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acasadevidro.com https://acasadevidro.com/2016/04/19/em-debate-a-luta-de-classes-morreu/ acasadevidro.com 19/04/2016 EM DEBATE: “A LUTA DE CLASSES MORREU?” MARX VIVE ou “A LUTA DE CLASSES NÃO MORREU” Na tirinha que ilustra o início deste post, o Charb – cartunista assassinado por terroristas na redação do Charlie Hebdo – tece um comentário sagaz sobre a sobrevivência entre nós de Marx. O autor d’ O Capital é visto na charge a dialogar com o ex-presidente francês Sarkozy, e em debate está a pertinência ou não da luta de classes para a descrição da nossa realidade sócio-política. Com seu brilhante petardo anti-idealista, o filósofo materialista-dialético dá um touché de esgrima retórica e mostra ao adversário Sarkoburguesista: “Não é porque vocês tiraram de moda a descrição da realidade que a realidade não existe mais”! A batalha entre idealismo e materialismo, que muito além de uma querela filosófica, tem em Marx um dos batalhadores mais contundentes em prol do materialismo, via o comunismo não como um ideal que existe só em “Cucolândia das Nuvens” – uma antecipação dogmática do porvir, uma fantasia totalitária… – mas sim um movimento real e concreto, uma congregação coletiva de forças em luta por sua emancipação. 1/18

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acasadevidro.com 19/04/2016

EM DEBATE: “A LUTA DE CLASSES MORREU?”

MARX VIVE ou “A LUTA DE CLASSES NÃO MORREU”

Na tirinha que ilustra o início deste post, o Charb – cartunista assassinado porterroristas na redação do Charlie Hebdo – tece um comentário sagaz sobre asobrevivência entre nós de Marx.

O autor d’O Capital é visto na charge a dialogar com o ex-presidente francêsSarkozy, e em debate está a pertinência ou não da luta de classes para adescrição da nossa realidade sócio-política.

Com seu brilhante petardo anti-idealista, o filósofo materialista-dialético dáum touché de esgrima retórica e mostra ao adversário Sarkoburguesista: “Não éporque vocês tiraram de moda a descrição da realidade que a realidade nãoexiste mais”!

A batalha entre idealismo e materialismo, que muito além de uma querelafilosófica, tem em Marx um dos batalhadores mais contundentes em prol domaterialismo, via o comunismo não como um ideal que existe só em “Cucolândiadas Nuvens” – uma antecipação dogmática do porvir, uma fantasia totalitária… –mas sim um movimento real e concreto, uma congregação coletiva de forças emluta por sua emancipação.

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Marx não é o pregador de uma utopia pré-definida, é o pensador que tem sempre por base a “crítica radical darealidade dada”, como aponta Daniel Bensaïd:

“Não queremos antecipar dogmaticamente o mundo, mas, ao contrário, encontrar o novo mundo apartir da crítica do antigo”, escreveu Marx. “O comunismo, enquanto negação da propriedadeprivada, é a reivindicação da verdadeira vida humana como propriedade do homem.” Até então, osfilósofos tinham se contentado em interpretar o mundo de diferentes maneiras; o que importa agoraé transformá-lo. Para transformá-lo, certamente é preciso continuar a decifrá-lo e interpretá-lo, masinterpretá-lo de outro modo, de maneira crítica e prática. Esgotou-se a crítica da religião e dafilosofia especulativa. A ‘crítica da economia política’ vai mobilizar a inteligência de Marx até suamorte.” (BENSAÏD, p. 20 e 25)

Este me parece um bom começo para tentarmos compreender de onde vem o dom da obra Marxiana depermanecer em perene presença no debate político e perseverar como uma das ferramentas mais fecundas para anossa correta “leitura de mundo”. Marx não se limitou a realizar uma crítica das ideias alheias (como as de Hegel,Feuerbach, Max Stirner, Bruno Bauer…), foi um intenso dialogador com outras vertentes políticas de seu tempo(como as “encarnadas” por movimentos e partidos, agremiações e clubes secretos, que se inspiravamideologicamente nas doutrinas de Proudhon, Blanqui, Lassalle, Bakunin etc.).

Essa atualidade perene de Marx, me parece, tem a ver com o fato de que a realidade presente, de que somoscontemporâneos e co-agentes, manifesta ainda (e manifestará sempre?) indícios às mancheias de que a Históriatem sim o seu “motor de combustão interna”, por assim dizer, na luta de classes. Como Marx e Engels já diziam nabombástica imagética do Manifesto Comunista:

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Nele, um “espectro rondava a Europa” – o comunismo – e nele se expressava não apenas um ideal, alojado nocérebro e nos sonhos subjetivos de certas classes, mas muito mais um movimento social, visivelmente real eobjetivo, palpável em sua concretude, nascido da própria refrega interminável entre as classes e da ânsia delibertação dos oprimidos.

Comunismo, pois, como movimento real, e não apenas como ideal estéril. Movimento que lutava em prol dacontestação e da tentativa-de-superação de uma (des)ordem social, de uma barbárie institucionalizada, aquilo queGaleano e Ziegler batizaram, em documentário contundente, de “A Ordem Criminosa Do Mundo”.

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Mais que sonho, portanto, o comunismo era compreendido como força. Uma força encarnada na classe que lutavacontra a injustiça social, a espoliação, a super-exploração, o proletariado fabril que era a vítima cotidiana daopressão e da miséria. Para Marx, a engrenagem do capitalismo, cravejado de contradições, criavanecessariamente uma espécie de mecanismo auto-destrutivo. O capitalismo sempre engravida e dá à luz crisescíclicas e recorrentes, no decurso das quais vai gestando o seu coveiro. O proletariado seria a classe que anulariaa divisão social em classes, instituindo um mundo onde o monopólio da propriedade privada dos meios deprodução não tivesse permissão comunitária para agir como um social killer, na expressão feliz de Bensaid.

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A classe que monopoliza os meios de produção – a burguesia industrial e seus financistas, os banqueiros – comoum vampiro de mil dentes enfia seus caninos nas carótidas da classe trabalhadora: é o que o Livro 1 de OCapital desvendará, a famosa “mais-valia” que melhor seria compreendida se falássemos em rapinagem de classe,de vampirismo social, de modo que a obra de Marx é excelente aliada no desvendamento da “relação deexploração, a extorsão do mais-valor nos porões do mercado, onde se elucida o prodígio do dinheiro que parecefazer dinheiro, fertilizar a si mesmo em mistério tão fantástico quanto a imaculada conceição. Esse fato advém daseparação entre o trabalhador e seus meios de produção, entre o camponês e a terra, entre o operário e asmáquinas e ferramentas, transformadas em propriedade exclusiva do patrão.” (BENSAÏD, p. 41)

O moinho satânico da mais valia, que o Capital de Marx revela em minúcias, tem suas entranhas expostas tambémpor Karl Polanyi ou Simone Weil, por Paulo Freire ou Frantz Fanon; participa do Patriarcado machista que osativismos feministas hoje contestam, tem culpa no cartório nas teorias eugenistas e higienistas tão próximas aofascismo das “Soluções Finais”, além de ter se erguido sobre o escravismo que hoje se mantêm no racismoinstitucionalizado no sistema penal, policial, penitenciário.

A luta de classes pode até ter saído de moda nos discursos oficiais de chefes-de-Estado em democracias liberais (oneo-liberalismo pretendeu até decretar o “fim da História” e a pacificação total do rebanho humano, descrito comooni-satisfeito e 100% obediente à atual encarnação do capitalismo globalizado: como se fôssemos 8 bilhões defelizes, todos sorridentes e saltitantes no mundo dos shopping centers e dos agrotóxicos!).

A mais recente pesquisa da Oxfam revelou : “1% da população global detém mesma riqueza dos 99%restantes” (manchete da matéria da BBC Brasil ). Nas obras de grandes pesquisados contemporâneos, de DavidHarvey a Thomas Pikkety, o cenário de grotesca desigualdade é exposto à luz do dia, o capitalismo neoliberal emsua assanhada sanha privatizadora, concentradora de capital, produtora de desigualdade, convulsionadora detensões e antagonismos sociais, é denunciado como o que foi já nos anos 1970, no Chile de Pinochet, debuteda Shock Doctrine (N. Klein), a doutrina de uma plutocracia que é avessa à democracia e à qualquer doutrina decoletivismo ou igualitarismo. E que reza de joelhos no culto do Mercado Livre Desregulado.

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A luta de classes prossegue dando o tom na base real da sociedade, nas barricadas de rua, nas guerras campais,nos choques de civilização, nas bombas que chovem sobre o Oriente Médio nas guerras do petróleo, nos clashesentre traficantes de narcóticos ilegalizados pelo proibicionismo e esquadrões de policiais militares com licença-para-matar (mesmo em países, como o nosso, onde pena-de-morte inexiste na letra da lei)… Tudo constituindoeste assustador, pois profundamente dissonante e caótico, troço que é a História – a real, a profana. O Brasil de2016 traz inumeráveis evidências disso, o que torna Marx novamente urgente e necessário, dando razão aJacques Derrida quando disse:

“Será sempre um erro não ler, reler e discutir Marx. Será um erro cada vez maior, uma falta deresponsabilidade teórica, filosófica, política.” (DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx)

A cisão da sociedade em classes, efeito conjunto do regime da propriedade privada e da obscena desigualdade nadistribuição de capital, advém da “separação entre o trabalhador e seus meios de produção, entre o camponês e aterra, entre o operário e as máquinas e ferramentas, transformadas em propriedade exclusiva do patrão.”(BENSAID, p. 41)

Nas páginas de Marx, analisam-se os labirintos (que depois tanto inspirariam a obra de Cornelius Castoriadis)de uma sociedade cindida, rachada, cravejada de antagonismos, praticante cotidiana de injustiças e barbáries emmega escala. Longe de ser um cientista neutro diante de uma História que supostamente se poderia observar delonge, com sangue-frio e com total desengajamento, Marx refletia na plena união de teoria e práxis, na soma decabeça e coração, síntese de pensador e ativista (prenunciando nisto Eduardo Galeano ou Arundhati Roy, dois dosmais brilhantes pensadores políticos recentes).

Marx congrega sua análise crítica do capitalismo a um senso ético de indignação recorrente perante a barbáriesocial que o capitalismo gera, moendo gente em seus “moinhos satânicos” (para lembrar obra seminal de KarlPolanyi, A Grande Transformação). Um aspecto da obra marxista, aliás, que costuma ser sub-representada nasanálises economicistas ou politiqueiras, é o enraizamento ético do discurso de Marx, que opera com frequênciacom conceitos como “fraternidade” e “justiça”, que são do âmbito dos valores e ideais, e não do juízo de fato

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ontológico.

Lendo Marx, vemos com frequência descortinar-se diante de nossa consciência expandida a noção de um abismoentre o ideal e o real, e do comunismo como força real que procura edificar a ponte. Em Paris, diantedos ouvriers que se unem tendo como meta comum a edificação de um mundo melhor, diz: “a fraternidade não énenhuma frase, mas sim verdade para eles, e a nobreza da humanidade nos ilumina a partir dessas figurasendurecidas pelo trabalho.” (MARX, Manuscritos econômico-filosóficos)

Sobre o esmagamento da dignidade que é imposto de cima à classe proletária, História afora, não faltam detalhesminuciosos (sobre a situação francesa no séc. 20, por exemplo, uma obra-prima é a de Simone Weil, A CondiçãoOperária e outros ensaios sobre a opressão; sobre o berço do capitalismo fabril, a Inglaterra, ver Hobsbawn,Thompson, Engels). É boquiaberto de indignação diante disso que Marx formula a teoria da luta de classes,dizendo, do proletariado, que é “uma classe com grilhões radicais” e que “contra ela não se comete uma injustiçaparticular, mas a injustiça por excelência.” (MARX, Crítica da filosofia do Direito de Hegel, p. 156)

Ao sustentar que a História têm por essência a luta de classes, o barbudo filósofo alemão, como aponta com justiçaDaniel Bensaïd, queria romper com toda e qualquer teoria da História manchada por mofados ranços teológicos, ouseja, queria chutar para escanteio qualquer visão-de-mundo que postulasse um Deus lá nos céus, Senhor-tirânicoe Dono-da-História, que nos utilizasse como peças de seu divino xadrez ou como bonecos em seu teatro defantoches:

“A História para Marx não é este personagem todo-poderoso, a História universal, da qual seríamosmarionetes. (…) A história presente e aquela por vir não são a meta da história passada. Em AIdeologia Alemã, Marx e Engels esclarecem que ‘a história nada mais é do que o suceder-se degerações distintas’ , à diferença da história religiosa, a história profana não conhece predestinaçãonem julgamento final. É uma história aberta, que faz no presente a ‘crítica radical de toda a ordemexistente, uma luta entre classes, com desfecho incerto.” BENSAID, Daniel, Marx – Manual deInstruções, Boitempo, pgs. 33-34

Ilustração: Charb (falecido, do Charlie Hebdo)

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Para citar o gênio punk Joe Strummer, do The Clash (e depois Los Mescaleros), The Future is Unwritten – o futurohistórico ainda não está escrito. Como todo presente histórico, é o nosso também marcado pela luta declasses, não só a atual mas também a que nos foi legada pelas gerações antecedentes. Bensaïd usa a expressãoimpressionante: misérias herdadas. Destas o Brasil está repleto. Mas isto é tendência histórica geral, segundo omarxismo, já que pesa sobre os vivos o peso das gerações humanas já mortas e de seus pesados legados, “aflige-nos toda uma série de misérias herdadas, decorrentes da permanência vegetativa de modos de produção arcaicose antiquados, com o seu séquito de relações sociais e políticas anacrônicas” (BENSAID, p. 62).

* * * * *

Para enxergar a luta de classes, na prática, na atualidade brasileira, sugiro à consideração o trabalho Os Sentidosdo Lulismo, de André Singer, a começar por esta descrição que faz do “ineditismo” histórico que se deu quando da

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eleição, em 2002, de Luiz Inácio “Lula” da Silva para a presidência: era o “político de origem mais humilde a terchegado ao topo do sistema”, “o primeiro presidente da República que sofreu a experiência da miséria, o que não éirrelevante, dada a sensibilidade que demonstrou, uma vez na Presidência, para a realidade dos miseráveis.”(SINGER, p. 70)

Baseado em dados empíricos e estatísticos, Singer conclui a partir de sua pesquisa que o “lulismo” não apenas“vendeu a imagem”, de modo interesseiro e eleitoreiro, de ser uma época marcada por uma atenção estatal inéditaaos miseráveis-da-terra e ao subproletariado, mas cumpriu sim uma parte de suas promessas. O discurso “nuncana história dos mais humildes o Estado olhou tanto para eles” tem embasamento na realidade concreta:

“Com efeito, a partir de setembro de 2003, com o lançamento do Programa Bolsa Família (PBF)inicia-se uma gradual melhora na condição de vida dos mais pobres. (…) O PBF foi aos poucosconvertido, pela quantidade de recursos a ele destinados, uma espécie de pré-renda mínima para asfamílias que comprovassem situação de extrema necessidade. Em 2004, o programa recebeu verba64% maior e, em 2005, quando explode o ‘mensalão’, teve um aumento de outros 26%, mais queduplicando em dois anos o número de famílias atendidas. Entre 2003 e 2006, o Bolsa Família viu oseu orçamento multiplicado por 13, pulando de R$ 570 milhões para R$ 7,5 bilhões, e atendia acerca de 11,4 milhões de famílias perto da eleição de 2006.” (SINGER, p. 64)

“Foi sobretudo a subida na renda de 20 milhões que atravessaram a divisa da pobreza absoluta quedespertou o sonho do New Deal brasileiro. Deve-se lembrar que, entre 2003 e 2008, houve umavalorização de 33% no salário mínimo. O tamanho dos indicadores de diminuição da pobrezamonetária durante o governo Lula não dever ser, pela sua dimensão, desprezados. O economistaMarcelo Neri, da FGV-RJ, nota que ‘a pobreza caiu 45,5% entre dezembro de 2003 e 2009. (…) Deacordo com Marcelo Neri, considerado o intervalo de 2001 a 2009, ‘não há na história brasileira,estatisticamente documentada desde 1960, nada similar à redução da desigualdade de rendaobservada’, pois segundo os cálculos da FGV-RJ, nesse período ‘a renda dos 10% mais pobrescresceu 456% mais do que a dos 10% mais ricos.'” (SINGER, p. 132 e 181)

É no final do primeiro mandato de Lula, na campanha eleitoral para a re-eleição, lá pelos idos de 2006, que emergede fato este fenômeno histórico que Singer batiza de lulismo e que está conectado com uma espécie de “revoluçãoeleitoral” no Brasil: o fato de que a vitória de Lula em 2006 deveu-se, em larga medida, ao eleitorado das classesmais desfavorecidas, dada a alta votação de Lula nas regiões Nordeste e Norte, “onde os programas sociaistiveram mais beneficiários”:

“Lula obteve percentualmente mais votos nos municípios que receberam mais recursos per capita doBolsa Família, mostrando a repercussão do programa nos chamados grotões, tipicamente o interiordo Norte / Nordeste, que sempre fora tradicional território do conservadorismo…. Entre os quevotaram em Lula pela primeira vez em 2006, a maioria eram mulheres de baixa renda, o público-alvopor excelência do Bolsa Família, pois são as mães que recebem o benefício.(…) O Bolsa Família foilogicamente destinado em maior proporção às regiões pobres e aos municípios de menor Índice deDesenvolvimento Humano (IDH), pois lá se localizava a maior parte das famílias que a ele faziamjus.” (SINGER, p. 65)

O lulismo, segundo Singer, tem raízes fincadas no “subproletariado brasileiro”, em especial no Nordeste, masemerge numa época histórica em que o Partido dos Trabalhadores já vivenciava uma contenda íntima entre suasduas “almas”: a originária, mais radical, comprometida com a construção do socialismo, que animava no passado

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figuras do PT original como Florestan Fernandes e Chico de Oliveira; e a alma mais “recente”, aquela nascida dospactos em prol da governabilidade, e que busca num reformismo gradual e na conciliação de classes a evitaçãocuidadosa do confronto aberto e violento com o capital.

A estas “duas almas” do PT, responsáveis pelo fenômeno altamente complexo e paradoxal que o Partidos dosTrabalhadores tornou-se hoje, em 2016, no auge de uma das piores crises políticas da República, Singer batizou de“o espírito do Sion” e “o espírito do Anhembi”:

O ESPÍRITO DE SION: “Vindo à luz na crista da onda democrática que varreu o Brasil da segundametade dos anos 1970 até o fim dos anos 1980, o PT foi embalado pela aspiração de que a volta aoestado de direito representasse também um reinício do país, como se fosse possível começar dozero, proclamando uma verdadeira República em lugar ‘falsa’ promulgada em 1889. Forjada naoposição à ditadura, a proposta de fundação do partido, aprovada em Congresso de Metalúrgicos(janeiro de 1979), falava em criar um partido ‘sem patrões’, que não fosse ‘eleitoreiro’ e queorganizasse e mobilizasse ‘os trabalhadores na luta por suas reivindicações e pela construção deuma sociedade justa, sem explorados e exploradores, expressão que significava, na época, umareferência cifrada a socialismo.

(…) A radicalização havia atingido também o meio católico, o qual desenvolveu, nos interstícios darepressão, extensa rede de organismos populares, as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs),ainda durante a vigência da ditadura. Iniciada a transição para a democracia, as CEBs, imbuídas deuma perspectiva crítica ao capitalismo, tiveram destaque na conformação do PT. Foi crucial o papeldesenvolvido pelo cristianismo como fonte do sentimento radical que caracterizou o espírito a que,não por acaso, estou chamando ‘do Sion’.

O terceiro e mais decisivo front foram os sindicatos de trabalhadores que cresceram nos recessosda ditadura, representando, em parte, camada operária recente, os quais propunham ruptura com ovelho sindicalismo do período populista. Com o vigor típico dos gestos inaugurais, o ‘novosindicalismo’ pregava a liberdade sindical e a revogação da legislação varguista que, segundo sedizia, inspirada no fascismo italiano, atrelava o movimento operário ao Estado.

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A singularidade brasileira foi anotada por Perry Anderson, para quem o PT constituiu o único partidode trabalhadores de massas criado no planeta depois da 2ª Guerra Mundial. Cercado pela atmosferaeufórica da redemocratização, sobretudo a partir das greves que eclodiram em 1978 no ABCpaulista, o PT despertou a atenção do mundo. Compreende-se: quando em outras partes do planetaa reação neoliberal começava a desmontar o que fora construído no pós-guerra, no Brasil greves demassa pareciam civilizar o que Rosa Luxemburgo chamou de ‘as formas bárbaras de exploraçãocapitalista’.

Da cultura participativa aos direitos cidadãos da Constituição de 1988, o partido cumpriu papelhistórico semelhante ao desempenhado por socialistas europeus, a saber, o de generalizar‘dimensões fundamentais da igualdade’, como escreve Jessé Souza em A construção social dasubcidadania. (…) A militância entusiasmada e a autenticidade das propostas fizeram do PTexperiência aberta à participação. Fraco do prisma eleitoral, embora em crescimento permanente,extraía vigor de ser a voz de forças sociais vivas… Falando por esse movimento social, o partido sepropôs a combater, mesmo que isolado, os vícios e arcaísmos do patrimonialismo nacional. ”(SINGER, p. 90)

Descrita em linhas gerais a “primeira alma do PT” (Sion), ficamos melhor munidos para melhor compreender amudança que se deu com a emergência da “segunda alma do PT”, o “espírito do Anhembi”. Lembremos que o PThavia disputado a eleição presidencial três vezes, sempre com Lula como candidato, até chegar à sua primeiravitória: em 1989, Lula foi derrotado por Collor, e nos dois próximos pleitos perdeu para FHC. O “espírito doAnhembi” vai amadurecendo com estas derrotas nas urnas, o radicalismo de Sion vai amainando seu ímpeto, atéque surja o “Lulinha paz-e-amor”, devidamente perfumado pelos publicitários, que enfim vence as eleições. Em2001, porém, como Singer enxergou bem, o PT das origens, o PT socialista, o PT que confrontou radicalmente aditadura, ainda pulsava forte, determinando inclusive a ocorrência do primeiro Fórum Social Mundial em PortoAlegre:

Fórum Social Mundial, Porto Alegre, foto de Victor Caivano

“Apesar de fazer concessões eleitorais, o PT continuou a ser um vetor de polarização. As diretrizesaprovadas em dezembro de 2001 afirmavam: ‘A implementação do nosso programa de governo para

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o Brasil, de caráter democrático e popular, representará a ruptura com o atual modelo econômico,fundado na abertura e desregulação radicais da economia nacional e na consequente subordinaçãode sua dinâmica aos interesses e humores do capital financeiro globalizado.’

Sem abrir mão da perspectiva de classe, o partido foi relevante para a maior iniciativa anticapitalistado início do século XXI: o Fórum Social Mundial (2001), não por coincidência inaugurado na capitaldo Rio Grande do Sul, o estado mais importante governado pelo PT na época. É que entre o espíritode Porto Alegre e o do Sion havia continuidade evidente: ambos expressavam insatisfação com omundo organizado e moldado pelo capital.” (SINGER, p. 95)

Presidente Dilma Roussef discursa durante festa de comemoração dos 10 anos do PT no governo,realizada no hotel do parque Anhembi (SP)

O ESPÍRITO DO ANHEMBI: “Se existe um momento específico que corresponde à irrupção dasegunda alma do PT, talvez seja o da divulgação da “Carta ao Povo Brasileiro”, em junho de 2002.Houve, certamente, uma longa gestação anterior, cujos fios podem ser rastreados no mínimo àderrota de 1989… No entanto, a silenciosa criatura só veio à luz quando já estavam dadas ascondições para que, surgindo aparentemente do nada, se fizesse imediatamente dominante dentrodo Partido dos Trabalhadores.

Quando a campanha de Lula decidiu fazer as concessões exigidas pelo capital, cujo pavor de umsuposto prejuízo a seus interesses com a previsível vitória da esquerda levava à instabilidade nosmercados financeiros, deu-se o sinal de que o velho radicalismo petista havia sido arquivado. Foi, aprincípio, uma decisão de campanha, mas cerca de um mês depois o Diretório Nacional, reunido nocentro de convenções do Anhembi, em São Paulo, aprovou as propostas antecipadas pela carta,transformando-as em orientações partidárias.

No programa divulgado no final de julho de 2002 pelos partidos que integravam a Coligação LulaPresidente, há um perceptível câmbio de tom em relação ao capital. Em lugar do confronto com os‘humores do capital financeiro globalizado’, que havia sido aprovado em dezembro de 2001, odocumento de campanha afirmava que “o Brasil não deve prescindir das empresas, da tecnologia edo capital estrangeiro”. Para dar garantias aos empresários, o texto assegura que o futuro governoiria “preservar o superávit primário o quanto for necessário”. (…) Enquanto a alma do Sion, poucosmeses antes, insistia na necessidade de “operar uma efetiva ruptura global com o modelo existente”,a do Anhembi toma como suas as “conquistas” do período neoliberal: ‘a estabilidade e o controle das

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Revista Veja – 04/07/2001

contas públicas e da inflação são, como sempre foram, aspiração de todos os brasileiros’.

Por certo tempo considerada uma ‘tática’ para facilitar a transição, o ideário ali exposto compunha,na realidade, um segundo sistema de crenças, que passaria a residir definitivamente dentro do peitopartido, lado a lado com o que o havia precedido. O compromisso com a ‘estabilidade monetária eresponsabilidade fiscal’ volta a comparecer no programa presidencial quatro anos depois e ‘apreservação da estabilidade econômica’ continua como diretriz para o governo Dilma Roussef, oitoanos mais tarde. A defesa da ordem viera para ficar, e a direção decidida no Anhembi se tornariaprograma permanente.”

(SINGER, p. 97. Veja tb: debate entre os professores AndréSinger (USP) e Marcos Nobre (Unicamp). Imagem e som:Lucas Silveira. Organização: PET Filosofia – FFLCH/USP.

Leitura sugerida: KEINERT. Resenha de ‘Os Sentidos doLulismo’.

Chega a ser bizarramente incorreta, portanto, a paranóia de boaparte da oposição ao criticar o PT por ser “comunista” e “bolivariano”,quando Lula na Presidência não chegou nem perto de nos“venezuelar” à la Chavez, numa autêntica revolução dedicada aSimon Bolívar e Fidel Castro, seu governo foi muito mais marcadopor um certo ideário Keynesiano, de Welfare State, que faz com queAndré Singer equipare a uma versão brazuca do New Deal deRoosevelt. O Lula de 2002 já não era o esbravejante sindicalista que ajudou a fundar o PT como partido socialistalibertário e “sem patrão”, era já alguém predisposto à fazer a paz com o empresariado, forjando uma aliança declasses, investindo menos na fúria das contendas e mais na tentativa conciliatória e civilizatória.

Ao invés de romper com o capitalismo, o PT vinha do espectro ideológico de uma esquerda que começou aabandonar o plano da revolução socialista e embarcou na onda de conviver com o capitalismo e tentar “civilizá-lo”.À Privataria Tucana de FHC, que aplicou o fundamentalismo de mercado de Milton Friedman e dos Chicago Boys,impondo uma economia “modelo Pinochet”, o governo Lula re-afirmou o papel de um Estado regulador, espécie deinstância ética e redistributiva que está aí para velar para que a dignidade humana não seja pisoteada pelas “leis docapital”.

Marcado pela “reforma gradual e pelo pacto conservador” – subtítulos de Os Sentidos do Lulismo – o PT naPresidência, no debate perene entre reformismo ou revolução, escolheu amainar seu radicalismo, sentou paranegociar com as elites, com os grandes capitalistas, com os interesses financeiros, contra os quais não se constrói“condição de governabilidade”, só para descobrir que estava de mãos sujas pelas alianças espúrias, pela repetiçãodo modelo dos conchavos e propinas, que as castas por ali praticam há décadas, aliás, com o beneplácito de umaJustiça que deixa impunes aos tubarões enquanto pune os esfomeados ladrões de galinha.

Ao estudar as eleições de 2006 (re-eleição de Lula) e 2010 (eleição de Dilma), Singer notou a importância crucialdo voto de milhões de brasileiros do Nordeste que melhoraram de vida através das políticas ditas “assistencialistas”do governo PT: “o projeto político de reduzir a pobreza sem contestar a ordem, particularmente nos bolsões deatraso regional em que a pobreza se fixou ao longo da história brasileira, conquistou coração e mentes, tornandoplausível a longa duração para o lulismo” (SINGER, p. 175).

Porém, apesar da redução da desigualdade social no governo Lula, com “expressivo aumento de emprego e darenda, na qual a valorização do salário mínimo teve rol crucial”, o PT chegou ao governo federal tendo herdado de

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governos anteriores um país grotescamente desigual:

“Mesmo tendo havido redução da desigualdade no governo Lula, ela foi insuficiente para tirar o paísdo quadrante em que estão as nações mais desiguais do mundo. O argumento, no entanto, se aplicamenos ao que aconteceu no governo Lula e mais ao que veio antes de Lula. O Brasil permaneceuparado num escalão elevadíssimo de desigualdade, por momentos o mais alto do mundo, durantecerca de duas décadas, desde o fim dos anos 1970 até o começo dos anos 2000. A herança dabrutal desigualdade legada pelo século XX foi desembocar no governo Lula, com os 10% mais ricosse apropriando de quase 50% da riqueza e deixando os 40% mais pobres apenas 8%!

Devido ao retardo secular do Brasil, havia a expectativa de que um presidente eleito por partido deorientação socialista tomasse medidas para provocar rápida contração do fosso social, mesmo queao preço de haver confronto político. Tratar-se-ia da adoção do que poderíamos chamar de‘reformismo forte’: ‘intensa redistribuição de renda num país obscenamente desigual’, nas palavrasde Francisco de Oliveira. Reconheça-se que a plataforma ‘reformista forte’ era a perspectiva originaldo PT. Desde esse ponto de vista, é secundário estabelecer aqui as distinções entre vertentespetistas oriundas da inspiração revolucionária leninista ou trotskista e aquelas originárias dastradições católicas ou socialistas democráticas. Salvo engano, todas convergiram para um programa‘reformista forte’ nos anos 1990 e nas propostas do partido até 2001 podem-se encontrar diversasindicações do que seria feito caso a alma do Sion tivesse prevalecido no governo Lula.

Desde a garantia do trabalho agrícola por meio da distribuição de terra até a tributação do patrimôniodas grandes empresas e fortunas para criar um Fundo Nacional de Solidariedade que financiasseprojetos apresentados por organizações comunitárias, há um conjunto de itens, que passam peladiminuição da jornada de trabalho para 40 horas sem corte de salários, criação de Programa deGarantia de Renda Mínima, revisão das privatizações, convocação dos fóruns das cadeiasprodutivas etc., que desenham a perspectiva de mudanças fortes.” (SINGER, p. 185)

Dado o sistema eleitoral brasileiro, com o financiamento empresarial de campanhas e a captura do Estado pelosinteresses privados e corporativos, nenhum partido tem chance alguma de se eleger com um programa de fatorevolucionário, ou mesmo “reformista forte”, de modo que o PT só conseguiu chegar à presidência amainando oímpeto do socialismo de Sion com o Welfare State da “alma do Anhembi”. Se há de fato um fosso entre o PTgovernista, praticante do “assistencialismo” aos mais desfavorecidos ao mesmo tempo que ajuda os empresários aseguirem lucrando horrores, e aquele PT originário, socialista e anti-patronal, o que se descortina em 2016 é umanova fase para a dialética entre “as duas almas do PT”.

Os limites estreitos deste reformismo gradual e deste pacto conservador do PT governista agora estãoescancarados: mesmo sem que o PT tenha tentado a via do reformismo forte ou das medidas socialistas, as forçasreacionárias de direita têm sabotado sistematicamente o segundo mandato de Dilma Rousseff, aderindo aogolpismo descarado (ainda que não mediado pela força militar), com a ameaça palpável de um governo PMDBista-Tucanóide que prossiga a política da Privataria, desmonte direitos trabalhistas, aniquile programas sociais comoBolsa Família, Fome Zero, Minha Casa Minha Vida, ProUni etc. Diante deste quadro, o PT surpreendentementeacaba por encontrar aliados em partidos à esquerda, no PSOL ou no PC do B, e em movimentos sociais como oMST e o MTST, de modo a demonstrar que, longe de morto, “o espírito de Sion”, ou o “PT Socialista”, não está tãomorto e enterrado assim. Como mostra a resolução do Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores em 19 deabril de 2016, dias após o “golpe parlamentar” desferido pelo Congresso presidido por Eduardo Cunha:

“A admissão do processo de impeachment pela Câmara dos Deputados representa um golpe contra

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a Constituição. Viola a legalidade democrática e abre caminho para o surgimento de um governoilegítimo. Escancara, também, o caráter conservador, fundamentalista e fisiológico da maioriaparlamentar eleita pelo peso do poder econômico e de negociatas impublicáveis.

As forças provisoriamente vitoriosas expressam coalizão antipopular e reacionária. Forjada noatropelo à soberania das urnas, aglutina-se ao redor de um programa para restauraçãoconservadora, marcado por ataques às conquistas dos trabalhadores, cortes nos programas sociais,privatização da Petrobras, achatamento dos salários, entrega das riquezas nacionais, retrocesso nosdireitos civis e repressão aos movimentos sociais. O programa neoliberal difundido pela cúpula doPMDB, “Uma Ponte para o Futuro”, estampa com nitidez várias destas propostas.

A coalizão golpista é dirigida pelos chefões da corrupção — trabalhados por setores incrustados nasinstituições do Estado, no Judiciário e na Polícia Federal –, da mídia monopolizada e da plutocracia,como deixou clara a votação do último domingo. Presidida por Eduardo Cunha — réu em gravescrimes de suborno, lavagem de dinheiro e recebimento de propina — a Câmara dos Deputados foipalco de um espetáculo vexaminoso, ridicularizado inclusive pela imprensa internacional. O DiretórioNacional reitera a orientação da nossa Bancada para prosseguir na luta pelo afastamento imediatodo presidente da Câmara dos Deputados.

O circo de horrores exibido no domingo reforça a necessidade de uma reforma política e dademocratização dos meios de comunicação.” (PT, Resolução Nacional, 19/04/2016)

Vivemos neste 2016 em um clima de tão aberto complô golpista, de histérico teor anti-petista, que vale a penarefletir com lucidez, cautela e informação detalhada sobre o que estão sendo de fato os anos Lula e Dilma noBrasil, não para idolatrá-los, numa hagiografia populista, como “salvadores da pátria”, mas para reconhecer nelesos méritos e falhas de seres humanos falíveis, apesar de sua “estatura histórica” (os livros de História só tem gentecheia de falhas). As esquerdas, abandonando o PT à sanha difamatória e a sabotagem golpista que está em curso,cometeriam o erro de não enxergar um inimigo comum, a classe capitalista e patronal do velho e sempre-novoMarx!

Diante disso, muitos intérpretes políticos, como Ruy Braga, sugerem que a crise política só é compreensível apartir da “perspectiva globalizante da luta de classes” – o que torna Marx, mais que nunca, incontornável,imprescindível, inadiável: “Qualquer análise das estruturas da atual crise política deverá, ao contrário daquele estilode análise que se concentra na cena política, isto é, nas diatribes parlamentares e nas declarações protocolaresdos governantes, o balanço sistemático da era que finda não pode prescindir da perspectiva globalizante da luta declasses.” – RUY BRAGA, Revista Cult, Contornos do pós-lulismo (LEIA: UMA SOCIOLOGIA À ALTURA DEJUNHO)

Paulo Freire já dizia, em À Sombra Desta Mangueira (1995), que não se deve esperar, da esquerda, santidade ouinfalibilidade, e nada ganhamos com hagiografias de Che ou Lula, de Lenin ou Mao Tsé-Tung, que ignorem osequívocos de seus caminhos, já que só seremos fiéis ao fecundo método de Marx ao não deixarmos de praticar acrítica perene do real-que-se-move (nós e nossas relações embarcados neste fluxo, nesta História, no Tempo quenos carrega a um futuro-em-aberto…):

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“É verdade que ninguém de bom-senso poderia pensar em esquerdas cuja militância fosseconstituída por santos e anjos. Fazer política é tarefa de mulheres e de homens com suas limitaçõese qualidades. Mas, não apenas se poderia esperar das esquerdas que se fossem tornando maiscoerentes, recusando acordos com antagônicos, como se deveria exigir delas que, em lugar deaprofundar suas diferenças adjetivas ou adverbiais as superasse tendo como base seus pontos deidentidade. Não há dúvida nenhuma, porém, de que as posições de esquerda, entre elasprincipalmente as do PT, têm feito avançar o processo político brasileiro. (…) É preciso, acima detudo, que enfrentemos, no corpo das próprias esquerdas, algumas de suas ‘enfermidades’ maisdaninhas e mais responsáveis pelo desacordo entre elas: o sectarismo, o messianismo autoritário ea arrogância transbordante, de que o PT, por exemplo, se ressente.

Não há partido de esquerda que permaneça fiel a seu sonho democrático se cair na tentação daschamadas palavras de ordem, dos slogans, das prescrições, da indoutrinação, do poder intocáveldas lideranças. Tentações todas estas inibidoras do surgimento e do desenvolvimentoda tolerância sem a qual se faz inviável a democracia. Como inviável se faz também nalicenciosidade. Não há partido de esquerda que permaneça fiel a seu sonho democrático se cair natentação de se reconhecer como o portador da verdade sobre a qual não há salvação. (…) O partidoprogressista que pretenda preservar-se como tal não pode prescindir da ética, da humildade, datolerância, da perseverança na luta, da mansidão, do vigor, da curiosidade sempre pronta paraaprender e reaprender.

Não se pode defender os interesses das classes populares, seu direito de viver com decência, seudireito de pronunciar o mundo, que implica o de estudar, o de comer, o de trabalhar, o de vestir, o dedormir, o de amar, o de cantar, o de chorar e, ao mesmo tempo, fazer vistas grossas ao roubo doscofres públicos. (…) É bem verdade que um partido político não é um mosteiro de santos monges,mas deve aspirar-se a tornar-se, cada vez mais, uma agremiação de gente realmente séria ecoerente. Gente que diminui mais e mais a distância entre o que diz e o que faz…” (PAULOFREIRE, p. 104 a 106)

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Para diminuir o abismo entre teoria e práxis, para não só interpretar mas também transformar o mundo, prosseguesendo inadiável o bom-e-velho Marx. O espectro sempre vivo do marxismo como crítica profana e mordaz damodernidade ressurge a cada geração, em toda sua vivacidade, pela perpetuação problemática dos antagonismosda sociedade capitalista. Sempre cindida em classes que se opõem, cravejada de desigualdades e injustiças, emque a hýbris de uma classe sempre é contestada pela nêmesis organizada da classe oprimida, a História, para omaterialismo dialético, é disputa dinâmica em um contexto sempre fluido e revolucionável (“o tempo não pára”, ofuturo não está escrito). Será um erro, decerto, como Derrida dizia, passar ao largo de Marx, ignorando a forçatremenda de seu inovador percurso, que tem em Bensaïd um de seus melhores esclarecedores, com quem encerroeste artigo, convidando à leitura do excelente Marx, Manual de Instruções:

“É preciso libertar Marx dos dogmas que o mantiveram acorrentado. Sua obra aberta, sem limites,revolve em profundidade o espírito de uma época. Crítica em movimento de um sistema dinâmico. Oobjeto de sua crítica, em perpétuo movimento, sempre o conduzia mais longe.

Pleiadizado, Marx desfruta agora de um reconhecimento acadêmico que se esforça em contê-lo

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dentro dos limites temporais de seu século: um extraordinário pensador, com certeza, mas datado efora de moda, bom para arquivos e museus. Economista amador, filósofo digno de figurar no grandeafresco da odisseia do Espírito, historiador qualificado para concursos acadêmicos, pioneiro dasociologia? Um pouco de tudo. Um Marx em migalhas, em suma, inofensivo. Intelectual respeitável,se não tivesse tido a infeliz ideia de se envolver com política.

No entanto, é isso que o torna um novo tipo de intelectual, que soube conciliar, nos anos 1860, aredação de O Capital e a organização material, até mesmo a colagem de selos, da PrimeiraInternacional.

É por isso, escreve Jacques Derrida, que não há “futuro sem Marx”. Para, contra, com, mas não“sem”. E, quando os neoliberais ligados a Hobbes, Locke, Tocqueville o chamam de velho antiquadodo século XIX, o espectro sorri discretamente.

A atualidade de Marx é a do próprio capital. Porque, se ele foi um excepcional pensador de suaépoca, se pensou com seu tempo, também pensou contra o seu tempo e além dele, de maneiraintempestiva. Seu corpo a corpo, teórico e prático, com o inimigo irredutível, o poder impessoal docapital, transporta-o até nosso presente.” – BENSAÏD, p. 168

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BIBLIOGRAFIA

BENSAID, Daniel. Marx – Manual de Instruções . Boitempo, 2013.BRAGA, Ruy. Contornos do pós-lulismo . Revista Cult.DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx.FREIRE, P. À Sombra Desta Mangueira. Ed. Civilização Brasileira, 2012. MARX,K. Crítica da filosofia do Direito de Hegel. Boitempo, 2010. MARX, Manuscritos econômico-filosóficos. Trad. Jesus Ranieri, Boitempo, 2004.POLANYI, K. A Grande Transformação.SINGER, A. Os Sentidos do Lulismo. Companhia das Letras, 2012.

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Eduardo Carli de MoraesGoiânia, Abril de 2016

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