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Revista E-metropolis, n. 12

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  • ISSN 2177-2312

    Publicao trimestral dos alunos de ps-graduao de programas vinculados ao Observatrio das Metrpoles.

    revista eletrnica e-metropolis

    Observatrio das Metrpoles Prdio da Reitoria, sala 522Cidade Universitria Ilha do Fundo21941-590 Rio de Janeiro RJ

    Tel: (21) 2598-1932Fax: (21) 2598-1950

    E-mail:[email protected]

    Website:www.emetropolis.net

    A revista eletrnica e-metropolis uma publicao trimestral que tem como objetivo principal suscitar o debate e incentivar a divulgao de trabalhos, ensaios, resenhas, resultados parciais de pesquisas e propostas terico-metodolgicas relacionados dinmica da vida urbana contem-pornea e reas afins.

    direcionada a alunos de ps-graduao de forma a priorizar trabalhos que garantam o carter multidisciplinar e que proporcionem um meio democrtico e gil de acesso ao conhecimento, estimulando a discusso sobre os mltiplos aspectos na vida nas grandes cidades.

    A e-metropolis editada por alunos de ps-graduao de programas vincu-lados ao Observatrio das Metrpoles e conta com a colaborao de pesqui-sadores, estudiosos e interessados de diversas reas que contribuam com a discusso sobre o espao urbano de forma cada vez mais vasta e inclusiva.

    A revista apresentada atravs de uma pgina na internet e tambm disponibilizada em formato pdf, visando facilitar a impresso e leitura. Uma outra possibilidade folhear a revista.

    As edies so estruturadas atravs de uma composio que abrange um tema principal - tratado por um especialista convidado a abordar um tema especfico da atualidade -, artigos que podem ser de cunho cientfico ou opinativo e que sero selecionados pelo nosso comit editorial, entrevistas com profissionais que tratem da governana urbana, bem como resenhas de publicaes que abordem os diversos aspectos do estudo das metrpoles e que possam representar material de interesse ao nosso pblico leitor.

    A partir da segunda edio da revista inclumos a seo ensaio fotogrfico, uma tentativa de captar atravs de imagens a dinmica da vida urbana. Nessa mesma direo, a seo especial - incorporada na quarta edio - uma proposta de dilogo com o que acontece nas grandes cidades feita de forma mais livre e de maneira a explorar o cotidiano nas metrpoles.

    Os editores da revista e-metropolis acreditam que a produo acadmica deve circular de forma mais ampla possvel e estar ao alcance do maior nmero de pessoas, transcendendo os muros da universidade.

  • conselho editorialProf Dr. Ana Lcia Rodrigues (DCS/UEM)Prof Dr. Aristides Moyss (MDPT/PUC-Gois)Prof Dr. Carlos de Mattos (IEU/PUC-Chile)Prof Dr. Carlos Vainer (IPPUR/UFRJ)Prof Dr. Claudia Ribeiro Pfeiffer (IPPUR/UFRJ)Prof Dr. Emilio Pradilla Cobos (UAM do Mxico)Prof Dr. Fania Fridman (IPPUR/UFRJ)Prof Dr. Frederico Araujo (IPPUR/UFRJ)Prof Dr. Hlne Rivire dArc (IHEAL)Prof Dr. Henri Acserald (IPPUR/UFRJ)Prof Dr. Hermes MagalhesTavares (IPPUR/UFRJ)Prof Dr. Inai Maria Moreira Carvalho (UFB)Prof Dr. Joo Seixas (ICS)Prof Dr. Jorge Natal (IPPUR/UFRJ)Prof Dr. Jose Luis Coraggio (UNGS/Argentina)Prof Dr. Lcia Maria Machado Bgus (FAU/USP)Prof Dr. Luciana Corra do Lago (IPPUR/UFRJ)Prof Dr. Luciana Teixeira Andrade (PUC-Minas)Prof Dr. Luciano Fedozzi (IFCH/UFRGS)Prof Dr. Luiz Antonio Machado (IUPERJ)Prof Dr. Manuel Villaverde Cabral (ICS)Prof Dr. Marcelo Baumann Burgos (PUC-Rio/CEDES)Prof Dr. Mrcia Leite (PPCIS/UERJ)Prof Dr.Maria Julieta Nunes (IPPUR/UFRJ)Prof Dr. Maria Ligia de Oliveira Barbosa (IFCS/UFRJ)Prof Dr. Mauro Kleiman (IPPUR/UFRJ)Prof Dr. Robert Pechman (IPPUR/UFRJ)Prof Dr. Robert H. Wilson (University of Texas)Prof Dr. Rosa Moura (IPARDES)Ms. Rosetta Mammarella (NERU/FEE)Prof Dr. Sergio de Azevedo (LESCE/UENF)Prof Dr. Simaia do Socorro Sales das Mercs (NAEA/UFPA)Prof Dr Sol Garson (PPED/IE/UFRJ)Prof Dr. Suzana Pasternak (FAU/USP)

    editor-chefeLuiz Cesar de Queiroz Ribeiro

    editoresAna Carolina ChristvoCarolina ZuccarelliEliana KusterFernando PinhoJuciano Martins RodriguesMarianna OlingerPaula Silva GambimRenata Brauner Ferreira

    assistenteDaphne Besen

  • Editorialn 12 ano 4 | maro de 2013

    com grande satisfao que lanamos mais uma edio da revista eletr-nica de estudos urbanos e regionais e-metropolis. Chegamos, assim, ao nosso 12 nmero. Procuramos, como em todas as outras edies, ao longo desses mais de dois anos de trajetria, priorizar o carter multidiscipli-nar da proposta da revista nas diferentes abordagens sobre a dinmica da vida urbana contempornea. Nosso artigo de capa, por exemplo, faz um instigante convite para refletirmos sobre o presente e o futuro das grandes metrpoles. No texto, o coordenador nacional do Observatrio das Metrpoles e professor titular do IPPUR-UFRJ, Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, e a professora do Pro-grama de Ps-Graduo em Urbanismo da UFRJ, Ana Lcia Britto, propem - utilizando a Regio Metropolitana do Rio de Janeiro como exemplo uma reflexo sobre os obstculos colocados para a construo de um projeto capaz de sobrepor o quadro de fragmentao poltica de nossas metrpoles. Esse modelo fragmentado, segundo os autores, s pode ser superado por foras polticas, econmicas e sociais capazes de propor um projeto metropolitano como orientador institucional, cognitivo e poltico dos atores.

    Mais adiante, contamos com uma valiosssima contribuio vinda de Por-tugal. No artigo intitulado O vero quente de 2012: reivindicando o direito habitao em Santa Filomena, Amadora, Andr Carmo trata da questo habi-tacional, que volta agenda poltica do pas, particularmente neste momento de crise, onde se prev profundas transformaes em todos os setores da vida nacional. Para isso, partindo do trabalho desenvolvido pelo coletivo HABITA, que atua na luta pelo direito cidade em Portugal, o autor traz o caso do bairro de Santa Filomena, chamando a ateno para o fato de que o municpio de Amadora tem desenvolvido um conjunto de polticas que visam a sua erradi-cao.

    Em Polticas habitacionais e acesso cidade no Municpio de Santo An-dr/SP o tema volta tona. Brbara Oliveira Marguti realiza uma anlise da produo habitacional realizada nas duas ltimas dcadas em Santo Andr, na regio metropolitana de So Paulo. A preocupao da autora est em avaliar a estrutura socioespacial resultante, com foco no resultado das polticas habi-tacionais de interesse social tambm sob a perspectiva do direito cidade. Em tempos de Minha Casa Minha Vida o artigo de Brbara leitura indispens-vel para quem se interessa pelo tema.

    No ltimo artigo desta e-metropolis a partir de Clo, cidade imaginria/imaginada no belssimo Cidades invisveis de talo Calvino, que Clara Na-talia Steigleder Walter busca refletir sobre as atitudes de aproximao e de reserva, em seu carter ambguo e prprio da experincia urbana. Para isso, no texto de Entre a proximidade e a distncia, a sociabilidade e a impessoalidade na vivncia do urbano, a autora aciona o pensamento de Georg Simmel, fa-zendo-o funcionar em um dilogo que convoca as ideias de Anthony Giddens e de Henri Lefebvre, para discutir as modulaes observveis nas relaes de sociabilidade e no individualismo conforme se apresentam em nossa contem-poraneidade, cada vez mais saturada de mltiplos estmulos sensoriais.

  • editorial

    A presente edio de e-metropolis vem com uma novidade: a sesso Com a palavra..., que traz a transcrio de uma palestra do renomado gegrafo ingls David Harvey, da City University of New York, realizada no Auditrio Ariosto Mila da FAU/USP, em So Paulo, no dia 28 de fevereiro de 2012. A palestra fez parte da programao das atividades de lanamento do livro O Enigma do Capital (Editora Boitempo) uma de suas obras mais recentes. Em sua fala, Harvey trata, sobretudo, do principal assunto desse livro, ou seja, a crise econ-mica global instalada desde 2008, cujos efeitos ainda se sentem principalmente em alguns pases da Europa. As palavras deste notvel pensador que temos o enorme prazer de reproduzir em e-metropolis tratam-se, na verdade, de um convite reflexo sobre como essa crise est arraigada histria da urbanizao e do desenvolvimento urbano uma dimenso histrica to bem fundamentada desta crise que talvez no encontremos nos livros escritos pelos economistas.

    Os megaeventos esportivos ou, mais especificamente, o livro Security Ga-mes: Surveillance and Control at Mega-events, editado por Colin Bennett e Kevin Haggerty, so o objeto da resenha escrita pelo gegrafo Chris Gaffney, da Universidade Federal Fluminense. Em seu texto, Gaffney chama a ateno no s para a importncia desta obra, mas tambm para como o discurso dos megaeventos apressam os processos de implantao de regimes de segurana que podem levar dcadas para se desenvolver por si s, deixando tecnologias novas, invasivas e mortais seguirem desigualmente pelo tecido urbano.

    A Sesso Especial deste nmero traz as motivaes, os conceitos originais, as ideias e algumas imagens que esto por trs do processo de criao de Per-lenga Cangao, curta-metragem realizado pelo Grupo de Pesquisa Moder-nidade e Cultura do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Produzido em 2009, o filme prope discutir/pensar, a partir da importncia de apropriar-se da realizao cinematogrfica como um meio de constituio de saberes, os discursos que esto relacionados representao do Cangao e do prprio Nordeste.

    A bicicleta sem dvida mais do que um meio de transporte. O escritor uruguaio Eduardo Galeno, em seu livro Los Hijos de Los Das, lembra de seu papel na emancipao feminina. Ele conta que por causa da bicicleta as mulhe-res moviam-se por conta prpria, desertavam da casa e disfrutavam do perigoso gosto da liberdade. Com o ttulo Um novo jeito de andar pelo mundo, o en-saio fotogrfico desta edio , justamente, um registro visual da relao entre bicicleta e cidade, nesse caso a onipresena da magrela nas cidades europeias. O ensaio foi feito pela estudante de Letras Portugus/Francs na Universidade Federal de Pelotas Lua Gill da Cruz, que atualmente trabalha como assistente de lngua portuguesa pelo Ministrio da Educao Francs, na le-de-France. Neste perodo, realizou vrias viagens pela Europa que possibilitaram a seleo das fotografias para este ensaio.

    Esta , portanto, a dcima segunda de e-metropolis, com nossos agradeci-mentos e votos de boa leitura!

    Os editores

  • 7a r t i g o seditorial

    Resenha

    55 Crime, Media, CultureCrime, Media, Culture

    Por Christopher Gaffney

    Especial

    58 Perlenga CangaoPerlenga Cangao

    Por Grupo de Pesquisa Modernidade e Cultura IPPUR/UFRJ

    Ensaio

    61 Um novo jeito de andar pelo mundoA new way to walk around the world

    Por Lua Gil

    Capa

    08 Democracia local e governana metropolitana: o caso do Rio de JaneiroLocal democracy and metropolitan governance: the case of the Rio de Janeiro

    Por Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Ana Lucia Britto

    Artigos

    19 O vero quente de 2012 Reivindicando o direito habitao em Santa Filomena, AmadoraThe hot summer of 2012 Claiming the right to the dwelling in Santa Filomena, Amadora

    Por Andr Carmo

    26 Polticas habitacionais e acesso cidade no municpio de Santo Andr/SP Housing policies and access to the town in the municipality of Santo Andr/SP

    Por Brbara Oliveira Marguti

    38 Entre a proximidade e a distncia, a sociabilidade e a impessoalidade na vivncia do urbanoBetween closeness and distance, sociability and impersonality in the urban experience

    Por Clara Natalia Steigleder Walter

    Com a palavra

    44 O enigma do capital e as crises do capitalismoThe enigma of capital: and the crises of capitalism

    Por David Harvey

    ndicen 12 ano 4 | maro de 2013

    61 ensaio

    Projeto grfico e editorao eletrnica

    Paula Sobrino

    Reviso

    Aline Castilho

    A Ilustrao de capa foi feita por Marianna Olinger.

    http://[email protected]

    ficha tcnica

    58 especial

  • capa

    Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro coordenador do Observatrio das Metrpoles e editor-chefe da revista e-metropolis.

    [email protected]

    Ana Lucia Britto professora do Programa de Ps-Graduao em Urbanismo - PROURB da Universidade Fe-deral do Rio de Janeiro UFRJ. Pesquisadora do Observatrio das Metrpoles.

    [email protected]

    Democracia local e governana metropolitana

    o caso do Rio de Janeiro

    Luiz Cesar de Queiroz RibeiroAna Lucia Britto

  • capa

    RESUMOComo em muitos pases, as metrpoles encontram-se no centro dos dilemas sociais no Brasil, cujo foco so as contradies entre a sua importncia econmica e os obstculos para elas se constiturem en-quanto um ator poltico. Na rede urbana brasileira existem mais de quarenta regies metropolitanas oficialmente institudas dentro dos dezenove estados da federao, sendo quinze delas desempenhando as funes de centralidade regional ou nacional. Tomando como exemplo o caso da Regio Metropolitana do Rio de Janeiro, o pre-sente artigo tem como objetivo propor a reflexo sobre os obstcu-los colocados para a construo de um projeto metropolitano capaz de sobrepor o quadro de fragmentao dos atores sociais e polticos resultantes, por um lado, da incompatibilidade (e mesmo o conflito) entre a dinmica poltica da democracia local participativa trazida cena aps a reforma constitucional de 1988 e as necessidades da gesto metropolitana. Para tal, trataremos dos temas dos planos de ocupao do solo, da gesto do meio ambiente e da fiscalizao municipal. Por outro lado, iremos explorar tambm as ligaes entre as segmentaes socioeconmicas e a dinmica eleitoral localista que impedem a construo de uma representao poltica na escala da metrpole do Rio de Janeiro. Estes quatro mecanismos de frag-mentao da tomada de deciso sobre o territrio do Rio de Janeiro vo de encontro a um modelo fragmentado de governana metro-politana que no pode ser superados seno pelas foras polticas, econmicas e sociais capazes de propor um projeto metropolitano como orientador institucional, cognitivo e poltico dos atores.

    Palavras-chave: Democracia local; Governana metropolitana; Rio de Janeiro.

    ABSTRACTAs in many countries, the metropolis are in the middle of the social dilemmas in Brazil, which the focus are the contradictions between its economic importance and the obstacles for them to constitute as a political actor. In the Brazilian urban network there are more than forty metropolitan regions officially established inside the nineteen states from the federation, and fifteen of them are performing the functions of regional or national centrality. Taking as an example the case of the Metropolitan Region of Rio de Janeiro, the present communication had as objective to suggest the reflection about the obstacles put for the construction of a metropolitan project capable of overlapping the picture of fragmentation of the resulting social and political actors, on the one hand, of the incompatibility (and the conflict itself) between the political dynamics of the participa-tory local democracy brought to the scene after the constitutional reform of 1988 and the needs of the metropolitan management. For that, we are going to discuss about the themes of the plans of land use, of the environment management and of the municipal inspec-tion. On the other hand, we are also going to explore the linking between the socioeconomic segmentations and the local electoral dynamics which prevent the construction of a political represen-tation in the scale of the metropolis of Rio de Janeiro. These four fragmentation mechanisms of the decision making about the ter-ritory of Rio de Janeiro meet a fragmented model of metropolitan governance which cannot be overcome except by political, econo-mic and social forces capable of proposing a metropolitan project as institutional, cognitive and political guiding of the actors..

    Keywords: Local democracy; Metropolitan governance; Rio de Janeiro.

    Democracia local e governana metropolitana

    o caso do Rio de Janeiro

  • 10 n 12 ano 4 | maro de 2013 e-metropolis

    c a p a

    INTRODUO

    O Brasil hoje um pas urbano. Mais de 80% da sua populao mora em cidades. Mas tambm um pas de grandes aglomeraes de cidades. Em sua rede ur-bana encontramos 13 municpios com mais de 1 mi-lho de habitantes, sendo que apenas a China, a ndia e a Indonsia tm mais que 10 cidades deste porte. Alm disto, o Brasil tem 12 grandes aglomeraes urbanas com funes metropolitanas1, concentrando cerca de 70 milhes de habitantes, ou seja, 36% da populao nacional. Tais caractersticas do pas de-correm do fato de a urbanizao ter acontecido si-multaneamente com a metropolizao das cidades de So Paulo e Rio de Janeiro e com a transferncia de cerca de 36 milhes de pessoas do campo para essas cidades, entre as dcadas de 1950/1980.

    Estes territrios metropolitanos so relevantes em termos econmicos, pois concentram mais de 64% da capacidade tecnolgica nacional e se constituem em uma hierarquia de ns fundamentais da rede ur-bana brasileira, que articula a economia nacional. Ao mesmo tempo, nas metrpoles esto concentrados os desafios da consolidao do desenvolvimento do Brasil, especialmente os decorrentes da precariedade das condies urbanas e ambientais, o que significa dizer que a construo da governana metropolitana deve levar em considerao os imperativos da com-petividade econmica e, simultaneamente, resolver gigantescos passivos. Por exemplo, segundo dados do IBGE de 2010, dos 6.329 aglomerados subnormais, isto , conjuntos de mais de 50 unidades habitacio-nais contguos, marcados pela precariedade habita-cional e de infraestrutura, 88,2 % ficam em regies metropolitanas com mais de 1 milho de habitantes. Nestas regies, ainda marcante a precariedade do sistema de esgotamento sanitrio, seja pela carncia de formas adequadas de coleta de afluentes, seja pela inexistncia de tratamento dos esgotos coletados. Tambm nessas regies, so recorrentes os problemas das inundaes, por exemplo, cujas causas envolvem a ocupao irregular de reas frgeis que marca o processo de crescimento das metrpoles, e produzem enormes prejuzos sociais e econmicos.

    No obstante a sua relevncia econmica e so-cietria, as metrpoles brasileiras constituem-se em territrios marcados pela atrofia poltica. Tal fato no

    1 So Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Braslia, Goinia, Curitiba, Porto Alegre, Salvador, Recife, Fortaleza, Belm e Manaus. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Es-tatstica, so aglomerados, polos de articulao das relaes de produo, circulao e consumo, alm de centros de con-centrao de servios. Ver: http://www.ibge.gov.br/home/geo-ciencias/geografia/regic.shtm.

    parece ser, contudo, particularidade histrica brasilei-ra. Os vrios trabalhos de avaliao das experincias de governana das metrpoles nos pases das Am-ricas (WILSON, SPINK e WARD, 2011; ROJAS, CUADRADO-ROURA e FERNNDEZ GELL, 2005) e na Europa (LEFEVRE, 2009; SEIXAS e ALBET, 2010) so convergentes na constatao de obstculos construo de instituies efetivas capa-zes de promover a poltica nestes territrios na escala necessria. Nas metrpoles, prevalece a poltica nas escalas global ou local, mas o conjunto do territrio metropolitano destitudo das condies necessrias ao coordenada dos atores do mercado, da socie-dade civil e do poder pblico, seja ela organizada pela lgica da cooperao, seja pelo conflito. Trata-se de um autntico paradoxo: as metrpoles constituem a escala contempornea do spatial fix (HARVEY, 1985) e, ao mesmo tempo, so territrios atrofiados politicamente. Como entender este paradoxo?

    O primeiro requisito para a superao da atrofia poltica das metrpoles a existncia de instituies com a capacidade de envolver os atores econmicos, polticos e sociais em aes coletivas legtimas, orien-tadas ao enfretamento das questes do presente e ao seu desenvolvimento. Legitimidade em trs dimen-ses: funcional, social e poltica (LEFEVRE, 2005). A primeira se refere diviso das funes de governo metropolitano entre as esferas e nveis de governo existentes nas metrpoles e a instituio criada para exerc-las. Segundo Lefevre (2005), em todos os modelos de arranjos de governana metropolitana ex-perimentados observa-se um dficit de legitimidade funcional expresso por solues que no demarcam com clareza as responsabilidades, tornando ambgua a funo das instituies metropolitanas criadas. Por outro lado, quando tal definio existe, funo de governo metropolitano no se associa a atribuio de poder e recursos correspondentes. A legitimidade so-cial, por sua vez, necessria para que as instituies metropolitanas tenham um enraizamento na socie-dade. Ela seria alcanada pela inscrio das institui-es metropolitanas nos sistemas de ao coletiva e pela existncia de uma identidade social referida ao territrio metropolitano. Tambm nesta dimenso, observa-se um dficit de legitimidade das instituies metropolitanas experimentadas em vrios pases, nos mais variados modelos. Ela somente alcanada se as instituies metropolitanas funcionarem como instncias e arenas relevantes de expresso e resoluo de conflitos. O dficit de legitimidade poltica parece ser o maior obstculo para a construo das institui-es metropolitanas com funo de governabilidade das metrpoles, pois a sua existncia implica na ou-torga de, ao menos, parcelas importantes de poder

  • 11n 12 ano 4 | maro de 2013 e-metropolis

    c a p a

    constitudo pelo sistema poltico dos pases. Poder de representar o interesse geral, relativo organizao e funcionamento da metrpole como espao social e econmico e relativo ao poder de regular as aes individuais e coletivas em nome deste interesse geral.

    O que est no centro da discusso, portanto, o debate sobre as condies e os obstculos colocados construo de uma autoridade pblica com sobe-rania sobre as metrpoles. Neste sentido, parecem--nos teis as reflexes de R. Bendix (1996) sobre a constituio do Estado Nacional. As metrpoles so governadas pela ao descoordenada dos trs nveis de governo e pelo livre jogo dos interesses privados (materiais e ideais), fragmentados e em competio, como resultado da ausncia de uma ordem pblica alicerada na fuso entre diferentes interesses e de um sistema de solidariedade capaz de assegurar a coeso social. Tal ordem pblica pressupe a existncia de um consenso compartilhado entre atores pblicos e privados sobre os interesses gerais a serem preserva-dos no governo destes territrios. No lugar de uma ordem pblica traduzida em instituies de gover-nana, o que prevalece na gesto das metrpoles so aes cooperativas, fundadas no modelo que M. We-ber (2003) identificou como unio de interesses, portanto marcadas pela fragmentao e transitorie-dade da cooperao entre os atores.

    Examinando por este ngulo, a superao da atrofia poltica das metrpoles enfrenta, como maior obstculo, o descasamento entre os regimes polticos dos Estados Nacionais e a sua geografia poltica com a nova territorialidade constituda pela crescente rele-vncia econmica destes espaos nos planos nacional e global2. A fora jurdica e poltica das municipalida-des, existentes em graus distintos em todos os pases, vm sendo apontada como um dos maiores obstcu-los construo da governabilidade das metrpoles. Na maioria dos casos, com efeito, os municpios so instncias de governo com forte legitimidade social e poltica em todos os regimes polticos, mesmo na-queles organizados por formas unitrias. Tal obstcu-lo tornou-se ainda maior contemporaneamente, em razo de, em muitos pases, ter ocorrido processos de descentralizao associados ao fortalecimento de instituies e mecanismos locais de democracia parti-cipativa (JOUV, 2005).

    Tomando o caso da metrpole do Rio de Janeiro, o presente artigo tem como objetivo contribuir para a reflexo sobre este tema. Trata-se da segunda metr-pole do pas em termos de relevncia econmica, reu-nindo 19 municpios, compreendendo uma extenso de 5.318,9 km e uma populao de cerca de 11,5

    2 Esta questo foi bem elaborada por Brenner (2004).

    milhes de pessoas. Ela est situada em um espao geoeconmico do sudeste do Brasil, onde esto con-centradas as aglomeraes urbanas de maior dinamis-mo da economia brasileira, exposta competio de dois outros importantes polos metropolitanos - So Paulo e Belo Horizonte pelos investimentos pbli-cos e privados. No existe, sobre este territrio, uma instituio com capacidade de dot-lo de governana. Predomina, ao contrrio, um quadro de fragmenta-o institucional da metrpole, no qual as aes coo-perativas entre nveis de governo, que eventualmente se organizam segundo o modelo de unio de interes-ses mencionado anteriormente, apresentam graves consequncias para o presente e o futuro deste terri-trio e para a sua populao. Buscaremos evidenciar como esta fragmentao resulta da combinao de fa-tores que decorrem do modelo de governo local que prevalece no Brasil, associados a outros, relacionados com as especificidades histricas, sociolgicas e geoe-conmicas da metrpole do Rio de Janeiro.

    O artigo est organizado nas seguintes partes. Na primeira, apresentamos as caractersticas do federalis-mo brasileiro, destacando os aspectos institucionais que no favorecem a ao cooperativa entre instn-cias e esferas de governo. Na segunda, apresentamos a forma como a democracia local se desenvolve no Brasil, dentro de um modelo de federalismo com-partimentalizado. Na terceira parte, procuramos demonstrar como se expressa a ausncia de governa-bilidade da metrpole na constituio da um grave problema ambiental em sua periferia consolidada em termos urbanos, conhecida como Baixada Fluminen-se3. Trata-se de um territrio densamente ocupado, que concentra mais de trs milhes de habitantes, representando quase 30 % da populao da metr-pole do Rio de Janeiro, morando em oito Munici-palidades. Por razes histricas, fsico-geolgicas e ambientais, esta regio da periferia metropolitana est sujeita a grandes e frequentes inundaes com consequncias dramticas para a populao. Porm, tais eventos poderiam ser resolvidos ou ao menos minimizados caso houvesse uma instituio metro-politana com legitimidade e capacidade de articular as polticas municipais de gesto do solo urbano e a poltica de saneamento ambiental de competncia do governo estadual. Como procuraremos demons-trar na terceira parte deste artigo, a ausncia desta instituio decorre de fatores fragmentadores da me-

    3 Conformam esta regio de maneira unnime os seguintes Municpios: Belford Roxo, Duque de Caxias, Mesquita, Nil-polis, Nova Iguau, So Joo de Meriti, Queimados e Japeri. Quanto aos municpios de Mag, Guapimirim, Paracambi, Seropdica e Itagua h ainda algumas controvrsias.

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    trpole que bloqueiam a transformao deste terri-trio da periferia metropolitana em espao poltico, portanto, contendo os elementos necessrios para a construo de uma autoridade pblica com legitimi-dade funcional, social e poltica. A ltima parte ser dedicada proposio de algumas consideraes so-bre a racionalidade poltica que preside esta situao semelhante quela que a literatura chama de trag-dia dos comuns, na qual esto presentes incentivos de toda ordem que levam os atores da metrpole a agirem egoisticamente para realizarem seus interes-ses e buscarem o atendimento de suas necessidades individuais.

    AS METRPOLES NO FEDERALISMO BRASILEIRO

    A preocupao com a governabilidade das metrpo-les surge, no Brasil, quase simultaneamente com o prprio fenmeno da metropolizao. Com efeito, no final da segunda metade dos anos 1970, quando ocorre a industrializao acelerada e, simultaneamen-te, a exploso demogrfica das grandes aglomeraes urbanas, notadamente Rio de Janeiro e So Paulo, so criadas pelo governo federal ento dirigido pe-los militares - nove Regies Metropolitanas4 como unidades de planejamento e gesto e, em cada uma delas, rgos pblicos subordinados aos respectivos governos estaduais, mas com a participao dos go-vernos municipais em seu conselho deliberativo. Tais rgos deveriam promover a cooperao entre os n-veis de governos para a prestao de servios conside-rados de interesse comum: saneamento bsico, trans-portes e sistema virio, aproveitamento dos recursos hdricos, entre outros. Por outro lado, a lei federal que criou estas instituies subordinou as regras de uso do solo urbano sob a competncia municipal compatibilidade com o planejamento da prestao destes servios e condicionou o acesso aos recursos do governo federal, inclusive emprstimos, por parte dos municpios, obedincia deste planejamento.

    A iniciativa do governo federal expressava, naque-le momento, a concepo tcnica do planejamento pblico e seu poder de realizar mudanas institucio-nais. As elites tcnicas que comandavam a burocracia pblica do governo federal desde 1964 pretendiam,

    4 Foram institudas pelas Leis Federais Complementares no 14, de 8 de junho de 1973 e no 27, de 3 de novembro de 1975 e a Lei Complementar Estadual no 94, de 29 de maio de 1974, as regies metropolitanas do Rio de Janeiro, So Paulo, Belo Horizonte, Curitiba, Porto Alegre, Salvador, Recife, For-taleza, Goinia e Belm.

    com efeito, realizar a reforma do Estado brasileiro para dot-lo de maior racionalidade e, assim, cum-prir com maior eficincia o seu papel de planejador do desenvolvimento nacional. Como parte destas re-formas, os militares criaram um novo padro de re-laes intergovernamentais, fundado nos princpios do federalismo cooperativo hierarquizado, atravs de um sistema de partilha de competncias e de recur-sos, no qual a sua implantao implicava a adeso dos governos estaduais e municipais s prioridades e orientaes de planejamento e de gesto definidas verticalmente5.

    Os rgos de planejamento e gesto metropoli-tana, no Brasil, entram em crise a partir de 1979, esvaziados de suas capacidades tcnicas e das bases de legitimao poltica, sob as fortes crticas a respeito do seu carter tecnocrtico, em especial por serem associados ao regime autoritrio. Na eroso destas instituies de governana metropolitana esto pre-sentes, como fundo histrico, os efeitos da crise do modelo desenvolvimentista, iniciado com os choques dos preos internacionais do petrleo e suas consequ-ncias na diminuio da capacidade do Estado brasi-leiro em financiar o acelerado ritmo do crescimento industrial pelo financiamento internacional. A socie-dade brasileira atravessou, nos anos 1980, um longo processo de redemocratizao no qual tero grande importncia antigas ideologias municipalistas pre-sentes na cultura poltica brasileira6, renovadas por um iderio de democracia local fundada na participa-o direta dos cidados na gesto pblica.

    A fragilizao institucional dos rgos criados em 1979, como instncias de governana metropolitana, tem como pice a reforma constitucional de 1988, que substitui o federalismo cooperativo hierarquiza-do pelo federalismo compartimentalizado (ABR-CIO, SANO e SYDOW, 2010), cujo trao marcante foi a consagrao das virtudes da democracia local participativa como estratgia de democratizao do Estado e da promoo da universalizao de servios urbanos e da justia distributiva territorial no que concerne alocao dos custos e dos benefcios da

    5 O melhor exemplo deste projeto a criao do Fundo de Participao dos Estados e Municpios criado em 1965 e in-cludo na reforma constituio de 1967.6 Na tradio poltica brasileira, sempre estiveram presentes ideologias municipalistas na organizao do Estado, desde a primeira constituio republicana de 1898. Tal tradio tem profundas razes no mundo agrrio brasileiro e, no obstante a urbanizao da sociedade, as concepes localistas manti-veram-se como forte trao da cultura poltica. Sobre os fun-damentos agrrios do municipalismo brasileiro, ver o clssico livro de Nunes Leal (2012). Para a anlise da presena desta ideologia na modernizao do Estado brasileiro, ver Mello (1993).

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    interveno pblica. Como veremos a seguir, esta re-forma constitucional foi acompanhada da criao de uma srie de instrumentos legais e urbansticos que fortaleceram o municpio como instncia autnoma de formulao de polticas urbanas, criando um mu-nicipalismo autrquico (DANIEL, 2001). O resul-tado deste federalismo foi a criao de um ambiente poltico de competio entre os municpios e pouco incentivador de relaes cooperativas durveis e siste-mticas entre os nveis de governo - Unio, Estados e Municpios.

    Tais relaes se expressam de maneira aguda, nas regies metropolitanas, na forma de uma gesto frag-mentada das polticas pblicas e dos sistemas de pro-viso dos servios urbanos. Porm, tais bloqueios no resultam diretamente do modelo federativo adotado em 1988, mas da articulao das suas caractersti-cas compartimentadas com a dinmica localista do sistema poltico brasileiro, onde os estados da fede-rao ainda exercem um papel central. Para estes, estratgico o controle dos municpios na construo e reproduo da representao poltica. Da mesma forma, para os municpios, as alianas polticas com governos estaduais, em detrimento de articulaes intermunicipais, aparecem como estratgia para ga-nhos polticos de curto prazo. Assim, as decises de cooperao e coordenao intergovernamentais, ho-rizontais e verticais, so inviabilizadas em funo de interesses e de um clculo poltico de curto prazo. Estes dois fatores so potencializados pela existncia de fortes assimetrias da estrutura metropolitana que, na maior parte do pas, monocntrica e polarizada entre o poder do municpio ncleo, em torno do qual gravitam os municpios perifricos.

    A DEMOCRACIA LOCAL NO FEDERALISMO COMPARTIMENTALIZADO

    A nova Constituio do Brasil privilegiou a descen-tralizao da ao pblica ao nvel da municipalida-de. Ela tambm criou diversos mecanismos visando a participao da sociedade civil na definio, acompa-nhamento e contrle das polticas pblicas, o proces-so participativo , na verdade, a pedra de toque do sistema de governo do pas, segundo o qual o poder pode ser exercido seja pelos representantes eleitos, sob a forma do sufrgio universal direto e secreto, seja pela participao direta atravs de plebiscito, referendo e as leis de iniciativa popular (SANTOS JUNIOR, RIBEIRO e AZEVEDO, 2004). No que concerne aos canais institucionais permanentes de participao direta, a Constituio de 1988 ressalta

    o papel dos Conselhos Setoriais de Polticas Pblicas, presentes nos tr6es nveis da estrutura administrati-va do pas : federal, estadual e municipal (GOHN, 2004). Criados nos anos 1990, os conselhos so em su amaioria temticos, ligados polticas sociais es-pecficas. Os que deles participam so membros do governo e representantes de organismos da sociedade civil, atravs de mandatos voluntrios, no remune-rados, podendo ser substitudos pelas organizaes sociais que representam.

    A Constituo Federal de 1988, tambm, pro-mulgada em um contexto de afirmao de direitos sociais, procurou garantir o princpio da funo so-cial das cidades, a equidade urbana e uma melhor dis-tribuio dos encargos e dos benefcios do processo de urbanizao. Perseguindo este objetivo, o texto estabeleceu o papel das municipalidades na gesto urbana, e instituiu o Plano Diretor de Desenvolvi-mento Urbano - a ser elaborado obrigatoriamente pe-las cidades com mais de vinte mil habitantes - como instrumento de base da poltica urbana. Treze anos mais tarde, em 2001, com a criao do Estatuto da Cidade - uma lei federal que regulamenta os artigos da Constituio concernentes poltica urbana - o papel do Plano Diretor como um instrumento de base da poltica de desenvolvimento e de expanso urbana ser reforado, j que o Estatuto estende sua obrigatoriedade a todas as cidades pertencentes s re-gies metropolitanas e s aglomeraes urbanas.

    O objetivo principal da Plano Diretor definir a funo social da cidade e da propriedade urbana, a fim de garantir o acesso reas urbos urbanizadas e regularizadas a todos os segmentos da sociedade, garantir o direito habitao e aos servios urbanos a todos os cidados, e implementar uma gesto demo-crtica e participativa . As municipalidades elabora-ram, portanto, seus Planos Diretores, de acordo com as leis que regulamentam o uso e a ocupao do solo, segundo os princpios fundamentais do Estatuto da Cidade. No entanto, apesar da qualidade tcnica e das boas intenes polticas presentes em um nmero significativo de Planos Diretores, as municipalidades tiveram muitas dificuldades em sua implementao, ou seja, em fazer valer aquilo que foi aprovado como lei. As razes desta dificuldade so muitas : o preva-lecimento dos interesses de grnades grupos econmi-cos, sobretudo aqueles ligados produo imobili-ria, e a fraca capacidade administrativa e institucional das comunidades para controlar de maneira efetiva os processos de ocupao e de desenvolvimento urbano de seu territrio.

    No que diz respeito articulao entre as comu-nidades, fundamental para dotar de coerncia o de-senvolvimento urbano do territrio metropolitano,

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    os Planos Diretores das comunidades situadas nas regies metropolitanas, na maior parte dos casos, no conferem ao tema a importncia devida. Podemos perceber que a questo da articulao entre as reas metropolitanas tratada de forma secundria e que so raras as menes aos acordos e aos instrumentos de cooperao intermunicipal.

    A falta de uma gesto metropolitana e a falta de cooperao enre os municpios pertencentes regio metropolitana teve, portanto, consequncias bastante negativas sobre as polticas setoriais e territoriais que excedem os limites administrativos municipais, tais como as polticas concernentes a maior parte das in-fraestruturas urbanas (tranportes em comum, sanea-mento) incluindo as polticas de gesto da gua urba-na, em particular aquela que diz respeito s guas da chuva e s inundaes. A gesto da gua se faz atravs de bacias hidrogrficas em uma escala territorial que geralmente ultrapassa os limites municipais, exigin-do, portanto, uma forte articulao e integrao das aes entre os diferentes nveis institucionais presen-tes em todo o territrio envolvido. Esta integrao diz respeito aos sistemas de atividades diretamente ligados utilizao da gua da bacia, em particular a oferta de gua potvel, a purificao das guas re-siduais, a luta contra as inudaes, a gua para o uso das indstrias, a gua para a produco de energia, e tambm os sistemas que possuem um impacto in-direto sobre os recursos hdricos, tal como a coleta de dejetos. Ela concerne tambm integrao entre as instncias (municipais e estaduais) que dividem a responsabilidade sobre o planejamento do territrio, e os instrumentos de planificao implementados pe-las diferentes instncias concernentes ao processo de desenvolvimento urbano, de forma a evitar que isso acarrete em problemas como a degradao dos recur-sos hdricos e inundaes.

    A GOVERNANA FRAGMENTADA: GESTO DO TERRITRIO X GESTO DAS GUAS

    A Regio Metropolitana do Rio de Janeiro no foi includa na Lei Federal n 14 de 1973, mas no ano posterior, por um ato do governo federal que realizou a fuso dos Estados do Rio de Janeiro e da Guana-bara. Tratava-se de uma estratgia geopoltica do go-verno militar para fortalecer a antiga capital nacional e diminuir o desequilbrio federativo decorrente da concentrao industrial de So Paulo. A institucio-nalizao da Regio Metropolitana do Rio de Janeiro foi acompanhada pela criao da FUNDREM - Fun-dao para o Desenvolvimento da Regio Metropo-

    litana - com a responsabilidade de planejar e coor-denar as aes dos governos estadual e municipais em matria de gesto do uso do solo e prestao de servios de interesse comum. A FUNDREM pouco realizou como instituio de governana metropoli-tana. A ausncia de legitimidade funcional e a sua frgil legitimidade poltica bloquearam o seu funcio-namento como arena de cooperao entre o governo estadual e os governos municipais. Ela extinta em 1989 por um ato do governador, sem que tenha ha-vido qualquer defesa da sua continuidade pelos ato-res polticos. Desde ento, vigora um quadro de ao fragmentada na gesto das polticas pblicas, no qual vigora a no cooperao e o conflito entre nveis de governo.

    Esse quadro da Regio Metropolitana do Rio de Janeiro reforado por um processo de emancipa-o de vrios distritos que acabam se tornando mu-nicpios, e pela constituio de governos municipais pouco habilitados, tanto tcnica como politicamente para efetivamente implementarem uma gesto urba-na. Por outro lado, a Regio Metropolitana do Rio de Janeiro, historicamente, sempre foi muito polari-zada economicamente em torno do municpio capi-tal. Este municpio concentra a maior populao, o maior oramento, a maior parte das atividades eco-nmicas, a maior rede de infra-estrutura de servios, e se constitui em uma das cidades de maior expresso cultural e poltica do pas. Mesmo quando, a partir da dcada de 90, outros municpios, como Niteri e Duque de Caxias, passam a assumir um papel mais importante em termos de desenvolvimento econ-mico do estado e da regio metropolitana, a polari-zao pelo municpio do Rio de Janeiro se mantm. Este, por sua vez, nunca chegou a atuar como um articulador ou protagonista de uma maior interao ou cooperao entre municpios metropolitanos, ao contrario, manteve-se ao longo das ltimas dcadas em constante estgio de competio com os demais municpios da regio metropolitana, principalmente, em decorrncia do no alinhamento entre os partidos polticos responsveis pelos governos das prefeituras e, tambm, pelos governos estadual e federal.

    Tal quadro no gerou, at muito recentemente, uma maior incitao cooperao intermunicipal. De fato, se por um lado o governo do estado no reconhece a importncia da construo de um plane-jamento metropolitano, e de uma maior articulao entre os municpios que integram esse territrio, os prprios municpios tambm no chegaram a criar por iniciativa prpria instncias de cooperao, ou mesmo de concertao. A maior parte dos munic-pios enfrenta seus problemas isoladamente, nego-ciando, quando necessrio de forma isolada, com o

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    governo do estado, ou com o governo federal. No contexto desta regio metropolitana se en-

    contra o territrio da bacia de Iguau / Sarapu que representa um territrio de 727 km2 dentro do qual encontra-se a integralidade dos municpios de Bel-ford Roxo e Mesquita, alm de algumas partes dos municpios de Nilpolis, So Joo de Meriti, Nova Iguau et Duque de Caxias, todos situads na regio da Baixada Fluminense, assim como a parte oeste da cidade do Rio de Janeiro. No territrio desta bacia hidrogrfica , as enchentes e inundaes so frequen-tes, causando perdas materiais, exposio da popula-o s doenas e, s vezes, a morte das famlias que vivem nas margens. Estima-se que cerca de 180 mil pessoas vivem em reas de riscos de inundaes na bacia. Entretanto, o nmero de pessoas indiretamen-te atingidas pelas inundaes e os prejuzos causados so de difcil estimativa. Incluem-se nesta categoria, por exemplo, o no comparecimento aos locais de trabalho e a interrupo do trfego e comrcio nas vias inundadas7.

    A fragilidade da Baixada Fluminense em relao s inundaes decorre, em parte, da fisiografia da ba-cia dos rios Iguau-Sarapu, caracterizada principal-mente por duas unidades de relevo: a Serra do Mar e a Baixada Fluminense, com um forte desnvel de cerca de 1600 metros, do ponto mais alto da serra (o pico do Tingu) at a plancie. O clima quente e mido com estao chuvosa no vero, com tempera-tura mdia anual em torno dos 22oC e precipitao mdia anual em torno de 1700 mm so a causa do regime torrencial dos rios, que descem as serras com forte poder erosivo, alcanando a plancie, onde per-dem velocidade e extravasam de seus leitos em gran-des alagados.

    Entretanto, os fatores naturais citados poderiam ser minimizados com o planejamento do uso do solo em escala apropriada, tomando a bacia hidro-grfica como unidade territorial de um planejamento voltado para o controle de inundaes. Na origem dos problemas observados, temos a fragmentao da regulao do uso do solo, sob a lgica de inte-resses clientelistas e do localismo eleitoral, sobre a qual impera uma frgil capacidade dos municpios de controle sobre o urbano, e uma subordinao desse controle aos interesses da cooptao poltica na es-cala local. Neste contexto, mesmo se os municpios da regio possuem Planos de Desenvolvimento Ur-bano, eles se vem incapazes de orientar o processo de urbanizao de forma a minimizar o problema, seja porque os instrumentos de controle no so

    7 Ver: Laboratrio de Hidrologia e Estudo do Meio Ambiente da COPPE/UFRJ PNUD (1996).

    aplicveis, seja porque os instrumentos que visam o planejamento do territrio so mal concebidos. Alm disso, no h articulao entre os diferentes Planos Diretores de Desenvolvimento Urbanos, j que eles so concebidos dentro da lgica ancorada nos limites administrativos municipais.

    Como resultado dessa fragmentao, temos a ina-dequao da ocupao e uso do solo da bacia, com destaque para o dficit de infraestrutura urbana e de servios de esgotamento sanitrio e coleta de resdu-os slidos, ocupao desordenada e ilegal de margens dos rios e plancies inundveis e a proliferao de lo-teamentos ilegais construdos margem da legislao urbanstica e ambiental.

    Se os instrumentos para planejamento e regula-o do uso, e ocupao do solo elaborados no nvel local so frgeis e no articulados, na escala da Re-gio Metropolitana do Rio de Janeiro, tambm no existem instrumentos de planejamento territorial ou mecanismos de coordenao e cooperao intermu-nicipal de forma a evitar que a expanso desordenada do tecido urbano e do uso do solo sobre o territrio da bacia hidrogrfica dos rios Iguau/Sarapu agrave os problemas de inundaes. A poltica do governo estadual vai, justamente, no sentido contrrio, base-ada em projetos que no dialogam entre si e, conse-quentemente, trazem consigo objetivos concorrentes quanto aos cuidados com o territrio da bacia. Este o caso, por exemplo, dos projetos de drenagem da bacia do Iguau e de construo de um arco rodovi-rio denominado Arco Metropolitano, que incidem sobre o territrio da Baixada Fluminense.

    O primeiro consiste num Projeto de Controle de Inundaes, Urbanizao e Recuperao Ambiental das Bacias dos Rios do Iguau, Botas e Sarapu que, aps cerca de 10 anos engavetado, foi contemplado com financiamento do governo federal atravs de seu Programa de Acelerao do Crescimento PAC lanado no ano de 2007. Tal projeto baseia-se numa viso integrada da bacia; porm, com recursos limita-dos, teve de ser reduzido a aes emergenciais relati-vas drenagem urbana sustentvel. Com oramento superior a 200 milhes de reais, o projeto incide so-bre todos os seis municpios componentes desta bacia hidrogrfica apontados acima, tambm integran-tes da regio metropolitana do Rio de Janeiro. Suas principais aes dizem respeito ao desassoreamento dos rios; recuperao de suas margens degradadas; plantio de rvores; construes de cilovias, parques de orla e vias canal; obras de mesodrenagem; e reas-sentamento de famlias ribeirinhas.

    A construo do Arco Metropolitano, beneficiada pelo mesmo programa do governo federal, por sua vez, pretende a consolidao de um novo eixo rodovi-

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    rio que atravessaria a Regio Metropolitana de leste a o oeste, fazendo a interseo com cinco rodovias federais e uma ferrovia e a ligao com vrios plos industriais de grande porte que esto sendo implan-tados na regio. Com oramento em torno de 1 bi-lho de reais, o novo eixo rodovirio orienta-se pela introduo de novos vetores de expanso urbana para os municpios localizados em sua rea de influncia, dentre os quais os mesmos municpios localizados na Bacia do Iguau/ Sarapu. Contudo, a anunciada expanso urbana para os espaos livres restantes da bacia hidrogrfica poder intensificar a degradao ambiental e a impermeabilizao dos solos, cujos re-sultados so o agravamento das j constantes inun-daes, de prejuzos sociais e econmicos difceis de serem mensurados, combinado ao desperdcio dos recursos, por tantos anos aguardados, para a implan-tao de um projeto de controle das inundaes na regio. Neste sentido, torna-se clara a ausncia de contribuio do governo estadual articulao me-tropolitana, ainda que este esteja frente de um pro-jeto que tem como premissa tal articulao, estando de acordo ao que ocorre ao nvel dos governos mu-nicipais.

    Somado a isto, um projeto de drenagem ou con-trole de inundao para uma rea de bacia hidrogr-fica jamais poderia estar desarticulado de polticas de saneamento ambiental, como a implantao de redes de coleta e tratamento de esgotamento sanitrio ou a efetividade dos programas de coleta de lixo, sob res-ponsabilidade dos diversos municpios, que, eviden-temente, devem tambm estar articulados, tanto en-tre si, quanto com os demais entes federativos, bem como com instncias outras que envolvem tambm a sociedade civil e os atores do mercado, como so os casos dos Conselhos Setoriais. Esta ausncia de arti-culao tende no apenas ao no solucionamento dos problemas existentes, como ao agravamento das con-dies j crticas que apresenta o territrio da Baixada Fluminense, tendo em vista as constantes inundaes e os riscos, decorrentes destas, a que fica sujeita a po-pulao local.

    Em sentido inverso ao quadro exposto, defende--se, neste artigo, que as estratgias vislumbradas para minimizar o problema das inundaes e promover um desenvolvimento urbano sustentvel da regio consistem na retomada de mecanismos de governan-a metropolitana, que poderiam estar combinadas com base nos seguintes aspectos: 1) a articulao das trs esferas de governo para a criao de mecanismos de governana metropolitana; 2) a regulao e o con-trole do uso do solo em escala regional; 3) a reviso e a adequao dos planos diretores municipais, consi-derando as exigncias de controle da expanso urba-

    na para a segurana coletiva e proteo ambiental; 4) a implantao de medidas compensatrias de drena-gem sustentvel visando o amortecimento de vazes nas partes altas da bacia, inclusive estabelecendo li-mites fsicos para a expanso dos permetros urbanos dos municpios metropolitanos. Para tanto, fun-damental que as municipalidades juntamente com o Estado assegurem a devida regulao jurdica para essas reas, atravs de aes de natureza urbanstica e fiscalizatria, atacando, principalmente, sua causa mais premente que o dficit habitacional. Apenas esse conjunto articulado de estratgias poder asse-gurar a manuteno de espaos livres de urbanizao na bacia, evitando o agravamento das inundaes nas reas urbanas consolidadas.

    CONSIDERAES FINAIS

    Ao final deste artigo, gostaramos de propor algumas reflexes mais gerais sobre o tema de fundo que or-ganizou a nossa anlise sobre a metrpole fluminen-se. Como vimos, nela prevalece a ausncia de qual-quer prtica de governana metropolitana, mesmo em matria de polticas setoriais como procuramos evidenciar no caso da poltica de saneamento am-biental. Trata-se de um caso extremo do paradoxo mencionado na introduo deste artigo, sendo a se-gunda metrpole brasileira em matria de relevncia econmica no deixa de ser surpreendente a pouca mobilizao das foras polticas em torno de um pro-jeto de governana metropolitana. Com efeito, se verdade que, de maneira geral, as metrpoles brasi-leiras so marcadas pela fragilidade das instituies de governana existentes, em muitas tm ocorrido experincias de construo de mecanismos de coor-denao e cooperao entre os governos estaduais e municipais. So notadamente os casos das metrpo-les de So Paulo, de Belo Horizonte e de Recife, onde os respectivos governos estaduais tem buscado elabo-rar planos de desenvolvimento metropolitano com a participao dos municpios, da sociedade civil e dos atores do mercado. Apesar da insuficincia destas experincias para se constiturem como expresso de uma autoridade pblica com legitimidade para agir em nome dos interesses gerais das metrpoles, elas in-dicam a mobilizao das foras polticas em torno do enfretamento dos desafios da governana metropoli-tana. provvel, tambm, que estas iniciativas cor-respondam retomada, desde 2005, dos investimen-tos urbanos saneamento, transportes, habitao, etc. por parte do governo federal, como estratgia do desenvolvimento nacional. Sendo investimentos realizados em programas pblicos geridos por parce-

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    rias intergovernamentais provvel que estas venham atuando como incentivos seletivos para os atores p-blicos buscarem estabelecer relaes de cooperao e colaborao.

    Ainda assim, na regio metropolitana do Rio de Janeiro, no obstante, permanece um quadro de fragmentao institucional. Como explicar este pa-radoxo? Em que medida ele decorre dos efeitos par-ticulares no quadro poltico nacional decorrente do federalismo compartimentalizado e da democracia local? As dificuldades de superao da fragmentao institucional da metrpole do Rio de Janeiro podem ser explicadas como resultantes da combinao de fa-tores sociolgicos e geoeconmicos, que criam uma dinmica poltica fragmentada e fragmentadora dos interesses.

    O primeiro fator est fortemente relacionado aos efeitos de dependncia da trajetria que presidiu a formao social e poltica da metrpole, criada junta-mente com a fuso entre o antigo Estado da Guana-bara e o Estado do Rio de Janeiro, no contexto da re-forma geopoltica realizada pelos militares em 1974, atravs da Lei Complementar nmero 20. O primei-ro Estado fora criado durante a transferncia da ca-pital nacional para Braslia, atravs da transformao do antigo Distrito Federal do Rio de Janeiro. Mais que a fuso de dois Estados, ocorreu a justaposio de duas culturas e dois campos polticos distintos. O Es-tado da Guanabara dissolveu-se no municpio do Rio de Janeiro e sua periferia, integrada por municpios que pertenciam ao antigo Estado do Rio de Janeiro. Muitos deles tinham sido criados recentemente, pela emancipao de antigos distritos urbanizados pela intensa migrao gerada pela industrializao do ps--segunda guerra mundial. Nos municpios da perife-ria metropolitana puderam, com isto, se reproduzir e se enraizar governos municipais fundados em formas privadas de controle do poder. Assim, constitui-se uma sociedade urbana com muita rapidez sem, con-tudo, constituir-se uma sociedade poltica.

    Este fundo histrico permitiu a construo de uma ordem poltica privatista na periferia metropoli-tana, controlada por redes pessoais que transformam os municpios em mquinas eleitorais, baseadas na distribuio seletiva de recursos8. Nesta ordem pol-tica, tem importncia fundamental a gesto do solo urbano, na medida em que a legalizao de lotea-mentos irregulares e mesmo clandestinos constitui-se em poderosa moeda de troca. Portanto, no interessa s elites municipais da periferia metropolitana abrir mo do seu poder de administrao do territrio ou conter o crescimento da ocupao urbana. Em con-

    8 Ver a este respeito Siqueira Barreto (2004).

    traposio, as elites polticas do antigo Distrito Fede-ral nunca buscaram articulao com os municpios da periferia metropolitana. Pelas razes histricas j expostas e pelo fato do municpio do Rio de Janei-ro concentrar um eleitorado em tamanho suficiente para eleio de representantes na Assembleia Legisla-tiva e na Cmara de Deputados. Acrescente-se ainda, o fato de que as elites do municpio do Rio de Janeiro buscaram suas condies de reproduo nas relaes privilegiadas com as instncias e os rgos do gover-no federal pela maior proximidade com as elites na-cionais, fator tambm resultante da histria de antiga capital da repblica.

    O segundo fator decorre da segmentao geoeco-nmica da metrpole na dinmica poltica. Os mu-nicpios da periferia tm peso eleitoral na composio do poder na escala do Estado do Rio de Janeiro, mas por concentrarem fortes contingentes da populao pobre no conseguem transformar este peso em poder poltico prprio. Na sua grande maioria, no tm base fiscal suficiente para exercer a autonomia conquistada na Constituio de 1988, o que os torna fortemen-te dependentes das decises de alocao de recursos realizadas pelo governo estadual. Estabelece-se ento uma relao de mtua ajuda entre as elites estaduais e as elites municipais, estabelecendo-se coalizes de interesses pouco favorveis aos interesses metropo-litanos. No caso examinado relativo aos problemas do saneamento ambiental, as elites que comandam o governo estadual no tm interesse na proposio de um projeto de gesto da gua que limite o poder de controle do uso e ocupao do solo urbano por parte das elites municipais. Estas, por sua vez, dependentes de recursos que circulam do governo estadual para os municpios, estabelecem uma prtica de competio intermunicipal pouco favorvel ao estabelecimento de um plano de gesto da gua.

    Por ltimo, importante mencionar o frgil asso-ciativismo reinante nos municpios da periferia e suas consequncias na capacidade de dominao das elites locais. As reas e os instrumentos de participao da populao na gesto municipal, criados na constitui-o de 1988, so controlados por elites sociais, com-posta pelos segmentos de maior escolaridade e maior renda9, que no representam a grande maioria da populao residente na Baixada Fluminense. Neste contexto, os conselhos setoriais estabelecidos nestes municpios, por exemplo, aparecem esvaziados, seja no tocante aos grupos que os compem, seja no to-cante sua capacidade deliberativa ainda que pre-vista em lei. Na prtica, tais Conselhos encontram-se,

    9 Ver Ribeiro e Santos Junior (1996) e Santos Junior, Ribeiro e Azevedo (2004).

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    55, p. 317-337.LABORATRIO DE HIDROLOGIA E ESTU-

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    c a p a artigos

    meramente, cumprindo a recomendao federal que os conformou, sem, de fato, produzir impacto sobre a poltica a que se referem, porm, ao mesmo tem-po, servindo como legitimador de uma racionalidade vinculada democracia local, estabelecida em nossa ltima Constituio. Permitindo que os anseios das elites sejam respondidos, como sempre o foram. Se ao nvel federal, tais espaos e instrumentos de par-ticipao demonstram-se mais consolidados do que nos municpios, ao nvel do governo do estado do Rio de Janeiro, sequer existe um espao como um Conselho das Cidades, onde se possa desenvolver em algum grau a gesto democrtica que caminhe no sentido da metrpole.

    Portanto, a conformao de espaos e instrumen-tos para a governana metropolitana encontra-se como desafio urgente para o caso do Rio de Janeiro, tanto quanto o iderio de democracia local precisa, de fato, ser concretizado, principalmente, nos mu-nicpios da Baixada Fluminense. So dois grandes desafios que devem caminhar conjuntamente, sob o forte risco do agravamento dos problemas j exis-tentes, que de modo to grave repercutem sobre as condies de vida da populao local, como no caso das inundaes.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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  • artigos

    ResumoA habitao parece estar de volta agenda poltica portuguesa. Num quadro de pro-fundas transformaes que abrangem todos os setores da vida nacional, a habitao no foge regra e parece assumir um novo protagonismo. justamente no quadro des-ta realidade em rpida mudana que procuramos, com esta breve reflexo, contribuir para a discusso em torno dessa problemtica. Este artigo est dividido em duas partes. Primeiro, so apresentadas algumas caractersticas do setor da habitao no contexto portugus, colocando o enfoque na evoluo das polticas de realojamento. Depois, a partir do trabalho desenvolvido pelo HABITA no bairro de Santa Filomena, exploram-se alguns dos problemas relacionados com a recente interveno da Cmara Municipal da Amadora (CMA) no local.

    Palavras-chave: Direito habitao; Poltica pblica; Realojamento.

    AbstractHousing seems to be back to the portuguese political agenda. In a framework of pro-found transformations entailing all sectors of national life, housing is no exception to that and seems to assume a new protagonism. It is precisely within this rapidly changing reality that we seek, with this brief reflection, to contribute for the discussion around that problematic. This article is divided in two parts. First, some characteristcs of the housing sector in the portuguese context are presented, focusing the evolution of rehou-sing policies. Next, based on the work developed by HABITA in the Santa Filomenas neighbourhood, some of the problems related to the recent intervention of Amadoras municipality in that site are explored.

    Keywords: Right to housing; Public policy; Rehousing.

    ____________________Artigo submetido em 15/10/2012

    Andr Carmo investigador no CEG-UL e ativista do HABITA: coletivo pelo direito habitao e cidade (www.habita.info).

    [email protected]

    Andr Carmo

    O vero quente de 2012 reivindicando o direito habitao em Santa Filomena, Amadora

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    INTRODUOflado ma no tem apoio ma mim um ca oia nada1

    Falta di Apoio, Rap Di Santa

    A habitao parece estar de volta agenda poltica portuguesa. Num quadro de profundas transforma-es que abrangem todos os setores da vida nacio-nal, a habitao no foge regra e parece assumir um novo protagonismo. justamente no quadro desta realidade em rpida mudana que procuramos, com esta breve reflexo, contribuir para a discusso em torno dessa problemtica. Ademais, preciso no esquecer o papel absolutamente central que a habi-tao tem desempenhado no desenrolar da atual cri-se, desencadeada pelo subprime nos EUA, que lhe confere uma importncia acrescida. Paralelamente, ainda que implicitamente, esta reflexo obriga-nos tambm a questionar a relao que se estabelece en-tre a habitao como direito e a habitao como mercadoria, uma das tenses mais caractersticas das sociedades capitalistas contemporneas. Este artigo est dividido em duas partes. Primeiro, so apresen-tadas algumas caractersticas do setor da habitao no contexto portugus, colocando o enfoque na evolu-o das polticas de realojamento. Depois, a partir do trabalho desenvolvido pelo HABITA2 no bairro de Santa Filomena, exploram-se alguns dos problemas relacionados com a recente interveno da Cmara Municipal da Amadora (CMA) no local.

    DIREITO HABITAO E POLTICAS DE REALOJAMENTO

    H vrias dcadas a habitao vista como um direito humano fundamental. Tanto a Declarao Universal dos Direitos Humanos (1948), como a Conveno Internacional sobre a Eliminao de todas as formas de Discriminao Racial (1969), o Pacto Interna-cional de Direitos Econmicos, Sociais e Culturais (1976), a Conveno das Naes Unidas para a Eli-minao de todas as Formas de Discriminao contra a Mulher (1981), a Conveno sobre os Direitos da Criana (1989), a Carta Urbana Europeia (1992), a Carta Social Europeia na sua verso revista (1996), a Conveno das Naes Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficincia (2006), ou a Declarao pelo Direito Habitao e Cidade em toda a Europa (2007) lhe atribuem esse estatuto, dignificando assim a sua funo social.

    1 Em portugus, dizem que temos apoio mas ainda no vi nada.2 HABITA coletivo pelo direito habitao e cidade (www.habita.info).

    Presente na maior parte das constituies de pases democrticos, o direito habitao est no s rela-cionado ao acesso a uma habitao digna e adequada aos rendimentos dos seus ocupantes como tambm prpria insero social e o exerccio da cidada-nia (Barreto et al., 2011). Na mesma linha Guerra (2008, p.59) assinalou que a habitao continua um elemento fundamental da qualidade de vida de uma comunidade e a manifestao dos fundamentos da cidadania que permite a todos e a cada um sentir-se membro de uma comunidade nacional. No entanto, Portugal, s a partir de 1976, consagrou a habitao como direito fundamental ao inscrev-la no artigo 65 da sua constituio. Salvo raras excees, esta nunca viria a ser considerada uma questo central pelo esta-do portugus (Domingues et al., 2007; Serra, 2002). Por isso, nas dcadas de 70 e 80 do sculo XX, num contexto de intensa presso migratria de populaes de baixa capacidade econmica, a sua incapacidade em dar resposta s necessidades de habitao a preos acessveis, sobretudo nas duas reas metropolitanas do pas, levou a um surto de construo clandestina e ao aumento do nmero de pessoas a viver em bair-ros de barracas, clandestinos e degradados (Guerra, 2011).

    Como assinalaram Malheiros e Fonseca (2011), o crescimento da economia portuguesa na segunda metade dos anos 80, aps a adeso de Portugal UE, estimulou a intensificao dos fluxos migratrios de carcter econmico. O grande investimento pblico nas reas dos transportes, infraestruturas rodovirias e equipamentos pblicos, e o investimento privado no setor tercirio e na construo civil, atraram tra-balhadores estrangeiros (oriundos dos PALOP3) que supriram as necessidades de modeobra em setores de atividade com baixas remuneraes e pouco exigen-tes em termos de qualificao (homens construo civil e obras pblicas; mulheres servios domsticos e limpezas). Embora com um ritmo menor que o pe-rodo 1986-1990, na segunda metade dos anos 90 observou-se um novo impulso econmico que conti-nuou a alimentar os fluxos de entrada, assistindo-se a um reforo da concentrao de cidados estrangeiros na rea metropolitana de Lisboa (AML). Consequen-temente, concluem os autores, aliadas s dificuldades de aquisio de casa prpria, as j referidas limitaes na oferta pblica de habitao, levaram a que estes imigrantes recm-chegados ficassem confinados aos mercados de arrendamento e subarrendamento pri-vados, coabitao com familiares, colegas de trabalho e amigos, e/ou aos bairros de barracas e outras formas de alojamento precrio (sobrelotados e sem infraes-truturas bsicas).

    3 Pases Africanos de Lngua Oficial Portuguesa.

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    Os problemas no setor da habitao levaram a que, em 1987, fosse criado um programa de realoja-mento, designado Acordos de Colaborao (Decreto--lei 226/87), com vista erradicao de bairros de barracas. A fraca adeso (taxa de execuo de apenas 56% data da sua revogao, em 2004), acompa-nhada da afirmao crescente do papel dos munic-pios na execuo das polticas de habitao, levaram criao, em 1993, do Programa Especial de Realoja-mento4 (PER), que visava o mesmo objetivo, embora circunscrito s reas metropolitanas de Lisboa e do Porto. Promovido pelo poder central com carcter de urgncia, a aplicao do PER era, e continua a ser, feita localmente pelas autarquias ou instituies sociais. Foi sempre aos municpios que competiu o papel mais relevante dado que, tal como constava do Decreto-lei 163/93 (posteriormente alterado pelo Decreto-lei 271/2003), seriam eles os responsveis pela efectiva resoluo do grave problema social de habitao. Assim, aps celebrao de um acordo com o Instituto de Gesto e Alienao do Patrim-nio Habitacional do Estado (IGAPHE) e o Institu-to Nacional da Habitao (INH), hoje Instituto da Habitao e da Reabilitao Urbana (IHRU), era feito um levantamento exaustivo dos alojamentos e respectivos agregados familiares, identificados os proprietrios dos terrenos e programadas as solues de realojamento (construo e aquisio de fogos5 de custos controlados). Para alm do realojamento, previa-se tambm o acompanhamento do processo de integrao social das famlias beneficirias do PER (sobretudo populaes imigrantes e ciganas).

    Particularmente dinmico na segunda metade dos anos 90, entre 1994 e 2005, construram-se, ao abrigo do PER, um total de 31 000 fogos, tendo sido contratualizados cerca de 35 000. Embora sejam conhecidos muitos dos seus problemas, como por exemplo, a abordagem excessivamente funcionalista, a reproduo de situaes de excluso causadas pela formao de guetos que afastam as pessoas dos ser-vios pblicos essenciais e limitam a sua mobilidade, a abrupta dissoluo das redes sociais consolidadas ao longo do tempo, entre outros, este programa re-presentou um investimento pblico substancial com alcance significativo que erradicou, num perodo de 10/12 anos, cerca de 35 000 habitaes precrias e sem condies mnimas de habitalidade (Vilaa, 2001). Em 2009, a taxa de execuo do PER era de cerca de 70%, sendo a Amadora um dos casos mais problemticos pois, sendo logo a seguir a Lisboa o

    4 Complementado, em 1996, com uma componente mais fle-xvel e de menor dimenso, designada PER-Famlias (Decre-to-lei 79/96, adaptado pelo Decreto-lei 271/03).5 Alojamentos familiares clssicos.

    municpio com maior nmero de fogos acordados, apresentava uma taxa de execuo de 38%6 (IHRU, 2008). Por outro lado, muito importante notar que, no caso dos imigrantes chegados nas vagas migrat-rias mais recentes, o PER teve pouco impacto nas condies de habitao, pois o programa s inclua famlias e indivduos abrangidos pelo levantamento feito em 1993.

    SANTA FILOMENA CRNICA DE UM DESASTRE ANUNCIADO

    O bairro de Santa Filomena faz parte de um conjunto de bairros degradados identificados pela CMA. Nos ltimos anos, o municpio tem vindo a desenvolver um conjunto de polticas que visam a sua erradica-o. De acordo com os dados do mais recente diag-nstico social da Amadora (CLAS, 2011), existiam, em 1993, data do primeiro (e nico) recenseamento efectuado, 35 bairros degradados que correspondiam a 66827 agregados familiares e 4791 alojamentos. Em junho de 2011, haviam sido extintos 22 desses bairros, existindo no entanto 1395 agregados PER residentes em barracas, 3768 dos quais residindo no bairro de Santa Filomena, que ainda aguardavam a regularizao da sua situao habitacional. Para alm do PER (2082 agregados), tambm o PER-Famlias (433 agregados), o PAAR9 (459 agregados) e o Pro-grama de Retorno10 (48 agregados) foram usados pelo municpio para lidar com o problema social da habitao. Dos 6682 agregados recenseados, 3022 foram abrangidos pelos programas agora referidos e os restantes (2265) foram solucionados com meios prprios. Reconhecendo que nestes bairros que se concentra grande parte da populao imigrante do municpio, o documento sugere tambm que a in-

    6 Num outro relatrio, a taxa de execuo do PER na Amado-ra, em Outubro de 2005 era de 68% (CMA, 2007).7 O diagnstico social de 2008 indica um nmero inferior de agregados familiares (6629) (CLAS, 2008).8 J em 2012, a CMA referiu, em comunicado, que dos 562 agregados existentes em Santa Filomena, faltam resolver as situaes de 172 agregados, tendo 166 sido resolvidas por intermdio dos programas referidos e 244 agregados sido ex-cludos por j no residirem no bairro ou terem alternativas habitacionais.9 Programa de Apoio ao Auto-Realojamento, iniciado em 2000, visa apoiar agregados que residam em zonas sujeitas a interveno ao nvel do plano rodovirio municipal ou do plano director municipal. Mais recentemente, e por isso no temos informao disponvel, foi criado o PAAR+ que com-participa a aquisio de habitao na rea Metropolitana de Lisboa a quem se encontrar recenseado pelo PER.10 Criado em 2001, abrange indivduos de origem estrangeira residentes no concelho em situao precria, que desejem re-gressar ao seu pas de origem.

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    terveno da CMA tem sido guiada pela vontade de beneficiar as camadas sociais mais carenciadas que permaneam em condies desumanas de habitabili-dade (CLAS, 2011, p.45).

    Ento, qual o problema? Fundamentalmen-te, os residentes do bairro de Santa Filomena no recenseados em 1993, quer porque se encontravam deslocados por motivos profissionais ou de sade data do levantamento, quer porque chegaram pos-teriormente no contexto da reunificao familiar, ou porque entretanto nasceram, vem hoje ameaado um direito humano/constitucional fundamental o seu direito habitao. Ao programar a sua interven-o no terreno (demolio de alojamentos) a partir dos dados recolhidos em 1993, a CMA incorre num anacronismo pois o ponto de partida para a sua pol-tica encontra-se completamente desatualizado e , do nosso ponto de vista, obsoleto. Por outras palavras, o bairro de Santa Filomena em 2012, no aquele que nos dado a conhecer pela informao recolhida h quase duas dcadas.

    Com vista a uma melhor caracterizao da rea-lidade atual, em julho de 2012, o HABITA, proce-deu, juntamente com alguns residentes do bairro, ao levantamento de informao relativa ao universo de moradores no PER atualmente residentes em Santa Filomena. Os resultados desse trabalho, que, apesar de todo o esforo e empenho, devem, obvia-mente, ser lidos tomando em considerao a escassez de meios e a urgncia do momento, mostram que existem hoje cerca de 110 agregados familiares (apro-ximadamente 380 residentes). Relativamente aos 84 agregados dos quais temos informao completa, sabemos que correspondem a 285 residentes e que destes, 105 so jovens at aos 18 anos (73 tm 12 anos de idade ou menos), vrios deles nascidos em Portugal e a frequentar estabelecimentos de ensino. Dos 180 adultos, 80 encontram-se desempregados, 88 esto a estudar/so escolarizados e 14 sofrem de invalidez permanente, deficincia ou doena crnica. Mais de 54 agregados contam com pelo menos uma pessoa desempregada e existem 20 famlias mono-parentais, na sua maioria compostas por uma me e seus filhos/as. A mdia dos rendimentos disponveis situa-se em torno dos 250/300 euros mensais, fazen-do com que muitos residentes estejam, efetivamente, em situao de pobreza relativa. Constata-se tambm que aproximadamente metade dos agregados residem h mais de dez anos no bairro, havendo inclusive fa-mlias que vivem em Santa Filomena h mais de duas ou trs dcadas. Em suma, o bairro , do ponto de vista social, marcado por inmeras fragilidades que podem agudizar-se de forma irreversvel se a CMA optar por desviar o olhar e, num passo de magia, fin-

    gir que ainda estamos em 1993. luz desta nova realidade a CMA (conjun-

    tamente com a segurana social) optou por colocar sobre a mesa algumas possibilidades alternativas a que estes residentes poderiam recorrer. Por um lado, s famlias que optassem por procurar alternativas no mercado de arrendamento privado ser-lhes-iam sub-sidiados dois ou trs meses de renda. Por outro, tem sido sugerido, no atendimento s famlias, a possibi-lidade de lhes ser facilitado o regresso sua terra (Cabo Verde, na grande maioria dos casos), eventu-almente atravs do Programa Regresso, embora no seja claro que assim seja, nem que estas manifestem esse desejo, condio sem a qual o programa no se pode, legitimamente, concretizar11. Por vezes, tam-bm aventada a possibilidade de solicitar algum tipo de apoio econmico a familiares e/ou amigos. Como em tantos outros processos similares, a rejeio des-tas solues por parte de alguns residentes levou a que tivessem sido ameaados com o despejo forado e a represso policial. Tanto as alternativas propos-tas como o modo de atuar so, consideramos ns, absolutamente inadmissveis e traduzem uma atitude de grande irresponsabilidade e/ou ignorncia institu-cionais.

    Admitindo que apenas a primeira soluo apre-sentada pela CMA passvel de ser discutida com alguma seriedade, pois as outras parecem-nos ser completamente irrealistas e at ofensivas, preciso enfatizar que a soluo da entrada no mercado de arrendamento privado no mais que o adiamento temporrio de um problema que muito provavel-mente se viria a manifestar dois ou trs meses mais tarde, assim que cessasse o subsidiamento da renda. Alis, mesmo um eventual recurso ao PROHABI-TA12 (Decreto-lei 135/2004, posteriormente alte-rado pelo Decreto-lei 54/2007), neste caso, apenas significaria o adiamento (embora mais longo, com a durao de dois anos) do problema. Efetivamente, tais apoios so completamente irrelevantes perante a dimenso do problema.

    Por um lado, agregados cujos membros esto de-sempregados ou cujos rendimentos mdios rondam os 250/300 euros, no conseguem obter um contrato de arrendamento, ou so vistos pelos senhorios como sendo clientes com elevado risco de incumprimen-to (ver Dias et al., 2009). Guerra (2011) mostrou,

    11 Em comunicado recente, a CMA afirma que tal sugesto nunca existiu e se tratou apenas de um equvoco de comu-nicao.12 Programa criado em 2004 que tinha como objetivo a reso-luo global das situaes de grave carncia habitacional de agregados familiares residentes no territrio nacional e hoje se encontra, aparentemente, suspenso por falta de verbas.

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    alis, que o acesso maioria dos concelhos da AML est vedado a agregados que no disponham de um rendimento familiar superior a dois salrios mnimos nacionais13, como parece ser comum em Santa Filo-mena. Paralelamente, a existncia de discriminao de imigrantes no acesso ao mercado de arrendamento privado (NMENA, 2003) compromete, evidente-mente, a viabilidade desta soluo. Deste modo, como referem Malheiros e Fonseca (2011), os imi-grantes recm-chegados so frequentemente obriga-dos a arrendar a preos relativamente elevados, o que os tem empurrado para estratgias de partilha de ca-sas, levando ao aumento de situaes de sobrelotao dos alojamentos.

    Por outro lado, a atuao da CMA parece tam-bm evidenciar alguns problemas de natureza emi-nentemente poltico-administrativa ou processual. A atitude autista e autoritria que tem demonstrado, perante um problema relativamente simples como aquele que identificamos, reveladora de uma mani-festa incapacidade, ou falta de vontade poltica, para envolver diretamente no processo de realojamento os cidados que por ela so diretamente afetados. Tal como havia assinalado Freitas (1994, p.31), os prin-cipais intervenientes nos processos de realojamento tendem a alhear-se do seu objecto de interveno, subordinando as solicitaes, necessidades e aspi-raes das populaes, a um conjunto de solues abstractas previamente equacionadas pelos tcnicos. Mais, corroborando uma ideia anteriormente defen-dida por Freitas (2001), apesar de ser uma vereao do Partido Socialista, a CMA parece reproduzir a atuao do poder central, designadamente, a do atu-al governo PPD/PDS-CDS/PP, na medida em que manifesta uma total insensibilidade relativamente aos impactos da atual situao de crise social na vida dos seus muncipes. Como j teve oportunidade de manifestar, a CMA est consciente que existem agre-gados no abrangidos pelo PER que se fixaram em reas de habitao degradada, nomeadamente, Santa Filomena. No entanto, est tambm consciente que, por mais que os servios municipais tenham alertado para a necessidade de procurarem alternativas habita-cionais, esses agregados foram ficando na expectativa de conseguirem a atribuio de uma casa. Perante o retrato social que anteriormente traamos, e mesmo considerando possveis situaes excepcionais, pare-ce-nos ser mais verossmil a existncia de uma mani-festa incapacidade em aceder s tais alternativas ha-bitacionais decorrente da conjugao de fragilidades econmicas e discriminaes de base cultural, do que

    13 Em 2012, o salrio mnimo nacional portugus era de 485 euros.

    a existncia de tais planos, maquiavelicamente urdi-dos. Como evidente, a CMA no colocou no centro do processo a populao que atualmente reside no bairro de Santa Filomena. Revelou-se, assim, incapaz de reagir atempadamente s mudanas ocorridas des-de 1993, e, em vez de delinar uma estratgia de longo prazo, mais sensata e responsvel, seguiu o modelo convencional de atuao assente no curto prazo, rea-tivo, dominado por interesses particulares e contami-nado pela forma de funcionamento dos servios da administrao local (Ferreira, 1994; Guerra, 2008). Em suma, quando se trata de residentes no recensea-dos, a CMA tem como nica estratgia o seu despejo e consequente demolio do alojamento.

    Os dias 26 e 27 de julho providenciaram, a este respeito, uma pungente, embora triste, ilustrao. s 8h da manh do dia 26, Santa Filomena foi ocupa-da por foras policiais (PSP e Polcia Municipal) que cercaram a rea do bairro a ser intervencionada, de modo a que residentes e ativistas no pudessem obs-taculizar a planeada demolio de 18 alojamentos. Os meios usados, completamente desproporcionais, enquadram-se no que tem vindo a ser a atuao da CMA desde que alguns residentes procuraram, de forma organizada e com o apoio de algumas organi-zaes e movimentos da sociedade civil14, denunciar a situao no bairro de Santa Filomena e lutar pelos seus direitos. Sete agregados, constitudos por vrias crianas, pessoas com problemas de sade e carncias econmicas, viram, incrdulos e rodeados pela pol-cia, as suas casas reduzidas a escombros. Por tentar resistir, um dos residentes foi constitudo arguido. Outro, viu ser-lhe apontada uma arma de fogo. No obstante, nossa convico que aliada ao fato de al-guns residentes terem, em estreita colaborao com o HABITA, interposto providncias cautelares (algu-mas das quais ignoradas pela CMA), a presena de vrios jornalistas e de um deputado do Bloco de Es-querda no local impediu a demolio de todos os alo-jamentos previstos. Alguns residentes encontram-se agora precariamente alojados em casas de familiares e/ou amigos, embora muitos destes corram tambm o risco de ver os seus alojamentos demolidos. Para alm disso, tendo visto muitos dos seus bens pessoais recolhidos e armazenados pelos servios municipais, alguns residentes depararam-se com o seu extravio ou danificao, naquilo que consideramos ser, por parte do municpio, um total desrespeito pela sua proprie-

    14 Deve salientar-se a lamentvel posio tomada pelo Alto Comissariado para a Imigrao e o Dilogo Intercultural (ACIDI) que, contrariando a sua misso, optou por no se comprometer nem apoiar os residentes de Santa Filomena, na sua maioria imigrantes e/ou seus descendentes.

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    dade privada.Pouco tempo depois, a CMA procurou justificar a

    sua interveno em Santa Filomena com base no in-teresse pblico prioritrio decorrente de indicaes fornecidas pelas foras de segurana que apontam para a necessidade de suster a crescente concentra-o de atividades preparatrias de delitos criminais. Parece que, afinal, a referida vontade de beneficar as camadas sociais mais carenciadas que permanecem em condies desumanas de habitabilidade foi su-plantada por imperativos e lgicas securitrias que no conseguem disfarar a sua natureza discriminat-ria e preconceituosa (ver Ba, 2012) e cujo fundamen-to permanece, ainda, no segredo dos deuses. Por outro lado, tem tambm sido sugerida a possibilidade da CMA ser permevel aos interesses da especulao imobiliria, dado que a localizao do bairro, nas proximidades de um novo empreendimento imobili-rio urbanizao do Casal de Vila Ch parece im-pedir a valorizao do investimento feito pelos seus atuais proprietrios15 (Dores, 2012).

    Perante este quadro, a nica soluo que nos parece razovel a suspenso imediata do processo de despejo/demolio, o realojamento dos residen-tes que viram as suas casas demolidas e a realizao de um novo recenseamento, feito em conjunto com as organizaes da sociedade civil que trabalham no terreno, de modo a sensibilizar e responsabilizar a CMA para as transformaes socioespaciais ocorridas nas ltimas duas dcadas. Na verdade, no estamos a defender nada de novo pois a mesma soluo j foi proposta pela Solidariedade Imigrante (ver IHRU, 2008), foi contemplada, como medida de curto prazo, no j referido estudo de Malheiros e Fonseca (2011, p.204) terminar os processos de realoja-mento () ampliando o atual espetro de respostas existentes, a fim de possibilitar a integrao dos imi-grantes chegados aps o levantamento efectuado em 1993 e consta do 1 Plano para a Integrao dos Imigrantes (ver Resoluo do Conselho de Ministros 63A/2007) no qual se defende a necessidade de de-senvolver um conjunto de solues alternativas de apoio habitao para residentes em zonas de inter-veno PER sem direito a realojamento.

    Sendo certo que a CMA no a nica responsvel pelo problema da habitao no seu concelho, pois o Estado portugus tem responsabilidades acrescidas, consideramos que esta no pode ameaar a vida e a segurana dos atuais residentes destruindo o nico teto que estes tm. Tero as ruas condies menos desumanas de habitabilidade? Com a cumplicidade do governo portugus (atravs da segurana social

    15 Ver vila-cha.blogspot.pt.

    e das foras policiais), a CMA est a desrespeitar de forma grosseira a legislao nacional e internacional ratificada por Portugal e que est obrigado a cumprir. Com efeito, no s os despejos programados violaro diretamente o direito habitao, como tambm o direito a no ver-se submetido a trato desumano e/ou degradante, o direito vida privada, bem como vrios direitos da criana, das mulheres e das pesso-as portadoras de deficincia, tornando-se, assim, este caso, paradigmtico da forma como a violncia e o imperialismo cultural se entrecruzam para dar forma a um processo absolutamente irracional e desuma-no (ver Young, 1990). No obstante, apesar de hoje prevaler esta lgica de funcionamento, no existe ne-nhum fatalismo determinista nem nenhuma mecni-ca causal pre-determinada subjacentes a tal trajetria. Como este caso tambm nos mostra, a cidade um processo, um espao social indissocivel de mltiplas experincias humanas de resistncia, conflito e pro-posta. Afinal, relembra Castells (2003), a dimenso bsica da mudana urbana o antagonismo e a ten-so existentes entre diferentes grupos, classes sociais e atores histricos relativamente aos significados do mundo urbano, relao entre forma espacial e es-trutura social e ao destino das cidades.

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