberdade, mas

inutilmente. Eles não dispunham de armas, tampouco de proteção contra os chicotes

dos Ra-Kacharz que estalavam ao redor de seus rostos e lhes machucavam braços e

pernas, de forma que se viram impelidos de volta à cela. A porta foi fechada com

estrondo e trancada com um pesado ferrolho.

Os amigos atiraram-se de encontro à porta e a golpearam com os punhos, mas

os passos dos Ra-Kacharz já eram quase inaudíveis.

Eles examinaram a cela freneticamente em busca de algum ponto frágil, mas

as estreitas camas de madeira presas a uma das paredes não podiam ser movidas e a

tina vazia presa à outra era sólida como uma rocha.

— Eles vão voltar — Barda disse, sério. — Fomos condenados à vida, não à

morte. Eles terão de nos alimentar e encher a tina de água. Não podem nos deixar aqui

morrendo de fome e de sede.

Contudo, várias horas angustiantes se passaram sem que ninguém

aparecesse.

Os três estavam mergulhados em um sono agitado quando ouviram algo

arranhar a porta. Mesmo ao acordar, Lief pensou que o tímido som fora um sonho.

Contudo, quando este se repetiu, ele correu até a porta, seguido de perto por Jasmine e

Barda. A portinhola para a comida havia sido aberta e, através dela, conseguiram ver os

olhos azuis de Tira.

— O primeiro Ra-Kachar determinou que ninguém além dele lhes trouxesse

água e comida — ela murmurou. — Mas... temi que ele os tivesse... esquecido. Vocês

comeram? A tina foi enchida de água?

— Não! — Lief respondeu aos sussurros. — E você sabe que ele não esqueceu,

Tira. É por isso que você está aqui. Reece pretende que morramos aqui.

— Não pode ser! — retrucou ela com uma voz desesperada. — O Cálice

deu-lhes a vida.

— Reece não dá a mínima para o Cálice — Barda disparou. — Ele se importa

Page 39: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

apenas com a própria vontade. Tira, destranque a porta! Deixe-nos sair!

— Não posso! Não tenho coragem! Vocês trouxeram o mal para os nossos

salões e ele ainda não foi encontrado. Todos, exceto os cozinheiros da noite, estão

dormindo agora. É por isso que pude escapar sem que dessem por minha falta. Mas o

povo está com medo e muitos choram durante o sono. Pela manhã, a busca irá

recomeçar. — Pela fenda estreita, podia-se entrever o olhar da garota, obscurecido pelo

medo.

— De onde viemos, animais como Filli não são malignos — Lief contou. — Não

quisemos prejudicá-los ao trazê-lo para cá. Ele é amigo de Jasmine. Mas se você não

nos deixar sair desta cela estaremos condenados. Reece cuidará para que morramos

de fome e sede e ninguém nunca saberá. Ninguém além de você.

A única resposta que ouviram foi um leve gemido.

— Por favor, Tira, ajude-nos! — Lief implorou. — Por favor! Seguiu-se um

momento de silêncio. Então, os olhos desapareceram e eles ouviram o deslizar do

ferrolho.

A porta abriu-se e eles saíram da cela rapidamente. Pálida sob a luz das

tochas, Tira lhes deu água, e os amigos beberam sofregamente. Ela nada respondeu

quando lhe agradeceram e, ao trancarem a porta para encobrir a fuga, Tira estremeceu

e cobriu o rosto com as mãos. Sem dúvida, ela acreditava estar fazendo algo muito

errado.

Contudo, quando descobriram as mochilas escondidas numa fenda das

escadas, ela abafou um grito de surpresa.

— Disseram-nos que elas haviam sido colocadas na cela! — exclamou. —

Para que vocês tivessem roupas e algum conforto.

— Quem lhes disse isso? — Barda indagou, soturno.

— O primeiro Ra-Kachar — ela murmurou. — Disse que ele próprio as havia

trazido para vocês.

— Bem, como você pode ver, ele mentiu — Jasmine disparou, colocando sua

mochila nas costas.

Os companheiros subiram as escadas com dificuldade. A passagem acima se

encontrava vazia, mas eles puderam ouvir algumas vozes distantes.

— Precisamos escapar da cidade — Barda sussurrou. — Que caminho

devemos tomar?

— Não há como sair — Tira respondeu, sacudindo a cabeça, desanimada. — O

portão da colina está trancado com barras. Os que trabalham no campo são levados

para fora todas as manhãs e trazidos de volta à noite. Ninguém mais pode sair, sob

pena de morte.

Page 40: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

— Deve haver outro meio! — Lief murmurou.

Tira hesitou e então fez um gesto negativo com a cabeça. Mas Jasmine

percebera-lhe a hesitação e agarrou a oportunidade.

— Em que você acaba de pensar? Conte-nos a idéia que teve! — ela insistiu.

— Dizem que... que o final do Buraco leva ao mundo exterior — Tira começou,

molhando os lábios. — Mas...

— O que é o Buraco? — Barda quis saber. — Onde fica?

— Fica perto das cozinhas — Tira informou, estremecendo. — É onde jogam a

comida que não passa pela inspeção. Mas é... um lugar proibido.

— Leve-nos até lá! — Jasmine sussurrou ferozmente. — Agora mesmo!

Eles rastejaram como ladrões pelos corredores. Disparando para dentro das

galerias sempre que ouviam alguém se aproximar. Finalmente, alcançaram uma

pequena porta de metal.

— Ela conduz às passagens acima das cozinhas — Tira informou baixinho. -As

passagens são usadas pelos Ra-Kacharz para vigiar o trabalho feito embaixo e por

aqueles que lavam as paredes da cozinha.

Ela abriu um pouco a porta. Do outro lado, vinha um aroma de comida e ruídos

abafados de pratos.

— Não façam barulho — ela pediu. — Andem com cuidado e não seremos

percebidos. Os cozinheiros da noite trabalham depressa, pois têm muito o que fazer

antes do amanhecer.

Tira deslizou pela porta e os companheiros a seguiram. A visão que os

esperava deixou-os atônitos.

O pequeno grupo encontrava-se parado numa estreita passagem de metal.

Bem abaixo, estavam as grandes cozinhas de Noradz repletas de sons e iluminadas

por uma luz intensa. As cozinhas eram imensas — tanto quando uma pequena vila — e

Page 41: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

encontravam-se cheias de pessoas com roupas iguais às de Tira, exceto pelo fato de

serem imaculadamente brancas.

Algumas descascavam legumes ou preparavam frutas. Outras misturavam,

assavam, mexiam panelas que borbulhavam nos enormes fogões. Milhares de bolos

esfriavam sobre grelhas, esperando para serem cobertos e decorados. Centenas de

tortas e pastéis eram retirados dos grandes fornos. De um lado, uma equipe embalava

os alimentos prontos em caixas e potes de vidro ou pedra.

— Mas... isso não acontece todos os dias e noites, não é mesmo?

— assombrou-se Lief. — Quanta comida o povo de Noradz consome?

— Somente uma pequena porção da comida é consumida aqui

— Tira sussurrou. — Muito do que é preparado não passa pela inspeção e é

jogado fora. — Ela suspirou. — Os cozinheiros são valorizados e treinados desde

jovens, mas eu não gostaria de ser um deles. Eles ficam tristes por se esforçar tanto e

por falhar tantas vezes.

Eles rastejaram pela passagem, observando, fascinados, a atividade abaixo.

Estavam andando há cinco minutos quando Tira parou e se agachou.

— Ra-Kachar! — avisou em voz baixa.

De fato, dois vultos vestidos de vermelho entravam nas cozinhas.

— É uma inspeção — Tira informou.

Com as mãos nas costas, os Ra-Kacharz caminharam rapidamente para o

local em que se encontravam quatro cozinheiros. Centenas de potes de frutas

cristalizadas, brilhantes como jóias, estavam enfileirados num balcão à espera de

inspeção.

Os Ra-Kacharz caminharam ao lado da fileira de potes observando-os

atentamente. Ao atingirem o final, viraram-se e retornaram, dessa vez apontando

alguns potes que eram apanhados pelos cozinheiros e colocados em outra prateleira.

Finalmente, quando a inspeção foi concluída, seis potes haviam sido

separados dos demais.

— Aqueles são os potes que serão abençoados e consumidos pelas pessoas

— Tira informou. — Os demais foram rejeitados. — Ela lançou um olhar solidário na

direção dos cozinheiros, que, desapontados, haviam começado a colocar os potes

rejeitados num enorme recipiente de metal.

Lief, Barda e Jasmine olhavam fixamente, horrorizados. Para eles, todas as

frutas pareciam deliciosas e nutritivas.

— Isso é uma vergonha — Lief murmurou, zangado, quando os Ra-Kacharz se

viraram e se dirigiram para outra parte das cozinhas. — Em Del, o povo está passando

fome, brigando por restos. E aqui boa comida é desperdiçada.

Page 42: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

— Não é boa comida — Tira insistiu, séria, balançando a cabeça. — Os

Ra-Kacharz sabem quando a comida é impura. Com as inspeções, eles protegem o

povo de doenças e enfermidades. Noradzeer.

Lief gostaria de ter argumentado, e Jasmine estava rubra de raiva. Mas Barda

advertiu-os com um gesto de cabeça e pediu-lhes que se calassem. Lief mordeu o lábio.

Ele sabia que Barda estava certo. Eles precisavam da ajuda de Tira e não tinha sentido

aborrecê-la. Ela não tinha como entender o que ocorria no restante de Deltora, pois

conhecia somente a sua cidade e as leis de acordo com as quais tinha crescido.

Em silêncio, eles se moveram pela passagem e finalmente chegaram ao final

das cozinhas. Degraus íngremes de metal conduziam piso abaixo exatamente diante de

uma porta.

— O Buraco fica depois dessa porta — Tira avisou em voz baixa. -Mas...

Ela interrompeu-se e agachou-se mais uma vez, gesticulando para que seus

companheiros fizessem o mesmo. Os quatro cozinheiros que haviam preparado as

frutas cristalizadas entraram em seu campo de visão e carregavam o engradado com

potes rejeitados, agora firmemente selado com uma tampa de metal. Eles o carregaram

pela porta e desapareceram de vista.

— Eles vão jogar o engradado no Buraco — Tira sussurrou.

Alguns momentos mais tarde, os cozinheiros voltaram e se dirigiram para seus

lugares nas cozinhas para recomeçar a tarefa de preparar comida. Tira, Lief, Barda e

Jasmine rastejaram degraus abaixo, passaram por prateleiras forradas de potes e

panelas e atravessaram a porta.

Os quatro se viram em um aposento pequeno e vazio. À esquerda, havia uma

porta pintada de vermelho. Na frente, na parede oposta às cozinhas, uma grade de

metal barrava a entrada redonda e escura para o Buraco.

— Para onde leva a porta vermelha? — Barda quis saber.

— Para os quartos dos Nove. Dizem que eles dormem em turnos e passam

por essa porta quando está na hora das inspeções — Tira sussurrou.

Ela olhou de relance por sobre o ombro, nervosa.

— Vamos sair daqui agora. Eu os trouxe aqui porque exigiram, mas podemos

ser surpreendidos a qualquer momento.

Os companheiros rastejaram para mais perto do Buraco e espiaram através da

grade, de onde viram o início de um túnel mal-iluminado revestido de pedras que

pareciam emitir um brilho vermelho. Ele era muito estreito e descia para a escuridão, e o

teto e as laterais eram arredondadas. Em seu interior, ao longe, ouvia-se um rosnado

longo e baixo.

— O que há lá dentro? — Lief murmurou.

Page 43: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

— Não sabemos — Tira respondeu. — Somente os Ra-Kacharz podem entrar

no Buraco e sobreviver.

— Isso é o que eles dizem — respondeu Lief com desprezo.

— Na minha vida, vi duas pessoas tentando escapar da cidade pelo Buraco —

ela disse com suavidade. — Ambos foram trazidos mortos. Seus olhos estavam

abertos e arregalados, as mãos, dilaceradas e cobertas de bolhas. Havia espuma em

seus lábios. — Ela estremeceu. — Dizem que eles morreram de medo.

O rosnado lúgubre veio novamente do túnel. Eles espiaram para dentro da

escuridão, mas nada conseguiram enxergar.

— Tira, você sabe onde estão as nossas armas? — Barda perguntou, ansioso.

— As espadas e as adagas?

— Elas estão aguardando na fornalha — murmurou ela com cautela. —

Amanhã elas serão derretidas e transformadas em novos utensílios para a cozinha.

— Traga-as até nós — Barda pediu.

— Não posso! — ela retrucou, desesperada. — É proibido tocá-las, e eu já

cometi crimes terríveis por vocês.

— Tudo o que queremos é sair daqui — Lief exclamou. — Como isso poderia

ferir o seu povo? E nunca ninguém saberá que foi você que nos ajudou.

— Reece é o primeiro dos Nove — Tira murmurou. — Sua palavra é lei.

— Reece não merece a sua lealdade — Barda disparou, furioso. — Você viu

que ele mente e trapaceia, zomba de suas leis! Se alguém merece morrer, esse alguém

é ele.

Mas Barda foi longe demais ao dizer isso. As faces de Tira se ruborizaram,

seus olhos se arregalaram e ela se virou e voltou correndo para a cozinha. A porta se

fechou atrás dela.

— Eu a assustei — Barda resmungou, suspirando com impaciência. — Eu

deveria ter ficado de boca fechada. O que faremos agora?

— Vamos fazer o melhor que pudermos. — Com determinação, Lief retirou a

grade da entrada do túnel. — Se os Ra-Kacharz podem entrar no Buraco e sobreviver,

nós também podemos — com ou sem armas.

Ele se virou e acenou para Jasmine. Ela recuou, sacudindo a cabeça.

— Não posso ir — explicou em voz alta. — Pensei que talvez Filli estivesse

aqui, esperando por mim. Mas ele não está. Ele não deixaria Noradz sem mim, e eu não

vou partir sem ele.

— Jasmine! — Não temos tempo a perder! — ele insistiu, sentindo vontade de

sacudi-la. — Deixe de tolice!

— Não vou pedir que você e Barda fiquem — ela disse com calma, fitando-o

Page 44: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

com seus olhos verde-claros. — Vocês começaram essa busca sem mim e assim

podem continuar. — Jasmine desviou o olhar. — Talvez... talvez seja melhor assim —

acrescentou.

— O que você quer dizer? — Lief indagou. — Por que seria melhor?

— Nós não concordamos em., alguns pontos — ela justificou. — Não tenho

certeza...

Contudo, Jasmine não conseguiu terminar a frase, pois naquele exato

momento a porta vermelha abriu-se de repente e Reece entrou com passos pesados, os

olhos pretos brilhando num triunfo irado. Antes que ela pudesse se mover, ele agarrou-a

com sua mão forte e ergueu-a no ar.

— Então, garota! — rosnou em seu ouvido. — Meus ouvidos não me

enganaram. Que feitiçaria usaram para escapar da cela?

Lief e Barda tentaram se aproximar dele, mas Reece os impediu com o seu

chicote.

— Espiões! — grunhiu. — Sua maldade está comprovada agora que invadiram

as nossas cozinhas... Sem dúvida, para guiar a criatura maligna até elas. Quando o

povo ouvir isso, ficará feliz em vê-los morrer mil vezes.

Jasmine lutou, mas a mão de Reece parecia ser de ferro.

— Você não pode escapar, garota — ele escarneceu. — Agora mesmo, outros

membros dos Nove estão se aproximando desta porta. Seus amigos irão morrer antes

de você. Tenho certeza de que gostará de ouvir os gritos deles.

Reece açoitou Lief e Barda com o chicote, fazendo-os recuar na direção do

Buraco, lenta e constantemente.

Page 45: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

Um pensamento se insinuou na mente de Lief com maior intensidade que todo

o resto. Um perigo terrível ocultava-se na escuridão do buraco. Do contrário, Reece não

estaria sorrindo de modo tão triunfante ao impelir os prisioneiros naquela direção.

Era evidente que Barda e Jasmine haviam chegado à mesma conclusão.

Jasmine soltava gritos estridentes, tentando em vão rasgar as vestimentas espessas do

Ra-Kachar com as unhas. Barda lutava para manter o equilíbrio enquanto protegia a

cabeça com os braços.

O chicote de couro agitava-se em volta das orelhas de Lief. Ele recuou e se

virou, a dor penetrante provocando-lhe lágrimas nos olhos. O chicote estalou mais uma

vez e ele sentiu o sangue quente escorrer pelo pescoço e ombros. A escuridão do

Buraco bocejou bem à sua frente...

Então, ouviu-se um baque surdo e retumbante. E, de repente, não havia mais o

estalar do chicote, tampouco a dor lancinante.

Lief virou-se rapidamente.

Tira encontrava-se junto ao corpo encolhido de Reece, a porta da cozinha

aberta atrás dela. Seus olhos estavam vidrados de medo. Na mão esquerda, carregava

as armas dos três companheiros. Na direita, estava a frigideira que surrupiara da

prateleira da cozinha e usara para atingir Reece na cabeça.

Com um grito sufocado de terror pelo que tinha feito, ela jogou a frigideira para

longe, atingindo as pedras com um som ressonante.

Lief, Barda e Jasmine correram para o lado da garota, que parecia paralisada

pelo choque, e tomaram-lhe as armas. Tira correra em defesa deles sem pensar, mas

era óbvio que cometera um crime terrível ao atacar um Ra-Kachar.

— Barda! — alertou Jasmine, ansiosa, apontando para a maçaneta da porta

vermelha que se movia.

Barda atirou-se de encontro à porta e apoiou-se contra ela com todas as forças.

Jasmine acrescentou seu peso ao dele. Do outro lado, foram dadas pesadas batidas e a

Page 46: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

porta estremeceu.

— Corra, Tira! — Lief mandou. — Ande! Esqueça que tudo isso aconteceu.

Ela fitou-o, o olhar perturbado. Ele a conduziu rapidamente em direção à porta

da cozinha, empurrou-a para o outro lado e fechou a tranca. Dessa forma, os

Ra-Kacharz que tentavam ultrapassar a porta vermelha não teriam ajuda do pessoal da

cozinha e, com sorte, Tira conseguiria alcançar as escadas e ir até a passagem sem ser

vista.

Lief virou-se outra vez, exatamente a tempo de ver Barda e Jasmine serem

atirados ao chão e a porta vermelha abrir-se. Ele saltou para ajudar os amigos e, ao

mesmo tempo, três Ra-Kacharz dispararam pela abertura. Embora tontos de sono,

estavam completamente vestidos. Usavam as roupas vermelhas, as luvas e as botas;

suas cabeças e seus rostos estavam cobertos.

Os olhos deles já faiscavam de raiva quando irromperam no pequeno aposento.

Mas, quando viram seu líder caído no chão e os três prisioneiros parados junto dele,

rugiram e investiram para a frente, usando os chicotes sem misericórdia.

Barda, Lief e Jasmine foram obrigados a retroceder. Suas lâminas cortavam o

ar vazio inutilmente. Lief gritou, frustrado, quando um dos chicotes enrolou-se na

espada e a arrancou de suas mãos.

Ele ficou indefeso. Em instantes, ouviu, com horror, o som da espada de Barda,

que também caíra no chão. Naquele momento, as duas adagas de Jasmine eram a

única defesa deles. Por isso, os Ra-Kacharz empurravam-nos para a frente,

encurralando-os num canto, enquanto os chicotes os atacavam e rodopiavam juntos no

ar como uma terrível máquina cortante.

— Parem! — gritou Jasmine com voz penetrante. — Não queremos lhes fazer

mal! Só queremos sair deste lugar!

A voz dela ecoou contra as paredes de pedra e se elevou acima do estalar dos

chicotes. Os Ra-Kacharz não vacilaram, nem mesmo deram sinais de que haviam

ouvido o que ela disse.

Mas alguém escutou. Um pequeno vulto peludo e cinzento passou pela porta

vermelha, tagarelando e guinchando de alegria.

— Filli! — Jasmine exclamou.

Os Ra-Kacharz gritaram, horrorizados e enojados, e saíram do caminho do

pequeno animal quando este correu entre eles e saltou para o ombro de Jasmine.

Foi somente um momento de distração, mas era tudo de que Barda

necessitava. Com um grunhido, ele se atirou às duas figuras de vermelho mais próximas,

jogando-as com força contra a parede. As cabeças bateram nas pedras, e eles caíram

juntos no chão, bruscamente.

Page 47: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

Lief virou-se rapidamente e chutou o terceiro Ra-Kachar, sentindo que o

atingira na perna, exatamente acima da bota. O homem urrou e caiu. Lief apanhou a

frigideira e abateu-o com um golpe.

Ofegantes, perto dos corpos dos inimigos derrotados, os amigos olharam para

Jasmine, que cantarolava para Filli.

— Filli nos salvou — Jasmine disse, alegre. — Como ele é corajoso! Ele

estava perdido, mas ouviu minha voz e veio correndo até mim. Pobrezinho. Sentiu tanto

medo e correu tanto perigo!

— Ele estava com medo e em perigo!? — Barda explodiu. — E quanto anos?

Mas Jasmine simplesmente deu de ombros e recomeçou a afagar o pêlo de

Filli.

— O que faremos agora? — Lief murmurou. — Há quatro Ra-Kacharz aqui,

contando com Reece. E sabemos que há dois nas cozinhas. Mas ainda faltam três.

Onde eles estão? Onde encontraremos um lugar seguro?

— Devemos arriscar ir pelo túnel — Barda opinou, sério, procurando a espada.

— Não há outra forma de sair.

— Reece achava que seríamos mortos por quem vive ali, seja quem for — Lief

afirmou, olhando para o Buraco.

— Se os Ra-Kacharz podem sobreviver a ele, nós também podemos —

retrucou Barda. — Eles são fortes e bons lutadores, mas não têm poderes mágicos.

— Talvez devêssemos usar as roupas deles — Jasmine sugeriu de onde se

encontrava. — Acho que não é por acaso que eles se vestem de forma diferente dos

demais neste lugar e somente eles podem usar o Buraco. Talvez a criatura que mora na

escuridão esteja treinada para atacar todas as cores, menos o vermelho.

— Pode ser — Barda assentiu. — Em todo caso, vestir as roupas deles é uma

boa idéia As nossas mostram que somos intrusos. Nunca conseguiríamos enganar as

pessoas e sair da cidade pela entrada principal. Mas, talvez, pela porta dos fundos...

Sem perda de tempo, eles começaram a despir os três Ra-Kacharz que

haviam acabado de derrotar. Jasmine trabalhava depressa e com habilidade. Para Lief,

foi impossível não lembrar, com um calafrio, quantas vezes ela havia despido os corpos

de Guardas Cinzentos nas Florestas do Silêncio. Ela o fizera para conseguir roupas e

outros objetos de que precisava e agira com eficiência e sem compaixão, como fazia

naquele momento.

Eles se vestiram rapidamente, colocando os trajes vermelhos por cima das

próprias roupas e as botas sobre os próprios sapatos. Enquanto isso, os Ra-Kacharz

permaneciam imóveis. Roupas de baixo justas e brancas cobriam-nos dos pulsos até os

tornozelos. Suas cabeças, como as dos demais moradores da cidade, haviam sido

Page 48: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

totalmente raspadas.

— Eles não parecem tão perigosos agora — Jasmine concluiu, carrancuda,

envolvendo a cabeça com o tecido vermelho e certificando-se de que Filli estava

escondido e em segurança sob suas roupas.

Apesar da pressa e da preocupação, Lief viu-se obrigado a rir quando olhou

para ela. A aparência de Jasmine era muito estranha. Os trajes dos Ra-Kacharz eram

muito grandes para ele e até para Barda, mas em Jasmine eles formavam dobras

grandes e amplas. As luvas não foram problema, pois eram feitas de um material

elástico que se ajustava a todos os tamanhos. E ele duvidou que ela conseguisse

caminhar com as enormes botas vermelhas.

Jasmine tinha percebido o problema. Carregou as botas até onde Reece

estava deitado, tirou-lhe as luvas e enfiou-as na ponta de uma das botas. Em seguida,

desenrolou a faixa que lhe envolvia a cabeça e usou-a na segunda bota.

Reece resmungou e sua cabeça raspada moveu-se sobre o chão frio.

— Ele está acordando — constatou ela enquanto calçava as botas, tirando a

adaga do cinto.

— Não o mate! — Lief exclamou em pânico.

— Por que não? — Jasmine indagou, olhando-o surpresa. — Ele me mataria

se estivesse em meu lugar. E, quando ele o atacou, você o teria matado se pudesse.

Lief não sabia como explicar, mas tinha consciência de que Jasmine nunca

concordaria com o fato de que matar no calor do momento, para defender a própria vida,

era muito diferente de matar um homem, mesmo um inimigo, a sangue-frio.

De repente, Barda soltou uma exclamação, aproximou-se de Jasmine e

agachou-se ao lado do corpo de Reece.

— Vejam isso! — murmurou, empurrando a cabeça do homem para o lado.

Lief ajoelhou-se ao lado dele. No pescoço de Reece havia uma feia cicatriz

provocada por uma antiga queimadura num formato que eles conheciam muito bem.

— Ele foi marcado — Lief balbuciou, observando a marca vermelha com

horror. — Marcado com o sinal do Senhor das Sombras. E, no entanto, vive aqui, livre e

Page 49: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

poderoso. O que isso significa?

— Significa que as coisas em Noradz não são o que aparentam ser

— Barda concluiu sombriamente. Ele foi depressa até onde se encontravam os

corpos dos outros Ra-Kacharz. A marca do Senhor das Sombras estava em todos eles.

Os três amigos olharam para cima, assustados, pois a maçaneta da porta da

cozinha havia começado a balançar e chacoalhar. Em seguida ouviram uma batida forte.

Alguém tentava entrar.

— Outra inspeção deve ter sido completada — Jasmine murmurou.

— Os cozinheiros têm outro engradado de comida para jogar fora.

Ao constatar que a passagem estava impedida, as pessoas atrás da porta

começaram a gritar e a golpeá-la com os punhos. Reece resmungou e gemeu, e suas

pálpebras estremeceram. Ele estava prestes a acordar.

— Vamos levá-lo conosco — Barda decidiu, erguendo-se num salto.

— Vamos obrigá-lo a nos dizer como passar a salvo pelo que existe nessa

passagem, seja lá o que for. E, em todo caso, um refém pode ser útil.

Rapidamente, eles ajeitaram as mochilas nas costas, arrastaram Reece até a

entrada do Buraco e o empurraram para a escuridão. Em seguida, um após o outro,

rastejaram atrás dele, pois naquele momento não havia tempo para pensar no que

poderia estar aguardando os três amigos lá embaixo.

Page 50: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

Lief deslizava com cautela para baixo, segurando os tornozelos de Reece com

uma mão enluvada e usando a outra para se segurar nas paredes e no teto e evitar

descer depressa demais. Era uma tarefa difícil, pois as rochas estavam cobertas por

uma fina camada de fungos escorregadios que lambuzavam os dedos dele. A

passagem tornava-se cada vez mais estreita, até que ficou larga o suficiente para deixar

passar somente uma das grandes caixas sem dificuldade.

A mochila de Lief ficou presa no teto. Com um grito de advertência para Barda,

que estava bem atrás dele, contorceu-se até que as alças escorregassem de seus

ombros e ele pudesse deslizar, deixando a mochila para trás. Lief sabia que ela seria

empurrada. A descida ficara mais íngreme e aquilo era tudo que podia fazer para não

escorregar para baixo sem controle.

Outros aspectos também haviam mudado. O rosnado ficara mais alto, um

rugido incessante que parecia ocupar-lhe os ouvidos e a mente. Estava mais difícil

segurar Reece, que ainda não despertara totalmente, mas começava a mover as pernas,

a segurar-se nas paredes e a erguer a cabeça, de modo que esta encostava no teto do

túnel vez ou outra.

E abaixo se via uma luz — um brilho fraco e amarelado demais para ser

originado da Lua. Rapidamente, ela se tornou mais brilhante. Lief percebeu que estava

atingindo o fundo do declive e que a passagem estava prestes a se nivelar.

— Preparem-se! — gritou para Barda e Jasmine.

Quase no mesmo instante, de repente, Reece começou a contorcer-se e a

revirar-se. Ele gritava e chutava. Seus tornozelos escaparam das mãos de Lief e ele

escorregou na direção da luz. Abafando um grito assustado, Lief viu o corpo retorcido do

inimigo chegar ao fundo da descida.

Mas ele não parou. De alguma forma, continuou se afastando.

Pensando acima de tudo em manter o inimigo à vista, Lief parou de se segurar

nas paredes e deslizou pelo último trecho de declive. Em instantes chegou ao final.

Ali, a passagem se alargava. Vinda do teto, uma luz fraca brilhava, e aquele

som incessante o cercava. Abaixo de seus pés, o solo rochoso, duro e liso do túnel

Page 51: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

havia sido substituído por algo mais macio e irregular — algo que tremia levemente sob

suas mãos... e que se movia! Assim como Reece, Lief estava sendo carregado — pelo

próprio solo!

O vulto de vermelho rastejava um pouco mais adiante. Lief ergueu-se e correu

na direção dele, percorrendo a distância em segundos. Saltou sobre o homem que se

debatia e lutou com ele, tentando imobilizá-lo.

Os corpos dos dois, rolando e lutando no chão, atingiram a parede lateral da

passagem. Lief sentiu uma terra áspera que não estremecia nem se movia. Reece

arqueou as costas, gritou e ficou imóvel.

Então Lief deu-se conta de dois fatos: o centro da passagem era uma trilha em

movimento guiada por um mecanismo invisível, e Reece estava morto — morrera de

uma forma terrível. Lief fitou-lhe rapidamente o rosto horrível e estremeceu,

lembrando-se da descrição feita por Tira sobre outras pessoas que haviam tentado

escapar pelo Buraco.

Ele escutou um grito e viu Barda e Jasmine correndo em sua direção pela

passagem, assomando da escuridão com uma rapidez impressionante.

— Saltem para o lado! — Lief avisou. — A faixa em movimento está somente

no centro.

Os amigos o obedeceram, tropeçando ao atingirem o solo firme. Quando se

aproximaram de Lief e viram o corpo de Reece, contiveram -se para não gritar de horror.

— O que... o que aconteceu com ele? — Barda balbuciou, estremecendo.

As palmas das mãos do inimigo e o alto de sua cabeça raspada estavam

lambuzados com um fungo vermelho e cobertos por pústulas terríveis. Sua boca

espumava e o rosto exibia uma cor azulada, retorcendo-se numa careta de agonia.

— Veneno! — exclamou Jasmine. Agitada, ela olhou ao redor. — Nas

Florestas do Silêncio há uma aranha cuja picada pode...

— Não há aranhas aqui — interrompeu Lief. Seu estômago estava revirado e o

dedo tremia ao apontar a cabeça e as mãos do homem morto. — O fungo da

passagem... acho que o contato com a pele nua é mortal. Arrastamos Reece para a

morte. Ele despertou, viu onde se encontrava, mas era tarde demais.

Nauseados, eles observaram o corpo encolhido.

— Eu não sabia que tirar as luvas e a faixa de cabeça poderia matá-lo — disse

Jasmine finalmente, em tom de desafio.

— Claro que não — disse Barda, confortando-a. — Como poderia? Somente

os Ra-Kacharz sabiam que são as luvas e as faixas de cabeça que lhes permitem entrar

no Buraco e continuar vivos. — Ele fez uma careta. — Nossas roupas estão totalmente

cobertas de fungos. Como poderemos tirá-las com segurança?

Page 52: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

Lief estivera refletindo a respeito.

— Acho que o veneno só é fatal quando fresco — murmurou, olhando as mãos

enluvadas. — Não vejo outra forma pela qual os Ra-Kacharz poderiam se reunir ao seu

povo sem prejudicá-los.

— Estou torcendo para que você esteja certo — disse Barda, estremecendo.

Um som fraco se fez ouvir atrás deles. Os companheiros se viraram e viram o

contorno brilhante de um dos engradados prateados deslizar passagem abaixo e parar

na trilha em movimento. Ele se acomodou suavemente e começou a se mover na

direção deles.

— Fechei a grade depois que passamos, esperando que os cozinheiros não se

dessem conta de que escapamos pelo Buraco — Jasmine contou. — E parece que não

perceberam.

— Ainda não — Barda retrucou, sombrio. — Mas assim que os aposentos dos

Ra-Kacharz forem examinados eles saberão que não há outro local para onde

possamos ter ido. Precisamos encontrar a saída depressa. Se seguirmos este túnel,

acho que chegaremos ao outro lado da colina.

Eles deixaram o corpo de Reece onde estava, saltaram de volta para a trilha

em movimento e começaram a correr por ela, logo deixando o recipiente prateado bem

para trás.

Pouco tempo depois, os amigos viram um brilho à sua frente, sentiram o ar

fresco em seus rostos e ouviram o som de vozes e tinidos. Tornaram a pular para a

lateral do túnel e começaram a rastejar por ele, encostados à parede.

O ambiente ficou mais claro e o som das vozes aumentou. Também se

ouviram sons estranhos e resfolegantes — sons que pareciam familiares a Lief, embora

ele não conseguisse reconhecê-los. E então, de repente, ele viu um portão adiante. A

trilha em movimento parava exatamente à sua frente, e um pequeno amontoado de

caixas prateadas se encontrava na abertura como se fossem guardas. Além delas, Lief

conseguiu ver o contorno de árvores e o céu cinzento. Um pássaro noturno gritou. O dia

ia nascer a qualquer instante.

Enquanto observava, três vultos altos entraram em seu campo de visão. Cada

um deles ergueu um dos engradados e levou-o para longe.

— Eram Ra-Kacharz! — Jasmine murmurou. — Você viu?

Lief assentiu, perplexo. Então, os três Ra-Kacharz que faltavam estavam ali. O

que estariam fazendo com o alimento descartado? E o que era aquele som

resfolegante? Estava certo de que já o ouvira antes, mas onde?

Os três companheiros prosseguiram, pé ante pé, agachados e próximos à

parede, esticando os pescoços para enxergar através do portão. E, quando finalmente

Page 53: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

puderam ver o que acontecia lá fora, detiveram-se, reprimindo um grito de assombro.

Os Ra-Kacharz colocavam os engradados numa carroça e cuidadosamente os

protegiam com palha para que não se chocassem no trajeto. Duas outras carroças

aguardavam, totalmente carregadas. E resfolegando alegremente entre os varais de

cada uma encontrava-se... um muddlet!

— Eles estão levando os engradados embora! E estão usando os nossos

muddlets — Lief sussurrou.

— Acho que não são os nossos animais — Jasmine comentou, sacudindo a

cabeça. — Eles são muito parecidos, mas as manchas estão em lugares diferentes. —

Ela espiou pelo canto do portão e gelou. — Há um campo cheio de muddlets logo ali —

murmurou. — Deve haver uns 20!

— Os nossos animais certamente estão entre eles — Barda concluiu,

carrancudo. — Mas podem ficar lá. Eu não montaria um animal desses nem que minha

vida dependesse disso.

— Bem, as nossas vidas dependem de sairmos daqui o mais depressa

possível — Jasmine falou baixinho. — O que acha que devemos fazer?

Barda e Lief trocaram olhares, atingidos pelo mesmo pensamento.

— A palha entre os engradados é alta — Lief constatou. — Acho que

poderíamos muito bem nos esconder no meio dela.

— Isso quer dizer que a história se repete, Lief — Barda assentiu, sorrindo. —

Vamos escapar daqui da mesma forma que o seu pai fugiu do palácio de Del quando

jovem: numa carroça de lixo!

— Mas e Kree?... — Jasmine balbuciou. — Como ele vai saber onde estou?

Como se fosse uma resposta a essa pergunta, um grasnado saiu das árvores.

O rosto de Jasmine se iluminou.

— Ele está aqui! — sussurrou ela.

Naquele momento, os Ra-Kacharz voltaram para apanhar mais alguns

engradados e os companheiros se esconderam. Mas, assim que os vultos de vermelho

se afastaram, cambaleando com suas cargas imensas, três sombras dispararam do

abrigo do portão e subiram numa das carroças carregadas. Uma delas fez um sinal para

as árvores enquanto se enterrava na palha entre os engradados, e um pássaro gritou

em resposta.

Os amigos ficaram deitados, encolhidos, imóveis e ocultos enquanto os

Ra-Kacharz concluíam o trabalho deles.

— Esse foi o último? — eles ouviram uma voz conhecida perguntar. Era a

mulher que os defendera no julgamento.

— Parece que sim — respondeu outra voz. — Pensei que seriam mais. Deve

Page 54: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

estar havendo algum problema nas cozinhas. Mas não podemos esperar mais ou

vamos nos atrasar.

Atrasar? Lief ficou alerta. Atrasar para quê?

Houve um rangido quando os Ra-Kacharz subiram nas carroças. Três vozes

gritaram "Brix!" e os veículos começaram a se mover com um solavanco.

Escondidos sob a palha, os três companheiros nada viam além de trechos de

céu cinzento e, vez ou outra, o vulto de Kree voando bem acima deles. Se os

Ra-Kacharz estranharam ver um corvo voando antes do amanhecer, nada disseram.

Lief pensou que talvez eles nem tivessem notado o pássaro, tão concentrados estavam

em fazer os muddlets andar mais depressa.

Lief, Barda e Jasmine haviam planejado saltar quando tivessem atingido uma

distância segura da cidade, mas não haviam contado com o fato de que a carroça em

que entraram seria a segunda entre as três, tampouco com a velocidade dos animais.

As carroças saltavam e davam solavancos, percorrendo as estradas

acidentadas e passando rapidamente pelo campo. Mesmo arrastando cargas pesadas,

os animais galopavam com velocidade surpreendente. Era evidente que qualquer

tentativa de saltar iria machucá-los e provocar a sua captura.

— Teremos de esperar até as carroças pararem — Jasmine sussurrou. —

Acho que eles não estão indo muito longe.

Contudo, os minutos se transformaram em horas e o dia amanheceu antes

que as carroças finalmente desacelerassem e parassem com um solavanco. Sonolento

e confuso, Lief espiou cautelosamente pela palha para ver onde se encontravam e

sentiu um embrulho no estômago.

Estavam de volta à loja de Tom. E, marchando na direção deles, havia uma

tropa de Guardas Cinzentos.

Page 55: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

As carroças rangeram quando os condutores deixaram os bancos e saltaram

para o chão.

— Vocês estão atrasados! — resmungou o líder dos guardas.

— Não pudemos fazer nada — retrucou um dos Ra-Kacharz com calma. Lief

escutou um som tilintante e deduziu que os muddlets estavam sendo libertados de seus

arreios.

Ouviu-se o som de cascos, como se cavalos estivessem sendo conduzidos até

as carroças. Devem ser os cavalos cinzentos que se encontravam no campo atrás da

loja, Lief imaginou.

— Bom-dia, meus senhores e senhora Ra-Kacharz! — cumprimentou Tom em

voz alta. — Que belo dia!

— Um belo dia para se estar atrasado — o Guarda resmungou.

— Deixe que eu faço isso, amigo — Tom respondeu, simpático. — Eu cuido da

mudança dos animais. Vá e termine a sua cerveja. É um caminho longo e duro até Del.

O coração de Lief pareceu dar voltas no peito, e ele ouviu Barda e Jasmine

respirar fundo, assustados.

A comida não seria descarregada. As carroças seguiriam para Del!

Lief permaneceu imóvel, a mente funcionando rapidamente. Ele mal ouviu os

sons dos pés dos Guardas marchando de volta à loja. De repente, tudo se encaixou.

Durante séculos, carroças rodaram colina acima até o palácio de Del carregadas com

alimentos refinados. Por mais que tivesse faltado comida na cidade, os habitantes

favorecidos do palácio nunca passaram fome.

Ninguém nunca soubera de onde vinha a comida. Mas agora Lief sabia.

A comida vinha de Noradz. O seu povo trabalhava para plantar e colher

alimentos em seus campos férteis. Os seus cozinheiros trabalhavam dia e noite para

produzir pratos deliciosos. Mas somente um pouco do que eles faziam era usufruído por

seus habitantes. O resto era levado para o palácio em Del. Antigamente, isso fez com

Page 56: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

que reis e rainhas de Deltora ignorassem a miséria de seu povo. Hoje, alimentava os

servos do Senhor das Sombras.

Os Ra-Kacharz eram traidores de seu povo. Tom, que fingira ser contra o

Senhor das Sombras era, na verdade, amigo dos Guardas Cinzentos.

Uma onda de intensa raiva invadiu Lief. Mas Barda estava atento a questões

mais importantes.

— Precisamos sair desta carroça — murmurou. — Agora, enquanto os

Guardas estão afastados. Lief, você consegue ver...

— Não consigo ver nada — Lief murmurou em resposta.

Os arreios tilintavam. Kree grasnou de algum lugar próximo.

— Que estranho. Aquele pássaro preto nos seguiu o tempo todo — disse um

Ra-Kacharz.

— É mesmo? — Tom retrucou, pensativo.

Lief, Barda e Jasmine ficaram imóveis em seu esconderijo de palha. Tom já

vira Kree. Seria ele capaz de adivinhar...?

— A propósito — Tom começou, pigarreando. — Eu tenho más notícias. Vocês

vão ter de voltar a pé para Noradz. Os animais descansados que eu mantinha aqui para

vocês foram roubados... por uns viajantes espertos.

— Nós sabemos! — respondeu um dos Ra-Kacharz, zangado. — Você deveria

ter tomado mais cuidado. Encontramos os animais tentando entrar no campo atrás da

colina, ontem à tarde. Eles dispararam para casa e derrubaram os intrusos das selas em

frente ao nosso portão.

— Os intrusos levaram o mal à nossa cidade — acusou outro Ra-Kacharz. —

Eles escaparam da morte por um fio e agora se encontram em nossas masmorras.

— É mesmo? — perguntou Tom calmamente. E continuou com mais animação.

— Muito bem! Estes pobres animais cansados estão livres de suas amarras. Se vocês

os levarem ao campo, posso terminar de arrear os cavalos. Depois, talvez, vocês

queiram acompanhar-me numa caneca de cerveja antes de iniciar a sua jornada.

Os Ra-Kacharz concordaram e logo Lief, Barda e Jasmine ouviram o som dos

muddlets sendo conduzidos para longe.

Momentos mais tarde, os três ouviram a voz de Tom, como se estivesse

falando com os cavalos.

— Se alguém quiser sair de uma carroça não vigiada e correr até as árvores ao

lado da loja, este é o momento. O pobre Tom está sozinho aqui, agora.

A mensagem foi clara. Desajeitadamente, os três companheiros abriram

caminho na palha e correram para o abrigo proporcionado pelas árvores. Seus corpos

estavam rígidos e doloridos. Tom fingiu que não os viu e simplesmente continuou a

Page 57: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

cuidar dos cavalos, assobiando baixinho para si mesmo.

Lief, Barda e Jasmine deitaram-se e observaram o comerciante caminhar

casualmente para o fundo da carroça em que estiveram escondidos e apanhar a palha

que caíra no chão. Ele recolocou-a no lugar e dirigiu-se até as árvores com as mãos nos

bolsos. Abaixou-se e começou a arrancar capim como se o estivesse colhendo para os

cavalos.

— Você nos vendeu muddlets que não lhe pertenciam! — Barda sussurrou,

furioso.

— Ora, o pobre Tom acha muito difícil resistir a moedas de ouro — murmurou o

comerciante sem olhar para cima. — Ele admite. Mas a culpa do que aconteceu é de

vocês, não minha, meu amigo. Se vocês tivessem seguido pela estrada da esquerda

como aconselhei, os animais nunca teriam sentido o cheiro de casa e disparado. Vocês

são os únicos responsáveis pelos problemas em que se meteram.

— Talvez — Lief concordou com amargura. — Mas ao menos o nosso único

crime é a idiotice. Você, porém, é um mentiroso. Você finge estar do lado dos que

resistem ao Senhor das Sombras, mas o tempo todo ajuda a alimentar os seus servos.

Você trata os Guardas Cinzentos como amigos.

Tom endireitou o corpo, com um feixe de capim na mão, e voltou-se para olhar

o sinal que se erguia, imponente, em seu telhado.

— Você percebeu, meu amigo, que o nome de Tom parece o mesmo, seja qual

for o lado em que se está? É o mesmo se você vier do leste ou do oeste. É o mesmo se

você estiver dentro da loja ou fora dela, se o vir num espelho ou com os próprios olhos.

E o próprio Tom é como o seu nome. É uma questão de negócios.

— Negócios? — espantou-se Lief.

Page 58: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

— Isso mesmo. Eu sou o mesmo Tom para todos. Não tomo partido. Não me

interesso por coisas que não são da minha conta. É uma atitude sábia nestes tempos

difíceis. E assim é possível ganhar muito mais dinheiro.

Ele sorriu. As extremidades de seus lábios, curvadas para cima,

enrugavam-lhe o rosto magro.

— Quanto a vocês, sugiro que deixem este lugar o mais depressa possível.

Vou manter os meus amigos Ra-Kacharz por aqui o máximo que puder, para dar-lhes

uma boa dianteira. Mas primeiro tirem esses trajes vermelhos, são muito chamativos.

Só não os deixem aqui, por favor. Não quero problemas.

Ele se virou e começou a caminhar de volta às carroças.

— Você é um trapaceiro! — Lief acusou de longe.

— Talvez — Tom concordou, parando. — Mas estou vivo e rico. E por minha

causa você pôde sobreviver para lutar mais um dia.

Ele continuou a andar, oferecendo o capim e estalando a língua para os

cavalos.

Os três amigos começaram a se livrar das vestimentas e botas vermelhas e a

colocá-las em suas mochilas. Lief parecia ferver de raiva. Jasmine fitou-o, curiosa.

— Tom nos ajudou — ela ressaltou. — Isso não é suficiente para você?

Algumas criaturas só pensam nelas mesmas. Tom é uma delas.

— Tom não é uma criatura, é um homem — Lief retrucou. — Ele deveria saber

o que é certo.

— Tem certeza de que você sabe? — Jasmine indagou, ríspida.

— O que você quer dizer com isso? — ele quis saber.

— Não discutam — Barda pediu, cansado. — Poupem as suas forças para a

caminhada. O Rio Largo fica muito longe. — Fechou a mochila, atirou-a sobre o ombro e

começou a se afastar por entre as árvores com passos firmes.

— Primeiro, precisamos voltar a Noradz — disse Lief, correndo atrás dele. —

Precisamos dizer às pessoas que estão sendo enganadas.

— É mesmo? E se sobrevivêssemos para contar a elas, o que eu duvido, se

elas acreditassem em nós, o que acho que não vai acontecer, se por algum milagre elas

rompessem um padrão de séculos, se rebelassem contra os Ra-Kacharz e se

recusassem a produzir todo aquele alimento... o que você acha que iria ocorrer?

— O suprimento de comida do Senhor das Sombras iria acabar — Lief

respondeu prontamente.

— Sim. E ele dirigiria sua ira para Noradz, usaria a força em vez da astúcia

para obrigar o povo a obedecê-lo e começaria a esquadrinhar o país à nossa procura —

Barda retrucou secamente. — Nada se ganharia e muito se perderia. Seria um desastre.

Page 59: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

Ele apressou o passo e seguiu adiante.

Lief e Jasmine o acompanharam, mas permaneceram calados durante um

longo tempo. Lief estava muito zangado, e Jasmine tinha a mente ocupada com

pensamentos que não desejava partilhar.

Quatro dias de caminhada cansativa se seguiram — quatro longos dias em

que Lief, Barda e Jasmine pouco falaram e, quando o fizeram, foi somente para

comentar a caminhada ou para manter-se fora das vistas de prováveis inimigos.

Quando, porém, na tarde do quarto dia, alcançaram as margens do Rio Largo,

perceberam que deveriam ter planejado o próximo passo com mais cuidado.

O rio era fundo, e o seu nome o descrevia perfeitamente. Ele era tão largo que

mal se podia ver a margem do outro lado. A grande superfície de água estendia-se

diante deles como um mar. Não havia como atravessar.

Desbotados e duros como pedra, restos de antigas balsas de madeira

encontravam-se semi-enterrados na areia. Talvez, muito tempo atrás, pessoas

tivessem cruzado o rio naquele local e abandonado as balsas ali. Contudo, não havia

árvores naquele lado da margem que proporcionassem madeira para construir uma

balsa — somente fileiras de juncos.

Os olhos de Jasmine se estreitaram ao observar o brilho opaco da água.

— As terras do outro lado são totalmente planas — comentou ela,

vagarosamente. — É uma planície. E vejo uma forma escura erguendo-se dela. Se

aquela é a Cidade dos Ratos, está bem à nossa frente. Tudo que precisamos fazer é...

— Atravessar o rio — concluiu Lief, pensativo. Deixou-se cair sobre a areia

fina e branca e começou a remexer na mochila, procurando algo para comer.

Retirou os objetos que haviam trazido da loja de Tom e colocou-os no chão,

formando um pequeno monte. Quase se esquecera deles e agora os fitava com

Page 60: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

desgosto.

Na loja, tinham um aspecto muito interessante, mas agora pareciam um

amontoado de coisas sem valor. As pedras de acender fogo, o pão que não precisava

assar, o pó rotulado de "Puro e Límpido", o pequeno cachimbo que produzia bolhas de

luz e uma pequena lata achatada com um rótulo desbotado...

Claro, o brinde de Tom. Algo totalmente inútil, sem dúvida. De fato, a única

maneira de Tom livrar-se daquilo era dando de presente. Lief zombou de si mesmo e

virou a latinha de ponta-cabeça.

— É longe demais para nadarmos. Teremos de andar pela margem até

encontrar um vilarejo em que haja barcos. — Barda sugeriu. — É uma pena nos

desviarmos de nossa rota, mas não temos opção.

— Talvez tenhamos — Lief respondeu, devagar.

Jasmine e Barda o fitaram, surpresos. Ele ergueu a lata e leu as palavras

impressas no verso em voz alta.

INSTRUÇÕES

Espalhe os Devoradores de Água com moderação onde for necessário solo

seco.

CUIDADO!

• O efeito dura somente uma hora.

• Manusear com cuidado.

• Não comer.

• Armazenar em local seco.

Observação: Os fabricantes dos Devoradores de Água não se responsabilizam

por eventuais mortes, ferimentos, danos ou outros tipos de desastre que possam

ocorrer antes, durante ou depois da utilização deste produto.

— Você está dizendo que o que há nessa caixinha é capaz de secar o rio? —

espantou-se Jasmine.

— Eu não estou dizendo nada — Lief retrucou, dando de ombros. — Estou

Page 61: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

apenas lendo as instruções.

— Há mais advertências que instruções — Barda comentou. — Mas vamos

tentar...

Eles caminharam juntos até a margem do rio e Lief abriu a tampa da caixa de

estanho. Em seu interior, havia pequenos cristais não muito maiores do que grãos de

areia. Sentindo-se um pouco tolo, ele apanhou alguns e jogou-os na água. Eles

afundaram de imediato sem provocar nenhum tipo de mudança.

E nada mais aconteceu.

Lief aguardou um momento e, lutando contra o desapontamento, tentou sorrir.

— Eu devia saber — resmungou. — Como se Tom fosse dar algo que

realmente...

Então o garoto gritou e deu um salto para trás. Uma bolha enorme, incolor e

oscilante se erguia no rio. E do seu lado outra e mais outra!

— São os cristais! — Barda gritou, excitado. — Eles estão sugando a água!

E realmente estavam. Lief observava as bolhas que cresciam, espalhavam-se

e se uniam para formar duas paredes oscilantes que detiveram o rio. E a água entre

elas simplesmente secou, deixando um caminho estreito e sinuoso de lama suja e

arenosa.

Kree grasnou, espantado, quando Jasmine, Lief e Barda pisaram com cautela

no leito do rio, comprimindo-se entre os montes gelatinosos e caminhando até chegar

ao fim da trilha seca. Então, Lief atirou outro punhado de cristais na água à sua frente e,

após alguns instantes, mais protuberâncias romperam a superfície do rio e outro

caminho começou a se abrir para eles.

A travessia do Rio Largo foi uma experiência estranha e assustadora. Os três

amigos pensaram o tempo todo no que poderia acontecer caso as paredes oscilantes

que detinham o rio caíssem. A enorme pressão poderia fazer com que a água se

fechasse sobre eles e não haveria como escapar.

Os Devoradores de Água dilatados lhes bloqueavam a visão à medida que

avançavam pelo caminho tortuoso, os pés afundando na lama macia. Lief começava a

se preocupar com a possibilidade de os cristais não serem suficientes para concluir a

travessia quando, de repente, a margem surgiu à sua frente e ele pisou na terra áspera

e seca.

Os três companheiros permaneceram parados, olhando fixamente à sua frente.

A planície estendia-se a partir da curva do rio e era cercada por água em três

lados. Deveria ter sido exuberante e fértil, contudo nenhuma folha de grama suavizava a

argila dura e ressecada que a cobria. Até onde a vista podia alcançar, não havia sinal de

qualquer coisa viva ou em crescimento.

Page 62: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

No centro, encontrava-se uma cidade cujas torres exibiam uma cor

vermelho-escura sob os últimos raios do pôr-do-sol. Apesar da grande distância, uma

sensação de perversidade e ameaça parecia desprender-se dela como uma névoa.

Eles deixaram o rio e começaram a caminhar na planície árida. O céu formava

um arco sobre eles, vermelho e sombrio. "Vistos de cima", Lief pensou de repente,

"devemos parecer formigas — três minúsculas formigas rastejantes. Um golpe nos

mataria." Ele nunca se sentira de tal modo exposto ao perigo.

Kree dividia com ele a mesma sensação e permanecia empoleirado no ombro

de Jasmine. Filli encontrava-se encolhido dentro do casaco dela, deixando visível

somente o seu focinho. Entretanto, mesmo a companhia deles não era suficiente para

ajudá-la. Ela arrastava os pés e andava cada vez mais devagar; finalmente, quando o

sol começou a mergulhar no horizonte, estremeceu e parou.

— Sinto muito — balbuciou. — A aridez deste lugar é como a morte para mim.

Não consigo suportar.

O rosto dela estava pálido e rígido, e as mãos, trêmulas. Lief e Barda fitaram-se,

preocupados.

— Agora mesmo, pensei em pararmos durante a noite — Barda disse, embora

Lief duvidasse que fosse verdade. — Precisamos descansar e comer. Além disso, não

acho que devamos entrar na cidade à noite.

Eles sentaram-se e começaram a desempacotar os alimentos, mas não havia

gravetos para acender o fogo.

— Agora é uma boa hora para testar as pedras de acender fogo. — disse Lief,

seguindo o exemplo de Barda e tentando se mostrar alegre. Ele leu as instruções do

frasco sob a luz fraca e então colocou uma das pedras no chão, golpeando-a

firmemente com a sua pá. Imediatamente ela irrompeu em chamas. Acrescentou outra

pedra e também ela se inflamou. Logo se formou uma intensa labareda que,

aparentemente, não precisava de nenhum outro combustível. Lief guardou o frasco de

volta ao bolso, satisfeito.

— Conforto instantâneo. Surpreendente! — Barda comentou, entusiasmado.

— Tom pode ser um patife, mas pelo menos as coisas que vende valem o seu preço.

Ainda era cedo, mas Barda e Lief espalharam os suprimentos ao seu redor e

dedicaram-se a escolher o que iriam comer. Adicionaram água a um dos círculos

brancos do Nada de Forno, que começou a inchar e rapidamente se transformou em um

pão. Eles cortaram-no em fatias, torraram-no e comeram-no com algumas frutas

desidratadas, nozes e mel que haviam trazido de Raladin.

— Um banquete — comemorou Barda, contente. Lief percebeu, aliviado, que a

expressão tensa de Jasmine começava a se desfazer. Como haviam imaginado, o calor

Page 63: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

e o alimento a estavam reanimando.

Lief contemplou a cidade distante por sobre o ombro da garota. Naquele

momento, a luz vermelha começava a diminuir nas torres. Imponente sobre a planície, a

cidade parecia silenciosa, sombria e deserta...

Lief piscou. Os últimos raios do Sol estavam pregando uma peça em seus

olhos. Por um instante, pareceu-lhe que a terra ao redor da cidade estava se

movimentando como água.

Ele olhou novamente e franziu a testa, intrigado. O chão estava se movendo.

No entanto, a grama não balançava e nenhuma folha se agitava ao vento. O quê?...

E, de repente, ele viu.

— Barda! — exclamou com voz rouca.

Barda fitou-o, surpreso com o medo que percebeu no olhar do companheiro.

Lief tentou falar, mas as palavras ficaram presas em sua garganta. Ondas de terror

percorreram-lhe o corpo e seus olhos estavam cravados na planície em movimento.

— O que foi? — Jasmine indagou, virando-se para olhar. Então ela e Barda

gritaram juntos e ergueram-se num salto. Vinda da cidade, cobrindo o solo como uma

onda rasteira e comprida, surgia uma multidão ligeira e assustadora de ratos.

Page 64: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

Milhares de ratos — dezenas de milhares de ratos!

De repente, Lief compreendeu por que a planície era árida. Os ratos haviam

devorado tudo.

Eles eram criaturas das sombras. Haviam permanecido escondidos na cidade

arruinada enquanto o sol brilhava sobre a planície, mas agora corriam na direção do

cheiro de comida, guiados por uma fome frenética.

— O rio! — Barda lembrou.

Os três amigos correram para salvar suas vidas. Lief olhou para trás somente

uma vez, e o que viu foi suficiente para fazê-lo acelerar ainda mais o ritmo, ofegante de

pavor.

Os primeiros ratos, imensos, haviam chegado à fogueira. Corriam sobre a

comida e outros pertences espalhados pelo chão, mordendo e rasgando tudo com seus

dentes afiados. Seus companheiros os seguiam de perto e subiam neles, asfixiando-os,

lutando entre si pelos restos, tombando sobre o fogo, gritando e guinchando.

Outros milhares deles, com os olhos negros brilhantes, se engalfinhavam e

rodeavam a pilha confusa, aproximando-se e fungando. Eles haviam sentido o cheiro

de Lief, Barda e Jasmine, que estavam mais adiante — sentiram seu calor, sua vida e

seu medo.

Lief correu, o peito dolorido pelo esforço, os olhos fixos no rio. A água brilhava

sob os últimos raios de sol. Ele estava perto... cada vez mais perto...

Jasmine corria ao seu lado, seguida de perto por Barda. Ofegante, Lief

mergulhou na água fria e nadou até que se sentisse seguro. Então, virou-se para olhar a

margem, o casaco flutuando à sua volta.

A ruidosa torrente cinza-escuro formada pelos ratos atingiu as margens do rio.

Então, encrespou-se e rompeu como uma onda, saltando para dentro da água.

— Eles estão nadando em nossa direção — Barda gritou, lutando para

desembainhar a espada e erguê-la à superfície. — Deus do céu, não há nada que possa

Page 65: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

detê-los?

Jasmine desferia golpes com sua adaga, gritando furiosamente, e dúzias de

ratos mortos eram levados pela correnteza. Ao lado dela, Lief e Barda varriam suas

lâminas pela água, de um lado a outro, ofegantes pelo esforço da tarefa.

A água em volta deles tingia-se de sangue e espuma e, mesmo assim, os ratos

continuavam a chegar, agarrando-se pelos dentes aos companheiros mortos.

"Por quanto tempo teremos forças?", pensou Lief. "Quanto tempo teremos

antes que nos dominem?"

Sua mente trabalhava febrilmente enquanto lutava, as mãos dor-mentes no

cabo da espada. Eles ficariam a salvo do outro lado do rio, largo demais para que os

animais nadassem. Mas também era largo demais para ele, Jasmine e Barda, e os três

nunca sobreviveriam se resolvessem lançar-se sem rumo naquelas águas frias e

profundas.

Além disso, uma longa noite os aguardava. Antes que o sol nascesse

novamente e trouxesse luz à planície, os ratos iriam atacar. Milhares morreriam, mas

outros milhares viriam. Gradativamente, Lief, Barda e Jasmine perderiam as forças. E,

finalmente, os ratos conseguiriam aglomerar-se sobre eles, mordendo e arranhando até

que os três amigos afundassem e se afogassem.

O sol se pusera e a planície encontrava-se envolta na escuridão. Lief não

podia mais ver a cidade, somente a fogueira, bruxuleante como um farol.

Foi então que se lembrou de ter colocado o frasco de pedras de acender fogo

no bolso.

Soltou a mão esquerda da espada, mergulhou-a e remexeu na jaqueta. Seus

dedos fecharam-se ao redor do frasco e ele o trouxe à superfície. Estava pingando água,

mas as pedras ainda chocalhavam em seu interior.

Lief gritou para que Jasmine e Barda lhe dessem cobertura e avançou para a

frente, ao mesmo tempo em que desatarraxava a tampa apertada do frasco. Ele

apanhou um punhado de pedras com os dedos rígidos e jogou-as com todas as suas

forças sobre os ratos que estavam na margem.

Quando as pedras os atingiram, viu-se uma labareda enorme cuja luz era

ofuscante. Centenas de ratos caíram mortos, atingidos pelo calor repentino. A horda

que se encontrava atrás deles guinchou e se espalhou, fugindo dos corpos

incandescentes. As criaturas que já se encontravam na água agitaram-se e

retorceram-se, aterrorizadas, avançando na direção de Lief, Barda e Jasmine, as longas

caudas torcendo-se e enrolando-se. Barda e Jasmine golpearam-nos, defendendo a si

mesmos e a Lief, enquanto este atirava outro punhado de pedras, e depois outro,

movendo-se lentamente corrente abaixo para ampliar a parede de labaredas.

Page 66: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

Logo um extenso lençol de fogo queimava na beira do rio. Atrás dele, a planície

fervilhava. Mas, no local em que se encontravam Lief, Barda e Jasmine, ofegantes e

trêmulos de alívio, havia apenas uma água ondulante, viva com a luz vermelha e

bruxuleante. Ratos mortos eram carregados pela correnteza, porém não eram

substituídos por outros.

Momentos depois, ouviu-se o barulho da água quando os ratos mergulharam

no rio, acima e abaixo da linha de fogo. Contudo a distância era grande demais para que

nadassem em segurança. A correnteza veloz arrastava a maioria antes que atingissem

suas presas, e os que sobreviviam eram facilmente abatidos.

Dessa forma, os três companheiros permaneceram unidos, mergulhados na

água até a cintura, tremendo de cansaço, mas em segurança atrás da barreira de fogo,

enquanto as longas e frias horas passavam.

Finalmente amanheceu e uma fraca luz vermelha tingiu o céu. Um som

murmurante e confuso, semelhante ao farfalhar de inúmeras folhas, veio da direção da

linha de fogo. O som desapareceu em seguida e um silêncio profundo caiu sobre a

planície.

Lief, Barda e Jasmine avançaram com dificuldade para a margem, passando

por cima das brasas. A água lhes escorria das roupas e dos cabelos e chiava ao

respingar nas chamas da barreira que haviam construído.

Os ratos haviam sumido. Entre o rio e os restos fumegantes da fogueira, nada

havia além da pilha desordenada de pequenos ossos.

— Eles devoraram os próprios mortos — Barda balbuciou, enojado.

— É claro — Jasmine retrucou com naturalidade.

Tremendo de frio e com a sensação de que as pernas eram feitas de chumbo,

Lief começou a arrastar-se para o local onde havia feito a refeição muita horas antes.

Jasmine e Barda o seguiram, quietos e vigilantes. Kree voava acima deles, o som forte

do bater de suas asas sobressaindo-se no ar silencioso.

Ao redor das cinzas da fogueira restaram apenas três pedaços de tecido de

um vermelho bem vivo.

— Eles deixaram as roupas e as botas dos Ra-Kacharz — Lief constatou,

rindo. — Parece que não gostaram delas. Por que será?

— Talvez as roupas ainda estejam impregnadas com o cheiro do fungo do

Buraco — supôs Jasmine. — Nós não sentimos nada, mas nossos sentidos não são tão

bons quanto os dos ratos.

Os companheiros observaram a destruição que os cercava. As fivelas das

mochilas, as tampas dos cantis, o cachimbo que produzia bolhas de luz, um ou dois

botões, algumas moedas e a caixinha de lata que continha os últimos Devoradores de

Page 67: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

Água estavam espalhados na terra ressecada em meio aos ossos e às cinzas. Exceto

pelas roupas de Noradz, nada mais havia sobrevivido ao ataque faminto dos ratos. Nem

uma migalha de pão, uma tira de cobertor ou um pedaço de corda.

— Pelo menos, temos nossas vidas — Barda filosofou, tremendo sob a leve

brisa da manhã. — E temos roupas secas. Talvez não sejam as que gostaríamos de ter,

mas quem vai nos ver aqui?

Esgotados, tiraram as roupas molhadas para vestir os trajes e calçar as botas

dos Ra-Kacharz. Então, finalmente aquecidos e secos, sentaram-se para conversar.

— O frasco de pedras de fogo está quase vazio. Não conseguiremos

sobreviver outra noite nesta planície — Barda disse, sério. — Se quisermos entrar na

cidade, precisamos fazê-lo agora. Estes trajes estranhos vão nos dar alguma proteção,

já que os ratos não gostam deles. E ainda temos o cachimbo que produz bolhas de luz.

Se funcionar como nos foi dito, ele pode se útil. Os companheiros formaram trouxas com as roupas molhadas, recolheram do

chão os poucos pertences restantes e começaram a caminhar em direção à cidade.

Os olhos de Lief ardiam de cansaço e os pés se arrastavam dentro das botas

altas e vermelhas. O pensamento de que hordas de ratos rastejavam e se

engalfinhavam dentro das torres em ruínas que ele avistava adiante o encheu de pavor.

Como poderiam entrar na cidade sem serem descobertos e despedaçados por eles?

No entanto, precisavam fazê-lo, pois o Cinturão de Deltora começara a ficar

quente na cintura de Lief. Era evidente que uma das pedras perdidas estava escondida

na cidade. O Cinturão podia sentir isso.

Page 68: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

As torres da cidade erguiam-se escuras e proibitivas acima das cabeças dos

três companheiros.

Os grandes portões de ferro da entrada haviam enferrujado e caído há muito

tempo e, em seu lugar, tudo o que restava era um enorme buraco que conduzia à

escuridão, de onde vinha um terrível som áspero e furtivo e o mau cheiro dos ratos.

Havia também outra coisa. Uma coisa pior. A sensação de um mal antigo — vingativo,

frio, aterrador.

Lief, Barda e Jasmine começaram a calçar as luvas dos Ra-Kacharz e a cobrir

os rostos com o tecido vermelho que haviam usado na fuga de Noradz.

— Não entendo como os ratos se multiplicaram dessa forma — Lief comentou.

— É verdade que eles se reproduzem rapidamente, principalmente em locais sombrios

e sujos e onde encontram alimento com facilidade. Mas por que as pessoas desta

cidade não perceberam o problema e o solucionaram antes que assumisse dimensões

incontroláveis e tivessem de fugir?

— Havia algo de maligno no ar — Barda concluiu, carrancudo, observando as

paredes em ruínas à sua frente. — O Senhor das Sombras...

— Não se pode culpar o Senhor das Sombras por tudo! — Jasmine retrucou,

de repente.

Ela exibia uma expressão carregada. Barda e Lief a olharam, surpresos.

— Fiquei quieta por muito tempo — ela murmurou. — Mas agora vou falar,

mesmo sabendo que vocês não vão gostar do que vou dizer. Aquele estranho que

vimos na loja de Tom — o homem com a cicatriz no rosto — falou dos espinheiros na

planície. Ele os chamou de espinheiros de Del. E ele estava certo.

Os amigos continuaram a fitá-la. Jasmine respirou fundo e prosseguiu.

— O Senhor das Sombras governou Deltora por apenas dezesseis anos, mas

foi necessário muito mais para que os espinheiros cobrissem a planície. O

encantamento da feiticeira Thaegan no Lago das Lágrimas começou cem anos atrás. O

povo de Noradz tem vivido daquela forma há séculos. E acredito que os habitantes

Page 69: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

deste lugar maligno o tenham abandonado há séculos também.

Ela ficou quieta, fitando o vazio, triste.

— O que você quer dizer, Jasmine? — Barda indagou, impaciente.

— Que os reis e rainhas de Deltora traíram a confiança depositada neles —

seu olhar havia ficado sombrio. — Eles se trancaram no palácio de Del e viveram no

luxo enquanto o reino se deteriorou e o mal prosperou.

— Isso é verdade. — Lief concordou — Mas....

— Sei o que você vai dizer — Jasmine interrompeu, zangada. — Você me

contou que eles foram enganados pelos servos do Senhor das Sombras. Que eles

seguiam normas estúpidas cegamente por acreditar que o seu dever se resumia a isso.

Mas não acredito que alguém possa ser tão cego! Acho que toda essa história é

mentira.

Barda e Lief ficaram em silêncio. Ambos entendiam por que Jasmine tinha

tanta dificuldade em acreditar na verdade. Ela fora obrigada a cuidar de si mesma desde

os 5 anos de idade, era forte e independente. Nunca teria permitido que a

transformassem num fantoche, nunca agiria de acordo com a vontade do

conselheiro-chefe.

— Estamos arriscando as nossas vidas para recuperar o Cinturão de Deltora

— prosseguiu ela, mais violenta agora. — E por quê? Para devolver o poder ao herdeiro

real — que até mesmo num momento como este está escondido, enquanto que Deltora

sofre e nós enfrentamos o perigo. Mas será que realmente queremos reis e rainhas no

palácio de Del que mintam para nós e que nos usem como antes? Eu acho que não!

Jasmine os olhou fixamente e esperou.

Barda estava zangado. Para ele, Jasmine demonstrara deslealdade ao expor

as suas opiniões. Lief, contudo, pensava diferente.

— Eu costumava pensar como você, Jasmine, e detestava a lembrança do

velho rei. Mas questionar se ele e o filho foram fúteis e indolentes e se o herdeiro é digno

de nossa confiança não é importante agora.

— Não é importante! — Jasmine gritou. — Como você pode...

— Jasmine, nada é mais importante do que livrar o nosso reino do Senhor das

Sombras! — Lief interrompeu. — Por piores que as coisas fossem em Deltora, pelo

menos naquela época as pessoas eram livres e não viviam sempre aterrorizadas.

— É verdade. — exclamou ela — Mas....

— Não podemos derrotar o Senhor das Sombras com armas. A feitiçaria que

ele usa é poderosa demais. Nossa única esperança é o Cinturão usado pelo verdadeiro

herdeiro de Adin. Portanto, não estamos arriscando as nossas vidas pela família real,

mas por nosso reino e por seu povo. Você não percebe isso?

Page 70: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

As palavras de Lief atingiram o seu objetivo. Jasmine parou e refletiu.

Lentamente, o fogo em seu olhar arrefeceu.

— Você está certo — ela disse, finalmente, sem entusiasmo. — A minha raiva

me fez perder nosso objetivo de vista. Sinto muito.

Ela não disse mais nada, apenas terminou de envolver a cabeça e o rosto com

a faixa vermelha. Então, com a adaga na mão, acompanhou-os para o interior da

cidade.

Os companheiros penetraram num labirinto escuro em que as paredes

emitiam sons como se estivessem vivas. Os ratos vieram aos milhares, surgindo das

rachaduras das paredes deterioradas. Suas caudas agitavam-se como chicotes e seus

olhos vermelhos brilhavam.

Lief apanhou o cachimbo e soprou-o. Lindas bolhas brilhantes se

desprenderam dele, iluminando a escuridão como minúsculas lanternas flutuantes.

A maioria das criaturas fugiu da luz, gritando em pânico, e a grande multidão

diminuiu, transformando-se em um grupo menor, confuso.

Os mais corajosos, correndo em meio às sombras no chão, tentaram

agarrar-se aos pés em movimento dos intrusos e subir por suas pernas. Mas as botas

altas e escorregadias e o tecido liso e espesso de seus trajes frustraram os esforços de

quase todos, exceto de alguns, dos quais Lief, Barda e Jasmine se livraram com

safanões.

— Parece até que estas roupas foram feitas especialmente para nós — Barda

sussurrou, avançando com dificuldade. — Tivemos muita sorte em tê-las trazido.

— E muita sorte em termos ganhado este cachimbo de Tom — acrescentou

Lief. Mas, mesmo enquanto falava, ele se perguntava se tudo aquilo tinha mesmo

acontecido por mera sorte. Ou teriam aqueles objetos caído em suas mãos por outro

motivo? Durante essa jornada, ele já não tivera a impressão de que os seus passos

estavam sendo guiados por uma mão invisível?

Tremendo e lutando para livrar-se dos ratos, eles prosseguiram aos tropeços.

Vez ou outra, Lief soprava o cachimbo e novas bolhas de luz brilhante surgiam. As que

foram deixadas para trás pairavam muito acima de suas cabeças e brilhavam sobre as

antigas vigas que ainda sustentavam o telhado. Os ratos não tinham conseguido roer

essas vigas ou talvez soubessem que não deviam fazê-lo, pois sem elas o telhado

despencaria e a cidade ficaria exposta ao sol.

Toda a cidade era como um grande edifício — um labirinto de pedras que

parecia não ter fim. Não havia ar fresco nem luz natural. Provavelmente, era dessa

forma que se construíam cidades naquelas paragens, Lief pensou. Noradz não era

diferente.

Page 71: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

Em todos os lugares, havia sinais de uma grandiosidade extinta. Entalhes,

arcos elevados, aposentos amplos, lareiras enormes cheias de cinzas, cozinhas

grandes e vazias encontravam-se cobertos de poeira.

E ratos rastejavam por todos os cantos.

O pé de Lief tocou algo que tiniu e rolou. Os ratos agarraram-se às suas luvas

quando ele se abaixou para apanhar o objeto.

Tratava-se de um cálice entalhado — de prata, ele imaginou, embora

manchado e embaçado por causa do tempo e do abandono. O coração de Lief

encheu-se de tristeza quando girou esse cálice nas mãos. Era como se ele lhe falasse

das pessoas que haviam fugido de suas casas tanto tempo atrás. Ele o examinou com

mais atenção. De algum modo, lhe parecia familiar. Mas por quê?...

— Lief — Barda resmungou, a voz abafada pela faixa que lhe cobria a boca e

o nariz. — Continue andando, por favor. Não sabemos quanto tempo o cachimbo vai

durar e precisamos estar num lugar seguro quando a noite cair.

— Pelo menos, num lugar em que não haja ratos — Jasmine acrescentou.

Furiosamente, ela passou as mãos pelo corpo e os ratos que subiam caíram no chão,

guinchando.

Uma lembrança viva e uma onda de assombrada compreensão invadiu a

mente de Lief.

— Se encontrarmos tal lugar, diremos "Aqui não há ratos" e será uma bênção

— ele murmurou.

— O quê? — Jasmine indagou, intrigada.

Não havia tempo para explicações. Lief se forçou a prosseguir, enfiando a

haste do cálice no cinto. Mais tarde, ele contaria a Jasmine e Barda, quando estivessem

fora de perigo. Quando...

Venha até mim, Lief de Del.

Lief estancou, olhando ao redor, atônito. O que era aquilo? Quem havia

falado?

— Lief, o que aconteceu? — a voz de Jasmine parecia distante, apesar de ela

estar bem ao seu lado. Ele fitou-lhe os olhos verdes desconcertados e percebeu

vagamente que ela nada tinha ouvido.

Venha até mim. Estou esperando.

A voz sussurrava e se agitava na mente de Lief. Mal sabendo o que fazia, ele

começou a se mover rápida e cegamente, seguindo o chamado.

As bolhas de luz flutuavam diante dele, iluminando as paredes em ruínas, os

suportes enferrujados onde antes tochas ardiam, os fragmentos de potes empilhados.

Ratos fervilhavam nos cantos e agarravam-se às suas botas.

Page 72: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

Ele continuou, tropeçando, em direção ao centro da cidade. O ar ficou pesado

e era difícil respirar. O Cinturão, quente, pulsava ao redor de sua cintura.

— Lief — escutou Barda chamar. Mas ele não podia retornar nem responder.

Lief atingiu uma ampla passagem em cujo final se via uma larga entrada. A criatura que

estava do outro lado, o que quer que fosse, exalava um cheiro nauseante e almiscarado.

Ele vacilou, mas mesmo assim prosseguiu.

Lief chegou à entrada. Do outro lado, algo enorme se movia na escuridão.

— Quem é você? — ele indagou, com a voz trêmula.

A voz sibilante o atingiu em cheio, ácida e penetrante. Eu sou quem você

procura. Eu sou Reeah. Venha até mim.

Escuridão. Perversidade. Medo.

Trêmulo, Lief levou o cachimbo à boca e assoprou. Bolhas brilhantes subiram e

iluminaram o espaço que outrora fora um amplo salão de reuniões.

Uma enorme serpente ergueu-se no centro, sibilando no espaço ressonante.

As curvas de seu corpo brilhante, grosso como o tronco de uma velha árvore, cobriam o

chão de ponta a ponta. Seus olhos eram inexpressivos, frios e exibiam uma maldade

secular. Sobre sua cabeça havia uma coroa e, no centro desta, uma pedra que brilhava

com todas as cores do arco-íris.

Era a opala.

Lief deu um passo para a frente.

Pare!

Lief não soube dizer se a palavra estava apenas em sua mente ou se a

serpente a proferira em voz alta. Ele ficou imóvel. Barda e Jasmine se aproximaram. Lief

ouviu a respiração intensa dos dois e percebeu seus braços se moverem quando

Page 73: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

ergueram as armas.

Remova o objeto que está usando sob suas roupas. Jogue-o para longe.

Lentamente, os dedos de Lief se aproximaram do Cinturão.

— Não, Lief! — ele escutou Barda pedir, ansioso.

Mesmo assim, mexeu no fecho do Cinturão e tentou abri-lo. Nada além da voz

que lhe dava ordens parecia real.

— Lief! — A mão firme e morena de Jasmine agarrou-lhe o pulso e puxou-o

furiosamente.

Lief lutou para livrar-se dela e, então, de repente, foi como se despertasse de

um sonho. Ele olhou para baixo, piscando.

A palma de sua mão encontrava-se pousada no topázio dourado. Então ele

entendeu que a pedra havia desanuviado sua mente e dissipado o imenso poder que a

serpente tinha sobre ele. O rubi cintilava ao lado do topázio, não mais vermelho vivo,

mas sim cor-de-rosa, indicando perigo. No entanto, seu brilho ainda parecia emanar um

estranho poder.

A imensa serpente sibilou, furiosa, e mostrou suas terríveis presas. Sua língua

bífida movimentava-se rapidamente para dentro e para fora. Lief sentiu a força de seu

domínio, mas pressionou a mão sobre o topázio com intensidade ainda maior e resistiu.

— Por que ela não ataca? — Jasmine sussurrou.

Agora Lief sabia a resposta. Ele lembrou-se de um trecho de "O Cinturão de

Deltora" que discorria sobre os poderes do rubi.

O grande rubi, símbolo da felicidade, vermelho como o sangue, fica

opaco na presença do mal ou quando o infortúnio ameaça quem o usa. Ele afasta

espíritos malignos e é um antídoto para o veneno da serpente.

— Ela está sentindo o poder do rubi — Lief sussurrou. — É por esse motivo que

está com a atenção voltada para mim.

A sua mágica é forte, Lief de Del, mas não o bastante para salvá-lo, a cobra

sibilou.

Lief vacilou, pois novamente a vontade da serpente tentou dominar-lhe a

mente.

— A opala está na coroa dela — ele balbuciou para Jasmine e Barda. —

Façam o que puderem enquanto eu a distraio.

Ignorando as advertências sussurradas dos amigos, Lief começou a se afastar

Page 74: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

deles. A serpente voltou a cabeça para segui-lo com seu olhar duro e frio.

— Como você sabe o meu nome? — Lief perguntou, mantendo a mão firme no

topázio.

Eu tenho a pedra que mostra o futuro. Sou toda-poderosa. Sou Reeah, a

escolhida do Mestre.

— E quem é o seu mestre?

Aquele que meu deu o meu reino. Aquele que chamam de Senhor das

Sombras.

Lief ouviu Jasmine deixar escapar um som abafado, mas não se virou para

olhá-la. Em vez disso, enfrentou o olhar de Reeah, ao mesmo tempo em que tentava

manter a mente livre de sua influência.

— Certamente, você está aqui há muito tempo, Reeah — ele continuou. —

Você é tão grande e imponente!

A cobra sibilou e ergueu a cabeça, orgulhosa. Como Lief imaginara, a vaidade

dela era proporcional ao tamanho.

Eu não passava de uma minúscula serpente quando vim para os subterrâneos

desta cidade. Uma raça de humanos lamurientos vivia aqui na época. Se tivessem me

encontrado, teriam me matado por causa da ignorância e do medo. Mas entre eles havia

servos do Mestre que estavam me esperando. Eles me receberam bem, trouxeram-me

ratos para que eu me alimentasse até crescer e ficar forte.

Lief viu Jasmine com o canto dos olhos. Ela estava escalando uma das

colunas que sustentavam o teto. Rangendo os dentes, ele se obrigou a desviar a mente

dela, pois era essencial que a atenção de Reeah permanecesse concentrada nele.

— Que servos? — ele perguntou. — Quem eram eles?

Você os conhece, sibilou Reeah. Eles têm a marca dele. A eles foram pro-

metidos poder e vida eterna por servi-lo. Vocês usam as roupas deles para iludir-me,

mas não me iludem.

— Claro que não! — gritou Lief. — Eu a estava testando para ver se você

realmente podia ler a minha mente. Quem mais saberia onde encontrar ratos, o que

fazer para que procriassem e como aprisioná-los? Quem mais senão os caçadores de

ratos da cidade? Foi um plano inteligente.

Ah, sim, Reeah respondeu. Havia poucos ratos naquela época. 0 meu reino

ainda não havia atingido a glória que lhe era destinada. Mas o meu Mestre soube

escolher os seus servos. Eles criaram mais ratos para mim — cada vez mais. Até que,

finalmente, as paredes começaram a fervilhar, cheias deles. A doença se espalhou e

todo o alimento da cidade foi consumido. Então as pessoas imploraram aos caçadores

de ratos que os salvassem, sem saber que estes eram os próprios causadores da

Page 75: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

praga.

Os olhos cruéis da serpente brilharam, triunfantes.

— Então os caçadores de ratos tomaram o poder — Lief concluiu. — Disseram

que a praga dos ratos era resultado da maldade das pessoas e que nada lhes restava

fazer senão fugir.

Sim. Atravessar o rio para outro lugar onde reconstruiriam a cidade. Quando

eles se foram, saí dos subterrâneos e reivindiquei o meu reino.

Lief sentiu, mais do que viu, que Jasmine começava a caminhar pela grande

viga que atravessava o salão, exatamente acima da cabeça da serpente. Ela andava

com a mesma facilidade e leveza com que se movimentava entre os galhos das árvores

das Florestas do Silêncio. O que estaria planejando? Certamente, ela não acreditava

que as suas adagas conseguiriam perfurar aquela pele lustrosa. E onde se encontrava

Barda?

Lief podia sentir que a grande serpente estava ficando inquieta. Sua língua

saía da boca e entrava nela rapidamente, e a cabeça se inclinava na direção do garoto.

— Reeah! A nova cidade chama-se Noradz, que significa Nada de Ratos —

Lief gritou. — Eu a vi. As pessoas se esqueceram do que foram e de onde vieram. O

medo que sentem de ratos desencorajou-as. Os caçadores de ratos agora se chamam

Ra-Kacharz e são como sacerdotes que mantêm leis sagradas. Eles carregam chicotes

que se parecem com caudas de ratos e são todo-poderosos. O povo vive aterrorizado e

escravizado, servindo aos propósitos do seu Mestre.

Isso é bom, sibilou Reeah. É o que merecem. Então você contou a sua história,

Lief de Del. Sua mágica desprezível, suas armas insignificantes e sua lábia me

divertiram — durante algum tempo. Mas agora estou cansada de seu palavrório.

De repente, ela atacou. Lief cortou o ar com a espada para se proteger, mas o

primeiro movimento da serpente arrancou-lhe a arma da mão com se fosse um

brinquedo. Ela foi atirada para o alto, longe dele, fazendo círculos no ar.

— Jasmine! — Lief gritou. Mas não houve tempo para verificar se ela tinha

apanhado a espada. A serpente estava prestes a atacar novamente. Suas enormes

mandíbulas estavam abertas, as presas pingando veneno.

— Lief! As pedras de fogo! — A voz de Barda soou no outro lado do aposento.

Com certeza, ele se arrastara até lá numa tentativa de atacar o monstro pelas costas. A

gigantesca cauda da serpente sacudiu-se rapidamente e o corpo de Barda chocou-se

terrivelmente contra uma coluna, permanecendo imóvel.

"As pedras de fogo." Desesperado, Lief procurou nos bolsos, encontrou o

frasco e o atirou com força diretamente na boca aberta do inimigo. Contudo, Reeah era

rápida demais para ele. A cabeça da malvada criatura moveu-se bruscamente para o

Page 76: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

lado e o frasco passou voando por ela, espatifando-se numa coluna e explodindo numa

bola de fogo.

Agora eram somente Lief e Reeah.

Você é meu, Lief de Del!

A imensa cabeça investiu para a frente com uma velocidade aterradora. E, no

momento seguinte, a enorme serpente ergueu-se, triunfante, com o corpo de Lief

pendendo de suas mandíbulas.

Bem no alto, onde se encontravam os caibros que sustentavam o telhado, um

hálito quente queimava...

Vou engolir você inteiro. E a sua mágica também.

De repente, o ar se encheu de fumaça e se ouviu um som crepitante. Lief

percebeu vagamente que as chamas haviam subido a coluna e lambiam a madeira

velha dos caibros.

O fogo não vai salvá-lo. Depois de devorá-lo, vou apagá-lo com um simples

sopro. Pois eu sou Reeah, a toda-poderosa. Eu sou Reeah, aquela que...

Em meio a uma atmosfera confusa de terror e dor, através de uma cortina de

fumaça que lhe fazia arder os olhos, Lief viu Jasmine sobre uma viga ao seu lado, a

espada do garoto oscilando nas mãos dela. Ela arrancara a faixa vermelha do rosto e

seus dentes estavam à mostra numa fúria selvagem. Ela ergueu o braço...

Com um golpe poderoso, brandiu a espada, cortando a garganta da serpente

de um lado a outro.

Lief ouviu um grito rouco e borbulhante e sentiu as mandíbulas do monstro se

abrirem. Começou a cair rapidamente na direção do chão, as pedras duras aguardando

ansiosamente para recebê-lo.

E então o vazio.

Page 77: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

Lief se mexeu, gemendo. Sentiu um gosto adocicado na boca e ouviu estalos,

gritos e sons de algo se rasgando e sendo mastigado muito ao longe.

Abriu os olhos e viu Jasmine e Barda inclinados sobre ele, chamando-o.

Jasmine estava fechando um pequeno frasco preso a uma corrente que levava

pendurada ao pescoço. Lief percebeu vagamente que ela lhe dera o néctar dos Lírios da

Vida. O líquido o salvara, talvez o ressuscitara, como uma vez fizera com Barda.

— Eu... eu estou bem — murmurou, esforçando-se para sentar-se. Ele olhou à

sua volta. O aposento estava tomado por sombras tremeluzentes. As chamas, iniciadas

pelas pedras de fogo, haviam se espalhado e rugiam nas vigas antigas. A gigantesca

serpente jazia morta no chão, o corpo coberto por ratos famintos. Mais roedores

desciam das paredes e surgiam na soleira da porta, lutando entre si para alcançar o

banquete.

Por centenas de anos, a serpente se alimentara deles, Lief pensou, aturdido, e

agora ocorria o oposto. Nem mesmo o temor das paredes em fogo os impedia.

— Precisamos sair daqui! — gritou Barda.

Lief sentiu o amigo erguê-lo e jogá-lo por cima de seu ombro. Sua cabeça

girava, e ele tentou gritar: "E a coroa? E a opala?"

Nesse momento, porém, viu que a coroa se encontrava na mão de Barda.

Totalmente sem energia, Lief foi carregado, sacolejando nas costas de Barda,

pelos aposentos em chamas. Seus olhos estavam fechados, irritados por causa da

fumaça.

Ao abri-los novamente, notou que estavam atravessando os portões da cidade

e se dirigiam para a planície sombria. Kree, grasnando ansiosamente, voou ao encontro

deles. Então, ouviu-se um forte estrondo. O telhado da cidade começara a desmoronar.

Eles prosseguiram até chegar perto do rio.

— Eu consigo andar — Lief balbuciou. Barda parou e pousou-o delicadamente

no chão. Suas pernas tremiam, mas ele endireitou o corpo e se virou para observar a

cidade em chamas.

Page 78: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

— Nunca pensei que iria vê-lo em pé outra vez, amigo — Barda comentou,

alegre. — Aquela queda que Jasmine provocou foi...

— Era deixá-lo cair ou vê-lo desaparecer na boca da serpente — justificou a

garota. — O que acha que seria melhor? — completou, devolvendo a Lief a espada, que

brilhava sob a luz da Lua, a lâmina ainda manchada com o sangue de Reeah.

— Jasmine — Lief começou. Mas ela deu de ombros e virou-se, fingindo estar

ocupada ajeitando Filli em seu ombro. Ele percebeu o constrangimento da garota diante

da perspectiva de vê-lo agradecido por ela ter-lhe salvado a vida.

— Você acha que é seguro descansarmos aqui? — perguntou, mudando de

assunto. — Como acabei de quebrar todos os ossos do meu corpo, acho que não

agüentaria atravessar o rio agora.

— Acho que é bastante seguro, sim. Não vai haver ratos por aqui durante

algum tempo. — Barda respondeu. E então abriu um largo sorriso e passou as mãos

dos ombros até os quadris. — Noradzeer — acrescentou.

— Lief, como você sabia, antes de a serpente ter-lhe contado, que antigamente

o povo de Noradz vivia na Cidade dos Ratos? — Jasmine indagou, curiosa.

— Havia muitos indícios — Lief informou, cansado. — Mas talvez eu não

tivesse ligado os fatos se não tivesse encontrado isto. — Ele tirou o cálice sem brilho do

cinto e entregou-o aos amigos.

— Ora, é igual ao cálice que continha as cartas VIDA e MORTE, o Cálice

Sagrado de Noradz — Barda constatou, tomando-o nas mãos, surpreso. —

Possivelmente ele caiu e foi deixado para trás quando o povo fugiu da cidade.

Lief sorriu quando o minúsculo focinho negro de Filli surgiu na gola de Jasmine

para ver o que estava acontecendo.

— Não é de espantar que Filli tenha assustado o povo de Noradz — disse ele.

— Filli não é nem um pouco parecido com um rato! — Jasmine exclamou,

indignada.

— Eles detestam qualquer coisa pequena e peluda. Acho que aprendem a ter

esse medo desde que nascem — Barda arriscou.

— Como o medo de derrubar comida no chão ou deixar travessas descobertas,

pois essas atitudes costumavam atrair milhares de ratos

— Lief completou. — Ou o receio de comer alimentos estragados, como

acontecia muitas vezes na época da praga. A necessidade de tomar todos esses

cuidados deixou de existir hã centenas de anos, mas os Ra-Kacharz garantiram que o

medo permanecesse, para manter as pessoas presas a eles e ao Senhor das Sombras.

Lief falava despreocupada e indolentemente, a fim de livrar a mente dos fatos

horríveis que haviam acabado de acontecer. Mas Jasmine fitou-o, séria, a cabeça

Page 79: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

inclinada para o lado.

— Então quer dizer que é bem possível que um povo que nasceu depois de

regras idiotas terem sido criadas esqueça a sua história e as siga por obrigação? Eu não

acreditaria nisso se não tivesse visto com meus próprios olhos.

Lief percebeu que aquela era a maneira de Jasmine dizer que estava

começando a acreditar que os reis e rainhas de Deltora tinham menos culpa do que ela

imaginara, fato que o deixou muito satisfeito.

— Mas sempre há uma opção, e obrigações podem ser esquecidas

— acrescentou depressa ao ver Lief sorrir. — Aquela garota, Tira, nos ajudou

apesar do medo. — Jasmine fez uma pausa. — Espero que um dia possamos voltar

para libertá-la. Ou libertar a todos, se desejarem.

— Esta é a nossa grande chance de fazer isso. — Lief soltou o Cinturão e

estendeu-o perante si no chão áspero da planície. Barda entregou-lhe a coroa que

continha a grande opala.

Ao aproximar-se do Cinturão, a pedra caiu da coroa para a mão de Lief.

Imediatamente, a mente dele foi invadida por imagens de desertos arenosos e céus

repletos de nuvens ameaçadoras. Ele se viu sozinho entre dunas ondulantes e

intermináveis, sentiu o terror à espreita, invisível, e abafou um grito de medo.

Lief olhou para cima, viu Jasmine e Barda fitando-o ansiosos e fechou a mão

trêmula com mais força ao redor da pedra.

— Eu havia esquecido — ele começou com voz rouca, tentando sorrir.

— A opala nos mostra cenas do futuro. E parece que isso nem sempre é uma

vantagem.

Temendo que lhe perguntassem o que vira, ele se inclinou para encaixar a

pedra no Cinturão. Sob seus dedos, as cores do arco-íris pareciam faiscar e queimar

como fogo. Bruscamente, seu coração acelerado se aquietou, o temor esmoreceu e foi

substituído por um calor latejante.

— A opala também é o símbolo da esperança — Barda murmurou,

observando-o.

Lief assentiu, pressionando a mão sobre as cores vibrantes e sentindo o poder

da pedra fluir por seu corpo. E, quando finalmente fitou os amigos, seu rosto estava em

paz.

— Então agora temos o topázio, símbolo da lealdade; o rubi, símbolo da

felicidade; e a opala, símbolo da esperança- afirmou ele, calmamente.

— Qual será a próxima?

Jasmine estendeu o braço para Kree, que voou até ela, dando um grito

penetrante e alegre.

Page 80: Emily rodda   deltora quest 3 - a cidade dos ratos

— Qualquer que seja a quarta pedra, certamente não irá nos conduzir a

perigos maiores do que as outras três — disse ela.

— E se isso acontecer? — Barda brincou.

— Enfrentaremos o que vier — respondeu ela com simplicidade, dando de

ombros.

Lief ergueu o Cinturão — sólido, seguro e um pouco mais pesado do que antes

— e ajeitou-o ao redor da cintura. Lealdade, felicidade e esperança, pensou o garoto, e

seu coração se encheu desses três sentimentos.

— Sim — disse ele. — Vamos enfrentar qualquer perigo. Juntos.