em defesa da escola - 1

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Coleção Educação: Experiência e Sentido Jan Masschelein Maarten Simons Em defesa da escola Uma questão pública Tradução Cristina Antunes autêntica

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  • Coleo Educao: Experincia e Sentido

    Jan Masschelein Maarten Simons

    Em defesa da escola Uma questo pblica

    Traduo Cristina Antunes

    autntica

  • CoLECAO "EDUCAO: EXPERINCIA E SENTIDO"

    extorso que faria com que expressssemos nossa evidncia em termos de valor agregado, resultados de aprendizagem e qualificaes (educacionais). Queremos tentar identificar o que faz uma escola ser uma escola e, ao faz-lo, tambm queremos identificar por que a escola tem um valor em e por si mesma e por que ela merece ser preservada.

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    C A P T U L O 2

    O que o escolar?

    uXoX^ (skhol): tempo livre, descanso, adiamento, estudo, discusso, classe, escola, lugar de ensino

    Pode, a princpio, parecer estranho investigar o escolar. No bvio que a escola a insdtuio de ensino inventada pela sociedade para introduzir as crianas (em) o mundo? E no evidente que a escola tenta equipar as crianas com o conhecimento e a habihdade peculiar a uma ocupao, cultura ou sociedade? Esse ato de equipar acontece de uma maneira especfica: em um grupo, com professores na frente da sala de aula, e com base na disciplina e na obedincia. Dessa forma, a escola , igualmente, o lugar onde os jovens (de acordo com um mtodo especfico) so abastecidos com tudo o que eles devem aprender para encontrar o seu lugar na sociedade. No bvio que a aprendizagem o que acontece na escola? Que ela uma iniciao ao conhecimen-to e s habilidades e uma sociali^o dos jovens na cultura de uma sociedade? Essa iniciao e socializao no esto, de uma forma ou de outra, presentes em todos os povos e em todas as culturas? E no a escola, simplesmente, a forma coletiva mais econmica para consegui-las, coisa que se torna necessria quando a sociedade atinge certo nvel de complexidade?

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  • CoLEcAo "EDUCAO: EXPERINOA E SENTIXJ"

    Essas, em qualquer caso, so percepes comuns e generalizadas do que a escola e faz. Em contraste com esse ponto de vista, importante ressaltar que a escola uma inveno (poltica) especfica da polis, grega e que a escola grega surgiu como uma usurpao do privilgio das elites aristocrticas e militares na Grcia antiga. Na escola grega, no mais era a origem de algum, sua raa ou "natureza" que justificava seu pertencimento classe do bom e do sbio. Bondade e sabedoria foram desligadas da origem, da raa e da natureza das pessoas. A escola grega tornou inoperante a conexo arcaica que liga os marcadores pessoais (raa, natureza, origem, etc.) lista de ocupaes correspondentes aceitveis (trabalhar a terra, engajar-se no negcio e no comrcio, estudar e praticar). claro que, desde o incio, havia diversas ocupaes para restaurar conexes e privilgios, para salvaguardar hierarquias e classificaes, mas o principal e, para ns, o mais importante ato que a "escola faz" diz respeito suspenso de uma chamada ordem desigual natural. Em outras palavras, a escola fornecia tempo livre, isto , tempo no produtivo, para aqueles que por seu nascimento e seu lugar na sociedade (sua "posio") no tinham direito legtimo de reivindic-lo. Ou, dito ainda de outra forma, o que a escola fez foi estabelecer um tempo e espao que estava, em certo sentido, separado do tempo e espao tanto da sociedade (em grego: polis) quanto da famlia (em grego: oikos). Era tambm um tempo igualitrio e, portanto, a inveno do escolar pode ser descrita como a democratizao do tempo livre}

    Nesse contexto, interessante notar que dizia-se que Iscrates, responsvel por desempenhar um pape! importante nessa inveno, havia oferecido "o dom do tempo" para a arte da retrica inciusa nas prticas poh'ticas c jur-

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    o que o escolar?

    Precisamente por causa da democratizao e equa-lizao, a elite privilegiada tratava a escola com grande desprezo e hostilidade. Para a elite, ou para aqueles que estavam satisfeitos em permitir que a organizao desi-gual da^ sociedade continuasse sob os auspcios da ordem natural das coisas, essa democratizao do tempo livre era uma pedra no sapato. Assim, no s as razes da escola repousam na antiguidade grega, mas tambm o mesmo acontece com uma espcie de dio dirigido escola. Ou, pelo menos, o impulso contnuo para domar a escola, ou seja, restringir o seu carter potencialmente inovador e at mesmo revolucionrio. Dito de outro modo: mesmo hoje, parece haver tentativas de paralisar a escola como "tempo livre" entre a unidade familiar, de um lado, e a sociedade e o governo, de outro. Por exemplo, muitos dizem que a escola, como uma instituio, deveria ser uma extenso da famlia, ou seja, deveria fornecer um segundo "ambiente de educao" suplementar ao provido pela famlia. Outra variante da domesticao da escola reza que ela deve ser funcional para a sociedade, ser meritocrtica em seus pro-cessos de seleo e, assim, reforar o mercado de trabalho e proporcionar bons cidados. O que, frequentemente, aconteceu e continua a acontecer e vamos voltar a isso em breve que a quinta-essncia do escolar muitas vezes completamente expulsa da escola. Na verdade, podemos ler a longa histria da escola como uma histria de esfor-os continuamente renovados para roubar da escola o seu

    dicas; "Longe do tribunal c fora da assembleia geral, a retrica no estava mais constrangida por um senso de urgncia, e, na ausncia dessa restrio, no tinha que sacrificar a sua integridade artstica s eventuais demandas de interesses do cliente" (PuULAKOS, 1997, p. 70).

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  • Ccto "EDUCAO: EXPERI^JOA E SENTIDO"

    carter escolar, isto , como tentativas de "desescolarizar" a escola que vo muito mais longe no tempo do que os autoproclamados "desescolarizadores"^ da dcada de 1970 podiam perceber. Esses ataques contra a escola derivam de um impulso para tornar o tempo livre fornecido por ela novamente produtivo e, desse modo, impedir a funo de democratizao e equalizao da escola. O que queremos enfatizar que essas verses domadas da escola (isto , a escola como a famlia estendida, ou a escola produtiva, aris-tocrtica ou meritocrtica) no deveriam ser confundidas com o que realmente significa estar "dentro da escola" e "na escola": tempo livre. O que muitas vezes chamamos de "escola" hoje em dia , na verdade (total ou parcialmen-te), a escola desescolarizada. Assim, queremos reservar a noo de escola para a inveno de uma forma especfica de tempo Uvre ou no produtivo, tempo indefinido para o qual a pessoa no tem outra forma de acesso fora da escola. O tempo fora ~ em casa, no mercado de trabalho - foi e muitas vezes e de diferentes maneiras, "ocupado". Ns no tiramos tempo livre para sugerir uma espcie de tempo de relaxamento, na maneira em que frequentemente ele entendido hoje. Na verdade, o prprio tempo de relaxa-mento se transformou em tempo produtivo e se torna a matria-prima para sua prpria esfera econmica. Assim, o relaxamento muitas vezes visto como til no sentido em que repe a nossa energia e nos permite realizar ativi-dades que levam aquisio de competncias adicionais. A indstria do lazer , de modo indicativo, um dos setores econmicos mais importantes.

    ^ o termo ingls deschoolers diz respeito queles que querem separar a educao da instituio escolar e operar atravs da experincia de vida do aluno, em oposio a um currculo estabelecido. (N.T.)

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    O que o escolar?

    A escola, por outro lado, surge como a materializa-o e espacializao concreta do tempo que, literalmente, separa ou retira os alunos para fora da (desigual) ordem social e econmica (a ordem da famlia, mas tambm a ordem da sociedade como um todo) e para dentro do luxo de um tempo igualitrio. Foi a escola grega que deu forma concreta a esse tipo de tempo. Isto significa que este e no, por exemplo, a transferncia de conhecimento ou o desenvolvimento de talentos - a forma de tempo livre por meio do qual os alunos poderiam ser retirados de sua posio social. precisamente o modelo escolar que permite que os jovens se desconectem do tempo ocupado da famlia ou da oikos (a o/^o-nomia) e da cidade/estado ou polis (pol-tica). A escola oferece o formato (ou seja, a composio particular de tempo, espao e matria, que compe o escolar) para o tempo-feito-livre, e aqueles que nele habitam literalmente transcendem a ordem social (econmica e poltica) e suas posies (desiguais) associa-das. E esse formato de tempo livre que constitui a hgao comum entre a escola dos atenienses livres e a coleo heterognea das instituies escolares (faculdades, escolas secundrias, escolas primrias, escolas tcnicas, escolas vocacionais, etc.) da nossa poca. No que vem a seguir, no vamos discutir a rica histria do formato da escola em sua totalidade, porm, em vez disso, vamos dar nfase a algumas de suas caractersticas e ao seu funcionamento. A nossa ambio, contudo, no esboar a escola ideal, mas uma tentativa de tornar explcito o que faz com que uma escola seja uma escola, e, consequentemente, diferente de outros ambientes de aprendizagem (ou de socializao, ou iniciaes). E , mais uma vez, o objetivo no o de salvaguardar uma velha instituio, mas de articular um marco para a escola do futuro.

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  • Coifo "EDUCAO: EXPERINCIA E SENTIDO"

    KZ. Uma questo de suspenso (ou libertar, destacar, colocar entre parnteses)

    O alarme dispara, o relgio comea a contar Uma tigela rpida de cereal, mochila na mo. O tempo entre o

    agora e o toque do sino da escola est preenchido: fechar a porta, correrpara o ponto de nibus, bem na hora, comprimir todosjuntos, contar as paradas, descer, a

    calma antes da tempestade, coliso entre amigos e reduf^r a velocidade para uma caminhada, um minuto de sobra, A escola como um limiarpara um novo mundo. Aqui, ns no corremos pelos corredores. Pa^ e tranquilidade

    por um tempo, A sala de aula no um lugar tranquilo, um lugar que se toma quieto, dito para ela ficar quieta. O sino nos lembra disso, e a vo^ estridente

    de Air. Smith, o professor de matemtica, vem para o resgate daqueles com memria curta. Que somos todos ns. Ble comea a sua aula com uma anedota tola,

    maneira como ele sempre fa^ Hoje ela sobre um gnio matemtico. Como se ele quisesse atenuar o choque que

    nos espera na lousa na forma de uma funo cbica. Honestamente truque ou no ela funciona. Deixo-

    me percorrer em seu universo matemtico, como um estranho em um mundo de estranhos que imploram para serem conhecidos. Uma segunda equao na lousa. Um exercido. Nos dado tempo para fa^-lo ns mesmos.

    Algum solta um suspiro, todo mundo comea, acabou o tempo, algum se atreve a pedir mais tempo, ele nos d

    mais tempo. Bu acabei, olho em volta e me pergunto se o Sr Smith tambm representa um professor em sua casa. Seus pobres filhos, sua pobre esposa. Voc acha que ele

    tambm tem um trabalho real'^ Tempo esgotado.

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    O que o escolar?

    O que O primeiro dia de escola traz lembrana? Os pais, relutantemente, levando seus filhos para a escola, ficando por ali um minuto extra para se certificarem de que tudo est bem, deixando-os ir. Os jovens saindo do ninho familiar. H um limiar, e o referido limiar muitas vezes visto hoje como a causa de uma experincia quase traumtica. Da o apelo para mant-lo o mais baixo pos-svel. Mas no por isso que esse limiar , precisamente, o que torna possvel o deixar ir; no o que permite que os jovens entrem em outro mundo no qual podem deixar de ser "filho" ou "filha"? De que outra forma eles podem deixar a famlia, o lar? Muito simplesmente, isso significa que a escola d s pessoas a chance (temporariamente, por um curto espao de tempo) de deixar o seu passado e os antecedentes familiares para trs e se tornarem um aluno como qualquer outro. Tomemos, por exemplo, o hospital--escola, que oferece s crianas descanso, por mais breve que possa ser, a partir do papel do paciente doente. Como atestam os professores dessas escolas, elas "trabalham" at o ltimo dia, mesmo para os pacientes terminais. Essas escolas so transformadoras: "L fora, eles so o paciente, aqui eles so o aluno. Vamos deixar a parte do 'estar-doen-te' ficar l fora".^ O que a escola faz prover o tempo em que as necessidades e rotinas que ocupam a vida diria das crianas nesse caso, uma doena podem ser deixadas para trs.

    Uma suspenso similar se aphca tanto ao professor quanto ao assunto. O ensino, como ele era, no uma profisso sria. O professor est, parcialmente, situado fora da sociedade, ou melhor, o professor algum que trabalha

    ^ "Voofdoen met hct normale, dat geeft deze kinderen kracht". De Morgm, 10 de setembro de 2011, p.6. Traduo dos autotes.

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  • CoiECo "EDUCAO: EXPERINCIA E SENTIDO"

    em um mundo no produtivo ou, pelo menos, no imedia-tamente produtivo. Muitas das coisas habituais exigidas de profissionais - no que diz respeito produtividade, respon-sabilidade e, claro, frias no se aplicam ao professor. Pode-se dizer que ser um professor implica, desde o incio, uma espcie de iseno ou imunidade. Os professores no trabalham para o ritmo do mundo produtivo. Da mesma forma, o conhecimento e as habilidades aprendidas na escola de fato tm uma clara ligao com o mundo - derivam dele, mas no coincidem com ele. Uma vez que o conhecimento e as habilidades so trazidos para dentro do currculo escolar, passam a ser matrias e, de certo modo, tornam-se separados da aplicao diria. claro que as prprias aplicaes de conhecimentos e de competncias podem ser abordadas em um ambiente escolar, mas s depois de serem apresentadas como matrias. Esse conhecimento e essas habilidades so, assim, libertados, isto ,^eparados dos usos sociais conven-cionais, atribudos na medida em que so apropriados para eles. Nesse sentido, a matria sempre consiste em conheci-mentos e competncias autoindependentes. Ou, dito de outra forma: o material tratado em uma escola no est mais nas mos de um grupo social ou gerao particulares e no h nenhuma conversa de apropriao; o material fo removido liberado da circulao regular.

    Esses exemplos nos levam a um primeiro aspecto do escolar: que a construo de uma escola implica suspenso. Quando ocorre a suspenso, os requisitos, tarefas e funes que governam lugares e espaos especficos, tais como a famlia, o local de trabalho, o clube despordvo, o bar e o hospital, j no se aplicam. Isso no imphca a destruio desses aspectos, no entanto. A suspenso, tal como a en-tendemos aqui, significa (temporariamente) tornar algo inoperante, ou, em outras palavras, tir4o da produo,

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    O que o escolar?

    liberando-0, retirando-o de seu contexto normal. um ato de desprivatizao, isto , desapropriao. Na escola, o tempo no dedicado produo, investimento, fun-cionalidade ou relaxamento. Pelo contrrio, esses tipos de tempo so abandonados. De um modo geral, podemos dizer que o tempo escolar o tempo tornado livre e no tempo produtivo.

    Isso no quer dizer que a suspenso descrita acima , na verdade, operativa na educao atual. Pelo contrrio, o oposto parece ser verdadeiro, Tomemos, por exemplo, a tendncia contnua de fixar os alunos aos seus antecedentes sociais e culturais, ou o impulso de moldar os professores na forma de um "verdadeiro profissional" sensvel s deman-das de produtividade e com a inteno de tornar a matria mais (economicamente) relevante. Como discutiremos mais tarde, essas tendncias podem se originar de um medo de suspenso e podem ser vistas como uma tentativa de domar o tempo escolar.

    Pensamos que o formato muito concreto da escola pode desempenhar um papel importante na possibilidade de retirar o peso da ordem social suspenso no interesse de criar tempo livre. A forma espedfica de salas de aula e play^unds apresenta, no mnimo, a possibilidade de, hteralmente, se tornarem separados do tempo e do espao da famha, da sociedade ou do mercado de trabalho e das leis que os pre-sidem a esse respeito. Isso pode ser alcanado no s atravs da forma construda na sala de aula (a presena de uma mesa, o quadro-negro, a disposio das bancadas de trabalho de tal maneira a facilitar a interao ttil, etc), mas tambm atravs de todos os tipos de mtodos e ferramentas. E, evi-dentemente, o professor tambm tem um papel importante.

    Nesse sentido, Daniel Pennac (2010), em seu livro SchoolBlues, parucularmente instrutivo. Ele enfatiza essa

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  • CoifCo "EDUCAO: EXPERINCIA F SENTIDO"

    suspenso, dizendo que o professor (pelo menos se ele estiver "trabalhando" com xito em uma sala de aula) atrai os alunos para o tempo presente^ isto , para o aqui-e-agora. School Blues uma obra literria em que Pennac conta a histria de suas desventuras interminveis como um estu-dante desiludido, desmotivado e completamente difcil. A histria seguida por uma narrativa de sua carreira (de su-cesso) como professor de francs em escolas dos subrbios franceses, onde continuamente encontrava o tipo de aluno que ele mesmo fora um dia. Seu relato contm observaes muito precisas sobre a capacidade da escola e do professor para "libertar" os alunos, isto , para permitir aos alunos se separarem do passado (que os oprime e os define em termos de [falta de] habihdade/talentos) e do futuro (que , ao mesmo tempo, inexistente ou predestinado) e, por-tanto, se dissociarem temporariamente de seus "efeitos". A escola e o professor permitem que os jovens reflitam sobre si mesmos, separados do contexto (antecedentes, mceign-cia, talentos, etc.) que os conecta a um determinado lugar (um caminho de aprendizagem especial, uma aula para os alunos de reforo, etc.) Pennac expressa isso dizendo que o professor deve garantir que "um alarme dispare" cada lio. Esse alarme deve ser bem sucedido em fazer com que os alunos saiam do que ele chama de "pensamento ilusrio", isto , o pensamento que "os aprisiona em contos de fadas" e planta ideias de incompetncia nas suas "mentes": "no posso fazer nada", "tudo vai dar em nada" "por que ten-tar?". Esse alarme tambm dissipa contos de fadas inversos: "tenho que fazer isso", " assim que isso deve ser", "esse o meu talento", "isso adequado para mim".,.

    Talvez isso seja o que ensinar: prescindir do pensamen-to ilusrio, garantindo que cada aula uma chamada de despertar. Claro, eu sei que esse tipo de declarao pode

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    o que o escolar?

    parecer irritante para os professores estorvados com as classes mais difceis nos hanlieues. E, sim, essas frmulas podem realmente parecer banais de um ponto de vista considerado sociolgico, poltico, econmico, familiar ou cultural... Ainda assim, o pensamento ilusrio de-sempenha um papel que no deveria ser subestimado quando se trata da tenacidade do aluno relapso para ficar enterrado no fundo de sua prpria existncia. E tem sido sempre assim, qualquer que seja seu antecedente social (PcNNAC, 2010, p, 142-143).

    Os nossos "maus alunos", aqueles programados para no se tornarem nada, nunca vm para a escola sozi-nhos. O que entra na sala de aula uma cebola: vrias camadas de desgostos da escola medo, preocupao, amargura, raiva, insatisfao, renncia furiosa - em-brulhadas em torno de um passado vergonhoso, um presente sinistro, um futuro condenado. Olha, l vm eles, os seus corpos em processo de formao e suas famlias nas suas mochilas. A aula no pode realmente comear at que a carga tenha sido colocada no cho e a cebola descascada. E difcil de explicar, mas apenas um olhar, uma observao gentil, uma palavra clara e firme de um adulto atencioso, muitas vezes, o suficiente para dissolver esses desgostos, clarear essas mentes e colocar essas crianas, confortavelmente, no presente do indicativo. Naturalmente, os benefcios so temporrios; a cebola assentar de volta suas camadas fora da sala de aula, e ns teremos que comear tudo de novo amanh. Mas isso que o ensino; comear de novo e de novo at alcanar o momento crtico em que o professor pode desaparecer (PENNAC, 2010, p. 50-51).

    Dessa forma, a escola o tempo e espao onde os alunos podem deixar pra l todos os tipos de regras e expectati-vas sociolgicas, econmicas e relacionadas cultura. Em

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  • COLEO "EDUCAO: EXPERINOA E SENTIDO"

    outras palavras, dar forma escola construir a escola tem a ver com uma espcie de suspenso do peso dessas regras. A suspenso, por exemplo, das regras que ditam ou explicam por que algum e toda a sua famlia ou grupo cai em um determinado degrau da escada social Ou da regra que diz que as crianas de projetos habitacionais ou de outros am-bientes no tm interesse em matemtica, ou que os alunos do ensino vocacional so dissuadidos pela pintura, ou que os filhos dos industriais preferem no estudar cuMnria. O que queremos enfatizar que atravs dessa suspenso que as crianas podem aparecer como alunos, os adultos como professores, e os conhecimentos e habilidades socialmente importantes como a matria na escola. E essa suspenso e essa construo de tempo livre que instilam a igualdade no escolar, desde o incio. Isso no significa que vemos a escola como uma organizao que garante que todos alcancem o mesmo conhecimento e habilidades uma vez que o processo esteja concludo, ou que adquiram todo o conhecimento e as habih-dades de que precisam. A escola cria igualdade precisamente na medida em que constri o tempo livre, isto , na medida em que consegue, temporariamente, suspender ou adiar o passado e o futuro, criando, assim, uma brecha no tempo Hnear. O tempo Hnear o momento de causa e efeito: "Voc isso, ento voc tem que fazer aquilo", "voc pode fazer isso, ento voc entra aqui", "voc vai precisar disso mais tarde na vida, ento essa a escolha certa e aquela a matria apropriada". Romper com esse tempo e lgica se resume a isso: a escola chama os jovens para o tempo presente ("o presente do indicativo" nas palavras de Pennac) e os libera tanto da carga potencial de seu passado quanto da presso potencial de um futuro pretendido planejado (ou j perdido).

    A escola, como uma questo de suspenso, implica no s a interrupo temporria do tempo (passado e futuro).

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    O que o escdar?

    mas tambm a remoo das expectativas, necessidades, papis e deveres ligados a um determinado espao fora da escola. Nesse sentido, o espao escolar aberto e no corrigido. O espao escolar no se refere a um local de passagem ou de transio (do passado ao presente), nem a um espao de iniciao ou de socializao (da famlia para a sociedade). Pelo contrrio, devemos ver a escola como uma espcie de puro meio ou centro. A escola um meio sem um fim e um veculo sem um destino de-terminado. Pense em um nadador tentando cruzar um grande rio (SERRES, 1997). Pode parecer que ele estivesse simplesmente nadando de uma margem para a outra (isto , da terra da ignorncia para a terra do conhecimento). Mas isso quereria dizer que o prprio rio no significa nada, que ele seria uma espcie de meio sem dimenso, um espao vazio, como voar atravs do ar. Eventualmente, o nadador, claro, chegar margem oposta, porm, o mais importante o espao entre as margens o centro, um lugar que compreende todas as direes. Esse tipo de "meio termo" no tem orientao nem destino, mas torna todas as orientaes e direes possveis. Talvez a escola seja outra palavra para esse meio termo onde os professores atraem os jovens para o presente.

    1/TJ. Uma questo de profanao (ou tomar algo disponvel, tomar-se

    um bem pblico ou comum)

    Motores e carros meio desmontados so exibidos como se estivessem em um museu. Mas esse no um museu

    do automvel, uma oficina, um atelier. Uma espcie de garagem, mas sem os clientes problemticos e impacientes.

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  • COLEO "EDUCAO: EXPERINOA E SEMTIDO"

    Essas peas no tm dono, apenas esto l, para todos. Elas no so os modelos e motores mais recentes mas a essncia o que conta. Montagem e desmontagem, em suaforma mais pura. Manuteno e pequenos reparos,

    tambm. Ns no falamos sobre o preo. No agora, no aqui. A.S coisas devem ser bem feitas, com um olho para o detalhe, know-how tambm, e muito discernimento.

    No discernimento mecnico, mas o discernimento em mecnica. E eletrnica. Apenas o motor despojado parece ser capa\ dar esse discernimento, como um modelo nu

    em tomo do qual o professor rene seus alunos. Como se a coisa ansiasse por ser estudada, admirada, mas

    tambm cuidadosamente desmontada e cuidadosamente restaurada. No tanto o professor, mas aquele motor

    requer habilidade, e como se os motores em exposio tivessem se sacrificado para o aperfeioamento dessas

    habilidades. EJes fa^^em o tempo, do tempo ~e o professor garante que os alunos o usem. Para praticar,

    com olhos, mos e mente. Uma mo hbil, um olho experiente, uma mente focada a mecnica est no

    toque. Apenas adequado, mas felizmente no totalmente. Porque, ento, no haveria mais tempo para o estudo e a prtica, e, portanto, no haveria tempo para erros e

    novos discernimentos.

    Um simples exemplo; o quadro-negro, a carteira escolar. E claro, para muitos a lousa e a carteira so a quinta-essncia dos artefatos da educao clssica: armas para disciplinar os jovens, arquitetura a servio da pura transferncia de conhe-cimento, smbolos do professor autoritrio. No h dvida de que muitas vezes elas funcionem dessa maneira. Mas elas tambm no dizem algo sobre a escola quinta-essencial? A lousa que abre o mundo para os alunos, e os alunos que

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    O que o escolar?

    literalmente se sentam perto dela. Ou o professor que, com sua voz, gestos e presena, invoca algo do mundo na sala de aula. Algo no apenas informativo, mas tambm animador, trazido de tal forma que um aluno no pode ajudar, exceto olhar e ouvir. Esses so os momentos bastante raros, mas sempre mgicos, quando os alunos e os professores so arrebatados pela matria, a qual, simplesmente sendo dita, parece assumir uma voz prpria. Isso significa, em primeiro lugar, que a sociedade , de certa forma, mantida do lado de fora ~ a porta da sala de aula se fecha e o professor pede silncio e ateno (CORNELISSEN, 2010). Mas, em segundo lugar, algo permitido no interior: um diagrama na lousa, um livro sobre a mesa, palavras lidas em voz alta. Os alunos so tirados de seu mundo e levados a entrar num novo. Assim, de um lado da moeda, h uma suspenso, isto , uma inter-pretao inopervel, uma libertao. Do outro lado, h um movimento positivo: a escola como presente e meio termo, um lugar e um tempo para possibiUdades e hberdade. Para isso, gostaramos de introduzir o termo profanao!"

    Um tempo e lugar profanos, mas tambm as coisas profanas, referem-se a algo que desligado do uso habitual, no mais sagrado ou ocupado por um significado espec-fico, e, portanto, algo no mundo que , ao mesmo tempo, acessvel a todos e sujeito (re)apropriao de significado. E algo, nesse sentido geral (no religioso), que foi corrompido ou expropriado; em outras palavras, algo que se tornou pblico. O conhecimento, por exemplo, mas tambm as habilidades que tm uma funo especial na sociedade, so tornados gratuitos e disponveis para o uso pblico. A matria de estudo tem precisamente esse carter profano; o

    * Fazemos um uso "educacional" daquela noo, da forma como foi "filosofi-camente" elaborada por Agamben (2007).

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  • Ccufco "EDUCAO: ExPEwfrjQA E SENTIDO"

    conhecimento e as habihdades so efetivamente suspensos dos caminhos em que a gerao mais velha cuidou de coloca--los em uso em tempo produtivo, mas essa matria ainda no foi apropriada pelos representantes da gerao mais jovem. O importante aqui que so precisamente essas coisas pblicas as quais, por serem pblicas, esto, portanto, disponveis para uso livre e novo que proporcionam gerao mais jovem a opormnidade de experimentar a si mesma como uma nova gerao. A tpica experincia escolar a experin-cia que possibilitada pela escola exatamente aquele confronto com as coisas pblicas disponibilizadas para uso livre e novo. , por assim dizer, a prova matemtica tirada do mundo e escrita no quadro-negro para que todos possam ver. Ou o hvro-texto sobre a carteira. Esse quadro-negro ou carteira no so, acima de tudo, um instrumento para disciplinar os jovens, como a crtica comum admite. algo que faz com que seja possvel que as coisas tomem posse de si mesmas, desligadas e libertadas de seu uso habitual, e, portanto, publicamente disponveis. Por essa razo, a escola sempre sgrfica conhecimento em prol do conhecimento, c a isso chamamos de estudo. A Hnguagem da matemtica consegue ser autossuficiente o seu enraizamento social suspenso e, por meio disso, ela se toma um objeto de es-tudo. Da mesma forma, podemos quaUficar habilidades em prol da prtica de habihdades. Nesse caso, a escola o tempo e o lugar para estudo e prtica as atividades escolares que podem alcanar um significado e um valor em si mesmas. Mas isso no significa que a escola, como uma espcie de torre de marfim ou ilha, se refira a um tempo ou lugar fora da sociedade. O que tratado na escola est enraizado na sociedade, no cotidiano, mas transformado pelos atos simples e profundos de suspenso (temporria) e profanao. Foca-mos em matemtica em prol da matemtica, em linguagem

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    o que o escolar?

    pelo bem da linguagem, em cozinhar por causa de cozinhar, em carpintaria por amor carpintaria. E assim que voc calcula uiria mdia, assim que voc conjuga em ingls, assim que voc faz uma sopa ou uma porta. Mas tudo isso acontece separadamente de um objetivo a-ser-alcanado--imediatamente. Exemplos de objetivos imediatos seriam: que mdia tem que dar a esse cliente uma viso geral dos juros projetados; voc usou ingls gramaticalmente correto para formular uma carta de reclamao para seu senhorio; essa sopa deve ser entregue mesa sete; aquela porta pre-cisa ser instalada na casa da Rua Baldwin. Aspectos dessas coisas podem, certamente, ser trazidos baila em sala de aula, mas, ento, como um exerccio e um estudo. Em cada caso, a "economia" o que (ativamcnte) suspenso a partir das habilidades, conhecimento, raciocnio e objetivos que a penetram em tempo "normal".

    E importante destacar, como Pennac tambm indica continuamente, que a construo do tempo escolar (tempo livre) acompanhada pelo fato de que, na escola, sempre h alguma coisa sobre a mesa. Como diz Pennac, a escola no consiste em atender s necessidades individuais; isso acontece fora da matria escolar. Pelo contrrio, consiste em acompanhar durante a aula, lidar com alguma coisa^ estar presente para alguma coisa. Devemos nos limitar, diz Pennac, matria e s regras do jogo impostas sobre ns por praticar a prpria matria. Desse modo, algo da sociedade posto em jogo ou executado em jogo. Isso volta a uma das palavras latinas para a escola, ludus, que tambm significa "jogo" ou "brincadeira". Em certo sentido, a escola de fato o playground da sociedade. O que a escola faz trazer algo para o jogo^ ou fazer alguma coisa no jogo. Isso no significa que a escola no seja sria ou no tenha regras. Muito pelo contrrio. Isto significa que a sua seriedade e regras j no

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  • CoiECo "EDUCAO'. ExpERit:iA E SENTIDO"

    so derivadas da ordem social e do peso de suas leis, mas, antes, de alguma coisa do prprio mundo um texto, uma expresso matemtica ou uma ao como arquivar ou serrar e essa alguma coisa , de uma forma ou de outra, valiosa. Consequentemente, estudar um texto requer certas regras do jogo e disciplina, do mesmo modo que acontece com os que se engajam na escrita ou na carpintaria. O importante aqui , precisamente, que por transformar alguma coisa em jogo, est, simultaneamente, sendo oferecida para o uso livre e novo. Est sendo solta e colocada sobre a mesa. Ou seja, algo (um texto, uma ao) est sendo oferecido e se torna, ao mesmo tempo, separado de sua funo e importncia na ordem social, algo que aparece em si mesmo, como um objeto de estudo ou de prtica, independentemente do seu uso adequado (em casa ou na sociedade, fora da escola). Quando algo se torna um objeto de esmdo ou de prtica, isso significa que exige a nossa ateno; que nos convida a explor-lo e engaj-lo, independentemente de como ele possa ser colocado em uso.

    Que a escola o playground da sociedade talvez seja mais evidente naqueles lugares onde algo do mundo do trabalho est includo sem qualquer relao imediata com a produ-o. Vemos isso, por exemplo, no ensino tcnico e voca-cional: trabalhar em um motor, carpintejar uma moldura de janela. Isso importante, mas no diretamente uma funo da vida produtiva: o carro no precisa ser entregue, a janela no precisa ser vendida. A escola o lugar onde o trabalho "no real". Isso significa que ele transformado em um exerccio que, como um jogo, realizado para seu prprio bem, mas ainda requer disciplina. Claro que, hoje em dia onde os espaos de aprendizagem hiper-realistas so a norma e a educao orientada para a competncia saudada como a nova direo para a escola , o que

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    o que o escolor?

    acontece na escola muitas vezes criticado como "no real" ou "no realista". E isso muitas vezes reforado com a crtica adicional de que se aprende melhor uma profisso fora da escola. O que precisamos, dizem, no so alunos, mas aprendizes. Aprender um ofcio deve compartilhar uma relao direta e imediata com a produo do mundo real do uso pretendido do negcio. Para ns, no entanto, h uma diferena substancial entre alunos e aprendizes o modelo escolar}a^ algo, e atravs dele, a prtica e o estudo so possibilitados. A escola no um campo de treinamento para aprendizes, mas o lugar onde al^ tal como um texto, um motor, um mtodo particular de car-pintaria - realmente se torna separado de seu prprio uso e, portanto, tambm se torna separado da funo e signifi-cado que ligam aquele algo famlia ou sociedade. E esse trazer para o jogo, esse transformar algo em matria de estudo^ que necessrio, a fim de se aprofundar em alguma coisa como um objeto de prtica e de estudo. Em breve, vamos mostrar que transformar algo em jogo, isto , destacar algo do seu uso adequado, precisamente a pr-condio para a compreenso da escola como situao inicial; uma situa-o em que as crianas ou os jovens podem, literalmente, comear algo novo. Antes, porm, gostaramos de dizer algumas palavras sobre a maneira pela qual profanao e a suspenso abrem o mundo, e isso atravs da ateno e do interesse, em vez da motivao.

    'VllL Uma questo de ateno e de mundo (ou abrir, criar interesse, trazer vida, formar)

    Ela tinha visto aqueles animais muitas m^es. Ela conhecia alguns deles pelo nome. O gato e o cachorro,

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  • CoiEo "EDUCAO: EXPERINCIA E SENTIDO"

    claro correm solta na casa. Ela conhece as aves tambm. Podia distinguir um pardal de um canrio-

    a-terra e um melro de um corvo. E, claro, todos os animais da Jat^nda. Mas ela nunca pensou nisso duas

    ve^s. E exatamente como era. Todo mundo da sua idade sabia essas coisas. Era senso comum.

    A.t aquele momento. Uma aula com nada alm de estampas. Sem fotos, sem filmes. Estampas bonitas

    que transformaram a sala de aula em um ^^oolgico, s que sem as gaiolas e as barras. E a vo^ da professora

    que comandava a nossa ateno, porque ela deixava as estampasfalarem. -As aves tinham um bico e o bico,

    uma forma, e a forma falava sobre a comida: comedores de insetos, comedores de sementes, comedores de peixe...

    Ela foi atrada para dentro do reino animal, tudo se tornou real O que antes parecia bvio tornou-se

    estranho e sedutor. As aves comearam a falar de novo, e, de repente, ela podia falar sobre elas de uma

    maneira nova. Que algumas aves migram e outras ficam quietas no lugar. Que um quivi um pssaro,

    uma ave no voadora da Nova Zelndia. Que as aves podem se extinguir. Ela foi apresentada ao dod. E

    isso em uma sala de aula, com a porta fechada, sentada em sua carteira. Um mundo que ela no conhecia.

    Um mundo ao qual ela nunca tinha prestado muita ateno. Um mundo que apareceu do nada, invocado

    por estampas mgicas e uma vo^ encantadora. Ela no sabia o que a surpreendia mais: esse novo mundo que tinha sido revelado a ela ou o crescente interesse que ela descobriu em si mesma. Isso no

    importava. Caminhando para casa naquele dia, algo havia mudado. Ela havia mudado.

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    o que o escolar?

    A escola , repetidamente, acusada de ser muito dis-tante do mundo. De que ela no consegue lidar com o que c importante na sociedade; que ela se ocupa com conhe-cimentos e habilidades desatualizados ou estreis; que os professores esto muito preocupados com detalhes e com o jargo acadmico. Em resposta, queremos argumentar que a profanao e a suspenso tornam possvel abrir o mundo na escola e que ele , de fato, o mundo (e no necessidades ou talentos individuais de aprendizagem) que est sendo revelado. Naturalmente, os crticos tm um entendimento diferente do que " o mundo". Para eles, o mundo um lugar de aplicabilidade, usabilidade, relevncia, concretude, competncia e rendimento. Eles assumem que "sociedade", "cultura" ou "mercado de trabalho" so (e devem ser) as pedras de toque finais deste mundo. Ousamos afirmar que essas entidades so, acima de tudo, ficcionais. Ser que real-mente sabemos o que esperado pela "sociedade" (muito menos a chamada "sociedade que muda rapidamente"), ou o que realmente til? As listas de competncias que esto na moda no so apenas quimeras que perderam toda a hgao concreta com a realidade? A insistncia na impor-tncia prtica e utilidade no profundamente pretensiosa, enganadora e at fraudulenta para os jovens? Isso no quer dizer que as competncias e as prticas na sociedade ou no mercado de trabalho no servem para nada. Mas mesmo que elas criem as instrues de funcionamento ou pontos de orientao, a escola faz outra coisa. A escola no est separada da sociedade, mas nica, visto que o local, por excelncia, de suspenso escolstica e profanao pela qual o mundo aberto.

    Em Trem notumo para Ushoa, um romance filosfico de Pascal Mercier, o professor e protagonista, Gregory, relembra seu prprio professor de grego. O que ele escreve

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  • CoLEio "EDUcftCO: EXPERINCIA E SENTIDO"

    se aplica to bem a um professor de lnguas como a um professor de matemtica, geografia ou carpintaria:

    A primeira aula da tarde era de grego. O professor era o diretor [...]. Ele tinha a mais primorosa caligrafia grega que se podia imaginar; desenhava as letras, principalmente as de traos arredondados, como o mega ou o teta, ou o trao do eta que descreve um movimento para baixo. Ele amava a lngua grega. "Mas amava-a de um jeito errado", pensava Gre-gorius no fundo da sala de aula. A sua maneira de amar era vaidosa. No pelo fato de celebrar as pa-lavras. Se assim fosse, Gregorius teria gostado. Mas quando aquele homem escrevia de forma virtuosa as formas verbais mais complexas e difceis, no estava celebrando as palavras, mas sim a si prprio, como al-gum que as dominava. Desta forma, as palavras se tornavam ornamentos com os quais ele se adornava, transformando-se em algo parecido com a sua gra-vata-borboleta de bolinhas que ele usava entra ano, sai ano. Fluam da mo em que ele usava seu anel de braso, como se tambm fossem uma espcie de joia, portanto, tambm suprfluas. Assim, as palavras gregas deixavam de ser realmente palavras ^ re ^JJ. Era como se o p de ouro do anel descompusesse a sua essncia grega, acessvel apenas quele que as amasse por sua causa unicamente. Para o diretor, a poesia era como um mvel raro, um vinho sofisticado ou um elegante vestido de noite. Gregorius tinha a sensao de que, com a sua presuno, o diretor lhe roubava os versos de Esquilo e Sfocles. Ele parecia no conhecer nada dos teatros gregos. No, ele conhecia tudo, vivia viajando para a Grcia, viagens guiadas das quais voltava bronzeado. Mas no entendia nada

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    O que o escolar?

    daquilo mesmo que Gregorius no conseguisse explicar ao certo por qu (MERCIER, 2007, p. 39-40).

    Essa passagem particularmente expressiva por in-meras razes, e voltaremos a ela em outro lugar. Aqui, importante indicar com clareza o que exatamente acontece na escola quando ela "trabalha" como uma escola e o que perdido como um resultado do egosmo e da arrogn-cia do reitor, nesse exemplo. Isso ex negativo deduzido a partir do exemplo: algo se toma real epassa a existir em epor si mesmo. As palavras gregas tornam-se palavras gregas reais. E, embora isso signifique que elas no podem imediata-mente ser vistas em funo da sua utilidade, no significa que so suprfluas (como "jias vaidosas"). Elas passam a existir em si mesmas; no fazem nada (ou seja, nada de especial), mas so, em si, importantes. A lngua se torna verdadeira lngua e a lngua se torna lngua em si mesma, assim como em outras aulas a madeira se torna madeira real e os nmeros, nmeros reais. Esses algo comeam a se tornar parte do nosso mundo em um sentido real, comeam a gerar interesse e comeam a nos "formar" (no sentido do conceito holands de vormin^. O exemplo tambm deixa claro que esse evento formativo no s tem a ver com a sala de aula e o professor, mas tambm com o amor (uma ideia qual voltaremos).

    Desse modo, entendemos a formao no como um tipo de atividade auxiliar da escola; como algo que ocorre fora das matrias de estudo atuais e que tem a ver com os valores de um ou outro projeto educacional. Em vez disso, a formao tem a ver com a orientao dos alunos para o mundo como ele construdo para existir no sujeito ou na matria, e essa orientao diz respeito, principalmente, ateno e ao interesse para com o mundo e, igualmente,

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  • CoEo "EDUCACAO: EXPERIB-IOA E SENTIDO"

    ateno e ao interesse para com a prpria pessoa em relao ao mundo. Pennac, pensando em seus prprios professores, tenta articular o que se passa durante as aulas:

    Tudo o que sei que trs deles tinham uma paixo por comunicar seus contedos. Armados com essa paixo, eles me localizaram no abismo do meu des-nimo e no desistiram at que eu tivesse os dois ps firmemente plantados em suas aulas, que provaram ser as antecmaras da minha vida. [...] Esse gesto de salvar uma pessoa que est sc afogando, que o agar-ra e puxa para cima, apesar de sua agitao suicida, a crua imagem de afirmao da vida dc uma mo segurando firmemente a gola do casaco a primeira coisa que me vem mente quando penso neles. Em sua presena - em suas matrias eu dei luz a mim mesmo: um eu, que era um matemtico, um eu que era um historiador, um eu que era um filsofo, um eu que, no espao de uma hora, esquecia um pouco de mim mesmo, me colocava entre parnteses, livrando-me do eu que, antes de encontrar esses professores, tinha me impedido de sentir que eu estava realmente l (PhNNAC, 2010, p. 224-225).

    Aqui, o (neste caso, desanimado) "eu" suspenso em confronto com o mundo (alado, colocado entre parnteses), o que permite um novo "eu" em relao quele mundo que vai tomar forma e ser fabricado. Essa transformao o que queremos referir a como formao. Esse novo "eu" , antes e acima de tudo, um eu da experincia, da ateno e da exposio a alguma coisa. No entanto, devemos ter o cuidado de distinguir formao de aprendizagem. Ou, dito de outra forma, a formao tpica para a aprendiza-

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    o que o escolar?

    gem na escola. A aprendizagem envolve o fortalecimento ou ampliao do eu J existente^ por exemplo, por meio da acumulao de competncias ou da expanst> da base de conhecimento do indivduo. Aprender, nesse sentido, implica uma extenso do prprio mundo da vida do indi-vduo, acrescentando algo. O processo de aprendizagem continua a ser introvertido um reforo ou uma extenso do ego, e, portanto, o desenvolvimento da identidade. Na formao, no entanto, esse eu e o mundo da vida do indi-vduo so colocados em jogo constante desde o incio. A formao envolve, assim, sair constantemente de si mesmo ou transcender a si mesmo ir alm do seu prprio mundo da vida por meio da prtica e do estudo. E um movimento extrovertido, o passo que segue uma crise de identidade (SLOTERDIJK, 2011). Aqui, o eu no adiciona ao conheci-mento previamente adquirido, e isso acontece precisamente porque o eu est, na verdade, no processo de ser formado. O eu do aluno est, assim, sendo suspenso, dissociado: um eu colocado entre parnteses ou um eu profano e que pode ser formado, ou seja, pode se dar a ele uma forma ou configurao especficas.

    Queremos enfatizar, mais uma vez, que isso torna possvel para a escola, na medida em que consegue faz-lo, abrir o mundo para o aluno. Isso significa, literalmente, que algo (palavras gregas, uma pea de carpintaria, etc.) tornado parte do nosso mundo e (n)forma o mundo. Informa nosso mundo em um duplo sentido: forma parte do mundo (que podemos, ento, compartilhar) e />?forma, isto , partilha algo com o mundo existente (e, dessa forma, acrescenta algo ao mundo e o amplia). Quando algo se torna parte do mundo, isso no significa que se torna um objeto de conhecimento (algo que sabemos sobre o mundo), que

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  • CoifCo "EDUCACAO; EXPERINCIA E SENTIDO'

    , de alguma forma, somado nossa base de conhecimento, mas sim que se torna parte do mundo em que/pelo qual estamos imediatamente envolvidos, interessados, curiosos, e assim tambm algo que se torna um inter-esse (algo que no nossa propriedade mas que compartilhado entre ns). Poderamos dizer que no mais um "objeto" (inanimado), mas uma "coisa" (viva).

    Isso , literalmente, o que vemos acontecer no filme O filho, dos irmos Dardenne. Somos confrontados com um professor em ao, Olivier, um professor muito "comum", que mais ou menos o oposto do professor descrito acima por Gregorius. Ele consegue despertar um interesse por carpintaria em um de seus alunos completamente "derro-tado" e perturbado (um jovem criminoso condenado por assassinato que veio para aprender uma "ocupao", na esperana de um dia ser capaz de voltar para a sociedade). Vemos como a madeira se torna madeira real para esse aluno e no simplesmente algo com que fazer armrios ou cadeiras ou para usar como combustvel na lareira, ou, para essa matria, algo que o conduz a uma ocupao que "vai le-v-lo para algum lugar" (mesmo que isso parea ser o caso). Como antes, aqui a madeira afastada de seu prprio lugar; torna-se madeira real, em si mesma, e, portanto, torna-se, em forte sentido, uma parte do mundo desse aluno. Comea a pertencer ao seu mundo, ao que interessa a ele e o ocupa, E algo que comea afi)m-io, produz mudanas nele, muda a maneira como a sua vida e o mundo realmente aparecem para ele e lhe permite comear de uma nova forma "com" o mundo. Abrir o mundo no significa apenas vir a conhecer o mundo, mas tambm se refere ao modo como o fechado-no-mundo isto , a maneira determinada em que o mundo deve ser compreendido e usado, ou a maneira como ele .

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    O que o escolar?

    realmente, usado aberto e o prprio mundo tornado aberto e livre e, portanto, compartilhado e compartilhvel, algo interessante ou potencialmente interessante: um objeto de estudo e de prtica.

    Resta ainda um ponto muito importante. Na medida em que o escolar est preocupado com a abertura do mun-do, a ateno e no tanto a motivao de importncia crucial, A escola o tempo e o lugar onde temos um cuida-do especial e interesse nas coisas, ou, em outras palavras, a escola focaliza a nossa ateno em algo. A escola (com seu professor, disciplina escolar e arquitetura) infunde na nova gerao uma ateno para com o mundo: as coisas comeam a falar (conosco). A escola torna o indivduo atento e garante que as coisas destacadas de usos privados e posies tornem-se "reais". Ela faz alguma coisa, ela ativa. Nesse sentido, no se trata de um recurso, produto ou objeto para utilizao como parte de uma determinada economia. Trata-se do momento mgico quando alguma coisa fora de ns mesmos nos faz pensar, nos convida a pensar ou nos faz coar a cabea. Nesse momento mgico, algo de repente deixa de ser uma ferramenta ou um recurso e se torna uma coisa real, uma coisa que nos faz pensar, mas tambm nos faz estudar e praticar. E um acontecimento, no sentido vivo da palavra, ou, como Pennac, apropriada-mente, relata de novo:

    Eles eram artistas em transmitir suas matrias. Suas aulas eram feitos de comunicao, claro, mas tam-bm de conhecimento dominado, ao ponto em que quase passava por criao espontnea. Sua facilidade transformava cada aula em um evento a ser lembrado. Como se a senhorita Gi estivesse ressuscitando a his-

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  • COLEO "EDUCAO: EXPERINCIA E SENTIDO"

    tria, o Sr. Bal redescobrindo a matemtica e Scrates falando atravs do Sr. S.! Eles nos davam aulas que eram to memorveis quanto o teorema, o tratado de paz ou o conceito bsico que constitui sua matria, em qualquer dia particular. Seu ensino criava eventos (PENNAC, 2010, p. 225-226).

    Pode-se formular esse "evento" como algo que nos faz pensar, desperta nosso interesse, torna algo real e significati-vo, um assunto que importa. Uma prova de matemtica, um romance, um vrus, um cromossomo, um bloco de madeira ou um motor todas essas coisas so tornadas significativas e interessantes. Esse o acontecimento mgico da escola, o movere o movimento real ~- que no deve ser rastreado at uma deciso individual, escolha ou motivao. Enquan-to a motivao uma espcie de caso pessoal, mental, o interesse sempre algo fora de ns mesmos, algo que nos toca e nos leva a estudar, pensar e praticar. Leva-nos para fora de ns mesmos. A escola se torna um tempo/espao do inter-esse do que compartilhado entre ns, o mundo em si. Naquele momento, os alunos no so indivduos com necessidades especficas que escolhem onde eles querem investir seu tempo e energia; eles so expostos ao mundo e convidados a se interessarem por ele; um momento em que a verdadeira comun-icao possvel. Sem um mundo, no h interesse nem ateno.

    /X Uma questo de tecnologia (ou praticar, estudar, disciplina)

    Muitas ve^s eu tive que me arrastar para a minha carteira. Os trabalhos de casa e outras tarefas estavam

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    o que o escolar?

    apenas sentados l esperando por mim, sempre impacientes, sempre a fonte de uma luta constante.

    Eu tentei me forar e, quando necessrio, me sedui^ir a estudar evocando o inferno ou prometendo a mim

    mesmo o paraso. Mas esses dilogos ntimos nem sempre funcionavam. Eu conhecia muito bem minhas prprias

    fraque^s. Eu sabia qual a distrao que podia me sedu^r. O que me convenceu a estudar, a praticar,

    para darpartida nas coisas? Para ser honesto, nada e ningum. E um comando estranho: voc deve estudar, voc

    no deve apenas enfrentar a tarefa, mas voc tambm deve se dedicar tarefa. No foi uma ordem de meus

    pais ou professores que me levaram a ver a importncia de um diploma. Suas advertncias eram, na melhor das

    hipteses, uma reflexo tardia inoportuna. Eu nunca encontrei uma explicao para esse comando. Nem

    mesmo mais tarde, como um estudante de filosofia. A exigncia de estudar e praticar no um imperativo

    hipottico no est ligada a condies ou propsitos. Mas tambm no um imperativo categrico - no

    uma exigncia derivada de um puro desejo. Um pensamento selvagem: talve^ o meu ponto cego seja o ponto cego de toda a filosofia. A filosofia por epara

    adultos. E se a escola traq^ o tempo e o mundo vida, gera curiosidade e torna possvel a experincia de

    tirar a vida de algum com as prprias mos, incute o impulso para conseguir algo? Trata-se do nascimento da conscincia pedaggica e do imperativo pedaggico. Uma

    pessoa que pode se tomar interessada, que tem que estudar e praticar, aprimorar e dar forma a si mesma.

    "Faa o seu melhor", "continue", "observe de perto", "preste ateno", "experimente", "comece"-esses so os

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  • pequenos gestos de uma grande filosofia da escola. E de onde vem o amor pela escola? Talve':^ devssemos explicar

    o nosso esquecimento da, e talve^ at mesmo dio pela escola em primeiro lugar.

    No h nenhuma curiosidade e interesse sem o tra-balho mas isso tambm significa que curiosidade e in-teresse devem ser tornados possveis, assim como o mundo deve ser processado como tal, isto , apresentado. Nesse ponto, chegamos dimenso tcnica da escola (que existe paralelamente ao papel do professor, que ser discutido mais tarde). Escola e tecnologia podem, primeira vista, parecer ser uma estranha combinao. De fato, a partir de uma perspectiva humanista, frequentemente assumido que a tecnologia principalmente de interesse para o mundo produtivo e domnio da natureza e do homem. A autor-realizao, argumenta-se, tem lugar na esfera da cultura, das palavras e significados, do contedo, do conhecimento fundamental. A tecnologia, por outro lado, pertence ao domnio da fabricao e da manufatura, do aplicvel, da lgica instrumental. A partir de uma perspectiva humanista, a tecnologia algo que deve ser mantido fora da escola ou, pelo menos, algo que deve ser cuidadosamente abordado em termos de um meio que permita chamada pessoa bem formada alcanar seus fins humanitrios: em primeiro lugar, a aquisio de entendimento e conhecimento bsicos e, em segundo, a traduo disso em tcnicas e aplicaes concretas. Mas, dar forma escola, ou seja, estimular o interesse por cuidadosamente criar e apresentar o mundo, inconcebvel sem a tecnologia.

    Aqui estamos pensando muito simplesmente no qua-dro-negro, no giz, no papel, na caneta, no livro, mas tam-bm na carteira e na cadeira. A arquitetura e o arranjo

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    O que o escolar?

    espacial da escola e da sala de aula tambm so relevantes. Essas coisas no so ferramentas ou ambientes que po-dem ser usados livremente ou que so usados de acordo com a inteno de algum. O aluno ou o professor no assume, automaticamente, o c)ntrole sobre elas. Mais exatamente, sempre h um elemento inverso no trabalho: esses instrumentos e espaos reafirmam o controle sobre o aluno e o professor. De certa forma, a classe expulsa o ambiente imediato e torna possvel que algo do mundo esteja presente. Sentar em uma carteira no apenas um estado fsico; isso tambm acalma e focaliza a ateno: um lugar para sentar e ficar vontade. A lousa no apenas uma superfcie em que a matria aparece na forma escrita. Muitas vezes, a lousa mantm o professor com os ps no cho. Passo a passo, um mundo levado a se revelar diante dos olhos dos alunos. Escrever esboos do curso uma clssica atividade do quadro-negro. Os resumos de aulas anteriores trazem nossas mentes de volta para o momento de sua composio e so, normalmente, difceis de de-cifrar para os alunos que perderam a prpria aula. Esses instrumentos so, assim por enquanto , parte do que ns gostaramos de chamar de tecnologia escolar. Mas eles no esto sozinhos. A sua fora de trabalho se encaixa com uma abordagem, um mtodo de aplicao e atos concretos. Aqui podemos falar de mtodos de ensino e, mais particularmente, mtodos que tanto geram interesse quanto abrem o mundo ou o apresentam. Muitos desses mtodos de ensino ainda esto cravados em nossas mentes como arqutipos (conjuntos de problemas de lgebra, ditados, ensaios, apresentaes de aula, etc). Isso talvez acontea porque esses mtodos tm um forte carter escolstico e s so eficazes como parte de uma tecnologia escolar. Aqui, novamente, til trazer Daniel Pennac:

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  • CoiEco "EDUCAO: EXPERINCIA E SENTIDO"

    Ento, o ditado reacionrio? Ele , certamente, ine-ficaz se tratado negligentemente por um professor interessado apenas em ded^zjj qotas a fim de chegar a uma pontuao final, [...j'iSempre pensei no ditado como um encontro frontal com a lngua. A lngua como som, como histria, como raciocnio; a lngua como ela se escreve e se constri, ou seja, significando conforme esclarecida por meio da correo meticulosa. Porque o nico objetivo de corrigir o ditado acessar o significado exato do texto, o esprito da gramtica, a riqueza das palavras. Sc a nota se destina a medir algo, certamente a distncia percorrida peias partes interessadas nessa jornada em direo compreenso. [,..] No entanto, grande o meu terror na infncia quando aparecia o ditado e Deus sabe que meus professores o administravam como invasores abastados sitiando o quarteiro mais pobre de uma cidade - eu sempre fui curioso sobre aquela primeira leitura. Cada ditado comea com um mistrio: o que est prestes a ser lido para mim? Alguns ditados da minha infncia eram to bonitos que eles continuavam a se dissolver dentro de mim como uma gota de pera muito depois de eu ter recebido a minha ignominiosa nota (PENNAC, 2010, p. 113-115).

    O ditado, como Pennac o descreve, habilmente evoca dois aspectos particulares da tecnologia escolar. Um ditado um evento em que o mundo comunicado ~ "um encon-tro direto com a l ngua" e que desperta o interesse. Um ditado tambm uma espcie de jogo. O texto removido de seu uso comum e oferecido ao ato da escrita como tal, ou seja, ao exerccio e estudo da l ngua como um todo. Nesse sentido, sempre h algo em risco: a lngua colocada

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    O que o escolar?

    em jogo, e tambm os alunos. Eles ocupam uma situao inicial - "nesta jornada para o entendimento".

    Exatamente como qualquer outro mtodo de ensino, o ditado torna explcito o lugar do professor como media-dor que conecta o aluno ao mundo. Esse encontro permite ao aluno deixar seu imediato mundo da vida e entrar no mundo do tempo livre. Nesse sentido, um mtodo de ensino deve, constantemente, ser conectado ao mundo da vida dos jovens, porm, exatamente para remov-los de seu mundo de experincia. As regras para um ditado so claras; todos sabem o que ele e como ele funciona. Um ditado um ditado. Esse um puro mtodo de en-sino. Mas a "eficcia" dos mtodos de ensino escolares repousa, especialmente, nos pequenos frequentemente muito pequenos - detalhes que despertam a curiosidade dos jovens, proclamam a existncia de novos mundos e incitam os alunos a se dedicarem a iniciar algo (ou seja, praticar e estudar). Essa mincia implica que a curiosidade pode, rapidamente, tornar-se insegurana, que os alunos podem se recusar a jogar o jogo e que o encontro com o mundo pode ser enganoso. Em tal situao, o encontro com o ditado experimentado pelos alunos como uma proclamao pblica de sua incompetncia ou ignorn-cia. Um mtodo de ensino escolstico no centraliza seu foco na incompetncia ou ignorncia do aluno. Se ele fizesse isso, um ditado se tornaria outra forma de teste ou exame e colocaria os alunos numa posio de culpa e incompetncia at que provem o contrrio. Acima de tudo, o mtodo de ensino escolstico torna a experincia de fazer e aprender a experincia de "eu quero ser capaz de fazer isso ou saber isso" - possvel, despertando, ideal-mente, uma nova dedicao prtica e ao estudo. Pode-se

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