em estado de graÇa€¦ · · 2016-01-28jesus – pré-adolescente com traços aparentes de...
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PERSONAGENS
SANTA – Jovem senhora preta, com aspecto amargurado.
De certa forma, conserva traços de beleza.
JESUS – Pré-adolescente com traços aparentes de
excepcionalidade. De cor branca.
CENÁRIO
Casebre com sala única, duas camas de solteiro dispostas
em sentido oposto, no centro, mesa com garrafa de café e
utensílios domésticos. Caixas de sapatos com utensílios
para fazer flores. Embaixo da cama de Santa encontra-se
uma mala de viagem surrada e garrafa de aguardente. Nos
móveis e paredes paira um aspecto de desolação
identificando-se com o estado interior das personagens.
Cena um
SANTA (Acordando sobressaltada, benzendo-se caminha
até Jesus. Constata que o mesmo está dormindo, voltando
para sua cama) – Santo Deus: por que este desassossego,
esse pesar, esse medo? (Em tom crescente, apavorada.)
Toda noite é a mesma coisa, esse pesadelo que me tira os
sonhos... (Em desespero crescente.) Ele surge das
profundezas, pula sobre mim: rasgando, enfraquecendo,
furando. De repente tudo é vermelho, encarnado... E eu pouco a
pouco vou sufocando, em uma poça de sangue. (Aos gritos.) A
vista vai escurecendo e tudo é escuridão, escuridão!
(Aproxima-se de Jesus.) E você: é sempre você! Meu menino!
Meu assassino! (Jesus acorda assustado.).
JESUS (Com os nervos à flor da pele querendo entender a
situação) – Pára mãe, pára! (Pausa. Os dois se fitam.) Pára:
você vai acordar os vizinhos, mãe! (Aproximando-se.).
SANTA (Dissimulando) – Pouco tô me lixando para essas
fofoqueiras.
JESUS – Mãe: o que houve? Depois que a gente veio pra
cidade, toda noite é a mesma coisa... Toda noite. (Pausa.) O
que houve? Você tá sentindo alguma dor? (Abraçando-a.).
SANTA (Em pânico, afastando-o violentamente) – Não me
toque: não me toque! (Enlouquecida.) Não me toque, seu doido
de merda...
JESUS (Surpreso) – Mãe!...
SANTA – Seu assassino nojento! Puxou ao pai! (Pausa. Tenta
controlar-se.) Até na cor.
JESUS (Tentando ser compreensivo) – Você não está bem,
mãe! (Tentando compreender.) Seu remédio: onde está o seu
remédio? (Em outro tom.) A senhora não devia parar de tomar
os remédios. (Pausa.) O médico bem que recomendou...
SANTA (Confusa, desesperada) – Cala a boca, desgraçado!
Cala a boca!
JESUS (Cortando, submisso) – Eu só queria ajudar...
SANTA (Fugindo) – Ajudar, ajudar... Ajudar coisa nenhuma!
Ninguém pode me ajudar. Ninguém!
JESUS (Cortando) – Mas...
SANTA (Interrompendo violentamente) – Não tem mais nem
menos! Eu já disse para calar. (Jesus engole em seco. Santa,
no fundo da cena, desarruma uma trouxa de roupa suja,
buscando algo.) Esta não serve. (Corre até Jesus, despindo-
o e vestindo-o simultaneamente. Jesus submete-se
contendo a fúria, diante da imposição de Santa.) Que cara é
essa? Parece até que viu alma! Eu sou assim mesmo, você já
devia estar acostumado. (Jesus continua enraivecido.)
Vamos: vista as calças!
JESUS (Irredutível) – Não!
SANTA (Impondo) – Eu quero que você vista.
JESUS (Firme) – Não, não e não. É cedo ainda!
SANTA (Descontrolando-se) – Já amanheceu. Você vai vestir,
porque eu quero que você vista... (Ameaçando-o com a
sandália em punho.).
JESUS (Entredentes, amedrontado) – Não, mãe: essa é muito
feia!
SANTA (Visivelmente sarcástica) – Feia? Então você acha
essa roupa feia? (Abanando-lhe a cara com o chinelo.).
JESUS (Para si) – Parece esmoler. (Defendendo-se, esconde
o rosto com as mãos.).
SANTA (Impiedosa) – Eu ouvi bem: esmoler! Você falou
esmoler? Pois é o que você é: esmoler! (gritando histérica.) e
doido, doido! (Aproxima-se lhe rasgando as roupas com
violência.) Seu pai fez de nós esmoler. Nós somos esmoleres.
(Jesus foge, explodindo.).
JESUS – Chega mãe, chega...
SANTA (Fora de si) – Tá achando ruim? Vai morar com o teu
pai, vai!
JESUS (Em um canto) – Ele não é meu pai: não é!
SANTA (Aos gritos) – É, é. É sim, teu pai! (Pausa.) Foi ele que
me emprenhou.
JESUS (Timidamente) – Ele disse que não é meu pai.
SANTA (Maldosamente) – Ele não diz por que tem vergonha.
Vergonha de ter posto no mundo um monstro como você.
JESUS (Tapando os ouvidos) – Mãe: não diga isso!
SANTA (Amargurada) – Digo, digo sim. Você destruiu minha
vida, traste. (Em outro tom, aproxima-se e começa a vesti-lo.)
Hoje você fica bem perto. Perto não, na porta do armazém do
pai... Vendendo flores a todos os fregueses. E quando eles
pararem e puxarem conversa (imitando os fregueses.):
“coitadinho é deficiente”... “Meu filho, quem é a sua mãe?” Você
responde: “Santa. Santa de Lima, que mora da Rua da Ladeira”.
“E seu pai, meu bichinho?” Você grita bem alto: “José Luis” – e
aponta bem na cara dele! Entendeu? (Jesus balança a cabeça
afirmativamente.) Agora vai. (Jesus indeciso.) Vai... (Áspera.)
Eu estou mandando! Vai! (Jesus sai. Santa aproxima-se da
sua cama, procura embaixo, tirando uma garrafa de bebida.
Bebe uns goles e torna a guardá-la. Em um canto pega
algumas caixas. Uma delas cai, abrindo-se. Fica à mostra
coroa e véu de noiva. Um misto de loucura passiva e
saudade invadem a personagem. Santa pega o véu e
caminha de encontro à cama, apertando-o ao peito.) Poderia,
mas não foi. Eu mesma nunca sonhei com casamento, noiva e
essas baboseiras que todas sonham. Eu só queria ter um
homem, me juntar e fazer uma ninhada de filhos. A madrinha
tinha que aparecer com aquela revista de noiva! (Pausa.) Era
tanta noiva, que não acabava mais. (Imitando a madrinha.)
“Santa: está decidido! Você vai ser a noiva mais bonita desta
cidade... (Pausa.) Não tive filha: minha filha é você. Casará com
decência com um bom homem (em outro tom.) que eu
escolher”. (Em desabafo.) Ela sempre decidia, escolhia. Tudo
me era dado já pronto, acabado. E não era isso que eu queria:
não era Antônio, Sebastião, moço rico ou da cidade... (Pausa,
semblante pesado, desfazendo-se em alegria.) Era ele: o Zé
Luis que eu queria... (Tom enérgico.) “Com Zé Luis não pode: é
filho da Madrinha e ainda por cima está de casamento marcado
com a moça da capital, Dona Ismênia, filha do Governador”.
Santa era apenas uma enjeitada, órfã que botaram na porta da
Madrinha; apenas uma serviçal que eles educaram, deram
roupas, estudos... (Em outro tom.) Como dizia a Madrinha:
“uma parenta postiça, (ironicamente.) que amamos como todo
o coração. Ela aqui, não dá um prego em uma barra de sabão, a
não ser cuidar da roupa do Zé Luis...” (Querendo entrar em
devaneio.) Ah, Zé Luis... Luis. (Vozes em off.).
Cena dois
VOZ I (Chamando) – Santa: oh, Santa! Tá aí o menino? O
doutor Luis mandou deixá-lo. Já passava do meio-dia e o
menino com a cabeça descoberta, oferecendo flor, exposto ao
sol e à poeira.
VOZ II – Coitadinho: como Deus pôs no mundo uma mãe tão
desumana? (Jesus entra cabisbaixo, fatigado.).
SANTA (Despertando-se atônita) – Desumana um cacete,
rapariga velha: vou lhe quebrar a cara! (Filho impedindo-lhe a
saída. Barulho da janela fechando-se.).
JESUS – Não, Santa... Eu tô com o pé doendo... (Pausa.) Com
fome. (Senta-se.).
SANTA (Curiosa, aproxima-se) – Foi lá?... Ficou na porta do
armazém? Viu ele? (Jesus permanece cabisbaixo.) Viu?
(Segurando-lhe pelos braços.).
JESUS – Vi mãe, vi...
SANTA – Ih!... Inferno: demente não serve pra nada... Só pra
comer e cagar. Estou aprumada!
JESUS – Pára de falar, Santa... Você fala, fala, fala – chega! Me
dá dor de cabeça. Às vezes até parece que minha cabeça vai
estourar. (Fugindo.) Pára, Santa, pára...
SANTA (Chantageando-o emotivamente) – É assim que você
me paga, não é? Eu só mereço isso mesmo, por passar nove
meses carregando você no bucho, sofrendo igual uma
condenada... Tá bom: vamos mudar de assunto. O pai é seu,
não é meu!
JESUS (Comovido, aproxima-se, despejando o conteúdo da
sacola, espalhando-se pelo chão dinheiro e flores) – Tá aí,
Santa: o meu apurado tá aí. (Pausa. Santa examina as notas
com desdém.) Tem bastante dinheiro. (Pausa. Justificando-
se.) Ontem eu não apurei nada...
SANTA (Olhando as flores) – Mas sobrou muitas flores... E
olhe que eu caprichei. Veja essas violetas aqui. Na cidade
inteira, e até mesmo na capital, ninguém faz melhor que eu...
(Pausa.) E você não vendeu uma, uma sequer. (Jesus
aproxima-se, temeroso.) Ninguém quis?...
JESUS – Ninguém quis. (Constatando.) Você bebeu, Santa?
Bebeu novamente?
SANTA (Dando de bruços) – Só uns goles para espairecer.
JESUS – Você não pode beber: o médico disse que eu devia
cuidar de você... Ele não falou que o remédio que você devia
tomar é controlado?
SANTA – Tá bom, tá bom... Agora deixa de frescura e vai lavar
os pés. (Jesus sai. Santa destampa um prato e põe sobre a
mesa. Jesus retorna, senta e come: cabisbaixo. Santa senta
na cama, abre uma caixa e começa a fazer flores e a
cantarolar.) Era uma sexta-feira, um lago mal-assombrado. À
noite sempre chovia e carimbamba cantava assim: amanhã eu
vou... Amanhã eu vou: amanhã eu vou!... (Luz em resistência.).
Cena três
Sob o foco de repetição da cena introdutória, Santa dorme:
Jesus idem. Santa inquieta, Jesus sereno. Mudança de luz.
Vulto, de faca em punho, esfaqueia Santa. Mudança de luz.
Os dois permanecem em lugar de origem. Santa acorda,
sobressaltada, transtornada, e corre até Jesus, agredindo-o.
SANTA – Você quis matar-me, desgraçado, quis?
JESUS (Fugindo apavorado) – Você está doida, doida...
(Chora.).
SANTA (Fora de si, corre até a mesa, pega a faca.
Empunhando-a, aproxima-se de Jesus) – Se eu adivinhar que
você quer acabar com a minha vida, desgraçado, eu acabo
primeiro com a tua. Tá ouvindo? (Jesus corre, encolhendo-se
em um canto.) Isso é o teu pai que vive pondo minhocas na tua
cabeça.
JESUS – Pai não: ele não é meu pai. É padrinho...
SANTA – Padrinho uma ova! Seu pai... Seu pai.
JESUS – Não é meu pai! Não é!
SANTA – Então você é obra do Espírito Santo, não é? Larga de
ser leso: ele não te reconhece como filho, pra não ter drama de
consciência. É melhor desconhecer do que ter um traste como
você.
JESUS – É por isso mesmo...
SANTA (Cortando-o) – Isso o quê?
JESUS – De você ser tão má, tão amargurada... Viver cheia de
ódio, que o padrinho disse que só dava pra gente pão e água.
(Pausa.) E ainda era muito... (Para si.) Você não merece...
SANTA – Ah: eu logo vi que você tava mudando, botando as
unhas de fora, logo vi... Tinha alguém fazendo você ficar contra
mim... (Pausa, tentando controlar-se.) Então ele disse que eu
era má, amargurada?... (Agressiva, aproxima-se.) Não foi?...
Não foi?
JESUS (Encolhe-se assustado, trincando os lábios) – Foi,
quer saber, foi... E disse mais: disse que você ia acabar bêbada
e doida como sua mãe, cheia de perebas e doenças do mundo.
(Pausa.) Morrer ao relento.
SANTA (Enraivecida) – Desgraçado! Eu tenho fé... Eu ainda
vejo a caveira dele primeiro... Vejo: ah, se vejo! (Faz menção de
sair, decidida.) Vou lá no armazém, armo um escândalo e fico
de peito lavado...
JESUS – Não vai, não, Santa. Ele falou ainda, que no dia em
que você fosse fazer arruaça na porta dele, ele mandava o
delegado lhe dar uma surra e botá-la no xadrez...
SANTA (Volta-se, explodindo) – Canalha! Nojento!... Como fui
eu gostar, amar... esse monstro: como?... (Enfurecida rasga
com a boca, o travesseiro. Assustado, Jesus foge. Sobre a
cama, Santa é um misto de confusão: dor, fúria, libido e
prazer. Da fronha cai uma foto. Em transe, Santa apanha o
retrato.) Como você foi a besta Santa. Como... Lembro como se
fosse hoje a casa em festa, tudo era alegria. José Luis acabara
de chegar da capital com o diploma de doutor. Ah, meu coração
pulou... (Pausa. Em outro tom.) Findo as festas da chegada,
tudo voltou aos conforme... A usina expirava fumaça, o gado no
pasto, e eu matava o tempo fazendo flor, junto da rede do doutor
Luisinho, que passava tardes e tardes lendo um monte de cartas
azuis, cor de rosa, cheirosas, perfumadas, cartas da capital...
Nunca aquele bode que vivia dando carreira nas filhas dos
moradores parecia tão sossegado. A filha da Palmira andou
dizendo que nunca andou com homem tão fogoso. Nas
redondezas não se falava em outra coisa: quem tivesse cabaço
que tomasse sentido. (Pausa.) Naquela tarde observei que ele
me olhava de jeito diferente. Não era como antes. Era de bicho
esfomeado. Tremi, tremi toda! Ele notou meu vexame. (Em
outro tom.) Fez finca-pé e a rede disparou: parecia canoa de
parque de diversão. A rede passava pertinho do meu rosto,
deixando no ar o perfume do moço bem tratado da capital.
(Pausa. Envaidecida.) Com o dedão do pé batia no bico do
meu peito, que escondido no corpete crescia, ficava duro,
parecia querer pular. Ele avançava: eu recuava. Afinal de
contas, Zé Luis era noivo, e a madrinha queria que eu casasse
de véu e grinalda. (Pausa. Pensativa.) Quantas e quantas
noites eu ouvi seus passos nervosos e um bater lento e ansioso,
como se ele aguardasse eu abrir a porta do quarto. Encolhida na
cama, eu desejava, estremecia, queria, desejava, mas tinha
medo. (Pausa.) Medo da madrinha, medo da língua do povo,
medo de pegar um bucho. Com o passar do tempo, ele tornava-
se mais afoito, não perdia a oportunidade, e eu não conseguia
mais me segurar... (Sensualíssima.) Aquela mão branca,
bonita, bem feita... Quando seu dedo duro me bolinava, pedia
passagem, eu me derretia. E, como cana-de-açúcar, me fazia
melaço. (Pausa.) Parecia próximo o casamento de Zé Luis, pois
não se falava em outra coisa... Outro dia peguei a Zita dizendo
para a madrinha (imitando-a.) “essa menina tá ficando amarela,
de olheira, magra, calada... Parece até que tá ficando pancada”.
(Em outro tom.) A madrinha mudou de assunto e disse que isso
ia passar, que era da idade... Só que não passava. Aproximava-
se a data do casamento de Zé Luis: a madrinha havia ido pra
cidade preparar o sobrado para as festas. Chovia, e eu estava
só em casa com o Zé Luis, que após o jantar parecia nervoso:
sentava, levantava e andava pra lá e pra cá. Eu cantava e fazia
flores. De repente, em uma fúria louca, ele pulou sobre mim. A
cesta com flores esparramou pelo chão. Ele, tal qual os cavalos
no pasto, fez de mim montaria, rasgou minha roupa, mordeu,
lambuzou... Eu gritava, não devia... Ele empurrava cada vez
mais forte, doía, sangrava, entrava, e, finalmente me senti
inundada, preenchida. A espera acabara e toda minha carne
agradecida dizia sem para aquele homem... Chegou o dia do
casamento: o comentário dos mais próximos era geral. “Santa tá
doente”, “essa menina não bate bem”, “desde pequenininha eu
achava que nela faltava um parafuso”. Santa para aqui, para
acolá. O tempo passou. Enquanto pude, pus um prato amarrado
na barriga, afrouxei as roupas, tomei chá de cabacinha.
Remédio nenhum dava jeito. A verdade caiu na boca do povo.
Zé Luis negou, jurou que não tinha nada com essa história.
Ismênia, a esposa de Zé Luis, ameaçou desmanchar o
casamento. A madrinha intercedeu: eu hein? Disse que eu
ficaria morando com ela na usina. José Luis e a esposa na
cidade... (Pausa. Com raiva.) “Patrão se divertir com
empregadas, não era novidade, isso sempre existiu. (Pausa.)
Com o passar do tempo, o povo esquece e tudo se resolve...
(Com cinismo.) Uma união abençoada por Deus, só ele pode
acabar. (Pausa.) Depois arrumo um besta pra tapar o rombo da
pretinha”. (Em outro tom.) Ismênia, depois de chorar muito,
concordou com a mudança. Antes de o bucho crescer, Zé Luis
não dava sossego. Depois passava semanas na cidade, e,
finalmente, só aparecia quando a madrinha chamava.
Compreendi que não signifiquei nada pra ele, nada... (Em outro
tom.) A barriga não parava de crescer. De repente, em pleno dia
de Finados, comecei a sentir dores insuportáveis: estava gelada.
Corro até o banheiro e vou deixando um rastro de suor por toda
a casa. Não há mais tempo. Algo se desprende de dentro de
mim e pede passagem. Aquela coisa escorrega perna abaixo...
batendo contra o solo frio do banheiro, e ele estava lá, roxo,
parado, parecia um ratinho morto. Movida por instinto diabólico,
penso destruir aquele pedaço de carne sem vida. Ao erguer a
mão para golpeá-lo ele começa a chorar. Algo amoleceu em
mim. (Em histeria, começa a chorar. Blecaute. Luz em
resistência.).
Cena quatro
Sob foco, Santa dorme inquieta. Em outro foco, Jesus
dorme tranqüilo. Momentos depois, ela vive o pesadelo de
sempre. Acorda sobressaltada, corre até a cama do filho.
SANTA (A cama de Jesus está vazia) – Santo Deus: é ele! Ele
vai me matar! (Desesperada.) Jesus... Oh, Jesus, pelo amor de
Deus, apareça!... (Em pânico procura em volta. Jesus surge,
sorrindo, das sombras com uma faca na mão e uma laranja
em outra.).
JESUS (Santa, em estado de choque) – Eu tô aqui, Santa!
(Tranqüilamente.) Estava tentando descascar essa laranja para
você... Não consegui!
SANTA (Mal consegue falar) – Solta essa faca, solta! (Jesus
resiste, sorridente.) Solta Jesus, por favor! (Movida por um
impulso repentino.) Solta, amaldiçoado, solta!... (Chora.).
JESUS (Soltando a faca) – Pronto, soltei... Acabou!
SANTA (Apanha a faca e guarda embaixo do travesseiro.
Respira aliviada) – Vou guardar essa merda, antes que você
faça uma besteira. (Pausa.) O Diabo atenta.
JESUS – Santa: (pára. Pensa cauteloso.) tô achando você
meio perturbada!
SANTA – Perturbada não: desconfiada! Desde pequena que
quando eu sonho, ou aconteceu ou está pra acontecer.
JESUS (Cortando, curioso) – Acontecer o quê?
SANTA (Dissimulando) – Deixa pra lá! Você vai entender
nunca! (Pausa. Desconfiada.) Quem vai na cabeça dos outros
é piolho. (Perversa.) Seu pai tá armando contra mim. (Em outro
tom.) Tá usando você: eu tô avisando...
JESUS (Furioso) – Ele não é meu pai, já disse. Não é.
SANTA – É, e está acabado, pronto! (Pausa. Olhando para
fora de cena.) Ainda está escuro...
JESUS (Serenando) – Ainda não matei o sono.
SANTA – Vamos dormir? Ainda não amanheceu direito.
JESUS (Deitando-se em sua cama) – Vamos... Quem dorme
seus males espanta...
SANTA (Levanta-se em pânico) – Não Jesus: de hoje em
diante você dorme aqui comigo.
JESUS (Estranhando) – Por quê?
SANTA (Tresloucada, inflexível) – Não faça perguntas:
obedeça! (Jesus caminha até a cama de Santa. Deita ao lado
dela, displicentemente arruma o travesseiro. Santa, movida
por um impulso repentino.) Jesus: dê-me suas mãos. (Arruma
um lençol em forma de atadura.).
JESUS (Estranhando) – Mãe, pra quê?
SANTA (Agressiva) – Já disse: não faça perguntas, não fale,
obedeça! (Pausa. Reflete, decide.) Dê-me as mãos!
JESUS (Submisso, dando-lhe as mãos) – Só assim você fica
mais tranqüila.
SANTA (Firme) – Fico.
JESUS (Estendendo-lhe as mãos) – Toma.
SANTA (Com rapidez o amarra) – Pronto, acabou! (Em outro
tom.) O pano evita de você se machucar. (Desconfiada.) E me
machucar. (Olhando o travesseiro.) Se você tiver alguma
necessidade me chama tá?
JESUS (Surpreso, concorda com a cabeça. Pausa) – Você tá
ficando doente, mãe, muito doente!
SANTA (Fora de si) – Doente não... (Pausa.) O sonho!...
JESUS – Mãe, que sonho?
SANTA – Cala a boca e vai dormir.
JESUS – Mãe!
SANTA (Cortando-o) – Cala a boca e vai dormir!
JESUS – Mãe!
SANTA – Cala a boca! (Ameaçando-o.) Eu já mandei calar a
boca! (Jesus engole em seco, soluça e adormece. Santa,
cautelosamente, senta na cama, afasta-se de Jesus. Pega
algumas caixas. Dá uns goles de bebida e começa a montar
algumas flores, cantando.) Era uma sexta-feira, um lago mal-
assombrado: à noite sempre... (Refletindo, pensativa.)
Qualquer tempo passado foi melhor que o tempo presente.
(Melancólica.) E você não tem culpa. (Aproxima-se de Jesus,
que dorme.) Jesus: você não tem... Mas é preciso ferir, ferir
bem fundo, mortalmente o Zé Luis. (Pausa.) E você, meu filho, é
a única arma que tenho. (Patética, voltando às flores.) Com o
tempo, as coisas foram se moldando. Se não formávamos uma
família perfeita, vivíamos em paz: Zé Luiz e Dona Ismênia no
primeiro andar; eu, Jesus e a madrinha no térreo. Se os dois
não engoliam a gente, também não falavam nada... (Pausa.)
Porém, aquela paz aparente era sinal de tempestade... A
madrinha parecia mudar, ficava o dia todo na varanda, de vez
em quando olhava o Jesus com os olhos de quem não vê nada,
não chorava, não sorria, quase nunca subia ao primeiro andar...
(Pausa.) Certo dia, sem alvoroço, ela amanheceu morta, morta
como um passarinho. Fomos para o enterro. (Pausa.) O Zé Luis
ao lado da mulher, cabisbaixo, nos olhou enviesado.
(Enraivecida.) O peste era tão ruim, que não derramou uma
lágrima, e, a branquela da mulher dele, nem se fala... (Em outro
tom.) Seca igual a um varapau. (Em tom de fofoca.) Tinha o
útero baixo, não sustenta filho: faz, mas não vinga. Tantos faça
que não nasce... (Revoltada.) Castigo! Quando voltamos do
enterro, encontrei minha maleta e minha cama em cima de uma
carroça. Dona Ismênia, braba igual um siri, dizia para o
cocheiro: “Inácio: toca daqui com esse povo”. Apontava a
entrada, falava com tanto ódio que chegava a tremer. “Pretinha:
não se esqueça de levar o doidinho...” (Pausa.) A criadagem
caiu na risada. (Furiosa.) Ele, o Todo-Poderoso, parado vendo
tudo, mudo e surdo. A tudo via e a tudo consentia. Não tomava
uma atitude sequer em nosso favor!... (Vingativa.) Agora está
pagando com uma ferida que lhe está comendo a perna.
(Pausa.) E em breve vai lhe comer o pé, o dedo... (Saudosa.)
Ah, o dedo, aquele dedo que me bolinava e me deixava louca de
tanto prazer. (Uma viagem sexual em si mesma. Luz cai em
resistência.).
Cena cinco
SANTA (Engomando uma trouxa de roupa. Jesus entrando
na ponta dos pés, por trás de Santa, sorridente. Esconde
atrás de si uma estampa da Virgem Maria) – Era uma sexta-
feira, um lago mal-assombrado...
JESUS (Emite um som) – Pô: assustei? (Santa simulando
medo.).
SANTA (Virando-se) – Um pouquinho. Tava aqui distraída,
passando tuas roupas... (Pausa.) E pensava nesses dias: está
tudo perdido. (Notando que Jesus está lhe ocultando algo.) O
que você tem aí?
JESUS (Defendendo-se, bem humorado) – Não, nada não!
SANTA (Deixando-se levar) – Moleque: você não me engana.
Deixa eu vê, deixa?
JESUS – Quem se apressa come cru.
SANTA (Mudando de tom) – Deixa eu vê?
JESUS (Ainda descontraído) – Não.
SANTA (Enervando-se) – Não, coisa nenhuma. Vamos:
mostra! (Pegando o chinelo, descontrolando-se.) Você não
aprende... A gente não pode lhe dar o pé.
JESUS (Rendendo-se, livrando-se) – Pronto: tá aqui (expõe.)
a estampa. Um retrato do Coração de Maria. (Cauteloso.) Frei
Martinho me deu.
SANTA (Confusa) – Frei Martinho?... E você não estava
vendendo flores?
JESUS (Temeroso) – Tava...
SANTA (Desconfiada) – Você conta esta história direito,
senão...
JESUS (Cortando) – Foi assim: logo cedinho eu fui pra porta do
armazém vender flor. O padrinho também, hoje chegou cedinho,
todo sorridente, puxando conversa. Se aproximou, me olhou de
cima para baixo e foi perguntando: “menino, qual é a sua
idade?”
SANTA – Menino?... E você não tem nome, não?
JESUS – Calma. Ele sabe muito bem o meu nome, só esqueceu
de falar...
SANTA – Oh, meu Deus! (Pausa. Enciumada.) Defende: você
tem todo o direito de defendê-lo...
JESUS (Indiferente) – Ele falou que ia me dar uma roupa
novinha, de suspensório e tudo, pelo Natal.
SANTA (Intrigada) - Que milagre foi esse, hein? (Para si.) Essa
alma quer reza.
JESUS (Entusiasmado) – Eu tenho muito orgulho de ter o
doutor José Luis como padrinho. (Indiferente.) Ele me chamou
no escritório, e perguntou se eu estava com fome. Eu disse que
sim, e ele pôs café com bolacha e disse que eu podia comer à
vontade.
SANTA (Alertando) – Essa história não vai dar certo... (Pausa.
Para si.) Isso não vai acabar bem...
JESUS (Indiferente) – Quando peguei na xícara... (Indeciso.)
ele viu meu pulso ferido, roxo por causa do lençol. Ficou bravo
como um leão.
SANTA (Repentinamente enfurecendo-se) – Bravo? Bravo por
quê?
JESUS (Timidamente) – Ele disse que isso não se faz com
uma criança.
SANTA (Explosiva) - E o que ele fez e faz não conta, não?
JESUS (Na defensiva) – Não sei Santa.
SANTA (Olhando-o no olho) – Escute bem. (Pausa.) Olhe nos
meus olhos, desgraçado! Escute aqui: todas as desgraças que
caíram sobre nossas cabeças e outras que ainda estão por vir...
(Pausa.) Ele é o único, o único culpado da nossa infelicidade.
Grave bem isso: seu pai nos condenou a isso, entendeu?
Repita. (Pausa. Jesus em silêncio.) Entendeu?
JESUS (Explodindo) – Entendi, entendi. (Afasta-se.).
SANTA (Cuidadosamente curiosa) – E aí... ele perguntou
como você fez os ferimentos? (Em outro tom.) Perguntou?
JESUS (Apressadamente) – Perguntou.
SANTA – E você, o que respondeu? (Jesus cala.) É com você
que eu estou falando.
JESUS (Temeroso) – Sim?
SANTA – Não se faça de bobo. O que você respondeu?
JESUS (Timidamente) – Respondi que foi você.
SANTA (Explodindo) – Bonito: fez a caveira da sua mãe. Fez?
(Agredindo-o.) Vai pra rua, vai! E grita: grita bem alto pra todo
mundo ouvir que sua mãe é uma desclassificada, vagabunda,
uma puta cachaceira, que não cuida de você, te maltrata, (por
cima de Jesus, sufocando-o.) te bate, te mata de fome... Vai!
(Jesus, depois de muito lutar, consegue fugir, em pânico.).
JESUS – Me deixa... Você está bêbada, bêbada! (Pausa.
Baixinho.) Sua bêbada! (Chora, abraçando a estampa do
Coração de Maria.).
SANTA (Transtornada) – Bêbada. Bêbada não: queimada!
(Curiosa, querendo restaurar o diálogo, controlando-se.)
Isso não vem ao caso. (Pausa.) E aí: o que mais o seu pai
disse?
JESUS (À distância, defendendo-se) – Que se a senhora não
tivesse um gênio tão forte, soubesse perdoar, as coisas seriam
diferentes. (Pausa. Cauteloso.) Nós teríamos casa e comida
decente. Ele disse ainda que o estrago que você está fazendo
em nossas vidas é tão grande, que no futuro, não há mais
remédio.
SANTA (Explosiva) – Filho da puta! Quer dizer que tudo estaria
resolvido se eu ficasse calada, quietinha, recebendo as ordens
do Todo-Poderoso? (Pausa.) Afinal de contas, quem perdeu fui
eu. Não era preciso escândalos. Tudo devia ficar abafado em
família. (Histérica.) Que família: grande família formada de
madrinhas, bastardos, doidos e cancerosos. (Jesus com olhos
dilatados.) Cancerosos sim. E é pra se espantar mesmo. Ou
você pensa que aquela ferida na perna de seu pai não é
câncer? (Jesus apavorado, afasta-se.) Câncer... (Soluça
histérica.) Desgraçado: tá pagando o que me fez...
JESUS (Aproxima-se) – Santa: por que tanto ódio, por que
tanta amargura? Por quê?
SANTA – Deixa de besteira, menino. (Pausa.) Não me venha
com essas palavras de romance. (Pausa.) Romance não: isso é
coisa de padre... Foi ele, não foi que pôs essa baboseira na sua
cabeça? (Pausa.) Parece um papagaio.
JESUS (Ingênuo) – Veja Santa, veja: não é bonita a santinha
do quadro?
SANTA (Tentando restaurar o diálogo) – É. Mas você ainda
não terminou de me contar a história desse presente.
JESUS (Entusiasmado) – Pois bem. Depois que eu contei a
história desse machucado para o padrinho, ele me mandou falar
com frei Martinho!
SANTA (Explodindo) – Eu estou comovida com tanta bondade!
JESUS (Indiferente) – O padrinho não é mau: todos gostam
dele... (Pausa.) É bom de verdade!
SANTA – Mas não te assumiu e nem te assume como filho...
(Com rancor.) Nos jogou no olho da rua...
JESUS (Cortando, defendendo) – Ele não: Dona Ismênia!
SANTA – Os dois são farinha do mesmo saco: não prestam.
JESUS (Distante, indiferente, falando pra si) – Fui falar com
frei Martinho. Quando cheguei lá, ele estava celebrando a
missa. (Em outro tom.) Quando a missa acabou ele veio
correndo ao meu encontro. Com um sorriso desse tamanho.
Fomos à sacristia, e ele me ensinou uma porção de coisas.
Contou a vida de São João. (Ingênuo.) Aquele que cortaram a
cabeça dele e puseram na bandeja... Me deu os santinhos aqui.
(Santa olha de relance.) Esses pequenos. (Mostra-os.).
SANTA (Estranhando) – E os grandes? Ou melhor: aquela
maior ali? (Apontando.).
JESUS (Confuso) – O grande?
SANTA – É: o grande.
JESUS (Afastando-se) – O grande eu comprei.
SANTA – Comprou?
JESUS – Comprei com o apurado das flores... (Justificando-
se.) Para ajudar as obras de caridade da igreja.
SANTA – Caridade?
JESUS – Sim.
SANTA – A Igreja não precisa de merda nenhuma. Quem
precisa de caridade somos nós. (Pausa. Controlando-se.)
Sobrou algumas flores?
JESUS – Sobrou.
SANTA – E o que você fez com elas?
JESUS – Eu dei ao padre para enfeitar o altar de Nossa
Senhora.
SANTA (Indignada) – E a mercearia, o leite, os remédios,
roupas e calçados, quem vai pagar Jesus? Quem?
JESUS (Afastando-se, indiferente) – Não sei. (Senta em um
canto e brinca com os santinhos.).
SANTA (Sentindo-se impotente, abre algumas latas
dispostas em cima da mesa) – Tá vendo? Não tem feijão, não
tem café, não tem açúcar. (Aproximando-se.) Tá vendo,
desmiolado, tá?
JESUS (Afastando-se, indiferente) – Me deixa mãe!
SANTA – Sabe de uma coisa? Eu não vou ficar perdendo o meu
tempo com uma leseira dessas. Eu só tenho por mim, eu
mesma. (Pausa.) Hoje vou dar uma esticada e acabar a
encomenda da Dona Matilde, que com ela é tiro e queda: é
entregando as flores e recebendo o dinheiro.
JESUS (Parando de brincar, pensativo, aproximando-se de
Santa) – Mas... (Santa virando-se de surpresa.) Por que você
não acaba com essa guerra boba?
SANTA – Guerra? Que guerra?
JESUS (Cauteloso) – Da senhora com o pessoal do sobrado...
SANTA – Vamos facilitar as coisas. Com o seu pai, não é?
JESUS (Firme) – É.
SANTA (Retomando o tom agressivo) – Mas é isso que ele tá
querendo: fazer de mim uma demente sem vontade própria,
como a mãe dele me fez por muito tempo. Hoje, a história é
outra. (Pausa.) Ele ainda vai bater na minha porta, pedindo um
pedaço de pão. Ah, se vai!
JESUS (Indignado) – Pra que tanto ódio? Pra quê?
SANTA – O que a gente não consegue entender é melhor
deixar pra lá... Você é muito criança. Hoje eu não quero azedar
seu coração com meu ódio. Vai brincar: tenho um monte de
flores para acabar. (Volta às flores. Jesus aos santinhos.
Santa fala para si.) Eu nunca tive espírito para agüentar certas
coisas. Pra mim pouco importa não ter conhecido meus pais, ser
criada de favor. (Prepotente.) Favor não: alto lá! Ninguém pediu
ou forçou eles a me adotarem. Se assim fizeram, foi porque
quiseram. (Pausa.) Sobras não: nem pensar! Quando pequena
eu não me importava muito, com certa idade você cansa de ser
segunda mão, metade, pedaço. Eu crescia e esse ódio crescia
também. Não dava mais pra suportar, eu não apenas desejava,
eu teria que ter – não a bijuteria -, mas o brinco de ouro. Não era
o vestido de seda que eu queria: mas o vestido da madrinha que
eu deveria ter... Não se pode passar a vida com prêmios de
consolação. Quando tudo parecia estar estável, a madrinha –
cheia de reumatismos -, da igreja para o quarto, do quarto para
a igreja. (Pausa.) E quando eu me sentia senhora absoluta
daquelas terras, fazendo e desfazendo, você aparece, José
Luis. Não como prêmio maior, e sim como meu patrão, de
casamento marcado e tudo! (Pausa melancólica.) Era um
pedaço de homem, de deixar qualquer uma de queixo caído. Ele
não tinha consideração nenhuma a elas, a não ser para
desgraçá-las e abandoná-las na Rua do Cercado. Ele sempre foi
muito soberbo, nunca levou em conta os sentimentos de
ninguém. (Pausa.) Por um pedaço de cana ele punha um
morador no olho da rua. (Jesus sonolento abre a boca.) Você
tá com sono? (Levanta-se, bebe um gole.).
JESUS (Frágil) – Tô. (Aproximando-se com as cordas de
lençol que pegou na cama.) Toma: amarra, pois assim você
fica mais tranqüila. (Santa aproxima-se, faz as amarrações,
acompanha-o até sua cama, volta às flores, desta feita em
cima de sua cama.).
SANTA – Era uma sexta-feira, um lago mal-assombrado, de
noite sempre chovia e a carimbamba cantava assim...
(Fechando os olhos adormece, lentamente.) Amanhã eu,
amanhã... (Luz. O pesadelo volta a atormentá-la. Uma reprise
das cenas anteriores. Acorda sobressaltada. Olha em volta.)
Jesus! Jesus!
JESUS (Débil) – Ahn, ahn!... Não posso: eu tô com dor, muita
dor.
SANTA (Preocupada, corre até sua cama) – Dor? Que dor,
menino?
JESUS – Aqui mãe, aqui.
SANTA (Olhando, examinando os pulsos de Jesus) – Deixa
eu vê: tá inchado. (Pausa.) Vou esquentar água e pôr umas
compressas. (Soltando as amarras.) Fique bem quietinho, que
logo ficará bom. (Santa pondo água no fogo.) Jesus: isso me
parece que não é conseqüência apenas das ataduras, não.
Você apanhou sol demais, comeu alguma comida estragada, sei
lá! (Especulando.) Dona Carmelita falou que viu você no
matadouro.
JESUS (Débil) – É conversa.
SANTA (Cortando) – Jesus.
JESUS (Corrigindo) – É: foi.
SANTA – Eu sabia... (Aproximando-se.) Não ficou acertado
que eu não queria mais você no matadouro? (Retornando ao
fogão.) Toda vez que você anda por aquelas bandas, volta
doente. (Advertindo-o.) Tá vendo: se tivesse me ouvido não
estava nesse estado.
JESUS (Sentado na cama, como se estivesse movido por
uma mola) – Santa: você lembra a Esperança? (Santa
aproxima-se, fazendo compressas.) Sim, Esperança, filha da
Dona Berenice, lá da Rua do Cercado?
SANTA – Sim, sei. (Repreendendo-o.) Eu já disse: não quero
você com essa gente.
JESUS – Eu não tava com o povo da Dona Berenice, não.
SANTA – E então, e daí?
JESUS (Aparenta cansaço) – Você prometeu não ficar brava!
(Santa afirma com a cabeça.) Eu vi o carioca esfaqueando a
Esperança. (Santa, estupefata, solta as compressas.).
SANTA (Afastando-se em pânico) – E matou? (Dá-lhe as
costas.).
JESUS (Suando em bicas) – Ele chegou à tardinha, para pegar
a bóia das crianças. Ele, desde cedo, tava de orelha em pé, tava
irado: haviam enchido a cabeça dele. (Pausa. Santa respira,
refazendo-se do choque anterior.) A matança tava cheia que
ela vivia se deitando com o soldado Genaro. O negro ficou cego
e disse, segurando a faca: “a mãe dela pode ser puta, mas a
minha mulher não vai ser não”. (Pausa.) Quando ela chegou,
ele não contou outra história. Nem limpou a faca que acabara de
sangrar o garrote Mimoso. (Jesus, em transe. Santa, de
joelhos, entra em desespero.) Empurrou várias vezes no
bucho, rasgou pra cima, rasgou pra baixo. Jogou a faca e fugiu.
(Pausa. Sufocando.) Ela ainda caminhou um pouco até o
barraco de seu Antônio, com o fato arrastando e os cachorros
fazendo uma festa com um pedaço de tripa entre os dentes.
SANTA (Explodindo, tampando os ouvidos) – Pára Jesus:
pelo amor de Deus, pára!
JESUS (Indiferente, zombeteiro, sentindo um prazer
mórbido na narrativa) – Seu Chico pedia ajuda, e, juntos,
fomos pondo tudo de volta no corpo de Esperança, que ainda
respirava. (Pausa.) Uma porção de tripa misturada com terra e
poeira. Seu Horácio espantava os cachorros. (Lançando-lhe
vômito no rosto, vai desfalecendo).
SANTA (Fitando-o. Jesus desfalece) – Por Deus! (Limpa o
rosto e corre em desespero.) Pelo amor de Deus! Façam
alguma coisa: meu filho está morrendo. Dona Benedita, Dona
Marieta: ajudem pelo amor de Deus, ajudem! (Sai. Blecaute.
Luz sobe em resistência. Jesus, sem camisa, com atadura
na cabeça e nas mãos, sentado na cama, bebe chá com um
pedaço de pão. Vozes fora, música de fundo, luz no
Coração de Maria na parede.).
VOZ I – Desclassificada: meio-dia em ponto e essa mulher
bêbada feita uma cachorra, incomodando o povo de bem.
VOZ II – Desnaturada: deixou o filho queimando em febre.
VOZ III – Se não fosse Dona Berenice, o coitadinho já estava na
sepultura.
VOZ IV – As más línguas dizem que ela foi esperar o Posto de
Saúde abrir, no boteco da Madalena. (Jesus perplexo.).
VOZ I – Depois de bêbada, um magote de vagabundos arrastou
ela para aquele partido de cana, que vai findar no quintal da
Cotinha. Quem viu, diz que foi uma pouca vergonha.
VOZ II – Parecia um bocado de urubus em cima da carniça.
SANTA (Completamente descontrolada, entrando) – Magote
de raparigas, fuleiras: vão cuidar da vida de vocês. (Pausa.) E
suas filhas!
VOZ III – Fecha tua janela, Joaninha, que ela até hoje tá com os
demônios no couro.
SANTA – Não me provoque mulher: eu vou terminar dizendo o
que você tem de fechar, selar. (Janelas batendo, dando a
impressão de serem fechadas.) Jesus, Jesus: você tá melhor,
filho... Tá? (Pausa.) Então vem ver a sua mãe, vem! (Jesus
petrificado, aos poucos redescobre os movimentos e
caminha com calma. No centro, pára.).
JESUS (Surpreso, ainda fraco) – Em que estado a senhora
está?
SANTA (Faz uma mesura, tropeça e cai) – Eu estou em
estado de graça! (Caindo no chão.) Em estado de graça, ouviu
bem?
JESUS (Chocado) – Mãe: você não tem conserto!
SANTA (Esforçando-se, sem conseguir se levantar) – E você
tem?... (Fitam-se odiosamente.) Vem cá: me ajuda! (Jesus
fica paralisado.) Vem: eu estou mandando! (Querendo
desesperar-se.) Vem! (Jesus não se move.) Por Deus: me
ajuda aqui... (Jesus sorri, zombeteiro. Caminha, em um
ritual. De bom grado, ela estende-lhe as mãos. Ele as
amarra, arrastando-a até sua cama. Depois, ajuda-a a se
deitar. Santa está ébria, completamente fora de si.) Era uma
sexta-feira, um lago mal-assombrado, à noite nem chovia...
JESUS (Com olhar zombeteiro, cheio de malícia) – Santa
durma, Santa...
SANTA (Assustada) – Eu tenho medo de dormir... dormir e
sonhar.
JESUS – A vida é um sonho, Santa, apenas um sonho.
SANTA (Repete, adormecendo) – A vida é um sonho.
JESUS – É um sonho. (Aproximando-se, de faca em punho,
esfaqueia Santa. Uma reprise dos sonhos anteriores. Santa
jaz sobre o leito. Jesus retira das caixas a coroa de noiva e
flores diversas. Santa continua com as mãos amarradas. Ele
enfeita-a com a coroa e com as flores, que joga no ar e
espalha na casa, em completo desvario.) Você agora está
purificada, Santa. Assim como a Virgem, em estado de graça.
(Correndo, louco.) Em estado de graça... (Cai exausto, no
centro. Lentamente começa a cantar.) Era uma sexta-feira,
um lago mal-assombrado. (Apaga a luz, interruptor ou
candeeiro. Permanece em transe, cantarolando. Luz no
Coração de Maria.) À noite sempre chovia... (Blecaute.).
FIM