em vão irei torcer, irei limar a velha grade … ali na aldeia, onde tudo andava tão devagar como...

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Em vão irei torcer, irei limar a velha grade indomavelmente dura — não quer deixar-se torcer, não se quer dobrar porque em mim mesmo há uma grade forjada e soldada e, so- mente quando eu for esmagado, a grade tam- bém cederá. in Um Ghasel, de Gustaf Fröding

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Em vão irei torcer, irei limar a velha gradeindomavelmente dura — não quer deixar-setorcer, não se quer dobrar porque em mimmesmo há uma grade forjada e soldada e, so-mente quando eu for esmagado, a grade tam-bém cederá.

in Um Ghasel, de Gustaf Fröding

REPÚBLICA DOMINICANA1978

PRÓLOGO

Pedro Santana acordou antes do amanhecer porque a lanterna de ga-sóleo começara a fumegar.

Quando abriu os olhos, não soube logo onde estava. Fora arrancadode um sonho contra a sua vontade. Passara por uma estranha paisa-gem rochosa onde o ar era fresco com a sensação de que todas asmemórias estavam prestes a abandoná-lo. A lanterna fumegante pene-trara no seu subconsciente como um odor distante de cinza vulcânica.Mas subitamente havia algo mais: o som de uma pessoa ofegante queparecia agonizar. E nesse momento quebrara-se o sonho e fora obri-gado a regressar à sala escura onde passara seis dias e seis noites semdormir mais do que uns minutos de cada vez.

A lanterna apagara-se, à sua volta apenas escuridão. Ficou total-mente imóvel. A noite estava muito quente. O suor pegajoso colava--lhe a camisa ao corpo. Sentiu que cheirava mal. Já tinha passado muitotempo desde a última vez que tivera forças para se lavar.

Voltou a ouvir a respiração ofegante. Ergueu-se penosamente dochão de terra batida e procurou com as mãos o bidão de plástico comgasóleo que ele pensava estar junto da porta. Devia ter chovido en-quanto dormia, pensou ao mesmo tempo que procurava o bidão porentre a escuridão. Sentia o chão húmido sob os seus pés e à distânciaouviu um galo a cacarejar. Sabia tratar-se do galo de Ramirez. Era sem-pre o primeiro galo da aldeia a cacarejar antes do alvorecer. Aquele galoera como uma pessoa impaciente. Uma pessoa como aquelas que vivemna cidade, que parecem sempre ter muito que fazer e que nunca têmtempo para mais nada a não ser cuidar da sua própria pressa. Não era

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como ali na aldeia, onde tudo andava tão devagar como a própria vida.Por que haviam de correr se as plantas que os alimentavam cresciamdevagar?

Uma das mãos foi de encontro ao bidão. Tirou o pedaço de trapoque o tapava e virou-se. A respiração ofegante que o rodeava na es-curidão tornava-se cada vez mais irregular. Encontrou a lanterna,retirou a rolha e deitou-lhe cuidadosamente gasóleo. Ao mesmo tempotentava lembrar-se de onde pusera os fósforos. A caixa estava pratica-mente vazia, disso estava certo, mas ainda devia ter dois ou três fós-foros. Largou o bidão e tacteou o pavimento, encontrando, quase deimediato, a caixa. Acendeu um fósforo, abriu a lanterna e viu o paviocomeçar a arder.

Depois virou-se angustiado, pois temia aquilo que o esperava.A mulher deitada na cama, do lado da parede, encontrava-se às

portas da morte. Agora sabia que assim era, apesar de ter tentadoconvencer-se de que a crise seria ultrapassada em breve. A sua últimatentativa de fuga tivera lugar em sonhos. Agora já não lhe restava qual-quer possibilidade de escapar.

Ninguém consegue escapar à morte, nem à sua própria nem à de al-guém que ama.

Agachou-se junto à cama. A lanterna lançava sombras inquietantesnas paredes. Fitou o rosto da mulher. Ainda era jovem e, apesar da suacara pálida e magra, ainda era bonita. A última coisa que abandona aminha mulher é a beleza, pensou e sentiu as lágrimas virem-lhe aosolhos. Pôs-lhe a mão na testa e verificou que a febre aumentara nova-mente.

Lançou um olhar pela janela com um vidro partido remendado comum pedaço de cartão. Ainda não era dia, o galo do Ramirez aindacanta sozinho, pensou. Acaba por morrer de noite, e não de dia. Deusqueira que ela aguente respirar até de madrugada. Assim, ainda nãome deixa sozinho.

De repente ela abriu os olhos e ele agarrou-lhe a mão esboçando umsorriso.

— Onde está a criança? — perguntou com uma voz tão fraca quemal conseguia entendê-la.

— Está a dormir na casa da minha irmã e da família dela — res-pondeu. — É melhor assim.

Pareceu sossegar com a explicação dele.

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— Há quanto tempo estou a dormir?— Há muitas horas.— Estiveste aqui ao pé de mim o tempo todo? Tens de descansar.

Em breve já não preciso de estar aqui deitada.— Eu dormi — respondeu ele. — Brevemente estarás boa.Interrogou-se se ela teria notado que ele mentia. Interrogou-se se

ela saberia que nunca mais se ia levantar da cama. Seria que, por de-sespero, mentiam um ao outro? Para tornar o inevitável mais fácil?

— Estou tão cansada — disse ela.— Precisas de dormir para ficares boa — respondeu virando ao

mesmo tempo a cara para ela não ver a dificuldade que tinha em con-trolar-se.

Em seguida, a primeira luz do amanhecer infiltrou-se pela casa.Ela mergulhara novamente na inconsciência. Ficou sentado no chãoao lado da cama, tão cansado que não conseguia deter os pensa-mentos. Passeavam livremente na sua cabeça sem que conseguisseorientá-los.

A primeira vez que vira Dolores tinha 21 anos. Tinha feito o longocaminho para Santiago de los Treinta Caballeros para assistir ao Car-naval com o seu irmão Juan, que era dois anos mais velho e já antesvisitara a cidade. Mas para Pedro era a primeira vez. Demoraram trêsdias a chegar; de vez em quando conseguiam apanhar boleia de car-roça por uns quilómetros, todavia a maior parte do caminho fora feitoa pé. Numa ocasião tentaram pendurar-se num autocarro superlo-tado a caminho da cidade, mas foram descobertos quando tentavam,junto a uma paragem, subir para o tejadilho e esconderem-se entremalas e trouxas. O motorista correra com eles a praguejar gritando quenão era possível existir gente tão pobre que nem sequer tinha dinheiropara o bilhete de autocarro.

— Um homem que conduz um autocarro, deve ser muito rico —observou Pedro, à medida que prosseguia pelo caminho poeirentoladeado por enormes plantações de cana-de-açúcar.

— És parvo — respondeu Juan. — O dinheiro dos bilhetes vai parao dono do autocarro, não para quem o conduz.

— E quem é? — perguntou Pedro.— Como queres que saiba? — retorquiu Juan. — Mas quando che-

garmos à cidade, vou mostrar-te onde moram.

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Finalmente chegaram, num dia de Fevereiro em que toda a cidadevivia a confusão esfuziante do Carnaval. Pedro observava estonteadotodas as roupas coloridas com espelhos brilhantes pregados nas orlas,e as máscaras que se assemelhavam a diabos ou diferentes animais as-sustaram-no a princípio. Era como se toda a cidade baloiçasse aoritmo dos milhares de tambores e guitarras. Juan conduzira-o porruas e becos. De noite dormiam nuns bancos no Parque Duarte.Pedro sentira-se permanentemente ansioso com a ideia de Juan poderdesaparecer no meio da confusão. Sentia-se como uma criança commedo de perder os pais. Mas não o mostrara, porque não queria queJuan se risse dele.

No entanto foi exactamente o que aconteceu. Foi na terceira noite,aquela que seria a última. Estavam na Calle del Sol, a maior avenidada cidade, quando Juan de repente desaparecera no meio das pessoasque dançavam mascaradas. Não tinham combinado qualquer ponto deencontro caso um deles se perdesse. Procurara Juan pela noite dentrosem êxito. Nem sequer o encontrara entre os bancos do parque ondedormiram nas outras noites. Ao amanhecer, Pedro sentara-se junto auma das estátuas na Plaza da Cultura. Bebera água de um fontanáriopara matar a sede, porém não tinha dinheiro para comprar qualquercoisa para comer. Pensou que a única coisa a fazer era tentar encon-trar o caminho para casa. Se saísse da cidade, podia enfiar-se sub-rep-ticiamente numa das muitas plantações de bananas, e comer algumas.

De repente reparara que alguém se tinha sentado ao seu lado. Erauma jovem da sua idade. Pensou imediatamente que era a rapariga maisbonita que alguma vez vira. Quando ela reparou nele, ele baixou osolhos por timidez. Sorrateiramente viu como ela tirara as sandálias eesfregava os pés doridos.

Foi assim que conheceu Dolores. Mais tarde falaram várias vezessobre como o desaparecimento de Juan na confusão do Carnaval e ospés doridos dela os tinham unido.

Estavam sentados junto ao fontanário e começaram a conversar.Dolores também estava de passagem pela cidade. Procurara trabalhocomo criada, correndo casa atrás de casa nos bairros ricos sem conse-guir nada. Tal como Pedro, era filha de um campesino e a sua aldeianão ficava longe da dele. Saíram juntos da cidade, assaltaram bananei-ras para comerem e caminharam cada vez mais devagar à medida quese iam aproximando da aldeia dela.

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Dois anos mais tarde, em Maio, antes de começar a época das chu-vas, casaram-se e foram viver para a aldeia de Pedro onde este tinhauma pequena casa oferecida por um tio. Pedro trabalhava numa plan-tação de bananas enquanto Dolores cultivava hortaliça que vendia aquem passava. Eram pobres mas jovens e felizes.

Só lhes faltava um filho, contudo ao fim de três anos, Dolores aindanão ficara grávida. Nunca falavam sobre o assunto, mas Pedro notaraque Dolores estava cada vez mais preocupada. Sem ele saber, ela visi-tara «curiosas» na fronteira com o Haiti para procurar ajuda, mas semobter qualquer resultado.

Ao fim de oito anos, numa noite em que Pedro regressava da plan-tação, ela fora ao seu encontro para lhe anunciar que estava grávida.Após oito anos de casamento Dolores tivera finalmente uma filha.Quando Pedro viu a filha pela primeira vez reparou imediatamenteque herdara a beleza da mãe. Nessa noite Pedro foi à igreja localoferecer a jóia de ouro que recebera de sua mãe, ainda esta era viva.Ofereceu-a à Virgem Maria e pensou que também ela, com o seu filhoenvolto em panos, fazia lembrar Dolores e a filha recém-nascida. Re-gressara a casa a cantar tão alto e com tanta força que as pessoas quese cruzavam com ele o olhavam interrogando-se se ele bebera dema-siado sumo fermentado de cana-de-açúcar.

Dolores dormia. A sua respiração era cada vez mais superficial emexia-se inquieta.

— Não podes morrer — murmurava Pedro, e sentia que o desesperose apoderava dele. — Não nos podes abandonar, a mim e à nossa filha.

Duas horas mais tarde tudo estava acabado. Por breves instantes arespiração de Dolores tornou-se perfeitamente regular. Abriu os olhose fitou o marido.

— Tens de baptizar a nossa filha — disse. — Tens de a baptizar etomar conta dela.

— Em breve vais ficar boa novamente — respondeu. — Vamos osdois à igreja baptizá-la.

— Deixei de existir — respondeu e fechou os olhos.Depois morreu.

Duas semanas mais tarde Pedro abandonou a aldeia com a filha numcesto às costas. O seu irmão Juan acompanhou-o parte do caminho.

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— Sabes o que estás a fazer? — perguntou.— Só faço o que é preciso — respondeu Pedro.— Por que tens de ir à cidade baptizar a tua filha? Por que não a

deixas ser baptizada nesta aldeia? Esta igreja serviu tanto para ti comopara mim. E antes de nós aos nossos pais.

Pedro parou e observou o irmão.— Esperámos um filho durante oito anos e quando finalmente veio

a nossa filha, Dolores ficou doente. Ninguém conseguiu ajudá-la,nem médicos, nem remédios. Ainda não tinha 30 anos e teve de mor-rer, porque somos pobres. Porque estamos cheios das doenças dapobreza. Conheci Dolores naquela vez em que tu desapareceste du-rante o Carnaval. Agora vou regressar à grande catedral junto à praçaonde nos conhecemos. A minha filha vai ser baptizada na maiorigreja do país. É o mínimo que posso fazer por Dolores.

Não esperou pela resposta de Juan, apenas deu meia volta e pros-seguiu o caminho. Quando chegou à aldeia donde viera Dolores, játarde na noite, parou à frente da casa da mãe dela. Mais uma vez ex-plicou para onde se dirigia. A velha senhora abanou a cabeça desoladaquando ele se calou.

— A tua tristeza leva-te à loucura — disse. — Devias pensar no malque fazes à tua filha, aos solavancos às tuas costas até chegar a Santiago.

Pedro não respondeu. Manhã cedo no dia seguinte continuou acaminhar falando continuamente com a criança que carregava no cestopendurado às suas costas, contando-lhe tudo do que se lembrava sobreDolores. Quando não tinha mais para contar, voltava ao princípio.

Chegou à cidade numa tarde em que nuvens pesadas de chuva seacumulavam no horizonte. Sentou-se junto ao grande portal da cate-dral Santiago Apóstol e esperou. Volta e meia dava à filha do comerque trouxera de casa. Observou todos os padres vestidos de preto quepassavam por ele. Alguns pareciam-lhe novos de mais ou demasiadoapressados para merecer a honra de baptizar a sua filha. Esperou vá-rias horas. Por fim, viu um velho padre avançar com passos lentos pelapraça em direcção à catedral. Então ergueu-se, tirou o chapéu de palhae mostrou-lhe a filha. O velho padre escutou pacientemente a sua his-tória. Em seguida acenou com a cabeça.

— Baptizo a tua filha — aceitou. — Fizeste um longo caminho poralgo em que acreditas, o que é raro no nosso tempo. As pessoas rara-

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mente caminham grandes distâncias por algo em que acreditam. É porisso que o mundo está como está.

Pedro acompanhou o padre para dentro da catedral e, na penum-bra, sentia que Dolores estava próxima. O seu espírito esvoaçava à suavolta e acompanhava-os até ao baptistério.

O velho padre encostou a bengala a um dos altos pilares. — Qual vai ser o nome da menina? — perguntou.— Igual ao da mãe — respondeu Pedro. — Vai chamar-se Dolores.

Também quero que se chame Maria. Dolores Maria Santana.

Depois do baptismo, Pedro saiu para a praça e sentou-se junto àestátua onde vira Dolores pela primeira vez, havia dez anos. A suafilha adormecera no cesto e ele deixou-se ficar imóvel, profundamentemergulhado nos seus pensamentos.

Eu, Pedro Santana, sou um homem simples. Dos meus antepas-sados, não herdei nada a não ser pobreza e uma miséria sem fim. Nemsequer me foi dado o direito de manter a minha mulher. Mas prometo--te que a nossa filha vai ter uma outra vida. Vou fazer tudo para queela não tenha uma vida como a nossa. Prometo-te Dolores, que a tuafilha vai ser uma pessoa com uma vida feliz, longa e digna.

Na mesma noite Pedro deixou a cidade regressando à sua aldeia nacompanhia da filha Dolores Maria.

Era o dia nove de Maio de 1978.Dolores Maria Santana, tão amada pelo seu pai, tinha então oito

meses.

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SCANIA21-24 de Junho de 1994

Ao amanhecer iniciou a sua transformação.Planeara tudo minuciosamente para que nada falhasse, pois iria de-

morar o dia todo e não queria correr o risco de que o tempo não fossesuficiente. Agarrou no primeiro pincel e segurou-o à sua frente. Daaparelhagem no chão ouviu o tema com a banda de tambores quepreparara. Observou a cara no espelho e fez os primeiros traçosnegros na testa. Sentiu a mão firme, sinal de que não estava nervosoapesar de ser esta a primeira vez que aplicava a sua pintura de guer-reiro. Até ao presente vivera em fuga, a sua maneira de se defendercontra todas as injustiças que constantemente o tinham atingido.Agora concretizava a grande transformação. A cada traço que apli-cava no rosto era como se deixasse a sua velha vida para trás, já nãohavia retrocesso possível. Precisamente naquela noite o jogo iria aca-bar para sempre e ele iria entrar na guerra onde as pessoas morriamde verdade.

A luz na sala era muito forte. Ajustara minuciosamente os espe-lhos à sua frente para evitar reflexos. Ao entrar na sala e fechar aporta, começou por verificar uma última vez que não se tinha es-quecido de nada. Tudo estava em ordem: os pincéis bem limpos, aspequenas tigelas de porcelana com tinta, toalhas e água. Junto ao pe-queno torno, em fila num pano preto, estavam dispostas as suasarmas, três machados, facas de vários comprimentos e latas de spray.A única decisão que lhe faltava, mas que seria tomada até ao anoite-cer era a escolha das armas. Não podia levar todas, no entanto sabiaque a decisão surgiria por si quando desse início à sua transformação.

Antes de se sentar junto à bancada e começar a pintar a cara desli-zou com as pontas dos dedos pelos fios dos machados e das facas. Nãoera possível torná-los mais afiados. Não conseguiu resistir à tentaçãode forçar um pouco mais uma das facas na ponta do dedo. Começou

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logo a sangrar. Limpou o dedo e o fio da faca com uma toalha. Sen-tou-se então em frente aos espelhos.

Os primeiros traços na testa teriam de ser pretos. Era como sefizesse duas incisões profundas, abrisse o cérebro e o esvaziasse detodas as memórias e reflexões que até essa altura o tinham perseguido,feito sofrer e humilhado. Em seguida iria prosseguir com traçosvermelhos e brancos, os círculos, os quadrados e, por fim, os padrõesde cobras nas faces. Quando da sua pele branca não se visse nada atransformação seria dada por concluída. O homem que fora até aí iriadesaparecer e ressuscitar sob a forma duma figura animalesca que nãoconhecia a linguagem humana. Pensou que nem sequer hesitaria emcortar a língua se tal viesse a ser necessário.

A transformação levou todo o dia só terminando às seis da tarde.Nessa altura também já decidira levar o maior dos três machados.Enfiou o cabo no cinto grosso de cabedal à volta da cintura. As duasfacas já estavam nas respectivas bolsas. Olhou em redor confirmandoque não se esquecia de nada. Tinha posto as latas de spray nos bolsosinteriores do casaco de cabedal.

Arrepiou-se ao olhar a sua cara uma última vez ao espelho, colocouo capacete cuidadosamente na cabeça, apagou a luz e deixou a salacomo chegara, descalço.

Cinco minutos depois das nove Gustaf Wetterstedt baixou o somda TV e telefonou à mãe. Era um hábito que repetia continuamente.Desde que se retirara do cargo de Ministro da Justiça, havia 25 anos, eabandonara a carreira política via as notícias da TV com repugnânciae aversão. Não conseguia aceitar o facto de ele próprio já não parti-cipar. Durante os muitos anos como Ministro e homem público nocentro absoluto dos acontecimentos fora visto pelo menos uma vez porsemana. Tinha tratado de assegurar que cada aparição fosse registadaem vídeo pela sua secretária. Agora os vídeos encontravam-se no seugabinete de trabalho cobrindo uma parede inteira. Acontecia revê-losde vez em quando. Para ele, era uma fonte de constante satisfação notarque nunca, durante os muitos anos como Ministro de Justiça, perderaa compostura ou o controlo perante uma pergunta inesperada outraiçoeira de um jornalista mal-intencionado. Com uma sensação dedesprezo não contido conseguia ainda lembrar-se de como tantoscolegas tinham receado os jornalistas dos canais televisivos. Com ex-

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cessiva frequência, começavam a gaguejar e enredavam-se em contra-dições que depois não conseguiam esclarecer. Mas isso, a ele nunca lheacontecera. A ele ninguém o conseguia enganar. Os jornalistas nuncaconseguiram vencê-lo, e também nunca descobriram o seu segredo.

Ligara a TV às nove para ver o resumo das notícias. Depois reduziuo volume e pegou no telefone para ligar à mãe. Ela tivera-o muitojovem e tinha agora 94 anos lúcidos cheios de energia. Vivia sozinhanum grande apartamento na parte velha de Estocolmo. Cada vez queele levantava o auscultador e marcava o número, esperava que ela nãorespondesse. Como ele próprio já ultrapassava os 70, começara a re-cear que ela lhe sobrevivesse. Não havia nada que mais desejasse doque a morte dela. Então ficaria só ele. Não tinha de lhe telefonar e,passado pouco tempo, nem sequer se lembraria de como era o aspectodela.

Os toques sucederam-se. Com o aparelho sem som, observou o re-pórter a ler as notícias enquanto aguardava. Depois do quarto toquecomeçou a ter esperança que ela finalmente tivesse morrido. Emseguida, ouviu a sua voz. Esforçou-se por ter uma voz suave ao falarcom ela. Perguntou como estava, como tinha passado o dia. Já quetinha de aceitar o facto de ela ainda estar viva fez por tornar a con-versa o mais breve possível.

Acabou a conversa e ficou com o auscultador na mão. Não morre,pensou. Não morre a não ser que eu a mate.

Permaneceu sentado na sala silenciosa. Tudo o que se ouvia era o ma-rulhar das ondas e uma moto solitária que passava algures nas proximi-dades. Levantou-se do sofá e foi até à grande janela da varanda que davapara o mar. O crepúsculo era bonito e muito inebriante. A praia quedava para a sua propriedade estava deserta. As pessoas estão sentadasem frente dos seus aparelhos de TV, pensou. Já lá vai o tempo em queme viam apertar o pescoço dos repórteres quando era Ministro de Jus-tiça. Devia ter sido Primeiro-Ministro mas nunca lá consegui chegar.

Fechou os pesados cortinados e verificou com cuidado que não fi-cavam quaisquer frestas. Apesar de tentar viver tão anonimamentequanto possível, naquela casa logo a leste de Ystad, acontecia gentecuriosa vigiá-lo. Apesar de terem passado 25 anos desde o seu aban-dono da carreira política não caíra totalmente no esquecimento. Foiaté à cozinha e serviu-se de uma chávena de café dum termo. Com-prara-o numa visita oficial a Itália no final dos anos 60. Lembrou-se

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vagamente de que estivera lá para discutir o incremento das medidascontra o alastramento do terrorismo na Europa. Por toda a casa haviaobjectos que lhe lembravam a sua vida passada. Frequentes vezespensara em deitar tudo fora, mas por fim parecia-lhe inútil o próprioesforço.

Regressou ao sofá com a chávena na mão. Desligou a TV com o con-trolo remoto. Ficou sentado no crepúsculo a pensar no dia que passara.De manhã recebera a visita de uma jornalista de uma das grandes re-vistas mensais que estava a produzir uma série de reportagens sobre avida de pessoas conhecidas e a sua situação como reformadas. Por quese decidira a escolhê-lo não chegou a descobrir. Veio acompanhadapor um fotógrafo que tirou fotografias na praia e dentro da casa. Játinha decidido passar uma imagem de um homem idoso caracterizadopela suavidade e espírito de reconciliação. Falou sobre a sua actual vidacomo muito feliz. Vivia isolado para poder meditar e deixou escapar,com um fingido embaraço, que considerava a possibilidade de even-tualmente escrever as suas memórias. A jornalista, que andava pelos40 anos, ficara impressionada e cheia de submisso respeito. Por fim,acompanhou-a e ao fotógrafo até ao carro para se despedir.

Pensou com satisfação que evitara dizer uma única palavra ver-dadeira durante toda a entrevista. Era uma das poucas coisas que ointeressavam. Enganar sem ser descoberto. Espalhar engano e ilusões.Após os muitos anos como homem político percebera que tudo o querestava no fim era a mentira. A verdade disfarçada em mentira ou amentira velada de verdade.

Bebeu lentamente o café. A sensação de bem-estar aumentou. Asnoites eram o seu melhor momento. Era quando os pensamentos de-sapareciam, os pensamentos de tudo o que em tempos fora e de tudoo que perdera, sem no entanto ninguém conseguir roubar-lhe o maisimportante, o extremo segredo, aquele que ninguém conhecia a nãoser ele.

Às vezes pensava em si próprio como uma imagem num espelho, aomesmo tempo côncavo e convexo. Como ser humano tinha a mesmaambiguidade. Jamais alguém tinha visto mais do que a superfície, ojurista habilidoso, o respeitado Ministro de Justiça, o discreto refor-mado que passeava ao longo da costa da Scania. Ninguém conseguiaadivinhar que ele era um duplicado de si mesmo. Tinha cumprimen-tado reis e presidentes, tinha feito vénias com um sorriso enquanto a

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sua cabeça pensava: Se soubessem quem sou e o que penso de vocês.Quando enfrentava as câmaras de TV sempre tivera esse pensamento— se soubessem quem sou e o que penso de vocês — na sua mais re-mota consciência. Porém, nunca ninguém tinha descoberto o seusegredo: que detestava e desprezava o partido que representava, as opi-niões que defendia e a maioria das pessoas que encontrava. O seusegredo iria ficar escondido até à morte. Tinha analisado o mundo,identificara todas as suas fraquezas, vira a falta de sentido da existên-cia. Todavia, ninguém conhecia a sua opinião e era assim que iria ficar.Nunca sentira qualquer necessidade de partilhar o que vira e o queaprendera.

Sentiu um bem-estar crescente ao pensar no acontecimento queaguardava. No dia seguinte os seus amigos viriam a sua casa às noveda noite no Mercedes preto com janelas espelhadas. Entrariam direc-tamente para a garagem e esperá-los-ia na sala com os cortinadosfechados, exactamente como agora. Sentiu que a sua expectativa au-mentava quando começava a fantasiar sobre o aspecto da rapariga quelhe iriam fornecer desta vez. Informara-os de que ultimamente haviademasiadas louras. Algumas eram demasiado velhas, mais do que 20anos. Desta vez desejava uma rapariga mais nova e de raça mista. Osamigos ficariam à espera na cave, onde colocara uma TV, enquanto elelevava a rapariga para o quarto. Antes do amanhecer teriam desapare-cido e ele iria começar a fantasiar sobre a rapariga que lhe trariam nasemana seguinte.

A reflexão sobre o dia seguinte agitava-o tanto que se levantou dosofá e entrou no gabinete de trabalho. Antes de acender a luz, fechouos cortinados. Por um breve instante pareceu-lhe ver uma pessoa láem baixo na praia. Tirou os óculos e franziu os olhos. Acontecia queum ou outro noctívago andasse a passear junto à sua propriedade ànoite. Uma ou duas vezes fora necessário telefonar à Polícia de Ystade queixar-se de jovens que faziam barulho e fogo na praia.

Tinha uma boa relação com a Polícia de Ystad. Vinham sempreprontamente e mandavam embora quem o incomodava. Frequente-mente pensava que não tinha noção exacta dos conhecimentos econtactos que obtivera como Ministro de Justiça. Não só aprendera alidar com a mentalidade característica da corporação da Polícia sueca,como metodicamente arranjara amigos em pontos estratégicos dentrodo aparelho da justiça; os contactos criados no mundo do crime foram

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porém igualmente importantes. Havia criminosos inteligentes, indiví-duos que agiam sozinhos, assim como líderes de grandes sindicatos docrime, que ele tornou seus amigos. Mesmo que se tivesse transformadomuito nos 25 anos já passados desde que se retirara, continuava a sentirgrande alegria pelos seus antigos contactos. Para não falar dos amigosque lhe proporcionavam a visita de uma rapariga em idade adequada.

A sombra na praia fora imaginação. Ajustou os cortinados e abriuuma das portas da secretária herdada do seu pai, o temido professorde Direito. Tirou um dossier ricamente ornamentado e abriu-o à suafrente em cima da secretária. Lentamente, quase de modo solene, pas-sou folha por folha da sua colecção de imagens pornográficas dos pri-meiros anos da arte fotográfica. A sua fotografia mais antiga era umararidade, um daguerreótipo de 1855 que em tempos comprara emParis. A foto representava uma mulher nua que abraçava um cão. A suacolecção era bem conhecida dentro do círculo exclusivo de homensque partilhavam o seu interesse. Por exemplo, a sua colecção defotografias da última década do século XIX, de Lecadre, apenas eraultrapassada pela colecção do magnata de aço da zona do Ruhr.Folheava devagar as páginas protegidas por capas de plástico, olhandomais demoradamente as páginas onde os modelos eram muito jovense nas quais se podia ver que estavam sob a influência de drogas.Frequentemente, sentia pena de não se ter dedicado à fotografia, poisse o tivesse feito, poderia hoje possuir uma colecção única.

Depois de ter passado folha por folha fechou o dossier à chave nasecretária. Tinha a promessa dos seus amigos de que à sua morte iriamoferecer as fotografias a um comerciante de antiguidades em Paris, quese especializara em negócios desse tipo, sendo o dinheiro destinado àfundação para jovens juristas que já criara, mas que só iria ser oficial-mente apresentada após a sua morte.

Apagou o candeeiro de mesa e ficou sentado na escuridão do escri-tório. O marulhar das ondas era muito fraco. Novamente lhe pareceuouvir uma motorizada passar nas proximidades. Continuava a terdificuldade em imaginar a sua própria morte apesar de já passar dos70 anos. Em duas ocasiões ao viajar pelos Estados Unidos pedira ano-nimamente para assistir a execuções de sentenças de morte, a primeiravez foi na cadeira eléctrica, a segunda na já rara câmara de gás. Forauma experiência esquisita mas empolgante ver tirar a vida a pessoas.Mas não conseguia imaginar a sua própria morte. Já era perto da meia-

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-noite. Deixou o escritório e deitou licor num pequeno cálice do barda sala. Um pequeno passeio até ao mar era a única coisa que desejavaantes de se deitar. Vestiu um casaco no vestíbulo, enfiou os pés numassocas gastas e saiu de casa.

Lá fora não havia vento. A sua casa estava tão isolada que não con-seguia ver as luzes dos vizinhos, mas à distância ouviam-se os carrosa caminho de Kåseberga. Seguiu o trilho que passava pelo jardim atéao portão trancado que levava à praia e descobriu, aborrecido, que ocandeeiro de um dos pilares junto ao portão não estava a funcionar.A praia esperava-o. Procurou entre as suas chaves e abriu o portão.Percorreu o curto caminho e ficou parado mesmo junto à linha deágua. O mar estava calmo. Lá longe no horizonte viu as luzes de umnavio que se dirigia para oeste. Abriu a braguilha e urinou na água aomesmo tempo que continuava a fantasiar sobre a visita que iria ter nodia seguinte.

Sem nada ter ouvido, de repente apercebeu-se de que estava alguématrás dele. Ficou hirto e sentiu como o medo se apoderava dele. Emseguida virou-se repentinamente.

O homem que ali estava parecia um animal. Tirando um par de cal-ções, estava nu. Olhou para a cara do homem com um pavor histéricomomentâneo sem conseguir determinar se estava desfigurado ou se seescondia por detrás de uma máscara. O homem segurava um machadonuma das mãos. Confuso, reparou que a mão à volta da pega do ma-chado era muito pequena, que o homem lhe fazia lembrar um anão.

Deu um grito e começou a correr de volta para o portão do jardim.Morreu no mesmo instante em que o machado dividiu a coluna em

duas, logo abaixo da omoplata. Já não sentiu como o homem, ou even-tualmente um animal, se ajoelhou e lhe fez um corte na testa e depoiscom um único puxão violento separou a maior parte do cabelo docouro cabeludo da cabeça.

O relógio acabara de passar da meia-noite.Era terça-feira, dia 21 de Junho.Uma motorizada solitária arrancou algures nas proximidades.

Passado pouco tempo o barulho do motor desapareceu.Estava tudo muito sereno.

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Pelo meio-dia do dia 21 de Junho, Kurt Wallander desapareceu daesquadra em Ystad. Para ninguém notar que saía, deixou o local de tra-balho pela garagem. Sentou-se no seu automóvel e foi até ao porto.Como estava um dia quente deixou o casaco pendurado nas costas dacadeira. Para quem o procurasse nas próximas horas era um sinal deque ainda se devia encontrar no edifício. Wallander estacionou juntoao teatro, indo depois até ao cais mais afastado, e sentou-se num bancojunto à barraca pintada de vermelho que pertencia ao Instituto deSocorros a Náufragos. Tinha levado um dos seus cadernos, mas quandoia começar a escrever, reparou que não trazia caneta; o primeiro im-pulso de irritação foi mandar o caderno para a água e esquecer tudo.Depois concluiu que tal era impossível, os seus colegas não lhe per-doariam.

Tinham sido eles, apesar dos seus protestos, que o nomearam parafazer o discurso em nome de todos, quando às três horas, fossem des-pedir-se de Björk que nesse mesmo dia se retirava do cargo de chefeda Polícia de Ystad.

Wallander nunca fizera um discurso anteriormente. O mais pertoque alguma vez estivera de um discurso fora a quantidade de comuni-cados de imprensa que tivera de elaborar, relativos a diferentes inves-tigações de crimes.

Mas como fazer um discurso de agradecimento na despedida de umchefe de polícia? Agradecer o quê? Será que de facto tinham algummotivo para agradecer? Wallander teria preferido falar sobre a suapreocupação e angústia acerca das grandes, mas aparentemente nãoplaneadas reorganizações e reduções de pessoal que cada vez mais atin-giam a Polícia.

Deixou a esquadra para poder reflectir em paz sobre o que iria dizer.Na noite anterior ficara sentado à mesa da cozinha até às tantas sem

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conseguir qualquer resultado, pelo que agora tinha mesmo de ser. Emmenos de três horas juntar-se-iam para entregar a prenda a Björk queno dia seguinte iria começar a trabalhar em Malmö como chefe da uni-dade regional dos assuntos relacionados com a imigração. Levantou--se do banco e avançou ao longo do cais até ao café. Os barcos de pescabaloiçavam devagar nas suas amarrações. Wallander lembrou-se dis-traído de que uma vez, há sete anos, tinha participado na remoção deum cadáver da doca, mas afastou a imagem da memória. O discursode despedida de Björk era neste momento mais importante. Uma dasempregadas de mesa emprestou-lhe uma caneta. Sentou-se a uma mesana esplanada com uma chávena de café e esforçou-se por escrever umaspalavras. À uma hora tinha conseguido escrever meia página. Obser-vou desalentado o resultado, sabendo que não iria conseguir fazermelhor. Chamou a empregada que se aproximou e serviu mais café.

— O Verão leva o seu tempo a chegar — observou Wallander.— Talvez nem sequer venha — respondeu a empregada.Apesar do impossível discurso para Björk, Wallander estava bem-

-disposto. Mais umas semanas e iria de férias, e sentia ter várias razõespara se sentir alegre. O feliz Inverno tinha sido longo e cansativo peloque realmente estava com grande necessidade de descanso.

Reuniram-se às três na cantina da esquadra e Wallander fez o seudiscurso a Björk. Depois Svedberg entregou-lhe como prenda umacana de pesca novinha em folha e Ann-Britt Höglund ofereceu-lheflores. Wallander conseguiu melhorar o seu pobre discurso quando,inspirado pela ocasião, contou uns episódios que vivera com Björk.Despertou grandes gargalhadas ao contar como os dois caíram numpoço de adubo líquido quando o andaime onde estavam se partira.Em seguida beberam café e comeram bolo. No discurso de agrade-cimento, Björk desejou boa sorte ao seu sucessor. Era uma mulherchamada Lisa Holgersson e vinha de um dos maiores distritospoliciais da Småland. Iria ocupar o lugar no fim do Verão e até lá,Hansson seria o chefe de polícia substituto em Ystad. Depois da ce-rimónia e de Wallander regressar ao seu gabinete, Martinsson bateuà sua porta semiaberta.

— Foi um bom discurso — disse. — Ignorava que sabias fazer essascoisas.

— Não sei — respondeu. — Foi um discurso muito fraco, sabesisso tão bem como eu.

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Martinsson sentou-se cautelosamente na cadeira rasgada das visitasdo gabinete de Wallander.

— Estou curioso por saber como vão correr as coisas com uma mu-lher a chefiar — prosseguiu.

— Por que não haviam de correr bem? — retorquiu Wallander. —Preocupa-te antes com o que vai acontecer com todos os cortes.

— Foi por isso que entrei — disse Martinsson. Há rumores de quese vai tirar o pessoal da esquadra de Ystad, nas noites de domingo esegunda-feira.

Wallander olhou céptico para Martinsson.— Evidentemente não vai ser possível — disse. — Então quem vai

vigiar eventuais capturados na esquadra? — Consta que se vão pedir orçamentos a empresas privadas de

segurança para assumir essa tarefa.Wallander olhou interrogativamente para Martinsson.— Empresas de segurança?— Foi o que ouvi.Wallander abanou a cabeça e Martinsson levantou-se da cadeira. — Pensei que devias tomar conhecimento — disse. — Estás a

entender o que está a acontecer com a Polícia?— Não — respondeu Wallander — e deves interpretar a minha res-

posta como sincera e absoluta. — Martinsson permaneceu no gabinete.— Há mais alguma coisa?

Martinsson tirou um pedaço de papel do bolso.— Como sabes, já começou o Campeonato Mundial de futebol. 2-2,

contra os Camarões. Tu apostaste 5-0 para os Camarões e com esseresultado ficaste em último lugar.

— Como se fica em último lugar? Ou se acerta ou não, não é? — Estamos a fazer a estatística que mostra onde nos situamos em

relação uns aos outros.— Meu Deus, para que serve?— Foi um dos polícias de segurança pública que sozinho acertou

2-2 — informou Martinsson ignorando a pergunta de Wallander. —Agora trata-se do próximo jogo, a Suécia contra a Rússia.

Wallander não tinha qualquer interesse por futebol. Por outro ladofora várias vezes ver a equipa de andebol de Ystad que, em tempos,se contara entre as melhores da Suécia. No entanto, ultimamente nãoconseguia evitar notar como todo o país parecia concentrar a sua aten-

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ção numa única coisa: o Campeonato Mundial de Futebol. Não con-seguia ligar a TV ou abrir um jornal sem ir ao encontro de especula-ções infinitas acerca de como iria correr para a equipa sueca. Aomesmo tempo compreendia que não podia colocar-se fora das apos-tas internas da Polícia. Podia ser interpretado como arrogância. Tiroua sua carteira do bolso.

— Quanto é?— 100 coroas. O mesmo que da última vez.Entregou a nota a Martinsson, que o riscou da lista. — Portanto, tenho de fazer uma aposta, não é?— Suécia contra Rússia. Como vai correr?— 4-4 — apostou Wallander. — É muito raro haver tantos golos no futebol — esclareceu Mar-

tinsson admirado. — Parece mais um resultado de hóquei no gelo.— Então digamos 3-1 para a Rússia — corrigiu Wallander. — Serve?Martinsson apontou.— Talvez possamos já tratar do jogo com o Brasil — prosseguiu

Martinsson.— 3-0 para o Brasil — respondeu Wallander imediatamente.— Não tens grandes expectativas a respeito da Suécia — comentou

Martinsson.— Pelo menos não quando se trata de futebol — respondeu Wal-

lander e deu-lhe mais uma nota de 100 coroas. Depois de Martinsson sair, Wallander reflectiu sobre o que ouvira,

mas logo afastou os pensamentos, irritado. Chegaria o momento emque acabaria por saber o que era verdade ou não. Eram já quatro emeia da tarde. Wallander puxou por um dossier com material de in-vestigação à volta de exportação ilegal organizada de automóveisroubados para os países do bloco de leste, em cuja investigação estavaa trabalhar havia meses. Até ao presente a Polícia só tinha conseguidodecifrar partes da extensa actividade pelo que chegou à conclusão deque iria prosseguir ainda por muitos meses. Durante as suas férias,Svedberg assumiria a responsabilidade. Tinha um forte pressentimentode que iriam avançar muito pouco durante a sua ausência.

Ann-Britt Höglund bateu à porta e entrou. Trazia um boné pretode basquetebol.

— O que achas? — perguntou.— Pareces uma turista — respondeu Wallander.

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— Os novos chapéus da farda vão ser assim — disse. — Imagina apalavra Polícia por cima da pala. Já vi imagens.

— Uma coisa dessas nunca vai tapar a minha cabeça —, observouWallander. — Se calhar devia estar contente por já não ser polícia desegurança pública.

— Talvez um dia venhamos a descobrir que Björk foi um chefe ex-traordinário — disse ela. — Acho que o que disseste foi muito bonito.

— Sei que o discurso não foi grande coisa — respondeu Wallandere sentiu-se irritado. — Mas a responsabilidade é vossa por terem tidoa falta de discernimento de me escolher.

Ann-Britt olhou pela janela. Wallander pensou que ela conseguiraem muito pouco tempo alcançar a reputação que ele lhe predestinaraquando chegara a Ystad no ano anterior. Na Escola Superior da Polí-cia revelara grande queda para a actividade de polícia, e a experiênciaviera confirmá-lo. Em parte conseguira preencher o vazio que Wal-lander sentiu que Rydberg deixara ao morrer uns anos antes. Rydbergfora o polícia que lhe ensinara a maior parte do que sabia. Às vezespensava que era sua responsabilidade orientar Ann-Britt Höglund domesmo modo.

— Como vão as coisas com os automóveis? — perguntou.— Continuam a ser roubados — respondeu Wallander. — Aquela

organização parece ter ramificações incríveis.— Iremos conseguir progredir? — perguntou.— Vamos rebentar com ela — respondeu Wallander. — Mais cedo

ou mais tarde. Vai surgir um vazio durante uns meses. Depois volta-mos ao início.

— Mas nunca acaba?— Nunca acaba. Ystad fica onde fica. A duzentos quilómetros

daqui, do outro lado do mar, há uma enorme quantidade de pessoasque querem ter o que nós temos. O problema é só que não têm di-nheiro para pagar.

— Gostava de saber quanta mercadoria resultante de furtos sai emcada ferry — disse ela pensativamente.

— Provavelmente é melhor não saber — respondeu Wallander.Foram buscar café. Ann-Britt Höglund iria começar as férias já

nessa semana. Wallander entendeu que as iria passar em Ystad, porqueo marido, que era engenheiro naval e tinha o mundo todo como campode trabalho, estava na Arábia Saudita.

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— E tu, o que vais fazer? — perguntou depois de começarem a falardas suas próximas férias.

— Vou para a Dinamarca, para Skagen — informou Wallander.— Com a mulher de Riga? — quis saber Ann-Britt Höglund esbo-

çando um sorriso.Wallander franziu a testa admirado.— Como sabes dela?— Toda gente sabe. Não sabias? Talvez se possa dizer que é o re-

sultado de uma investigação interna contínua entre nós, polícias.Wallander ficou francamente surpreso. Nunca contara a ninguém

sobre Baiba, que conhecera por ocasião da investigação de um crime,há uns anos. Era viúva de um polícia lituano assassinado. Ela estiveraem Ystad durante o Natal há quase meio ano. Na altura da Páscoa,Wallander visitara-a em Riga, sem nunca ter falado dela, sem nunca ater apresentado a colega algum. Interrogou-se de súbito por quenunca o fizera, pois mesmo sendo ainda uma relação instável, elatirara-o da melancolia que caracterizava a sua vida após o divórcio daMona.

— Pois sim — afirmou. — Vamos juntos à Dinamarca. Depois voudedicar o resto do Verão ao meu pai.

— E Linda?— Telefonou há uma semana a dizer que ia frequentar um curso de

teatro em Visby. — Pensava que iria ser estofadora…— Também eu. Mas agora meteu na cabeça que vai montar uma

espécie de peça de teatro com uma amiga.— Parece interessante, não achas?Wallander anuiu hesitantemente.— Espero que ela venha em Julho. Há muito tempo que não a vejo.Separaram-se à frente da porta de Wallander.— Aparece durante o Verão — disse ela. — Com ou sem mulher de

Riga. Com ou sem filha.— O nome dela é Baiba — informou Wallander, e prometeu que

iriam visitá-la.Após a conversa com Ann-Britt ficou cerca de uma hora debruçado

sobre os papéis em cima da secretária. Telefonou duas vezes em vão àPolícia de Gotemburgo a procurar um inspector que trabalhava como mesmo caso. Quando o relógio marcava um quarto para as seis, fe-

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chou o dossier, levantou-se e decidiu-se por jantar fora nessa noite.Apalpou o estômago e sentiu que continuava a perder peso. Baibaqueixara-se de que ele estava demasiado gordo, pelo que depois dissonão teve dificuldade em comer menos. Em várias ocasiões, até se obri-gou a enfiar o fato de treino e meter-se a caminho a correr, apesar deachar isso uma chatice.

Vestiu o casaco e decidiu que à noite iria escrever uma carta a Baiba.Precisamente quando ia deixar o gabinete, o telefone tocou. Hesitoupor instantes se havia de deixá-lo tocar. Mas voltou à secretária elevantou o auscultador.

Era Martinsson.— Fizeste um bom discurso. Björk parecia sinceramente emocionado.— Já mo tinhas dito — respondeu Wallander. — O que queres?

Estou a caminho da casa.— Acabo de receber uma chamada um pouco estranha — pros-

seguiu Martinsson. — Quis falar contigo sobre isso. — Wallanderesperou impacientemente pela continuação. — Foi um agricultor quetelefonou duma quinta nas proximidades de Marsvinsholm. Afirmouque havia uma mulher, que se comportava de maneira estranha noseu campo de colza.

— Foi tudo?— Sim, foi.— Uma mulher que se comporta de maneira estranha num campo

de colza? O que fez?— Se eu o entendi bem, não fez nada. O que era estranho era o facto

de estar no campo de colza.Wallander não precisou de reflectir antes de responder.— Manda uma patrulha de segurança. Tem de ser um assunto do

foro deles.— O problema é que parecem todos ocupados neste momento.

Aconteceram dois acidentes de automóvel ao mesmo tempo. Um noacesso para Svarte, outro em frente do Continental.

— Graves?— Sem danos pessoais de maior. Mas pelos vistos há uma grande

confusão.— Mas então não podem ir a Marsvinsholm quando tiverem tempo?— Aquele agricultor parecia preocupado. Não sei como explicar

melhor. Se não tivesse de ir buscar os meus filhos, eu próprio iria lá.

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— Posso ir eu — acedeu Wallander. — Encontramo-nos no corre-dor para me dares o nome e a indicação do caminho.

Uns minutos depois Wallander abadonou a esquadra de automó-vel. Virou à esquerda e na rotunda seguiu a estrada para Malmö como papel que Martinsson escrevera ao seu lado no banco. O agricultorchamava-se Salomonsson e Wallander conhecia o caminho que deviaseguir. Depois de entrar na E65 desceu a janela do carro. Os camposamarelos de colza ondulavam de ambos os lados da estrada. Não selembrava da última vez que se sentira tão bem como agora. Meteu acassete das Bodas de Fígaro com a voz de Barbara Hendricks comoSusana e pensou em Baiba, que iria brevemente encontrar em Cope-nhaga. Ao chegar ao desvio para Marsvinsholm, virou à esquerda,passou o castelo e a capela do castelo e virou novamente à esquerda.Lançou um olhar à descrição feita por Martinsson e meteu-se por umcaminho estreito que levava directamente aos campos. Viu o mar àdistância.

A casa de Salomonsson era uma casa típica da Scania, bem cuidada.Wallander saiu do carro e olhou à sua volta; os campos amarelos decolza estendiam-se até onde a vista conseguia alcançar. Nesse momentoabriu-se a porta da casa e no cimo da escada surgiu um homem muitovelho com uns binóculos na mão. Wallander pensou que certamenteele tinha imaginado o acontecido. Acontecia demasiadas vezes velhossolitários do campo telefonarem à Polícia, levados pelas suas própriasfantasias. Aproximou-se da escada e cumprimentou-o.

— Kurt Wallander da Polícia de Ystad — apresentou-se.O homem na escada tinha a barba por fazer e os pés enfiados numas

socas rotas.— Edvin Salomonsson — respondeu o homem e estendeu a sua mão

magra.— Conte-me o que aconteceu — pediu Wallander.O homem apontou para os campos à direita da casa.— Descobri-a esta manhã — começou. — Acordo cedo. Já às cinco

lá estava, primeiro pensei que era um veado, mas depois vi que se tra-tava de uma mulher.

— O que estava a fazer? — perguntou Wallander.— Estava em pé.— Nada mais?— Estava a olhar.

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— Olhava para onde?— Como posso saber?Wallander suspirava interiormente. Certamente o velho homem vira

um veado e de seguida a imaginação apossara-se dele.— Não sabe quem ela é? — indagou.— Nunca a vi — respondeu o homem. — Se eu soubesse quem era,

não tinha telefonado à Polícia.Wallander anuiu. — Viu-a pela primeira vez esta madrugada — prosseguiu. — Porém

só telefonou à Polícia à tarde?— Não quis incomodar desnecessariamente — respondeu o homem

com simplicidade. — Suponho que a Polícia tem muito que fazer.— Viu-a com os binóculos — disse Wallander. — Encontrava-se no

campo de colza e nunca a tinha visto antes. Então o que fez?— Vesti-me e saí para a mandar embora. Dá-me cabo da colza ao

pisá-la. — O que aconteceu nessa altura?— Começou a correr.— Correr?— Escondeu-se na colza. Baixava-se para não a poder ver. Primeiro

pensei que se tinha ido embora. Depois descobri-a com os binóculos.Aconteceu várias vezes. Por fim cansei-me e telefonei-vos.

— Quando foi a última vez que a viu?— Mesmo antes de telefonar.— O que estava ela a fazer nessa altura?— Estava a olhar. Wallander lançou um olhar para o campo. A única coisa que viu foi

a colza ondulante.— O polícia com quem falou disse que você parecia preocupado —

disse Wallander.— Pois então o que faz uma pessoa num campo cultivado? Tem de

haver algo que não está certo.Wallander pensou que tinha de acabar com a conversa o mais de-

pressa possível pois era evidente que o homem idoso imaginara tudo.Decidiu-se por contactar os Serviços Sociais no dia seguinte.

— Não há muito que eu possa fazer — informou Wallander. —Certamente ela já desapareceu. Em todo o caso, não há motivo parapreocupação.

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— Não se foi embora, não senhor — disse Salomonson. — Estou avê-la agora.

Wallander virou-se rapidamente. Seguiu com a vista a direcção dodedo que Salomonsson apontava.

A mulher encontrava-se mais ou menos cinquenta metros dentro docampo. Wallander viu que o seu cabelo era escuro. Distinguia-se cla-ramente no campo amarelo.

— Vou falar com ela — disse Wallander. — Espere aqui.Tirou as botas da bagageira do carro e aproximou-se do campo com

a sensação de estar a viver uma situação irreal. A mulher estava com-pletamente imóvel a olhar para ele. Quando ele chegou mais perto, viuque não só tinha o cabelo comprido preto mas que também a tez eraescura. Parou junto à margem do campo cultivado e ergueu uma dasmãos fazendo-lhe sinal para se aproximar, mas ela continuava com-pletamente imóvel. Apesar de ainda estar longe dele e a colza volta emeia lhe ocultar a cara, parecia-lhe ser muito bonita. Chamou-ae pediu-lhe para se aproximar e como ela não se mexeu, deu o primeiropasso para dentro da colza. Desapareceu de imediato, tão de repenteque ele imaginou-a como um animal assustado. Ao mesmo tempo sen-tiu-se irritado. Continuou a avançar através da colza olhando em todasas direcções. Quando novamente a descobriu viu que ela se tinha des-locado para o canto leste do campo. Para ela não conseguir escaparmais uma vez, começou ele a correr. Ela movia-se muito depressa e elereparou que estava a ficar sem fôlego. Quando a distância que os se-parava era cerca de pouco mais de vinte metros encontravam-se já nomeio do campo e gritou-lhe que parasse.

— Polícia! — gritou. — Pare! Começou a andar na direcção dela, depois parou de repente. Foi

tudo muito rápido. Repentinamente ela levantou um bidão de plásticosobre a cabeça e derramou um líquido incolor sobre o cabelo, a carae o corpo. Wallander apercebeu-se, numa fracção de segundo, de queela devia ter carregado o bidão o tempo todo e de que também deviaestar com muito medo. Tinha os olhos esbugalhados e olhava-o fixa-mente.

— Polícia! — gritou novamente. — Só quero falar contigo.No mesmo instante chegou-lhe um cheiro a gasolina. De repente viu

que ela tinha um isqueiro aceso numa mão, que aproximou do cabelo.Wallander deu um grito ao mesmo tempo que ela se incendiava em la-

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baredas como uma tocha. Ele ficou paralisado ao vê-la cambalear pelocampo enquanto o fogo lhe envolvia o corpo. Wallander ouviu os seuspróprios gritos. Porém a mulher em chamas estava silenciosa, e maistarde não se lembrava de tê-la ouvido soltar um único grito.

Quando tentou correr para ela, todo o campo explodiu em chamas.De súbito, viu-se cercado por fumo e labaredas. Tapou a cara com asmãos e correu sem saber em que direcção se deslocava. Ao chegar auma das margens do campo tropeçou e caiu na valeta. Virou-se e viu--a uma última vez antes de ela cair e desaparecer do seu campo devisão. Nessa altura tinha os braços levantados como se suplicassecondescendência perante uma arma apontada contra ela.

O campo ardia.Algures, atrás, conseguiu ouvir Salomonsson aos gritos.Wallander levantou-se com as pernas trémulas, virou as costas e

vomitou.

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