em busca do tempo partido: a consciência histórica e o mst
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7/24/2019 Em busca do tempo partido: a conscincia histrica e o MST
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EDUARDO MARA
EM BUSCA DO TEMPO PARTIDO:A CONSCINCIA HISTRICA E O MST
Dissertao apresentada como requisitoparcial para a obteno do ttulo de Mestre,pelo Programa de Ps-graduao emCincias Sociais da Universidade Federal doRio Grande do Norte.
Orientador: Irene Alves de Paiva
NATAL
JUNHO DE 2009
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EDUARDO MARA
EM BUSCA DO TEMPO PARTIDO:A CONSCINCIA HISTRICA E O MST
Dissertao apresentada como requisitoparcial para a obteno do ttulo de Mestre,pelo Programa de Ps-graduao emCincias Sociais da Universidade Federal doRio Grande do Norte.
Aprovado em ____ de Setembro de 2009
BANCA EXAMINADORA
Professora Irene Alves de Paiva - Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Professor Gabriel Vitullo Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Professor Gonzalo Rojas Universidade Federal de Campina Grande
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Ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
Por seguirem desfraldando rebeldias...
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AGRADECIMENTOS
As linhas que seguem foram escritas tantas mos que se tornou impossvelcitar nomes sem o risco da injustia. Como no posso deixar de agradecer
diretamente os que seguem, sigo com a certeza de que muitos podero reconhecersuas digitais no prprio texto do trabalho. Assim, deixo aqui o agradecimento e oabrao...
minha famlia que embora longe, segue do meu lado...
minha orientadora, Irene Alves de Paiva, por acreditar nesse trabalhorenovando meu compromisso de escrev-lo, por toda a ajuda, por todas as portasque abriste, por me ajudar a trilhar novos caminhos em terras potiguares...
Ao Programa de PGCS/UFRN, pela ajuda em construir o mirante de onde
posso hoje desenhar com novas cores a paisagem do real...
Escola Nacional Florestan Fernandes por seguir devolvendo o carterincendirio de certos contedos, por seguir ensinando nossa militncia a desenharfuturos...
Ao Centro de Formao Patativa do Assar e s companheiras ecompanheiros do MST no Rio Grande do Norte, por todo o carinho com que meacolheram e pela experincia compartilhada...
Aos companheiros e s companheiras do MST e do curso nacional dasCoordenaes Poltico Pedaggicas, todas e todos que entrevistei: obrigada porcompartilhar tantas histrias, sorrisos, abraos e certezas...
CAPES, pela bolsa-auxlio concedida que me possibilitou os estudos e avida por dois anos em solo nordestino...
s companheiras e companheiros da Consulta Popular. Pela paixo renovadano cotidiano de nossos desafios. Por essa flor que nasceu na rua...
Ao Companheiro Ademar Bogo, pelas indicaes que me deste, por seu
carinho, por sua mstica... Roseli Macedo, retribuindo um pouco dos abraos, do carinho e da
acolhida...
minha companheira, Mel Macedo, por fazer de todas as noites punhados deestrelas e alegrias...
Ao NEP-13 de Maio, Luis Scapi e Mauro Iasi, meus mestres e marcos deestrada...
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RESUMO
O trabalho que segue dedica-se ao estudo da vivncia do tempo histrico pelamilitncia poltica de nosso tempo. O militante poltico de esquerda aquele que
nega o estado de coisas vigente recuperando uma experincia histrica situadamuito antes de seu tempo e projetando um futuro para alm da reproduoincessante das relaes do presente. Escolhemos o Movimento dos TrabalhadoresRurais Sem Terra, no como objeto de estudo, mas como local especfico onde essaconscincia formada e pode ser compreendida. O estudo da conscincia histricada militncia sem terra , para ns, o melhor ponto de partida para entendermos aampliao do tempo histrico operada na mudana das relaes sociais vividasdentro de uma organizao. A diviso do tempo entre um antes e um depois, bemcomo a histria entendida como progresso no um dado natural, mas umaconstruo que obedece s contradies do presente. Trata-se, portanto, deentender como o presente vivido pela militncia opera mudanas na conscincia do
tempo. A partir de documentos, livros de referncia, cadernos de formao ediversos materiais produzidos pelo MST, buscamos entender a forma como omovimento conta a sua histria e a relaciona com essa experincia mais ampla daluta pela terra e da luta pela mudana da ordem social vigente. Da mesma forma, aoouvirmos os relatos da histria de diversos militantes, buscamos compreender comoessa narrativa mais ampla re-orienta o olhar sobre a prpria histria, sobre avivncia das contradies no antes e depois do fazer-se militante sem terra.
PALAVRAS-CHAVE:Militncia. Temporalidade. Conscincia. Histria. MST.
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ABSTRACT
The work that follows is dedicated to the study of the historic time experience by thepolitical militancy from our time. The political militant from the left-wing is the one that
denies the state of current things, recovering a historic experience located far beforeits time and projecting a future beyond the incessant reproduction of the presentrelations. We chosen the Landless Workers Movement, not as study object, but asspecific place where this consciousness is made and can be comprehended. Thehistoric consciousness study of the landless militancy is, for us, the best starting pointto understand the magnification of the historical time operated on the change ofsocial relations lived inside an organization. The time division between before andafter, as well as the history being understood as a progress isnt a natural given data,but a construction that obeys the contradictions of the present. It, therefore, mustunderstand how the present lived by the militancy operates changes on theconsciousness of time. From documents, reference books, formation notebooks and
several materials produced by MST, we try to understand the way that the movementtells his history and lists with this wider experience of the struggle for the change ofthe current social order. Similarly, when we hear reports of history of severalmilitants, we try to comprehend how this wider narrative re-orients the sight overhistory himself, over the experience of contradictions on before and after making thelandless militant.
KEYWORDS:Militancy, Consciousness, History, MST, Temporality.
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SUMRIO
1. Introduo ................................................................................................................. 82. A Militncia e o Tempo .......................................................................................... 14
2.1 O Movimento do tempo no tempo... .......................................................................... 232.2 Do eterno retorno filosofia do progresso... ............................................................. 29
3. A Conscincia do Tempo Partido ........................................................................... 393.1 O Passado Presente... ................................................................................................. 47
3. 2 Tempo em Movimento .............................................................................................. 533.3 Quem faz sonhar o poeta... ......................................................................................... 71
4. Memria Sem Terra ................................................................................................ 804.1 Torna-te quem tu s... ................................................................................................ 844.2 As margens da Histria ............................................................................................. 924.3 O Presente como contradio .................................................................................. 101
5. O canto da cigarra... .............................................................................................. 107
Bibliografia: .................................................................................................................. 112
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1. Introduo
Em A Dama na gua, filme do diretor M. Night Shyamalan, Paul Giamatti viveCleveland Heep, um zelador solitrio e amargurado em um condomnio de pessoas
comuns que vivem suas vidas isoladas umas das outras. Certo dia, Cleveland
recebe a visita inesperada de story, jovem moa que diz ser representante de
povos submersos, seres aquticos tentando entrar em contato com nosso mundo.
Tentando ajud-la, o zelador descobre-se envolvido em um antigo conto oriental que
agora se apresenta como verdade e que, pouco a pouco, vai envolvendo no
somente Cleveland, mas diversos moradores do prdio. Os fatos e os hbitos maiscomuns dos moradores vo se revelando como sinais de sua importncia e do papel
que podem desempenhar ajudando story a retornar ao seu mundo. Story, por sua
vez, para cada um dos moradores, mostra ser portadora de uma esperana a muito
perdida, de poder acreditar e fazer parte de algo maior, de dar chances aos sonhos,
de inserir sua histria pessoal em uma narrativa mais ampla.
To marcada pelas oposies entre estrutura e sujeito, indivduo e sociedade,
indivduo e histria e to convencida da morte das grandes narrativas pelas teorias
funerrias da ps-modernidade, as cincias sociais parecem ter deixado de lado
essa questo to simples e que as imagens acima parecem querer retomar, a saber:
o que acontece ao indivduo e s suas relaes quando essa dama estranha
chamada Histria ocupa, sem pedir licena, o espao de suas vidas?
Escrevemos as linhas que seguem em um perodo de refluxo das lutas
sociais, de fechamento de um ciclo da esquerda brasileira onde, como diria Brecht
(2000, p. 186), depois de trabalharmos por tanto tempo parecemos estar em
situao pior que no incio, onde nossas palavras de ordem esto em desordem
sendo distorcidas at ficarem irreconhecveis e onde parece no haver incentivo
maior ao poltica que no seja o incentivo do estmago. Nestes momentos de
descenso da luta de classes interessante notar a proliferao, nos meios
acadmicos, de teorias que afirmem o fim da centralidade do trabalho, o fim das
classes e do proletariado1. Toda uma gerao marcada pelo descrdito da idia do
socialismo e pelas decepes com as experincias mal-sucedidas de mudana da
1com efeito, no vimos at hoje nenhuma escola terica que argumente o fim da existncia da burguesiaenquanto classe...
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ordem social passou a buscar, nos ltimos 20 anos pelo menos, um refgio nos
meios acadmicos onde pudessem interpretar a histria elaborando um fundamento
seguro para amaciar seus travesseiros noite, livrando-se da incmoda
preocupao com a necessidade real de superar as condies concretas de misria
e violncia geradas pelo avano triunfante do capital. Trata-se do que poderamos
chamar de sndrome do ex-combatente. O balano dos avanos e retrocessos da
experincia poltica feito agora nos estreitos limites da ordem social vigente, da
normatividade do presente. O distanciamento da prtica desenha tambm o mirante
a partir do qual essa gerao pde redesenhar o passado, a posio ocupada no
presente circunscreve tambm os limites do olhar para a experincia histrica.
Em uma conjuntura assim nos pareceu desafiador o estudo de um movimento
social cuja conscincia consegue ainda vislumbrar a utopia alm das cercas do
pragmatismo e do eterno presente.
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra tm se destacado pela
forma radical de conduo de suas aes, transformando em lutadores e lutadoras,
seres humanos que o capitalismo j imaginava ter excludo definitivamente. As
aes do movimento na luta pela terra visam expressar no apenas essa
reivindicao parcial, mas a contestao da ordem social vigente, criando novas
identidades e redesenhando um futuro melhor no horizonte de homens e mulheres
de nosso tempo. A prpria associao do latifndio brasileiro com o grande Capital
internacional faz com que a Reforma Agrria aparea como um projeto maior do que
uma reforma paliativa nos limites da sociedade burguesa, fazendo de cada avano
no presente a matria prima do futuro. Na verdade, o projeto futuro acaba se
transportando para as relaes vividas no presente.
Nesse sentido, toda luta poltica tambm, de certa forma, uma luta pelo
domnio do tempo. Falamos, claro, no apenas do tempo cronolgico, davelocidade das horas, mas das diferentes concepes de temporalidade, a saber,
uma luta para definir a imagem do passado, do presente e do futuro. Trata-se,
portanto, de entender como essas trs dimenses se articulam e como se
determinam na prtica poltica e na conscincia da militncia Sem Terra.
O MST parece ser o melhor ambiente para uma pesquisa desse porte. Sua
prtica poltica parece situar-se entre os trs elementos constitutivos da idia de
militncia (o sentido militar, o poltico e o religioso). Trata-se um movimento rebeldeno s em suas aes, mas tambm s tentativas de enquadramento terico em
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categorias pr-definidas. Entender melhor a formao da conscincia histrica de
seus militantes (em particular, o cruzamento entre religio e poltica e as
representaes de temporalidade que ele envolve) pode nos ajudar a revelar um
pouco mais sobre esse movimento que tm tido tanto impacto na militncia de
esquerda no Brasil das ltimas dcadas.
No foi fcil fazer um recorte bibliogrfico para esse trabalho. A literatura
existente sobre o MST quase to extensa quanto o prprio movimento,
abrangendo as mais diferentes reas do conhecimento. Optamos por algumas obras
e textos (vrios do prprio movimento) que tratam mais diretamente da preocupao
do MST com a educao/formao dos seus militantes e com a construo de novos
valores no interior dos acampamentos e assentamentos, bem como aqueles que nos
fornecem um panorama da sua histria e da posio que ocupa dentro da histria
mais ampla da luta pela terra.
Em nossa pesquisa de campo, realizada em Maro de 2007, na Escola
Nacional Florestan Fernandes (Guararema-SP), bem como durante o ano de 2007 e
2008 nas atividades de formao realizadas no Centro de Formao Patativa do
Assar (Cear-Mirim-RN), procuramos entrevistar os militantes mais diretamente
envolvidos com a tarefa da formao poltica, ou seja, os militantes responsveis
pela formao de novos militantes no MST.
O trabalho de campo nos colocou algumas contradies um tanto
inesperadas. A minha escolha pelo curso de Cincias Sociais e meus estudos
acadmicos representavam para mim, de certa forma, uma tarefa militante, ou seja,
um compromisso de produzir um contedo engajado, comprometido. Eu nunca havia
estado na situao inversa e que a regra em nossas universidades: em um espao
de militncia com objetivos acadmicos. Uma das dificuldades enfrentadas em
campo foi justamente o fato de concordar com a maioria dos motivos que limitaramnossa pesquisa. Entre eles destaca-se o fato de que o MST no quer mais ser objeto
de pesquisa de ningum, o que significa que no querem mais permitir que um outro
que no seja o prprio movimento tente interpretar o que o MST faz e seu significado
no presente. O Movimento Sem Terra hoje sujeito e objeto do conhecimento sobre
si prprio. Ele escreve sua prpria histria com um material muito mais rico e com
uma complexidade muito maior do que a encontrada nas incontveis pginas
produzidas sobre ele no tradicional confinamento acadmico.
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H hoje certa desconfiana para com os pesquisadores nos espaos do
MST que me parece bastante justificada. Em primeiro lugar, alguns trabalhos
acadmicos produzidos sobre o movimento, apesar de toda a boa vontade,
acabaram servindo de argumento para seus opositores. Estamos to confortveis
com o distanciamento entre teoria e prtica e to convencidos que nossa postura
acadmica em nossos trabalhos no ter nenhum impacto fora dos muros de nossas
universidades que tomamos pouqussimo cuidado com aquilo que escrevemos.
Durante a pesquisa pude ouvir dois exemplos impressionantes dessa falta de
cuidado. Alguns meses antes de minha chegada na Escola Nacional Floretan
Fernandes, outra estudante havia se apresentado como doutoranda em sociologia,
pesquisando o MST. Depois de dois dias na escola coletando informaes,
descobriu-se que a tal pesquisa era, veja voc, encomendada por uma certa
revista que promove hoje uma campanha bastante engajada em disseminar
informaes falsas e confundir a opinio pblica em relao aos objetivos do
Movimento Sem Terra. Outro exemplo que me serviu de alerta foi um trabalho feito
como monografia do curso de Histria, por um militante em Porto Alegre, trabalho
que foi retirado de contexto e utilizado por deputados gachos defensores do
latifndio para fundamentar a criminalizao do Movimento Sem Terra no Rio
Grande do Sul.
Alm disso, a prpria amplitude do MST e o destaque que tem tido nos
ltimos anos gerou uma srie de pesquisas que buscam utilizar o movimento como
objeto para provar a validade de certas teorias que pouco ou nada tem a ver com
aquilo que acredita e faz o prprio movimento. Nas palavras dos militantes que
entrevistamos, disso tudo, muito pouco se aproveita. Essa crtica expressa a
ausncia de retorno e de responsabilidade de nosso meio acadmico para com a
sociedade em geral e, ao mesmo tempo, a recusa de um contedo que acredite sesituar acima das contradies estudadas, que s se coloca do ponto de vista do
movimento com a certeza da distncia confortvel no retorno s poltronas
universitrias.
Este trabalho no teve, portanto, a pretenso de explicar os significados do
Movimento Sem Terra. Na verdade, trata-se de, atravs da militncia do MST, da
vivncia de suas atividades e da forma como contam sua prpria histria, buscar
entender qual a conscincia histrica e o papel que ainda pode desempenhar amilitncia poltica de nosso tempo. Entender a conscincia histrica significa, como
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dissemos, entender a diferente temporalidade na qual o MST insere seus militantes.
Essa tarefa exigiu, no obstante, certo distanciamento de nossa prpria militncia.
Nossa esquerda tradicional se preocupa, de fato, muito pouco com os significados
que so atribudos sua prtica. Ainda mais em se tratando de um estudo sobre o
tempo histrico. Como veremos, o prprio marxismo sofreu forte influncia da
ideologia do progresso, vendo no presente um caminhar lento e confortvel em
direo ao futuro visado. O extremo pragmatismo da militncia em nossos dias
costuma naturalizar os limites da temporalidade do indivduo, separando o futuro
visado de sua prtica no presente.
Dessa forma, foi necessrio, antes de qualquer coisa, desnaturalizar a prpria
idia de tempo histrico. As definies de passado, presente e futuro no so um
dado natural e a - histrico, elas respondem s contradies existentes em cada
poca e obedecem a interesses especficos de uma ordem social. Nosso primeiro
captulo se dedica, portanto, a entender a forma como as diversas sociedades
situam o indivduo na histria e como certa temporalidade, baseada na oposio
entre passado e presente tendo como ponto fixo um futuro nunca alcanado se
tornou hegemnica. Nosso segundo captulo busca entender essa disputa pelo
tempo no presente da militncia sem terra, atravs da forma como o movimento
conta sua prpria histria e relaciona sua experincia no presente ao conjunto da
experincia histrica acumulada na luta contra o latifndio e contra o capital. Por fim,
buscamos entender a relao existente entre a forma como o Movimento conta sua
prpria histria e o impacto dessa histria mais ampla sobre a memria de seus
militantes.
Gostaria de terminar essa introduo com o mesmo recado que nos foi dado
pelo MST em nosso trabalho de campo. A inteno de transformar os relatos que
ouvimos sobre as dificuldades vividas na luta pela terra e sobre os desafios que opresente coloca aos militantes do MST em um trabalho acadmico a ser depositado
no curso de Cincias Sociais no poderia passar impune aos olhos dos militantes do
MST. Recebi de presente no meu ltimo dia na ENFF uma mstica e tambm um
conselho. Como trilha sonora da despedida, a msica de Z Geraldo:
Isso tudo acontecendo
e eu aqui na praa
dando milho aos pombos...
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Os relatos que tive durante a pesquisas sobre o aumento da violncia no
campo, sobre o assassinato de militantes do MST por milcias armadas em diversas
regies do pas, sobre a criminalizao das aes de luta pela terra e a tentativa de
isolamento do MST fizeram desse refro uma maldio de coerncia. Esperamos
que esse trabalho sirva de alimento reflexo no apenas no interior da autofagia
caracterstica do isolamento universitrio, mas que estimule tambm a reflexo
sobre qual militante poltico o perodo em que vivemos necessita. Tratar o MST
como simples objeto de pesquisa se torna impossvel queles que reconhecem em
si a mesma matria prima daquilo que pesquisam.
sem terra somos todos ns
Operrios sem terra/fbricaSem terra os que sozinhos
Na multido se acreditam ss.
Somos todos sem terraTodos os sem terra somos ns
Ali nas estradas, somos nsMarchando, desatando ns...
Mauro Iasi
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2. A Militncia e o Tempo
O militante poltico de esquerda aquele que nega o estado de coisas
vigente, se identificando com aqueles e aquelas que o fizeram antes dele e com os
que o faro depois dele. O objetivo para o qual orienta sua vida o insere em uma
dimenso temporal que extrapola os limites de sua existncia individual. Ele herda e
se remete frequentemente a uma experincia poltica anterior ao tempo em que vive
e sabe que suas aes no presente sero parte da construo de um projeto que
continuar depois dele. Nesse sentido, concordamos com Mannheim (apudLE GOFF,
2003, p. 362)quando diz que a estrutura interior da mentalidade de um grupo nunca
pode ser apreendida to claramente como quando nos esforamos para
compreender a sua concepo do tempo....
Embora seja um tema recorrente, a verdade que as Cincias Sociais, com
suas exigncias de confinamento terico e separao entre sujeito e objeto do
conhecimento, nunca nutriram muita simpatia pelo engajamento poltico. Fora do
universo conceitual marxista, onde o pensamento almeja servir de alimento ao e
esta de matria prima do pensamento, as anlises que tentaram estabelecer um
modelo de anlise do militante moderno provinham, por vezes, de ex-militantes equase sempre carregadas de uma carga de rancor contra a militncia poltica em
geral2. Para ns, entretanto, ser til recuperar alguns argumentos dessa chamada
sociologia da militncia para entender as diferentes concepes do tempo histrico
que caracterizariam a categoria do militante desde suas origens. Utilizaremos como
referncia o apanhado feito por ngelo Jos da Silva no terceiro captulo de seu
trabalho sobre o militante anarquista3. Seu trabalho se destaca por tentar evitar
certas pr-noes bastante comuns na anlise do militante em cincias sociais seesforando por reter os argumentos centrais das anlises da chamada sociologia da
militncia.
Essa caracterstica, de deslocar a ao para um tempo futuro, no seria,
segundo Silva, prpria apenas militncia em nossos dias, mas estaria presente na
prpria gnese do conceito de militante. A definio etimolgica da palavra j indica
2Poderamos citar como exemplo os trabalhos de Franois Furet, Monclar Valverde e Gerard Vicent3
SILVA, Angelo Jos da. A Formao do Militante Anarquista: primeiros movimentos para uma leitura distinta.Tese de Doutorado. Curitiba, UFPR: 2003. (cap. 3 O Ser Militante).
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trs sentidos possveis: o militar (o que milita, o soldado, o combatente disciplinado),
o poltico (o que est engajado em um partido ou luta por uma causa) e o religioso (o
que pertence a uma instncia organizativa da igreja).
O termo militareaparece pela primeira vez durante a Idade Mdia, na Ordem
dos Cavaleiros Templrios, designando o soldado de milcia que era tambm o
propagador da f e o portador de uma verdade redentora (voltaremos a isso). A
militncia propriamente poltica entra em cena apenas no sculo XIX transmitindo
identidade do indivduo militante esses elementos religiosos, polticos e militares.
Os cavaleiros da era medieval tinham na disciplina e na dedicao causa
religiosa os elementos propulsores de sua ao. A recompensa por essa dedicao
era a crena na salvao futura, na abertura das portas do cu e na amplificao da
presena de Deus na Terra e dentro dos homens (SILVA, 2003, p. 67). Para ngelo
Silva, a militncia poltica, como a conhecemos, atua como substituto simblico da
religio. A razo e o conhecimento do processo histrico, a ao consciente, como
substitutos da f. A crena no paraso celeste substituda pela crena na
possibilidade de um paraso terreno, representado pela utopia e pelos projetos
alternativos de sociedade.
Esse deslocamento altera tambm a relao entre presente e futuro. Como a
idia de salvao futura agora trazida para o plano material, para a construo
objetiva de algo novo (e terreno), o militante traz do futuro para o presente o tempo
de sua ao. Seu olhar fixo no futuro a ser buscado, no entanto, o impediria de
viver a poltica no presente: Ele deixa de viver porque no consegue superar a
lentido do cotidiano. O futuro j foi arrancado do seu lugar e colocado no presente
(SILVA, 2003, p. 68). Segundo Monclar Valverde, esse deslocamento do tempo da
ao para o futuro implicaria tambm numa polarizao com o passado e uma
definio topolgica da idia de revoluo como nico local do fazer histrico.
A militncia pretende ser o verdadeiro tnel do tempo, a mquina da transubstanciao, o operador dadiferena: possibilidade simultnea de superar o passado e presentificar o futuro; dvida que se cumpre napromessa. Para ser o lugar da Revoluo na sociedade, a militncia deve represent-la segundo umatopografia precisa, na qual, sob o fundo da sombra, ela prpria surja como o lugar poltico do movimentohistrico. Neste sentido, ela estabelece uma topologia dualista, onde a militncia, enquanto regio social dodevir, ope-se ao campo das "negaes" representadas pelo passado, pelo poder e pela alienao. E s assimviabiliza o paradoxo de se constituir como posio presente, acionando um critrio de verdade que seencontraria no futuro.(VALVERDE, op. cit. , 1998)
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O futuro trazido para a esfera do presente, mas permanece ainda como algo
intocvel, ele orienta as aes no presente, mas no pode ser vivenciado nesse
presente. A utopia seria o horizonte a ser buscado, mas, como todo horizonte,
acabaria como uma linha imaginria que se desloca cada vez mais quanto mais
caminhamos. Alm disso, como a matria prima de qualquer futuro depende das
relaes constitudas no presente, o olhar fixo no futuro perderia a capacidade de
identificar que traos desse futuro j se anunciam no presente vivido, deixando de
perceber os rumos objetivos dos acontecimentos dos quais participa. O militante
seria, dessa forma, um indivduo descolado de sua poca histrica.
A ascenso dos partidos comunistas na primeira metade do sculo XX teria,
segundo Angelo Silva, consolidado a idia de Revoluo como uma nova verdade
redentora a ser propagada. O militante poltico de esquerda estaria, a partir da,
condenado a vagar pelo deserto do presente conduzido apenas pela miragem da
revoluo futura... Segundo Franois Furet, a idia de iluso pela salvao seria
no apenas um aspecto da militncia poltica revolucionria, mas seu fio condutor:
A iluso no acompanha a histria comunista: constitutiva dela; ao mesmo tempo independente de seucurso, enquanto prvia experincia, e, no entanto, submetida s suas vicissitudes, uma vez que a verdadeda profecia se mantm dentro dos limites do seu desenrolar-se. Ela tem sua base na imaginao poltica do
homem moderno e, contudo, est sujeita ao remanejamento constante que as circunstncias lhe impem,como condio de sua sobrevivncia. Ela faz da Histria seu alimento cotidiano, integrando continuamente crena tudo o que ocorre. Assim se explica que ela s tenha podido desaparecer pelo desaparecimentodaquilo de que se nutria a sua substncia: crena na salvao pela Histria, ela s podia ceder a umdesmentido radical da Histria, que tirasse sua razo de ser ao trabalho de remendagem inscrito em suanatureza. ( FURET, 1995, p. 12)
A nosso ver, esse modelo de anlise do militante de esquerda carece de
fundamento por duas razes. Em primeiro lugar, o cruzamento entre redeno e
utopia, de um lado, e de marxismo e teologia, de outro, daria origem segundo o
modelo, a um tipo de conscincia histrica linear que, como veremos, muito pouco
tem haver com as religies orientadas pela idia de salvao ou redeno.
Em segundo lugar, a relao entre as teorias que visam uma superao
utpica do real, ou seja, que servem de orientao para uma ao no presente
visando uma mudana radical das relaes sociais nesse presente, o marxismo e o
anarquismo, e as representaes religiosas do mundo aparecem quase sempre
revestidas de uma roupagem pejorativa. Tal roupagem parece ser tecida pelo
paradigma de uma racionalidade instrumental e positivista que, partindo de uma
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separao mecnica entre teoria e prtica, entre sujeito e objeto do conhecimento,
atribui ao primeiro a tarefa de interpretar o mundo como ele , de preferncia, com
os dois ps bem cravados no presente, sem alar vos para nenhum devir que no
seja o espelho do agora... A utopia de um mundo melhor, neste ou em outro plano
(seja o paraso ou a sociedade sem classes), aparece como uma auto-iluso,
justificada pela teoria (a leitura como fundamento), que guiaria o militante na busca
desse objetivo inalcanvel, atuando como a cenoura colocada em frente aos olhos
do animal de trao para que ele ande mais rpido...
No caso do marxismo, a relao deste com a religio sempre foi o palco de
crticas bastante contraditrias. De um lado, ao colocar como objetivo da teoria no
apenas a interpretao do real, mas a sua transformao projetando um modelo de
sociedade para alm da ordem social vigente, o marxismo funcionaria como um
sistema teleolgico e como uma espcie de substituto simblico da religio. De
outro, pela determinao da realidade material sobre o pensamento, a anlise das
religies por Marx no seria capaz de entender o papel determinante da cultura nas
relaes sociais associando a religio a um tipo de cegueira, de fuga do real, de
pio do povo. O marxismo seria condenado, portanto, ao mesmo tempo por ser
idealista demais e materialista ao extremo! Acreditamos que ambas as crticas
partem de uma m compreenso da relao dialtica entre o meio material e as
idias contidas no prprio Marx.
Para Rubem Alves, essa concepo determinista seria fruto do prprio
mtodo de anlise de Marx. A conhecida metfora do edifcio expressa no Prefcio
Contribuio Crtica da Economia Polticade 1859, ao exprimir uma relao de
determinao econmica entre base e superestrutura, retiraria toda a autonomia do
campo das idias (e, portanto, tambm da religio), negando a estas ltimas
qualquer capacidade de interveno sobre o real.Chamou-nos a ateno, entretanto, algumas das obras utilizadas por Rubem
Alves em seu O suspiro dos Oprimidospara elaborar sua crtica a crtica marxista
das religies, em especial a Introduo Contribuio Crtica da Filosofia do
Direito de Hegele a Ideologia Alem. Ora, a preocupao central de Marx nesses
dois textos parece ser no s a relao de determinao entre base e
superestrutura, mas tambm e principalmente os processos nos quais certas idias
podem converter-se em foras materiais. O resumo da concepo de Marx sobre asreligies como o pio do povo, como uma auto-iluso ou alucinao coletiva,
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quando colocada fora de contexto, parece no fazer jus ao sentido empregado pelo
autor:
A religio o suspiro do ser oprimido, o ntimo de um mundo sem corao e a alma de situaes sem
alma. o pio do povo. A misria religiosa constitui ao mesmo tempo a expresso da misria real e oprotesto contra a misria real. O banimento da religio como felicidade ilusria dos homens a exigncia desua felicidade real. O apelo para que abandonem as iluses a respeito de suas condies o apelo paraabandonarem uma condio que precisa de iluses. (MARX, 2001, p. 45-46)
Ora, a crtica do pensamento religioso serve, aqui, antes de tudo, como
fundamento crtica da prpria filosofia alem e de sua ausncia de relao entre
teoria e prtica. A Alemanha queria atingir o nvel oficial das naes modernas na teoria
sem atingi-lo na prtica. Nesse caso, a filosofia que aqui funcionava como
entorpecente que afastava os alemes de sua realidade e das condies concretas detransform-la. A preocupao de Marx era como a teoria poderia, ao apoderar-se das
massas, tornar-se o fio condutor da mudana das condies materiais, superando a
prpria filosofia j que impossvel extinguir a filosofia sem a realizar. sintomtico
que o passado revolucionrioda Alemanha no qual Marx baseia suas concluses seja,
justamente, o da Reforma: assim como aquela revoluo se originou no crebro de um
religioso, hoje se origina no crebro do filsofo.(MARX, 2001, p. 51)
Ao invs da independncia das foras histricas em relao conscincia, o queencontramos aqui a centralidade do surgimento de uma nova conscincia para a
realizao da prpria causa. claro que o surgimento dessa nova conscincia no se
daria por gerao espontnea, seria necessria certa atmosfera para ger-la. Em Marx,
essa atmosfera nos dada pela idia de revoluo, da a forte presena de uma teoria
da revoluo nas obras de juventude de Marx. A revoluo necessria no s por ser
a nica forma de derrubada da classe dominante, mas porque a classe que a derruba
s numa revoluo consegue sacudir dos ombros toda a velha porcaria e tornar-secapaz de uma nova fundao da sociedade. (MARX e ENGELS, 1984, p.47)
Ao no perceber o potencial utpico e as prprias semelhanas histricas entre
socialismo e cristianismo, Marx acaba identificando o pensamento religioso como parte
da velha porcaria a ser sacudida para fora da conscincia. Mas este erro no est,
como vimos, contido em seu mtodo de anlise do real, mas antes nas caractersticas
do prprio real poca de Marx. Embora fosse perceptvel certo potencial crtico da
religio, esse potencial no era expresso na prxis religiosa de sua poca. Tanto o
misticismo quanto as religies ascticas eram, em sua essncia, conservadoras: as
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primeiras por certa nostalgia pelo seu passado feudal, as segundas por sua afirmao e
defesa de uma tica capitalista. Seriam necessrias outras mudanas no seio da
modernidade para libertar esse potencial utpico das religies das amarras do presente
e do passado, apontando-o para o futuro, no apenas num plano celestial, mas
trazendo o paraso para o mundo dos homens.
A religio segue sendo um dos temas mais instigantes nas cincias sociais.
Herdeira do Sculo das Luzes, as Cincias Sociais nascem marcadas pela distino,
num primeiro momento, entre religio e filosofia e, depois, pela separao entre estas e
a cincia, processo que tem como conseqncia a adoo da cincia como forma de
conhecimento dominante e o conseqente isolamento das religies como formas
marginais de conhecimento.
Como homens de seu tempo, os autores clssicos das Cincias Sociais tero
esse cenrio como ponto de partida para a anlise do papel da religio na sociedade
moderna.
A crescente racionalizao da vida cotidiana no significa necessariamente um
maior conhecimento sobre nossa realidade, mas a crena em que, se quisssemos,
poderamos ter esse conhecimento a qualquer momento (WEBER, 1963, p.165).
Trata-se menos de conhecimento sobre a realidade do que de controlesobre o real.
a isso que Weber ir chamar de desencantamento do mundoporque esse domnio
sobre o real j no necessita de meios mgicos ou da autoridade dos espritos para
se fazer valer.
Com a reforma protestante tambm as religies sofreriam a influncia deste
processo. A busca de salvao passa a estar ligada no mais s formas de
isolamento e de renncia monstica, mas o engajamento prtico e racional nas
regras deste mundo que passa a garantir o bilhete de entrada no outro.
A racionalizao que desencantou o mundo perderia tambm, com o sculo XX,seu prprio encanto. Ela revelou que o sofrimento deste mundo obedecia s suas
prprias regras e que estas poderiam ser quebradas. Ela revelou, de forma trgica na
primeira metade do sculo XX (com Auschwitz e Hiroshima), que o sofrimento neste
mundo no poderia obedecer a nenhuma vontade divina inexplicvel, mas aos prprios
mecanismos da racionalidade humana. Ela revelou, enfim, que os enfeites modernos
usados para encobrir as correntes que aprisionam a humanidade4, j no so as velhas
4Para usarmos a metfora de Marx.
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iluses religiosas, mas as prprias correntes, o conhecimento racional do
funcionamento das correntes: acreditamos poder tornar nossas correntes mais belas
pelo melhor conhecimento de sua anatomia.
A crtica do humanismo racionalista em A Dialtica do Esclarecimento, de
Adorno e Horkheimer, parece demonstrar bem a forma como o projeto iluminista pde
transformar-se em seu contrrio, ou seja, de filosofia que visava a dignidade e
emancipao do homem, converteu-se em cmplice de sua dominao. O domnio
racional do homem sobre a natureza converteu-se em domnio da racionalidade
instrumental sobre o prprio homem.
O que os homens querem aprender da natureza como empreg-la para dominar completamente a ela e aos
homens. Nada mais importa. Sem a menor considerao consigo mesmo, o esclarecimento eliminou comseu cautrio o ltimo resto de sua prpria autoconscincia. (...) O despertar do sujeito tem por preo oreconhecimento do poder como o princpio de todas as relaes (ADORNO & HORKHEIMER, 1985,p.20-24)
Ora, no momento em que o sofrimento neste mundo deixa de ser identificado
uma vontade divina, passando corresponder forma histrica de organizao dos
homens em sociedade, a antiga renncia mstica do mundo pode retornar como fora
material de mudana social, fundindo utopia social e redeno religiosa. A conquista da
liberdade deixa de estar identificada apenas ao domnio racional sobre o real, mastambm a um processo de re-encantamento do mundo que extrapola e transforma a
vivncia do real.
interessante notar que os fundamentos utilizados pelos defensores de uma
racionalidade positivista (incluso vrios marxistas e at o prprio Marx em alguns
momentos) contra a religio aparecem aqui justamente como a auto-iluso, como a
miragem caracterstica de nossa poca. No mais o paraso ou a salvao futura,
mas o tempo do progresso, com sua busca insana de aperfeioamento tcnico emum tempo linear e vazio, que agora detm o olhar fixo no futuro como
aprofundamento do eterno presente. A crtica a essa temporalidade soma-se
crtica da dominao do homem pela razo instrumental, pelo saber que se tornou
poder. A crtica do humanismo gera aqui um humanismo de tipo novo, que tem de
buscar sua inspirao no mais apenas na razo, mas em algo alm dela.
Segundo Michael Lowy (1989), esse algo alm pode ser identificado com um
novo surto de Romantismo que se inicia com o sculo XX. essa atmosferagerada por esse novo romantismo, que no pode mais querer fazer voltar o passado,
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que explicaria em ltima instncia, a atrao entre religio e utopia em autores com
grande influncia do pensamento judaico em suas formulaes (Kafka, Benjamin,
Bloch, Lukcs, etc.). Entendemos, entretanto, que esse surto romntico carece
tambm de explicao. No momento em que o iluminismo, com sua crena na razo
e na tcnica como motor do progresso, converte-se em fora reacionria, no era de
se esperar que certos elementos tidos como reacionrios outrora retornassem como
fora progressista? Nesse sentido, o romantismo, como crtica da racionalidade e
apelo ao retorno a algo alm da materialidade, dimenso do esprito, no poderia
retornar agora, no mais como desejo de fazer voltar a histria, mas como fora
sincera de superao do estado de coisas vigente?
Uma boa representao dessa dialtica das luzes, onde progresso torna-se
reao e a reao progresso, bem como da atrao entre religio e utopia social,
pode ser encontrada no romance de Thomas Mann, A Montanha Mgica. No livro,
dois personagens encarnam o conflito: de um lado, Setembrini, fervoroso defensor
da cincia, da razo, do indivduo e do liberalismo; de outro, o jesuta Leon Naphta,
um adepto da era romntica, defensor da igreja, dos valores espirituais e da Idade
Mdia. Nos debates entre um e outro, freqentemente o iluminismo de Setembrini,
levado ao extremo, transforma-se em defesa reacionria do capitalismo e de suas
barbries, e o romantismo de Naphta converte-se em um anti-capitalismo que tende
a buscar inspirao no s no passado pr-capitalista, mas no futuro, identificando-
se at mesmo com o comunismo:
Os padres da Igreja qualificavam o meu e o teu de palavras funestas e chamavam a propriedade privadausurpao e roubo. (...) Honrosos pareciam-lhes o agricultor e o artfice, mas no o mercador e o industrial.Queriam eles que a produo se acomodasse s necessidades e abominavam a produo em massa. Bem,depois de sculos de soterramento ressurgem todos esses princpios e padres econmicos no movimentomoderno do comunismo. A semelhana completa, at no significado da reivindicao de soberania, quepleiteia, contra a camada internacional de comerciantes e especuladores, o trabalho internacional, o
proletariado do mundo, que hoje em dia ope a humanidade e os critrios da Cidade de Deus depravao daburguesa-capitalista. A ditadura do proletariado, essa exigncia de salvao poltica e econmica dos nossostempos, no tem o sentido de um domnio pelo domnio e por toda a eternidade, mas sim o de uma ab-rogaotemporria do conflito entre o esprito e o poder sob o signo da cruz, o sentido de triunfar sobre o mundodominando-o, o sentido da transio e da transcendncia, o sentido do Reino. O proletariado retomou a obrade Gregrio; sente arder no seu ntimo o zelo piedoso do grande papa e, como ele, tampouco poder impediras suas mos o derramamento de sangue. Sua incumbncia espalhar o terror para a salvao do mundo epara a conquista do objetivo da redeno, que a relao filial com Deus, sem a interferncia do Estado e dasclasses. (MANN, 2000, p. 549-550)
Trata-se aqui, no apenas de uma comparao, mas de uma relao de
correspondncia entre duas configuraes culturais distintas, mas aproximadas pela
histria. Em Redeno e Utopia, Michael Lwy se prope a analisar a atrao desse
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romantismo libertrio com o messianismo judaico entre a intelectualidade alem da
Europa central. A relao entre religio e poltica seria, nesse caso, a responsvel
pelo surgimento de uma nova concepo da histria, de uma nova percepo da
temporalidade, em ruptura com o evolucionismo e a filosofia do progresso (LOWY,
1989, p. 11).
O autor apropria-se do conceito de afinidade eletiva ampliando seu alcance
para alm da simples analogia, influncia ou associao, podendo mesmo chegar a
fuso entre duas configuraes sociais distintas. Ele recompe o itinerrio do
conceito desde a alquimia at sua transferncia para o plano das relaes sociais,
primeiro por Goethe e depois por Weber. Em Goethe, assim como nos alquimistas
medievais, o termo define no apenas a influncia e o reforo mtuo entre diferentes
configuraes (como no caso da anlise Weberiana entre tica protestante e a
racionalidade capitalista), mas, principalmente, o processo de interao e fuso
dando origem uma configurao de novo tipo, irredutvel s suas partes originrias.
A fuso, no entanto, depende de certa temperatura social, ou seja, de um contexto
histrico especfico que aproxime as duas dimenses sociais.
Entendido dessa forma, o conceito metodolgico de afinidade eletiva pode ser
til para entendermos o cruzamento entre religio e utopia, de um lado, e marxismo
e teologia, de outro, na prtica poltica da militncia Sem Terra.
Embora tanto a imagem da conquista da terra quanto o horizonte societrio
buscado pelo movimento apaream, por vezes, revestidos de uma roupagem
religiosa, acreditamos que religio e utopia fundem-se aqui no somente na
caracterizao dos objetivos futuros da luta, mas na prtica poltica dos seus
militantes no presente. Ao apostar na construo de novos valores identitrios a
partir da prtica, a concepo pedaggica do MST traz a representao da utopia
para a esfera do vivido. Em outras palavras, o combustvel do militante deixa de serapenas a crena na salvao futura (seja ela divina ou terrena) pela qual ele
sacrificaria sua vida no presente, passando a se identificar com valores vivenciados
pelo grupo do qual faz parte. Trata-se, portanto, de entender melhor esse nexo entre
religio e poltica na formao do militante sem terra e como influencia as diferentes
concepes de temporalidade.
Para entender exatamente a que nos referimos quando falamos em
concepes de temporalidade e na transformao da conscincia histrica dos
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militantes, ser importante um pequeno vo rasante pelas diferentes noes do
tempo no decorrer da histria.
2.1 O Movimento do tempo no tempo...
Passado, presente e futuro no se cruzam na conscincia e no imaginrio
coletivo como imagens estticas, como estilhaos de um tempo perdido que no
guardam relaes entre si, peas de um quebra-cabea insolvel. Essas dimenses
costumam se confundir constantemente e se determinam reciprocamente. Na
verdade, a histria encontra-se sempre em uma tenso entre o dilogo e a oposio
entre essas duas esferas. Para uma temporalidade linear, que entende a histria
como a sucesso dos acontecimentos passados, torna-se necessrio isolar opresente de qualquer passado criando uma oposio entre essas duas dimenses.
Segundo Le Goff tal posio no neutra, mas subentende, ou exprime, um
sistema de atribuio de valores, como, por exemplo, nos pares antigo/moderno,
progresso/reao (LE GOFF, 2003, p.8). Tanto em sua verso otimista, a
concepo iluminista da histria como o progresso da razo, quanto em sua variante
pessimista, a histria entendida como contnua decadncia, essa oposio exprime
tambm a tentativa de dar um sentido Histria.Trata-se, bem entendido, no apenas da tentativa de isolar o passado do
presente, mas da necessidade de isolamento do pesquisador de seu prprio
presente, da posio que ele ocupa no presente, mirante a partir do qual desenha
sua viso sobre o passado. Entretanto, mesmo acreditando situar-se fora do fluir do
tempo, o historiador no dispe de outro material a no ser as tintas de sua prpria
poca histrica para desenhar o passado. Exatamente por tentar minar ou encobrir a
relao entre presente e passado, a histria oficial no sabe lidar com a constatao
simples de que, como o restante dos mortais, os historiadores esto submetidos ao
tempo em que vivem. porque o passado no retorna ao presente como um simples
exerccio de erudio, uma coleo de fatos que encerram seu sentido em si
mesmo, que o tempo histrico comporta sempre uma focalizao implcita no
presente.
Isso no deve levar a um ceticismo em relao ao conhecimento histrico.
Sempre que guardamos algo, o fazemos porque aquilo pode nos ser til em algum
momento ou porque guardamos uma relao de identidade ou proximidade com
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aquele objeto. Essa utilidade ou identidade no est contida somente no objeto em
si, mas principalmente, nas relaes sociais a partir das quais o recuperamos e que
lhes do sentido no hoje. Isso se d tambm com os acontecimentos histricos,
precisamente porque o passado nunca apenas passado:
Sabemos agora que o passado depende parcialmente do presente. Toda histria bem contempornea, namedida em que o passado apreendido no presente e responde, portanto, a seus interesses, o que no s inevitvel como legtimo. Pois que a histria durao, o passado ao mesmo tempo passado e presente.Compete ao historiador fazer um estudo objetivo do passado sob sua dupla forma. (LE GOFF, 2003, p.51)
Diferentes definies do presente implicam, assim, em diferentes vises sobre
o passado. Aquilo que definimos como contemporneo nossa poca desenha
nossa viso sobre um antes e um depois. Trata-se, portanto, de desnaturalizar as
fronteiras entre passado e presente. Tais fronteiras so, assim como a viso de
mundo de que fazem parte, historicamente determinadas. Segundo Le Goff, essas
separaes se apresentam quase sempre como projeto ideolgico. Elas mudam
conforme os povos, culturas ou campos sociais em que estamos inseridos: na
Frana, a histria contempornea oficial comea com a Revoluo de 1789, na Itlia
teramos de nos referir ao Renascimento e queda do fascismo, na Rssia (mas
no s entre os russos, entre toda a esquerda que reivindica o marxismo e o
socialismo) a revoluo de 1917 se insere como um divisor de guas.
A prpria existncia dessas fronteiras j indica um sentido do tempo passado:
ele retorna como aquilo que foi superado, aquilo que deixamos para trs. Segundo
Hobsbawn isso nos coloca tambm o problema da rejeio do passado. Isso se
torna freqente em uma sociedade onde a inovao identificada tanto como
inevitvel quanto como socialmente desejvel: quando representa progresso
(HOBSBAWN, 1998, p. 29). De outro lado, a viso do passado como superao
pode transform-lo tambm em uma espcie de lio moral s aes humanas no
presente, o que costuma se resumir na tradicional mxima aprender com os erros
das geraes passadas.
Ao contrrio de um muro intransponvel, as fronteiras entre passado e presente
podem aproximar ambos como acontecimento histrico. Assim como o
acontecimento mais imediato, os fatos passados ocuparam tambm um lugar e
uma data, a sua no atualidade no pode ser confundida com a sua no-realidade.
Mas o que aproxima tambm o que distancia:
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Se o passado e o presente pertencem esfera do mesmo, esto tambm na esfera da alteridade. Se for fato queo acontecimento passado est acabado e que esta dimenso o constitui fundamentalmente, tambm verdadeque a sua qualidade de passado o diferencia de qualquer outro acontecimento que se lhe pudesseassemelhar. A idia de que h repeties na histria... que no h nada de novo sob o sol, ou mesmo de queh lies do passado, s tem sentido para uma mentalidade no histrica. (LE GOFF, 2003, p.218-129).
O passado deve, dessa forma, manter uma relao de alteridade com o
presente, mas uma relao de alteridade que nos ajude a compreend-lo. O
passado se apresenta como diferena ao presente para revel-lo, e s a partir da
que retornamos ao passado como alteridade, podendo entender melhor seu
significado. Mas, se verdade que a funo do passado est em esclarecer o
presente, tambm verdade que a ordem dos fatores altera, quase quenecessariamente, o seu produto: o presente pode ser utilizado para definir o
passado sua imagem e semelhana fazendo com que este ltimo retorne
reforando as relaes de poder no presente.
Para Hobsbawn (1998), a prpria lembrana de que devemos resgatar o
passado como referncia indica que este passado j deixou de ser o padro para as
relaes sociais no presente, apelar para o retorno aos caminhos de nossos
antepassados indica, no mnimo, que no os trilhamos automaticamente. O
passado s retorna agora como mscara da mudana real ocorrida no presente,
resgatando dos velhos tempos apenas os elementos que mantm certa semelhana
com o que h de novo.
Mas preciso ainda acrescentar uma quarta dimenso do tempo histrico: para
uma concepo no-esttica da histria, para uma histria entendida como
movimento, quem diz passado e presente diz tambm futuro. Em outras palavras,
quem diz o que foi para caracterizar o que , pode tambm traar possibilidades de
futuro, pode dizer o que tende a ser. Podemos, assim, desenvolver uma concepo
do presente como o ponto onde passado e futuro se cruzam. E se cruzam no
apenas por seu carter comum de fatos passados e fatos futuros, mas porque
existem objetivamente no presente:
De fato, a realidade da percepo e diviso do tempo em funo de um antes e um depois no se limita, emnvel individual ou coletivo, oposio presente/passado: devemos acrescentar-lhe uma terceira dimenso, ofuturo. Santo Agostinho exprimiu, com profundidade, o sistema das trs vises temporais ao dizer que s
vivemos no presente, mas que este presente tem vrias dimenses, presente das coisas passadas, o presentedas coisas presentes, o presente das coisas futuras. (LE GOFF, 2003, p.209).
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interessante notar que, na viso de Santo Agostinho, as barreiras entre as
trs dimenses temporais no caem apenas por ser o presente o ponto de onde
buscamos compreender o passado ou o momento a partir do qual determinamos o
futuro, mas sim porque passado e futuro no esto fora do tempo presente. O
passado no aparece somente como superao, mas como permanncia; o futuro
no aparece como horizonte, mas como um movimento possvel do real.
Todo presente sempre supera ao mesmo tempo incorporando os elementos do
passado, elementos que determinam todo o campo de ao dos homens no
presente. a experincia passada que fornece as bases de sua ao. Como nos
lembrava Marx em O Dezoito Brumrio de Lus Bonaparte:
Os homens fazem sua prpria histria, mas no a fazem segundo sua livre vontade; no a fazem sobcircunstncias de sua escolha, mas sob aquelas circunstncias com que se defrontam diretamente, legadase transmitidas pelo passado. A tradio de todas as tradies mortas oprime o crebro dos vivos como umpesadelo (MARX, 1987)
Seguindo o raciocnio de Marx, todo presente j contm, em si, o germe de sua
superao, ou seja, um futuro em desenvolvimento, de forma que tambm o futuro
participa do presente e vice versa.
Esse amlgama ou at mesmo essa fuso entre as categorias temporaisparece ser uma caracterstica forte nas sociedades ainda sem classes e sem
Estado. Por muito tempo os estudos antropolgicos deixaram de perceber a
centralidade dessa diferente conscincia histrica naquelas sociedades. Trata-se
sempre de um olhar centrado no presente, no entendimento da histria como
locomotiva movida pelo acmulo racional da tcnica e do domnio sobre a natureza,
na tentativa de enquadrar quelas sociedades nessas categorias.
O estudo clssico de Friedrich Engels sobre A origem da famlia, dapropriedade privada e do Estado bastante marcado por essa preocupao em
evitar transferir mecanicamente as categorias do presente, tentando nelas enquadrar
as relaes sociais de um passado pr-capitalista. O centro da crtica em seu estudo
sobre a famlia nas sociedades primitivas dirige-se aos tericos que tentam moldar
aquelas formas de famlia (onde a gerncia da vida sexual extrapolava a diviso por
pares) pelo modelo monogmico patriarcal, seja buscando forosamente as
semelhanas (quase inexistentes) das regras do matrimnio atual naquelas
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relaes, seja associando-as s formas hipcritas deixadas pela monogamia no
presente: o passado se reapresentaria no presente como promiscuidade5.
A prpria classificao de Morgan das sociedades primitivas, que Engels coloca
como pressuposto em seu trabalho tem, no entanto, o centro de sua periodizao no
avano linear do domnio sobre a natureza.6
claro que os diferentes avanos da tcnica e as transformaes da natureza
pelo homem alteram tambm o homem e sua natureza, alterando inclusive sua
conscincia do tempo, mas no se trata disso. O problema no esse, at porque o
interesse na obra de Engels menos antropolgico do que poltico: trata-se de
recuperar a alteridade do passado (o passado sem classes e sem Estado) com o
presente, garantindo tambm a possibilidade da diferena desse presente com um
futuro visado. Trata-se de desnaturalizar certas relaes sociais (o parentesco, a
famlia, a relao com a natureza, as formas decisrias, os rituais, a religio, etc.)
colocando em cheque as relaes do presente.
Ao no fazer o mesmo com a histria, no entanto, Engels deixa de colocar em
cheque a conscincia histrica do prprio pesquisador, o que aparece
principalmente nas projees que faz para o futuro a partir de sua anlise da
evoluo das formas de famlia.
A famlia monogmica desenvolve-se a partir do surgimento da propriedade
privada e da transmisso desta pela herana. Ela inseparvel, portanto, do
movimento que faz surgir a diviso em classes e o Estado. A evoluo das formas
de matrimnio descrita como uma expropriao da liberdade sexual das mulheres,
ficando esta restrita aos homens. O que se esperaria ento da sociedade comunista
futura, que nada mais seria do que um retorno, em outro patamar, de uma sociedade
sem classes e sem Estado? No seria de se esperar que, com o fim dos
constrangimentos da propriedade privada findassem tambm os constrangimentos liberdade sexual da mulher dando origem a formas de relao entre os sexos que
extrapolem a forma monogmica? Embora o prprio Engels admita ser impossvel
5Parece-me que, ao contrrio, ser impossvel formar a menor idia das condies primitivas enquanto elasforem observadas atravs da janela de um lupanar (ENGELS, 1963, p.32)6Morgan divide o perodo das sociedades primitivas entre sociedades selvagens e a barbrie. Cada umadelas possui sua fase inferior, mdia e superior, cada uma correspondendo certos avanos da tcnica: a
barbrie, por exemplo, teria como marco da fase inferior a introduo da cermica; da fase mdia adomesticao de animais, a irrigao, as construes de pedra, etc.; da fase superior a fundio do minrio deferro, e assim por diante...
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predizer a natureza da forma que sucederia o atual estgio da famlia, o pouco
prognstico que faz aponta num sentido muito diferente deste:
A famlia produto do sistema social e refletir o estado de cultura desse sistema. Tendo a famlia
monogmica melhorado a partir dos comeos da civilizao e, de uma maneira muito notvel, nos temposmodernos, lcito pelo menos supor que seja capaz de continuar seu aperfeioamento at que chegue aigualdade entre os dois sexos. Se, num futuro remoto, a famlia no mais atender s exigncias sociais, impossvel predizer a natureza da famlia que a suceder (ENGELS, 1963, p.69).
O que leva Engels a acreditar que a famlia monogmica, essa forma to ligada
ao surgimento da propriedade, das classes e, depois, do Estado, coisas a serem
superadas na sociedade por ele visada, seja justamente a forma que sobrevive na
sociedade futura e meio pelo qual pode ser alcanada a igualdade entre homens e
mulheres? que a famlia monogmica aparece aqui como a forma correspondenteao estgio mais desenvolvido das foras produtivas materiais.
O futuro supera, ao mesmo tempo incorporando elementos do passado, mas
no se trata aqui de qualquer passado, mas daquele que imediatamente anterior e
que seria a forma mais desenvolvida do passado. Engels recoloca no plano da
histria as relaes de famlia, de propriedade e o Estado, mas como homem de seu
tempo, bastante influenciado pelo Sculo das Luzes, acaba naturalizando o prprio
conceito de Histria: a histria aqui significa ainda progresso. Trata-se do progressoda razo, no mais entendida como evoluo de um esprito universal, mas como a
evoluo do controle racional do homem sobre a natureza e, com isso, do controle
do homem sobre sua prpria natureza.
As relaes sociais menos desenvolvidas do comunismo primitivo s podem
ser entendidas, dessa forma, como um passado morto para o qual no h retorno
possvel e o futuro se insere ainda como o mximo desenvolvimento das relaes
sociais do presente. evidente que o avano da tcnica levou a humanidade se colocar novas
questes e a desenvolver novas relaes mas, como j dissemos, a questo no
essa. que, ao no perceber que a inexistncia da propriedade privada e das
classes pressupunha tambm outra concepo do tempo, menos linear e vazia,
Engels acaba projetando o futuro como continuidade e no como ruptura com essa
temporalidade histrica a que chamamos progresso e que , como veremos,
bastante recente na histria da humanidade.
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2.2 Do eterno retorno filosofia do progresso...
Em seu Histria e Memria, Jacques Le Goff nos d um bom apanhado acerca
dos estudos sobre a relao entre passado e presente no decorrer da histria, desde
as sociedades primitivas aos dias atuais.
Nas sociedades ditas primitivas ou sociedades frias o passado aparece
frequentemente como o momento da criao, tempo mtico ou Idade de Ouro
perdida. Esse passado idealizado no fica, entretanto, isolado do cotidiano dessas
sociedades. Em primeiro lugar, como afirma Le Goff (2003, p.214), porque o tempo
que se supe decorrido entre tal criao e o presente , em geral, muito simplificado
e, em segundo lugar, porque retorna, constantemente, como prtica que orienta a
vida no presente.
Os mitos e os ritos comemorativos teriam essa funo de encurtar a distncia
entre passado e presente recriando a atmosfera sagrada dos tempos mticos. Os
ritos de luto das tribos australianas observadas por Lvi-Strauss, so significativos
dessa juno entre passado e presente. Aqui no so os homens vivos que
encarnam temporariamente seus longnquos antepassados, mas so os mortos mais
recentes que se convertem em ancestrais dos tempos antigos. interessante notar
a semelhana desses rituais com a tradio da festa do Kuarup, das tribos do altoXing onde, durante um dia, em troncos de madeira pintados, as tribos encarnam
seus mortos ilustres. Trata-se de uma compresso do tempo histrico onde os
antepassados mais longnquos so lembrados como ancestrais junto aos mortos
mais recentes. Aps o ritual, os mesmos troncos que encarnavam a morte serviro
agora vida, tornando-se moinhos para fazer farinha de mandioca.
Estamos diante de uma totalidade que apreende o mundo como totalidade, ao
mesmo tempo, sincrnica e diacrnica. dessa forma que o passado mtico retornano apenas influenciando o presente, mas tambm delineando os contornos de um
futuro visado. A Idade de Ouro geralmente associada tanto a um passado feliz,
seno perfeito, ao qual se seguiria um longo perodo de decadncia das sociedades,
quanto esperana de futuro, atravs de um eterno retorno, numa temporalidade
composta de ciclos eternamente repetidos. O resgate do passado no presente traz
para essa esfera tambm o futuro. Sobre isso, Le Goff cita o estudo de Evans-
Pritchard sobre os azandes onde presente e futuro sobrepe-se de tal modo que opresente participa, por assim dizer, do futuro (2003, p.116).
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Entre os ndios Guaranis a referncia ao retorno de uma Idade Mtica se daria
no s no tempo como tambm no espao. As migraes que, durante sculos,
deslocaram essas tribos, se justificariam pela busca de uma ilha fabulosa, local
onde permaneceria preservada, do outro lado do oceano ou no centro da Terra, a
Terra sem males do incio dos tempos. O mundo impuro e decadente que se
sucede a esse tempo mtico iria desaparecer com uma grande catstrofe e somente
essa ilha fabulosa seria poupada: eis como a compreenso do passado e do futuro
se cruzam num mesmo plano orientando as aes no presente.
Essa temporalidade cclica, ligada ao retorno da Idade de Ouro aparece
tambm entre os filsofos da Antiguidade Greco-Romana, muito mais marcados pela
idia de decadncia e de esperana de retorno s origens. Em Os Trabalhos e os
Dias de Hesodo, essa decadncia aparece na metfora dos metais. A origem dos
tempos seria marcada pelos homens de ouro, aos quais se sucederiam homens de
prata, de menos estatura e menos inteligentes, depois viriam os homens de bronze,
uma raa terrvel, poderosa e insolente; e a ltima, raa de mortais, seria a raa de
ferro, a mais fraca e sofredora. Mas Hesodo esperava tambm, em seus dias, o
retorno a essa Idade de Ouro:
Sabe-se que Hesodo, longe de se entregar ao desespero nesta Idade de Ferro, exorta a uma vida decoragem e trabalho e, na primeira parte do poema, apresenta outro mito, que no exalta o far niente daIdade de Ouro, mas sim a atividade criadora do homem, o mito de Prometeu. Note-se ainda que umelemento, que habitualmente faz parte da Idade de Ouro, aparece aqui na Idade dos Heris o tema daIlha dos Bem-Aventurados. (LE GOFF, 2003, p.293)
Herdeiro das concepes de Hesodo, os escritos de Ovdio seriam os
principais responsveis pela difuso da idia de uma Idade de Ouro durante o
perodo medieval at o Renascimento. importante notar na descrio da Idade de
Ouro uma forte semelhana com a imagem de uma sociedade sem classes, semEstado nem propriedade privada, onde os escravos, se no eram senhores, eram
pelo menos iguais aos homens livres; as guerras estavam suspensas e os tribunais
no funcionavam (LE GOFF, 2003, p. 296). Fala-se de:
1. um regime anrquico sem poder, sem leis, sem propriedade privada;2. o reino da paz;3. a ausncia de comrcio e de viagens;4. o arcasmo tecnolgico;
5. o vegetarianismo;6. uma moral de inocncia primitiva, numa espcie de Pas da Abundncia [...](LE GOFF, 2003, p.295)
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A Idade Mdia situa-se entre a referncia num passado mtico e uma viso
escatolgica que volta para o futuro a valorizao do tempo a partir do
Renascimento. A referncia a um futuro escatolgico no exclui, entretanto, a
referncia de um retorno a uma idade mtica, pois, se a escatologia d sentido
histria, as idades mticas do-lhe contedo e ritmo no interior desse sentido(LE
GOFF, 2003, p.317). Com o cristianismo medieval, escatologia e retorno s idades
mticas passam a estar associadas na idia do mito do fim dos tempos e na idia
de salvao ou redeno futura. A Idade de Ouro assume os contornos do paraso
perdido. Entretanto, como o mito fundador do cristianismo no se refere diretamente
Idade de Ouro, mas encarnao de Cristo, ponto que marca o incio do fim dos
tempos, o Apocalipse concebe o fim dos tempos no como um simples retorno
circular do passado, mas como o retorno do Messias, uma recriao futura em um
novo patamar.
Um tempo parece correr menos em crculo e mais como uma espiral. O
passado retorna transformado. O passado ressignificado pelas relaes presentes
re-significa tambm um futuro esperado, Mas aqui o olhar fixo situa-se ainda nesse
passado. Era no passado e no em uma miragem futura que os cavaleiros
medievais buscavam inspirao em sua cruzada redentora:
O presente tambm saboreado pelo homem da Idade Mdia, que atualiza constantemente o passado,nomeadamente o passado bblico. O homem da Idade Mdia vive num constante anacronismo, ignora acor, reveste as personagens da Antiguidade de hbitos, sentimentos e comportamentos medievais. Oscruzados acreditavam que iam a Jerusalm vingar os verdadeiros carrascos de Cristo. Mas talvezpossamos dizer: O passado no estudado enquanto passado; ele revivido e incorporado no presente? Opresente j no absorvido pelo passado, pois s este lhe d sentido e significado?(LE GOFF, 2003,p.222)
O progresso cientfico que surge na Alta Idade Mdia viria para esticar essa
espiral em uma temporalidade mais linear. O renascimento traria, segundo Le Goff,duas tendncias contraditrias. De um lado, os progressos feitos no registro da
histria (medio, datao, cronologia) inserem o passar do tempo numa perspectiva
histrica, de outro, o pensamento se veria influenciado pelo sentido trgico da vida e
da morte no registro do tempo. Caberia aqui a pergunta se, ao contrrio de
tendncias contraditrias, no estaramos lidando com dois sintomas interligados.
Ora, no momento em que o passado se torna um registro datado ele j no pode
mais ser percebido como tempo vivido no presente, percebemos ento o sentidotrgico da perda porque o sentido do passado se encerra na explicao daquilo que
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passou, no h mais a espera do seu retorno: a morte do tempo passado. O olhar
histrico volta-se agora para o futuro, no mais como retorno, mas como progresso.
a razo e o domnio da tcnica que passam a ser o fio condutor dos historiadores.
A prpria Idade de Ouro deixa, nesse perodo, de estar associada ao momento
da criao, a uma terra sem males, passando a significar um mundo de domnio da
racionalidade, das letras e das artes. A Idade de Ferro da Antiguidade, onde
Hesodo lamentava ter nascido agora descrita como a Idade de Ouro dos
humanistas do Renascimento e a poca de decadncia que se seguiria descrita
como a prpria Idade Mdia. Dessa forma, tambm o retorno Idade de Ouro se
desloca do futuro para o presente, sendo o prprio (significativamente chamado)
Renascimento que anuncia o retorno da razo e o Sculo das Luzes. Eis a descrio
da Idade de Ouro de Marslio Ficcino citada por Le Goff (2003, p.315):
Se legtimo apelidar o nosso sculo de Idade de Ouro, porque ele produz espritos de ouro (aureaingenia). Este sculo, semelhana do ouro, trouxe para a luz as artes liberais quase extintas, a gramtica,a poesia, a oratria, a pintura, a escultura, a arquitetura, a msica, os cnticos sagrados da antiga tradiode Orfeu. E isto em Florena (...). E, sobretudo, na corte do muito poderoso duque de Urbino (...). E, naAlemanha, foi no nosso tempo que se inventou a imprensa.
esse avano na tcnica e no conhecimento que passa a instituir um juzo de
valor entre antigo e moderno: o passado passa a ser visto como superao e o
futuro como o aprofundamento do presente. essa mudana que abre caminho
para a hegemonia da idia de progresso.
Como dissemos, as mudanas na conscincia histrica no nascem do
interesse dos filsofos pelo tempo, elas so fruto das diferentes relaes sociais
constitudas a cada poca histrica a partir de diferentes graus de desenvolvimento
das foras produtivas materiais. Nas sociedades sem classes essa idia de
progresso no poderia fazer sentido pela prpria integrao e dependncia do ser
humano em relao ao meio natural. A escassez de recursos e o baixo grau de
desenvolvimento faziam com que o tempo vivido seguisse o ritmo do tempo cclico
da prpria natureza, da sucesso dos dias e das noites, das estaes do ano, do
tempo do plantio e da colheita, etc.
Na Antiguidade a idia de progresso teria sido bloqueada pela hegemonia de
um retorno cclico Idade de Ouro. O avano linear, as mudanas sucessivas,
tpicas do tempo como progresso eram aqui consideradas motivos de corrupo e
desordem j que, quanto mais avana a sociedade mais distante ela estaria do mito
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fundador de uma Idade Mtica. Da que o tempo cclico aparea aqui, no como um
futuro do passado, mas como o esforo nostlgico de recriar no presente o
passado perdido.
Na verdade, como observa Le Goff (2003, p. 239), a antiguidade continha, ao
mesmo tempo, o bero e o mausolu da idia de progresso. na Atenas do sculo
V a.C. que aparece pela primeira vez a adorao ao progresso tcnico da
civilizao. Isso se expressava no coro de Antgona que cantava as invenes do
homem, na diferenciao e nas tentativas de conquista e domnio dos chamados
povos brbaros, principalmente na obra de Tulcidides. No entanto, o autor percebe
que os sbitos reveses de Atenas, depois de seus sucessos, fazem Tulcidides
retomar o pessimismo, trazendo tona a crise da idia de progresso, o retorno
nostalgia da Idade de Ouro. A tenso entre progresso cientfico e regresso moral
seria ainda encontrada em Plato, Posidnio, Lucrcio e Sneca.
O triunfo do cristianismo na era feudal continuou a impor obstculos idia de
progresso pelo isolamento monstico e pela condenao ao progresso material. A
imagem do paraso perdido substitui a da Idade de Ouro. O cristianismo substitui
uma concepo cclica por uma viso mais linear do tempo orientada para a busca
da salvao futura, situada fora do prprio tempo, do mundo e da vida do indivduo.
Entretanto, essa lgica no to linear quanto parece, j que a procura da salvao
significa tambm a entrada no reino dos cus, a reconquista do paraso perdido pelo
pecado original. No se trata mais de um retorno ao passado, mas da crena em um
retorno do passado na eternidade do ps-vida. caminhar para o futuro para
reconquistar o passado. Talvez por isso a noo de progresso nos telogos da Idade
Mdia aparea misturada com esse retorno ao passado, com o exerccio de dar vida
ao que seria esquecido. O olhar fixo no amanh depende ainda do retorno do ontem.
O sistema de cincias que unia teologia e retrica j alimentava a crena noconhecimento racional como mirante que permite aos homens ver mais longe, mas
esse ver mais longe no est pautado pela superao mecnica do passado, mas
pela possibilidade de encarnar esse passado no presente.
Vemos mais longe do que os antigos, porque vivificamos as formas esquecidas do seu pensamento,
desvitalizadas pela velhice, dando uma certa novidade ao seu contedo. um ato de f limitado, dadoque combina o sentido do progresso com a idia de uma diminuio da estatura dos sbios e com anecessidade de conhecer bem os antigos.(LE GOFF, 2003, p. 242)
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apenas entre o nascimento da imprensa no sculo XV e a revoluo francesa
que a idia de progresso ir se desenvolver mais livremente. No Renascimento o
progresso dependia ainda desse retorno aos antigos. Ele , nesse sentido, ao
mesmo tempo progressista e conservador j que a rejeio um passado mais
prximo (a Idade Mdia) alimentou a glorificao de um passado longnquo (a
Antiguidade).
De fato, so os avanos na cincia e no conhecimento tcnico que do impulso
aos debates acerca do progresso. Entretanto, como dissemos, as mudanas na
conscincia histrica no brotam dos debates tericos, tampouco o avano da
tcnica advm espontaneamente das mudanas no conhecimento e nas idias.
Devemos ligar a ascenso do tempo-progresso, bem como as mudanas que lhe
do impulso, ascenso de uma classe social cuja dominao depende diretamente
dessa forma cumulativa e vazia do tempo histrico.
A dominao feudal estava, de fato, ligada a uma temporalidade cclica.
Fechado em si mesmo, o feudo baseava sua dominao no tempo cclico da terra,
do plantio e da colheita. Esse tempo encontrava sua correspondncia no tempo
cclico religioso que mantinha e justificava a dominao. A perda da colheita era
entendida como castigo divino. A aceitao das regras deste mundo, bem como da
posio ocupada na hierarquia social se inseria como condio para a reconquista
do paraso em outro plano. O prprio senhor feudal era visto pelos servos como a
representao dessa vontade divina.
A ascenso da burguesia necessitava eliminar, antes de tudo, as barreiras
sagradas que impediam o progresso material e o desenvolvimento do comrcio. Ela
necessitava de homens livres no apenas do jugo feudal, mas de homens que
pudessem dispor livremente de seu trabalho como mercadoria, o que significava
tambm dispor de controle sobre seu tempo. Assim, era necessrio desenraizar ohomem da terra, retirando da natureza o controle do tempo e entregando-o ao
prprio homem, individualizando e eliminando esse eterno retorno: o tempo torna-se
agora irreversvel. A riqueza tinha de sair do controle de um Senhor Todo-
Poderoso para circular livremente como senhora de si mesma.
Para isso, como nos lembra o clebre texto do Manifesto do Partido Comunista,
a burguesia dilacerou sem piedade os laos feudais (...) que mantinham as pessoas
amarradas a seus superiores naturais, sem pr no lugar qualquer outra relao entreos indivduos que no o interesse nu e cru do pagamento impessoal e insensvel em
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dinheiro substituindo uma explorao at ento encoberta pelas iluses religiosas
por uma explorao aberta, desavergonhada, direta e seca (MARX, 2005, p.87).
necessidade da burguesia revolucionar constantemente as relaes de
produo e, com elas, o conjunto das relaes sociais corresponde a necessidade
do aumento do controle racional sobre o prprio tempo. O tempo das corporaes de
ofcio era ainda baseado no tempo circular da vida, na lenta transmisso do
conhecimento e da tcnica do mestre ao aprendiz. A abertura de novos mercados e
a explorao colonial exigiam outro ritmo na produo. O desenrolar natural do
tempo de trabalho dos mestres de ofcio quebrado pela potencializao do tempo
na manufatura. Esta, por sua vez, tinha tambm de ser substituda. O surgimento da
moderna indstria iria revolucionar tambm o registro do tempo, medido no mais
apenas em estaes, meses, dias, mas em horas, minutos e segundos. O
capitalismo insere, dentro do presente vivido, a produo constante de um passado
que se encerra em si mesmo.
A burguesia descrita no Manifesto como a primeira classe cuja dominao
depende dessa mudana constante da produo e do conjunto das relaes sociais,
da superao constante do passado pelo desenvolvimento do presente:
A conservao inalterada dos antigos modos de produo era a primeira condio de existncia de todasas classes industriais anteriores. A transformao contnua da produo, o abalo incessante de todo osistema social a insegurana e o movimento permanentes distinguem a poca burguesa de todas asdemais. As relaes rgidas e enferrujadas, com suas representaes e concepes tradicionais, sodissolvidas, e as mais recentes tornam-se antiquadas antes que se consolidem. (MARX, 2005, p.88)
O presente deixa de ser visto como decadncia e adquire ares de superao e
positividade, alimentando a crena de que em nenhuma dcada do passado foi o
homem mais feliz que no presente e que o progresso futuro est assegurado,
fazendo recuar a guerra e a superstio (isto , a religio) (LE GOFF, 2003, p.252).As navegaes e a explorao colonial tinham nesse domnio do presente
sobre o passado sua justificativa ideolgica mais poderosa. Novamente, como em
Atenas, trata-se de levar, pela fora, o progresso da civilizao aos povos
brbaros. Em nossa Amrica Latina civilizaes milenares seriam dizimadas na
incorporao ou eliminao de todo o passado pr-capitalista pelo triunfo do
progresso.
Mas somente com a ascenso poltica da burguesia e com o triunfo da
revoluo francesa de 1789 que a idia de progresso assumiria a completude de seu
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sentido. dentro do conjunto das idias iluministas que o tempo-progresso adquire
significado, aparecendo quase sempre entre idias como as de Natureza,
Humanidade, Razo e Luzes.
A revoluo francesa surge como a fronteira entre o passado e um presente
agora deliberadamente orientado para o futuro. Era necessrio apagar a memria do
passado para dela fazer nascer a referncia a um passado mais recente. As
dcadas que antecederam a Revoluo foram marcadas pelo declnio das
comemoraes e do culto aos mortos, fruto direto da crtica ao clericalismo que ia
progressivamente ganhando fora. Entretanto, logo aps a vitria da Grande
Revoluo na Frana, assiste-se a um retorno exagerado s comemoraes e ao
culto aos mortos, ainda que de forma laicizada. O culto aos mortos mais recentes
passa ao primeiro plano com novos tipos de monumentos, inscries funerrias e
ritos de visita aos cemitrios. O culto salvao divina era agora substitudo pelo
culto revoluo terrena.
Trata-se da necessidade de afirmar um novo marco histrico, uma nova
fronteira entre passado e futuro. Entretanto, para consolidar um marco histrico til
ao presente era necessrio limp-lo de suas contradies, era necessrio manipular
a memria coletiva excluindo dela os vestgios de sangue deixados pela revoluo.
Apenas a data da queda da monarquia, o 14 de Julho e o 1 Vindimrio, datas que
no conheceram os horrores da revoluo sero lembrados. As tentativas de
lembrar a execuo de Luis XV no teriam xito, era a comemorao impossvel.
Segundo Le Goff (2003, p. 226), essa crena no futuro como desenvolvimento
do infinito presente traz de volta, com o triunfo do positivismo nas cincias, o desejo
de eternidade reaparecido de forma laica. Com a Revoluo, a Repblica e o
Liberalismo, a histria teria atingido seus fins e adquirido estabilidade perptua, aps
1789 e 1880 restaria apenas a vivncia da eternidade.Paradoxalmente, a revoluo que aparece como triunfo poltico e ideolgico da
idia de progresso, idia associada a uma noo de continuidade na histria, surge
antes como esse marco inicial, como ruptura com todo o desenrolar da histria que a
antecedeu.
O seu calendrio pretende mostrar que a nova era, aberta pela Revoluo, tambm o finalizar da histriaque a precedeu, substituindo os santos por grandes homens do passado, benfeitores da humanidade. O seu
calendrio faz da idia de histria-progresso um instrumento de assimilao do passado . (LE GOFF,2003, p.255)
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A referncia a um tempo original ou s idades mticas tiveram, durante algum
tempo, seu sentido apagado por esse novo olhar sobre o passado. somente com o
contratualismo e suas justificativas ideolgicas para o surgimento do Estado
Moderno que a problemtica de uma Idade Mtica retorna expressa (por Locke e
Hobbes, principalmente) em seu contrrio, atravs do conceito de estado de
natureza. O Estado, as leis, o comrcio e a propriedade privada, antes associados
opresso e guerra, so apresentados agora como sua soluo atravs da magia
do contrato social. O antes to esperado retorno ao tempo das origens agora
apresentado, por Hobbes e tambm por Locke, como ameaa ao progresso e
civilizao.
Em Rousseau, entretanto, a noo de estado de natureza ir retornar com
uma significativa semelhana com o mito da Idade de Ouro. Civilizao, Estado e
progresso aparecem de novo aqui como sintomas de decadncia, e o estado
natural descrito como uma idade feliz em que nada marcava as horas.
Entre os socialistas utpicos, bastante influenciados pelo positivismo, progresso
e cincia aparecem no centro de um projeto de emancipao humana. Entretanto,
no mais como a plena realizao do presente, mas como uma esperana de futuro.
Em Owen e Saint-Simon, essa esperana aparece identificada com o contnuo
aperfeioamento da ordem social pela cincia. A Idade de Ouro deixa de ser
buscada para trs do hoje, mas no seu desenvolvimento futuro. Os males do
capitalismo eram entendidos como entraves e no conseqncias do progresso.
Talvez esse seja o momento de recuperarmos um pouco da discusso que
abriu esse captulo. A tese que aproxima religio e militncia poltica, vendo em
ambas uma temporalidade escatolgica, voltada sempre para um futuro nunca
alcanado, parece agora bastante carente de fundamento. No s as religies nopossuam, como vimos, uma conscincia histrica linear voltada para a frente de seu
tempo como, quando possuem, o horizonte visado geralmente associado um
passado perdido. Alm disso, as teorias sociais que servem de fundamento
militncia poltica de esquerda, em particular o marxismo, ou se encontram na
contramo da ideologia do progresso ou dela sofrem pouca influncia.
que fundamentar a crtica ao militante poltico nessa associao cumpre aqui
uma funo bastante especfica. Trata-se de contestar a objetividade da viso demundo e das constelaes tericas que orientam o militante poltico. Partindo da
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oposio entre cincia e religio associa-se, num primeiro momento, o horizonte
buscado pelo militante de esquerda (o socialismo ou o comunismo) a um horizonte
cristo-religioso (o paraso terrestre) para, em seguida, retirar o critrio de
legitimidade cientfica das teorias que fundamentam a prtica da militncia em
nossos dias. Teramos as iluses religiosas guiando fiis de um lado e as iluses
marxistas guiando a militncia poltica de outro. Ambas seriam a viseira que guiaria
o sujei