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EM ESTADO DE GRAÇA Texto de Leonardo Nóbrega

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EM ESTADO

DE GRAÇA Texto de Leonardo Nóbrega

PERSONAGENS

SANTA – Jovem senhora preta, com aspecto amargurado.

De certa forma, conserva traços de beleza.

JESUS – Pré-adolescente com traços aparentes de

excepcionalidade. De cor branca.

CENÁRIO

Casebre com sala única, duas camas de solteiro dispostas

em sentido oposto, no centro, mesa com garrafa de café e

utensílios domésticos. Caixas de sapatos com utensílios

para fazer flores. Embaixo da cama de Santa encontra-se

uma mala de viagem surrada e garrafa de aguardente. Nos

móveis e paredes paira um aspecto de desolação

identificando-se com o estado interior das personagens.

Cena um

SANTA (Acordando sobressaltada, benzendo-se caminha

até Jesus. Constata que o mesmo está dormindo, voltando

para sua cama) – Santo Deus: por que este desassossego,

esse pesar, esse medo? (Em tom crescente, apavorada.)

Toda noite é a mesma coisa, esse pesadelo que me tira os

sonhos... (Em desespero crescente.) Ele surge das

profundezas, pula sobre mim: rasgando, enfraquecendo,

furando. De repente tudo é vermelho, encarnado... E eu pouco a

pouco vou sufocando, em uma poça de sangue. (Aos gritos.) A

vista vai escurecendo e tudo é escuridão, escuridão!

(Aproxima-se de Jesus.) E você: é sempre você! Meu menino!

Meu assassino! (Jesus acorda assustado.).

JESUS (Com os nervos à flor da pele querendo entender a

situação) – Pára mãe, pára! (Pausa. Os dois se fitam.) Pára:

você vai acordar os vizinhos, mãe! (Aproximando-se.).

SANTA (Dissimulando) – Pouco tô me lixando para essas

fofoqueiras.

JESUS – Mãe: o que houve? Depois que a gente veio pra

cidade, toda noite é a mesma coisa... Toda noite. (Pausa.) O

que houve? Você tá sentindo alguma dor? (Abraçando-a.).

SANTA (Em pânico, afastando-o violentamente) – Não me

toque: não me toque! (Enlouquecida.) Não me toque, seu doido

de merda...

JESUS (Surpreso) – Mãe!...

SANTA – Seu assassino nojento! Puxou ao pai! (Pausa. Tenta

controlar-se.) Até na cor.

JESUS (Tentando ser compreensivo) – Você não está bem,

mãe! (Tentando compreender.) Seu remédio: onde está o seu

remédio? (Em outro tom.) A senhora não devia parar de tomar

os remédios. (Pausa.) O médico bem que recomendou...

SANTA (Confusa, desesperada) – Cala a boca, desgraçado!

Cala a boca!

JESUS (Cortando, submisso) – Eu só queria ajudar...

SANTA (Fugindo) – Ajudar, ajudar... Ajudar coisa nenhuma!

Ninguém pode me ajudar. Ninguém!

JESUS (Cortando) – Mas...

SANTA (Interrompendo violentamente) – Não tem mais nem

menos! Eu já disse para calar. (Jesus engole em seco. Santa,

no fundo da cena, desarruma uma trouxa de roupa suja,

buscando algo.) Esta não serve. (Corre até Jesus, despindo-

o e vestindo-o simultaneamente. Jesus submete-se

contendo a fúria, diante da imposição de Santa.) Que cara é

essa? Parece até que viu alma! Eu sou assim mesmo, você já

devia estar acostumado. (Jesus continua enraivecido.)

Vamos: vista as calças!

JESUS (Irredutível) – Não!

SANTA (Impondo) – Eu quero que você vista.

JESUS (Firme) – Não, não e não. É cedo ainda!

SANTA (Descontrolando-se) – Já amanheceu. Você vai vestir,

porque eu quero que você vista... (Ameaçando-o com a

sandália em punho.).

JESUS (Entredentes, amedrontado) – Não, mãe: essa é muito

feia!

SANTA (Visivelmente sarcástica) – Feia? Então você acha

essa roupa feia? (Abanando-lhe a cara com o chinelo.).

JESUS (Para si) – Parece esmoler. (Defendendo-se, esconde

o rosto com as mãos.).

SANTA (Impiedosa) – Eu ouvi bem: esmoler! Você falou

esmoler? Pois é o que você é: esmoler! (gritando histérica.) e

doido, doido! (Aproxima-se lhe rasgando as roupas com

violência.) Seu pai fez de nós esmoler. Nós somos esmoleres.

(Jesus foge, explodindo.).

JESUS – Chega mãe, chega...

SANTA (Fora de si) – Tá achando ruim? Vai morar com o teu

pai, vai!

JESUS (Em um canto) – Ele não é meu pai: não é!

SANTA (Aos gritos) – É, é. É sim, teu pai! (Pausa.) Foi ele que

me emprenhou.

JESUS (Timidamente) – Ele disse que não é meu pai.

SANTA (Maldosamente) – Ele não diz por que tem vergonha.

Vergonha de ter posto no mundo um monstro como você.

JESUS (Tapando os ouvidos) – Mãe: não diga isso!

SANTA (Amargurada) – Digo, digo sim. Você destruiu minha

vida, traste. (Em outro tom, aproxima-se e começa a vesti-lo.)

Hoje você fica bem perto. Perto não, na porta do armazém do

pai... Vendendo flores a todos os fregueses. E quando eles

pararem e puxarem conversa (imitando os fregueses.):

“coitadinho é deficiente”... “Meu filho, quem é a sua mãe?” Você

responde: “Santa. Santa de Lima, que mora da Rua da Ladeira”.

“E seu pai, meu bichinho?” Você grita bem alto: “José Luis” – e

aponta bem na cara dele! Entendeu? (Jesus balança a cabeça

afirmativamente.) Agora vai. (Jesus indeciso.) Vai... (Áspera.)

Eu estou mandando! Vai! (Jesus sai. Santa aproxima-se da

sua cama, procura embaixo, tirando uma garrafa de bebida.

Bebe uns goles e torna a guardá-la. Em um canto pega

algumas caixas. Uma delas cai, abrindo-se. Fica à mostra

coroa e véu de noiva. Um misto de loucura passiva e

saudade invadem a personagem. Santa pega o véu e

caminha de encontro à cama, apertando-o ao peito.) Poderia,

mas não foi. Eu mesma nunca sonhei com casamento, noiva e

essas baboseiras que todas sonham. Eu só queria ter um

homem, me juntar e fazer uma ninhada de filhos. A madrinha

tinha que aparecer com aquela revista de noiva! (Pausa.) Era

tanta noiva, que não acabava mais. (Imitando a madrinha.)

“Santa: está decidido! Você vai ser a noiva mais bonita desta

cidade... (Pausa.) Não tive filha: minha filha é você. Casará com

decência com um bom homem (em outro tom.) que eu

escolher”. (Em desabafo.) Ela sempre decidia, escolhia. Tudo

me era dado já pronto, acabado. E não era isso que eu queria:

não era Antônio, Sebastião, moço rico ou da cidade... (Pausa,

semblante pesado, desfazendo-se em alegria.) Era ele: o Zé

Luis que eu queria... (Tom enérgico.) “Com Zé Luis não pode: é

filho da Madrinha e ainda por cima está de casamento marcado

com a moça da capital, Dona Ismênia, filha do Governador”.

Santa era apenas uma enjeitada, órfã que botaram na porta da

Madrinha; apenas uma serviçal que eles educaram, deram

roupas, estudos... (Em outro tom.) Como dizia a Madrinha:

“uma parenta postiça, (ironicamente.) que amamos como todo

o coração. Ela aqui, não dá um prego em uma barra de sabão, a

não ser cuidar da roupa do Zé Luis...” (Querendo entrar em

devaneio.) Ah, Zé Luis... Luis. (Vozes em off.).

Cena dois

VOZ I (Chamando) – Santa: oh, Santa! Tá aí o menino? O

doutor Luis mandou deixá-lo. Já passava do meio-dia e o

menino com a cabeça descoberta, oferecendo flor, exposto ao

sol e à poeira.

VOZ II – Coitadinho: como Deus pôs no mundo uma mãe tão

desumana? (Jesus entra cabisbaixo, fatigado.).

SANTA (Despertando-se atônita) – Desumana um cacete,

rapariga velha: vou lhe quebrar a cara! (Filho impedindo-lhe a

saída. Barulho da janela fechando-se.).

JESUS – Não, Santa... Eu tô com o pé doendo... (Pausa.) Com

fome. (Senta-se.).

SANTA (Curiosa, aproxima-se) – Foi lá?... Ficou na porta do

armazém? Viu ele? (Jesus permanece cabisbaixo.) Viu?

(Segurando-lhe pelos braços.).

JESUS – Vi mãe, vi...

SANTA – Ih!... Inferno: demente não serve pra nada... Só pra

comer e cagar. Estou aprumada!

JESUS – Pára de falar, Santa... Você fala, fala, fala – chega! Me

dá dor de cabeça. Às vezes até parece que minha cabeça vai

estourar. (Fugindo.) Pára, Santa, pára...

SANTA (Chantageando-o emotivamente) – É assim que você

me paga, não é? Eu só mereço isso mesmo, por passar nove

meses carregando você no bucho, sofrendo igual uma

condenada... Tá bom: vamos mudar de assunto. O pai é seu,

não é meu!

JESUS (Comovido, aproxima-se, despejando o conteúdo da

sacola, espalhando-se pelo chão dinheiro e flores) – Tá aí,

Santa: o meu apurado tá aí. (Pausa. Santa examina as notas

com desdém.) Tem bastante dinheiro. (Pausa. Justificando-

se.) Ontem eu não apurei nada...

SANTA (Olhando as flores) – Mas sobrou muitas flores... E

olhe que eu caprichei. Veja essas violetas aqui. Na cidade

inteira, e até mesmo na capital, ninguém faz melhor que eu...

(Pausa.) E você não vendeu uma, uma sequer. (Jesus

aproxima-se, temeroso.) Ninguém quis?...

JESUS – Ninguém quis. (Constatando.) Você bebeu, Santa?

Bebeu novamente?

SANTA (Dando de bruços) – Só uns goles para espairecer.

JESUS – Você não pode beber: o médico disse que eu devia

cuidar de você... Ele não falou que o remédio que você devia

tomar é controlado?

SANTA – Tá bom, tá bom... Agora deixa de frescura e vai lavar

os pés. (Jesus sai. Santa destampa um prato e põe sobre a

mesa. Jesus retorna, senta e come: cabisbaixo. Santa senta

na cama, abre uma caixa e começa a fazer flores e a

cantarolar.) Era uma sexta-feira, um lago mal-assombrado. À

noite sempre chovia e carimbamba cantava assim: amanhã eu

vou... Amanhã eu vou: amanhã eu vou!... (Luz em resistência.).

Cena três

Sob o foco de repetição da cena introdutória, Santa dorme:

Jesus idem. Santa inquieta, Jesus sereno. Mudança de luz.

Vulto, de faca em punho, esfaqueia Santa. Mudança de luz.

Os dois permanecem em lugar de origem. Santa acorda,

sobressaltada, transtornada, e corre até Jesus, agredindo-o.

SANTA – Você quis matar-me, desgraçado, quis?

JESUS (Fugindo apavorado) – Você está doida, doida...

(Chora.).

SANTA (Fora de si, corre até a mesa, pega a faca.

Empunhando-a, aproxima-se de Jesus) – Se eu adivinhar que

você quer acabar com a minha vida, desgraçado, eu acabo

primeiro com a tua. Tá ouvindo? (Jesus corre, encolhendo-se

em um canto.) Isso é o teu pai que vive pondo minhocas na tua

cabeça.

JESUS – Pai não: ele não é meu pai. É padrinho...

SANTA – Padrinho uma ova! Seu pai... Seu pai.

JESUS – Não é meu pai! Não é!

SANTA – Então você é obra do Espírito Santo, não é? Larga de

ser leso: ele não te reconhece como filho, pra não ter drama de

consciência. É melhor desconhecer do que ter um traste como

você.

JESUS – É por isso mesmo...

SANTA (Cortando-o) – Isso o quê?

JESUS – De você ser tão má, tão amargurada... Viver cheia de

ódio, que o padrinho disse que só dava pra gente pão e água.

(Pausa.) E ainda era muito... (Para si.) Você não merece...

SANTA – Ah: eu logo vi que você tava mudando, botando as

unhas de fora, logo vi... Tinha alguém fazendo você ficar contra

mim... (Pausa, tentando controlar-se.) Então ele disse que eu

era má, amargurada?... (Agressiva, aproxima-se.) Não foi?...

Não foi?

JESUS (Encolhe-se assustado, trincando os lábios) – Foi,

quer saber, foi... E disse mais: disse que você ia acabar bêbada

e doida como sua mãe, cheia de perebas e doenças do mundo.

(Pausa.) Morrer ao relento.

SANTA (Enraivecida) – Desgraçado! Eu tenho fé... Eu ainda

vejo a caveira dele primeiro... Vejo: ah, se vejo! (Faz menção de

sair, decidida.) Vou lá no armazém, armo um escândalo e fico

de peito lavado...

JESUS – Não vai, não, Santa. Ele falou ainda, que no dia em

que você fosse fazer arruaça na porta dele, ele mandava o

delegado lhe dar uma surra e botá-la no xadrez...

SANTA (Volta-se, explodindo) – Canalha! Nojento!... Como fui

eu gostar, amar... esse monstro: como?... (Enfurecida rasga

com a boca, o travesseiro. Assustado, Jesus foge. Sobre a

cama, Santa é um misto de confusão: dor, fúria, libido e

prazer. Da fronha cai uma foto. Em transe, Santa apanha o

retrato.) Como você foi a besta Santa. Como... Lembro como se

fosse hoje a casa em festa, tudo era alegria. José Luis acabara

de chegar da capital com o diploma de doutor. Ah, meu coração

pulou... (Pausa. Em outro tom.) Findo as festas da chegada,

tudo voltou aos conforme... A usina expirava fumaça, o gado no

pasto, e eu matava o tempo fazendo flor, junto da rede do doutor

Luisinho, que passava tardes e tardes lendo um monte de cartas

azuis, cor de rosa, cheirosas, perfumadas, cartas da capital...

Nunca aquele bode que vivia dando carreira nas filhas dos

moradores parecia tão sossegado. A filha da Palmira andou

dizendo que nunca andou com homem tão fogoso. Nas

redondezas não se falava em outra coisa: quem tivesse cabaço

que tomasse sentido. (Pausa.) Naquela tarde observei que ele

me olhava de jeito diferente. Não era como antes. Era de bicho

esfomeado. Tremi, tremi toda! Ele notou meu vexame. (Em

outro tom.) Fez finca-pé e a rede disparou: parecia canoa de

parque de diversão. A rede passava pertinho do meu rosto,

deixando no ar o perfume do moço bem tratado da capital.

(Pausa. Envaidecida.) Com o dedão do pé batia no bico do

meu peito, que escondido no corpete crescia, ficava duro,

parecia querer pular. Ele avançava: eu recuava. Afinal de

contas, Zé Luis era noivo, e a madrinha queria que eu casasse

de véu e grinalda. (Pausa. Pensativa.) Quantas e quantas

noites eu ouvi seus passos nervosos e um bater lento e ansioso,

como se ele aguardasse eu abrir a porta do quarto. Encolhida na

cama, eu desejava, estremecia, queria, desejava, mas tinha

medo. (Pausa.) Medo da madrinha, medo da língua do povo,

medo de pegar um bucho. Com o passar do tempo, ele tornava-

se mais afoito, não perdia a oportunidade, e eu não conseguia

mais me segurar... (Sensualíssima.) Aquela mão branca,

bonita, bem feita... Quando seu dedo duro me bolinava, pedia

passagem, eu me derretia. E, como cana-de-açúcar, me fazia

melaço. (Pausa.) Parecia próximo o casamento de Zé Luis, pois

não se falava em outra coisa... Outro dia peguei a Zita dizendo

para a madrinha (imitando-a.) “essa menina tá ficando amarela,

de olheira, magra, calada... Parece até que tá ficando pancada”.

(Em outro tom.) A madrinha mudou de assunto e disse que isso

ia passar, que era da idade... Só que não passava. Aproximava-

se a data do casamento de Zé Luis: a madrinha havia ido pra

cidade preparar o sobrado para as festas. Chovia, e eu estava

só em casa com o Zé Luis, que após o jantar parecia nervoso:

sentava, levantava e andava pra lá e pra cá. Eu cantava e fazia

flores. De repente, em uma fúria louca, ele pulou sobre mim. A

cesta com flores esparramou pelo chão. Ele, tal qual os cavalos

no pasto, fez de mim montaria, rasgou minha roupa, mordeu,

lambuzou... Eu gritava, não devia... Ele empurrava cada vez

mais forte, doía, sangrava, entrava, e, finalmente me senti

inundada, preenchida. A espera acabara e toda minha carne

agradecida dizia sem para aquele homem... Chegou o dia do

casamento: o comentário dos mais próximos era geral. “Santa tá

doente”, “essa menina não bate bem”, “desde pequenininha eu

achava que nela faltava um parafuso”. Santa para aqui, para

acolá. O tempo passou. Enquanto pude, pus um prato amarrado

na barriga, afrouxei as roupas, tomei chá de cabacinha.

Remédio nenhum dava jeito. A verdade caiu na boca do povo.

Zé Luis negou, jurou que não tinha nada com essa história.

Ismênia, a esposa de Zé Luis, ameaçou desmanchar o

casamento. A madrinha intercedeu: eu hein? Disse que eu

ficaria morando com ela na usina. José Luis e a esposa na

cidade... (Pausa. Com raiva.) “Patrão se divertir com

empregadas, não era novidade, isso sempre existiu. (Pausa.)

Com o passar do tempo, o povo esquece e tudo se resolve...

(Com cinismo.) Uma união abençoada por Deus, só ele pode

acabar. (Pausa.) Depois arrumo um besta pra tapar o rombo da

pretinha”. (Em outro tom.) Ismênia, depois de chorar muito,

concordou com a mudança. Antes de o bucho crescer, Zé Luis

não dava sossego. Depois passava semanas na cidade, e,

finalmente, só aparecia quando a madrinha chamava.

Compreendi que não signifiquei nada pra ele, nada... (Em outro

tom.) A barriga não parava de crescer. De repente, em pleno dia

de Finados, comecei a sentir dores insuportáveis: estava gelada.

Corro até o banheiro e vou deixando um rastro de suor por toda

a casa. Não há mais tempo. Algo se desprende de dentro de

mim e pede passagem. Aquela coisa escorrega perna abaixo...

batendo contra o solo frio do banheiro, e ele estava lá, roxo,

parado, parecia um ratinho morto. Movida por instinto diabólico,

penso destruir aquele pedaço de carne sem vida. Ao erguer a

mão para golpeá-lo ele começa a chorar. Algo amoleceu em

mim. (Em histeria, começa a chorar. Blecaute. Luz em

resistência.).

Cena quatro

Sob foco, Santa dorme inquieta. Em outro foco, Jesus

dorme tranqüilo. Momentos depois, ela vive o pesadelo de

sempre. Acorda sobressaltada, corre até a cama do filho.

SANTA (A cama de Jesus está vazia) – Santo Deus: é ele! Ele

vai me matar! (Desesperada.) Jesus... Oh, Jesus, pelo amor de

Deus, apareça!... (Em pânico procura em volta. Jesus surge,

sorrindo, das sombras com uma faca na mão e uma laranja

em outra.).

JESUS (Santa, em estado de choque) – Eu tô aqui, Santa!

(Tranqüilamente.) Estava tentando descascar essa laranja para

você... Não consegui!

SANTA (Mal consegue falar) – Solta essa faca, solta! (Jesus

resiste, sorridente.) Solta Jesus, por favor! (Movida por um

impulso repentino.) Solta, amaldiçoado, solta!... (Chora.).

JESUS (Soltando a faca) – Pronto, soltei... Acabou!

SANTA (Apanha a faca e guarda embaixo do travesseiro.

Respira aliviada) – Vou guardar essa merda, antes que você

faça uma besteira. (Pausa.) O Diabo atenta.

JESUS – Santa: (pára. Pensa cauteloso.) tô achando você

meio perturbada!

SANTA – Perturbada não: desconfiada! Desde pequena que

quando eu sonho, ou aconteceu ou está pra acontecer.

JESUS (Cortando, curioso) – Acontecer o quê?

SANTA (Dissimulando) – Deixa pra lá! Você vai entender

nunca! (Pausa. Desconfiada.) Quem vai na cabeça dos outros

é piolho. (Perversa.) Seu pai tá armando contra mim. (Em outro

tom.) Tá usando você: eu tô avisando...

JESUS (Furioso) – Ele não é meu pai, já disse. Não é.

SANTA – É, e está acabado, pronto! (Pausa. Olhando para

fora de cena.) Ainda está escuro...

JESUS (Serenando) – Ainda não matei o sono.

SANTA – Vamos dormir? Ainda não amanheceu direito.

JESUS (Deitando-se em sua cama) – Vamos... Quem dorme

seus males espanta...

SANTA (Levanta-se em pânico) – Não Jesus: de hoje em

diante você dorme aqui comigo.

JESUS (Estranhando) – Por quê?

SANTA (Tresloucada, inflexível) – Não faça perguntas:

obedeça! (Jesus caminha até a cama de Santa. Deita ao lado

dela, displicentemente arruma o travesseiro. Santa, movida

por um impulso repentino.) Jesus: dê-me suas mãos. (Arruma

um lençol em forma de atadura.).

JESUS (Estranhando) – Mãe, pra quê?

SANTA (Agressiva) – Já disse: não faça perguntas, não fale,

obedeça! (Pausa. Reflete, decide.) Dê-me as mãos!

JESUS (Submisso, dando-lhe as mãos) – Só assim você fica

mais tranqüila.

SANTA (Firme) – Fico.

JESUS (Estendendo-lhe as mãos) – Toma.

SANTA (Com rapidez o amarra) – Pronto, acabou! (Em outro

tom.) O pano evita de você se machucar. (Desconfiada.) E me

machucar. (Olhando o travesseiro.) Se você tiver alguma

necessidade me chama tá?

JESUS (Surpreso, concorda com a cabeça. Pausa) – Você tá

ficando doente, mãe, muito doente!

SANTA (Fora de si) – Doente não... (Pausa.) O sonho!...

JESUS – Mãe, que sonho?

SANTA – Cala a boca e vai dormir.

JESUS – Mãe!

SANTA (Cortando-o) – Cala a boca e vai dormir!

JESUS – Mãe!

SANTA – Cala a boca! (Ameaçando-o.) Eu já mandei calar a

boca! (Jesus engole em seco, soluça e adormece. Santa,

cautelosamente, senta na cama, afasta-se de Jesus. Pega

algumas caixas. Dá uns goles de bebida e começa a montar

algumas flores, cantando.) Era uma sexta-feira, um lago mal-

assombrado: à noite sempre... (Refletindo, pensativa.)

Qualquer tempo passado foi melhor que o tempo presente.

(Melancólica.) E você não tem culpa. (Aproxima-se de Jesus,

que dorme.) Jesus: você não tem... Mas é preciso ferir, ferir

bem fundo, mortalmente o Zé Luis. (Pausa.) E você, meu filho, é

a única arma que tenho. (Patética, voltando às flores.) Com o

tempo, as coisas foram se moldando. Se não formávamos uma

família perfeita, vivíamos em paz: Zé Luiz e Dona Ismênia no

primeiro andar; eu, Jesus e a madrinha no térreo. Se os dois

não engoliam a gente, também não falavam nada... (Pausa.)

Porém, aquela paz aparente era sinal de tempestade... A

madrinha parecia mudar, ficava o dia todo na varanda, de vez

em quando olhava o Jesus com os olhos de quem não vê nada,

não chorava, não sorria, quase nunca subia ao primeiro andar...

(Pausa.) Certo dia, sem alvoroço, ela amanheceu morta, morta

como um passarinho. Fomos para o enterro. (Pausa.) O Zé Luis

ao lado da mulher, cabisbaixo, nos olhou enviesado.

(Enraivecida.) O peste era tão ruim, que não derramou uma

lágrima, e, a branquela da mulher dele, nem se fala... (Em outro

tom.) Seca igual a um varapau. (Em tom de fofoca.) Tinha o

útero baixo, não sustenta filho: faz, mas não vinga. Tantos faça

que não nasce... (Revoltada.) Castigo! Quando voltamos do

enterro, encontrei minha maleta e minha cama em cima de uma

carroça. Dona Ismênia, braba igual um siri, dizia para o

cocheiro: “Inácio: toca daqui com esse povo”. Apontava a

entrada, falava com tanto ódio que chegava a tremer. “Pretinha:

não se esqueça de levar o doidinho...” (Pausa.) A criadagem

caiu na risada. (Furiosa.) Ele, o Todo-Poderoso, parado vendo

tudo, mudo e surdo. A tudo via e a tudo consentia. Não tomava

uma atitude sequer em nosso favor!... (Vingativa.) Agora está

pagando com uma ferida que lhe está comendo a perna.

(Pausa.) E em breve vai lhe comer o pé, o dedo... (Saudosa.)

Ah, o dedo, aquele dedo que me bolinava e me deixava louca de

tanto prazer. (Uma viagem sexual em si mesma. Luz cai em

resistência.).

Cena cinco

SANTA (Engomando uma trouxa de roupa. Jesus entrando

na ponta dos pés, por trás de Santa, sorridente. Esconde

atrás de si uma estampa da Virgem Maria) – Era uma sexta-

feira, um lago mal-assombrado...

JESUS (Emite um som) – Pô: assustei? (Santa simulando

medo.).

SANTA (Virando-se) – Um pouquinho. Tava aqui distraída,

passando tuas roupas... (Pausa.) E pensava nesses dias: está

tudo perdido. (Notando que Jesus está lhe ocultando algo.) O

que você tem aí?

JESUS (Defendendo-se, bem humorado) – Não, nada não!

SANTA (Deixando-se levar) – Moleque: você não me engana.

Deixa eu vê, deixa?

JESUS – Quem se apressa come cru.

SANTA (Mudando de tom) – Deixa eu vê?

JESUS (Ainda descontraído) – Não.

SANTA (Enervando-se) – Não, coisa nenhuma. Vamos:

mostra! (Pegando o chinelo, descontrolando-se.) Você não

aprende... A gente não pode lhe dar o pé.

JESUS (Rendendo-se, livrando-se) – Pronto: tá aqui (expõe.)

a estampa. Um retrato do Coração de Maria. (Cauteloso.) Frei

Martinho me deu.

SANTA (Confusa) – Frei Martinho?... E você não estava

vendendo flores?

JESUS (Temeroso) – Tava...

SANTA (Desconfiada) – Você conta esta história direito,

senão...

JESUS (Cortando) – Foi assim: logo cedinho eu fui pra porta do

armazém vender flor. O padrinho também, hoje chegou cedinho,

todo sorridente, puxando conversa. Se aproximou, me olhou de

cima para baixo e foi perguntando: “menino, qual é a sua

idade?”

SANTA – Menino?... E você não tem nome, não?

JESUS – Calma. Ele sabe muito bem o meu nome, só esqueceu

de falar...

SANTA – Oh, meu Deus! (Pausa. Enciumada.) Defende: você

tem todo o direito de defendê-lo...

JESUS (Indiferente) – Ele falou que ia me dar uma roupa

novinha, de suspensório e tudo, pelo Natal.

SANTA (Intrigada) - Que milagre foi esse, hein? (Para si.) Essa

alma quer reza.

JESUS (Entusiasmado) – Eu tenho muito orgulho de ter o

doutor José Luis como padrinho. (Indiferente.) Ele me chamou

no escritório, e perguntou se eu estava com fome. Eu disse que

sim, e ele pôs café com bolacha e disse que eu podia comer à

vontade.

SANTA (Alertando) – Essa história não vai dar certo... (Pausa.

Para si.) Isso não vai acabar bem...

JESUS (Indiferente) – Quando peguei na xícara... (Indeciso.)

ele viu meu pulso ferido, roxo por causa do lençol. Ficou bravo

como um leão.

SANTA (Repentinamente enfurecendo-se) – Bravo? Bravo por

quê?

JESUS (Timidamente) – Ele disse que isso não se faz com

uma criança.

SANTA (Explosiva) - E o que ele fez e faz não conta, não?

JESUS (Na defensiva) – Não sei Santa.

SANTA (Olhando-o no olho) – Escute bem. (Pausa.) Olhe nos

meus olhos, desgraçado! Escute aqui: todas as desgraças que

caíram sobre nossas cabeças e outras que ainda estão por vir...

(Pausa.) Ele é o único, o único culpado da nossa infelicidade.

Grave bem isso: seu pai nos condenou a isso, entendeu?

Repita. (Pausa. Jesus em silêncio.) Entendeu?

JESUS (Explodindo) – Entendi, entendi. (Afasta-se.).

SANTA (Cuidadosamente curiosa) – E aí... ele perguntou

como você fez os ferimentos? (Em outro tom.) Perguntou?

JESUS (Apressadamente) – Perguntou.

SANTA – E você, o que respondeu? (Jesus cala.) É com você

que eu estou falando.

JESUS (Temeroso) – Sim?

SANTA – Não se faça de bobo. O que você respondeu?

JESUS (Timidamente) – Respondi que foi você.

SANTA (Explodindo) – Bonito: fez a caveira da sua mãe. Fez?

(Agredindo-o.) Vai pra rua, vai! E grita: grita bem alto pra todo

mundo ouvir que sua mãe é uma desclassificada, vagabunda,

uma puta cachaceira, que não cuida de você, te maltrata, (por

cima de Jesus, sufocando-o.) te bate, te mata de fome... Vai!

(Jesus, depois de muito lutar, consegue fugir, em pânico.).

JESUS – Me deixa... Você está bêbada, bêbada! (Pausa.

Baixinho.) Sua bêbada! (Chora, abraçando a estampa do

Coração de Maria.).

SANTA (Transtornada) – Bêbada. Bêbada não: queimada!

(Curiosa, querendo restaurar o diálogo, controlando-se.)

Isso não vem ao caso. (Pausa.) E aí: o que mais o seu pai

disse?

JESUS (À distância, defendendo-se) – Que se a senhora não

tivesse um gênio tão forte, soubesse perdoar, as coisas seriam

diferentes. (Pausa. Cauteloso.) Nós teríamos casa e comida

decente. Ele disse ainda que o estrago que você está fazendo

em nossas vidas é tão grande, que no futuro, não há mais

remédio.

SANTA (Explosiva) – Filho da puta! Quer dizer que tudo estaria

resolvido se eu ficasse calada, quietinha, recebendo as ordens

do Todo-Poderoso? (Pausa.) Afinal de contas, quem perdeu fui

eu. Não era preciso escândalos. Tudo devia ficar abafado em

família. (Histérica.) Que família: grande família formada de

madrinhas, bastardos, doidos e cancerosos. (Jesus com olhos

dilatados.) Cancerosos sim. E é pra se espantar mesmo. Ou

você pensa que aquela ferida na perna de seu pai não é

câncer? (Jesus apavorado, afasta-se.) Câncer... (Soluça

histérica.) Desgraçado: tá pagando o que me fez...

JESUS (Aproxima-se) – Santa: por que tanto ódio, por que

tanta amargura? Por quê?

SANTA – Deixa de besteira, menino. (Pausa.) Não me venha

com essas palavras de romance. (Pausa.) Romance não: isso é

coisa de padre... Foi ele, não foi que pôs essa baboseira na sua

cabeça? (Pausa.) Parece um papagaio.

JESUS (Ingênuo) – Veja Santa, veja: não é bonita a santinha

do quadro?

SANTA (Tentando restaurar o diálogo) – É. Mas você ainda

não terminou de me contar a história desse presente.

JESUS (Entusiasmado) – Pois bem. Depois que eu contei a

história desse machucado para o padrinho, ele me mandou falar

com frei Martinho!

SANTA (Explodindo) – Eu estou comovida com tanta bondade!

JESUS (Indiferente) – O padrinho não é mau: todos gostam

dele... (Pausa.) É bom de verdade!

SANTA – Mas não te assumiu e nem te assume como filho...

(Com rancor.) Nos jogou no olho da rua...

JESUS (Cortando, defendendo) – Ele não: Dona Ismênia!

SANTA – Os dois são farinha do mesmo saco: não prestam.

JESUS (Distante, indiferente, falando pra si) – Fui falar com

frei Martinho. Quando cheguei lá, ele estava celebrando a

missa. (Em outro tom.) Quando a missa acabou ele veio

correndo ao meu encontro. Com um sorriso desse tamanho.

Fomos à sacristia, e ele me ensinou uma porção de coisas.

Contou a vida de São João. (Ingênuo.) Aquele que cortaram a

cabeça dele e puseram na bandeja... Me deu os santinhos aqui.

(Santa olha de relance.) Esses pequenos. (Mostra-os.).

SANTA (Estranhando) – E os grandes? Ou melhor: aquela

maior ali? (Apontando.).

JESUS (Confuso) – O grande?

SANTA – É: o grande.

JESUS (Afastando-se) – O grande eu comprei.

SANTA – Comprou?

JESUS – Comprei com o apurado das flores... (Justificando-

se.) Para ajudar as obras de caridade da igreja.

SANTA – Caridade?

JESUS – Sim.

SANTA – A Igreja não precisa de merda nenhuma. Quem

precisa de caridade somos nós. (Pausa. Controlando-se.)

Sobrou algumas flores?

JESUS – Sobrou.

SANTA – E o que você fez com elas?

JESUS – Eu dei ao padre para enfeitar o altar de Nossa

Senhora.

SANTA (Indignada) – E a mercearia, o leite, os remédios,

roupas e calçados, quem vai pagar Jesus? Quem?

JESUS (Afastando-se, indiferente) – Não sei. (Senta em um

canto e brinca com os santinhos.).

SANTA (Sentindo-se impotente, abre algumas latas

dispostas em cima da mesa) – Tá vendo? Não tem feijão, não

tem café, não tem açúcar. (Aproximando-se.) Tá vendo,

desmiolado, tá?

JESUS (Afastando-se, indiferente) – Me deixa mãe!

SANTA – Sabe de uma coisa? Eu não vou ficar perdendo o meu

tempo com uma leseira dessas. Eu só tenho por mim, eu

mesma. (Pausa.) Hoje vou dar uma esticada e acabar a

encomenda da Dona Matilde, que com ela é tiro e queda: é

entregando as flores e recebendo o dinheiro.

JESUS (Parando de brincar, pensativo, aproximando-se de

Santa) – Mas... (Santa virando-se de surpresa.) Por que você

não acaba com essa guerra boba?

SANTA – Guerra? Que guerra?

JESUS (Cauteloso) – Da senhora com o pessoal do sobrado...

SANTA – Vamos facilitar as coisas. Com o seu pai, não é?

JESUS (Firme) – É.

SANTA (Retomando o tom agressivo) – Mas é isso que ele tá

querendo: fazer de mim uma demente sem vontade própria,

como a mãe dele me fez por muito tempo. Hoje, a história é

outra. (Pausa.) Ele ainda vai bater na minha porta, pedindo um

pedaço de pão. Ah, se vai!

JESUS (Indignado) – Pra que tanto ódio? Pra quê?

SANTA – O que a gente não consegue entender é melhor

deixar pra lá... Você é muito criança. Hoje eu não quero azedar

seu coração com meu ódio. Vai brincar: tenho um monte de

flores para acabar. (Volta às flores. Jesus aos santinhos.

Santa fala para si.) Eu nunca tive espírito para agüentar certas

coisas. Pra mim pouco importa não ter conhecido meus pais, ser

criada de favor. (Prepotente.) Favor não: alto lá! Ninguém pediu

ou forçou eles a me adotarem. Se assim fizeram, foi porque

quiseram. (Pausa.) Sobras não: nem pensar! Quando pequena

eu não me importava muito, com certa idade você cansa de ser

segunda mão, metade, pedaço. Eu crescia e esse ódio crescia

também. Não dava mais pra suportar, eu não apenas desejava,

eu teria que ter – não a bijuteria -, mas o brinco de ouro. Não era

o vestido de seda que eu queria: mas o vestido da madrinha que

eu deveria ter... Não se pode passar a vida com prêmios de

consolação. Quando tudo parecia estar estável, a madrinha –

cheia de reumatismos -, da igreja para o quarto, do quarto para

a igreja. (Pausa.) E quando eu me sentia senhora absoluta

daquelas terras, fazendo e desfazendo, você aparece, José

Luis. Não como prêmio maior, e sim como meu patrão, de

casamento marcado e tudo! (Pausa melancólica.) Era um

pedaço de homem, de deixar qualquer uma de queixo caído. Ele

não tinha consideração nenhuma a elas, a não ser para

desgraçá-las e abandoná-las na Rua do Cercado. Ele sempre foi

muito soberbo, nunca levou em conta os sentimentos de

ninguém. (Pausa.) Por um pedaço de cana ele punha um

morador no olho da rua. (Jesus sonolento abre a boca.) Você

tá com sono? (Levanta-se, bebe um gole.).

JESUS (Frágil) – Tô. (Aproximando-se com as cordas de

lençol que pegou na cama.) Toma: amarra, pois assim você

fica mais tranqüila. (Santa aproxima-se, faz as amarrações,

acompanha-o até sua cama, volta às flores, desta feita em

cima de sua cama.).

SANTA – Era uma sexta-feira, um lago mal-assombrado, de

noite sempre chovia e a carimbamba cantava assim...

(Fechando os olhos adormece, lentamente.) Amanhã eu,

amanhã... (Luz. O pesadelo volta a atormentá-la. Uma reprise

das cenas anteriores. Acorda sobressaltada. Olha em volta.)

Jesus! Jesus!

JESUS (Débil) – Ahn, ahn!... Não posso: eu tô com dor, muita

dor.

SANTA (Preocupada, corre até sua cama) – Dor? Que dor,

menino?

JESUS – Aqui mãe, aqui.

SANTA (Olhando, examinando os pulsos de Jesus) – Deixa

eu vê: tá inchado. (Pausa.) Vou esquentar água e pôr umas

compressas. (Soltando as amarras.) Fique bem quietinho, que

logo ficará bom. (Santa pondo água no fogo.) Jesus: isso me

parece que não é conseqüência apenas das ataduras, não.

Você apanhou sol demais, comeu alguma comida estragada, sei

lá! (Especulando.) Dona Carmelita falou que viu você no

matadouro.

JESUS (Débil) – É conversa.

SANTA (Cortando) – Jesus.

JESUS (Corrigindo) – É: foi.

SANTA – Eu sabia... (Aproximando-se.) Não ficou acertado

que eu não queria mais você no matadouro? (Retornando ao

fogão.) Toda vez que você anda por aquelas bandas, volta

doente. (Advertindo-o.) Tá vendo: se tivesse me ouvido não

estava nesse estado.

JESUS (Sentado na cama, como se estivesse movido por

uma mola) – Santa: você lembra a Esperança? (Santa

aproxima-se, fazendo compressas.) Sim, Esperança, filha da

Dona Berenice, lá da Rua do Cercado?

SANTA – Sim, sei. (Repreendendo-o.) Eu já disse: não quero

você com essa gente.

JESUS – Eu não tava com o povo da Dona Berenice, não.

SANTA – E então, e daí?

JESUS (Aparenta cansaço) – Você prometeu não ficar brava!

(Santa afirma com a cabeça.) Eu vi o carioca esfaqueando a

Esperança. (Santa, estupefata, solta as compressas.).

SANTA (Afastando-se em pânico) – E matou? (Dá-lhe as

costas.).

JESUS (Suando em bicas) – Ele chegou à tardinha, para pegar

a bóia das crianças. Ele, desde cedo, tava de orelha em pé, tava

irado: haviam enchido a cabeça dele. (Pausa. Santa respira,

refazendo-se do choque anterior.) A matança tava cheia que

ela vivia se deitando com o soldado Genaro. O negro ficou cego

e disse, segurando a faca: “a mãe dela pode ser puta, mas a

minha mulher não vai ser não”. (Pausa.) Quando ela chegou,

ele não contou outra história. Nem limpou a faca que acabara de

sangrar o garrote Mimoso. (Jesus, em transe. Santa, de

joelhos, entra em desespero.) Empurrou várias vezes no

bucho, rasgou pra cima, rasgou pra baixo. Jogou a faca e fugiu.

(Pausa. Sufocando.) Ela ainda caminhou um pouco até o

barraco de seu Antônio, com o fato arrastando e os cachorros

fazendo uma festa com um pedaço de tripa entre os dentes.

SANTA (Explodindo, tampando os ouvidos) – Pára Jesus:

pelo amor de Deus, pára!

JESUS (Indiferente, zombeteiro, sentindo um prazer

mórbido na narrativa) – Seu Chico pedia ajuda, e, juntos,

fomos pondo tudo de volta no corpo de Esperança, que ainda

respirava. (Pausa.) Uma porção de tripa misturada com terra e

poeira. Seu Horácio espantava os cachorros. (Lançando-lhe

vômito no rosto, vai desfalecendo).

SANTA (Fitando-o. Jesus desfalece) – Por Deus! (Limpa o

rosto e corre em desespero.) Pelo amor de Deus! Façam

alguma coisa: meu filho está morrendo. Dona Benedita, Dona

Marieta: ajudem pelo amor de Deus, ajudem! (Sai. Blecaute.

Luz sobe em resistência. Jesus, sem camisa, com atadura

na cabeça e nas mãos, sentado na cama, bebe chá com um

pedaço de pão. Vozes fora, música de fundo, luz no

Coração de Maria na parede.).

VOZ I – Desclassificada: meio-dia em ponto e essa mulher

bêbada feita uma cachorra, incomodando o povo de bem.

VOZ II – Desnaturada: deixou o filho queimando em febre.

VOZ III – Se não fosse Dona Berenice, o coitadinho já estava na

sepultura.

VOZ IV – As más línguas dizem que ela foi esperar o Posto de

Saúde abrir, no boteco da Madalena. (Jesus perplexo.).

VOZ I – Depois de bêbada, um magote de vagabundos arrastou

ela para aquele partido de cana, que vai findar no quintal da

Cotinha. Quem viu, diz que foi uma pouca vergonha.

VOZ II – Parecia um bocado de urubus em cima da carniça.

SANTA (Completamente descontrolada, entrando) – Magote

de raparigas, fuleiras: vão cuidar da vida de vocês. (Pausa.) E

suas filhas!

VOZ III – Fecha tua janela, Joaninha, que ela até hoje tá com os

demônios no couro.

SANTA – Não me provoque mulher: eu vou terminar dizendo o

que você tem de fechar, selar. (Janelas batendo, dando a

impressão de serem fechadas.) Jesus, Jesus: você tá melhor,

filho... Tá? (Pausa.) Então vem ver a sua mãe, vem! (Jesus

petrificado, aos poucos redescobre os movimentos e

caminha com calma. No centro, pára.).

JESUS (Surpreso, ainda fraco) – Em que estado a senhora

está?

SANTA (Faz uma mesura, tropeça e cai) – Eu estou em

estado de graça! (Caindo no chão.) Em estado de graça, ouviu

bem?

JESUS (Chocado) – Mãe: você não tem conserto!

SANTA (Esforçando-se, sem conseguir se levantar) – E você

tem?... (Fitam-se odiosamente.) Vem cá: me ajuda! (Jesus

fica paralisado.) Vem: eu estou mandando! (Querendo

desesperar-se.) Vem! (Jesus não se move.) Por Deus: me

ajuda aqui... (Jesus sorri, zombeteiro. Caminha, em um

ritual. De bom grado, ela estende-lhe as mãos. Ele as

amarra, arrastando-a até sua cama. Depois, ajuda-a a se

deitar. Santa está ébria, completamente fora de si.) Era uma

sexta-feira, um lago mal-assombrado, à noite nem chovia...

JESUS (Com olhar zombeteiro, cheio de malícia) – Santa

durma, Santa...

SANTA (Assustada) – Eu tenho medo de dormir... dormir e

sonhar.

JESUS – A vida é um sonho, Santa, apenas um sonho.

SANTA (Repete, adormecendo) – A vida é um sonho.

JESUS – É um sonho. (Aproximando-se, de faca em punho,

esfaqueia Santa. Uma reprise dos sonhos anteriores. Santa

jaz sobre o leito. Jesus retira das caixas a coroa de noiva e

flores diversas. Santa continua com as mãos amarradas. Ele

enfeita-a com a coroa e com as flores, que joga no ar e

espalha na casa, em completo desvario.) Você agora está

purificada, Santa. Assim como a Virgem, em estado de graça.

(Correndo, louco.) Em estado de graça... (Cai exausto, no

centro. Lentamente começa a cantar.) Era uma sexta-feira,

um lago mal-assombrado. (Apaga a luz, interruptor ou

candeeiro. Permanece em transe, cantarolando. Luz no

Coração de Maria.) À noite sempre chovia... (Blecaute.).

FIM